CoMO o DiABo GOSTA eRNaNI sS贸
Vi uma placa na beira da estrada anunciando três cidades, em Santa Catarina: Turvo, Ermo e Sombrio. Acidente geográfico é isso aí. No princípio eram as trevas. Turvo, Ermo e Sombrio permaneceram. Em Turvo, Ermo e Sombrio o arco-íris é em preto e branco. As trigêmeas vocalistas de Turvo, Ermo e Sombrio nasceram em Turvo, Ermo e Sombrio. É que a mãe delas viajava muito. As zebras, em Sombrio, não têm as listras brancas. Os anjos da guarda em Sombrio têm um parafuso no pescoço. Os mágicos, em Sombrio, tiram morcegos da cartola e a ajudante é serrada de verdade ao meio. Por isso tem espetáculo apenas três vezes por noite. Você conhece as sete pragas de Turvo, Ermo e Sombrio? Nem queira, nem queira. Na gadanha da Morte, dizem, está escrito: made in Sombrio. Encontraram em Ermo as botas que o Diabo perdeu. Dante não teve peito de escrever sobre os últimos círculos do Inferno. Você sabe do que estou falando. Agora imagine uma biografia que terminasse assim: Desaparecido em Sombrio em circunstâncias não esclarecidas.
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Nada, Bruna, me lavará do corpo a tatuagem invisível da cidade, nem mesmo o fogo do inferno. Não é minha mão, apenas minha mão nos teus cabelos numa carícia que desce lenta pelas costas, se insinua amorosa e sabida na tua calcinha – siga as linhas que as ciganas leram, tome um mapa de Porto Alegre e me decifre, senão adeus, Porto Alegre nos devora. Meus bairros: na Cidade Baixa, amei quem não devia. No Cristal, conheci um vampiro. Na Tristeza, neguinha, trabalhei. No Menino Deus, foi um susto: não sou imortal. No Rio Branco, traí. Em Nonoai, sonhei. No Moinhos de Ventos, às vezes fui Quixote e Sancho, Rocinante sempre. Em Petrópolis, berrei: cadê você, meu bem? Na Floresta, me perdi. Na Cavalhada – olhe, nem sei se estive na Cavalhada. Acho que aquelas sacanagens todas foram em Ipanema. Em Santa Teresa, enlouqueço. No Bom Fim, Bruna, melhor não falar – a via crucis do fígado e do coração. Viu, meu amor, você me leva pra cama com a solidão das ruas, com o crime, a chuva, com o sol nas praças. Você me leva pra cama com livros, jornais, discos, uma luta de boxe, um jogo de futebol. Você me leva pra cama com amigos e inimigos, com gente que eu nem vi. Você me leva pra cama com mulheres de sonho e tantas outras – com Amélia, Joana, Patrícia, com Fulana, com Beltrana, com Sicrana: é chato, Bruna, mas perdi a conta. Você me leva pra cama com a sobra das guerras, com os ódios, as ternuras, o veneno da esperança. Você me leva pra cama, você puxa o lençol, você me abraça, você me beija e aqui estou eu, Bruna, aqui estou eu quase como nasci. No calor da tua 7
cama essa fantasmagoria toda enfim é isso, fantasmagoria, depois vira nada, o tempo paradinho da silva. Garanto, Bruna: se você olhar o relógio, não faltam cinco minutos pra eternidade. Mas lentamente – muito lentamente, Bruna – outra vez Porto Alegre se arma no meu corpo como um quebra-cabeça. As crianças vivem perdendo as peças desses jogos, mas eu não, você sabe: os bares voltam ao endereço que consta na memória dos bêbados, a praça Argentina se acomoda onde sempre esteve a praça Argentina e ruas se cruzam formando esquinas conhecidas. Lentamente, Bruna, muito lentamente, até o último beco, até o último número em cima da última porta, tudo como antes, tudo como manda Deus nosso Senhor e as leis da municipalidade. Pior, meu amor, nem praga de mãe.
