dedicado a Yole Lambrecht Chapman
karin lambrecht
organização Glória Ferreira
Pintura em todas suas dimensões Karin Lambrecht: Arte e ética Memórias invisíveis
Glória Ferreira
Miguel Chaia
Agnaldo Farias
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Karin Lambrecht no caminho do rio | CRONOLOGIA FORTUNA CRÍTICA lista de obras
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Viviane Gil Araújo
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Pintura em todas suas dimensões
1. Karin Lambrecht, Iberê Camargo, lembranças, in S. Salzstein (org.), Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Desmembramento, 2000 [detalhe]
Glória Ferreira
Doze metros de lona de algodão puro marcados pelo último esguicho de sangue de um carneiro, cercado por doze desenhos tamanho A1, com os nomes dos apóstolos impressos, as vísceras e os cortes da carne ovina para uso doméstico. Esses objetos aludem à fragmentação e dissecação dos corpos, e o carneiro, à genealogia de Cristo. De certo modo, evoca um mural e, por associação, o relato da Última Ceia. Transfigurada, contudo, em Ressurreição, pela marca indelével de sangue. Desmembramento, 2000, com seu aspecto minimalista e ao mesmo tempo grandioso, parece exaltar a forma e o tema, embora não dissociados. A obra indica, também, relações possíveis entre diversos momentos da trajetória de Karin Lambrecht, que se desdobram na atenção às grandes escalas ou à monumentalidade, ao uso amplo e livre de materiais, como areia, terra, pigmentos naturais, sangue, chuva, toalha de mesa familiar etc., como modo de resolver questões relativas à superfície, à cor, ao ritmo e ao gesto. À pintura, portanto. Ainda estudante no Instituto de Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ufrgs, Karin participa de diversas atividades, com nítido viés conceitual, como seus desenhos no Espaço n.o., questão que se fará presente, a meu ver, em seu futuro como pintora, reivindicado por ela como centro de seu trabalho. Se sua estadia na Alemanha foi motivada, em parte, pela morte do pai e o desejo de encontrar os avós paternos, suas escolhas de estudo, já bacharel em Artes Plásticas, foram decisivas em seu percurso. Ao estudar na Hochschule der Künste Berlin, na Berlim Ocidental (atualmente Universität der Künste, udk), entre 1980 e 1982, Karin descobre a pintura “praticamente inexistente”1 em Porto Alegre, embora esta estivesse presente em sua primeira mostra individual, 100 × coração, no Escritório de Arquitetura Ceres Storchi e Amigos, em 1979. Seu professor na udk, Raimund Girke (1930-2002), muito influente na Alemanha, abandona o informalismo abstrato para explorar a redução de estilos e técnicas, usando, sobretudo, uma paleta monocromática. Nos anos 1980, Girke elege o branco como sua cor predileta, ampliada por gradações de cinza e o uso gestual de pinceladas. Seu trabalho, assim como o do artista americano Robert Ryman (1930), é uma experiência contínua das possibilidades da pintura. Karin interessa-se menos pela efervescência alemã – Salome, Helmut Middendorf ou Georg Baselitz – do que pelos arranjos estruturais do seu professor, em que os fluxos pessoais são praticamente neutralizados, marcados, no entanto, por uma tensão entre a sobriedade
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e a emoção. Outra influência determinante na época é o estudo de história da arte e arte abstrata, com Robert Kudielka, reconhecido historiador da arte moderna. Como afirma a artista: “Na arte há montanhas como o professor Robert Kudielka e como meu querido professor Raimund Girke; para mim eles são montanhas”.2 Por outro lado, não menos distante de um viés conceitual, está a marca de Joseph Beuys, de quem ela teve a oportunidade de assistir a uma palestra na universidade, e as informações de Londres sobre a Exploding Galaxy,3 em fins dos anos 1960, transmitidas por um dos ativos participantes, Michael John Chapman, seu ex-marido e pai de sua filha. De Beuys, Karin parece guardar o tom metafórico do uso dos materiais naturais e orgânicos como a gordura, o feltro, o cobre (isolantes e condutores de energia); a retomada, na arte, de sua dignidade espiritual e simbólica, o retorno ao mundo natural, a religiosidade e transcendência – afinal, dizia ele, “como realizar um processo de reumanização do homem?”.4 Por outro lado, sem vinculação com uma suposta definição da arte tal como veiculada pela Exploding Galaxy, a artista parece ter assimilado o processo como elemento operatório de sua práxis. O período é, contudo, um “momento de plenitude da pintura”,5 como assinala Frederico Morais. Inúmeras exposições sucedem-se afirmando o “novo” meio: Pictures and Promises, 1981, com curadoria de Barbara Kruger, em Nova York; a Bienal de Veneza, e a Documenta 7, 1982, em Kassel; e mesmo algumas brasileiras, como Entre a mancha e a figura, 1982, com curadoria de José Roberto Aguilar, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mam-rj. Karin tem a oportunidade de ver Zeitgeist Internationale Kunstausstellug Berlin, 1982, com curadoria de Norman Rosenthal e Christos Joachmides, apresentada no Martin-Gropius-Bau, em Berlim, na qual, ao lado de jovens artistas, está exposta a instalação Werkstatt [Oficina], de Beuys. Os dois, dividindo a curadoria com Nicholas Serrota, realizam A New Spirit in Painting, na Royal Academy of Arts, em Londres, ocasião em que apresentam trabalhos de Francis Bacon e Gerhard Richter. Apesar dos acirrados debates, reafirma-se o “espírito do tempo” com a profusão de pintores, marcados por figuração e subjetivismo. Esse é o ambiente vivido pela artista em Berlim. De volta ao Brasil, com a experiência alemã, a artista acirra as questões presentes em sua prática anterior nos projetos como os dos festivais de Ouro Preto, na edição do álbum Relinguagem, com cerca de quarenta artistas, que deram origem a quarenta álbuns com quarenta imagens reproduzidas em xerox, ou, em 1980, na exposição A casa e a cozinha, no Espaço n.o., em Porto Alegre. A arte postal é um dado de sua prática, definida por Julio Plaza como uma arte em que “predomina o espírito de mistura de meios e de linguagens, e o jogo é precisamente invadir outros espaços-tempos”.6 Essa “estrutura espaçotemporal” se faz presente nos trabalhos da artista até hoje, como o uso de carimbos e da escrita (o nascimento de sua filha, por exemplo, foi anunciado por meio da arte postal). Seu trabalho parece não ter sofrido as “aflições” causadas pela volta da pintura, tal a amplitude de seu tratamento pictórico, demonstrando que entre arte
2. K. Lambrecht, Montanha, out.-nov. 2007. Texto manuscrito. 3. Em 1964, David Medalla se mudou para a Inglaterra, onde cofundou a Signals Gallery, em Londres, focada na arte cinética internacional. De 1964 a 1966, Medalla também foi editor do boletim da Signals. Em 1967 iniciou o Exploding Galaxy, uma confluência internacional de artistas multimídia, como círculos de contracultura, especialmente o Clube ufo e Arts Lab. 4. Joseph Beuys, A revolução somos nós, in G. Ferreira & C. Cotrim (orgs.), Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 5. Frederico Morais, Entre a mancha e a figura. Rio de Janeiro: mam, 1982. 6. Julio Plaza, Mail Art: Arte em sincronia. Catálogo da xvi Bienal de São Paulo. São Paulo: Bienal de São Paulo, 1981. Republicado em G. Ferreira & C. Cotrim (orgs.), op. cit.
7. Aleksandr Rodchenko, Working with Majakóvski. Ms., 1939. Disponível em: <http:// leey294.wordpress. com/2011/11/26/ the-death-of-painting/>. 8. Nikolaï Taraboukine, Le Dernier Tableau: Du Chevalet à la machine. Pour une théorie de la pinture. [1921]. Paris: Editions du Champ Livre, 1980. 9. Yve-Alain Bois, Painting: The Task of Mourning, in Painting as Model. Cambridge / Londres: mit Press, 1990. 10. Alberto Tassinari, “Entre o passado e o futuro”, in Casa 7 − xviii Bienal de São Paulo. São Paulo: Subdistrito Comercial de Arte, 1985. Republicado em G. Ferreira (org.), Crítica de arte no Brasil: Temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
e mundo há porosidades e não fronteiras definidas. E, assim, mistura entre as linguagens. Daí sua defesa intransigente, ainda hoje, do gênero, apesar dos jogos que utiliza, o que a torna uma pintura “ampliada”, para retomar o termo de Rosalind Krauss, em que a pluralidade é envolta em um todo orgânico e solidário, com forte marca romântico-expressionista. Karin participa da exposição Como vai você, Geração 80?, em 1984, no Parque Lage, Rio de Janeiro, com o díptico Pequenos seres. Parece, no entanto, não se empolgar com o alvoroço criado em torno dessa exposição. Mesmo sendo parte da Geração 80, que reuniu artistas cuja obra foi marcada pela famosa oposição entre “conceito” e “expressão” – assinalando a contradição relativa ao discurso e às práticas artísticas dos anos 1960 e 1970 –, Karin não deixa de se ver envolvida, apesar de sua inflexível postura, com a questão da morte da pintura, iniciada em meados do século xix. Com a invenção da fotografia, a morte da pintura foi anunciada, assim como seu despojamento da função de representação. Um pequeno trauma, se comparado aos diferentes decretos de mortes, a começar com Hegel e o fim da arte; de Deus e do homem, segundo Nietzsche; do autor, segundo Barthes; da história da arte, no entender de Hans Belting etc. A pintura modernista e a própria produção artística convivem com esse trauma, tomado como estratégico pelas vanguardas modernas. Em 1921, Rodchenko, por exemplo, decretava a morte da representação com três monocromos – vermelho, amarelo e azul: “Está tudo acabado. Cores básicas. Cada plano é o próprio plano”.7 Para ficarmos nos artistas russos, entre 1912 e 1922, foram elaborados variados conceitos para definir sua nova práxis, os quais levaram Nikolaï Taraboukine (qualificando o ato de Rodchenko como “suicídio do pintor”) a proclamar a inutilidade da obra de arte,8 em nome da construção como elemento definidor. Outras estratégias, entre elas o anátema lançado por Duchamp contra a arte retiniana, ou ainda a interrogação dos artistas americanos diante da incapacidade de a tradição europeia responder ao sentimento de crise após a Segunda Guerra Mundial, marcam a atividade da pintura durante todo o século xx como luto, segundo Yve-Alain Bois. Atividade que, assinala ainda o autor, “não se tornou necessariamente patológica: a sensação de um fim acima de tudo produziu uma irrefutável história da pintura, em particular da pintura modernista, a qual estávamos muito provavelmente dispostos a enterrar”.9 A pintura foi de fato enterrada como elemento que subsumia as artes para se tornar uma das suas possibilidades. Alberto Tassinari nos alerta: “A nova pintura é uma pintura de sobrevivência”.10 Ainda na Alemanha, Karin dedica-se à pesquisa da cor e da luz, a partir da atmosfera matinal, e realiza o trabalho O caminho do rio, caixa de papelão tratada com pigmentos em têmpera, impermeabilizados com goma-laca, apta a navegar no rio Spree, em Berlim, na primeira hora da manhã. Realiza, também, objetos tratados com pigmentos pretos, cinzentos e fuligem largados no branco absoluto da neve no inverno berlinense, que atinge vinte graus centígrados negativos – início, talvez, de uma prática de sobrevivência da pintura. Ao voltar, desenvolve a oficina Exercícios de Pintura, workshop ao ar livre, nos jardins do antigo Museu
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de Porto Alegre, cuja proposta de trabalho incluía pedras, terra e confecção de bastidores e suportes pelos alunos. Com Michael Chapman e Heloisa Schneiders da Silva, desenvolve o projeto Três Processos de Trabalho, ministrando a oficina Exercício / Cor / Fazer, em que se mesclam reflexão artística e produção pictórica. Delineia-se, então, um trajeto próprio, em que a artista toma para seu trabalho a liberdade no tratamento dos materiais e do ato pictórico em si – desconstrói seus cânones, a começar por seu quadrilátero, reorganizando-o em arranjos em que utiliza fragmentos de sucata industrial, objetos, terra de seu jardim, entre outros elementos. Processos que se revelam parte determinante na recepção do trabalho. Os materiais utilizados não são simples substratos sem forma, mas emprestam suas significações, impregnam o trabalho de experiência temporal, como em Nascimento do tempo, no qual utiliza tinta acrílica industrial e pigmentos com objetos de ferro e madeira, recobertos com esse material, apresentado em Millay Colony for the Arts, no estado de Nova York, onde residiu em 1986. Em outros trabalhos as camadas de tinta avançam sobre os objetos, e eles se impregnam de matéria pictórica, como em O destino: MuB es sein – Es muB sein [O destino: É necessário mesmo – tem que ser], 1986, ou em Marco Polo, 1990. Poderíamos localizá-los entre a pintura e a escultura, se conservamos as antigas categorias artísticas; são, entretanto, eminentemente pictóricos, com a superposição de várias camadas de pigmentos e a implicação direta do corpo. Como sugere Virginia Aita, Karin “assume a tarefa de reconfecção do próprio conceito do que é pintar”,11 afirmando sua natureza complexa ou, de acordo com Mônica Zielinsky, “a pintura é tida como ação, uma ação que faz confluir corpo e pensamento”.12 Sua experiência particular com a natureza, a incorporação da relação entre o orgânico e o mental, se fazem presentes no uso da terra de seu jardim, da chuva como coautora de certas obras, na exploração, enfim, da instabilidade constitutiva dos elementos da natureza. Os materiais de que lança mão, afirma a artista, “têm uma memória, foram já utilizados e reutilizados. Quando pego sucata, eu olho com olhos de pintora, procuro as manchas em sua superfície, situações que possam gerar novas situações. Mas sempre tenho em mente algo que vai sofrer um processo de reintegração com a natureza”.13 O animal, menos do que a vulgar menção pejorativa a um ser “desumano” ou cruel, é mais do que vemos: merece atenção, cuidados, preservação. Ele é capaz de gerar experiências subjetivas, estados afetivos como sofrimento em condições adversas e sentimentos de prazer em situações agradáveis. É o caso de O animal é mais do que vemos, de 1983, outdoor realizado em São Paulo, no projeto Arte na Rua 2, supervisionado pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (mac-usp). O que nos faz pensar no abate do carneiro, mas também em Beuys e sua relação com os animais. Invocar, como ele fez, a lebre morta ou ainda o coiote, com quem conviveu por alguns dias – I Like America and America Likes Me –, visa fazer presente, pelo exercício da memória e da imaginação, o campo simbólico a-histórico de outra relação com a natureza e com os animais.
11. Virginia Aita, O grão: A textura do tempo ou a fenomenologia do pathos. Texto inédito. 12. Mônica Zielinsky, Nexos da matéria (catálogo). Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2008. 13. K. Lambrecht apud Roels Reynaldo Jr., “Os nomes e as obras”. Jornal do Brasil, Caderno B, p. 4, 15 jan. 1988.
14. Michael Chapman, “Ester ou Ester entra no pátio inferior da casa do rei”. Gazeta de Sergipe, Arte e Literatura,1987. 15. K. Lambrecht, The Reasons for the Cross. Texto cedido pela artista. 16. K. Lambrecht, Memórias invisíveis. Entrevista a Agnaldo Farias, por ocasião da exposição Lugares desdobrados, Fundação Iberê Camargo, 2008. Publicada neste livro, p. 59
Ester ou Ester entra no pátio inferior da casa do rei, 1987, fez parte da exposição Utopia e realidade, na xix Bienal Internacional de São Paulo, com curadoria de Sheila Leiner, e também foi apresentado na Galeria Thomas Cohn Arte Contemporânea, em 1988, contando com a construção de um pátio. A obra alude à história de Ester, chamada pelos judeus de Meghil-láth És-tér, ou simplesmente de Meghil-láth, que significa “rolo”, “rolo escrito”. Jovem judia entre os deportados, arriscou a própria vida, violando um interdito, em prol da liberdade de seu povo; sua história é um dos livros históricos do Antigo Testamento – que se encontra no Museu Judaico, em Gottingen, na Alemanha. O trabalho de Karin, composto de tinta acrílica, sucata e fotografia como principais elementos, constitui uma grande instalação; mais do que um tema, ele é a elaboração de um dilema, abstrato, de vida ou morte, de tomada de posição, também atual, como em relação à destruição da natureza. Michael Chapman comenta o aspecto ético inerente a sua pintura: “Por trás de figuras e altares, um vasto mundo pintado sobre a tela, vasto não só em termos de tamanho como pintura, mas vasto em termos de associações para mim com a vastidão da condição humana, física e espiritualmente, no contexto deste mundo”.14 Como palimpsestos, seus trabalhos são suportes para desenhos, palavras, por vezes em alemão, português ou latim − conjuntio, conceptio, putrefactio, separatio; elementos pictóricos com camadas de pinceladas que se sobrepõem, se adicionam, se conformam com carimbos, exigindo certo nomadismo do olhar, e que nos localizam entre o abstrato e o real, entre o visível e o que podemos apenas imaginar. Elemento recorrente em seus trabalhos, a cruz − o mais primitivo signo de um objeto no espaço, com amplo universo de significações e simbologias − declina-se em uma série sempre renovada de remissões. Em belo texto sobre a razão da cruz, Karin afirma que o “corpo humano que mergulha na lama e nas difusas e confusas profundidades do subterrâneo tem a capacidade de erguer-se e ‘desenhar’ a cruz, nesse momento, quando ele se levanta do chão e cruza a linha da terra ou o horizonte distante”.15 Em Entrecruzamentos, a circulação de significações não caracteriza cada obra apenas como um universo em si. Karin almeja que essas significações sejam parte integrante do Universo, introduzindo-nos no amplo campo de suas reflexões, opções éticas, espirituais e estéticas, que informam sua práxis e questionam as regras lógicas no desejo de se relacionar diretamente com a vida e reencontrar a intensidade originária do mundo em um universo mutante, indefinível e paradoxal: “Esse universo cósmico não é um universo religioso, institucional”.16 Morte eu sou teu, seu pioneiro trabalho com sangue, foi apresentado no circuito institucional paralelo criado por Frederico Morais, na i Bienal do Mercosul, em 1997. Em uma fazenda no interior do Rio Grande do Sul, a artista recolhe o sangue do abate de um carneiro para uso doméstico em uma toalha adamascada de sua avó materna. Aos rios de “sangue que correm no Rio Grande do Sul”, presente na casa de todo mundo, é associada uma toalha usada em muitas comemorações
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familiares, evocando, talvez, a saga de sua família materna, cuja imigração se deu pouco antes da Primeira Guerra Mundial − acontecimento histórico, como sabemos, banhado de sangue. O suporte não é neutro, mas traz um chassi indicando seu pertencimento ao ambiente da pintura; fios de cobre como condutores de energia; uma agulha feita de argila alude ao trabalho feminino, assim como as toalhas ou mesmo a marca de suas mãos. O título, que em geral serve como mestre de cerimônia, segundo Michel Butor, revela-se um enigma: Je est un autre, à la Rimbaud? Trabalho que já contou com muitas análises importantes, entre outros o texto de Icleia Borsa Cattani, O corpo, a mão, o vestígio,17 em que se interroga a relação entre a vida e a morte como parte da natureza dos seres vivos. Desenvolvida ao longo de quase dez anos, a série de trabalhos “Registros de Sangue” participou de muitas exposições, bienais e outros eventos. Sob variadas configurações, ela associa fios de cobre e desenhos com impressão de vísceras. Nessa obra, a temporalidade é elemento constitutivo, presente nas viagens pelo interior do Rio Grande Sul, do Uruguai e do Chile, mas também de Israel − que comprova ser de origem judaica o ofício de açougueiro, transmitido de pai para filho e que se reproduz sempre igual. Esse sangue, porém, alerta a artista, “nem sempre é o mero sangue da morte, como se o sangue da morte, o nosso próprio fluxo inteiro de sangue, batesse junto. É uma pulsação, porque é como se uma coisa dependesse da outra, é como se a vida dependesse da morte”.18 Na entrevista pública Memórias invisíveis, concedida a Agnaldo Farias, por ocasião de sua exposição na Fundação Iberê Camargo, Lugares desdobrados,19 aqui publicada, Karin fala amplamente sobre seu percurso na série “Registros de Sangue”, sua atenção à Bíblia e os aspectos espirituais presentes em seu trabalho. A respeito de Pai, composta de 77 desenhos, que se refere à genealogia de Jesus conforme Lucas, assumindo que os evangelhos contêm sempre a vida de Cristo, Karin assinala a importância do modo de mostrar o trabalho, a maneira de olhá-lo, para revelar a memória e o tempo. Tanto pode se apresentar como um túnel, no caso de o olharmos meio de lado, remetendo, assim, à imagem do tempo que habitualmente fazemos em termos de passado ou futuro, quanto a um só tempo, pois, se vemos o trabalho de frente, desaparece o tubo como metáfora temporal: “Fica todo esse tempo um mesmo tempo e todos esses pais e filhos. Começa em Jesus e vai até Deus, eles todos, lado a lado. O tempo, na verdade, o tempo como a gente o calcula, é um tempo extremamente tenso na nossa sociedade. Ele nos põe sob pressão, se se olhasse o tempo de lado é como se tudo coexistisse, mais flutuantemente”.20 Eu e você, de 2001, é o registro, em livro, de uma ação no contexto do projeto Areal, coordenado por André Severo e Maria Helena Bernardes, que participam, junto com o artista alemão Rolf Wicker, de um pequeno grupo de pessoas no momento do abate de um carneiro. Karin associa o registro fotográfico das mãos dos participantes com as vísceras, durante as “impressões de sangue”, aos depoimentos de Bernardes e Wicker relatando suas experiências. Segundo a historiadora e
17. Icleia Borsa Cattani, O corpo, a mão, o vestígio, in E. Chiron, La Main dans les arts plastiques. Paris: Cerap / Editions de La Sorbonne, 1996. [Republicado neste livro, p. 244]. 18. K. Lambrecht, Memórias invisíveis. op. cit. 19. Exposição na Fundação Iberê Camargo, 2008. 20. K. Lambrecht, Memórias invisíveis, op. cit. 21. Karin Stempel, in A. Severo & M. H. Bernardes (orgs.), Eu e você Karin Lambrecht. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2001. Stempel, embora não estivesse em Bagé nessa ocasião, estava familiarizada com o trabalho de Karin, pois apresentara Organismo na exposição Quase nada, realizada na Nassauriche Kunstverein Wiesbaden, em dezembro de 1998. 22. Viviane Gil Araújo, “As vestes na série ‘Registros de Sangue’, de Karin Lambrecht”, in I. B. Cattani (org.), Mestiçagens na arte contemporânea. Porto Alegre: Editora da ufrgs, 2007.
crítica de arte Karin Stempel, “aqui nada é encenação, ninguém é ator – está em jogo a apreensão de uma experiência que se torna visível no horizonte, além da teatralização da vida, como reflexo, luz indireta, prenúncio, despedida – a questão permanente em aberto. O que fica é uma mancha sangrenta que queima um buraco no dia”.21 Há também pegadas de gatos que passearam enquanto os desenhos secavam, além da repetida expressão “eu e você”, feita com carimbo, que, como assinalado, acompanha a trajetória de Karin. Con el alma en un Hilo, 2003, ou Meu Corpo – Inês, 2005, ou ainda Caixa do primeiro socorro, também de 2005, todos feitos com sangue de carneiro, há a introdução de fotografias, feitas na hora do abate, com a precisão necessária à não coagulação do sangue. Fotografias de sua mãe e de sua filha remetem, uma vez mais, ao ambiente familiar, com roupas de linho feitas especialmente por uma conhecida sua. Anacrônicas, como observa Viviane Gil Araújo.22 Em outros trabalhos da série “Registros de Sangue”, há também documentação fotográfica como modo de trazer “um dado, um fato”, sobre um acontecimento não controlável. Além disso, as fotografias têm um papel importante na construção do ambiente cênico, no sentido de instauração de uma situação.
Morte d’luz, 2007
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Como indicado, Karin jamais abandonou a pintura, e o trabalho com sangue faz parte desse universo. Assim como fazem parte a alusão à memória, à temporalidade e as recorrências a dados históricos, socioculturais, bem como a elementos ficcionais. Ela envolve seu próprio corpo ao trabalhar por todos os lados, a tela estendida no chão, com pinceladas largas. O tempo e a transitoriedade, como a vida e a morte, são dados do seu trabalho. Iberê Camargo é, sem dúvida, uma referência. Um sentimento de irmandade, talvez. Sobre o pintor, a artista aponta a unidade do corpo e da pintura como uma de suas questões principais. Unidade que se reporta à natureza do ofício maior da arte, podendo existir, por exemplo, em um artífice. “A pintura não tem invenção”, dizia Iberê a Karin, referindo-se, segundo ela, ao acontecimento pictórico, à complexidade do gesto, embora tão simples, de aplicar a tinta sobre a superfície. Segredo, diz ela, que garante a atualidade de seu trabalho, pois Iberê “vive esse segredo com absoluta entrega e verdade, segredo que, não obstante, é apenas isto: a experiência daquele que utiliza a cor, as formas, os materiais e através deles alcança o lugar onde a matéria e o espírito do homem-pintor estão unidos para realizar-se em sua produção”.23 Morte d’luz, construído por ocasião da exposição Mulheres artistas: Olhares contemporâneos, com curadoria de Lisbeth Rebolo, no mac-usp, 2007, aproxima-se da pintura pela combinação de materiais “instáveis” e pelo fato de o processo de construção assemelhar-se ao processo de execução de um ato pictórico, feito por várias mãos. Realizado em um painel de 3 × 0,51 m, remete a um fragmento da cruz. Com a fixação do algodão, aos moldes de fixação tradicional sobre um chassi de madeira, folhas de ouro foram coladas sobre mel por estudantes da usp. O ouro reage de modos diferentes à carga de mel a cada gesto dos estudantes. A evolução de sua aparência é visível, e, com o passar dos anos, tudo se transformaria em uma sombra marrom – a duração da exposição ao longo de três meses, sem dúvida, não possibilitou revelar toda a sua amplitude. Os materiais – a folha de ouro e o mel – não deixam de evocar significados simbólicos: cerca de três mil pequenas folhas de ouro 100, com 15,5 × 15,5 cm, apresentando ligas de outros metais responsáveis pelo processo de oxidação ao entrar em contato com a umidade do mel de laranjeira, menos atrativo aos insetos. Por outro lado, se o uso do ouro e do mel remete mais uma vez a Beuys, em particular em Como explicar pintura para uma lebre morta?, evoca também seus “Registros de Sangue”, pelo tanto de sangue derramado, segundo a artista, por causa do ouro. Nesse processo efêmero, passível de ser reconstruído, sofrendo as transformações de acordo com a situação, convergem os seus diversificados tratamentos, como o gesto, o corpo e a superfície. Ou, como afirma, “Morte d’luz realça para mim os significados úmidos dos materiais de pintura, físicos, e a ação do corpo no pintar atuando enquanto material da forma e gesto; o mel está para o médium assim como o ouro para a cor neste meu trabalho”.24 De modo diferente, No quarto com Camus é também um desdobramento possível da pintura atual. Apresentado em sua exposição individual na Galeria
23. K. Lambrecht, “Iberê Camargo, lembranças”, in S. Salzstein, Diálogos com Iberê Camargo, op. cit. 24. Karin Lambrecht apud Magali Lilleu Sehn, Morte d’luz. Disponível em: <www.mac.usp.br>. Tese na eca-usp, Preservação de instalações em arte. Texto cedido pela artista.
25. Albert Camus, Diário de viagem: Visita de Camus ao Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1978, p. 73. 26. Id., ibid., p. 114. 27. Paulo Reis, Karin Lambrecht: Pintura, desenho e anotação. São Paulo: Galeria Nara Roesler, 2008. 28. Id., ibid. 29. K. Lambrecht, Pintura, 2007. Texto enviado pela artista.
Nara Roesler, 2008, em São Paulo, o trabalho consiste em um pequeno quarto de dormir para o filósofo e escritor francês. Em seu Diário de viagem, sobre a rápida passagem por Porto Alegre, Camus anota: “A luz é muito bela. A cidade é feia. Apesar de seus cinco rios. Essas ilhotas de civilização são frequentemente horrendas”.25 Ele chega ao Sul depois de haver passado pelo Rio de Janeiro, Recife, Salvador e São Paulo. Muitos almoços, jantares, encontros, pequenas viagens, visitas a favelas e cultos afro-brasileiros, quase sempre com um ar bem francês de crítica a tudo e a todos, apesar de sua decisão de se convencer, ao chegar, de “abordar esse país com um espírito mais descontraído”, e desabafa: “O que recusei com obstinação toda a minha vida, aceito aqui – como se tivesse antecipadamente consentido a tudo nessa viagem que eu não queria”.26 Karin lhe faz um quarto, em formato de cruz, com uma cama e uma mesa, além do azul metafísico dos céus, como os de Giotto, misturando, como assinala Paulo Reis, “a existência real do escritor com o sentido existencial de sua obra evocando o céu cúmplice do ato de Meursault [protagonista do romance O estrangeiro] ou ainda o da infância do artista na distante Argélia”.27 Recuperando simbolicamente uma boa acolhida para o escritor, Karin faz do tempo o ponto de ligação com o existencialismo, dialoga com a reflexão sobre o absurdo e, como o escritor, dirige-se “gradualmente para a esperança e a solidariedade humanas como possíveis soluções do drama do absurdo”.28 Em trabalhos mais recentes, como suas caixas, por exemplo, entrelaçam-se igualmente o tempo e a cultura, com cruzes, possíveis construções de civilizações, e cores fortes, como o azul. Lançando mão de aspectos espirituais, transcendentes da arte e reexaminando as origens e a nossa história, Karin interroga o presente, nossa relação com a natureza e com os outros homens – enfim, o mal-estar da civilização. Citando uma vez mais a artista, cujos textos manuscritos ou publicados revelam profunda reflexão sobre a pintura: “Os pintores não inventaram o universo próprio da tela sem antes terem sentido e observado o universo que estava próximo”.29
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Karin Lambrecht: Arte e ética
Miguel Chaia
Da arte em si
1. Mesmo considerando a diversidade de meios e suportes, a obra de Karin Lam-
brecht está voltada fundamentalmente para situar, pensar e discutir a pintura. Com pesquisas e experiências constantes, a artista busca ampliar os limites da pintura, num esforço para adensar suas potencialidades. Karin Lambrecht assume a permanência da pintura, referenciando-se pela vigorosa história dessa prática artística específica, no Brasil e no exterior. 2. Toda a produção da artista, bem como o desenvolvimento da sua linguagem,
está assentada em três grandes aspectos: a construção e desdobramentos de planos estruturantes (superfície); a afirmação de significados das cores (luz); e a elaboração controlada de áreas de manchas (forma). Esses três recursos de linguagem, em especial, articulam organicamente sua produção nas relações com a tecnologia artística, o conceito e o sentimento da pessoa diante das circunstâncias. 3. Nos seus trabalhos não há virtualidade. Todos os elementos da obra se apresentam de imediato na sua materialidade e expressividade. Daí a relevância que adquire o próprio ato de realização de cada trabalho. Ocorre, portanto, um embate direto do corpo para elaborar planos na superfície, adicionar os pigmentos de cores, incluir diferentes elementos obtidos no meio ambiente e, entre outras possibilidades, até fragilizar o suporte com rasgaduras ou subtrações. 4. Karin Lambrecht problematiza constantemente a pintura, situando-se assim
na esfera da arte-conhecimento. 5. As pinturas são feitas de camadas. Camadas de cores, densidades, tecidos e,
inclusive, materiais orgânicos e metálicos como mel, cera, placas e fios de cobre, pregos, grampos. As sobreposições fazem parte de um recurso para exprimir multiplicidades. Na superfície do suporte, partes se sobrepõem ou se justapõem, de modo a montar uma linguagem própria eminentemente visual e sensorial.
