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Número 66 - setembro de 2021
CESAR CAMARINHA Foto: Reginaldo Manente, Almoço JT 2010
Foto: Pedro Clasen.
15-11-1938 21-06-2020
1º-11-1943 31-08-2021
Competente, criativo, amigo.
O profissional: sério, competente e
bem humorado.
Mário Marinho
Uma das grandes inovações do Jornal da Tarde, em termos gráficos, foi o fato de que cada um dos editores criava o seu próprio layout. Os diagramadores davam apoio técnico aos editores. Estes desenhavam, num caderno próprio, o que se chamava de “Half”. Cabia aos diagramadores copiarem os desenhos colocando as medidas certas, calculando o número de linhas das matérias, número de toques dos títulos e dos olhos que a página contivesse. Todos os diagramadores eram competentes. Mas, entregar seu Half ou rascunho para o César Camarinha significava a certeza de que não haveria erros: matérias, olhos ou legendas não estourariam. Nem as fotos. Mas o César Camarinha não foi apenas um copiador de layouts. Onde ele trabalhou criando páginas, também foi muito competente. Lembro-me que trabalhamos juntos na Última Hora, sob o comando de Samuel Wainer, em 1974. Eu fazia frila como redator e o César de diagramador. E a UH do Samuel era muito criativa. Inclusive um caderno especial de fim de semana, comandado pelo Gilberto Mansur. Outra chance que tive de apreciar o trabalho criativo do Camarinha foi no começo dos anos 80. Naquela época, um amigo meu, o jornalista Lester Moreira, havia assumido o comando do Diário de Minas e queria fazer uma reformulação gráfica. Pediu-me uma indicação. Indiquei o César Camarinha que foi para BH e ficou por lá por duas semanas criando a nova cara do jornal. Lester me ligou agradecendo a indicação.
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- O cara é fera, disse-me ele com entusiasmo. Além de bom no trabalho, é um cara muito bemhumorado e bom companheiro na cerveja. E dei risadas com boas histórias do César nos balcões do Mercadão de Belo Horizonte, sempre sorridente, jamais recusando uma geladinha acompanhada de pernil ou bife de fígado com jiló. Especialidades do Mercadão. César trabalhou também no correio Popular, de Campinas. Depois de deixar a imprensa diaria, foi trabalhar com seu irmão Píndaro que havia recém fundado a Editora Camarinha onde foi Diretor de Arte. Vivi boas histórias com o César. E relembro pelo menos duas aqui. Gilberto Mansur, Camarinha e Mitre. Almoço do JT 2013
O feriadão. Ou fim de semana
prolongado
Era praxe no JT, como em muitas outras empresas, o rodízio de folgas: uma turma folgava no Natal, outra no Ano Novo. Uma folgava no Carnaval, outra na Semana Santa. Naquele ano, eu folguei no Semana Santa. Começamos a folga na Quinta-feira Santa. Convidei o César para almoçar lá em casa com a família, a Carminha e as duas filhas que deveriam ter entre dois e quatro anos. Eu morava numa casa térrea, no Parque Continental, com muito espaço e um bairro muito arborizado. Lugar muito bonito. Como não poderia deixar de ser, ficaram todos encantados com o lugar: muita calma, muito verde, muito espaço. Eu sabia que o Camarinha estava de folga no mesmo período e ao fim de tarde fiz o convite: - Por que Vocês não dormem aqui?
- Mas aí eu preciso ir em casa buscar roupas pra gente e pras meninas. - Tudo bem, vai lá. Ele foi e voltou não só com uma mala de roupas, mas, até uma piscina daquelas de plástico que foi uma festa para as meninas – as duas filhas dele dele e a minha que deveria estar com uns 3 ou 4 anos. Camarinha só foi embora na segunda-feira - depois do almoço Quando a história se espalhou pela redação, logo no mural apareceu um cartaz: “Não convide o Camarinha para um almoço em sua casa: ele vai e fica uma semana”. De uma semana pulou para 15 dias e já se falava até em um mês. Exageros de uma redação criativa e cheia de amigos. Mas foi um ótimo feriado. (MM)
Com Píndaro e César Camarinha no lançamento do meu livro “Paulo Marinho, uma vida”, em 2006, Livraria da Vila.
