Michelangelo issuu

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tradução Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra


Martin Gayford

Michelangelo uma vida ĂŠpica



Para minha m達e, Doreen Gayford (1920-2013), e meu padrasto, Donald Morrison (1920-2013), in memoriam.



1. A morte e a vida de Michelangelo  19

2. Buonarroti  29

3. Um aprendizado desregrado  55

4. Medici  77

5. Antiguidades  97

6. Piero de’ Medici e a fuga para Bolonha  111

7. Roma: Cupido, Baco e a Pietà  133

8. O Davi e outros corpos  161

9. Michelangelo versus Leonardo  181

10. Gigantes e escravos  211

11. A abóbada  233

12. Encarnação  253

13. Rivalidade em Roma  275

14. Montanhas de mármore  301

15. Túmulos  329

16. Novas fantasias  355

17. Revolta  381

18. Amor e exílio  409

19. Juízo  439

20. Reforma  469

21. Cúpula  493

22. Derrota e vitória  517

Notas  543 Caderno de imagens  625 Árvore genealógica da família Buonarroti  689 Árvore genealógica simplificada da família Medici  690 Lista de papas durante a vida de Michelangelo  692 Mapa do centro e do norte da Itália na juventude de Michelangelo  693 Bibliografia  695 Créditos das imagens  715 Índice remissivo  717 Agradecimentos  749



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A morte e a vida de Michelangelo

A Academia e a confraria de pintores e escultores resolve, se for do agrado de vossa ilustríssima excelência, prestar honras à memória de Michelangelo Buonarroti, em virtude da dívida que temos para com o gênio daquele que talvez tenha sido o maior artista que já existiu (um de seus compatriotas e especialmente caro a eles como florentinos) […] vincenzo borghini em carta ao duque Cosimo i de’ Medici, em nome da Accademia Florentina, 1564 1

Em 14 de fevereiro de 1564,2 quando andava pelas ruas de Roma, um jovem florentino que vivia na cidade, chamado Tiberio Calcagni, ouviu boatos de que Michelangelo Buonarroti estaria gravemente doente. Imediatamente rumou para a casa do grande homem, na rua Macel de’ Corvi, perto da coluna de Trajano e da igreja de Santa Maria di Loreto. Ao chegar, encontrou o artista fora da casa, perambulando pela chuva. Calcagni protestou. “O que queres que eu faça?”, respondeu Michelangelo, “estou doente e não consigo descansar em parte alguma.” De alguma forma, Calcagni convenceu-o a entrar, mas ficou assustado com o que viu. No mesmo dia, escreveu a Lionardo Buonarroti, sobrinho de Michelangelo, em Florença: “A hesitação de seu discurso, junto com seu aspecto e a cor de seu rosto me fazem temer por sua vida. Pode ser que o fim não chegue agora, mas receio que não esteja longe”.3 Naquela segunda-feira úmida, Michelangelo estava a três semanas de completar oitenta e nove anos, 21


idade avançada em qualquer época e extraordinária para meados do século xvi. Mais tarde, Michelangelo mandou chamar outros amigos. [ imagem 1 ]

A um deles, conhecido pelo nome de Daniele da Volterra, pediu que escrevesse uma carta a Lionardo. Sem dizer explicitamente que Michelangelo estava morrendo, Daniele deixou claro que seria desejável que ele viesse a Roma assim que possível. A carta foi assinada por Daniele e, mais abaixo, pelo próprio Michelangelo: uma assinatura débil, tortuosa, a última vez que assinou o próprio nome. Apesar da doença evidente, a enorme energia de Michelangelo não o abandonara de todo. Continuava lúcido e de posse de suas faculdades, embora atormentado pela falta de sono. No fim da tarde, uma hora ou duas antes do crepúsculo, tentou sair a cavalo, como era seu costume quando o tempo estava bom – Michelangelo adorava cavalos –, mas suas pernas bambeavam, ele estava atordoado e fazia frio. Ficou sentado perto da lareira, o que preferia a ficar de cama. Tudo isso foi relatado a Lionardo Buonarroti numa carta posterior, enviada naquele mesmo dia, como nota explicativa da carta anterior, assinada pelo próprio Michelangelo. Essa segunda carta foi escrita por Diomede Leoni, de Siena, amigo do mestre, e aconselhava Lionardo a ir a Roma mas sem correr o risco de cavalgar a toda velocidade pelas estradas ruins naquela época do ano. Depois de mais um dia sentado diante da lareira, Michelangelo foi obrigado a ir para a cama. Estavam em sua casa alguns integrantes de seu círculo mais íntimo: Diomede Leoni, Daniele da Volterra, seu criado Antonio del Francese e um nobre romano, Tommaso de’ Cavalieri, cerca de quatro décadas mais jovem que ele e talvez o amor de sua vida. O mestre não deixou testamento formal, mas fez uma breve declaração de seus últimos desejos: “Entrego minh’alma às mãos de Deus, meu corpo à terra e minhas posses aos parentes mais próximos, recomendando-lhes que, quando chegue a hora deles, reflitam sobre os sofrimentos de Jesus”. Durante algum tempo, ele mesmo seguiu a última dessas recomendações, ouvindo as leituras feitas por seus amigos de pas22