Sem título, 2003
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6. Os trabalhos em papel possuem procedimentos específicos e permitem maior
desenvoltura do ato físico. Em geral, contêm áreas de cores acompanhadas por gestos gráficos, sinais, palavras escritas em maior fartura, signos involuntários e impressões de carimbo. Muitas vezes os desenhos possuem pedaços de outros desenhos ou de papéis menores colados. Seja no desenho, seja na pintura, constata-se sempre a busca pela totalidade inalcançável. 7. Ao buscar ampliar os limites da pintura e do desenho, Lambrecht exercita o tridimensional, criando caixas /vitrines e até instalações, como as apresentadas na xxv Bienal Internacional de São Paulo, 2002; na v Bienal do Mercosul, 2005; e no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (mac-usp), 2007. As instalações se desdobram no espaço, mas deixam pistas paradoxais sobre a sua natureza, uma vez que requerem o olhar de frente, próximo ao exigido pela pintura. 8. As “pinturas” são viscerais – nelas coexistem a leveza e a densidade, a ordem
e a desordem, o controle e a liberdade, a fisicalidade e a espiritualidade, a materialidade e a suspensão, a pincelada e a “grafia”. Enfim, são obras produzidas em cima de tensões e embates. 9. Karin Lambrecht não trabalha com representação, perspectiva, figuração ou
volume – com exceção das obras em papel carimbadas pelo sangue de órgãos animais ou raras fotografias. Para a artista, trata-se de explorar as questões vinculadas às possibilidades dos planos e manchas, insistindo na procura do que é intrínseco à pintura abstrata. Mesmo quando realizou a série “Anitas”, por volta de 1985, as figuras humanas eram planas, formas recortadas em silhuetas nas cores azul, branca ou amarela – desenhadas a partir do corpo da artista. Quando há referências ao mundo exterior, elas são mediadas por palavras inscritas nos trabalhos (em português ou alemão), constituindo-se em signos visuais indiretos e ressignificados. 10. A Geração 80, da qual a artista faz parte, teve como uma de suas características
inovações que conduziram a pintura para além da superfície da tela. Karin Lambrecht, como também Leda Catunda, Leonilson, Nuno Ramos e, de certa forma, Ana Tavares, fizeram uso de costuras, materiais diversos e objetos industriais, direcionando a pintura para uma vertente próxima da tridimensionalidade. Essa geração borrou as fronteiras entre suportes, meios e linguagens. Nessa instigante aventura da arte, cada qual vem arquitetando os parâmetros da sua própria linguagem. 11. Considerando a ênfase dada à cor, a tecnologia de pintar de Karin Lambrecht
se baseia em tingir a tela, de tal forma que a tinta atravessa o tecido do plano da frente alcançando também o verso do suporte. Frente e verso são coloridos pelos pigmentos em um processo no qual formas e cores se agarram ao tecido.
12. Nos versos das telas acontecem pinturas decantadas pelo trabalho com as tin-
tas na frente do tecido. Como consequência da travessia dos pigmentos, atrás da tela aparece um resultado sem autoria, sem sujeito, sem intencionalidade, uma outra pintura que brota à sombra da vontade da artista. 13. No processo de trabalho pictórico torna-se possível embutir a cor e a luz entre
os fios da trama da tela, permitindo a criação controlada de áreas densas e/ ou transparentes. Nesse jogo de relações entre opacidades e veladuras, a artista cria uma luminosidade morandiana. Esse processo de trabalho também propicia que os planos e áreas de cores estabeleçam fortes relações entre si e, ao mesmo tempo, possibilita que as partes gozem de autossuficiência, chamando a atenção para suas particularidades. Constitui-se, assim, em uma composição visual formada por pulsantes relações entre unidades e conjunto. 14. A matéria pictórica na sua fisicalidade, convivendo com cores parcimonio-
sas, gera na tela uma certa dramaticidade, realçada pelo desequilíbrio entre os elementos que seguram a pintura e por um embate silencioso entre a artista e o suporte. 15. A arte de Karin Lambrecht é regida por uma vontade construtiva. Cada obra
resulta de um processo reflexivo demorado, tendo por base duas lógicas: o conceito engendrado a partir da história da pintura e o aprendizado obtido na prática de pintar. 16. Os trabalhos, quando já executados, ainda guardam vestígios do seu início, do
seu desenrolar, e mantêm as indagações sobre outras possibilidades para o seu término. 17. As obras guardam os registros das ações executadas pela artista, tornando o
suporte e o plano um arquivo à disposição do olhar. Cada obra de Karin Lambrecht pede uma minuciosa investigação por parte de um observador reflexivo. 18. Suas pinturas gozam de um estado de suspensão – estão entre o surgimento e
a finalização. Na tela percebem-se os estágios de passagens. No plano convivem emergências e formatações, resquícios e definições, transparências e densidades, pinceladas e respingos, áreas pintadas, palavras legíveis ou apagadas e até pedaços intocados da tela. Daí a percepção de que se trata de um campo com diversos fluxos em movimento, um campo de liberdade. 19. Não há transfiguração do plano, mas desdobramentos dele em novas entida-
des pictóricas definidas pela lógica do uso da cor.
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20. As camadas de terra que pincelam o suporte e os grafismos, quando utilizados,
servem para evidenciar a presença do plano imbricado com a tela, ou para dar personalidade a uma mancha. Riscos, linhas, escorrimentos, palavras e cortes afirmam a materialidade das cores e ajudam a libertar a obra da ilusão da profundidade ou da perspectiva. 21. As pinturas de Karin Lambrecht se fazem com densidades variáveis, dadas
por matérias e cores que crivam o caos. Os acontecimentos visuais são estruturados por três fluxos coexistentes e que sempre se realizam sob o controle da vontade da artista: tinta, respingos e formas realizam movimentações no sentido da força da gravidade, gerando acontecimentos que escorrem sobre o plano da tela; embora as cores e os materiais insistam em reter a luz, valorizando a opacidade, a luminosidade persiste em se apresentar nas transparências, claridades e até mesmo no signo escrito “luz”. Esses três eixos de linguagem, articulados, complementares ou em tensão, compõem a base sobre a qual outros recursos são acrescidos para resolver a obra. 22. Em 1993, a artista passa a cortar a tela, ou subtrair pedaços, como um dos
procedimentos de trabalho, criando saídas para escoar a força da pintura – como se ela necessitasse de um canal de respiro. Essa ação deliberada de fazer incisão na tela deixa perceber a insistência na crítica à ilusão da pintura. Mostra que ela acontece tanto de fora para dentro como do verso para a frente. A ação indica que uma tela tem atrás de si, na parede, um limite físico intransponível. Recoloca a questão física do plano. E cortar a tela também recupera o realismo original, reconhecendo que a pintura é a intervenção de um artista sobre um tecido, uma matéria prosaica e frágil. Esses rasgos, geralmente pequenos, ainda podem ser pensados como metáfora de uma arte que se faz à beira do abismo. 23. Se em Lucio Fontana a fenda na tela resulta de um rigor formal, afirmando a
destruição simbólica da pintura, em Karin Lambrecht – ao contrário – o rasgo ou a subtração de pequenas áreas da tela possui o sentido expressivo equivalente a uma pincelada e reafirma a vitalidade da pintura. Entretanto, é comum aos dois artistas que o rasgo sirva para quebrar a simulação, a representação e o simbolismo que acompanham a pintura. 24. Antoni Tàpies e Karin Lambrecht também se aproximam no constante uso de diferentes materiais ou resíduos, retirando deles qualquer simbolismo. Em comum, além do uso da forma da cruz, está o processo no qual a matéria se torna signo. 25. Para a artista, o grafismo da cruz é um elemento visual que carrega, simul-
taneamente, uma memória do humano e do divino. Além de a cruz remeter ao sacrifício perfeito de Jesus, vale como forma geométrica que remete à divisão do
plano em quatro partes ou ao cruzamento entre áreas espaciais. O desenho da cruz pode até indicar que o corpo humano, na posição de braços abertos, cria nos espaços de suas fronteiras planos que tendem ao infinito. Em Lambrecht, a cruz aponta para a reunião entre ética e estética e oferece, inclusive, uma primeira lembrança para aproximar Karin Lambrecht de Joseph Beuys. 26. Karin Lambrecht dialoga com Beuys ao atribuir novos significados aos ma-
teriais, recurso que impede um tipo de pintura autotélica. Nesse sentido, a artista abre possibilidades para a pintura, agregando ao trabalho diferentes tipos de tecidos e de metais, e também cera, mel, barro ou folha de ouro. Para Karin Lambrecht, esses materiais ajudam a pensar a pintura para além da tela e da moldura e se mostram portadores de verdades próprias, trazendo em si propriedades, cores e formas específicas. 27. As manchas nas obras de Karin Lambrecht portam a liberdade para a cons-
trução da forma. Mesmo consideradas as devidas diferenças, pode-se perceber em Karin Lambrecht um tipo de realce das áreas coloridas praticadas por Helen Frankenthaler na sua pintura de superfície. É comum às duas artistas trabalharem na tela sem o preparo anterior de uma base, como é costume fazer. Assim, estabelece-se uma relação direta entre a trama da tela e o pigmento, em um processo que permite gerar manchas que são puramente cores. 28. Karin Lambrecht é uma artista que no plano do sensível se inclui numa cons-
telação formada por Vassíli Kandínski, Paul Klee, Barnett Newman e, no Brasil, Maria Leontina e Iberê Camargo. Esses artistas criaram uma tradição na qual a arte revela um estado da alma. Karin Lambrecht conheceu Iberê Camargo quando ela retornou de Berlim para Porto Alegre, no início de 1983. O fervor que Iberê dedicava à pintura causou grande impacto na formação da pintora. 29. Assim como Iberê Camargo, Karin Lambrecht entende a pintura como um labi-
rinto para perder-se e encontrar-se, guiando-se pelos movimentos das pinceladas. Ambos trabalham camadas e camadas de tintas com resultados diferentes e próprios, atingidos de forma semelhante pela luz soturna de Porto Alegre, que propicia cores sóbrias e baixas, obtidas pelos óxidos de ferro, terras e azuis surpreendentes. 30. Os trabalhos da artista ainda podem deixar perceber um descarregamento de energia que a aproxima da action paiting, observável na atitude de enfrentar vigorosamente tanto a tela quanto a realidade social. 31. Karin Lambrecht fez uma residência com Louise Bourgeois, em Nova York, en-
tre agosto e outubro de 1986, em decorrência de uma bolsa do governo americano. Em comum entre elas, um pensamento baseado no mundo interno pessoal,
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e também as constantes referências às memórias contidas. Assim como Bourgeois, Karin Lambrecht se utiliza de tecidos, argilas, metais e madeira. Porém, o uso desses materiais pelas duas artistas não é apenas um exercício formal: está impregnado de vida vivida. 32. Bourgeois e Karin Lambrecht possuem como referência significativa a casa,
temática recorrente em Karin de diferentes maneiras: na forma do signo escrito, na construção de pequenas unidades tridimensionais em papel (série “Aldeias”, 2011), nas instalações e ambientes (trabalho na v Bienal do Mercosul e projeto Tenda Penetrável) e por recorrências constantes à sua própria casa e adjacências. Outro aspecto comum às duas artistas é o corpo humano ou animal, como se explicita nos trabalhos de Karin Lambrecht com sangue de carneiros e nos desenhos realizados com os órgãos retirados em locais de abate. A partir de alguns signos inscritos em diferentes obras da artista, pode-se montar um fluxo que sintetiza essas preocupações: “casa”, “Santa Casa”, “universo”, “caixa”, “circulação”, “corpo”. 33. Essas duas artistas se movem no interior do círculo das afetividades. Em
Bourgeois, o “pai de sangue”; em Lambrecht, o “pai mitológico”. Pontuando suas pinturas e desenhos, Karin Lambrecht evoca inúmeras vezes a história das religiões e nomeia os signos “pai”, “mãe”, “filho”, “José”, “Maria”, “Jesus”. Karin realiza um leve movimento do mitológico para o religioso, como mostra a obra Pai, 2008, na qual utiliza sangue de carneiro, aquarela, desenho, fotocópia e colagem, montada em 77 lâminas de acrílico. O sangue de carneiro, coletado em pequenas cruzes de tecido, foi obtido em Israel. Desde então a artista não produziu nenhuma outra obra com sangue. Pai parte da genealogia de Jesus segundo o Evangelho de São Lucas e consta de 77 nomeações de pais e filhos: Jesus, filho de José, e José de Eli, e Eli de Matate, e Matate de Levi, […], e Adão de Deus. O deslizamento do mitológico para o religioso prossegue para o afetivo, pois o pai é também o pai terreno, familiar. Novamente, Karin Lambrecht reencontra Bourgeois. 34. No pensamento e na produção de Karin Lambrecht, perpassam as dimensões de religiosidade e da religião, verificadas de imediato no uso da simbologia cristã (histórica e arcaica) e na referência marcante da figura de Jesus Cristo. O divino e o laico se entrelaçam, desdobrando-se nos planos da mitologia e no espaço físico dos abatedouros. Cada obra produzida é resultado de um ritual de trabalho na instância do estético. Nesse aspecto, pode-se retomar outra aproximação entre Karin Lambrecht e Beuys ao se considerar o sentido ritualístico da prática artística. Em Beuys, como em Karin Lambrecht, importa a prática como fator que imprime sentido à arte. 35. Pensar e trabalhar a cor, com a cor – essas são as preocupações constantes de
Karin Lambrecht. As cores na obra da artista são autônomas, originam seu próprio
significado, não querem e não podem se mostrar como cópia ou memória de outros seres ou partículas circundantes. Há uma identificação imediata entre espaço e cor. 36. A relação com a natureza é visceral em Karin Lambrecht. A terra é a grande
provedora da sua arte – é ela que fornece os pigmentos que emitem cores tão procuradas; é a argamassa que participa diretamente da sua forma bruta em algumas obras; é o solo no qual se deposita o sangue do animal abatido; e é o território que sustenta e circunda a casa-ateliê da artista. (O pigmento é a cor-matéria, encontrado em forma bruta na natureza, diferentemente da cor retirada dos tubos industrializados. Na Alemanha, ainda hoje, funciona o moinho Kremer Pigmente, que continua moendo pedras, transformando-as em partículas de cores.) 37. Karin Lambrecht pode adquirir pigmentos comercialmente – a terra de siena
italiana, por exemplo. Mas também vai buscar pessoalmente porções de terra em vários sítios: cavando o seu jardim, obtém pigmentos marrons; no interior do Rio Grande do Sul consegue terras vermelhas nas zonas das Missões e de Santa Rosa; na região de Brasília encontra terras alaranjadas; na Bahia, nas falésias de monte Pascoal e Caraíva, recolhe cores rosa e brancas; e na Amazônia retira pigmentos cinza e marrons. A cor utilizada por Karin Lambrecht é matéria orgânica que, antes de chegar ao suporte, nos rodeia e nela pisamos. A natureza como espectro generoso da irradiação das cores. 38. Em uma pintura de 2011, de grande dimensão, da série “Territórios d’Areia”,
existe uma mancha cinza (com vizinhanças de azuis-claros) obtida a partir de madeira queimada. A artista se utiliza muito do pigmento de origem mineral, mas algumas vezes a origem é vegetal. 39. No começo de 2011, Karin Lambrecht iniciou a série de pinturas “Territórios d’Areia”, dominadas por amplos campos abertos de cores luminosas, às vezes complementares, outras opostas. Essa série se divide em dois subconjuntos: “Cisternas” e “Moinhos de Vento”. A viagem a Jerusalém, em 2010, talvez tenha impregnado a artista com as sensações do deserto ou da vastidão. 40. Karin Lambrecht trabalha com cores quentes, cores diurnas, racionais, como
vermelho, laranja, amarelo; e com cores frias, noturnas, oníricas, como azul, lilás, verde, cinza e preto. Cada cor gerada pela artista é sempre múltipla, plural, desdobrando-se em diferentes tons e gamas. 41. As cores são capazes de definir as fases na trajetória de Karin Lambrecht. A artista utilizou bastante o pigmento azul-cobalto nos anos 1980 e 1990, período marcante, engendrado por uma única cor. No fim dos anos 1990, a artista passa a usar muito o vermelho. Desde o fim da primeira década do século xxi, algumas
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cores convivem no ampliado espectro de pigmentos. Agora, junto ao vermelho ela pode introduzir a cor terra para que ele não domine totalmente a tela. Ou acrescentar o branco para abrir portas na pintura. Ou trazer um verde… 42. Algumas vezes Karin Lambrecht deixa suas telas descansarem ao relento como preparação ou finalização do trabalho. Nesse processo elas são umedecidas pelo sereno, marcadas pelo tempo, registradas pelo peso de pedras ou tijolos, e até podem guardar vestígios de pegadas de animais. Essas ocorrências nascidas ao ar livre são incorporadas à obra. 43. Os trabalhos em papéis, caixas tridimensionais ou instalações não são reali-
zados como estudo ou estágios anteriores para a pintura. Karin Lambrecht desenvolve projetos nesses meios de forma integrada com o conjunto da sua obra, considerando as especificidades de cada linguagem. 44. Os desenhos, caixas e instalações são oportunidades para instigantes conquis-
tas e de circulação no hibridismo de linguagens. A artista está sempre ampliando os limites dos diferentes suportes. 45. Karin Lambrecht é uma artista sensível ao seu tempo.
Da arte e vida
46. A suspensão de cores e formas densas e radicais, a composição beirando a
instabilidade e os desdobramentos contínuos de planos nas pinturas permitem construir uma abordagem da obra de Karin Lambrecht tendo por base o aguçamento crítico de sua visão de mundo e estabelecer, assim, uma estética da vida precária. A arte emoldurada pela postura crítica abre, então, uma possibilidade para a análise da produção da artista: tentar entender a maneira como a arte pode ser uma forma de investigar a sociedade, indicando seus paradoxos, suas mazelas e os impedimentos interpostos aos sujeitos no transcorrer da vida. Ao se considerar tanto as pinturas como as obras resultantes dos abates de carneiros, percebe-se como Karin Lambrecht se afronta com a banalidade do mal, ressaltando o valor da vida. É possível apreender a obra da artista sob uma perspectiva que contemple as dimensões ética e política, ao se perceber nela uma posição de recusa de certas relações sociais instauradas. 47. Em texto sobre Karin Lambrecht, Agnaldo Farias aponta que nessa artista se
entrecruzam uma consciência política do mundo e um olhar voltado ao que há
1. Agnaldo Farias, Icleia Cattani & Miguel Chaia, Karin Lambrecht. Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, 2002, p. 14. 2. Giorgio Agamben, Homo sacer: O poder soberano e a vida nua i, trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: ufmg, 2002, p. 145.
de oculto na realidade, ao escrever que seus trabalhos parecem localizados na política e na religião.1 48. A produção de Karin Lambrecht pode ser analisada perseguindo um indício
latente em seus trabalhos: observar como sua visão é percebida a partir do sangue, tido como um contundente sobejo da civilização contemporânea. Ela se volta para restos desprezados a fim de chamar a atenção para um fenômeno estrutural dos dias atuais, que é a aniquilação e o desaparecimento do corpo como fato econômico-político. A sociedade, nessa etapa de capitalismo tardio, está saturada de objetos descartáveis, pondo a vida humana e animal no interior desse circuito mercadológico de produção e consumo. Nesse sentido, pode-se entender a morte do carneiro como metáfora de uma sociedade que reduz o significado da vida. 49. Em uma pintura de 2003, Genealogia de Jesus, com inscrições de dezenas de
nomes, Karin Lambrecht desnuda essa referência pictórica com a simbologia do carneiro. Tanto a morte de Cristo como a do carneiro são símbolos bíblicos que devem ser ressignificados na laica contemporaneidade. Visualidades e ideias propostas por Karin Lambrecht corroboram o entendimento da precária vida do homem contemporâneo, num sentido próximo àquele pensado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, que analisa o significado das vidas nuas e das mortes banais na história das civilizações, para detectar a força do poder soberano e as ocorrências do mal enquanto banalidades. Para esse autor, “vida nua” é aquela que pode ser matada, por ter sido descartada pelo poder /sociedade, e o conceito de homo sacer, figura do direito romano, remete a uma vida matável ou vida nua que não merece ser vivida. Tal pessoa se situa numa zona de indiferenciação, simultaneamente sob controle jurídico-político, mas também fora dele: “O conceito de ‘vida sem valor’ (ou ‘indigna de ser vivida’) se aplica antes de tudo aos indivíduos que devem ser considerados ‘incuravelmente perdidos’ em seguida a uma doença ou ferimento e que, em plena consciência de sua condição, desejam absolutamente a ‘liberação’ […] e tenham manifestado de algum modo esse desejo”.2 A vida matável remete à impossibilidade de o capitalismo funcionar sem se transformar em uma máquina de morte. A vida está constantemente exposta à morte, por ser jurídica e institucionalmente descartável. 50. Ganha maior significado, ainda, o sentido que Karin Lambrecht imprime à
sua ação artística, quando compreende que a utilização do sangue de carneiro supõe que esse material deva ser recolhido e utilizado na arte como forma de recusa ao fato de o sangue animal ser descartado pela sociedade de consumo. Ao se apropriar desse líquido vital, a artista quer expressar visualmente a ideia de que nenhuma vida é descartável, e deixar transparecer o desgosto pela vida matável, retirando-a do espaço de indiferenciação. O ato de recolher o sangue do animal é, ao mesmo tempo, estético e ético. Assim como o ritual do abate do carneiro, os
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trabalhos da artista permitem compreender que o homem contemporâneo vive o tempo fora do eixo – The time is out of joint [O tempo é de terror], no dizer de Hamlet, ao se referir aos acontecimentos do reino da Dinamarca.3 Tais sensações de incômodo que o sujeito sente no mundo podem ser percebidas na visualidade construída por Karin Lambrecht. 51. Nas superfícies das telas, os pigmentos naturais e as cores criam formas que
flutuam sem conseguir ser claramente nominadas. As composições das pinturas imprimem à obra uma instabilidade permanente. É uma pintura que pode ser incluída no interior de um momento pós-utópico e de desconfiança quanto ao andamento de projetos com excesso de racionalismos. 52. Numa tela, sem título, concluída no final de 2003, uma forma de cor marrom
ocupa o meio de um amplo espaço tingido por tênues tons de amarelo e ocre. Essa figura central, longilínea, medindo 65 × 10 cm de largura, parece pequena na superfície da tela de 190 × 155 cm. Entretanto, ela adquire massa corpórea pelas densas pinceladas de tinta a óleo e pela cor escura contrastante com o fundo claro. Essa forma espessa que flutua na tela se alarga na parte superior, definindo o formato ou o perfil de uma cabeça, parecendo representar a silhueta elementar de um ser humano, que ganha contundência pela alta densidade da tinta e por estar circundada por uma estreita aura, formada pela expansão do óleo. Essa aura revela a continuidade da movimentação desse material pictórico e, também, da vida no sentido geral. A figura se encontra rodeada por sinais e símbolos, destacando-se um diagrama de linhas e marcas originado na altura da sua cabeça e que se projeta para o lado direito da tela, terminando numa coluna de palavras como “animal”, “plantas”, “vazio”, “nada” e outras não legíveis. No lado esquerdo da tela, do fundo das áreas amarelas e ocre, emerge uma frase quase ilegível, escrita em alemão: Der Stein fällt herunter, cuja tradução literal seria “a pedra cai para baixo”. Sempre é significativo o movimento nos trabalhos da artista; vale reforçar a ênfase no movimento para baixo. Essa pintura permite associar a imagem do corpo humano à densidade do barro e à sua precária condição de estar na terra. A figura central parece expressar a ideia do anjo caído, ou seja, do homem caído ou, ainda, do ser largado. A pintura mostra que esse ser pulsa de vida, experimentando os confrontos que perpassam os reinos biológicos, a condição existencial e a contingência histórica. 53. Karin Lambrecht realizou, nessa tela de 2003 [p. 44], uma representação do
homem nas condições da difícil sociabilidade contemporânea. A forma que pode ser interpretada como contorno humano se mantém em pé com dificuldade, ao se considerar que ao seu lado pequenas formas se desmancham e mesmo porque está muito afastada da linha horizontal. Não se trata mais do homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, o homem como medida do universo, correspondendo a uma
3. W. Shakespeare, Hamlet, trad. Barbara Heliodora & Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
estrutura harmoniosa do mundo. Essa forma produzida por Karin Lambrecht lembra o homem pressionado por circunstâncias internas e externas, recolhido em face do vasto e silencioso espaço circundante. Entretanto, essa figura se mantém erguida contra as adversidades, expande-se na sua aura. 54. A arte de Karin Lambrecht se inscreve numa linhagem fortemente marcada
por Goya, que produziu uma visualidade do horror com suas gravuras e pinturas – desde O fuzilamento de maio, 1808, até a produção das gravuras e das pinturas da fase negra. Nessa tendência, na qual se inclui a artista, se encontram artistas como David, A morte de Marat, 1793; Picasso, Guernica, 1937; Francis Bacon (em seus desfigurados e terrificantes gritos humanos); e, recentemente, no Brasil, Hélio Oiticica: a série “Homenagem a Cara de Cavalo”, 1965-66; Artur Barrio, as Trouxas ensanguentadas, 1969, e o Livro de carne, 1978-79; Antonio Henrique Amaral com a série “Campo de Batalha”, 1973, e A morte no sábado: Tributo a Vladimir Herzog, 1974; Iberê Camargo com as suas últimas pinturas; e a instalação 111, de Nuno Ramos, 1992. Todos esses artistas exprimem a visualidade da repressão social e política, e também transmitem a visão da dor da vida interrompida pela morte violenta. Não importa que se trate do herói ou do bandido, do homem ou do animal, mas sim a constatação de que a arte acontece no gesto que resiste ao drama humano.
4. W. Shakespeare, Macbeth, trad. Manuel Bandeira. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 155. 5. Icleia Borsa Cattani, “O corpo, a mão, o vestígio: Sobre a obra Morte eu sou teu, de Karin Lambrecht”, in Agnaldo Farias et. al. Karin Lambrecht. Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, 2002. .
55. Da mesma forma como para muitos outros artistas, para Karin Lambrecht a morte também é uma referência constante na construção da sua expressão poética. Entretanto, a artista não trabalha esse tema no sentido da paralisação existencial, nem como significado de um niilismo negativo, mas como vertigem inevitável a ser enfrentada pelo homem, reafirmando a importância da lembrança da temporalidade passageira da vida, da mesma maneira que Shake speare, reconhecendo “nosso caminho para o pó da morte”, escreveu “Que a vida / É uma sombra ambulante; um pobre ator / Que gesticula em cena uma hora ou duas, / […] Significando nada!”, na tradução de Manuel Bandeira para Macbeth.4 Para Karin Lambrecht, a morte como fato natural se desdobra nos planos filosófico e ambiental. Quanto ao primeiro, vislumbra-se em suas obras a preocupação com o destino do sujeito e o gozo da liberdade na contemporaneidade; no que se refere à questão ambiental, percebe-se nos trabalhos a apreensão com a Terra – precioso locus de geração e sobrevivência do ser humano e de engendramento de suas relações sociais. Nesse sentido, Icleia Borsa Cattani, ao analisar a obra Morte eu sou teu, 1997, de Karin Lambrecht, realizada com sangue de carneiro sobre toalha e papel, afirmou que, para essa artista, a pintura “deve integrar-se à natureza, à vida – e à morte, uma vez que a morte faz parte da natureza dos seres vivos”.5 56. A obra de Karin Lambrecht alcança um resultado poético devido a elemen-
tos dramáticos que se fazem presentes por influência do expressionismo e que
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permitem observar aproximações da artista com o expressionismo abstrato norte-americano. Do expressionismo, a artista guarda a sensibilidade para captar o espírito da época, evocando um grito contido, não aquele que dá ordens para engendrar uma ação política, mas sim o som revelador da subjetividade da artista. Nessa direção, para Mark Rothko, “a experiência trágica é a única fonte da arte”; ele “tentou transformar suas pinturas em experiências de tragédia e êxtase, como condições básicas de existência. O objetivo de trabalho de uma vida era expressar a essência do universal drama humano”.6 O expressionismo cria circunstâncias estéticas propícias para expressar as (im)possibilidades da arte e da vida. Constatar a pertinência de tais aproximações permite levantar alguns indícios para aprofundar a busca do sentimento trágico na obra de Karin Lambrecht. A tragédia, como se quer atribuir aos trabalhos da artista, significa que suas obras possuem conexões com o destino coletivo. E a ideia de tragédia, requerida para a análise da obra de Karin Lambrecht, está fundamentada no reconhecimento de que a sociedade vive relações de conflitos agônicos e que várias tensões atravessam com frequência a vida dos indivíduos. Se o acompanhamento e o registro da morte do carneiro explicitam uma visão trágica do mundo, essa dimensão também se desdobra na pintura que, no aspecto visual, não comporta dicotomias entre o bem e o mal, não julga a necessidade da presença de uma clareza lógica e reconhece que o mundo é insistentemente criado por zonas de sombras e luzes. 57. A ideia de tragédia em Karin Lambrecht não está ligada a uma concepção pes-
simista ou negativa da vida. Ao contrário, essa dimensão trágica é uma resposta ativa à vida, uma aposta contra a vida matável. Ao deixar vislumbrar nos seus trabalhos uma estética trágica, próxima à de Nietzsche, ela demonstra que a arte, ao alcançar um patamar de conhecimento e ação, transcende o desespero ou a resignação.7 Karin Lambrecht oferece imagens que nascem da tensão entre o frágil e o forte, o indefinido e o construído, e entre a delicada superfície e a grossa matéria. Cada obra traz sempre a possibilidade de um novo equilíbrio entre os elementos visuais, como se fosse possível superar o estado de guerra por novas relações harmoniosas. Essas tensões e possibilidades futuras estão sintetizadas no sangue: uma coisa frágil quando deixa escapar a vida, mas forte quando seu fluxo ininterrupto dá continuidade à vida. Assim também ocorre com as cores utilizadas nas suas pinturas, sempre próximas dos tons da terra. 58. Em um texto no qual retoma contatos que manteve com Iberê Camargo, Ka-
rin Lambrecht destaca que uma das principais questões durante a convivência entre eles “foi a da unidade do corpo e da pintura […]. Refiro-me à unidade que possibilita ao homem sentir seu corpo em sua profissão, e nisso existe uma temporalidade também, um tempo que é real. Na pintura, vive-se um tempo que passa, não só o tempo do relógio mas o tempo biológico”.8
6. Jacob Baal-Teshuva, Rothko. Colônia: Taschen, 2003, p. 17. 7. Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; Assim falou Zaratustra, trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 8. Karin Lambrecht, “Iberê Camargo, lembranças”, in S. Salzstein (org.), Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 189.