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o aniversário que se Na rua Major Quedinho, onde ficou até 1976, o JT era cercado de boas opções gastronômicas e festivas. Eram os velhos tempos do Sandchurra que tinha como vizinhos os alegres inferninhos na Galeria Metrópole; do Picardia no viaduto 9 de Julho, bem em frente ao Bar e Lanches Estadão que ainda não era famoso por seu sanduiche de pernil. Do Giovanni que ficava na rua Santo Antônio e depois se mudou para as imediações do viaduto Martinho Prado. Do Patachou na subida da rua Augusta. Do Gigheto que ficava na rua Nestor Pestana, em frente à Tv Excelsior e mais tarde se mudou para a Avanhandava que ainda não tinha a Famiglia Mancini. Ali na Avanhandava estava também o Jogral, misto de boate e barzinho, comandada pelo Marcus Pereira e por Luís Carlos Paraná, onde era possível assistir à canjas de Elis Regina, Chico Buarque e outros “iniciantes” Enfim, as opções eram imensas. Quando o jornal mudou para a Marginal, ficamos, todos nós, órfãos da vida noturna. Claro, principalmente para o pessoal que trabalhava à noite. Paulo Cotrim, que era o crítico de gastronomia do JT, pesquisou a área e recomendou a todos nós um restaurante que se chamava “O Pescador”, especializado em peixe, que ficava próximo ao largo do Limão, ficava aberto até tarde e era frequentado por uma freguesia “interessante”. Nós fomos lá algumas vezes e desistimos quando a freguesia interessante se desentendeu e promoveu um tiroteio com direito a feridos e polícia. Até a descoberta do Alemão, na avenida Antarctica, algum tempo depois o jeito foi frequentar um boteco no posto de gasolina ao lado do jornal. O boteco era muito ruim. Nem nome tinha. Foi apelidado de “Graxinha”. Foi lá que numa noite de Primeiro de Novembro, descemos para o aperitivo da noite. Algumas pessoas foram embora e ficamos eu, o César e o Matinha. O Matinha era um baixinho e sorridente contínuo
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da redação. Não bebia, mas, gostava de soda limonada. Naquela noite, quase morreu afogado em tata soda limonada. A cada cerveja que pedíamos, mandávamos descer também uma soda limonada para o Matinha. O baixinho era evangélico e muito educado para recusar. Eu e o Camarinha fomos ficando. Lá pelas tantas o dia resolveu amanhecer e nós perdemos a companhia do Matinha. Não faz mal, tocamos sozinhos. Por volta das 6 horas da manhã, resolvi ligar pra casa e avisar a minha mulher, a Vera, que eu ainda não estava indo. Eu estava tão bem que ela não reconheceu a minha voz. Virei pra ela e insisti. - Sofia, quem é que te chama assim? É só o seu marido. Sou eu... E continuei falando Sofia, Sofia...
e tornou
inesquecível
O Camarinha chegou ao meu ouvido e disse, apavorado: - Marinho, não é Sofia, ela se chama Vera. Lá pelas 10 da manhã chega o Guilherme Simone no Graxinha e me diz: - Sua mulher tá apavorada, Marinho. Já ligou umas três vezes e eu não sabia o que dizer. - Diz pra ela que eu já estou indo. Tomamos a saideira e nos mandamos. Cheguei em casa e a Vera me poupou de qualquer sermão porque, no está etílico em que me encontrava, não faria o menor efeito. Camarinha não deu a mesma sorte. Quando ele chegou em casa, encontrou a mulher, Carminha, com as duas filhas sentadas na poltrona da sala e as malas prontas. Ele ajoelhou, abriu os braços e disse: - Ninguém vai cantar parabéns para o papai? Era aniversário dele, Primeiro de Novembro.
Ao chegar à noite no jornal, fui recebido com calorosa salva de palmas de toda a redação. E o Ruyzito Mesquita, que na época era redator da Política, foi encarregado de me entregar um diploma feito com capricho pelo pessoal da Editora de Artes. “Troféu Mario Henrique Simonsen pelo recorde de permanência em um botequim”. O ministro Mário Henrique Simonsen era um conhecido manguaça. Mas, a história não acaba aí. Uns seis meses depois, estávamos eu e a Vera num shopping, quando nos encontramos com César e a mulher. Vera e Carminha eram amigas e resolveram fazer compras juntas. Eu e o César, claro, fomos para o bar. Quando eu ia saindo, chamei a Vera pelo apelido: - Sofia, Sofia... Falei com ela o que tinha que falar e saí. Carminha, que observava com interesse, falou com a Vera: - Como foi que ele te chamou? - Sofia. Ele sempre me chama de Sofia. - Ah!, Vera, graças a Deus! - Por que? - Lembra aquela vez que os dois passaram a noite no bar perto do jornal? - Sim, claro. - O César chegou em casa e, depois que sarou do fogo, me falou: Carminha, tô com dó do Marinho. Imagina que ele ligou pra Vera e ficou chamando ela de Sofia. E eu falava com ele: cê tá falando com a Vera, com a Vera! E nada. Imagina como é que ele vai explicar isso. Depois de boas gargalhadas, a Carminha continuou. - Pior, que eu fiquei com dor na consciência. Será que eu conto pra Vera que o Marinho tá de caso com uma tal de Sofia? Conto, não conto? E o medo de contar e acabar com o casamento de Vocês? César Camarinha nunca esqueceu esse aniversário dele. Nem eu. Nem a Vera. Nem a Carminha. (MM)
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Píndaro, Mário Marinho, Guido Fré e César Camarinha, Almoço do JT, 2010.