sagens sobre a paixão de Cristo nos Evangelhos. Morreu em 18 de fevereiro, por volta das 4h45 da tarde. *** Assim encerrou-se a existência mortal do mais celebrado de todos os artistas, em muitos aspectos o mais renomado que já existiu até os dias atuais. Poucos seres humanos, exceto os fundadores de religiões, foram mais estudados e discutidos do que ele. A vida, a obra e a fama de Michelangelo transformaram para sempre a ideia que temos do que seja um artista. Em 1506, quando Michelangelo tinha apenas trinta e um anos, o governo de Florença falou dele numa comunicação diplomática com o papa como “um jovem excelente e inigualável em sua profissão em toda a Itália e talvez no mundo inteiro”.4 Naquela altura, quase seis décadas de sua carreira ainda estavam por vir. Desde que foi considerado “talvez” o maior artista do mundo, seu prestígio só aumentou. Houve uma dimensão épica na vida de Michelangelo. Do mesmo modo que um herói da mitologia clássica – como Hércules, cuja estátua esculpiu na juventude –, ele foi submetido a provas e trabalhos constantes. Muitas de suas obras eram enormes e envolviam formidáveis dificuldades técnicas: por exemplo, os monumentais afrescos do teto da capela Sistina e o Juízo Final, o gigantesco Davi

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de mármore, esculpido num bloco de pedra de formato inusitado e previamente usado. Os maiores projetos de Michelangelo – a sepultura de Júlio ii, a fachada e a Sacristia Nova da igreja de San Lo-

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renzo, a grande basílica de São Pedro em Roma – eram tão ambi-

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ciosos em suas proporções que, por falta de tempo e recursos, ele não conseguiu concluir alguns deles, como de início pretendia. No entanto, mesmo seus monumentos e esculturas inconclusos foram reverenciados como obras-primas e exerceram enorme influência sobre outros artistas. Michelangelo continuou trabalhando, década após década, perto do centro dinâmico dos acontecimentos: o vórtice no qual a história da Europa estava mudando. Quando nasceu, em 1475, 23


Leonardo da Vinci e Botticelli estavam começando a carreira artística. A Península Itálica era uma colcha de retalhos de estados independentes, ducados, repúblicas e cidades autônomas. Na época em que ele morreu, já tinham ocorrido a Reforma e a Contrarreforma. O mapa político e espiritual da Europa tinha se alterado radicalmente. As superpotências europeias, França e Espanha, tinham invadido a Itália e a transformado numa traumática zona de guerra. A unidade da cristandade se esfacelara: os protestantes se subtraíram à autoridade do papa e se dividiram em diversas facções teológicas. O catolicismo ressurgia de forma mais ortodoxa e militante. Começava um século de contendas religiosas. Ainda na adolescência, Michelangelo passou a viver no palácio de Lourenço de’ Medici, o Magnífico, uma das figuras em torno das quais nossa ideia de Renascimento tomou forma. Trabalhou para nada menos que oito papas, e com muitos deles suas relações chegaram muito perto da intimidade. Tinha sido criado com os dois papas Medici, Leão x (que reinou de 1513 a 1521) e Clemente vii (reinou de 1523 a 1534), na corte de Lourenço, o Magnífico. O primeiro falava dele “à beira das lágrimas” (mas achava terrivelmente difícil lidar com ele). Com Clemente vii, a relação de Michelangelo foi, na verdade, ainda mais próxima. Clemente via Michelangelo “como algo sagrado, e conversava com ele, tanto sobre assuntos amenos quanto sérios, com tanta intimidade como se estivesse falando com um igual”. Clemente morreu em 1534, mas Michelangelo ainda viveria trinta anos e serviria a mais quatro papas. A enorme basílica de São Pedro foi erguida, muito devagar, sob sua direção. Roma e a cristandade se metamorfoseavam a sua volta. Foram fundadas a Ordem dos Jesuítas e a Inquisição romana, e a Europa dividiu-se entre católicos e protestantes de forma tão feroz e letal quanto qualquer das guerras ideológicas do século xx. Mas Michelangelo ainda estava lá, reconhecido no mundo como o artista supremo – não somente de seu tempo, mas de todos os tempos. ***