59. Performances, instalações, pinturas e desenhos explicitam a preocupação da
9. Michel Foucault, Microfísica do poder, trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 10. Id., ibid., p. 22.
artista com o corpo, principalmente ao se considerar a necessidade da permanência da unidade entre corpo e obra. Tal inquietação de Karin Lambrecht se torna uma forma de resistência ao se verificar que o corpo se tornou o foco prioritário do poder.9 Na sociedade de controle que nos circunda, investe-se nele para criar pessoas dóceis, criaturas adestradas e que interiorizam a coerção. No momento em que a política se transforma em biopolítica, Karin Lambrecht expõe a necessidade do cuidado com o corpo. Refere-se diretamente à sua entrega dócil no processo do abate do carneiro ou então insinua a presença corpórea nas formas que flutuam no espaço visual, em alguns momentos radicalmente definidas pela massa de tinta, em outros representadas por manchas sem maiores definições. 60. Karin Lambrecht trata o corpo com ampla liberdade. Em algumas obras, tra-
balha esse tema apresentando-o diretamente, como nos desenhos criados com os órgãos do carneiro – que logo são também órgãos humanos. O coração, o fígado, o pulmão e os rins deixam seus vestígios reconhecíveis no papel, indicando a fragmentação do corpo e sua fragilidade diante de qualquer poder externo. Em outros trabalhos, Karin Lambrecht dá apenas indicações desse tema quando, por meio de palavras ou códigos dispostos como elementos gráficos na composição da obra, reafirma o significado do corpo. Nesse caso aparecem – ora explícita, ora veladamente – frases nas pinturas e desenhos, como as seguintes: “Subterra. Meu corpo, meu + corpo. Corpo × terra”; “Circulação sanguínea. Energia”; “Caixa. Universo. Aqua-aer: circulatio”; e ainda “Putrefatio. Forma deitada”. 61. O biopoder age sobre a população humana, na relação que se estabelece entre poder e corpo – “O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem o marca e as ideias o dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulveri zação”. O corpo – “e tudo o que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo, […] os acontecimentos passados […] os desejos, os desfalecimentos e os erros”.10 Uma abordagem da obra de Karin Lambrecht também pode eleger o corpo como tema articulador de uma parte da sua produção, na forma como vem ocorrendo a partir de 1990. A artista, numa estética da vida nua, incorpora como recursos de linguagem e utiliza como matéria de trabalho os elementos que estão dentro do corpo (sangue e órgãos) e fora dele (terra, alimentos, peles de animais e diferentes vegetais), voltando-se, ainda, aos acontecimentos, desejos e conflitos que o atravessam (símbolos cristãos, sinalizações alquímicas, costuras de partes, incisões e cortes e referências da própria história da arte). 62. A estética do bios também está explícita no trabalho Coelhos mortos não
choram, de 1990-91, no qual é utilizada uma pele de coelho, material orgânico transfigurado em suporte que acolhe manchas de terra e uma moeda pintada de
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dourado. Recolher a pele animal é continuidade do aproveitamento de sucatas descartadas pela sociedade industrial. 63. Em 1995, aproveitando-se do acaso, Karin Lambrecht incorpora seu próprio
sangue a um trabalho exposto na biblioteca do Instituto Goethe, em Porto Alegre. Essa obra, que tratava da genealogia de Jesus, contendo inclusive referências a Maria, foi composta por uma série de desenhos, fotografias, manchas e caligrafias. Uma dessas unidades era uma fotografia da escultura de um anjo num túmulo do Cemitério Recoleta, em Buenos Aires. No manuseio dessa foto, a artista se feriu, e manchas do seu sangue marcaram a imagem. Sob um denso céu, um anjo se eleva sobre escuros mármores de túmulos e, entre ele e as nuvens, manchas caligráficas do sangue da artista o envolvem. 64. Intencionalmente, Karin Lambrecht utilizou o sangue de carneiro, pela pri-
meira vez, para realizar a já referida obra Morte eu sou teu, 1997, com desdobramentos que até hoje causam impactos em sua produção.11 65. Ela também transformou o movimento dos seres vivos em signos plásticos –
imagens da pressão de mãos ou pegadas de pés de cães e de aves em telas ou papéis são registradas quando o trabalho é deixado ao relento e entregue à natureza para que ela traga sua contribuição para a obra. 66. Deve-se observar que nos seus trabalhos a dimensão biológica só se configura
a partir da interpretação da obra da artista. É a sua arte que aponta pistas para desvelar uma postura filosófico-existencial que privilegia a relação com a natureza, ou, mais especificamente, com o homem e o animal. 67. Vale uma análise comparativa entre a produção de Karin Lambrecht e o livro O animal que logo sou, de Jacques Derrida, 2002, para melhor delinear essa estética do biológico. Ambos se detêm no olhar do animal indagando sobre a perda da unidade entre natureza, animal e homem e reconhecendo que os abatedouros dos animais são metáforas das terrificantes experiências geradas nas sociedades. Se a referência para Derrida é o olhar de um gato, em Karin Lambrecht se trata do carneiro. O filósofo e a artista produzem sob a perspectiva do animal que vê, do animal que observa. A base dessa metodologia compreensiva está na unidade (perdida?) entre animal e homem, uma vez que a diferença é apenas de nominação e de um equívoco de relato: “Quem nasceu primeiro, antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O sujeito? Quem continua, há muito tempo, sendo o déspota?”.12 Há muito tempo que o animal nos olha, e esse animal é o outro e esse animal permite indagar quem sou eu. Por isso o olhar do animal dissolve nossa vergonha de estarmos nus. “O animal, portanto, não está nu porque ele é nu.
11. Ver análise aprofundada dessa obra no texto de Icleia Borsa Cattani, “O corpo, a mão, o vestígio: Sobre a obra Morte eu sou teu, de Karin Lambrecht”, in Agnaldo Farias et. al. Karin Lambrecht. Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, 2002. 12. Jacques Derrida, O animal que logo sou, trad. Fábio Landa. São Paulo: Unesp, 2002, p. 39.
13. Id., ibid., p. 17.
Ele não tem o sentimento de sua nudez. Não há nudez na natureza”.13 A arte de Karin Lambrecht procura desnudar o mal-estar da civilização. Quem é o carneiro? Para a artista o carneiro é ela, o carneiro somos nós. O carneiro é o animal que logo sou. Carneiro morto não chora. Carneiro eu sou teu. Essa percepção estética do mundo se esparrama por todos os fazeres de Karin Lambrecht, alcançando um momento de síntese na sala especial da xxv Bienal de São Paulo, em 2002. 68. Assim como o olhar do carneiro, o olhar da artista desvela a nudez dos seres, a fragilidade do mundo e a potência da arte. 69. Mesmo quando considera os conflitos e as dores do mundo, a visualidade poética de Karin Lambrecht ganha ênfase sobre qualquer ideia ou conteúdo, levando o usufruidor a um processo de retorno à subjetividade, mergulhado num tempo lento de reflexão, sem perder sua atenção com o mundo circundante. Os trabalhos que Karin Lambrecht vem criando têm como referência o mundo e também a história da arte, caracterizando-se essencialmente como discussão da pintura, recuperando a arte como forma de resistência. Em suas obras percebe-se o esforço para reafirmar as características da pintura, pesquisando insistentemente a sua natureza para reafirmar o potencial dessa linguagem. 70. Embora a obra de Karin Lambrecht permita várias possibilidades de análises
e interpretações articuladas em torno de determinados temas, o que de fato importa para a artista é perseguir constantemente a lógica própria da pintura.
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Memórias invisíveis
Agnaldo Farias
Karin Lambrecht Em primeiro lugar, quero agradecer à Fundação Iberê Ca-
1. Transcrição, com edição de Marisa Calage e revisão técnica de Glória Ferreira, do debate com Karin Lambrecht e Agnaldo Farias, realizado em 9 fev. 2009, no âmbito do ciclo de palestras, que contou também com os debates entre Felipe Chaimovich e Lúcia Koch, e Elaine Tedesco e Rubens Mano, relativo à exposição Lugares desdobrados, difundido pelo site da Fundação Iberê Camargo (Podcast). Essa exposição, com a participação das artistas Karin Lambrecht, Lúcia Koch e Elaine Tedesco, realizou-se na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, de 10 dez. 2008 a 8 mar. 2009, com curadoria de Mônica Zielinsky.
Eu e você, 2001
margo1 pelo apoio ao meu trabalho e ao projeto que apresentei com a minha viagem a Jerusalém. Foi algo que não surgiu por causa dessa exposição, mas que é realmente importante, faz parte do meu repertório imaginário e, talvez, do mundo dos desejos de um dia ter ido para lá. Claro, poderia até um dia ter feito por conta própria, mas nunca o quis fazer assim. Eu achava que se fosse para lá, teria que fazer isso num momento certo, teria que encontrar uma razão muito concreta, muito firme e acredito que com essa obra fecho uma etapa dos meus trabalhos com sangue. Ao mesmo tempo, isso permite uma nova etapa, é como se eu tivesse criado um novo campo, um desafio também, por onde levar adiante esse trabalho. Mas também queria dizer, e gosto de dizer isso, como, lá na frente Mônica [Zielinsky] afirmou: considero-me pintora. Nunca desisti da pintura e meu trabalho com sangue faz parte desse universo. Se eu me comparasse com outros artistas que trabalham com sangue, poderia, talvez, assinalar as diferenças. Geralmente os artistas que trabalham com sangue o fazem de maneira muito forte e agressiva, como Hermann Nitsch, ou os outros austríacos, que são superconhecidos. Tudo no trabalho de Nitsch vira uma catarse ou, como ele mesmo chama, um teatro. Ele fala muito sobre a questão da verbalização das coisas. Acha que isso não deveria existir, que tudo está muito mais ligado ao mundo dos impulsos. Comecei a me aproximar do trabalho com sangue porque o Rio Grande do Sul é um grande mercado de carne, grande parte da economia é a carne mesmo, e sempre morei aqui. Então, comecei a ver esses rios de sangue e acho que ninguém é isento desse sangue; ele está sempre presente na casa de todas as pessoas. Em meu primeiro trabalho com sangue, Morte eu sou teu, de 1997, usei uma toalha de mesa da minha avó – assim, uma toalha de seda, uma toalha que sempre foi usada, por exemplo, nas festas de Natal ou de aniversário. Comecei a pensar que, nessas festas mais importantes, as mesas também estão sempre tão cheias de sangue. Esse sangue nem sempre é o mero sangue da morte, como se o sangue da morte, o nosso próprio fluxo inteiro de sangue, batesse junto. É uma pulsação, porque é como se uma coisa dependesse da outra, é como se a vida dependesse da morte. O que também não isenta os vegetarianos, porque, seria muito simples explicar assim: então vou ser vegetariano e aí termina. Não é isso. É algo muito mais imbricado. Com o passar do tempo, passei a considerar essas
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manchas de sangue como sombras. Na verdade, vou construindo meu trabalho – por isso quero dizer que trabalho como pintora, porque depois olho para aquilo tudo, não tenho uma ideia anterior, preciso ver aqueles resultados, aquelas matérias, aquelas manchas e aquilo tudo vai me levando para um próximo trabalho. Comecei a ver que essas sombras da matéria seriam como as nossas próprias sombras. A gente tem essas sombras que nem sempre se tratam de sombras metafísicas, são sombras do nosso próprio corpo, que é uma projeção; e o que sobra ali, em volta, é algo que já é de outro universo, um universo que não é estar aqui. Sempre me interessei muito por isso: esse universo cósmico não é um universo religioso, institucional. Porque acho que no momento em que a gente se apropria da Bíblia, parece que já fica conectado com instituições religiosas, mas acredito que esse universo é muito anterior e vi isso: essa coisa toda pertence ao gaúcho. Também escolhi o carneiro pelo seu tamanho, porque ele é exatamente do nosso próprio tamanho; o coração do carneiro é do tamanho do nosso coração. Quer dizer, nunca vi um coração humano, mas a gente pressente que aquele corpo se parece… é como se fosse o nosso, por dentro. Nunca escolhi o boi, o gado, que seria justamente o que representa o Rio Grande do Sul, economicamente, porque o boi, vamos dizer assim, dentro dessas questões bíblicas, não tem o lugar do carneiro. O carneiro seria uma tipologia de Cristo e de Abel. Tipologia como algo que é primordial, que tem um início, que é único, mas que, ao mesmo tempo, põe para dentro todas as nossas identidades e a nossa subjetividade. Então esse foi o motivo de escolher o carneiro. Agora já faz mais de dez anos que comecei a perseguir isso e, indo para Jerusalém, vi e comecei a suspeitar dessa relação que é bastante ancestral na forma de matar: o modo do rito judaico, que não é diferente do muçulmano. Houve portugueses de origem judaica, que fugiram da Europa (isso também descobri, embora não possa dizer a bibliografia exatamente), e o que se conta é que eles vieram para o Brasil e do Brasil foram para os Estados Unidos. Acho que isso foi uma herança deixada aqui no Rio Grande do Sul e que é transmitida: é o ofício de açougueiro, transmitido de pai para filho e que se repete sempre igual. Em Israel, fui a dois matadouros e entendi o que a carne kosher significa. Conversei com um veterinário, que me disse: “Cada vez que se mata um animal aqui o rabino está presente”. E disse ainda que o rabino age com se agia há dois mil anos, é empírico: “Quando o rabino diz que a carne é boa, a carne é boa”. Quer dizer, quando o pessoal da ciência vai lá e diz que a carne é boa para comer e o rabino descarta, esse pessoal vai olhar, o animal tinha um tumor, uma doença. Então o rabino, que não estudou, tem um saber que é transmitido de pai para filho. Os rabinos faziam isso em uma época em que isso era determinante para a sobrevivência das tribos: o que eles podiam ou não comer. Essa conversa com o veterinário desmitificou também o dado religioso, porque assim, vamos dizer, tem sempre algo prático junto. Na verdade, é isso o que me prende também: essa relação mais direta com tudo isso, com o organismo. Esse organismo que é de todos: o animal, assim como o nosso próprio organismo. Igualdade, que busquei.
Mas, voltando: quando comecei esse trabalho nunca o fiz com a intenção de agredir a sociedade, porque na arte às vezes têm artistas que o fazem. Na verdade, comecei a buscar alguma coisa, e quanto mais vou escavando mais essa coisa causa dificuldade. São como coisas que a sociedade gostaria de deixar escondidas embaixo do tapete. E quanto mais se traz para cima, mais funciona como um espelho direto. O trabalho com sangue, creio, tem um pouco disso. Ele traz alguma coisa que, na verdade, nunca deveria ser vista, de preferência por ninguém. É como se eu fosse escavar e trazer alguma coisa, e a trago intuitivamente. Nunca trago isso como uma mensagem porque para mim tiraria toda a graça de uma descoberta. Não é essa a intenção: trazer alguma coisa que diga isso ou aquilo diretamente, exatamente. Aí tem a herança da arte abstrata: considero-me uma pintora abstrata… mas onde o abstrato predomina? Algo que vem, que tem que estar ali, presente, mas sem dizer tudo ao mesmo tempo… quer dizer, não sei se consigo. Trabalho um pouco assim, como se fosse atrás de algo, mas eu mesma não quero saber exatamente o significado de tudo isso. Sempre vai sobrar uma margem livre, onde ela pode ficar, onde os próprios materiais, onde tudo aquilo pode existir sem estar sob um controle. Não gosto de controlar isso, na verdade. O trabalho Pai se refere à genealogia de Jesus conforme São Lucas. Os evangelhos são, na verdade, biografias de Jesus. São Mateus interpretou de um jeito, São João de outro e São Lucas de outro. Se a gente ler todos eles, sempre trazem a mesma coisa: quando Jesus nasceu, como foi depois todo o desenrolar da sua vida. No Evangelho de Lucas tem uma genealogia de Jesus (bem como o que está na minha sala nesta exposição). Escrevo desde os anos 1990. É como um mantra ou uma oração: é sempre pai-e-filho-pai-e-filho. A forma como o mostrei, nesta exposição [Lugares desdobrados], na Fundação Iberê Camargo, tem outro dado importante, que é a memória. A memória e o tempo, porque se o olhamos meio de lado se vê um túnel, um tubo, que é como a gente geralmente imagina o tempo, como um tubo que vai para frente ou para trás. Sempre se pensa no passado ou no futuro. Se você olha Pai de frente, esse tubo desaparece. Fica todo esse tempo um mesmo tempo e todos esses pais e filhos. Começa em Jesus e vai até Deus, eles todos, lado a lado. O tempo, na verdade, o tempo como a gente o calcula, é um tempo extremamente tenso na nossa sociedade. Ele nos põe sob pressão; se olharmos o tempo de lado é como se tudo coexistisse, mais flutuantemente. Em Israel, tive a participação de outras pessoas. Pedi apoio para a Fundação Iberê Camargo e eles atenderam maravilhosamente. Lá, tive uma fotógrafa trabalhando comigo, a Yael Engelhart, e o seu assistente Roy Bergals. Também Shalom Klieneman, um cineasta jovem, que para ajudar sua economia (ele estudou história) trabalhava como guia. Tudo que fiz lá foi aula de história antiga. A Yael se encarregava da documentação porque eu própria não podia, estava ocupada com o meu trabalho. Então tive essa pequena equipe trabalhando junto comigo e creio também que esse trabalho, vamos dizer, invisivelmente, essas manchas
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que eu trouxe, elas, por serem de lá, têm que trazer de alguma forma um pouco daquela matéria. Acredito que isso ficou impregnado, assim como as manchas do Rio Grande do Sul, no meu trabalho. Essa memória, acho, é invisível, não vai estar escrito ali, mas o fato de ter estado lá ou ter feito outras vezes isso aqui traz para dentro do trabalho um dado que não é visto, mas que está presente, e pode influenciar depois a formalização, vamos dizer, do trabalho. Acho que o resumo é esse. Agnaldo Farias Queria antes de tudo fazer perguntas, porque a ideia é que
tudo aqui seja bastante informal. Vou tentar, na medida do possível, levar adiante a ideia da informalidade, porque sinto que meu papel aqui também é, em certa medida, representá-los, fazer algumas perguntas que todos têm vontade de fazer. É importante que não seja apenas um diálogo com a artista, mas, ampliadamente, um diálogo com todos. Pretendo destravar esse processo, nada além disso. De qualquer maneira, em primeiro lugar, queria agradecer profundamente a oportunidade, o privilégio e a honra. Visitar uma exposição dessa qualidade não é simples. Ela fica trabalhando dentro da gente e as obras são potentes exatamente porque não se dão com facilidade. Funciona como uma espécie de vértice, tem um lastro no meio, que é um trabalho de terra e sangue da Karin e na entrada você tem um trabalho que te coloca para fora dele. É muito curioso: entra-se em um abrigo. É um casulo, uma casa dentro dessa casa e elas se contrapõem muito fortemente porque o entorno é branco, tem uma pureza. Tudo isso é muito fascinante porque acho que são essas construções, essas narrativas, essas angulações, esse jogo de olhares que fazem com que uma exposição seja alguma coisa memorável. Não apenas o arranjo do trabalho no espaço, mas também as maneiras como esses trabalhos se potencializam. Eles dialogam, estabelecem uma interlocução cerrada e aí eles crescem e crescem na nossa memória. A gente não entende muito bem o que está acontecendo, mas funciona. Muito recentemente tive a oportunidade de fazer uma exposição sobre os anos 1980 e 1990,2 os artistas da geração da Karin. Foi muito curioso porque quando a gente monta uma exposição é o momento de colocar no espaço essas ideias, traduzi-las. Então criei uma sala que, a meu ver, era o grande momento da exposição. Era a última sala. Selecionei cuidadosamente os trabalhos, mas indubitavelmente aquela última sala era uma sala na qual eu queria criar um problema. Era onde me arriscava mais numa proposição. Juntei o trabalho do Nuno Ramos e do Daniel Senise, que acho dois vetores, duas forças, e são divergentes, um contraste muito forte, e diante deles, ao lado do Nuno Ramos, estava a Karin. A ideia ali também era uma afirmação, porque quando comecei, vindo da arquitetura, a Geração 80 já estava rolando. Revisitando aqueles textos, vendo aquelas obras todas, é muito curioso, porque você, Karin, estava na exposição Como vai você, Geração 80? [Parque Lage, Rio de Janeiro, 1984]. Uma exposição que era um balaio de gatos. Ali, realmente, tinha de tudo. Era como um desses serviços de bufê impossíveis, que oferece de feijoada a atum grelhado, enfim, coisas incompatíveis estavam
2. Agnaldo Farias, Geração da virada. 80 / 90 Modernos-Pós-Modernos etc. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009. [N. E.]
3. Lygia Clark, “Carta a Mondrian”. Parte do diário da artista. Publicada em Lygia Clark. Barcelona / Marselha, Porto, Bruxelas, Rio de Janeiro: Fundació Tàpies / Galeries Contemporaines des Musées de Marseille / Fundação de Serralves / Société des Expositions du Palais de Beaux-Arts / Paço Imperial, 1999 [Republicado em G. Ferreira & C. Cotrim (orgs.), Escritos de artistas anos 60/70, op. cit.]
lá dentro. Desde piadas até trabalhos mais consistentes, trabalhos mais sérios, mais sisudos e, aí, confesso que com o seu trabalho, quando cheguei nessa área já era 1987, 1988, foi o que mais me chamou atenção no sentido de que não pertencia a nenhum grupo. Todos os outros pertenciam de um modo ou de outro. Tem-se aqui mesmo a exposição que hoje chegou a São Paulo, para nossa sorte, do Jorginho Guinle, que é um artista seminal, é um artista que produziu outros artistas. A obra do Fábio Miguez, por exemplo, lá em São Paulo, é uma que também nasce do diálogo com a obra do Jorginho Guinle: ele discute com a tradição moderna. O trabalho do grupo da Casa 7, o trabalho da Leda, do Zerbini enfim, que tem uma ligação mais pop. Quer dizer, têm-se algumas vertentes, mas o trabalho da Karin não dava para encaixar, não entrava em nenhum desses lugares. A primeira pergunta é muito trivial: enfim, com quem você conversava? Essa é uma pergunta que nunca fiz a você. Aqui em Porto Alegre, com quem você conversava? E à distância? Porque é evidente que a gente conversa à distância. Por exemplo, a Lygia Clark escreve aquela carta para o Mondrian, e o Mondrian já morto…3 É uma sensação. Lembro-me que tive essa conversa. Eu dava aula de filosofia no colégio às sete e vinte da manhã para o primeiro ano colegial, vocês podem imaginar o desafio. Queria aprender a dar aula e achava que conseguiria em um colégio – porque em faculdade você não aprende a dar aula, e para adolescentes, e de filosofia, quer dizer, é o peixe mais difícil de se vender. Estava dando as Meditações de Descartes, e tinha um cara que sentava na primeira fila, o Marcelinho. Ele usava uns óculos escuros às sete e vinte da manhã, já entrava de óculos escuros, se vocês entendem o que quero dizer. Estava dando as Meditações de Descartes e o Marcelinho entrou em êxtase e falou assim: “É demais! Esse cara é demais! Pô, quem é esse cara? Preciso conhecer esse cara!”. Eu falei: “Bacana, Marcelinho, legal. Ele morreu há quatro séculos, mas acho que, de fato, você tem muito em comum com ele”. Ele virou leitor de Descartes, um surfista que lia Descartes com dezesseis anos por causa disso. Então existem os cruzamentos mais estranhos, estapafúrdios. Não importa o quadrante, não importa o lugar onde você viva, onde você tenha nascido, as tais das afinidades eletivas são inesperadas, extemporâneas. Não são contabilizadas e… isso é frequente. Quero saber qual era o seu círculo no início até você chegar ao seu trabalho propriamente. A geração Como vai você, Geração 80? é de 1980, 1984, você nem estava na Alemanha ainda, certo? E depois, quando voltou, como foi? Você já tinha umas relações na Alemanha nesse momento? Karin Antes de eu ir para a Alemanha, as pessoas, amigos meus… acho que
foram o amálgama inicial, o start. Foi no Instituto de Artes, nos chamávamos até de turma, dá para dizer, éramos jovens. A Heloisa Schneiders da Silva, a Simone Michelin, que agora está no Rio, a Regina Coeli Costa Rodrigues, que já morreu… a Heloisa também. As duas amigas, as duas morreram de lúpus. Uma coisa louca. E o Jesus Romeu Galdámez Escobar, também do Instituto de Artes.
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A gente fazia parte do Centro Acadêmico, e naquela época era muito forte a arte postal e com a arte postal vinham muitas coisas de fora, porque não se tinha nada disso. Não havia informação. Porto Alegre era realmente o fim do mundinho e aquelas cartas todas que chegavam traziam coisas a mais. Muitas delas buscavam por artistas desaparecidos, tinha muito essa questão política. Mas isso é minha lembrança. Muitas que vinham da Europa não eram assim como as da América do Sul, que eram mais políticas, se não me engano, acho que um artista desaparecido foi Jorge Caraballo, do Uruguai, e a correspondência da arte postal muitas vezes “gritava”: “Onde está Caraballo?”. Então, ao contrário daqui, o que vinha da Europa era mais leve, dá para dizer. Eles já eram mais ligados com outro universo. Eu já me interessava pela pintura, aqui em Porto Alegre, a minha amiga Heloisa também, e muitas vezes a gente conversava sobre pintura. Aqui a tradição figurativa era muito forte. Então era como se houvesse uma brecha, a gente intuía alguma coisa, mas não era estimulado. Quando fui para a Alemanha, até pensei: “Poxa, todo mundo vai pra França”. Até hoje, aqui entre nós, preferiria também ter ido para Paris… mas eu não tinha bolsa, não tinha nada e meus avós moravam na ddr na época, no lado comunista, e eu tinha um primo do lado ocidental com quem podia ficar morando um tempo. Então fui para lá, mas supercontrariada. Eu não estava ainda nem um mês por lá, me inscrevi na faculdade e quando entrei foi tudo rápido. Meu professor me aceitou no quarto semestre. Não fiz o básico e ele já disse: “Tu vem logo direto para minha sala”. A sala linda, enorme. A faculdade é linda mesmo, adoraria poder transmitir isso um dia: como a universidade lá era maravilhosa, o espaço, tudo. Logo em seguida, conheci Michael Chapman, que é o pai da minha filha. No nosso casamento aconteceu uma coisa além. Ele começou a se interessar por pintura e eu comecei a destruir essa ideia de pintura tímida que eu tinha, que vinha da herança do Brasil. Michael trabalhava com melancias, com bananas. Ele trabalhava na classe do professor Tajire, que era o professor experimental da faculdade, e eu na classe do professor Raimund Girke, que é praticamente um monocromático. Todo aquele universo do Michael me impregnou e comecei a transmiti-lo para minha pintura, já na sala do professor Girke. O Michael, por sua vez, também se influenciou pela sala do professor Girke através de mim, e começou a introduzir no seu trabalho um tipo de sistema pictórico. Ele tentou dar um curso sobre o trabalho que era tridimensional, performático, e começou a colocar aquilo tudo no plano. Pelo meu lado, comecei a destruir aquele plano, mas sem nunca me afastar do mundo pictórico. A questão da cor, tudo isso ficou presente. Acho que isso foi talvez a coisa mais forte que aconteceu na minha vida. Nunca, nada mais foi como aquela experiência. É claro que gosto do Beuys, todo mundo sabe disso, só que o Beuys tem uma mensagem. Os artistas dos anos 1960 tinham isso, mensagens ecológicas, políticas. Nunca quero isso assim, gosto que o trabalho fique mais isento, como a pintura, uma pintura que nem a do professor Girke, que às vezes é totalmente branca, mas não branco plano, são níveis de
branco com pinceladas. Quando se olha para aquilo, parece que limpa a cabeça. Gosto de sentir isso. Não sei como as pessoas olham para o meu trabalho, mas gostaria que esvaziassem, não que enchessem a cabeça. Queria que o trabalho limpasse. E quando se olha muitas vezes para um trabalho do Beuys, embora eu os ache extremamente misteriosos, mexem comigo, não se consegue concluir nada olhando para um trabalho dele. Agnaldo Quando você voltou para cá, como foi o impacto? Karin Bom, voltei, e até hoje isso é uma cicatriz na minha vida que nunca vou
4. Robert Kudielka participou do Seminário Internacional “Moderno no Limite”, referente à inauguração da Fundação Iberê Camargo, realizado entre 12 e 14 ago. 2008. [N. E.]
consertar. Na verdade, eu tinha tudo em Berlim: tinha aquele professor maravilhoso e um ateliê na faculdade. Voltei porque achei que ia ser melhor para minha filha, porque lá na época éramos muito pobres. Morávamos num apartamento em que nem tinha banheiro no quarto, ficava no corredor do edifício. Então a gente sofria essa pobreza da cidade, embora eles investissem muito em arte naquela época, tínhamos alguns recursos, mas não o suficiente para descansar, e então eu tinha que fazer a batalha dos jobs e assim a gente ia. Aí voltei e quando desci no aeroporto com a Yole no colo, pensei: “A minha vida deu errado” e até hoje às vezes penso: “Eu devia ter ficado”. Outras vezes penso que estou muito agradecida por ter voltado. Recentemente, recebemos a visita do professor Robert Kudielka,4 que foi meu professor de história da arte na Alemanha. Para mim, foi como se ele tivesse me libertado… falo tanto sobre a universidade, sem nunca ter conseguido transmitir o que ela realmente é. Quando ele fez a sua palestra, acho que todo mundo viu, aqui na Fundação Iberê Camargo, essa potência intelectual e essa paixão que ele tem pela pintura. Aqui, todos têm, tu também tens uma paixão maravilhosa pela pintura, embora pareça que fica um pouco pulverizada, e lá isso fica concentrado. Volta e meia penso em artistas como o professor Girke ou na pintura de um abstracionista americano, de repente a Joan Mitchell, por exemplo; são pinturas que ficaram na minha cabeça. Quando voltei, fui construindo tudo bem devagarzinho. Mandei meu trabalho para o Salão Nacional do Rio, por exemplo, e o Paulo Herkenhoff viu e me convidou para a exposição da Geração 80. Claro, veio a carta do Parque Lage, mas foi o Paulo que sugeriu que mandassem a carta para mim, porque ele tinha visto meu trabalho. Os organizadores da exposição naquela época nem me conheciam. Agnaldo E você foi se aproximando de alguns artistas aqui em Porto Alegre e no
Brasil, alguns [com] que você via alguma afinidade? Karin No Rio, visitei duas vezes o ateliê do Daniel Senise, que, naquela época,
ficava numa subida, junto, me parece, com três artistas. Acho que um deles era o [João] Magalhães, não era?