—— Acordei, incerta manhã, depois de um sonho agitado, exatamente o mesmo de sempre. Me pareceu mau. Talvez seja pior do que amanhecer transformado numa barata leprosa com caspa na sobrancelha, porque isso tem a vantagem de ser uma história inesquecível, podemos até contar pros netos, se o inseticida nos der tempo. Mas pior do que acordar o mesmo é acordar o mesmo de pau duro. O que fazer? – como dizia Lênin. Gógol aconselharia uma punhetinha. Kant também. Não, Kant não. Pelo visto Kant jamais ficou de pau duro, se é que tinha pau. Mija que passa. O banheiro fica ao lado, basta sair do quarto. Não, não, o banheiro fica tremendamente longe: fica 8
no mundo. Tudo o que não está aí na cama fica no mundo. Mas ânimo, uma boa mijada, depois um mate bem amargo, aí você desce à banca da esquina e fica sabendo quem matou quem, quem roubou quem, quem traiu quem, o último guru, o melhor time, a roupa que você deve usar nesse inverno. Vamos, o exercício de ir até o mundo pode ser doloroso, tipo turismo em Turvo, Ermo e Sombrio, mas deixe de frescura. Confesso: cago pros mortos no jornal, pros melhores filmes, pros gurus com as últimas salvações. Ca-go. Acordei bogartiano hoje: acho que ninguém salva ninguém, ninguém educa ninguém e todos se perdem sozinhos. O meu problema é essa moleza no corpo. Parece que apanhei. Ando acordando mais quebrado do que quando me deito, mais ou menos como se tivesse virado um inseto monstruoso. Devo fazer das minhas durante o sono. Esta noite sonhei com aranhas e um liquidificador. Vire-se, Freud. Vire-se, Jung. Vamos, Camilo, deixe de piadinha, levante. Vá mijar – só a ação redime. Os mortos esperam na banca. Seja educado: não se deve fazer ninguém esperar, muito menos os mortos. Sim, têm a eternidade pela frente, mas não se deve fazer os mortos esperar: são nervosinhos, os mortos. Até hoje não fizeram nada, mas quem sabe? Seria bom não abusar da paciência dos mortos. Parecem indiferentes, só que não são indiferentes: os mortos estão exatamente naquele segundo antes do segundo em que se perde a cabeça, quando dois e dois começam a não dar quatro. O que vem depois ninguém sabe. Os mortos podem nos dar as costas e se afastarem pra sempre com o olhar parado de nostalgia e incompreensão, ou se atirarem a nós com suas unhas roxas e seus dentes afiados. É preciso ter cuidado com os mortos. 9
Vamos, Camilo, desça lá na rua, o mundo não fica assim tão longe. É preciso ao menos adular os mortos, mostrar que se sente muito, que se dependesse de você... É preciso dar as condolências pra família, entende? Pensando bem, quantos mortos te pertencem? Tem ideia? Há, parece, sete ou dez ratos pra cada habitante. Baratas, deve haver uma centena – uma centena de cada um dos mil e quinhentos tipos existentes! Mas quantos mortos há pra cada habitante? Só na Baixada Fluminense você tem uma porrada, sem falar em desaparecidos na Argentina, Uruguai, Chile e Turvo, Ermo e Sombrio. Quanta falta de interesse. Vai ver você tem um plantel de mortos – quantos mortos de fome, bala, tortura, drogas? Será que me tocou algum suicida? Não tenho muita simpatia pelos suicidas. Nada pessoal, entendam, mas me parece uma saída fácil demais. Se tenho algum suicida entre meus mortos, proponho, a quem interessar possa, uma troca – como de figurinhas quando éramos garotos. Troco um suicida por amor, desses que primeiro mandam bala na mulher e nos filhos, pelos mortos mais mortos, os da fome, os da guerra, que aqui tem macho! Mas é duro, é muito duro. Você não queira saber o que é andar com a casa cheia de mortos, mortos pedindo, mortos nos agarrando a calça, mortos tomando os ataúdes uns dos outros, mortos se puxando os cabelos, se beliscando, se mordendo. Mãe, olha este defunto inticando comigo! Pai, olha esse cadáver estragando minha coroa de flores! Mãe, ele levantou minha mortalha pra ver as calcinhas! Chega, Camilo, chega! O mundo, através de um truque sujo – a campainha do porteiro eletrônico –, veio me exigir ação. Quem será? Qual dos 10
meus mortos me chama? Levantei praguejando, cambaleei até a sala e atendi. Era um vendedor. Por que não era você, Bruna? Abri a janela da sala pra parede suja do edifício ao lado. O dia, segundo o Almanaque Iza, era de São Gervásio, com lua nova. Lembrei de um rato que matei no campo há muito tempo: olhos irados, orelhas de couve-flor estragada, cinzento-leproso – enfim, um ar de peste pra existencialista nenhum botar defeito, como diria um tal Júlio. Sem exagero, o rato era mais feio que o Sartre nos tempos do enjoo dele. O dia amanheceu com a cara do rato. São Gervásio, São Gervásio, valei-me. Mesmo com você, mesmo com lua nova: cara de rato. Você não deve ser muito popular na galeria celeste. Fui pra cozinha preparar o mate. O pacote de erva estava quase no fim e a cuia meio perdida na bagunça da pia: pratos, panelas, xícaras à espera de um ataque de limpeza. Todo o apartamento, por sinal, está à espera de um ataque de limpeza. Tudo anda esperando ultimamente. Deixo o relógio entregue às horas, as horas aos minutos, os minutos aos segundos, os segundos a Deus e ao Diabo – nessa terra da chuva, São Gervásio. Não posso trabalhar: estou grávido. Descobri naquele entardecer em que escrevi pra Bruna, no Farol de Santa Marta. Mesmo, estava na hora de um romance: cansei de ser escritor de cartas. São Gervásio, São Gervásio. Vem cá, qual era mesmo tua especialidade? Tirava coelhos da cartola? Fazia paralítico andar? Impotente foder? Preciso ler com urgência a vida dos santos.