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No dia seguinte ao da morte de Michelangelo, fez-se um inventário de seus bens.5 Dele constava o conteúdo de uma casa parcamente mobiliada, embora rica de outras maneiras. No quarto onde ele dormia havia uma cama de ferro com um colchão de palha e três de lã, algumas cobertas de lã, uma de pele de cordeiro e um dossel de linho. As roupas que havia em seu armário sugeriam um toque de luxo, entre elas uma coleção de gorros de seda preta – dois deles de um suntuoso tafetá furta-cor conhecido como ermisino, e outro de rascia, o tecido mais caro que se fazia em Florença –, dois casacos forrados de pele de raposa e uma fina capa. Michelangelo possuía ainda uma boa quantidade de lençóis, toalhas e roupa de baixo, inclusive dezenove camisas usadas e cinco novas. Fora isso, a casa parecia nua. No estábulo estava o cavalo que Michelangelo usava para suas cavalgadas vespertinas, descrito como “um pequeno cavalo castanho, com sela, cabresto etc.”. Não havia nada na sala de jantar, salvo alguns barris e garrafas de vinho vazios. A adega tinha alguns grandes jarros de água e meia garrafa de vinagre. Duas grandes estátuas inconclusas, uma de “São Pedro” – talvez, na verdade, uma efígie de Júlio ii, que pode ter sido pensada para seu sepulcro – e outra descrita como “Cristo com outra figura acima, ligados um ao outro”, permaneciam no ateliê coberto atrás da casa. Havia também uma estatueta incompleta de Cristo carregando a cruz. No quarto de dormir de Michelangelo foram encontrados alguns desenhos, mas em número muito pequeno se comparado a tudo o que tinha feito ao longo dos anos. A maior parte deles correspondia a projetos recentes, particularmente da basílica de São Pedro. Dos milhares de outros desenhos que fez, alguns tinham sido distribuídos, outros permaneciam em Florença, onde ele não punha os pés havia pelo menos trinta anos, mas muitos tinham sido deliberadamente destruídos pelo próprio Michelangelo numa série de fogueiras, uma delas pouco antes de sua morte. No dormitório havia também uma arca de nogueira, trancada e com diversos selos pregados. Foi aberta em presença dos notários encarregados do inventário. Continha, divididos em sacos e 25