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Agnaldo [Angelo] Venosa, [Luiz] Pizarro e tinha mais um… Karin E o Daniel, que não estava lá, nenhum desses outros, mas vi aquela tela
do Daniel no chão, naquele ateliê de madeira antigo, um ateliê lindo… Depois, a minha primeira exposição no Rio fiz junto com a Heloisa Schneiders da Silva, na Galeria Macunaíma [Funarte, Rio de Janeiro, 25 fev. 1985 a 15 mar. 1985] e no vernissage não foi quase ninguém, mas a magia foi que apareceu o Paulo Herkenhoff junto com o Cildo Meireles. Já pensou? Era tudo que a gente podia querer, não é? O olhar deles, algumas palavras e assim foi indo. Agnaldo Estava discutindo com um amigo meu, que está morando agora em
Londres, o Moacir dos Anjos, e ele comentou como os artistas são respeitados lá. É comum você ligar a televisão e ver um artista conversando, apresentando suas ideias, e as pessoas perguntam sua opinião e escutam, não é? E aqui os artistas não têm essa respeitabilidade, no máximo se transformam em celebridades. Agora, ser uma celebridade não significa, em absoluto, que seu trabalho seja respeitado ou reconhecido. Acredito que essa vivência, na Alemanha, deve ter dado a você essa mesma sensação. Karin É diferente, é totalmente diferente. Lá fora se vê no jornal que o pib bra-
sileiro está lá em cima. Maravilhoso, todo mundo elogia, só que no dia a dia a gente não vê nada disso. Na Europa, as pessoas também são pobres: minha filha agora mora em Londres, e a muitos dos seus colegas um pouco mais velhos faltam dentes, porque o médico é grátis, mas o dentista é pago. Então, o que tem de gente da área das artes sem dentes é surpreendente. Isso eu acho emocionante, eles não desistem. O que eles fazem é o principal, a gente vai à casa deles, vai ao ateliê, aquilo é tudo. Agnaldo Isso também é curioso, tenho me encontrado com muitos artistas e
também curadores que vêm de fora e se surpreendem, especialmente em São Paulo, como os artistas têm dinheiro, mas de família. Isso é interessante, até houve nos últimos anos certa entrada no mercado, há gente que vive de arte, o que não era absolutamente comum nos anos 1980. Quem faz isso lá fora, faz porque não teria outra alternativa. Como Rilke explica: “Não conseguiria ser de outro modo a não ser aquele modo” e ele enfrenta isso, há essa diferença. No seu trabalho você fala do Beuys e o Beuys tem essa visão de que a natureza tem história, de que tudo é uma história trágica e a natureza é alterada, conspurcada. Ela é alterada, transformada pela história. Isso para quem vive na Europa é muito evidente porque lá não tem uma floresta virgem, tudo que tem é natureza modificada e essa modificação tem um custo altíssimo. Nós aqui vivemos outra realidade, mas ainda assim comungamos com o mesmo problema que a Mônica [Zielinsky], na curadoria e na explanação muito clara, apontou: que é
a perda da origem, que é o problema do desraizamento, da falta de referência. O seu trabalho, Karin, busca a origem, tem essa preocupação e é muito interessante porque essa sua ida a Jerusalém é muito curiosa, quando se conhece a proposta. Não sabia dessa proposta, nunca tínhamos conversado sobre isso e quando a vemos, a gente pensa: “Mas é claro!”. Só depois que vemos, não era claro antes. No meu caso até posso dizer, porque via errado, tenho uma miopia, uma vesguice, não tenho a clarividência que outros têm. Ter ido a Jerusalém, à Bíblia, ao Evangelho, à genealogia do filho de Deus, porque o primeiro trabalho que me chamou a atenção, o trabalho da terra, Os sem-terra, de 1988 [pintura com recortes, de aproximadamente 300 × 300 cm] – fiquei muito impressionado –, havia uma associação e havia mesmo, com o movimento dos sem-terra, mas era evidente para mim que não era apenas isso. Descobri depois, discutindo com a Karin, conversando: não é só o problema do mst, é o problema do significado da terra, da posse da terra, do que significa você fazer um marco, um “x”, se apoderar daquilo e deixar-se impregnar por aquilo também. Há essa troca. E aí há um segundo momento, que é quase como um corolário. É incrível até onde se pode chegar, como se pode ir profundamente e se vai… se você acha que não pode se esgotar. E vai cada vez mais longe e real mente não existe limite para essas coisas. Refiro-me ao seu primeiro trabalho, quando você pegou o fluxo do sangue do animal abatido e o colheu integralmente num pano que é desenrolado. E acho que é aí a entrada do sangue no seu trabalho. Marca, para mim, outra passagem, porque você tinha a fricção, cola, você tinha um processo de macular a superfície da tela com a terra, ou jogar a terra em cima, manchar, enfim, enodoar a própria superfície com a terra. Mas com o sangue é outra coisa, porque é uma vida que se esvai e é na razão da vida se esvaindo que você está coletando do começo até o fim. Então, é uma origem que está ali colocada. Bom, nessa origem que está aí colocada, você vai para Jerusalém e em Jerusalém tem o fato do carneiro, Abel… e você chega até a figura de Deus, o que é uma ousadia, escrever o nome de Deus porque não se pode escrevê-lo, não se pode inclusive enunciar esse nome. Mas há então a preocupação de buscar qual é a origem, qual é o princípio, em que momento nos perdemos e em que momento houve essa fratura e que essa fratura pode ser irremediável. Quando que no seu trabalho, para você, foi se delineando tão claramente a ideia de que era preciso buscar a origem das coisas? Karin É difícil de responder. Porque, claro, na genealogia isso é estranho. Quando vi como começa e que diz assim: “Jesus de quase trinta anos, era filho de quem se dizia José”, ou algo mais ou menos assim, essa é a frase. Então comecei a ver que, na verdade, tudo trata de corpos, e com isso, se você olhar bem, desmistifica. Lá em cima tudo está em paz, não é? Desmitifica o próprio Deus. É como se a origem não fosse um espírito, porque dentro dessa sequência, como escreveram aquilo naquela época, o próprio Deus faz parte dessa natureza terrestre, embora,
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claro, seja parte também de um cosmo maior. Naquela época, o homem pensava mais poeticamente, dá para dizer, porque a Bíblia é muito poética. Tem uns episódios supersangrentos, que são as relações, por exemplo, de Isaac – Machado de Assis também escreveu, Esaú e Jacó… A bênção de Jacó foi, na verdade, um truque: foi a mãe que pediu para Jacó passar na frente do irmão mais velho. A Bíblia é cheia dessas relações tensas nas famílias, mas quando se trata de observar o entorno, todas essas mensagens dos céus vêm como sinais da natureza. Por exemplo, tem uma que eu não lembro agora qual é… um toque na água seria uma conversa com o anjo. Capítulo cinco de São João, “Cura dum paralítico de Betesda”. Dá para imaginar o Oriente Médio, aquela luz, a pouca água que tem. Então aquela água lá parada – ela é parada mesmo –, quando se move já tem importância. Aquilo já vem, para eles, impregnado de algo cósmico, de algo mágico, de algo que causou essa conversa com o divino. Foi, mais ou menos, por essas conversas, por esses pontos, que sempre entrei na Bíblia. Por exemplo, tem uma passagem de Jesus quando ele encontra a irmã de Lázaro chorando: e ele vai lá ressuscitá-lo. O que acho mais bonito ainda, é que se chama “movimentos internos de Jesus”. Está escrito na Bíblia. “Quando ele a viu chorando, ele moveu-se internamente”– é mais ou menos essa frase. Dá para imaginar um homem que vê aquela tristeza toda. Sabe-se como é um sentimento, o que ele pode dentro da gente, a mudança que causa, e foi mais por esses aspectos que comecei a pensar na origem de certas coisas. Agnaldo: Faz todo o sentido quando, justamente, a gente se depara com um
mundo onde não se tem mais a pergunta sobre a origem. Você falou assim: “As pessoas aqui e em todo lugar não têm interesse pelo sangue, não querem saber disso, não querem saber se as mãos estão imaculadas”. Enfim, qual é o custo de tudo isso que nós temos? Desse conforto? Não é a gente que não quer saber? No entanto, é isso que você está querendo, está escavando o que está detrás de tudo isso. Karin: Ah, sim! Acho que, para o sangue, o Brasil se fecha absolutamente. Sou
brasileira e amo o Brasil, mas não consigo entender muito como é que a gente, nessas alturas, vive em um mundo de uma informação tão superficial. Somos bombardeados pela televisão, pelo jornal, o tempo todo, por notícias completamente desenraizadas e que estão totalmente conectadas. Vivemos essas tensões da economia, da violência, da política. Acho que o sangue, também tem isso, está ali, no meio de tudo, o tempo todo. Essa corrupção que a gente ouve falar sem parar, tudo isso, são dois lados do sangue, mas, de certa forma, esse fluxo é integrado. Esse fluxo do sangue deveria ser puro, deveria ser limpo que nem o nosso coração. O problema todo da morte, de um acidente, é a interrupção do fluxo sanguíneo, não é? Aquilo para. Enquanto corre, ele é maravilhoso, é perfeito. É justamente esse sangue que eu busco. Como vou dizer? Não é que esteja errado, mas está errado ao mesmo tempo. Ele pode ser orgânico, precisamos disso… a carne
precisa da carne, corpo que come corpo. E também tem o lado errado que é o esbanjamento. Nas últimas vezes que me disseram: “Ah, o sacrifício dos carneiros e tal”, comecei a dizer: “Não, é um abate de carneiros”. Comecei a tirar um pouco fora a questão do sacrifício, porque, hoje em dia, o que se vê do sangue que corre, em geral, não só o dos carneiros, mas o das pessoas que sofrem nas filas de hospital, nos acidentes, na violência, esse sangue é esbanjado. Antes, quando se faziam os sacrifícios era uma conversa cósmica e não um sangue esbanjado. Naquela circunstância tribal havia um nexo. Na nossa circunstância atual, não tem nexo para isso, é um esbanjamento. É lidar com pouco-caso com a vida. Acho que é isso. Agnaldo Antes de te fazer a outra pergunta: quando entrou o sangue? Qual foi o
momento que você falou: “Vou trazer isso?”. Foi a partir de qual trabalho? Karin Bom, meu primeiro trabalho com sangue foi Morte eu sou teu, de 1997, que 5. Vista assim do alto mais parece um céu no chão. Mostra paralela ao xvi Salão Nacional de Artes Plásticas, mam-rj, 13 jan.-15 fev. 1988.
mostrei, inclusive, na tua exposição no Rio.5 Já havia feito esse trabalho antes, e estava com ele em casa há mais ou menos um ano quando tu me convidaste para aquela exposição. É o trabalho sobre as toalhas da minha avó, feito no período da grande crise da aftosa, aproximadamente em 1997 – que os jornais exageraram mesmo. Nunca havia pensado sobre isso – pode parecer até estranho dizer, mas foi no supermercado que isso me passou pela cabeça. No supermercado sempre se vende o Zero Hora, e quando ia lá eu via a carne toda limpa, empacotada e lia essas notícias. Eu própria nunca tinha visto um abate antes, não tenho contato com fazenda. Então, quando comecei a ver aquilo, de repente comecei a ver todas aquelas carnes, e o fluxo do sangue, tudo aquilo em contraponto com aquelas notícias horríveis. A forma como eles escreviam era assim: “Milhões de dólares estão parados no porto de Rio Grande”. “Os contêineres estão parados.” “A Rússia rejeitou a carne brasileira.” “A China não quer mais.” Então, era como se fosse economia pura, que não afetasse nenhum corpo orgânico. Agnaldo Isso é incrível. E que tenha sido em um supermercado, é sintomático
também. Agora outra pergunta: assim como há esse problema da origem de estar discutindo, seja terra ou sangue, seja onde tudo começa, quem é o homem primordial – quer dizer, o primeiro é o Adão –, há também a palavra, porque a palavra é fundação. Quer dizer, a ideia do batismo, a ideia do socialismo, que a “coisa”, à medida que eu a incorporo através da palavra, ela já não é a mais pura natureza, ela já está dentro de mim, nomeada. O texto é muito recorrente no seu trabalho também. Pode-se dizer que um dos elementos característicos da sua obra pictórica é o texto, que não é da ordem da pintura, pode-se dizer em princípio, e você nem está pensando nesse problema, ignora-o. Aquilo a que Waltercio Caldas, uma vez conversando, dá essa
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resposta: “Eu nunca me pergunto se aquilo que estou fazendo é arte, porque isso não interessa. O que interessa é fazer e dar vazão a estas indagações, mas não a essa pergunta porque ela é de todo improdutiva. Para quem você está respondendo afinal de contas?”. Então, quando é que entrou a palavra no seu trabalho? Quando você sentiu vontade de escrever? Karin Acho que isso foi sempre, desde a época da faculdade. Foi, justamente, en-
tre a pintura e o que vinha da arte postal, que era muito ligada com a arte conceitual. Só que eu até quis me afastar desse lado da arte conceitual e da arte postal, mas não consegui abrir mão de tudo aquilo que vinha junto, como essas palavras. Por exemplo, volta e meia, preciso colocar uma palavra junto, mas nunca quero que essas palavras tenham uma carga tão forte, separada, individual, dentro de uma mancha pictórica, como a própria mancha. Não escreveria vermelho no vermelho. Posso, de repente, escrever luz e uma mancha vermelha. Isso junto, como uma caligrafia que se perde no meio da pintura e que não fique separada, evidente. Existe um pouco de automatismo também. Vou escrevendo, desenho, depois vai a escrita, tudo junto, e, me parece, a herança é a arte dos anos 1970. Agnaldo Você lê poesia habitualmente? Karin Poesia? Não leio muito. Gosto mais de ler, e leio bastante, romances. Com-
pro muitos livros que são de arte. De Beuys, por exemplo, devo ter mais de vinte livros. Gosto do trabalho de artistas, de comprar e ler, e romances também. Agnaldo Sobre esta discussão há um grande livro, um livro que eu estava re-
lendo e que bate muito com as suas preocupações: O rastro dos cantos, do Bruce Chatwin. Um grande escritor britânico já falecido; um escritor de viagens, que praticamente reinaugurou o gênero de literatura de viagem. Esse livro, que não é propriamente um romance, passa-se na Austrália. Chatwin entra em contato com um guia de ascendência russa, um sujeito que atua como intermediário entre os aborígenes e o governo australiano, cuidando para que o governo não passe suas estradas, linhas de ferro e outras intervenções sobre lugares sagrados dos aborígenes. Tudo é muito interessante, primeiramente porque o russo defende sua posição explicando que a Austrália foi colonizada por ingleses, homens insulares que viviam numa ilha minúscula e que por isso não entendiam nada de deserto. Por isso, segundo o guia russo, a ocupação da Austrália aconteceu sobretudo na beira do mar, e não no interior. “Os ingleses ficaram na borda porque não entendem nada de deserto. Quem entende de deserto somos nós, que viemos da Rússia.” Isto posto, o que há de mais importante na história é a explicação acerca da existência dos lugares sagrados. Segundo o mito cosmogônico dos aborígenes, no princípio havia apenas a terra. Repentinamente choveu e os seres, que estavam adormecidos sob ela, levantaram-se e passaram a caminhar e a cantar, um canto
capaz de fazer brotar tudo o que há e que até então estava encoberto. E quando tudo que há passou a existir, depois de tudo haver sido cantado, os seres voltaram a adormecer e deixaram aos homens a obrigação de cantar as coisas para que elas não cessassem de existir. Uma obrigação que continha a seguinte particularidade: caso a “coisa” – pedra, árvore, colina etc. –, deixasse de existir, aquele na comunidade responsável por ela desapareceria também. No meu ponto de vista, essa relação entre os aborígenes e o mundo assemelha-se com as suas ações. Seus relatos e seu trabalho passam-me essa sensação. Você tem o poder de imantar o seu trabalho com um dado que ultrapassa a dimensão formal; há algo de epifânico na sua poética. Confesso que fiquei um pouco incomodado quando li o excelente texto produzido pelo Luis Camnitzer, que é o responsável por esse material didático de primeiríssima qualidade que vocês realizaram. Camnitzer é uma pessoa com quem já trabalhei na Bienal de São Paulo de 1996. Um homem brilhante, mas que escreveu sobre a natureza formalista de seu trabalho. Isso me pegou porque, a meu ver, seu trabalho não tem nada a ver com isso. Como também você não é uma artista conceitual. Existe em seu trabalho uma materialidade que para os conceituais seria uma questão totalmente secundária; percebi seu apuro na sua realização, e o seu agradecimento à arquiteta Ceres Storchi, que fez o design da montagem da exposição Lugares desdobrados. Seu trabalho é de ordem mítica. A nomeação, que você emprega em obras como a exposta aqui, com as palavras que variaram até desembocar no nome de Jesus, tem a ver com mantras e litanias. Tem a ver com orações. Aquilo, devidamente cantado, vira vibração, frequência. E que não se pense que uma frequência seja simplesmente um fenômeno físico. Essa é, a meu ver, sua preocupação. Mas é isto mesmo: você deseja que as pessoas, diante de um trabalho seu, atinjam um estado que não é o mesmo de quando entramos em um museu? Você falou: “Quero que as pessoas esvaziem a cabeça e não que encham a cabeça”. Veja, você não respondeu à pergunta… entendo, talvez [nem] sequer tenha compreendido porque comecei falando da sensação de isolamento por um trabalho tão contra tudo, contra o glamour, contra o que as instituições estão querendo, não me diga nem contra o que o mercado está querendo porque esse, evidentemente, não quer mesmo. Lembro-me do Zero Hora quando realizamos a Bienal de São Paulo de 2002 e você teve uma sala especial. O Zero Hora, numa legítima manifestação, nada contra, pretendeu dar à capa de seu suplemento de cultura a manchete: “Uma artista gaúcha ganha uma sala especial na Bienal”. Vai daí, o jornalista do Zero Hora ligou para mim e disse: “Agnaldo, estou com um problema: o editor do Zero Hora tinha dado a capa do suplemento para Karin porque ela tem sala especial na Bienal, só que ele olhou o trabalho e falou que não dá para dar a capa para aquilo, porque o trabalho é muito agressivo. Liguei, então, para Karin, para perguntar se o trabalho era realmente violento como estavam dizendo. Ela disse-me que não, que era ecológico. O que você acha, ele é ou não violento?”.
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Essa é uma típica pergunta que certos jornalistas fazem: eles têm essa candura que se deve perdoar. Bem, eu disse a ele: “Mas é claro que o trabalho dela é ecológico”. Fiquei tentando explicar para o cara por que diabos era ecológico. O problema, parece-me, é que nós comemos os animais sem atentar para o significado disso. Houve um tempo em que as pessoas, quando se sentavam à mesa para jantar, para almoçar, para fazer uma refeição, agradeciam, davam-se as mãos. De algum modo aquelas mortes todas não haviam sido em vão, era como se fizessem parte de uma lei maior. Era um ato de contrição. Pois bem, esse ritual passou, foi se transformando em um gesto mecânico, rotineiro como tudo o mais, até que finalmente desapareceu. São incontáveis os vestígios, os despojos deixados pelos mitos; os ritos, dos quais ainda existem resíduos, tão banais como colocar uma aliança no dedo quando se casa. Mas o significado original dessas ações foi esquecido pelas pessoas. Os ritos existem ainda, mas não são tratados como tais. Tive muito trabalho para ficar explicando ao jornalista e acho que no fim das contas não deu capa… Karin Nem sabia disso! Agnaldo Não contei para você? Puxa, foi muito divertido, muito ilustrativo.
O cara: “É muito violento o trabalho”, e eu: “Não, não é”. É um trabalho que é muito violento, é um tipo de violência, quer dizer, ele é entendido como violência porque é uma questão que entra, mas que é lida dessa forma tão achatada, tão plana, tão rasa, então acaba desagradando. Sempre me perguntei e na verdade acho que, se a curadoria tem algum papel, é o papel de dar voz. É apenas isso: tentar garantir o espaço para essas pessoas que estão realizando um trabalho que se acha bom. É uma maneira de agradecer, nada mais do que isso. O trabalho do curador não é nada mais do que isso, que também é o trabalho do professor. O professor é simplesmente o cara que agradece certas coisas que leu e achou extraordinárias. A melhor maneira de agradecer é mostrando para os outros, “Leiam isso!”. Quando se é professor, se é meio novidadeiro. O professor é um cara que diz: “Olha isso, acabei de ler, maravilhoso!”. Sinto-me apenas isso, um novidadeiro. Então hoje, conversando com a Helena, falei assim: “Você não leu esse livro? Você precisa ler, tenho que te emprestar esse livro”. Virou um problema para mim, ter que emprestar, mas esse é o papel. Essa é uma maneira de agradecer principalmente quando se imagina, pressente e vê claramente, quando o trabalho não tem espaço. Então, nem merece uma pergunta, não é uma pergunta, mas é a pergunta que me faço vendo o seu trabalho. Como você aguenta realizar esse trabalho? Tudo bem, hoje está na Fundação Iberê Camargo, e estar na Fundação Iberê Camargo é um reconhecimento, nenhuma dúvida em relação a isso. Portanto, venceu a arrebentação. Mas como foi antes? A vontade de desistir e fazer qualquer outra coisa era muito grande? Isso é uma pergunta que não se faz, me desculpem, é uma pergunta idiota, mas vou fazer essa pergunta.
Karin Nunca consegui desistir. Às vezes até penso que peguei o caminho errado.
Moro até hoje com a minha mãe na casa que era da minha avó. Se tenho que agradecer a alguém, seria também a minha avó, porque, naquela casa, meu pai e minha mãe se casaram e moraram. Meu pai teve muitas dificuldades na vida, morreu cedo. Eu tinha 22 anos quando ele morreu e a minha avó parece que, na sua casa, onde a gente mora até hoje, cuidou o tempo todo do meu pai que ficou doente, da minha mãe, depois de mim, que voltei com a menina, mãe solteira. Então, penso que a casa da minha avó é o lugar onde me sinto mais à vontade para trabalhar. É estranho. Agora não tenho mais a pressão de tantas contas e a Yole já é adulta. Mas nos anos 1990, era um absurdo a pressão que sentia. Mas ao ficar ali dentro, a pressão parece que sumia lá pelas tantas. Me acalmo sempre quando estou pintando. É o contrário, se tem muita pressão, tenho que ir para lá. Lá vou me esvaziando de todo esse mundo. Penso que fazer arte, no meu caso, talvez seja me isolar e não me integrar. Parece que o isolamento – não é o isolamento social –, mas de tu te envolveres com aquilo que é teu. Parece que cria uma bolha do que vem de fora, na própria ação de estares ali trabalhando com as cores, com o teu projeto. Agnaldo Muito impressionante! Essa pista, eu não imaginava. Porque a ideia da
6. Karin Lambrecht. Eu e você. Documento Areal 1. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2001. Organizado por André Severo e Maria Helena Bernardes. [n.e.] 7. O poema chama-se “Liquidação” e está no livro Boitempo (São Paulo: Record, 1992): “A casa foi vendida com todas as lembranças / todos os móveis, todos os pesadelos /todos os pecados cometidos ou em via de cometer / a casa foi vendida com seu bater de portas / com seu vento encanado sua vista do mundo / seus imponderáveis / por vinte, vinte contos”. [n.e.]
casa como um corpo, a casa que cuidou da gente, veio de lá, veio dos avós e amparou o pai, a mãe, a filha e a neta. A casa, então, é uma pessoa da família, na verdade. Ela é a própria família, e a história está na própria casa. E aí quando você está pintando… é muito curioso porque um dos aspectos da sua pintura é que não é pintar no sentido canônico. Não é pegar o pincel e pintar. É muito mais reter um fluxo, é muito mais um vestígio, é muito mais… percebo a mão porque você deixou a marca inclusive no livro do Areal.6 Tem um comentário muito delicado da Maria Helena Bernardes quando ela fala: “Então a experiência foi essa, quando deixamos os papéis lá secando com as vísceras, as monotipias feitas com as vísceras do carneiro abatido”. Sacrificado ou abatido? Abatido. “E aí inclusive ficaram as marcas das pegadas do gato que por lá passou” e na foto você se vê claramente. Vi essas monotipias e, de fato, estavam lá as patas do gato. Então: “O que é pintura?”. Ela não é só uma coisa que você cria… é você tentando de alguma forma reter aquilo que está acontecendo ou aquilo que lá está. Você imprime, do mesmo modo que uma casa não é uma casa. Quando a gente aluga ou quando compra uma casa, o primeiro procedimento é pintá-la no sentido de abafar o que está lá. Não se consegue extirpar, mas se abafa. E no geral pinta-se de branco ou até bem pouco tempo se pintava de branco, e pintar de branco também é muito sintomático porque é só luz que você tem e é luz que se reflete nela. É como se o branco não tivesse cor. Lembro-me daquele poema do Drummond: “A casa foi vendida com tudo, com seus pertences, com seus guardados, com suas mágoas, com as tristezas, com as alegrias, tudo isso contém dentro de uma casa”.7 Quando você começou a inventar essa pintura que não é feita só do gesto? Porque você fala isso, mas o pintar para você – é preciso ter isso em mente – não é o que se faz exclusivamente com o pincel. Como foi isso?
