JANELAS
Anexo
Entre o inteligível e o sensível Isabela Andere Pedra Março/2016
Nas “Janelas” de Mário Azevedo, encontramos uma experiência sensível que se assemelha a uma jornada através de formas, cores e signos, encaminhada por um objeto. Disposta como um caderno, a obra apresenta a cadência de um trajeto de passos leves pelos papéis aquarelados, cuja inspiração brotou do contato do artista com o livro “Janelas Verdes”, de Murilo Mendes, ilustrado por Maria Helena Vieira da Silva. As escolhas pela aquarela e pelo formato do caderno de bolso, acionam a referência dos artistas viajantes e convidam a refletir a experiência literária como um percurso por novos territórios, abrindo cada página como uma nova paisagem. Mário habita – e nos oferece – este lugar entre o inteligível e o sensível. Sua fluidez entre texto/signo e imagem encontra expressão em diversos suportes ao longo de sua produção, como em textos de arte e sobre arte, em desenhos, pinturas sobre papéis artesanais e gravuras. Está também nos grafismos de seus livros de artista e nos dados impressos nas tiras de suas instalações. Mas é em suas viagens, tanto literais quanto literárias, que flagramos como a captura cuidadosa de elementos o move num instinto de reconfigurar as narrativas. A partir de suas andanças, que geram infindáveis coleções do que chamou de “anti-fotografia turística”1, emergem composições que se desligam do roteiro original para encontrar sentido como integrantes de novos arranjos visuais e conceituais. É nessa remontagem que se torna possível que um paralelepípedo solto numa rua qualquer se revele um monumento2. Num paralelo, talvez a obra que resulta de um percurso, dessa vez literário, seja uma expressão de anti-leitura passiva, arriscando um rearranjo de sentidos através de construções visuais. A lógica peculiar com que Mário reorganiza seus recortes seduz a razão. A recorrência de alguns elementos como o símbolo do infinito, as escadas, a rota circular, o tracejado que corta a página e, claro, as janelas, parece nos dar pistas do que devem significar. Assim, suas imagens remetem a quebra-cabeças, como se pedissem para ser desvendadas ou restituídas à sua ordem de origem, cronológica, sintética e objetiva para alcançar o sentido racional que o mundo prático nos exige. Embora sejamos conduzidos por essa impressão na nossa leitura, a potência de sua obra, como um todo, pode estar na insistência em não se deixar decodificar ou sintetizar. Como que despretensiosa, ela insiste nesta posição, teimosamente, a qual só a sensibilidade abre acesso e se põe a caminhar. 1 2
Termo utilizado pelo artista no texto “notas de trabalho”, página 33 do caderno “2.Gradeados”, disponível em: https://issuu.com/mario-azevedo/docs/2_gradeados Referência à série “Neomonumentos”, disponível em: https://issuu.com/mario-azevedo
Calendário de inspirações Júlio Black Tribuna da Imprensa, Juiz de Fora/MG, Setembro/2014
Um mero calendário – objeto ofertado aos montes a cada final de ano e no qual mal prestamos atenção – poderia servir de inspiração para uma obra de arte? Com o olhar adequado e a vontade necessária, a resposta pode ser um convicto sim. Para o artista plástico mineiro Mário Azevedo, a peça que recebeu anos atrás do Museu Murilo Mendes (MAMM) – com trechos de poesias do livro “Janelas Verdes” do poeta Murilo Mendes (no qual ele apresenta e comenta diversas cidades da terra de Camões) e ilustrações para da artista plástica portuguesa Maria Helena Vieira da Silva – e aos poucos, tomou outras formas em um caderno de
anotações, e resultou em uma série de aquarelas. São exatamente elas que estão na exposição “Janelas”, no mesmo MAMM que lhe ofereceu o agrado que deve ter passado despercebido em inúmeras mesas de escritórios. A cidade será a primeira a ver a exposição, que pode ser conferida até 28 de Setembro. O artista tem planos, ainda vagos, para expor a série em Belo Horizonte no ano que vem. “Eu já gostava muito da poesia do MM, sabia da ligação dele com alguns artistas [modernistas] como a Maria Helena, e ganhei esse calendário, tão delicado. Achei os poemas e as imagens tão bonitos, curei saber mais sobre o livro original e me senti tocado por