jarrinhos de maiólica e cobre, a quantia de 8 289 ducados e scudi6 de ouro, além de moedas de prata. Michelangelo dizia: “Por mais rico que eu tenha sido, sempre vivi como um homem pobre”. Certamente não estava brincando. O inventário dá a impressão de um estilo de vida decididamente espartano; o ouro e a prata daquela arca representavam uma fortuna. A quantia guardada em seu quarto era poucas centenas de ducados menor que a importância paga quinze anos antes por Eleonora di Toledo, mulher de Cosimo de’ Medici, duque da Toscana, por uma das maiores residências de Florença: o Palazzo Pitti.7 O ouro que havia no cofre de Michelangelo representava apenas uma fração – bem menos que a metade – de seu patrimônio, sendo a maior parte dele composta de propriedades. Ele era não só o mais famoso pintor ou escultor da história, como também era, provavelmente, mais rico do que qualquer outro artista já havia sido. Essa era apenas uma das muitas contradições da natureza de Michelangelo: um homem rico que vivia frugalmente; um sovina que podia ser generoso ao extremo, a ponto de causar constrangimento; uma pessoa retraída e enigmática que passara três quartos de século ao lado do centro de poder. Na época da morte de Michelangelo, o adjetivo “divino” – aplicado a outras iminentes figuras da cultura, como Dante – era tomado quase literalmente no caso dele. Algumas pessoas, pelo menos, viam Michelangelo como uma nova espécie de santo. A força da veneração dedicada a ele era similar à que se reservava a místicos e mártires. Por esse motivo, Michelangelo teve dois funerais e dois sepultamentos, em dois lugares diferentes. O primeiro foi em Roma, na Basilica dei Santi xii Apostoli, não muito distante da casa da rua Macel de’ Corvi. O artista e pioneiro da história da arte Giorgio Vasari relata que ele foi “acompanhado à sepultura por grande número de artistas, amigos e florentinos”. Ali, Michelangelo foi entregue ao descanso “em presença de toda Roma”.8 O papa Pio iv expressou a intenção de erigir um monumento a Michelangelo no interior da basílica de São Pedro, obra-prima do artista (que naquela época ainda estava em construção e não tinha a cúpula). 26


Esse estado de coisas tornou-se intolerável para o duque Cosimo de’ Medici, governante de Florença, que durante muitos anos tentara sem sucesso atrair o ancião de volta a sua cidade natal. Cosimo decidiu que Roma não ficaria com os restos do artista, e seguiu-se um estranho incidente que lembra o roubo do corpo de São Marcos de Alexandria por comerciantes venezianos. Por insistência do sobrinho de Michelangelo, Lionardo, que finalmente chegara a Roma, embora atrasado para impedir o funeral, o corpo do artista foi contrabandeado da cidade por alguns mercadores, “escondido num fardo de modo que nenhum tumulto pudesse frustrar o plano do duque”. Foram tomadas as providências necessárias para um suntuoso funeral com honras de Estado. O corpo chegou a Florença em 2 de março,9 um sábado, e foi levado ao panteão da Confraria da Assunção, uma cripta atrás do altar da igreja de San Pier Maggiore. No dia seguinte, ao cair da noite, os artistas da cidade se reuniram em volta da urna em que Michelangelo estava agora, coberto com um manto de veludo bordado a ouro. Os mais respeitados levavam tochas, o que deve ter criado uma cena de lúgubre magnificência, com as chamas tremeluzentes iluminando a urna envolta em tecido preto. A seguir, Michelangelo foi levado em procissão à enorme basílica gótica de Santa Croce, no centro do bairro onde sua família sempre vivera.10 O trajeto do féretro passava perto da casa de sua infância e das casas que ele teve – onde viveu durante alguns anos – na Via Ghibellina. Quando correu o rumor de que o corpo dele estava sendo levado pelas ruas escuras, uma multidão começou a se formar. Em pouco tempo, a procissão estava tomada de cidadãos florentinos, distintos e indistintos, e “só com grande dificuldade o corpo pôde ser levado à sacristia, liberto de seus envoltórios e posto a descansar”. Depois que os frades celebraram o ofício dos mortos, o escritor e cortesão Vincenzo Borghini, em nome do duque, mandou que a urna fosse aberta, em parte para satisfazer a própria curiosidade – segundo Vasari, que estava presente –, em parte para atender à pressão da multidão. Então, ao que parece, algo extraordinário se descobriu. Borghini “e todos os que estávamos presentes esperávamos encontrar um corpo já em decompo27


sição e apodrecido”. Afinal, naquela altura, Michelangelo estava morto havia quase um mês. Mas, segundo Vasari: Pelo contrário, nós o encontramos [o corpo] ainda perfeito em todas as suas partes e tão livre de maus odores que nos sentimos tentados a acreditar que ele estava simplesmente imerso num doce e tranquilo sono. Não só suas feições eram exatamente as mesmas de quando estava vivo (embora tocadas pela lividez da morte) como seus membros estavam limpos e intactos, e seu rosto e suas faces pareciam como se ele tivesse morrido poucas horas antes.