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Bruna: O verão acabou – não é a folhinha que me informa, ou o Farol vazio de amanhã. Trata-se de um fim mais secreto, mas, se você olhasse minha cara, saberia dele – você se foi e nem nos conhecemos direito, nem sei se nos veremos de novo. Mas tire o som bolero da minha frase. Faça de conta que ela é silêncio puro. Viu, menina? Preciso da tua cumplicidade. Porque num inventário não interessam os objetos nomeados e sim o jeitinho deles – as marcas das intrigas que viveram: as minhas, as tuas, as nossas rugas. Eu estava na varanda da casa, sozinho, curtindo o entardecer – hora felina, como se diz –, quando me bateu a vontade de contar os mortos, os feridos e os muito vivos. Foi uma sensação cristalina, Bruna, fulminante – e aqui estou eu brigando com os adjetivos: queria não apenas informar, queria recriar o desgraçadinho do segundo. Sabe, uma forma de compartilhar ele com você, um drible na solidão. Esta carta será a última coisa com sentido que faço no Farol, neste verão. Depois, Bruna, aquele negócio: fico ao sol e há Porto Alegre, vou pro mar e há Porto Alegre, nem vou e há Porto Alegre. Parece simples: basta botar o pé na estrada. Mas Porto Alegre significa meu apartamento cheio de livros, poeira e solidão. Até há quem diga gostar de mim, mas agora a solidão tem o teu nome e nem sempre a solidão tem bons nomes assim. Prometi um inventário do verão. Bobagem, Bruna, mal sei de mim. Pelo jeito nem consigo inventariar o segundo aquele. Precisava do Joyce, precisava de umas mil páginas, 12
sem falar em paciência. Porque o segundo não foi nada fácil: foi a cristalização de todo o tempo anterior a ele, quase trinta anos de andanças. Minha vida se armará diferente depois dele. Porto Alegre agora não passa de uma fantasmagoria – e eu preciso, com urgência, me mandar pro mundo dos vivos. Talvez, sabendo daquele segundo, das rugas faladas, eu descubra a porta de emergência. Na pior das hipóteses fiquei adulto. Não adianta, Bruna. Me sinto o hindu tocando pra cobra dançar. Todos nós sabemos que a cobra dança por causa da urina de rato que fareja na ponta da flauta. Nada de mandinga, nada de magia, meu amor: tudo truque. Minhas frases são assim: urina de rato. Mas espero que você, com um pouco de boa vontade, sinta o segundo dançando, neste papo meio sobre nada, enviesado. Um beijo de novela.
—— O boteco estava quase vazio. Atrás de mim, a janela, o começo da noite e o mar, que eu não ouvia por causa da tevê no balcão. Em frente, o Mercenário de Óculos batia papo com um pescador, escorado na parede. Nos olhamos. Levantei meu martelinho de cachaça com butiá em saudação. Sorriu. Calculadamente lento, me saudou com o copo de caipirinha. Um pouco depois, veio sentar comigo. – Que é isso, companheiro? Bebendo sozinho… – Estamos em março – eu disse didático. – É. Ficaram apenas os desocupados como nós. 13
– E os procurados pela polícia. O Mercenário de Óculos bebeu um gole de caipirinha e depois, como se tivesse pensado muito na frase, disse: – Eu e você temos duas coisas em comum. Gostamos do Farol e amamos a mesma mulher. Pra fazer alguma coisa, bebi um gole demorado da minha cachaça com butiá, aproveitando a oportunidade pra uma careta. Não parecia verdade: o Mercenário falava igualzinho aos heróis que admirava. Ficou à espera do efeito da frase, um meio sorriso de satisfação e astúcia engatilhado. Era magro, alto, trinta anos, cabelo curtinho tipo Hora do Brasil, óculos imensos e jeito de seminarista. Tinha passado todo o verão ali, mas continuava branco. Culpa da maconha, segundo ele. Acordava de manhã e já quebrava o jejum fumando, aí bodeava, nunca ia à praia. – Ela foi pro Rio, né, Camilo? Não sei por que o Mercenário de Óculos não dizia o nome da Sara. Isso me irritava. – Não falei mais com a Sara. Desde que chegou o marido, só falamos duas vezes, rapidinho. O Mercenário de Óculos bebeu e ficou olhando o copo. – É, Camilo. Mas ela não gosta dele. Ela ama pra valer um carinha que mora no Rio, tal de Roberto. Não falou pra você? – Falou, sim. Mas não em amor. – Deve ter contado outras coisas que não me contou... Fiquei frio. Nada de trocar figurinhas. – Me diz uma coisa, Mercê: vendeu muito fumo pra Sara? 14