eles; daí, comecei a fazer alguns desenhos e manchas, copiando algumas passagens do Murilo em um caderno, sem compromisso, meditando sobre aquilo tudo; de repente, vi que estava indo além do que imaginara e gostei do que estava fazendo. Só então, passei a me concentrar mais em elaborar, de fato, uma série, um trabalho mais inteiro. Mostrei o conjunto de ilustrações (chamemos assim) para alguns amigos no ano passado e daí surgiu a ideia de fazer a exposição aqui em Juiz de Fora”, explica o artista, ressaltando que o poeta Júlio Castañon Guimarães – responsável pelo projeto de reedição da obra completa de Murilo Mendes – foi quem fez o texto de apresentação da mostra no Museu da UFJF. Ao todo, são 85 aquarelas (cerca de metade do que foi criado) de 10 x 15 cms [o formato chamado de postal], retiradas diretamente do caderno original espiralado, desenvolvidas vagarosamente ao longo de dois/três anos, e que propõem uma associação entre [manchas de] cores, formas e textos, como um elemento visual único, em um objeto autônomo. Para o autor, as obras que serão exibidas soltas, não diferem em nada de seus trabalhos anteriores no que diz respeito à própria plasticidade, ao jogo entre imagem, signo e palavra. Enquanto algumas aquarelas são compostas por alguns de seus trechos preferidos do livro junto a ilustrações (termo ambíguo, nesse caso), outras abrem mão das palavras para se concentrar nas imagens puras (mais limpas, digamos) da própria narrativa que as envolve. E ainda há aquelas mais ligadas à imagética da artista portuguesa, primorosa em suas construções imaginárias e falecida em 1992: “A obra dela tem muitos elementos de grafismo preciosos, como se lembrassem ideogramas, por exemplo. Os dois já influenciavam meu trabalho pelo menos há vinte anos! O Murilo escreveu poesias e textos de apresentação para vários artistas europeus modernos, como Max Ernst, Picasso e Miró, cuja obra admiro muitíssimo. O estilo de sua escrita é muito visual” – elogia ainda – ressaltando que os poemas escolhidos para a série foram escritos nessa linha. Azevedo – que também é desenhista, pintor, gravador e professor da Escola de Belas Artes da UFMG, em Belo Horizonte – diz que já trabalha em pelo menos três novas séries nesse rumo: “Sempre costumo deixar outras [séries] em aberto, e vou experimentando qual delas vai se desenvolver primeiro, mais e melhor. Ainda tenho trabalhado com fotografias – mais ou menos da mesma maneira – em cima do meu imenso arquivo pessoal, sobre o qual também já fiz algumas exposições e prossigo com sua sequência. E as coisas vão caminhando assim, em paralelo; não acho que devam se separar umas das outras, pois há um ponto em que tudo se une e se encontra na própria obra.”
Janelas, um caderno Júlio Castañon Guimarães Setembro/2015
Um caderno – e porque caderno, se poderia tomá-lo como repertório de anotações? ou de esboços? E uma anotação ou um esboço mostrariam apenas o que talvez se prepare para ser outra coisa? Talvez esteja em questão sobretudo um ponto de vista, um modo de expor, que até mesmo inclua em seu procedimento alguma insinuação de possíveis reformulações. O caderno parece constituir-se como um apanhado de elementos dispersos que, no entanto, vão pouco a pouco encontrando sua posição na sucessão das páginas. E exatamente a sucessão determinada das páginas, bem como suas dimensões regulares, impõe possivelmente um rumo, quem sabe um ritmo – o caderno não apenas recebe as imagens, ele faz parte do trabalho. Seria possível então falar de um modo de organizar. Independentemente do que viria adiante, importa o que está ali – uma produção ordenada de reconfigurações e, em certos momentos, quase uma conversa entre amigos. Logo no começo do trabalho de Mário Azevedo, tem-se uma página com apenas um elemento – que se lê como ponto de partida, ou título, ou sinal. Mas não é só a palavra que interessa, interessa também a cor que nela é empregada. A “janela” em “verde” remete, imediata e inevitavelmente, às prosas de Murilo Mendes sobre Portugal que tiveram edição ilustrada por Vieira da Silva – Janelas Verdes. O trabalho de ambos surge então como referência ao longo do caderno, ainda que não referência exclusiva. Murilo Mendes