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Karin Acredito na minha ação. E na prática. A tela absorve a pintura. Ela é
mesmo uma série de camadas. Se a gente a olha, ela pega tudo, qualquer coisa, é uma marca. São como cicatrizes: um acúmulo, mesmo se o artista trabalha com pouco ou raspa, é acúmulo. Nesse caso, é um acúmulo, são memórias. A gente vai pegando e a tela vai pegando tudo, às vezes trabalhei em cima da tela só com o movimento. Isso, em uma época em que trabalhei com materiais deslizantes, como esmalte sintético – era quase como uma negação. Considero esse trabalho agressivo porque o esmalte sintético é uma tinta completamente industrial, fria, feia, malcheirosa, em minha opinião, ela tem tudo de ruim. Mas para mim, uma mancha daquelas, na época, era extremamente necessária. Eu tinha que ter aquela mancha na minha frente e não queria encostar muito nela, não dava para chegar muito nela com o pincel. Era uma coisa agressiva pincelar com aquela tinta. Foi nos anos 1980 e agora também existe isso: trabalho às vezes na parede vertical, às vezes na horizontal, e então precisa de outro tipo de movimento. A gente não consegue fazer certas coisas em certas posições, então fica dependendo de certas posições da tela e dos materiais. Tenho que ter outra atua ção, às vezes tem isso. O pincel não é tão importante. No trabalho com sangue de
Exposição Lugares desdobrados, 2008
carneiros, não interfiro absolutamente em nada. Tenho que ficar quase que invisível do lado do peão. Tudo tem que ser. Tenho que agir e ficar discreta, porque para o peão também é algo agressivo uma pessoa junto com ele, porque para ele também não é fácil de fazer. Então, o que está nesses registros são os registros daquele momento. É tudo como é. É real. Mônica Zielinsky Queria agradecer primeiro às colocações da Karin. Depois, às
interferências, às perguntas estimulantes do Agnaldo. Esse retorno foi em um nível de profundidade de seus vários aspectos e veio à tona realmente através dessas perguntas. Uma das perguntas que eu queria fazer foi quase respondida agora no final, mas é uma pergunta que faria, quer dizer, a Karin já colocou, mas gostaria de ouvir um reforço dessa questão e a visão de alguém que fala sobre o trabalho da Karin. Então a pergunta, na verdade, é para os dois: na pintura da Karin existem dois princípios que ela deixou bem claros agora mais ao final. Um é o trabalho de pintura como uma arena, experiência com o próprio corpo, um trabalho solitário, um trabalho de embate com a própria tela, com a tinta, com questões que ela foi deixando claras. Por outro lado, existe um trabalho de pintura como uma retenção, até como ela colocou, de certa memória que fica um registro, então é um princípio diferente, mas não deixa de ser pintura. Na visão da Karin, no primeiro caso ela tem uma interferência quase que direta com a pintura, com a ação de pintar, na outra é um testemunho, um trabalho silencioso de compartilhar uma experiência. A minha pergunta seria: “Como vocês veem, a Karin como artista e o Agnaldo como espectador discutindo o trabalho de uma artista, a sua ideia sobre pintura nessas duas possibilidades? A ação do artista pintor diante dessas duas visões, da visão do testemunho e da visão ativa, pró-ativa?”. Karin Essa é difícil. Mônica Não, mas é uma questão que me parece muito importante no teu traba-
lho, em todas as tuas colocações e entrevistas isso ficou muito claro, e também na exposição. Karin Na verdade, não faço essa dissociação. Claro, agora estou sobre pressão,
então tento mostrar como é o momento em si, mas dentro de mim mesma não é tão indissociável. É difícil de explicar porque gosto de mostrar isso. Falei no início de Hermann Nitsch porque lá é o contrário, todo mundo é obrigado a trabalhar com aquele corpo, aquelas vísceras, tudo junto. Eu nunca, jamais faria isso, porque penso que esse carneiro é abatido para a gente comer. Penso ser esse o nexo do carneiro nesse momento: ele vai dar vida para as pessoas. Ao mesmo tempo que os animais sofrem, eles não têm direitos. A nossa sociedade os excluiu. Não sei como é que o ser humano na verdade ficou como ser principal do planeta…
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mas, nesse momento, é o que somos. Podia ser diferente, é claro. Há um nexo no carneiro estar morrendo… Gosto de explicar isso, porque não gostaria, em nenhum momento, de pegar um pincel e mergulhar no sangue. Muitas pessoas me disseram… acham que eu pinto com sangue. Uma coisa que nunca faria. Mas penso nisso, tenho que pensar em como vou trazer tudo para dentro, porque uma grande parte do que vejo lá, tenho certeza, não consigo trazer. Quando o animal morre, sua respiração é silenciosa. Ele não grita. Geralmente o campo é silencioso. Reparei que, quando o carneiro morre, sua respiração fica cada vez mais ofegante até desaparecer. Nesse momento, que deve ser o momento em que ele praticamente morre mesmo, e que não sei dizer exatamente quando é… muitas vezes os pássaros (não sei o porquê disso), nas fazendas, nas árvores, começam a gritar e a dar revoadas. São coisas que observo. É como se existisse um mundo ali que observa mais do que eu. Mas tudo isso fica junto. Então, quando falo em memórias invisíveis, é isso: não consigo trazer tudo para dentro, mas tudo que trago para dentro do trabalho, a forma de apresentar fica fixada nessa visão de pintora, porque sempre mostro o plano das coisas e acabo jogando tudo em um plano. Agnaldo Só vou responder porque fica chato passar, mas depois disso não pre-
ciso falar mais nada, qualquer coisa vai ser horrível. Mas entendo sua polaridade. Acho que ela, em certa medida, faz uma falsa questão à medida que ninguém é exclusivamente arena, quer dizer, tela. Ninguém é exclusivamente retenção, mesmo quando você vai armado para cima da tela. Enfim, há uma vivência prévia a qual você ataca e aí convoca, quer dizer, ao atacar o papel, coloca em cena tudo aquilo que o habita. Você é habitado, existe essa pluralidade dentro de si. Mas entendo que exista gente mais extrovertida, gente mais discreta, gente que se limita a auscultar, essa é a intervenção. Mesmo assim, mesmo nas telas brancas do Rauschenberg, sobre as quais falamos – os exemplos são muitos semelhantes, como o Yves Klein, com o vazio ou mesmo sua pintura feita pela chuva, que são trabalhos irmanados, também nessa inação. No caso do Yves Klein, é interessante: tratava-se de um judoca, quer dizer um lutador de judô, que luta a partir da força do outro. Nessa inação há muita ação; nesse silêncio, muita presença, embora seja outro tipo de colocação. Sempre uso um exemplo dessa situação em que a pessoa não faz praticamente nada, mas já fez tudo ao fazer. A meu ver, é exemplarmente apresentado ou ilustrado nos Sete samurais, de Kurosawa, quando ele mostra o duelo de dois samurais e, quando os dois levantam a espada, um é todo frenético, intrépido, e o outro é muito preciso, despojado e econômico. Na hora em que os dois levantam a espada, aquele que é mais econômico e conciso, mais cabralino, Graciliano Ramos, baixa a espada e diz: “Venci”. E o outro, furioso, diz: “Você é um covarde, você não quer lutar”. E o mestre, que a tudo assiste junto com seu discípulo, fala: “De fato, você venceu”. Ao que o discípulo responde: “Não, mas ele é um covarde”. E o mestre, “Não, ele não é um covarde, ele venceu o duelo”. O lutador reage e fala: “Não, vamos lutar, vamos lutar!”. E o outro “Mas por quê? Você quer morrer? Tudo bem,
já que você quer morrer, vamos lutar”. Aí eles levantam a espada e vão um para cima do outro e o tal do econômico, despojado, mata efetivamente. Ele já o havia matado antes. Já estava enunciado simplesmente na decisão. Então, quando vamos desarmados – quando nos limitamos a observar, na verdade esse é o resultado de muita apreensão do que ali está sendo colocado. Não existe quem não se coloque como em uma arena, no final das contas há maneiras diferentes de se enfrentar. Kurosawa é mestre nisso. Não havia aquele filme, Kagemusha, a sombra do guerreiro, em que o general não se movia porque a montanha nunca se move e por isso ganhava as batalhas? No dia em que se moveu, perdeu. Às vezes, ficar no lugar, isolado, ao abrigo da própria casa e ao corpo ampliado… ali é que as coisas saem, mas é uma maneira de ser. Outros precisam ir para o lado de fora.
Perguntas da plateia Virgínia Aita Queria parabenizar o maravilhoso depoimento da Karin e suas colocações superprecisas e queria insistir justamente nessa ideia da genealogia e radicalizar um pouquinho. Há algum tempo visitei o ateliê da Karin e vi umas pinturas maravilhosas, as últimas pinturas, eloquentes, ótima pintura, boa pintura, muita pintura, em que são visíveis as ressonâncias de grandes pintores. É difícil, tenho minhas sugestões, mas nomear na frente de artista é meio complicado e também a maneira como ela sempre muito, muito criteriosa privilegia o medium, o meio, a escolha do pigmento, como o pigmento é carregado de uma narrativa e de um simbolismo e, ao mesmo tempo, como tem um valor autônomo. A escolha muito criteriosa de uma determinada cor, uma cor nova que apareceu, tem toda uma história do porquê dessa cor, pois, ao mesmo tempo que ela está impregnada de simbolismo e tudo ao mesmo tempo, ela tem uma autonomia como cor. Então, a presença da pintura me parece muito definitiva na Karin. O valor da pintura, da qualidade estética. Mas aí, quando tu falas em genealogia, e sobretudo o fato da fala em Lucas, no Evangelho de Lucas, quer dizer, na genea logia do Cristo que bate lá no Pai, enfim, Deus-Pai me lembra essa ideia da lei do pai, do interdito. Quer dizer, tudo está, de alguma maneira, incorporado dentro da pintura. Há um limite, quase uma pintura meio hominívora que assimila todas essas narrativas, absorve toda essa memória. A memória da pintura, mas também o histórico cultural e, como Karin falou, o universo mítico, mas sugere que, ao mesmo tempo, tenha essa espécie de excursão, digamos assim, em outras histórias. É sempre, quase que inconscientemente, uma genealogia da própria pintura. É tentar buscar um corpo histórico da pintura. É uma memória. Isso é uma pergunta, que está sempre embutida. Essa tentativa de recuperar a memória incorporada da pintura e ao que se refere tem esse paralelo na genea logia dessa busca dos evangelhos e etc., mas tem, ao mesmo tempo, essa qualidade do ofício de pintura. É quase imperativa essa questão que está, me parece,
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sempre no território da pintura. Isso é uma digressão, mas me parece que a ideia de genealogia vai muito por esse lado da origem. Já falamos um pouco sobre isso. Karin Virgínia Aita é minha amiga. Agnaldo perguntou com quem eu conver-
sava. A Virgínia, de tempos em tempos, vem me visitar e é sempre maravilhosa sua visita. Então, nem sei o que dizer sobre isso… Virgínia Na verdade, o que estou tentando é dar um peso maior para a questão do território pictórico, que essa genealogia seja quase coextensiva. Na busca dessas genealogias míticas, no fundo, o que motiva, o que é fundamental aí, é a busca. Esse teu pé na Geração 80 flexibiliza tua ideia do tempo rígido das descendências das histórias dos patriarcas. Tu queres uma genealogia, mas ao mesmo tempo parece uma genealogia do fluido. O tempo fluido, uma genealogia eletiva, afetiva – meio como o Museu Imaginário do Malraux ou então a matriz de estilo, como assinala Danto, ou a ideia de uma família de obras que dialogam entre si, em relações de parentesco, que têm um diálogo íntimo e formam uma memória – um corpo se estende historicamente. Tem esse lado que é o contemporâneo, que dilui a rigidez formalista. Sinto um pouco essa ideia de uma pintura hominívora. Até o grafismo, sempre acaba, sempre tem um caráter pictórico também, ele entra e fica com o corpo pictórico, não tem uma autonomia e o texto, não sei se entra aí. Agnaldo Só não é uma pergunta, mas tudo bem. Virgínia Não, é uma pergunta no sentido de dar um peso mais incisivo a essa
representação pictórica. Parece que Karin sempre quer uma tradição, parece que ela quer resgatar uma dignidade do ofício pictórico. Agnaldo Sem dúvida, porque tudo que está sendo feito continua sendo feito
ainda em bidimensional sobre tecido. Enfim, tem essa recorrência. Isso a gente nem discute, deu de barato, mas o fato é que está no up da pintura, afirmando isso o tempo todo. Mas, de qualquer maneira, é você, Karin, quem tem que responder. Karin Também acho que não é uma pergunta. O que a Virgínia falou, eu sei porque eventualmente conversamos e já concordei com ela anteriormente. Parece-me que Agnaldo colocou, quando perguntou com quem que eu dialogo e falei que nunca desisti… Imagino Joan Mitchell. Lembro de muitas pinturas que vi durante a minha vida, lembro-me delas e é como se tivessem presentes na minha cabeça, aquele impacto. Nunca desisti da pintura mesmo. Não sei se essa genealogia é racional em mim. Não funcionou assim. Plateia Karin, queria só tocar num pequeno ponto que tu colocastes, sobre
tua ligação com o abstracionismo. O que me impressionou muito em toda a tua
exposição e no diálogo com Agnaldo – que trouxe todas essas associações que giram em torno da tua obra – é que apontam para o mítico, que apontam para sentimentos primordiais, tipo o da gratidão. Estar numa espécie de comunicação, em que tu fazes a pintura, mas, ao mesmo tempo, parece que tu reivindicas, de certa forma, o abstracionismo. Ao mesmo tempo, o abstracionismo se concentrou de maneira muito forte sobre a forma, a negação de certa historicidade, uma afirmação da bidimensionalidade que deixa um pouco de lado esse outro lado mítico. Então, queria… não sei se queres falar sobre essa tensão entre aquilo que o abstracionismo veio a ser, pelo menos em nível de publicação na mídia, e o teu abstracionismo, que é algo muito mais amplo, muito mais generoso. Karin Queria dizer uma coisa rápida em relação a isso: o Iberê, por exemplo,
quando abstraía, observava, e da observação, abstraía. Como costumava visitar seu ateliê, isso ficou bem gravado na minha cabeça. Beuys, por exemplo, diz: “Não trabalho com simbologias, trabalho com materiais”. Então são duas coisas fortes que ficaram gravadas em mim. É claro que o abstracionismo é anterior. Acho que tenho uma herança abstrata, sim, mas é claro que ela está impregnada também da observação de uma realidade. Ao mesmo tempo, também trabalho com materiais… quando faço uma cruz, geralmente é de algum material residual, ou tem terra. Na xxv Bienal de São Paulo, em 2002, tinha uma cruz com sangue, então o material… apesar de ser o desenho de uma cruz, acho que esta é mais abstrata que o símbolo cruz. Plateia Para ti, quando falas do abstracionismo, tu vês uma diferença forte
nesse sentido do material, da cruz, da nomeação, de toda uma espécie, como uma grande caixa de ressonância cósmica na qual tu absorves ritmos? Tu vês ali uma diferença, por exemplo, dentro do abstracionismo, do modo como Kandínski coloca o abstracionismo e do modo como outros depois dele colocaram? Karin Li os escritos de Kandínski, nem me lembro agora o nome do livro, acho
que é Ponto, linha… Mas se eu for escolher entre Kandínski e Klee, prefiro Klee, porque acho que ele é o primeiro pintor que realmente transcendeu os limites do moderno, do Cézanne, do Van Gogh. Eles são os mestres, óbvio, maravilhosos. Klee deu um passo além, diferente, a meu ver, de Kandínski. Eu me toco mais com Klee. A sua pintura, quando se está perto, tem uma matéria linda. Já Kandínski é mais aguado, tem mais distanciamento do que ele, que está mais envolvido e é mais livre. Ele tem períodos, o dos quadrados depois dos animais, das figuras – todas elas mudam quase como sonhos. Klee não se considerava surrealista. Para ele sempre interessava o que ele podia fazer com a pintura, nunca quis se classificar com essas ramificações da época. Aí ele tem aquela fase, não vou chamar de fase, mas quando ele trabalha com as cores e com os animais, tudo aquilo já fica num plano, são quase como animais verdadeiros distorcidos como uma figura
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surrealista; outros são planos que vão e formam uma leve figura insinuada com planos geométricos. Tem todo seu pensamento sobre as aulas que dava, então ali já não tem a coisa do figurativo e do abstrato. Eu me identifico com isso… Plateia Tu falaste sobre o fluxo do sangue da vaca que se esvai ou do carneiro que se esvai, da pessoa que mata o bicho e que vai absolvê-lo comendo. É uma espécie de fluxo que vai e volta. A imagem que me veio foi aquela imagem do Klee, Um homem guiando um cavalo. Karin Tem uma sequência de animais e uma figura que puxa… Plateia Não se sabe quem é o cavalo, quem é um homem, porque o ser humano
se aproxima, o quadrúpede, essa afinidade, essa irmandade com o bicho… é curioso que logo veio a imagem do Klee. Karin Acho lindo o Klee. Plateia Existe uma diferença enorme. A palavra abstracionismo é totalmente
vaga. Entre o Klee de um lado, e Kandínski do outro. Agnaldo Por isso me incomodou a colocação do formalismo, por Camnitzer, em
relação ao trabalho da Karin. É, acho, uma falsa questão. É um problema, porque certa leitura do Greenberg terminou levando a crer que se possa fazer essa dissociação, mas na medida em que se junta matéria na discussão – junta matéria, junta história, porque não existe a matéria por si –, o que existe é o que vem da matéria e a questão do símbolo. Então, se vê uma análise do Greenberg falando no Barnett Newman, por exemplo, mas omitindo o fato de que Newman chama o quadro de Adão. Ele acha que a existência humana é uma chama de uma vela porque é um religioso. Você pode analisar um quadro do Rothko tão só pela materialidade da tela, mas não pode também esquecer o que ele pensava daquelas atmosferas que construía. Ele entra num campo que fica difícil se discutir, mas de qualquer maneira, está lá essa questão colocada e aí tem um sentimento religioso. Kandínski era um religioso, Mondrian, todos esses abstratos aos quais a gente gosta de banir qualquer tipo de significado, trabalhavam com significação, à revelia deles. Nós subtraímos o significado, à revelia deles, que nunca o abstraíram. Essa questão da abstração… está aí uma questão mal colocada. Vejo assim: o Zé Resende defendendo que o seu trabalho não tem significação e o seu trabalho tem uma fenda de cima a baixo que qualquer leitor de manual do Freud já dá logo de cara com o que é aquilo ali… Essa ideia de que a matéria, ela é por ela, mas quando se está trabalhando com matéria, não se está trabalhando com matéria à toa, ninguém trabalha com matéria à toa, ela tem o seu significado, está carregada. Então não se precisa falar em um trabalho tão simples como o de
Beuys, justamente para não incorrer naquele velho problema de que a arte é um panfleto ou de que é uma ilustração. Mas, ao discutirmos o trabalho da Karin, já estamos superando isso, embora sempre tenha esse problema. Plateia Só para corroborar essa ideia: tem uma frase que gosto muito: “O significante é a causa material do discurso”, quer dizer, só o fato de se utilizar o sangue, a madeira e todos esses símbolos fundamentais. Acho que foi bem dito, aqui, com relação à generosidade da tua obra, Karin, que permite que nós nos religuemos com referências fundamentais. A generosidade está em querer ou pelo menos abrir essa possibilidade para que cada um possa fazer a sua religação, a sua referência, trabalhando com esses elementos fundamentais. Isso me parece importante. Só queria entrar na conversa concordando e trazendo mais esse elemento. Mônica Só queria concluir este momento destacando a amplitude do trabalho
da Karin. Este é inesgotável, sobre ele poderíamos discutir e continuar a repensá-lo infinitamente. A sua obra abre muitas questões, áreas de conhecimento, novas relações dos fatos, levando-nos sempre a retornar às fontes deste trabalho.
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Cor te, 2006
Territórios d’areia ii, 2011
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Krankenhaus: Ser, sentir, mundo, 2011-12
Territórios d’areia menor e maior, 2011 Cisterna / Territórios d’areia, 2011
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Cruz vermelho cadmium, 2009
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Fragmento, cobre e vermelho, 2006
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Respiração em fragmentos, 2009
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Sem tĂtulo, 1989
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Marie, 1989
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EmergĂŞncia, 1989 Homem dormindo, 1989
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Engel, 1991 Ester ou Ester entra no pรกtio interior da casa do rei, 1987
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Terra queimada, 1989
Cais, 1989-90 Anunciação, 1991
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2010, 1990
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Sem tĂtulo, 1992-93 Cruz, anos 1990
SĂŁo Matheus e Marie, 1993 Sem tĂtulo, 1993
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Wim, 1993
Corpus, 1994 Sem tĂtulo, 1994
Sinais, 1992 O lago, 1992
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[pp. 126-27] Ainozama, 1992 [pp. 128-29] Sem tĂtulo, 1992 [projeto para Ainozama] [pp. 130-33] Vento, luz e forma, 1997
Sem tĂtulo, 1999-2000
Sem título, 2000 Sem título, 1999-2000
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[pp. 138-43]
Desmembramento, 2000 Caixa do primeiro socorro, 2005 [detalhe] Pai, 2008 [detalhe]
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Genealogia de Jesus, 1994
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Genealogia de Jesus, 1994
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[pp.150-57]
Pai, 2008 A casa de S達o Matheus e Marie, 2009
Por favor mais luz – a criação do mundo em sete dias, dependurada, 2009-10 Uma provável criação do mundo, 2009-10
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A cela dela, a pele dele, 2012
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Perd達o, 2012 Janeiro/ver達o, 2012
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[pp. 166-67]
Legendas para Bergman, 2011-12 [pp. 169-71]
Meu corpo InĂŞs, 2005
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[pp. 172-73] Morte eu sou teu, 1997 [pp. 174-75] Morte d’luz, 2007
Sem título, 1999-2001
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[pp. 178-79]
Animal, 2004 Dia, 2005
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[pp. 182-86]
Caixa do primeiro socorro, 2005
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Noite, 2005
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[pp. 190-91]
Sem título, 2006-07 Sem título, 2006-07 [pp. 192-93]
Longe, 2009 Sem título, 2008
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[pp. 196-97]
Sem título, 2008 Sem título, 2008
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[pp. 200-204]
O quarto de Camus, 2008
Fragmentos da cruz negra, 2006
Pai, G贸lgota, 2011-12 Mundo, 2012
Sem t铆tulo, 2012 N贸s, 2012
Setembroutubro, 2010 Noite, inverno, 2010
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Margens, 2012
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Margem do eu, 2011-12
Noite, ver達o, 2011-12
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Karin Lambrecht no caminho do rio | CRONOLOGIA Viviane Gil Araújo
Karin Marilin Haessler Lambrecht nasce em janeiro de 1957, em Porto Alegre. A avó materna de Karin, Ida Haessler (1899-1989), era de ascendência austríaca – os pais haviam imigrado de Viena para a Letônia em 1893, mais especificamente para Kurland, onde viveram e trabalharam na quinta do barão Von Mantteufel. Ida Haessler foi registrada em Wolhynien, na Igreja Luterana Evangélica de Lutz, e lá frequentou a escola até os catorze anos. Sua família imigrou para o Brasil poucos meses antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, chegando ao Rio de Janeiro em 4 de junho de 1914. O avô materno de Karin, Max Leopoldo Alfredo Haessler (1886-1941), era natural de Berlim. Os avós paternos de Karin eram berlinenses e vieram trabalhar no Brasil, em 1926, na região de Goiás, onde nasceu o pai de Karin, Egon Lambrecht (1927-79). Passados dois anos, a família voltou para a Alemanha, onde assistiu ao prenúncio da Segunda Guerra Mundial. A avó de Karin contava que eles se arrependeram profundamente de terem voltado para a Europa, o que talvez tenha influenciado o pai de Karin a retornar ao Brasil com dezenove anos. Ainda criança, Karin aprendeu a falar alemão com o pai, com a avó Ida e com a mãe, Hilda Haessler Lambrecht (1918). Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, e a Alemanha foi dividida em quatro setores – inglês, francês, americano e russo –, os avós paternos de Karin passaram
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a viver no lado russo, na ddr (Deutsche Demokratische Republik) ou Berlim Oriental. Na velhice eles foram recebidos em um asilo em Eberswalde, onde vieram a falecer em meados dos anos 1980. O avô materno de Karin, Max Leopoldo Alfredo Haessler, era formado em engenharia civil, e veio para Porto Alegre convidado pelo arquiteto Theo Wiederspahn para ser professor na Escola de Aperfeiçoamento, a Gewerbeschule, que tinha como mantenedora a Sociedade de Utilidade Pública, criada pela Sociedade Teuto-Brasileira. Quando Karin nasce, em 1957, seu avô Alfredo Haessler já era falecido, mas ela viverá com seus pais na casa construída pela avó viúva, onde ainda hoje mora com sua mãe, Hilda Haessler Lambrecht. 1963
Karin ingressa na escola alemã Ginásio Evangélico Pastor Dohms, vinculada à comunidade evangélica de confissão luterana Martin Luther, no bairro Higienópolis, em Porto Alegre. 1973
Aos dezesseis anos, dá início aos estudos em arte, no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre. Karin teve aulas de desenho com o professor Clébio Guillon Sória (1934-87), que tinha grande interesse pela questão da escala, pelo Muralismo Mexicano e suas distintas características de arte pública.1 Karin Lambrecht presta vestibular para Agronomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs), mas ingressa em sua segunda opção, no bacharelado de Ciências Sociais. Cursado apenas um semestre (durante a ditadura militar), pede transferência para Artes Plásticas, onde encontra Heloisa Schneiders da Silva.
fig 1. Avô paterno de Karin trabalhando em canteiro de rosas do asilo em Eberswalde, Berlim Oriental, 1973. fig 2. Correspondência enviada pelos avós paternos ao pai de Karin, Egon Lambrecht. No selo, a imagem de Karl Marx. fig 3. Ida Haessler (avó), Hilda Haessler (mãe), Arthur Haessler (tio) e Alfredo Haessler (avô) na antiga casa da família, bairro Higienópolis, Porto Alegre, dezembro de 1934.
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No Departamento de Artes Dramáticas (dad) foi aluna de Carlos Pasquetti, titular da disciplina de Cenografia. Desse encontro nasce um interesse especial pelas artes cênicas e pelos colegas do teatro, artistas muito politizados.
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Relinguagem foi mostrado na rua com o espírito da arte postal de “ir e vir”. Essa forma de comunicação com a sociedade era uma maneira de se opor ao ensino acadêmico. A primeira edição do projeto foi organizada no Centro Acadêmico Tasso Corrêa, do Instituto de Artes da ufrgs, que funcionava como um “QG” dos estudantes.
1976
Karin, então aluna do Instituto de Artes da ufrgs, participa do Festival de Artes de Inverno de Ouro Preto, onde toma parte das oficinas de desenho com as professoras Glaura M. Pereira, Rosângela de Carvalho Ferreira e Isabel Cristina de A. Passos. fig 4. Karin Lambrecht, Heloisa Schneiders da Silva e Maria Helena Salle, Argentina, 1977. fig 5. Glaura M. Pereira, Rosângela de Carvalho Ferreira, Karin Lambrecht e Izabel Cristina de A. Passo, Ouro Preto, mg, 1976. fig 6. Lançamento da primeira edição do álbum Relinguagem, Porto Alegre, rs, 1978.
1977
Nas férias de julho, viaja com Heloisa S. da Silva, Maria Helena Salle e mais um grupo de amigos para visitar o irmão de Heloisa, Alexandre S. da Silva (1948-90), na Argentina. Da capital argentina, as três amigas viajam até a Cordilheira dos Andes, na região de Mendonça até o Chile / Puente Del Inca, em busca de uma nova paisagem, que Karin descreve “como um desejo de conhecer a identidade da América do Sul e vivenciar um sonho da Heloisa, que era o encontro do homem com a natureza […] além de sentir a vida rude na cordilheira dos Andes”.2 1978
Karin viaja novamente para Ouro Preto e participa das oficinas de desenho com o professor Jarbas Juarez Antunes (1936), conhecido por ser um grande muralista mineiro. Em setembro desse mesmo ano, no Instituto de Artes da ufrgs, participa do lançamento do projeto Relinguagem, que, segundo a artista, foi um “acontecimento artístico contemporâneo da arte postal, com a participação de quarenta artistas que deram origem a quarenta álbuns com quarenta imagens reproduzidas em xerox”. 3
Ainda em 1978, Karin visita a Amazônia, Belém, Manaus, Rondônia e a fronteira do Brasil com a Bolívia. Até seu ingresso na universidade, Lambrecht vivia exclusivamente no bairro de Higienópolis, reduto da colônia alemã na capital gaúcha. Na ufrgs ela passa a conviver com Heloisa S. da Silva, Jovita Peña Sommer e Regina Coeli de Freitas Costa Rodrigues (1954-93). Entre as amigas, Karin conhece Irene Santos, que acompanhou o grupo até Belém do Pará. Segundo Karin, essa viagem foi feita “para um reconhecimento da paisagem brasileira […] de ônibus, de barco, de carona, de caminhão”.4 1979
Aos 22 anos, conclui o bacharelado em Artes Plásticas, na ufrgs. Ainda em meados de 1979, é convidada por Vera Chaves a fazer parte do Espaço n.o.: “É importante lembrar que naquela época estávamos sob o regime militar, onde tudo era censurado. A censura se sentia não só claramente nas intervenções repressoras da política e do poder aplicadas de cima para baixo, porém o cotidiano era opaco e triste, desinformado (sem informação e sem forma inteligente), traumatizado pela ditadura, fantasmagórico, não esclarecido – não havia discussões abertas e livres relativas à arte contemporânea. Nas Artes Plásticas predominavam questões acadêmicas e mercadoló gicas. Conforme depoimento de Vera (naquela época integrante do Nervo Óptico): ‘não éramos contra o mercado, mas contra a dominação do mercado […]
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as minhas lembranças do Nervo Óptico, hoje em dia eu ‘classifico’ como memórias sensoriais, marcantes, vivas e formadoras […] porque são mais que registros lineares de fatos históricos e de época”.5 Em novembro de 1979 falece, aos 52 anos, o pai de Karin, Egon Lambrecht. Ainda no ano de 1979, Karin Lambrecht realiza sua primeira exposição individual, 100 × coração, no Escritório de Arquitetura de Ceres Storchi e Amigos, Porto Alegre, apresentando desenhos e pinturas.
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estar, simultaneamente, enquadrado nela. Em última instância, isso apenas significa que viver e pintar são inseparáveis’.”6 Na udk, Karin estuda História da Arte e Arte Abstrata, com Robert Kudielka, e conhece Michael John Chapman, um aluno inglês, orientando do professor Shinkichi Tajiri (1923-2009), responsável pela cátedra de escultura. Chapman tinha 32 anos e vinha de uma experiência artística muito intensa com o grupo Exploding Galaxy : 7 “Ele também falava muito de Hélio Oiticica e Lygia Clark”.8
1980
Já formada e com o título de bacharel em Artes Plásticas, com ênfase em desenho e gravura, Karin Lambrecht resolve viajar para a Alemanha após a morte do pai, a fim de ir ao encontro dos avós paternos que moravam em Berlim Oriental.
Ainda em 1980, Karin e Michael, então namorados, assistem Beuys ser vaiado na udk durante o simpósio da Fundação Karl Hofer, sob o tema “Überleben Durch Kunst?” [Sobreviver com arte?] a partir do livro 1984, de George Orwell.
Com seu caderno de desenhos e colagens, Lambrecht vai a Hochschule der Künste Berlin, em Berlim Ocidental (atualmente a universidade tem o nome Universität der Künste, udk, Berlim), e procura o artista e professor Raimund Girke (1930-2002), que aceita orientá-la em pintura, recomendando seu ingresso na turma do quarto semestre.
1981
Posteriormente, Karin se reportará a Girke para comentar a pintura de Iberê Camargo (1914-94):
1982
“Encontrei no catálogo de uma exposição individual de meu professor de pintura em Berlim, Raimund Girke, um depoimento sobre seu trabalho que me fez lembrar o sentido essencial que Iberê atribuía à pintura: ‘o que garante que eu sinta a pintura sempre como verdadeira ou correta é eu ter em mim, seguro, o sentimento de encontrar-me no interior dela, de
Durante as férias da udk nasce, em Porto Alegre, Yole Cuica Kamaiura Lambrecht Chapman. Entre dezembro de 1981 e janeiro de 1982, Karin e Chapman participam da exposição A casa e a cozinha, onde ela mostra pinturas com terra e têmpera, no Espaço n.o., em Porto Alegre.