Claro está que um corpo não corrompido estava entre os tradicionais indícios de santidade.

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Buonarroti

Não desejo me estender mais sobre o estado de miséria em que encontrei nossa família quando comecei a ajudá-los, porque um livro não seria o bastante – e nunca recebi nada além de ingratidão. michelangelo ao sobrinho Lionardo, em 28 de junho de 15511

O mundo europeu mudou em muitos aspectos durante a longa vida de Michelangelo. Em sua juventude, já circulavam livros e ilustrações impressos. Na época de sua morte, pouco menos de um século depois, livros e folhetos já tinham o poder de influenciar acontecimentos. O próprio Michelangelo tornou-se algo semelhante a uma celebridade midiática de hoje em dia. Se sabemos tanto sobre seus pensamentos e seus sentimentos, isso se deve, em grande parte, à fama que ele tinha quando vivo. Era tão renomado que sua correspondência foi preservada, suas criações admiradas e sua vida narrada em livros de uma maneira que até então se reservava a santos ou reis – mas é claro que toda existência, mesmo a dos mais famosos, se mostra bem diferente quando vista de dentro. Michelangelo pode ter sido a primeira pessoa a ter sua biografia escrita mais de uma vez enquanto ainda era vivo. Em sua velhice, foram publicados um relato autorizado e outro não autorizado.2 Em 1550, saiu um livro sem precedentes intitulado A vida dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos italianos,3 escrito pelo artista toscano Giorgio Vasari (1511-74). Tratava a carreira e as realizações dos artistas com uma seriedade que até então, na 31


literatura clássica e medieval, era exclusiva das biografias de reis, soldados, políticos, santos e, ocasionalmente, filósofos. Vasari estabeleceu o modelo segundo o qual a cultura ocidental vem pensando mais ou menos a arte daquela época até hoje: em termos de pessoas talentosas com estilos pessoais, aprendendo umas com as outras, rivalizando e se superando. Ele fundou, em outras palavras, o estrelato. Em seu ponto culminante ficavam grandes artistas, heróis, gênios: Giotto, Brunelleschi, Leonardo, Rafael Sanzio (todos eles, exceto o último, florentinos). A primeira frase da “Vida de Michelangelo” de Vasari tem sido louvada como uma obra-prima por si só: um exemplo glorioso da prosa maneirista, girando e cascateando através de orações complexas, relatando – de um modo que remete às próprias pinturas de Michelangelo sobre a Criação do Mundo no teto da capela Sistina – como Deus tinha enviado à terra um espírito abençoado que seria, por sua habilidade universal nas artes e sua santa conduta, um modelo de perfeição. Apesar do impetuoso elogio, Michelangelo não ficou plenamento satisfeito com o tratamento que Vasari deu a sua vida. O texto tinha erros, omitia acontecimentos e obras que ele considerava importantes, e enfatizava pontos que o próprio Michelangelo achava melhor ignorar. Esses defeitos explicam por que, em 1553, apenas três anos depois da publicação da obra de Vasari, outra biografia apareceu, a Vita di Michelangnolo 4 Buonarroti, atribuída a um assistente de Michelangelo chamado Ascanio Condivi, mas provavelmente escrita, pelo menos em parte – já que as habilidades de redator de Condivi eram rudimentares –, por um literato mais competente, Annibale Caro. Em todos os aspectos, esse novo texto mostrava cada sinal do que havia faltado ao de Vasari: acesso irrestrito ao biografado. Algumas passagens soavam como transcrições literais das lembranças de Michelangelo, a tal ponto que chegou-se a afirmar – com algum exagero – que se tratava na verdade da autobiografia de Michelangelo. Embora a Vida de Condivi tenha sido inquestionavelmente escrita com a ajuda e a aprovação de Michelangelo, por várias razões 32