observou que por “janelas verdes” queria referir-se a liberdade, a espaços abertos. Sem dúvida é no âmbito desses espaços abertos que ressonâncias de textos, de cores, de linhas, de paisagens, de cenários, de arquiteturas, de concatenações vêm fazer parte das produções deste álbum. Os fragmentos de textos provêm ainda de poemas, de uma outra janela de Murilo, a Janela do caos, assim como muitas imagens têm a ver com outros trabalhos de Vieira da Silva. E pelo menos um outro nome irrompe num canto de página, o de Francis Picabia, como que vindo de outro universo, mas que também ilustrou poemas de Murilo, justamente os de Janela do Caos. Como as linhas, entrecruzam-se textos, concepções. Não é à toa que seja como se tudo se passasse sob o signo da transformação e do esboço, palavras tão presentes aqui e como que intercambiáveis, ou pelo menos reciprocamente instigadoras uma da outra e, assim, do andamento daquilo que se espalha pelas páginas, quase como que numa espécie de método de trabalho. O que no álbum lembra uma espécie de registro, por assim dizer, parece também trazer uma carga de adesão, de afeto, e parece ainda, por isso mesmo, funcionar como elemento que desencadeia a imaginação, com cores e gestos próprios. É certo que as palavras, os fragmentos de texto aí presentes têm importância enquanto texto, mas mais ainda por se ligarem aos textos mais
amplos a que inevitavelmente remetem. Além disso, porém, adquirem uma condição visual, uma determinada conformação e talvez sobretudo uma posição e uma função no conjunto de cada página. O trabalho é assim em boa parte sobre a relação entre texto e imagem, ou mais precisamente, sobre como um texto funciona no contexto de uma imagem ou até mesmo como imagem. Trata-se de certo modo ou pelo menos em parte de um exercício sobre as possibilidades visuais da escrita. Entre ler e ver, há sugestões então de um procedimento, o do ir e vir entre uma prática e outra, mas intensamente a experiência de um movimento – inclusive o de passar as páginas – de uma aproximação. Este caderno, ainda que levando em conta suas peculiaridades, não constitui um elemento isolado no conjunto da obra de Mário Azevedo. De fato não se trata do primeiro caderno dentro de sua produção. Além disso, é também por uma série de características, de relações plásticas mesmo, que ele se insere claramente no percurso do artista. Assim, não há somente o fato de ele vir a se integrar entre alguns outros cadernos. Há sobretudo aspectos das próprias imagens que se relacionam com certas constantes do trabalho do artista. Desses vários cadernos – Álbum Branco (1995-97), Caderno de Correspondência (1995-97), Atlas Particular (1995-97), Lavoura (1998), Expresso (1998) – o trabalho atual, sem dúvida, se relaciona mais com uns do que com outros. Essa relação ocorre provavelmente mais com o Caderno de Correspondência e com o Atlas Particular, pela via do que há de sugestão ficcional em elementos como a correspondência e o atlas, mesmo que, aparentemente em sentido oposto, se possa lembrar as referências de Janelas. Referências artísticas, visuais, literárias, estas ao se articularem, por via da elaboração do trabalho, acabam por entrar também nesse espaço da imaginação. Com suas delimitações – o formato regular, a sucessão das páginas, uma sequência de leitura – o caderno é um suporte que impõe um espaço determinado e uma organização básica; todavia, talvez por isso mesmo, tanto quanto um suporte, é também elemento que integra a dimensão imaginativa do trabalho. Por isso este pode justamente se desenvolver graças a uma insubmissão àquelas delimitações – o trabalho pode acolhê-las e ao mesmo insuflar-lhes novas possibilidades, já quando se é levado a ir e vir pelo caderno. Mas o que está em suas páginas também vai além destas, quando vários dos elementos plásticos remetem a diferentes momentos e lugares do universo dos trabalhos de Mário Azevedo – nas gravuras, nos desenhos, nas pinturas. São formas, procedimentos, cores, imagens que identificam o trabalho sistemático do artista e que ao mesmo tempo sugerem a amplidão das páginas, dessas Janelas.
Fotografias
Mรกrio Azevedo
Projeto grรกfico
Isabela Andere Pedra
Maio/2016