De volta às aulas em Berlim, Karin anuncia o nascimento do bebê através do projeto de arte postal e recebe, em resposta, desenhos do italiano Vittore Barone e do inglês Robin Crozier. Realiza o trabalho O caminho do rio, “objeto de estudo de cor com a luz da atmosfera matinal e dois objetos”. Karin ainda comenta que no verão os tratou com pigmento preto / negro, cinzas e fuligem e, no inverno,
fig 7. Egon Lambrecht, 1927-79. fig 8. Ruína da Segunda Guerra Mundial na hdk, Berlim, 1980. fig 9. Michael Chapman e Jill Drower, Londres, 1968. fig 10. Participação do nascimento de Yole Cuica Kamaiura Lambrecht Chapman, 1982, arte postal.
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coloriu na neve de Charlottenburg. Com esse trabalho ela pretendia aprofundar-se na cor do ambiente natural e investigar como o objeto pictórico se mescla com o ambiente natural. A importância da luz e da cor foi tema de interesse e pesquisa da artista até sua volta para o Brasil e persiste até a atualidade como foco de grande importância em seu trabalho.
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Lambrecht é convidada por Mônica Nador e Luciana Brito a participar do projeto Arte na Rua 2, supervisionado pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade São Paulo (mac-usp). Nesse formato ainda estava inserido o projeto Outdoor, no qual participaram aproximadamente 75 artistas brasileiros. 1984
1983 fig 11. Karin Lambrecht. Caminho do rio, 1982, objeto-pintura, Berlim Oriental. fig 12. Dione Veiga Vieira no workshop “Exercícios de Pintura”, jardim do solar, Porto Alegre, 1983. fig 13. Karin Lambrecht. O animal é mais do que vemos, 1983, outdoor, 280 x 870 cm, São Paulo. fig 14. Élida Tessler, Karin Lambrecht, Salvio Daré (1963-93), Moacir Chotguis, (atrás) Herbert Bender, Gisela Waetge e Ricardo Trigo, ao fundo um exercício coletivo de pintura. A Sala, Porto Alegre, 1984.
Em julho, no antigo Museu de Porto Alegre, atual Museu Joaquim José Felizardo, ocorre a primeira oficina de pintura sob orientação de Karin Lambrecht. “Exercícios de Pintura” foi o nome escolhido para um workshop ministrado ao ar livre, nos jardins do solar situado à rua João Alfredo, 582, Cidade Baixa. A proposta de trabalho incluía o uso de pedras, terra e a confecção de diferenciados bastidores e suportes pelos próprios alunos. Compartilha do projeto 3 Processos de Trabalho, uma concepção de oficinas de reflexão artística e discus sões sobre pintura visando ao desenvolvimento de workshops, idealizado em parceria com Michael Chapman e Heloisa S. da Silva. Os encontros aconteceram entre os meses de novembro e dezembro, no Instituto Goethe, em Porto Alegre. Os três artistas se dividiram entre os trabalhos práticos da seguinte forma:
Em maio, Karin Lambrecht apresenta uma exposição individual na Galeria Tina Presser, em Porto Alegre. Karin Lambrecht e Heloisa S. da Silva criam “A Sala”, um lugar de trabalho onde elas orientavam refle xões e práticas de pintura. O espaço ficava localizado na avenida Protásio Alves, 3177, em Porto Alegre. Segundo Karin, “o mais bonito dessa experiência é que cada um tinha a chave do espaço e usava como ateliê”.9 Nesse período Karin presta concurso para lecionar desenho e percepção no Instituto de Artes da ufrgs. Aprovada em terceiro lugar, a artista não chega a ser nomeada. Em maio apresenta exposição individual na Galeria Tina Presser, em Porto Alegre. Entre os meses de julho e agosto participa da exposição Como vai você, Geração 80?, mostra coletiva realizada na Escola de Artes do Parque Lage, no Rio de Janeiro.
Karin propôs a oficina Exercício / Cor / Fazer; Heloisa, a oficina Exercícios Gráficos; e Michael Chapman, uma oficina chamada Receitas de Arte.
1985
Como evento paralelo, ainda houve no Instituto Goethe a exposição Artistas em seu ateliê, com os registros da fotógrafa tcheca, Erika Kiffl, realizados no ateliê de artistas internacionais.
Participa da seleção para Millay Colony for the Arts, Austerlitz, Nova York. Duas cartas de apresentação foram necessárias para trabalhar como artista residente. Karin Lambrecht recebeu-as de Iberê Camargo e de Paulo Herkenhoff.
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Inaugura em julho de 1985 uma exposição individual, intitulada A fertilidade de Anita, na sala Bandeirante, no Museu de Arte Contemporânea de Curitiba.
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disso, menciona Laura Ida em um texto que escreveu sobre o meu trabalho”.11 1986
É convidada a participar da xviii Bienal Internacional de São Paulo, com o tema Expressionismo no Brasil: Heranças e afinidades, onde ocupou a sala “Expressionismo, uma herança brasileira”. A mostra teve a curadoria de Stella Teixeira de Barros e Ivo Mesquita. Entre outros artistas, nessa Bienal também participaram Iberê Camargo, Maria Lídia Magliani, Rubens Oestroem e Xico Stokinger. Karin Lambrecht e Heloisa S. da Silva inauguram a exposição Os olhos dos gatos que ouvem. Essa mostra chama a atenção, conforme escreve Frederico Morais: “Karin e Heloisa: Gaúchas premiadas estão na Macunaíma: A Galeria Macunaíma, da Funarte, continua sendo um território gaúcho, no Rio de Janeiro. Agora são duas artistas gaúchas, Karin Lambrecht e Heloisa S. da Silva, que ali se apresentam. Karin esteve na mostra Como vai você, Geração 80?, na Escola de Artes Visuais e no último Salão Nacional recebeu menção honrosa. Entre 1980 e 82 residiu e estudou na Alemanha. Os trabalhos que vai apresentar a partir dessa terça-feira integram as séries “Os Comedores de Almas”, “Tentáculos das Espirais” e “Fantasmas”. Heloisa é colega de ateliê de Karin e, como ela, formou-se pelo Instituto de Artes da ufrgs, viajando, em 1981, pelos Estados Unidos e Europa. Ambas realizaram mostras individuais, na Galeria Tina Presser, de Porto Alegre.”10 Karin lembra que, “na época, a Funarte requisitava um texto crítico, e na ausência de alguém com que nos identificássemos em Porto Alegre, inventamos Laura Ida Rambrosso. Mais tarde, Paulo Herkenhoff, sabendo
Entre os meses de junho e julho Karin realiza duas exposições individuais: Nascimento do tempo, no Espaço Capital, em Brasília; e individual na Galeria Tina Presser, em Porto Alegre. Selecionada para o programa Artist in Residence, do International Visitor Program, do United States Information Agency, usia, vinculada a Millay Colony for the Arts, Karin viaja para os Estados Unidos. No programa estão previstas visitas a universidades, museus e instituições americanas nas cidades de Washington, Nova York, Santa Fé, Los Angeles, San Francisco e Chicago. Estava presente na comissão de seleção a artista Louise Bourgeois, que entrega para Karin um bilhete combinando um segundo encontro, onde Karin deveria apresentar em slides os trabalhos que realizou em Millay Colony. Permanece de setembro a outubro na Millay Colony for the Arts, Austerlitz, Nova York. No final do ano, Karin viaja para a Alemanha, onde, no ano seguinte, realiza a exposição individual Quo Vadis, na Petrus Kirche, com o trabalho produzido na Millay Colony. 1987
O ano começa com o evento Connections Project / Conexus, organizado por Josely Carvalho e Sabra Moore, realizado no Museum of Contemporary Hispanic Art, Mocha, Nova York. Karin Lambrecht está entre as artistas mulheres selecionadas para apresentar seus trabalhos, e assim convida Heloisa S. da Silva, Regina Coeli de Freitas Costa Rodrigues e Lígia D’Andrea.
fig 15. Cartaz da exposição A fertilidade de Anita, Museu de Arte Contemporânea de Curitiba, 1985. fig 16. Karin Lambrecht. Resta pensar em seu vagar e seu encontro, 1985, esmalte sintético e guache sobre tela, 170 x 315 cm, xviii Bienal de São Paulo. fig 17. Karin e Yole em frente à pintura Running Man, de Jonathan Borovsky, realizada sobre o muro de Berlim para a exposição Zeitgeist (1982), 1986. fig 18. Bilhete que Louise Bourgeois entregou a Karin Lambrecht para futuro encontro em sua casa, Nova York, 1986. fig 19. Karin Lambrecht. Quo Vadis (detalhe), 1986, pintura; pigmento em emulsão acrílica sobre lona, recortes e dobraduras, com relógio de sucata de ferro, 200 x 300 cm (aprox.), realizada durante a Millay Colony for the Arts, exposta na Petrus Kirche, Berlim (obra efêmera).
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fig 20. Karin Lambrecht. A garganta, 1987, pintura; pigmentos em emulsão acrílica e esmalte sintético e recortes em ferro sucateado sobre lona, 240 x 250 cm, coleção particular. fig 21. Karin Lambrecht e Liliana Porter. Sem título, 1987, apresentada no Project/Conexus, coleção da artista. fig 22. Karin Lambrecht. Ester ou Ester entra no pátio interior da casa do rei, 1987, xix Bienal de São Paulo, 1987. fig 23. Workshop com os alunos na oficina de pintura em Vitória, es.
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Karin Lambrecht e a artista Liliana Porter apresentaram suas obras na temática Nascimento. Ao retornar para o Brasil, em novembro, Karin Lambrecht recebe, no Rio de Janeiro, o Prêmio Ivan Serpa, conferido pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas, órgão da Funarte.
local, o trabalho de Karin gerou polêmica: “Os trabalhos dessa jovem marcam um ponto-final dentro da criação artística brasileira. Abandonando o objeto, a imitação do figurativo enfim, esta brasileira de origem germânica rompe definitivamente com a tradição”.12
Nesse mesmo período participa dos Domingos Críticos – encontros de caráter informal no ateliê de Iberê Camargo, ocasiões em que os assuntos do cotidiano e das artes eram comentados pelos artistas.
Em dezembro realiza uma oficina de pintura e uma exposição individual como parte do projeto Artista Visitante, em Vitória. 1989
De setembro a outubro, Lambrecht integra a xix Bienal Internacional de São Paulo a convite da curadora-geral, Sheila Leirner. Junto à confirmação de participação, Lambrecht enviou um desenho do trabalho em desenvolvimento e um texto complementar à obra. 1988
Falece em Porto Alegre a avó materna de Karin, Ida Haessler. Em julho, a artista realiza uma exposição individual na Galeria Espaço Capital, em Brasília. Lambrecht participa da exposição 6 × Brasil, na Galerie Raue, com curadoria de Cláudia Gianetti, em Bonn, Alemanha.
Em janeiro, Lambrecht apresenta uma exposição individual na Galeria Thomas Cohn Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro.
1990
Vive com a filha Yole alguns meses na casa e ateliê de Simone Michelin, no bairro Rio Comprido, no Rio de Janeiro.
De março a abril, Lambrecht realiza sua primeira exposição individual em São Paulo. Pinturas e objeto, no Subdistrito Comercial de Arte, dos marchands João Sattamini e Rubens Breitman.
Ao receber o convite da Diretoria de Intercâmbio Cultural da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj), Karin Lambrecht prepara um workshop de pintura.
Entre agosto e outubro apresenta mais uma exposição individual, agora na Galeria Tina Zapolli, em Porto Alegre. 1991
De maio a outubro, participa de uma exposição coletiva nomeada Encontro com a pintura brasileira, na Galerie M., em Kassel, Alemanha. Entre outros artistas, estiveram presentes na mostra Enéas Valle, Newton Cavalcanti e Maria Tomaselli. Na imprensa
Participa da mostra Viva Brasil Viva, em Kulturhuset, Estocolmo, com curadoria de Elizabet Haglund. Na ocasião Karin dividiu a sala de exposição com Tunga. Outros artistas igualmente reconhecidos participavam da mostra, entre eles Maurício Bentes, Jac Leirner e Frida Baranek.
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De abril a maio apresenta seu trabalho em Caracas, com curadoria de Aracy Amaral. A exposição coletiva Brasil la nueva generación acontece na Fundación Museo de Bellas Artes. Lambrecht é representada pelo trabalho Os sem-terra. De maio a julho participa da exposição Galáxias, no Instituto Brasileiro Alemão de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Em novembro, a artista participa da exposição br 80, no Itaú Cultural, São Paulo, com a curadoria geral de Frederico Morais. Como artista convidada, Lambrecht também participa da iv Bienal de Havana, com curadoria de Lilian Lanes.
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Marina Abramovic (Iugoslávia) e Bill Woodrow (Inglaterra). Essa exposição de cunho internacional foi apresentada no mam-rj, no Museu de Arte de Brasília, na Fundação Bienal de São Paulo, no Staatliche Kunsthalle, Berlim; no Technische Sammlungen der Stadt Dresden, em Dresdém; e no Ludwig Forum für Internationale Kunst, Aachen, Alemanha. Em setembro realiza uma exposição individual no Instituto Goethe, em Porto Alegre. Em outubro participa de coletiva no Subdistrito Comercial de Arte, em São Paulo. É convidada a participar do xi Salão de Arte do Pará, realizado pela Fundação Maiorana. Paulo Herkenhoff assina a curadoria geral. Artistas como Benedito Mello e Burle Marx estão entre os participantes.
1992
Em junho, a artista participa do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, com curadoria de Sônia Salzstein. Em apoio ao lançamento do Calendário Anistia Interna cional, uma mostra é organizada com obras de Karin Lambrecht, Daniel Senise, Vitor Arruda e Leonilson, com curadoria de Marcus Lontra, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (mam-rj). É selecionada para participar do projeto Arte Amazonas (uma contribuição do Instituto Goethe de Brasília para a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, a Rio-92). Os artistas deveriam desenvolver um trabalho prático em ateliê aberto na cidade de Belém do Pará com saídas de campo à reserva de Caxuanã, na floresta Amazônica. O projeto envolveu 27 artistas de quinze países para tratar da devastação da floresta Amazônica. Entre eles, Tunga (Rio de Janeiro),
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1993
Entre os meses de abril e junho, Karin Lambrecht participa do Panoramas da Arte Brasileira 1993, que teve como tema a pintura, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (mam-sp). Toma parte no projeto Aquisição, do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), em Porto Alegre. Entre abril e julho, Lambrecht participa da exposição coletiva Brasil contemporâneo, na Casa da Imagem, em Curitiba. Entre maio e junho, participa de coletiva no Espaço Namour, em São Paulo. Entre agosto e setembro integra, com o trabalho Diamonds in The Sky, 1992, a exposição Uma antessala para Joseph Beuys, no Instituto Goethe, em Porto Alegre.
fig 24. Karin Lambrecht. Marco Polo, 1991, objeto-pintura; mesa, lona, barquinho, bacia, gesso e pigmentos em emulsão acrílica sobre lona, 70 x 170 x 170 cm, iv Bienal de Havana, 1991. fig 25. Karin Lambrecht. O destino: Muss es sein - Es muss sein, 1986, pintura; pigmentos em emulsão acrílica sobre lona com objeto recortado e dobraduras em sucatas de ferro, 280 x 200 cm. Encontro com a pintura brasileira, Kassel, Alemanha, 1988. fig 26. Pedro Romero, Kazuo Katase, Karin Lambrecht, Pere Nogueira, Julião Sarmento, Miguel Rio Branco, Marina Abramovic e Margalho, ilha de Marajó, pa, 1992. fig 27. Karin trabalhando na garagem náutica do Clube do Remo, Belém, pa.
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Esse projeto também recebe a mostra itinerante de desenhos do artista alemão, tendo como curadora Vera Chaves Barcelos. fig 28. Karin, parque de Caixuana, pa, 1992. [foto Miguel Rio Branco] fig 29. splash (detalhe), pigmento, terra, roseira, metal e chuva sobre tela, 290 x 220 cm, Instituto Goethe, Porto Alegre,1992, coleção Justo Werlang. fig 30. “Arte brasileira e contemporânea”, ciclo na Galeria de Arte da Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre, 1994.
Entre os meses de setembro e outubro, Karin realiza individual na Universidade Federal Fluminense (uff), em Niterói, Rio de Janeiro. Entre setembro e outubro participa da exposição Encontros e tendências, projeto de Agnaldo Farias e Maria Izabel Branco Ribeiro promovido pelo mac-usp, e prossegue na mostra Um olhar sobre Joseph Beuys, na Fundação Athos Bulcão, em Brasília. Essa exposição foi idealizada para receber a mesma mostra itinerante do artista alemão que já estivera em Porto Alegre. Realiza um trabalho usando aproximadamente meia tonelada de terra no Museu Universitário e Videoteca da ufrgs, em Porto Alegre. Em Florianópolis, no mês de dezembro, apresenta sua última exposição individual do ano, na Fundação Cultural Prometheus Libertus. De dezembro de 1993 a fevereiro de 1994, Lambrecht participa da Brazil Images of the 80’s and 90’s, exposição coletiva no Art Museum of the Americas, em Washington.
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De março a setembro Karin Lambrecht participa da mostra coletiva The Exchanges Show Twelve Painters from San Francisco and Rio de Janeiro, com o trabalho Wund, 1993. A mostra internacional foi apresentada no Center of the Arts Yerba Buena Gardens, em San Francisco, e de setembro a novembro foi levada ao mam-rj. Participa do projeto Experiências Plásticas no campus da ufrgs juntamente com Heloisa S. da Silva, Lia Menna Barreto, Mauro Fuke e Michael Chapmam. Essa iniciativa foi registrada pela cineasta Marta Biavaschi. Nos meses de abril a maio, a Galeria de Arte da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, recebe as obras de Karin Lambrecht para o ciclo Arte Brasileira e Contemporânea idealizado por Gaudêncio Fidelis. Participaram igualmente da exposição artistas como Jac Leirner, Iole de Freitas, Dudi Maia Rosa, Nuno Ramos, entre outros. De abril a maio Lambrecht esteve entre os artistas selecionados para a Bienal Brasil Século xx, participando do núcleo “Atualidade: De 1980 aos nossos dias”, com curadoria de Agnaldo Farias e Nelson Aguilar, na Fundação Bienal de São Paulo. Em maio a artista passa a integrar a coleção Gilberto Chateaubriand, sediada no mam-rj.
1994
Por ocasião da morte de Iberê Camargo, Lambrecht faz depoimento à Folha de S. Paulo: “Foi o maior pintor brasileiro de sua geração. Foi, também, um dos últimos românticos – um artista na acepção clássica da palavra: trabalhava solitário em seu ateliê, nunca fazia duas telas ao mesmo tempo, às vezes levava meses para solucionar um quadro. Tudo o que produzia tinha um quê de sofrimento, de angústia”.13
No mês de junho Karin Lambrecht e Heloisa S. da Silva realizam uma exposição de pinturas na igrejinha Martin Luther para chamar a atenção da comunidade: “Igreja abandonada é cenário de exposição: Karin Lambrecht e Heloisa S. da Silva apostam em outro tipo de relação entre o espectador e a obra […] ‘Um museu, em geral, é um local de excessos’, justifica a artista
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plástica gaúcha Heloisa S. da Silva. ‘Uma igreja é um espaço de meditação e silêncio, em que a obra de arte pode respirar mais’. […] Ela e Karin Lambrecht expõem duas telas de grandes dimensões […] junto ao Colégio Pastor Dohms, no bairro Higienópolis, em Porto Alegre. Expoentes da chamada Geração 80, grupo informal que surgiu na década passada, num movimento de redescoberta da pintura, as duas artistas acalentavam há vários anos o projeto de montar uma instalação em um templo. […] Karin trabalha com tinta e materiais orgânicos sobre tela, como terra e fuligem. Heloisa também emprega cores terrosas e ocres, que se confundem com as paredes da capela.”14 Faz a curadoria da exposição Material e imaterial, convidando as artistas plásticas Iole de Freitas (Rio de Janeiro) e Lígia D’Andrea (La Paz). A exposição acontece entre os meses de julho e agosto, na Galeria de Arte da uff, em Niterói. Realiza individual na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo. Idealiza a instalação A cruz e a torre para ocupar o espaço do Torreão, em Porto Alegre. O nome da obra está relacionado à experiência da artista, que, ao abrir a janela do Torreão, avistava a torre e o sino da igreja Santa Teresinha, no bairro Bom Fim. Em dezembro realiza exposição individual na Fundação Cultural Prometeus Libertus, Florianópolis. 1995
No mês de julho participa da Gesamtkunstwerk, uma exposição apresentada por Lambrecht, no Instituto Goethe, em Porto Alegre. A realização desse trabalho foi registrada pela cineasta Marta Biavaschi e recebeu o título Actio.
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1996
Diálogos, experiências alemãs, apresentada de agosto a setembro no mam-rj com artistas brasileiros que estudaram e trabalharam na Alemanha. Além de Lambrecht, Alex Flemming, Antonio Dias, Carlito Carvalhosa, Cristina Pape, José Spaniol e Lígia D’Andrea participam da mostra. Em abril Karin Lambrecht passa a integrar a coleção do mam-sp, graças à doação da coleção de Rubem Breitman, por ocasião do fechamento do Subdistrito de Arte. Entre os trabalhos doados havia pinturas de Paulo Monteiro, Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Rodrigo Andrade, entre outros. As novas obras reunidas dão origem à exposição Arte brasileira contemporânea, doações recentes, mam-sp, com curadoria de Tadeu Chiarelli. De dezembro de 1996 a janeiro de 1997, Lambrecht participa do projeto Eventos Especiais nas Galerias Sérgio Milliet e Lygia Clark, Funarte, Rio de Janeiro. 1997
De 11 a 23 de abril, Lambrecht participa da segunda exposição na igrejinha Martin Luther com a amiga e artista Heloisa S. da Silva. De abril a maio, apresenta a exposição individual Terra, no Instituto Goethe, em São Paulo, com curadoria de Agnaldo Farias. Duas exposições individuais marcam o mês de junho: a primeira no Espaço Cultural 508 Sul, Brasília, e a segunda na Galeria Modernidade, em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, esta última ainda relacionada a um projeto desenvolvido pela i Bienal do Mercosul.
fig 31. Karin Lambrecht. Forma deitada, 1996, pintura: terra, óxido de ferro, carvão e pastel seco sobre tela, recortes e dois objetos, cruz dupla contendo rosas secas, trigo e vidros quebrados, 190 x 770 cm. Pintura e desenho: Projetos especiais Funarte, Rio de Janeiro, 1996, coleção da artista. fig 32. Karin Lambrecht. Morte eu sou teu, 1997, sangue de carneiro sobre toalhas e desenhos, 170 x 171 x 15 cm, coleção Justo Werlang. fig 33. Karin Lambrecht. Terra (detalhe), 1997, manchas de terra e rasgos em tecido de algodão, 200 x 1200 cm, Instituto Goethe, São Paulo.
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Em julho a artista participa da exposição coletiva Experiências e perspectivas, no Museu Casa dos Contos, em Ouro Preto, com curadoria de Cláudia Renault Brasil. Mostra relacionada ao xxix Festival da Universidade Federal de Minas Gerais, que apresentava 12 visões contemporâneas com trabalhos de Angelo Venosa, Daniel Senise, Hilal Sami Hilal, Paulo Pasta, entre outros. A artista integra exposição na Bolsa de Arte de Porto Alegre, por ocasião da i Bienal do Mercosul, com destaque pelo trabalho apresentado, Morte eu sou teu, 1997. fig 34. Karin Lambrecht. Sem título, 1998, interferência em equipamento urbano realizada no projeto “Arte en la calle”, Buenos Aires. fig 35. Karin Lambrecht. Organismo, 1988. Remetente, Porto Alegre. fig 36. Karin Lambrecht. Sem título, 1988, estudo para o trabalho Organismo, coleção da artista. fig 37. Karin Lambrecht. Alvo, 1999, sangue de carneiro sobre têxtil, 300 cm de altura (aprox.) e base de 150 x 300 cm. Messagers de la Terre, Rur’Art, Espace d’Art Contemporain, Lycée Agricole Xavier Bernard, Rouillé, França.
De novembro a janeiro de 1998, a artista participa da vi Bienal Internacional de Pintura, em Cuenca, Equador, onde apresenta a obra Morte eu sou teu. 1998
De janeiro a fevereiro a artista é convidada para a sala especial da exposição Vista assim do alto, mais parece um céu no chão, no xvi Salão Nacional de Artes Plásticas, realizado no mam-rj, com curadoria de Agnaldo Farias. Participa do projeto Arte en la calle, iniciativa conjunta entre as prefeituras de Porto Alegre e de Buenos Aires que organiza a mostra coletiva de artistas dos dois países. Promove oficina de (des)Orientação Integrada em Pintura, com ênfase em arte contemporânea. Esta tinha como principais objetivos: atualização, experimentação / laboratório, reflexão e produção por parte dos alunos. Estendeu-se até 2002. De setembro a outubro participa do projeto Remetente.15 Karin lembra: “O projeto Remetente foi organizado por artistas, entre eles a Maria Helena Bernardes […] Depois da exposição, o trabalho Organismo, 1998, que eu fiz, foi levado por
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Karin Stempel para Wiesbaden, Alemanha, para a exposição Quase nada.” Em novembro inaugura a mostra Quase nada, no Nassauischer Kunstverain Wiesbaden, Alemanha. O tra balho Organismo, de Lambrecht, é apresentado no catálogo da exposição. 2000
Em fevereiro Lambrecht é convidada pelo curador Jacques Leenhardt a participar da exposição Messagers de la Terre, Espace d’Art Contemporain, Lycée Agricole Xavier Bernard, em Rouillé, na França. Entre os meses de maio e julho a artista participa da xii Mostra da Gravura de Curitiba, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa, na Fundação Cultural de Curitiba. O Segmento “Carta Pero Vaz de Caminha” da mostra Brasil: 500 anos, promovido pela Fundação Bienal de São Paulo, com curadoria de Emanoel Araújo, convida Lambrecht a realizar uma obra: os materiais eleitos são terra da região de Caraíva e Monte Pascoal, Bahia, sangue de carneiro, papel, óleo e ouro. 2001
De março a abril a exposição Messagers de la Terre é também montada na Galerie Ephémeré, Montigni-le-Tilleul, Bélgica. Em maio Lambrecht participa do projeto Areal, que dá origem ao livro Eu e você. De abril a junho faz parte da exposição O espírito da nossa época – coleção Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, mam-sp e mam-rj, com curadoria de Stella Teixeira de Barros.
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No mês de julho integra o projeto Inserções: Caderno T, Bravo, com curadoria de Angélica de Morais e Paulo Herkenhoff, no Instituto Takano, São Paulo. Participa, de outubro a dezembro, da iii Bienal de Artes Visuais do Mercosul, com curadoria geral de Fábio Magalhães. De maio a junho, participa da exposição Espelho cego: Seleções de uma coleção contemporânea, mostra que traz a coleção de Marcantonio Vilaça (1962-2000), com curadoria de Márcia Fontes, no Paço Imperial das Artes, Rio de Janeiro.
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2003
De janeiro a março, integra a exposição Pele, alma, no Centro Cultural Banco do Brasil (ccbb-sp), com curadoria de Katia Canton. Participa do seminário que dá origem ao livro Diálogos com Iberê Camargo, organizado por Sônia Salzstein. 2004
De abril a julho participa da exposição coletiva Onde está você, Geração 80? no ccbb-rj, com curadoria de Marcus Lontra. 2005
2002
De março a julho é convidada para expor na sala especial da xxv Bienal Internacional de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, com curadoria de Agnaldo Farias. A revista inglesa Frieze confere destaque à obra de Lambrecht.
Participa, de março a maio, da exposição O corpo na arte contemporânea brasileira, no Itaú Cultural, São Paulo, com curadoria de Fernando Cocchiarale e Viviane Matesco. Mais do que uma exposição, esse evento multidisciplinar propôs atividades com artes visuais, teatro, dança, cinema, vídeo, jornalismo e educação.
Em abril participa da exposição Violência e paixão: Um viés romântico-expressionista na arte contemporânea brasileira, no mam-rj e no Santander Cultural, Porto Alegre, com curadoria de Ligia Canongia. Lambrecht apresenta a obra Desmembramento, 2000.
Dentro do segmento “Corpos Subterrâneos”, Lambrecht apresenta a obra Con el alma en un hilo, 2003.
Participa como artista convidada do Ateliê de Gravura de Iberê Camargo – projeto da Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.
Participa do projeto Rede de Artes Visuais, da Funarte, onde orienta três oficinas de pintura: a primeira em Salvador, no Museu de Arte Moderna da Bahia; a segunda em Belém, no Espaço Cultural Casa das Onze Janelas; e a terceira, já em 2006, em Recife, no Museu Murillo La Greca, intitulada Prática e discussão em pintura. A direção desse projeto ficou sob tutela de Xico Chaves.
Em agosto apresenta no Margs, em Porto Alegre, exposição individual com o trabalho que ocupou sala especial na xxv Bienal Internacional de São Paulo. Em junho expõe na Valu Oria Galeria de Arte, São Paulo, e participa da mostra coletiva Os caminhos do contemporâneo 1952 – 2002, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro.
De setembro a outubro Lambrecht inaugura exposição individual na Galeria Nara Roesler, em São Paulo.
Lambrecht é convidada pelo curador Paulo Reis (1960-2011) e Albuquerque Mendes a participar da exposição
fig 38-40. Karin Lambrecht. Con el alma en un hilo, 2003. fig 41. Karin Lambrecht. Sem título, 2002, gravura, água-tinta, água-forte, ponta seca, 60 x 60 cm, acervo Galeria Nara Roesler, exemplar 58/60.
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Lágrimas, no Mosteiro de Alcobaça, em Portugal. A obra exposta, Meu corpo Inês, 2005, ainda inédita no Brasil, pertence ao acervo da artista e atualmente está aos cuidados da Galeria Graça Brandão, no Porto, Portugal. fig 42. Karin Lambrecht. Sem título, 1985, chapa enferrujada, lona manchada e madeira, 102 x 100 X 6 cm, coleção Miguel Chaia. fig 43. Exposição individual, Galeria Nara Roesler, São Paulo, 2005. fig 44. Karin Lambrecht. Fragmentos amorfos, 2006, terra, óleo, giz, linho, feltro sintético, fio de cobre e presilhas sobre tela, 183,5 x 192,5 cm, acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo, doação Deutsche Bank.