– ele não estava habituado ao processo de publicação e, chegando aos oitenta, tinha em mente outros assuntos, como a construção da basílica de São Pedro – ele não chegou a ler o texto final antes que fosse impresso. Quando o leu, como aconteceu com a leitura do livro de Vasari, Michelangelo achou que havia pontos inexatos e outros que precisavam ser ampliados. Sabemos disso porque há uma cópia da Vida de Condivi com anotações da época, agora já descoradas. A caligrafia era de ninguém menos que Tiberio Calcagni,5 o mesmo leal assistente que correria à casa de Michelangelo ao saber que o artista não estava bem. É possível que antes de sua morte, em uma ou mais ocasiões, Michelangelo tenha examinado um exemplar do livro juntamente com Calcagni. Possivelmente, a ideia tinha sido ajudar Vasari com a segunda edição de sua obra, que sairia em 1568. Se foi assim, os comentários de Michelangelo nunca foram adiante, talvez porque o próprio Calcagni morreu não muito tempo depois. Calcagni quase sempre começava uma anotação com Mi disse (Ele me disse),6 mas numa delas começa por Dice (Ele diz), o que indica que Michelangelo ainda vivia na época em que ele escreveu. A última nota, feita claramente depois da morte de Michelangelo, estava ao lado de uma passagem que relatava os problemas de saúde do velho artista: “Há anos ele vinha tendo dificuldades para urinar”. Esse problema teria evoluído para cálculos nos rins, prossegue o texto, se ele não tivesse sido tratado “com a atenção e a diligência” de um amigo, o famoso cirurgião e anatomista Realdo Colombo (c. 1516-59). A anotação diz apenas “Pietra Errore. Chiarito nella morte” (Pedra Erro. Esclarecido na morte).7 Essa nota é breve demais para atestar inequivocamente que se tratava de um erro acreditar que Michelangelo estivesse curado das pedras nos rins, ou que o diagnóstico estava errado. É mais provável que, tendo dissecado muitos corpos humanos ao longo dos anos para estudar seus músculos e ossos – às vezes em companhia do mesmo Realdo Colombo –, o próprio Michelangelo tenha sido submetido à autópsia no período que transcorreu entre sua morte e o primeiro sepultamento, em Roma. *** 33


Existem poucos registros históricos de que Michelangelo possa ter herdado seu talento dos antepassados, exceto, talvez, uma predisposição à excentricidade. Em geral, os Buonarroti eram pessoas medíocres. Eles se vangloriavam de ter sobrenome, o que na Itália dos séculos xv e xvi era sinal de algum status; muita gente era conhecida apenas por um patronímico, como Giovanni di Paolo, que era o nome de um pintor de Siena e significa “João, o filho de Paulo”. Em seus documentos, Michelangelo e seus parentes eram chamados indistintamente de “Buonarroti”, “Simoni” ou “Buonarroti Simoni” (embora ocasionalmente o próprio artista fosse chamado simplesmente Michelangiolo di Lodovico: “Michelangelo, o filho de Lodovico”).8 A questão dos nomes fascinava o artista, que se interessava pela história familiar. Em dezembro de 1547, ele disse ao sobrinho Lionardo que tinha lido uma crônica da história florentina medieval e encontrara referências a vários prováveis ancestrais que se chamavam “Buonarroto Simoni”, “Simone Buonarroti” e “Michele di Buonarroto Simoni”. “Então acho”, concluiu ele, “que você deveria assinar-se Lionardo di Buonarroto Buonarroti Simoni.” 9 A preocupação com a forma correta do nome de família estava ligada a uma preocupação geral com sua posição social. Dezoito meses depois, voltando à questão do nome, ele ordenou ao sobrinho – não pela primeira vez – que dissesse a um velho amigo e aliado florentino, Gian Francesco Fattucci, que parasse de enviar cartas ao “Escultor Michelangelo”, “Porque aqui só sou conhecido como Michelangelo Buonarroti”.10 Ele sempre preferira identificar-se como escultor e não como pintor, mas na velhice já não queria ser conhecido por sua ocupação. Nessa época, Michelangelo, aos setenta e poucos anos, estava convencido de ser mais um cavalheiro do que um artista: um cavalheiro que tinha criado obras de arte como presentes para seus amigos e – sob protesto – como serviços prestados a grandes governantes: “Nunca fui pintor ou escultor como os que se estabelecem para esse propósito. Sempre me abstive disso por respeito a meu pai e a meus irmãos; embora tenha servido a três papas,11 foi por obrigação. Acho que isso é tudo”. 12 34




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