Metamorfoses issuu

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as metamorfoses murilo mendes resenha lauro escorel posfácio Murilo Marcondes de Moura

coleção murilo mendes [coordenação] Júlio Castañon Guimarães Milton Ohata Murilo Marcondes de Moura


As metA moRF OSES


Livro primeiro As metamorfoses [1938] O emigrante 11 À janela 12 Minha órfã 13 Canção 14 R. 15 Jerusalém 16 Ideia fortíssima 17 Companheira 18 Pastoral 19 Estudo nº. 1 20 Mulher no campo 21 O poeta futuro 22 Corrente contínua 23 Inspiração 24 Estudo nº. 2 25 Idílio 26 Nuvem 27 Estudo nº. 3 28 Poema lírico 29 O espectador 30 Estudo nº. 4 31 Poema bíblico atual 32 A volta do filho pródigo 33 Encontros 34 Revelação 35 Regina pacis 36 Estudo nº. 5 37 O visionário 38 Começo de biografia 39 Armilavda 40 1999 42 Fim 43 A dama branca 44 Cântico 45 História 46 O rito geral 47 Tema antigo 48 Aerograma 49 A marcha da história 50 Estudo nº. 6 51 Estudo para uma ondina 52 Paternidade 53 Estudo para um caos 54 Cavalos 55 Os amantes submarinos 56 Canto amigo 57


Livro segundo O véu do tempo [1941] A criação e o criador 61 Quase segredo 62 A inicial 63 Duas mulheres 64 A vida cotidiana 65 Operação plástica 66 Manhã metafísica 67 A liberdade 68 Alcance 69 Abismo voador 70 Orfeu 71 As penas do vento 72 O pastor pianista 73 A extensão dos tempos 74 O círculo fatal 75 Vigília 76 Temas eternos 77 Beira-mar 78 Uma mulher 79 A fatalidade 80 Novos tempos 81 A bela e a fera 82 Rua 83 1941 84 Tu 85 Abismo 86 Mulher 87 A sala vazia 88 Maria Helena Vieira da Silva 89 O poeta morto 90 Certa mulher 91 A flecha 92 Mane Thecel Phares 93 Forma e essência 94 Acordar 95 Amor 96 O nascimento do mito 97 Recordação 98 Cordélia 99 A chave 101 O convidado de pedra 102 A mulher anônima 103 Telegrama 104 Os dois 105 A primeira comunhão 106 O diadema 107 O coronel Fawcett 108 Novíssimo Orfeu 109 Radiografia 110 Fogo-fátuo 111 O navio fantasma 112 Momentos puros 113 A criação feminina 114 Aeropoema 115 Respirar 116 Resumo 117 Aproximação da tempestade 118 Memória 119

Antecipação 120 Confidência 121 Os amantes absurdos 122 Uma nuvem 123 Poema nu 124 Poema em pé 125 Poema hostil 126 Anamorfose 127 Visão lúcida 128 Poema abraço 129 Iniciação 130

As metamorfoses Lauro Escorel 132 Sobre esta edição 139 Posfácio Murilo Marcondes de Moura 140 Indicações de leitura 155 Índice de primeiros versos 156



Ao meu amigo Wolfgang Amadeus Mozart



livro primeiro

as metamorfoses

[1938]



o emigrante A Henri Michaux

A nuvem andante acolhe o pássaro Que saiu da estátua de pedra. Sou aquela nuvem andante, O pássaro e a estátua de pedra. Recapitulei os fantasmas, Corri de deserto em deserto, Me expulsam da sombra do avião. Tenho sede generosa, Nenhuma fonte me basta. Amigo! Irmão! Vou te levar O trigo das terras do Egito, Até o trigo que não tenho. Egito! Egito! Amontoei Para dar um dia a outrem: Eis-me nu, vazio e pobre. A sombra fértil de Deus Não me larga um só instante: Levai-me o astro da febre: Eu vos deixo minha sede, Nada mais tenho de meu.

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à janela Ó altas constelações, Nuvem prenhe de fantasmas, Preguiçosa onda do mar, Friíssima noite, lua! Minhas irmãs elementares, Tendes mãos, ouvidos, boca, Murmurais doces cantigas Que os homens decifrarão No rodízio do universo, Entre revoadas de anjos, Quando soarem os clarins Que despertarão os mortos E a alma se reunir Ao corpo que apodrecera.

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minha órfã Porque não quis te olhar, ficaste cega. Sei que esperas por mim Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco. Sei que esperas por mim, Mas eu não quis te olhar, Porque me debrucei sobre o mito de outras, Porque não me sabes dar, pobre amiga, O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe. Roxelane, Roxelane: Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho, Boca sem frescura e sem expressão, Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo, Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota. Roxelane, Roxelane: Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade, Conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança, Enquanto eu recolherei para sempre A tua, a minha e a miséria de outros, Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.

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canção Para o Oriente do amor Meus sentidos aparelham. Bandeiras azuis, vermelhas, Cruzaram-se no horizonte. De onde vem tal embriaguez, Que aurora terei tomado? Vem do fundo de mim mesmo, Vem da minha alma correndo. Minha amada na varanda Arrulha, me faz sinais. Voo com abril nas mãos, Para continuar o ciclo De antiga revolução: Aboli as dissonâncias, O sentimento renasce Como no início do mundo.

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r. Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão. És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos. Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos Onde atualmente só se ouvem Cânticos de guerra e pregações do inferno. Vens, toda fria do dilúvio, Semear a discórdia nas choupanas e nos palácios. Vens para minha maldição, para me indicar o abismo Onde ficarei só e triste, sem pianos.

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jerusalém Jerusalém, Jerusalém, Quantas vezes tentei abrigar no coração Todos os meus anseios para Deus, Como a ave abriga a ninhada debaixo das asas: E tu não quiseste, mundo, Tu não quiseste, carne, Tu não quiseste, demônio. Jerusalém, Jerusalém, Morro de sede à beira da fonte, Morro de fome debaixo da mesa coberta de pães. Em vez de sinos festivos Ouço sirenes de aviões. Em vez de santa eucaristia Recebo granadas de mão. Os mitos do mal desencadeados sobre mim Me envolvem sem que eu possa respirar. Jerusalém, Jerusalém, Recolhe meu último sopro.

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ideia fortíssima Uma ideia fortíssima entre todas menos uma Habita meu cérebro noite e dia, A ideia de uma mulher, mais densa que uma forma. Ideia que me acompanha De uma a outra lua, De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia, Que me arranca do tempo e sobrevoa a história, Que me separa de mim mesmo, Que me corta em dois como o gládio divino. Uma ideia que anula as paisagens exteriores, Que me provoca terror e febre, Que se antepõe à pirâmide de órfãos e miseráveis, Uma ideia que verruma todos os poros do meu corpo E só não se torna o grande cáustico Porque é um alívio diante da ideia muito mais forte e violenta [de Deus.

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companheira Companheira, dou-te as sombras que me acompanham, Todas as sombras criadas pelos vivos. Companheira, dou-te a alegria Do que nada tem a esperar do esforço humano. Dou-te a cantiga do asilado, O suspiro do menino que olha em vão O velocípede do menino vizinho. Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaio Em épocas muito remotas. Companheira, Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira comunhão. Dou-te o desconsolo do que está sendo destruído Pelos crimes que não cometeu, Pelos crimes de outros em época distante.

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