“Karin Lambrecht apresenta uma instalação onde conjuga acção, pintura, fotografia e desenho, apresentada num palco de imemoráveis emoções. Nesta obra a artista aborda o sentido trágico do corpo, do estar no mundo, de ter coração, fígado, rins, pulmões – órgãos essenciais que habitam o espaço vital e que fornecem sangue, bílis, filtram e purificam o corpo, morada definitiva da alma neste mundo.”16 Na obra Meu corpo Inês, a constância do sangue e das vestes se mantém de maneira inegável: “Na execução das vestes […] além da memória da camisola informe (muito usada pelas mulheres da região da campanha na hora do parto), estão presentes as referências do talar do pastor da comunidade (na tradição de Martin Luther), dos aventais de trabalho, e dos aventais hospitalares. […] Ao fazer uso das vestimentas para atuarem como parte de suas obras, Lambrecht busca substituir o corpo. […] E revelado o corpo através das vestes e de diferenciados procedimentos os trabalhos da artista dizem respeito aos novos espaços da pintura.”17 Karin participa do projeto Gravura em Metal: Matéria e Conceito, no Ateliê de Iberê Camargo, realizando no próprio Ateliê de Gravura de Iberê Camargo um trabalho para o Clube de Colecionadores de Gravura, mam-sp. De agosto a setembro, participa da exposição Dor, forma, beleza: A representação criadora da experiência
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traumática, na Estação Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria de Olívio Tavares de Araújo. Integra a v Bienal do Mercosul, intulada Histórias da arte e do espaço, como parte do segmento “A Persistência da Pintura: Núcleo Contemporâneo”. A obra apresentada foi Caixa do primeiro socorro, 2005: “Esse trabalho de Karin exige um distanciamento programático. Pontualmente, lugares em que se repete o evento de abate de ovelhas, rotina ancestral do homem do campo, hábil e perito no seu ofício, inconsciente das pulsões de um rito originário que protagoniza. […] A obra instaura-se invocando o mistério que atravessa aquele ato, casual naquela região, mas que se torna um espasmo lúgubre sob os olhos perplexos do homem urbano. Como a narrativa mítica, suspende a positividade do real.”18 2006
Participa da exposição Manobras radicais, ccbb-sp, com curadoria de Paulo Herkenhoff. Participa da exposição do Mercado de carnes de Belém / Pará, também com curadoria de Paulo Herkenhoff. De agosto a setembro, participa da exposição coletiva 9 artistas, na Galeria Nara Roesler, em São Paulo. Participa do evento Encontro com Arte: mesa-redonda com os temas “Razão e Sensibilidade – as fronteiras, os limites, os opostos no mundo contemporâneo”, no Espaço Fumoir da Casa Cor, em Belo Horizonte, com curadoria de Paulo Reis. 2007
Integra a exposição coletiva Anos 70: Arte como questão, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com curadoria de Glória Ferreira.
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De maio a junho participa da exposição 80, 90 : Modernos, pós-modernos etc., no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com curadoria de Agnaldo Farias.
De dezembro a março, participa da exposição Lugares desdobrados, com Elaine Tedesco e Lucia Koch, na Fundação Iberê Camargo.
Ainda em maio participa da exposição Mulheres artistas: Olhares contemporâneos, no mac-usp, em São Paulo, com curadoria geral de Lisbeth Rebollo.
Karin Lambrecht recebe dois Prêmios Açorianos de Artes Plásticas: destaque em “Pintura” e “Melhor Exposição Coletiva” por sua participação na exposição Lugares desdobrados, na Fundação Iberê Camargo, em 2008.
Karin participa da exposição coletiva Coleção Itaú Contemporâneo: Arte no Brasil, 1981-2006, também no Instituto Tomie Ohtake, com curadoria novamente de Agnaldo Farias. 2008
Realiza exposição individual na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, na qual apresenta a obra No quarto com Camus: “Faz quase cinquenta anos desta visita de Albert Camus a Porto Alegre, e esta visita agora é revisitada […] numa exposição que revive o pouco tempo que o ensaísta passou naquela cidade (Porto Alegre). A artista produz uma instalação onde o tempo – matéria essencial que dá corpo ao Existencialismo – também dá corpo à obra de arte. O ambiente é um pequeno quarto de dormir – talvez o lugar onde o escritor tenha escrito algumas linhas –, num formato de cruz rebatida no chão, onde o núcleo é ocupado por uma cama e uma mesa […] Mas também refaz aquele intenso e metafísico azul que está nos céus de Giotto, nas marinhas de Cézanne e de Matisse, no infinito de Yves Klein, todos estes mediterrâneos, como Camus. A artista mistura a existência real do escritor com o sentido existencial de sua obra evocando o céu cúmplice do ato de Meursault (O estrangeiro) ou ainda o da infância do artista na distante Argélia numa projeção.”19
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Expõe na coletiva Metafísica do belo, Galeria Nara Roesler, em São Paulo. Em novembro idealiza o evento Órbitas dos anos 80: Exposição e seminário – Memória e atualidade. Tomou como referência para a realização desse projeto outras três exposições realizadas no Instituto Goethe, em Porto Alegre, e no Instituto Cultural Brasileiro-Alemão de Santa Maria: Gesamtkunstwerk (17 ago. a 16 set. 1995), 3 Processos de trabalho (21 nov. a 2 dez. 1983) e Quartado (13 set. a 5 out. 1990). Participou da exposição Dentro do traço, mesmo, que reuniu uma seleção de artistas durante o projeto Artista convidado no atelier de gravura de Iberê Camargo. Nesse projeto, os artistas convidados usavam o equipamento do atelier para criar uma série de gravuras e doavam parte das obras para a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Participa do xii Leilão de pratos da Associação Cultural de Amigos do Museu Lasar Segall, em São Paulo. 2010
De setembro a novembro participa da exposição coletiva Ponto de equilíbrio, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
fig 45. Exposição 80/90 Modernos, pós-modernos etc., 2007, obras de Nuno Ramos, Ernesto Neto e (no solo) Karin Lambrecht. São Paulo. fig 46. Karin trabalhando na montagem da obra Pai, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2008. fig 47. Karin com o guia Shalon Klieneman e dra. Maria Cristina Schneider, Via Crúcis, Jerusalém, 2008. fig 48. Desenho do amigo e colecionador Justo Werlang para sala expositora de Karin Lambrecht, Porto Alegre, 2010.
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fig 49. Sala expositora de Karin Lambrecht desenhada pelo amigo e colecionador Justo Werlang, Porto Alegre, 2010. fig 50. Lichthaus [Casa de luz], 2009. Órbitas dos anos 80: Memória e atualidade, Instituto Goethe, Porto Alegre, 2009. fig 51. Cores, palavras e cruzes, 2012, Galeria Nara Roesler, São Paulo.
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De outubro a novembro a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a Secretaria do Estado apresentam no Museu de Arte de Ribeirão Preto (Marp) a exposição coletiva Arte e política: Outros olhares, com curadoria de Regina Teixeira de Barros. Participa da exposição Pintura: Da matéria à representação, na Fundação Vera Chaves Barcelos. Na ocasião apresenta a pintura Rumo ao sol, 1983, exibida pela primeira vez no Instituto Goethe, em Porto Alegre. 2012
O grupo de estudos de Lambrecht comemora dez anos de encontros sem orientação e já realizou estudos sobre Mira Schendel, Clarice Lispector, Merleau-Ponty, Proust, Lygia Clark, José Resende, entre outros. Fazem parte do grupo as amigas Virgínia Aita, Sandra Ling e Jane Tucci. De junho a julho Karin Lambrecht apresenta em São Paulo, na Galeria Nara Roesler, a exposição Cores, palavras e cruzes, com curadoria de Glória Ferreira.
NOTAS 1. O grupo que estudava com o professor Sória, entre eles Heloisa Schneiders da Silva (1955-2005), apresentou uma exposição no hall da Agência dos Correios e Telégrafos de Porto Alegre, em 26 mai. 1975. 2. Karin Lambrecht em depoimento à autora em 2 nov. 2011. 3. Id., ibid. 4. Id., ibid. 5. K. Lambrecht, in Vera Chaves Barcellos: Le Revers du reveurs. Capela de Sant Roc, Museu de Valls. Barcelona: 2003. 6. K. Lambrecht, in Salzstein, 2003, p.190. 7. “Nós fomos comparados ao grupo Living Theatre, mas tendo visto o Exploding Galaxy cara a cara com o Living Theatre uma noite no Roundhouse, é claro que nós não compartilhamos a
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mesma visão [do mundo]. O Living Theatre teve uma mensagem política clara e forte. Aquela noite eles conversaram sobre Che Guevara nos morros da Bolívia e então cantaram: ‘Nós não podemos tirar as roupas em público’. Isto era repetido novamente: ‘Nós não podemos tirar as roupas em público’. Sem parar, até Michael Chapman do Exploding Galaxy (descrito por Lygia Clark como ‘La force de la nature’) levantou-se do público e cantou: ‘Sim podemos. Nós podemos tirar as roupas em público’. Houve um impasse de alguns minutos. Então Mike tirou suas roupas e virou para o público ao redor. ‘Veja’, ele disse. ‘Nós podemos tirar nossas roupas em público.’ Eu assisti com derrisão quando o Living Theatre continuou seu canto original –eles nem sequer foram capazes de improvisar uma resposta.” (Trad.) Jill Drower, in Oiticica in London – The Whitechapel Experiment – Recollection p. 81. Brett; Figueiredo. Tate Publishing, 2007. 8. Depoimento da artista à autora. 9. Depoimento da artista à autora, out. 2002. 10. Frederico Morais, “Rio em Festa com a Arte em Cada Canto”. O Globo, Segundo Caderno, Rio de Janeiro, 24 fev. 1985, p. 8. 11. Karin Lambrecht em depoimento à autora em 2 nov. 2011. 12. Ilona Lehnart, “Stad und Kreis Kassel”, trad. B. M. Kunz, Montag, 24 out. 1988. 13. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 11 ago. 1994, p. 5. 14. Eduardo Veras. Zero Hora, Segundo Caderno, 3 jun. 1994. 15. Karin Lambrecht, Revista Remetente, nº único, de 3 set. a 4 de out. Porto Alegre, 1998. 16. Paulo Reis & Albuquerque Mendes, Lágrimas. Alçobaça: Mosteiro de Alcobaça, 14 maio - 11 jun. 2005. 17. Viviane Gil Araújo, “A simbologia das vestes na série ‘Registros de Sangue’, de Karin Lambrecht”. ESTÚDIO I: Artistas sobre outras obras, ano i, n. i. Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2010. 18. Virgínia Aita, “Pintura/Acontecimento”, in Paulo Sérgio Duarte (org.), A persistência da pintura. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2005. 19. Paulo Reis, Karin Lambrecht: Pintura, desenho e anotação. São Paulo: Galeria Nara Roesler, jun. 2008.
FORTUNA CrÍTICA
Ester entra no pátio do rei
Michael Chapman
“Pa Nam Pa Nam” ou o Fim da Pintura
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Christel Fricke
Karin Lambrecht e a reconstrução da selva
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Paulo Herkenhoff
O corpo, a mão, o vestígio | Sobre a obra Morte eu sou teu, de Karin Lambrecht
Icleia Borsa Cattani
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Assim por diante a propósito | de uma instalação de Karin Lambrecht Os nomes e as obras
Reynaldo Roels Jr.
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Ester entra no pátio do rei
Michael Chapman
O cenário de objetos e pinturas que Karin expõe este ano na Bienal de São Paulo deriva do Livro de Ester dentro do Velho Testamento da Bíblia. Na realidade, apenas um momento da história: o ponto em que Ester adentra o pátio do rei. Lendo-se o Livro de Ester, percebe-se que este é a parte central de toda a história ali contada. É um momento dramático e emocional para Ester, porque, de acordo com os costumes da corte do rei, qualquer pessoa que entrasse e chegasse até ele sem sua permissão, ou seria condenado à morte ou seria tocado pelo cetro de ouro; o que significava que sua vida havia sido poupada. Ester correu esse risco numa tentativa de salvar o seu povo, a raça judia que vivia naquele reinado e que estava sendo ameaçada de morte por um dos favoritos do rei: um homem de nome Hamã, sentindo-se insultado por Mardoqueu, um judeu que não se curvava diante dele, como era o costume, decidiu se vingar através de toda a raça judia com a conivência do rei. Ele marcou o dia em que todo judeu, não importava onde morasse, seria condenado à morte: inclusive seus filhos. O dilema de Ester: o dilema no qual Ester se encontrava era o de sacrificar seu povo ou arriscar sofrer sua própria ruína numa tentativa de salvá-lo. Ela não sabia o que estava por vir quando entrou no pátio do rei. É este o momento, é neste dilema que Karin está trabalhando de uma maneira expansiva e íntima ao mesmo tempo. Ela não está elaborando o momento histórico, e sim a situação na qual Ester se encontrava, a hesitação que sentia pelo que estava por vir para si mesma e seu povo, e a necessidade suprema de salvar seu mundo. Eu penso que Karin está usando essa história lendária como uma metáfora para alguma coisa muito maior e mais imediata para nós hoje em dia. Dentro do cenário de Karin existem muitas posições, imagens, entradas e saídas com as quais qualquer um pode meditar. A ideia surge em minha mente como uma situação de um jogo de xadrez, um diagrama plástico do mundo, de figuras, de gente, de relações. Uma mística vermelha se alastra sobre a arena, “der Ort des Geschehens” [o lugar de acontecimento]. A foto de um “bugre” mestiço, um garoto indígena, fresco e inocente, atrás de uma bacia estraçalhada. Por trás de figuras e altares, um vasto mundo pintado sobre a tela, vasto não só em termos de tamanho enquanto pintura, mas vasto em termos de associações, em minha opinião, com a vastidão da condição humana, física e espiritualmente, dentro do contexto deste mundo. Publicado na Gazeta do Sergipe, Arte e Literatura, 1987, por ocasião da xxi Bienal Internacional de São Paulo.
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“Pa Nam Pa Nam” ou o Fim da Pintura
Christel Fricke
A transitoriedade do belo de modo geral, e das belas artes em especial, foi frequentemente evocada. O belo e a arte, contudo, apresentam considerável persistência como objetos de considerações filosóficas e formação de teorias. Os fenômenos correspondentes até agora não se afirmaram com sucesso contra qualquer declaração de que teriam chegado ao seu fim. De onde se alimenta essa força de sobrevivência? Não por último, certamente, porque em ambos os casos tratam-se de fenômenos multiformes. Quantas coisas são consideradas belas por diferentes pessoas? E quantas coisas são vistas como uma obra de arte? Com relação aos respectivos critérios o que predomina é, sobretudo, a falta de clareza. O que é belo? O que é uma obra de arte? A estética filosófica esforça-se para responder a essas perguntas. Essa disciplina, porém, tem apenas uma existência modesta. Evidentemente, podemos conviver bem com a multiplicidade de critérios para beleza e arte e com a falta de clareza desses critérios. Talvez essa multiplicidade e falta de clareza tenham até uma função social importante. Quando se trata de questões de beleza ou de questões de arte, estamos mais dispostos a exercer tolerância do que quando se trata de verdade ou de justiça. Essa tolerância estética tem um reverso: a indiferença com a qual enfrentamos experiências no sentido de formular padrões intersubjetivos para o julgamento da beleza (entendida no sentido de qualidade artística) ou da arte, e fundamentá-los. O assunto da estética filosófica é proporcionalmente ingrato. Se não concordamos com outras pessoas quanto ao conceito de beleza de algo ou no que consideramos obra de arte, apelamos de bom grado para o nosso gosto pessoal e subjetivo. Não queremos impor esse gosto a ninguém. Não buscamos um consenso para começar, mas também não admitimos nenhuma interferência em questões do nosso gosto pessoal. Para mim, importante é julgar o que seria uma obra de arte e, aliados a isso, os critérios de qualidade estética, artística. Não apenas quando se trata da verdade e da justiça, mas também quando se trata de arte, da qualidade artística de uma obra, deveríamos colocar-nos o convite kantiano: “Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento”.1 No nosso julgamento estético de obras de arte não devemos nos basear no nosso gosto pessoal, nem devemos aceitar de modo acrítico que os chamados trendsetters, pessoas que determinam a moda, nos digam o que devemos tornar objetos da nossa estima, em questões relativas à arte. Toda interdição, ou autointerdição, se contrapõe ao entendimento estético de um objeto como obra de arte. O entendimento da arte é, sobretudo, percepção pelos sentidos e pela razão; sentimentos e percepções apenas desempenham um
1. Imannuel Kant, “Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?”, in Textos seletos. Rio de Janeiro: Vozes, pp. 63-64.
2. Artistas Convidados 1999, Museu de Arte Contemporânea, Casa de Cultura Mario Quintana, Galeria Sotero Cosme, Porto Alegre, rs, Brasil, 5 nov. 1999 – 30 jan. 2000.
papel secundário nesse assunto. Mas o entendimento da arte não torna supérflua a tolerância estética. Ao contrário: a tolerância estética revela-se na aceitação da reflexão estética sobre um objeto – quando se recusa o esforço da reflexão, existe a ameaça da indiferença estética. No outono de 1999, visitei uma exposição na cidade de Porto Alegre, no sul do Brasil, na qual se exibia arte contemporânea daquela região.2 Acompanhava-me uma estudante brasileira de filosofia e teoria da arte. A maioria dos trabalhos lá apresentados era, por sua aparência exterior, constituída de exemplares de gêneros de arte convencionais: obras de pintura e desenho, retangulares e de tamanho mediano, pendiam das paredes. Minha acompanhante contou-me a respeito das obras e dos artistas, bastante conhecidos por ela, que haviam criado aquelas obras. Em um nicho da sala de exposição havia uma grande mistura de diversos objetos, inclusive objetos semelhantes a quadros, que estavam encostados ou pendurados na parede.
Minha acompanhante queria passar por esta sem olhar, disse que não gostava de obras de arte daquele tipo, que, em sua opinião, não serviam para nada. Ela não queria começar uma reflexão estética sobre aqueles objetos, mas admitiu que tinham o status de obra de arte. Que tipo de obra de arte, na opinião dela? Nós damos a esse tipo de obras de arte o nome de “instalações”. Instalações são obras que não
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pertencem a nenhum dos gêneros tradicionais, e que em muitos casos são difíceis de conservar e transformar em objeto museológico. Mas o que transformava aquela instalação em uma obra de arte? Minha acompanhante teve de recorrer primeiro ao seu gosto pessoal. Não tentou examinar a instalação para verificar sua condição de arte e entendê-la esteticamente, como obra de arte. Se ela tivesse considerado esse arranjo de objetos como uma obra de arte, então estaria apenas confiando na instituição da arte. Ela conhecia a artista que arranjara daquela maneira tais objetos, sabia que a artista estudara em uma academia de arte, e que era conhecida e reconhecida na cena artística brasileira e para além desta. Quem não conhece a sensação de admiração e incerteza que recai sobre a pessoa ao olhar aquilo que é produzido pela “arte” contemporânea, ainda denominada dessa forma? Como podemos reconhecer se algo é uma obra de arte? Se um objeto é ou não uma obra de arte não pode mais ser decidido por suas características externas, tampouco se pode saber se pertence a determinado gênero de objetos. Por isso, à primeira vista não podemos julgar se algo é ou não uma obra de arte. Para decidir se um objeto é uma obra de arte ou não, devemos torná-lo objeto de nossa reflexão estética. Aqui devemos partir da hipótese de que seria uma obra de arte. Essa hipótese deve ser confirmada ou negada no processo de reflexão estética. A confirmação dessa hipótese, no caso concreto da reflexão sobre uma obra de arte, é mais fácil, realmente, do que a negação. Uma negação final dessa hipótese pode ser até mesmo excluída, pois não dispomos de uma escala contra a qual possamos encostar um objeto, como se estivesse junto a uma régua, a fim de testar se se trata ou não de uma obra de arte. Refletir esteticamente sobre uma obra de arte equivale a tentar entender esse objeto como um sinal livre, um sinal de um sistema de desenho não codificado cujo aspecto nos dá indicações sobre o seu significado. O sucesso da reflexão em questão não depende apenas do objeto dado, do tipo de sua natureza e do seu aspecto exterior, mas também, e sobretudo, de nós, os sujeitos da reflexão estética. Reflexão estética, o entendimento da arte exige, como toda reflexão, o nosso esforço – no qual a conversa a respeito do prazer da arte é enganador. A fruição da arte é impulsionada pelo sabor; quando se trata de entender a arte, não devemos buscar o prazer no gosto exagerado. O que significa entender algo como sinal livre, cujo aspecto nos dá indicações sobre o seu significado? Em outro lugar, elaborei a resposta filosófica a essa questão.3 Aqui tentarei demonstrar, por meio de um exemplo, o que entendo por reflexão estética. Voltemos, pois, à mistura de objetos naquela galeria em Porto Alegre. O quadro institucional facilita aventar a hipótese de que se trata de uma obra de arte. Agora a forma de uma obra de arte deve fornecer indicações sobre o seu significado como sinal livre. Como devemos entendê-lo? Obras de arte são, na maioria dos casos, artefatos. São aqueles artefatos que foram conformados e produzidos para determinado uso, semelhantes no fato de que seu aspecto dá indicações sobre o seu modo de uso. Pense por exemplo em um martelo ou em uma cadeira; esses são artefatos que foram formados e produzidos para determinado uso, e cujo aspecto permite chegar a conclusões sobre esse uso – mesmo que essa conclusão não
3. Ver Christel Fricke, Zeichenprozess und ästhetische Erfharung. Munique: Fink Verlag, 2001.
seja totalmente inequívoca. Mas a função para a qual foi criada uma obra de arte não é o de um uso concreto e determinado, de uma aplicação determinada e concreta (como martelar e sentar), e sim uma simples função de um signo, comparável à função de uma palavra ou de um quadro. A melhor maneira de estudar a forma de algo é descrevê-lo com precisão. E isso eu fiz junto com a minha acompanhante em Porto Alegre. O que vemos aqui, realmente? Comecemos no meio do nicho de espaço no qual está instalada a obra: lá está pendurado um pedaço de tecido amarrado de forma a criar um tipo de saco, que decerto, originalmente, era cinza-claro, mas que agora está muito sujo. Há algo dentro desse saco, mas não podemos vê-lo. Contudo, o saco tem uma inscrição: “Forma / Luz”. Mas como pode haver forma ou luz em um saco? Obviamente não como poderia haver farinha ou batatas em um saco. Isso era muito estranho, e minha acompanhante considerou justificada a sua falta de interesse original. Mas nenhuma obra de arte revela-se a um olhar fugidio. Sob o saco, por terra, há um pedaço de cobre enrolado, um tipo de bastão, que diminui de um lado, e cujo formato lembra uma tocha ou um telescópio. Deitado sobre ele, no canto direito, uma pá com um cabo de madeira curto e quebrado, que foi enfiada em diagonal numa pilha de terra seca. Sobre essa terra há algumas sementes secas e folhas secas. Ao lado germina uma plantinha. Entre o “saco” e o monte de terra está pendurado um grande novelo de fio de cobre, do qual partem fios isolados, e ligam esse centro a outras partes da instalação. Um desses fios leva ao segundo pedaço de tecido nessa instalação, que está atrás, fixado à parede, à direita, pendurado em uma viga de madeira transversal. É um pedaço de tecido grosseiro, cinza-escuro, um pedaço de aniagem ou um velho cobertor. No meio dele foi escrita, com carvão, a palavra “Natureza”, rodeada por um borda preta. No tecido podem ser observados outros traços de carvão que, contudo, não formam letras, e que dão um aspecto sujo ao pedaço de tecido. Abaixo do escrito há um gancho de ferro, enferrujado, cravado no tecido, e um segundo, diagonalmente abaixo dele. Na mesma parede, mais à esquerda, estão encostadas placas de vidro ou molduras de vidro; atrás de uma delas prendeu-se um pedaço de tecido com algumas manchas douradas e uma mancha de mel que escorreu. Ao lado disso dois desenhos que, ao serem examinados mais de perto, são projetos da instalação. Na parede esquerda há uma moldura de vidro, com uma pequena foto de uma instalação semelhante, a partir da qual obviamente foram reaproveitados alguns elementos para a presente instalação, e um projeto dessa instalação predecessora. Minha acompanhante e eu nos refugiamos pela primeira vez diante de uma pequena placa na parede direita. Lá está escrito: Karin Lambrecht, Pa Nam Pa Nam, 1999. “Karin Lambrecht”, esse é um nome alemão. Muitas pessoas que vivem no sul do Brasil são descendentes de imigrantes alemães e têm nomes alemães. Será por acaso que as letras que lemos formam palavras alemãs? Talvez não. Minha acompanhante sabe que Karin Lambrecht fala alemão fluentemente, estudou na
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Alemanha, na Hochschule der Künste, a escola superior de artes, em Berlim, e ocupou-se muito de Joseph Beuys. Mas e quanto ao título estranho que deu à sua obra? Um brasileiro teria de consultar o dicionário para compreender as palavras alemãs, Natur, Licht e Form (Natureza, Luz e Forma), como tais. E nós alemães, e talvez também alguns brasileiros, teríamos de consultar um dicionário para entender o título da instalação: “Pa Nam Pa Nam” é uma palavra da língua dos índios que vivem na região brasileira chamada cerrado, localizada a leste da capital, Brasília, e significa o equivalente a “voo de um grande bando de borboletas”. Com essa descrição averiguamos inicialmente o potencial de sinal estético daqueles arranjos de objetos. Mas qual o significado representado por aqueles sinais? Não é inequívoco. Não perguntamos qual a mensagem inequívoca que nos quis transmitir a artista com aquela obra. Caso se tratasse de uma mensagem inequívoca, tal instalação certamente não seria um meio apropriado para a sua transmissão. Teria sido melhor que a artista tivesse escrito um texto e colocado cópias dele à disposição para que as pessoas as levassem, ou que publicasse o texto diretamente num jornal ou na internet. Na qualidade de observadoras e observadores daquela obra devemos tentar ler aquilo que vemos e descrevemos, como pistas que podemos seguir. Aqui não deveríamos esperar que as pistas nos conduzam numa direção completamente inequívoca, antes temos que lidar com um labirinto de pistas. Comecemos novamente no meio, desta vez pelo assoalho. Sementes, uma plantinha, folhas secas, distribuídas pelo chão: essas são as diversas condições nas quais se manifestam a vida e a morte da planta; e que se seguem no tempo, mas não linearmente, e sim de forma circular. É inerente a todo o
4. Ver Arthur Danto, A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
início um fim, e todo fim tem um início. O tempo e a transitoriedade, a vida e a morte, a documentação de condições passadas no presente visível, lembranças – esses poderiam ser temas da instalação de Karin Lambrecht. Outro tema ainda, incorporado por meio da pá cravada no solo, parece constituir a relação que interliga a natureza e a cultura. Cultura entendida como obra humana, que deixa seus rastros na natureza, e que, por outro lado, também está sujeita à transitoriedade natural – afinal a pá com seu cabo quebrado traz as marcas de longo uso. De fato, a artista já havia usado a pá em outra instalação, da qual nada sobrara a não ser justamente essa pá. Agora, qual seria a finalidade do pedaço de tecido grosseiro pendurado lá atrás, na parede? Será que o que está pendurado lá é uma abertura de porta, que leva para fora de uma sala, em cujo centro se encontra uma fogueira apagada? Será que se trata de rastros de uma civilização arcaica – isso poderia estar de acordo com o título que se origina da língua de um povo cujo modo de vida ainda apresenta características arcaicas. Mas será que o pedaço de tecido grosseiro, pregado na viga, não lembra também a cruz na qual foi pregado Cristo? Os pregos de ferro enferrujados poderiam então marcar os pontos de ferimento do crucificado. O pedaço de tecido, sob essa perspectiva, poderia ser visto ao mesmo tempo como uma mortalha, suja de traços de carvão ou de restos de sangue seco. Traços de um acontecimento destrutivo que para os cristãos, contudo, também simboliza a promessa da ressurreição após a morte. O pensamento cristão de salvação tem um exemplo na natureza, na qual a morte não significa o fim derradeiro, e sim a transição para outra condição, da qual volta a crescer uma nova vida. A inscrição, porém, não é Inri, mas sim “Natureza”. Aqui não se trata do Reino dos Judeus, e sim da natureza. A inscrição “Natureza”, na tela grosseira, leva-nos de volta à inscrição “Forma / Luz”, no tecido que pende do teto, amarrado no meio como um saco sujo. Esse tecido também apresenta traços de um acontecimento, remetidos como sinais sobre alguma coisa. “Luz” e / ou Cor e “Forma” – não seriam esses os meios com os quais a pintura tratou de trabalhar durante séculos? O tecido muitas vezes servia como um fundo para a pintura. Sobre o tecido eram colocadas as tintas. Em certo sentido também, esse tipo de trabalho da pintura tradicional é um pedaço de pano sujo. O que, no entanto, distingue um pedaço de pano sujo de uma obra de pintura? Isso tudo nada mais é do que uma versão, específica para artes plásticas, da pergunta: “O que é uma obra de arte?”. O que distingue uma obra de arte de outro objeto que não é uma obra de arte, mas que é semelhante à obra de arte, nas suas propriedades exteriores – às vezes tão semelhante que podem ser confundidas? Foi Arthur Danto que definiu dessa forma a questão do que seria uma obra de arte, e aqui ele pode referir-se também, e acima de tudo, a Marcel Duchamp, que havia encenado essa questão com os seus ready-mades de maneira impressionante.4 Voltemos à pintura e à sua história, que nós descobrimos ser o tema dessa instalação de Karin Lambrecht. O que foi pintado pelos pintores? Muitas coisas diferentes. A ocupação com objetos reais, e a forma pela qual nós os vemos é apenas um tema entre muitos outros na pintura. Mas onde um quadro trata desse tema,
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onde pode ter uma função de documentar, de ser um sinal que deve lembrar-nos de determinado acontecimento, pode, ao mesmo tempo, tematizar o seu próprio caráter de signo. Nessa tradição da pintura também está inserida Karin Lambrecht, com a sua obra Pa Nam Pa Nam. Esse acesso interpretativo foi confirmado quando tive a oportunidade de perguntar à artista sobre a história da criação daquela obra. No início ela não tinha se fixado em determinado tema, não havia nada de determinado que quisesse comunicar às mulheres e aos homens que viam a sua obra. Antes, houve um convite para participar de uma exposição numa cidadezinha nas imediações de Brasília. A ideia era que os artistas convidados deveriam visitar a cidade a fim de criar, no local, um trabalho para essa exposição. Karin Lambrecht aceitou o convite e viajou para o cerrado. Uma vez na cidadezinha, acompanhada por amigos, fez uma excursão para a natureza circundante. Como um pintor impressionista costuma levar a sua tela esticada sobre um quadro para a natureza, ela levou dois pedaços de tecido – ambos pedaços grandes, que agora são vistos naquela instalação. Fechou um dos pedaços de tecido em forma de saco, para nele coletar tudo o que chamou a sua atenção durante o passeio: cartões-postais, mel e a seiva do jatobá, uma árvore que cresce naquela região. O saco ficou cada vez mais pesado, e ela mesma cansou-se cada vez mais no decorrer do dia, de modo que finalmente arrastou atrás de si o saco cheio. Esfregou o outro pedaço de tecido nas cascas de árvores, que jaziam carbonizadas por causa do último incêndio florestal, mas que tinham sobrevivido a ele. Como um pintor impressionista procura um tema, ela procurara algo na paisagem árida e seca, algo que pudesse aplicar e / ou registrar como um sinal no tecido que trouxera consigo – para documentar sua impressão da região. Só que, ao fazê-lo, ela não se orientara pelo aspecto visual da paisagem, pela “luz” e “forma”, e sim pelo material que lá encontrou, pela “natureza” (casca de árvore carbonizada, seiva do jatobá, mel) e pela civilização (cartões-postais). Um pedaço de tecido no qual estão inscritos rastros que documentam as vivências de um passeio e lembram-no – se nós entendemos uma obra de pintura como algo que corresponde a essa descrição, por que então não deveríamos entender também a instalação de Karin Lambrecht como uma obra de pintura? Tal entendimento é tanto mais evidente por não ser ela a primeira nem a única que, em seu trabalho artístico, tentou ultrapassar as fronteiras do gênero artístico tradicional “pintura”. Pense, por exemplo, nos cubistas, que deixaram a superfície nua como meio de sua expressão pictórica, ao colar objetos tridimensionais, pedaços de madeira ou de papel, sobre as suas telas, ou de um pintor como Antoni Tàpies, que usou areia e terra como material para dar forma às superfícies de suas pinturas – para mencionar somente alguns. Também a obra de Joseph Beuys deve ser lembrada aqui, especialmente a sua técnica de iconografia de materiais. Nas molduras de quadros que estão colocadas à esquerda na parede posterior, podem ser encontradas ressonâncias especialmente nítidas dos trabalhos de Joseph Beuys, e de materiais que ele usou nos seus trabalhos. O pedaço de tecido tem uma mancha de mel, e Beuys frequentemente trabalhou com o mel, como material natural.