– Vendi?! Dei. ���. Daria o que ela me pedisse. Você não fuma, né? Ela me disse. – Prefiro água, vinho e cerveja, nessa ordem. – Água? – Sim, aquele líquido incolor, insípido e inodoro. – Não conheço. O Mercenário de Óculos ficou matutando, entre um gole e outro. Depois falou pra si mesmo: – Uma tarde, ela e eu, sentados na escadaria do bar do Claudiano, ficamos falando, olhando o mar. Foi maravilhoso... – Se alertou: – Não, Camilo. Não aconteceu nada entre nós, nem um beijo sequer, mas foi um instante de... de... eternidade, é isso. Sei que mesmo daqui a dez anos ainda lembrarei e sei que ela se lembrará. Sabe, Camilo, esquecemos do tempo... Ou o tempo esqueceu de nós. Sim, foi eterno. E ventava em Ermo... Disfarçando, olhei o Mercenário de Óculos e pensei que ele havia lido livrinhos de crime além da conta, se transformando numa espécie de Dom Quixote sem caráter. Acho que me falava como vingança: porque sabia que eu tinha namorado Sara e que provavelmente no fim do ano ela não se lembraria mais de mim. Mas ele, o Mercenário de Óculos, mesmo sem ganhar um beijo, teve a eternidade com ela. Esse o verdadeiro orgasmo. O orgasmo não passa de simulacro grosseiro desses instantes de eternidade que os Mercenários de Óculos vivem nas escadarias dos bares com as mulheres do próximo. Nessa história, quem saía lucrando era Sara, porque ela, apesar de ser a mulher mais bonita daquele verão, estava longe 15
da mulher fatal causadora de paixões devastadoras entre escritores, mercenários e outros usuários de óculos. Pensei num comentário razoável, mas não achei nenhum. Fui salvo pela entrada em cena do Mário, um pescador tímido, mas que aos poucos se enturmava com o que havia de pior no turismo. Ele sentou com a gente e disse pro Mercenário de Óculos: – Tudo aí. – Mostra – o Mercenário de Óculos disse, esquecido da eternidade, novamente o homem de ação. – O Camilo é de confiança. Não fuma, mas não condena. Tem galho não. Ainda meio cabreiro, Mário tirou da dobra do calção Adidas um pacotinho de papel e plástico. O Mercenário de Óculos abriu o pacote enquanto Mário se esforçava pra tapar a cena com o braço. Mas era improvável que alguém no balcão visse alguma coisa. A televisão era a dama da noite, como dizia aquela canção horrorosa. O Mercenário de Óculos cheirou o fumo, em êxtase. – Hummm. Que bom, parece livro antigo... – O cara que me vendeu – Mário disse meio ansioso – me garantiu, é do legítimo. Do legítimo, me garantiu. O Mercenário de Óculos guardou o pacotinho no bolso da camisa de brim cáqui. – É pra minha mulher, Camilo. Chega amanhã. – Não conheço, Mercê. – Mandei buscar. Mora em Brasília. Esteve aqui, em fevereiro, não lembra? Tinham me falado da mulher, uma coitada com jeito de doente, quase cadavérica, favorita como miss Som16
brio, que ele mantinha trancada em casa. Só tem tarado, se desculpava. – Tive de mandar buscar. Foi, até hoje, a única mulher que me liquidou. Me liquidou mesmo. Dormi dois dias seguidos. Olha só, Camilo: começamos de arreto e tal e coisa. Ela foi baixando, baixando... Pensei: vai dar uma chupadinha. Achei genial a ideia. Mas... continuou baixando. Me beijou o saco e... Vocês acreditam? Não acreditam, não! Me enfiou a língua no cu! – No cu? – Mário gaguejou. – Juro pelo que há de mais sagrado, no cu! Quero ver minha mãe morta se não foi no cu! – E que tal? – eu disse morto de curiosidade. – Ah... – Depois de uma pausa sonhadora, disse como se ainda não acreditasse: – Vê se pode! No cu! Nunca tinham me feito isso. Nunca. Agora, o melhor foi depois, o beijo na boca. Mário engasgou. – Pra falar a verdade, eu não tinha me limpado direito, mas na hora nem me lembrei. Se tivesse, que diferença fazia? De pau duro temos uma perspectiva diferente da vida, não é mesmo? Não concorda? Então, sinto muito, mas você nunca ficou de pau duro. A verdade é que me senti... me senti... – Eterno? – Nem é bom falar, Camilo. Mandei buscar. Uma mulher dessas não dá pra deixar solta por aí. É um perigo! Mário riu: – Esse Pedro... 17