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O César foi um segundo pai para mim. Infelizmente, nosso pai morreu cedo. Coube ao César a missão de me orientar por toda a vida. Na verdade, ele me ensinou a andar por esse mundo. E a cada tombo ele me levantava. Posso dizer com orgulho, que segui os passos dele. César teria sucesso em qualquer profissão que escolhesse. Seguiu o jornalismo. Foi ele quem me levou para a Editora Abril. Cheguei na Abril como assistente do assistente do assistente. Saí de lá como Diretor de Arte, tudo isso graças ao César. É muito difícil falar sobre ele. Sobre sua elegância no trato com as pessoas, seu caráter, seu profissionalismo. Tudo isso acompanhado de um incrível e interminável bom humor. Você não imagina a falta que já está fazendo, meu Irmão. Píndaro Camarinha
Camarinha casou-se em primeira núpcias com a Carminha, com quem teve três filhas: Daniela, Andréa (já falecida) e a Heloisa. Teve três irmãos: Cláudio (já falecido), Pedro e Píndaro. Posteriormente, casou-se com Ana Maria, com quem viveu até o fim. Deixou também dois netos.
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A morte
Cesar Camarinha morreu aos 77 anos de uma causa muito comum em pessoas com essa idade: queda. César sofreu uma queda em casa. Quebrou a bacia e foi levado para o hospital, onde foi submetido a uma cirurgia. Jamais voltou. Por isso, decidi publicar o artigo abaixo, que é um alerta para a nossa geração.
De que morreu Gugu Liberato? Carlos Augusto Sperandio Jr. Há de se respeitar o momento de tristeza de familiares, amigos e fãs, mas também é preciso extrair do trágico episódio a lição de responsabilidade que temos para com a nossa segurança e daqueles que nos cercam. Onde você estava nos últimos dias? Gugu morreu de traumatismo craniano após queda de nível, cerca de 4 metros, na casa nova recém adquirida no mesmo condomínio que morava em Orlando, nos Estados Unidos. Negativo! Gugu morreu de decisão errada. Ele acreditou ter condições físicas e cognitivas para subir em um lugar perigoso e negligenciou o risco de queda. Erro na tomada de decisão e quedas são dois gigantes da geriatria que causam muitas mortes todos os anos entre os idosos. Gugu tinha 60 anos. Pelas leis brasileiras ele era considerado idoso. Hoje, muitos sessentões podem contrapor essa prerrogativa legal, pois não à toa se diz: “Os 60 são os novos 40”. Fato que verifico na prática
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tenho pouquíssimos pacientes de consultório com menos de 70 anos. “Velho é quem tem mais de 75 anos”, dizem. E estão certos por vários ângulos. Mas, não por todos. Todos devemos primar por nossa segurança, desde o uso do cinto de segurança, até mesmo olhando onde pisamos e/ou subimos. O número de idosos que cai e quebra o fêmur por ter subido numa simples banqueta ou por ter tropeçado no caminho que sempre faz dentro da própria casa é enorme! Na geriatria, jamais tiramos o poder de decisão do idoso. Cabe a nós apenas salientar que a capacidade funcional diminui inexoravelmente, aumentando a chance de risco com movimentos considerados habituais para os jovens. Ou seja, pode fazer, mas pense duas vezes antes com o cérebro no modo da idade que ele realmente tem. Segurança é a palavra de ordem nas quedas evitáveis. Carlos Augusto Sperandio Junior, é médico especialista em geriatria e medicina da família e comunidade. Integra a Câmara Técnica de Cuidados Paliativos do CRM-PR.