Karin Lambrecht usa o mel como um tipo de tinta. Colocou uma mancha de mel sobre o pedaço de tecido, e depois o pendurou de modo que o mel penetrasse no tecido. E então ela (como os pintores de quadros bizantinos da Virgem) completou-o todo por meio de aplicações de ouro – que exemplificam e ressaltam a preciosidade dos materiais naturais –, prendeu o tecido atrás de uma placa de vidro e assim encenou-o como quadro. O que essa imagem mostra nada mais é que materiais preciosos da natureza e sua aplicabilidade para dar forma a uma superfície. Mas os planos da instalação lembram também as telas (os painéis) de Joseph Beuys, nos quais ele esboçou essas ordens cósmicas. Esta é uma possível leitura dessa instalação, como uma obra pictórica um pouco diferente, como uma obra que tematiza a pintura e seu caráter de signo, e que assim a encena como um centro de forças naturais. Qual é o significado que pode ser atribuído, na continuação desse início de interpretação, às peças de cobre da instalação? Fios de cobre são usados para a transmissão de energia elétrica. Essa função, obviamente, é mencionada aqui. Mas, além disso, as peças de cobre têm seu próprio atrativo visual. Entre todos os materiais opacos e embotados da instalação, elas se destacam e emprestam-lhe um caráter decorativo. Contudo, também esse traço decorativo não deve ser um fim em si, mas pode significar mais uma dimensão tradicional da pintura como gênero artístico: muitas obras da pintura tradicional têm qualidades decorativas – senão possivelmente nunca teriam encontrado um comprador. Esta é apenas uma proposta para uma reflexão estética sobre Pa Nam Pa Nam, que tenta tornar compreensível como obra de arte, como sinal livre, essa instalação de Karin Lambrecht, cujo aspecto representa o seu significado. Isso não exclui outras ideias para uma interpretação conclusiva dessa obra. As mulheres e os homens que veem tal instalação devem ter suas próprias interpretações, não podem consultar qualquer enciclopédia para descobrir o significado de tal sinal artístico complexo. A fim de desenvolver o início de uma interpretação, é necessária determinada competência cultural, que gira em torno de recordações culturais; uma memória cultural, sem que tenhamos dificuldades de perceber sinais nos objetos que nos circundam. O processo de reflexão estética não se trata de associações subjetivas e arbitrárias em relação a um objeto, e sim de sempre descobrir a forma desse objeto como incorporação de um significado. Na forma de um objeto está o seu potencial enquanto sinal artístico. Isso vale para todos os objetos, e nós podemos transformar cada um, de forma correspondente, em objeto de uma reflexão estética. Quanto mais aspectos da forma de um objeto podem ser compreendidos enquanto sinais no processo de uma reflexão estética, representando um significado, tanto mais unificados e complexos são esses diversos significados; e tanto mais artístico, tanto mais bem-sucedido esteticamente parece esse objeto, e tanto menos resta da impressão de que se estaria lidando com um pedaço de tecido sujo, uma parede suja ou mesmo uma mistura arbitrária de objetos, como encontramos num depósito de coisas velhas. Nesse sentido, a obra Pa Nam Pa Nam de Karin Lambrecht é uma obra de arte, uma obra de considerável qualidade artística e estética.
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Portanto, ainda existem obras de arte de considerável qualidade artística – apesar de se evocar tanto o fim das obras na arte, isso não mudou muito. A distinção entre obras de arte e objetos que não apresentam uma condição artística não se tornou obsoleta. Contudo, a arte registra uma libertação em relação ao quadro dos gêneros artísticos tradicionais. Se Arthur Danto fala “do fim da arte”, pensa, sobretudo, no fim de uma produção de arte que se desdobra no quadro de gêneros das artes tradicionais. Esse fim é impressionantemente documentado pela obra de Karin Lambrecht Pa Nam Pa Nam, que, de modo geral, quer ser lida como uma obra pictórica. Nessa obra manifesta-se, além disso, outra modificação dentro da instituição da Arte, que é de considerável alcance para a instituição em si, bem como para a continuação de sua história: Pa Nam Pa Nam realmente não é muito apropriada para a conservação e musealização: a obra não foi além da sua exibição em Porto Alegre, nunca foi criada para tal duração. Nesse sentido, representa realmente a transitoriedade que tematiza de múltiplas maneiras como sinal. Fora dos gêneros artísticos tradicionais, surgem muitas obras que não são conservadas para um público interessado, e assim não ficarão à disposição como marcos da memória cultural. Essas obras podem relacionar-se ainda aos gêneros tradicionais e tematizá-los, mas não continuam a sua história da maneira tradicional, porque admitem a sua própria transitoriedade. Com isso também, conforme o diagnóstico de Hans Belting, a história da arte, entendida como história de um desenvolvimento dentro dos gêneros artísticos tradicionais, chega ao seu fim.5 Em épocas que são marcadas por renovações artísticas da forma mencionada, através das quais as formas de arte tradicionais e sua história chegam ao seu fim, mais do que antes somos convocados à tolerância estética. Quando se trata de arte, devemos nos esforçar para realizar uma reflexão, não devemos nos basear no nosso gosto pessoal. Pois sempre existe a suspeita de que esse tenha uma orientação muito tradicional e enfrente novos desenvolvimentos da arte com falta de interesse e indiferença. Universidade de Oslo, iv Colóquio Humboldt de Ulm sobre “O Belo – Estética como Ciência?”.
5. Ver Hans Belting, O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Karin Lambrecht e a reconstrução da selva
Paulo Herkenhoff
Na selva refeita de kl habitam dragões, onças, almas, antas e Anitas (é a anta uma Anita que perdeu o i?). Selva selvagem, de outra espécie do trópico flamengo de Post de outra família da mata neoclássica de Debret de outra ordem da paisagem romântica de Rugendas “A primeira lição de Grimm foi apontar aos alunos o caminho da floresta […]. Aí, e não nos cartões e gravuras acadêmicas, estava o segredo da natureza. […] Não poderia compreender como, diante de nosso meio tropical, de tão sugestivos cenários, fossem os discípulos aprender a pintar árvores, selvas e águas, sem a luz atmosférica”. (Ronald de Carvalho, Estudos brasileiros)
Dragão é o calor do vermelho quente (erupção vulcânica?) da superfície escamada (erupção da pele?) da pincelada enérgica (larva) da tela-pele (kl) “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite”. (Mário de Andrade, Macunaíma)
1. O que é isso? 2. Quem não sabe, erra! 3. As frutas são doces. 4. “Cansei-me de correr”, dizem os tucanos da Amazônia.
Método – pintar é revirar a tela de cabeça pra baixo. Movimento da esquerda pra direita, e vice-versa. Escrita de cima pra baixo. Pollock (e o que mais?). Ou muito pelo contrário. Ñe’e níti to?1 Onde fica a clareira? Mahisígë Wihsisamí!2 Pinturas – frutas silvestres. Yuhkë – dëhkai pitise!3 No fundo do mato virgem nasce a arte… “Pegadas de anta”, pinceladas da artista de kl. Trilha no mato Pedaços no olhar. Impressões digitais no teu olho. Lugares por onde andei. Passo pelo teu passo. O’mã ijuhüü waása.4 Passo pelo tempo. “Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rastro fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha”. (Mário de Andrade, Macunaíma)
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Karin Lambrecht escrita pintura pintura escrita Gesto e tempo, não demissionariamente tachistas, mas sob uma estrutura de campos, camada, cores que se superpõem adicionam condensam kl condensa seu tempo na estrutura (porque construção de quem foi geométrica e retém a vontade da organização da matéria, da cor, do gesto, da emoção) da ordem selvagem. A pintura é pintar pintar o gesto, não como representação mas como captação de sua energia seu movimento seu momento “A princípio, o olhar não distingue formas precisas na selva ingente, porém massas espessas, esboços de torres, muralhas, trincheiras, abóbodas, pirâmides, colunas de verdura […]. Depois, pouco a pouco, de surpresa em surpresa, vislumbra a portentosa variedade de contornos, dimensões, cores; – configurações brutais ou mimosas, fantásticas ou grotescas, risonhas ou ameaçadoras”. (Afonso Celso, “A Floresta Virgem” in Porque me ufano de meu país)
Ver é saber reconhecer os caminhos da mão-pincel ou As viradas da tela saber que nem sempre é possível reconhecer o campo ou que é necessário um cachorro mateiro ou (para não ficar no mato sem cachorro) ou (mais perdido do que cego em tiroteio). Decifra-me ou te devoro. Ver é saber. Para sobreviver é necessário compreender o devorador de almas. Será ele o caapora? kl: “No rgs a gravura era uma coisa masculina e a pintura coisa feminina”. Pincel, garrancho gaúcho Tradicionalmente rgs Densidade Iberê, filha de Camargo trilha seu caminho afirma seu meio cultural
“1958 Porto Alegre, o inverno, a chuva, tanta água, a alma molhada pela umidade penetrante, e neste embargo sufocante vi, pela primeira vez, o futuro”. (Laura Ida Rambroso, Antecedente visionária) No Brasil, não é possível ser artista jovem sem ser “acusado” de influências (preferencialmente estrangeiras…). Jungle! kl tachista, neoexpressionista, “transvanguardeira”. Quem é kl depois disso? Isto não é um reflorestamento, arte de lucrativamente organizar a natureza. O verbo não domará jamais a arte. Quem conseguiu aprisionar a Geração 80 num conceito? Isto é tarefa para Tarzan, o rei das selvas! “Com efeito, deparam-se-nos na floresta brasileira primores de arquitetura, de escultura, de música, de pintura, e sobretudo, de divina poesia”. (Afonso Celso, op. cit.)
kl: “Quando considero o trabalho quase terminado volto ao carvão para quebrar a sensação de coisa pronta”. Selva – experiência do precário (chassis, pinturação, escritura carvão). Selva sem limites fáceis. Esta selva não está na África com suas fronteiras retilíneas determinadas há um século pelo Tratado de Berlim, cidade onde kl estudou. O quadro não é quadrado (nem sempre…) os seres da selva habitam toda a superfície da obra da selva reconstruída. Alguns têm corpo no espaço. Tridimensionalidade. O recorte e torções da tela não são resultados do óbvio nem do gratuito. São resultantes da precariedade, limites do necessário, margens do instigante, bordas do essencial. Publicado em exposição individual. Museu de Arte Contemporânea do Paraná, sala Bandeirante, 1985.
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O corpo, a mão, o vestígio Sobre a obra Morte eu sou teu, de Karin Lambrecht
Icleia Borsa Cattani
A obra de arte é da ordem da apresentação,1 e não da representação. O corpo da artista pode estar presente nela, por vestígios que assinalam sua passagem, mas ele aí estará também por todo o corpo a corpo, por todos os embates que constituem a instauração da obra. E a mão (do artista), veículo, instrumento, é uma de suas partes mais frequentemente apresentadas. Na pintura Morte eu sou teu,2 de Karin Lambrecht, o corpo, e a mão em particular, estão presentes de várias maneiras. Esta obra é a primeira de uma série que deverá seguir,3 empregando sangue como material da pintura. Antes de mais nada, é preciso refletir sobre as modalidades de sua instauração.4 Suportes – A pintora escolheu duas toalhas adamascadas, velhas, para cumprir o
papel de tela. O suporte não é neutro, mas investido de lembranças de sua história pessoal: as toalhas pertenceram à sua avó materna, vinda da Rússia. Estão gastas, remendadas, tendo servido durante três gerações para decorar numerosas reuniões e festas familiares. Essas toalhas serviram literalmente de “continentes” para a pintura, pois foram colocadas no chão, uma sobre a outra, em um pequeno chassi quadrado, de madeira (ao qual uma delas foi posteriormente fixada): o sangue foi derramado sobre elas e a de cima serviu de “filtro”, retendo a matéria mais espessa. Mais tarde as toalhas foram atadas umas às outras e penduradas na parede pelo chassi. Além desse suporte, Lambrecht usou três folhas de papel canson, todas do mesmo tamanho, que devem ser penduradas, uma à direita, duas à esquerda das toalhas, na mesma parede, sem vidro e sem moldura. Pintura – A artista pinta habitualmente a óleo, com pigmentos naturais, dos
quais os de cor de terra são frequentemente coletados por ela mesma em lugares específicos. Não se trata, portanto, de um material pronto. Ela trabalha com frequência ao ar livre e deixa a tela no chão durante dias. Elementos variados se agregam à pintura: folhas de árvores e fragmentos de cascas, poeira, água da chuva, marcas de pés e patas de pássaros. Eles fazem, a partir de então, parte da pintura, na mesma condição dos materiais escolhidos, pois essa deve “integrar-se à natureza, à vida – e à morte, uma vez que a morte faz parte da natureza dos seres vivos”.5 Esta especificação é importante para compreender a obra aqui discutida: nesta, a “matéria material”6 que constitui a pintura é o sangue de um cordeiro que,
1. No sentido em que entende René Passeron: “Assim, toda obra, ainda que se possa encontrar aí o indício de um querer dizer, manifesto, através de um querer mais profundo, que não é mais discurso [...] a conduta que a conduziu à existência. Isto é, a arte. Esta é, portanto, apresentação, não de um já dito, mas do dizer em si. Apresentação do apresentar”. R. Passeron, Pour une philosophie de la création. Paris: Klincksieck, 1989, p. 210. 2. Morte eu sou teu, 1997. Conjunto composto pelos seguintes elementos: duas toalhas velhas, atadas uma à outra, impressas com sangue; três pinturas em papel, feitas também com sangue misturado a um pouco d’água; fio de cobre, atado às toalhas e que vai até o chão e um objeto em argila crua, com a forma de agulha, colocado no chão e pelo qual passa o fio de cobre. 3. Quando este texto foi concluído, o segundo conjunto já fora realizado.
naturalmente desidratado pela passagem do tempo, solidificou-se na superfície, criando o efeito de uma pintura de textura irregular (espessa em alguns lugares, diluída em outros), de tonalidade marrom-escuro. Foi a primeira vez que a artista pensou em usar sangue. 4. “O objeto da poética não é tanto o instaurador nem a obra instaurada, mas a conduta instauradora.” R. Passeron, op. cit., p. 130. “O processo, que deixa o autor às voltas com sua obra é instauração: desdobramento de operações criadoras, formação e não forma acabada, gênese, até mesmo palingenesia.” E. Chiron, nº. 7 x: “Trivium avec centaure, étoiles et danseuses”, in x, L’Oeuvre en procès. Croisements dans l’art, vol. i. Paris: Publications de la Sorbonne/cerap, 1996, p. 15. 5. Entrevista concedida à autora a 20 de maio de 1998. Todas as citações entre aspas, sem indicação de fonte bibliográfica, devem ser compreendidas como parte dessa entrevista. 6. R. Passeron, Recherches Poiétiques. Tomo ii: Le matériau. Paris: Klincksieck, 1976.
Feitura – A palavra é empregada aqui no sentido do italiano fattura. A artista não “pintou” a tela com esse sangue: foi a uma estância e simplesmente estendeu a tela no chão, sob a cabeça de um cordeiro que ia ser sacrificado e vendido. Os animais, nesta região de gaúchos, são mortos de uma maneira ainda muito primitiva: os cordeiros, por exemplo, são pendurados em uma árvore e têm o pescoço perfurado – o sangue corre suavemente até a morte. A fattura foi definida por essa escorredura, pela maneira como o sangue se depositou sobre a tela: abundante, desbordante, invadindo os tecidos mais do que o previsto. O informe dessa invasão era esperado pela artista, da mesma forma como ela desejava não intervir diretamente, com sua mão. A única intervenção aconteceu no dia seguinte, quando tirou com água o excesso de sangue que se depositara em um canto da tela, tão espesso que não secava. As pinturas em papel nasceram neste segundo tempo, quando as folhas foram depositadas sob a tela para protegê-la no momento de tirar o excesso de sangue. Lambrecht observou o trabalho que a água e o sangue executavam sobre o papel e os “conduziu” através dos movimentos de suas mãos. Se o material permanece o mesmo, a fattura é, no entanto, completamente diferente. A artista jamais se interessou pela representação, mas segundo suas próprias palavras, “mais pela matéria da pintura”, isto é, o suporte, os materiais (inclusive os diversos objetos agregados às pinturas ao sabor de seus impulsos). A matéria da pintura é seu corpo, com sua gênese e seu processo de desgaste: com suas cicatrizes, suas manchas, com tudo o que a vida pode acrescentar e tudo o que ela pode tirar de um corpo. A artista estabelece um paralelismo bem direto entre seu próprio corpo e o corpo de suas obras. Estas são dublês de seu corpo, dotadas de autonomia, mais fortemente do que se fossem autorretratos. Porém não se trata de rosto, de silhueta, mas de carne, de órgãos, de pele e de sangue. Apêndices – Há outros elementos que compõem esta obra: dois fios de cobre se
atam às toalhas e vão até ao chão, onde passam pelo buraco de uma agulha feita de argila. Este último elemento, de aspecto muito primitivo, que conserva a marca dos dedos da artista, tem dois aspectos contraditórios: trata-se de um objeto pontudo, que pode ferir, e muito frágil, pois é feito de argila crua. Ao mesmo tempo, a escolha de uma agulha lembra simbolicamente o trabalho feminino e “ponteia” as toalhas, remendadas no decorrer dos anos, pela avó e pela mãe da artista. Esse objeto evoca, portanto, uma “história de mulheres” e o trabalho paciente, minucioso da mão feminina. Os fios de cobre representam para a artista, na linhagem de Joseph Beuys, de quem ela se confessa admiradora, condutores de energia. Esses fios frequentemente prolongam os corpos de suas pinturas, como veias, artérias, até mesmo
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cordões umbilicais. Através desses fios, as telas entram fisicamente em sinergia com o que as rodeia, especialmente com o solo, lugar para o qual eles são dirigidos a maior parte do tempo. Segundo Paulo Herkenhoff, a presença de elementos tridimensionais, de nós, de torções nas obras de Lambrecht “não são os resultados do óbvio nem do gratuito. São resultantes da precariedade, limites do necessário, margens do instigante, bordão do essencial”.7 A presença desses apêndices na pintura é cheia de sentido. Para Lambrecht, a morte representa antes de tudo uma mudança na energia dos seres. Uma mudança, ou, sem dúvida, uma troca: a energia se transmuta, passa do corpo para o mundo no instante mesmo em que o corpo morre. O sangue da tela supostamente contém uma parte da energia do cordeiro. Esta se faz presença, torna-se parte integrante do fluxo da vida. Ela se torna corpo – e os fios conduzem essa energia para a terra, duplamente simbolizada pelo solo e pela agulha de argila. Porém esta, evocando o feminino, lembra o parto e, portanto, a renovação do ciclo… Essa ideia está explícita em uma obra anterior, em que a artista escreveu os termos da alquimia: conjuntio – conceptio – putrefactio − separatio Para ela, essas palavras simbolizam o ciclo da natureza, a fertilidade e o apodrecimento – o retorno à terra.
A pintura como corpo – e como lugar onde nossos corpos se reconhecem
Sobre uma das pinturas que compõem a obra, Lambrecht imprimiu a marca de suas mãos com tintas de sangue. Esse procedimento não é novo para a artista, pois muitas vezes pinta diretamente com a mão e imprime sua marca, seja no fim, sobre a pele da pintura, seja durante o processo de execução da obra. Neste último caso, a marca frequentemente aparece meio apagada, ou, até, apenas adivinhada. No entanto, ela está lá, quase como um palimpsesto. E ao contrário da marca dos pés, que pode, em suas pinturas, ser submetida a trajetos aleatórios ao sabor dos movimentos feitos para sua execução, a mão é estampilhada de maneira completamente intencional. As mãos desempenham um papel singular nesta obra. Sobre as toalhas, elas estão quase totalmente ausentes. Lambrecht não fez senão organizar o ato de pintura realizado por outros: o gaúcho que perfurou o pescoço do cordeiro, este que forneceu seu sangue. A pintora só interveio a posteriori, para tirar o excesso de material de um canto do suporte. Delegou o ato de instauração da pintura a uma terceira pessoa, a outras mãos; segundo suas próprias palavras, “a um velho gaúcho experiente, que faria com que o animal não sofresse muito”, e, efetivamente, diz ela ainda, “ele bateu apenas uma vez, com um golpe muito certeiro”. Essas outras mãos foram tão importantes para a artista, que as fotografou, tintas de sangue quase até aos cotovelos, como luvas. Do mesmo modo, fotografou o cordeiro e colocou essa fotografia, em vez da obra, em um catálogo de exposição. Sem dúvida, o cordeiro e o gaúcho formariam um só: a mão que fornece o material, que instaura a obra. A artista queria, naquele momento,
7. Paulo Herkenhoff, Karin Lambrecht e a reconstrução da selva (catálogo). Curitiba: mac do Paraná, 1985.
8. “Deve-se dizer que as marcas da mão tornam possível algo no qual as outras marcas fracassam muito frequentemente: o contorno reportado ou a sombra de uma cabeça vista de frente nunca são semelhança do rosto [...] mas a aplicação direta da mão, seu contorno ou sua sombra a tornam imediatamente visível, até mesmo reconhecível como individualidade”. G. Didi-Huberman, L’Empreinte (catálogo). Paris: Centre Georges Pompidou, 1997. p. 31. 9. Ibid., p. 31.
permanecer passiva: recebia o material, do mesmo modo que a tela. Pode ser que, assim como o cordeiro e o gaúcho, a tela e ela mesma formassem um só corpo. Lambrecht confessa que duas coisas a marcaram profundamente: a imobilidade total do animal, que se submeteu sem reagir, sem lutar, aceitando seu sacrifício, quase como se se tornasse uma dádiva de si mesmo; e a abundância do sangue derramado, que inundou a toalha, transpassando-a. Imobilidade – abundância. De um lado, um excesso de matéria, um exagero de “pintura”, do outro, a dádiva do material e a passividade dos sujeitos – o cordeiro, “matéria-prima”; a pintora, que só fez recolher essa “pintura”, e a tela, que serviu apenas de receptáculo. Foi indubitavelmente por reação que a ação, nas pinturas em papel canson, foi totalmente outra. Com efeito, nas obras em papel, a presença das mãos da pintora é absoluta. Essas pinturas foram executadas pelos gestos das mãos sobre o material: serviram como instrumento, como pincel. O vestígio dos dedos ficou visível nele. Em uma dessas obras, como já foi dito, Lambrecht imprimiu suas mãos. Conforme suas próprias palavras: “É a prova de que eu a realizei. É a prova de que passei por lá”. Trata-se de duas ideias diferentes. Realizar a obra compreende uma intencionalidade, implica ser artista e imprimir suas mãos na condição de criador – aliás, isto é tão forte para a pintora que jamais assina suas pinturas na frente, mas no verso – sobre a pele da pintura, o “contato da carne da artista”, pele contra pele, na marca das mãos, é suficiente.8 Quando se reflete sobre a marca das mãos como vestígio de passagem, há outra ordem de reflexões possíveis. A ideia de passagem pode indicar um desapontamento sobre a obra. Neste caso, a marca das mãos pode ser considerada, como assinala Georges Didi-Huberman em relação às marcas pré-históricas, como um instrumento dialético, “capaz de produzir nela a colisão de duas ordens de realidades heterogêneas: trata-se de um lá e um não lá, de um contato e de uma ausência”.9 A marca seria, neste sentido, o contato de uma ausência – em outras palavras, seria um vestígio da passagem do artista. Isso também implica provavelmente a consciência das diferentes temporalidades: habitualmente, as obras sobrevivem a seu autor – os vestígios da passagem do artista sobreviverão, pois, ao seu desaparecimento, testemunhando que ele viveu, que ele “esteve lá”. “Passar” pode também significar a definição de uma trajetória, ou a delimitação, ainda que provisória, de um território. Essa “passagem”, durante a qual se deixam vestígios, evoca sem dúvida outra, antiga e constitutiva: o périplo da imigração dos antepassados. Essa questão é onipresente na artista, bem como em muitos brasileiros descendentes de imigrantes: quais são os vestígios de minha história? Onde estão eles? Essas perguntas são estreitamente ligadas à memória, aos afetos e ainda à pergunta fundamental: quem sou eu? Lambrecht se faz essas perguntas, confessa-as. A dupla pertença está presente em suas pinturas, onde, muito frequentemente, ela escreve palavras em português e em alemão: trata-se, às vezes, mas nem sempre, das mesmas palavras. Voltaremos a esse ponto.
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É importante assinalar também que ela foi viver na Alemanha durante alguns anos. Por conseguinte, seguiu o caminho inverso ao de seus avós; mas não será o mesmo périplo, o da imigração em terra estrangeira? Serão as obras uma maneira de marcar a passagem, de deixar uma marca? A marca da mão substitui a assinatura A marca da mão desenha a (dupla) pertença A marca da mão assinala a passagem A marca da mão define o(s) território(s) A marca da mão aponta Lambrecht trabalha com a memória do corpo, escrevendo seguidamente sobre as pinturas os nomes das diferentes partes que o compõem, como se, na pintura, o sentido pudesse nascer, também, do ato de nomear. Palavras como “fluxo”, “sangue”, “circulação”, além de partes do corpo: rins, pulmões, coração. A mão está aí presente de duas maneiras – inicialmente, pelo ato de escrever: o gesto, a caligrafia pessoal, às vezes as rasuras. Em seguida, por uma evocação mais arcaica: nomear alguma coisa pressupõe indicá-la. O corpo não é representado em suas pinturas, salvo pela forma muito esquemática da cruz, mas é onipresente nelas, por essa mão invisível que, nomeando, aponta. Todavia, o que está indicado não se encontra na tela, mas sim nos corpos da artista e dos observadores. As coisas nomeadas, apontadas, constituem nossos corpos. Será que o corpo, para ser real, deve estar presente na arte? Deve ser lembrado nela, nomeado, significado, por meio de seus órgãos, seus orifícios, suas cicatrizes, seus fluxos, seu sangue? A artista nomeia lugares por onde o corpo passa. Esse é o caso dos termos in arena (local do evento, do sacrifício). É encontrado também, “o campo é o corpo – o cordeiro é a alma e a mente”. Espaço e corpo se confundem, do mesmo modo que corpo e alma. O campo do pampa pode tornar-se o corpo e vice-versa. Essa reversibilidade está presente no corpo da obra: a agulha, posta no chão, tem a forma de um indicador que remete o olhar do espectador para o alto,10 para o caminho traçado pelos fios de cobre. De cima para baixo – de baixo para cima, o percurso do olhar é circular e acaba por não estabelecer hierarquia, nem entre o alto e o baixo, nem entre a mão e o pé,11 nem entre o espírito e a lama (aliás, a agulha é feita de terra). É preciso lembrar que Lambrecht pinta sempre sobre suportes colocados no próprio solo, e que caminha em cima, se necessário: ela os trabalha por todos os lados, empregando o espaço, em um primeiro momento, de maneira igual e indiferenciada; os lados superior e inferior da tela são definidos somente mais tarde, sobre as últimas camadas de pintura. In arena: essas palavras designam o espaço onde acontece o corpo a corpo da pintora com a pintura. A pintura assinala o lugar. Delimita, também, o território – de fato, ela o constitui. A pintura (assim como nossos corpos quando estão sob o domínio do desejo ou da dor) delimita fronteiras:12 entre o dentro e o fora, entre o eu e o tu, entre mim e o mundo.
10. “Quando fulgura um gesto de indicação, seu brilho será um pacto com o espectador, afetando a totalidade do campo.” Jean Lancri, Olímpia e a questão do modelo. Porto Arte: ppg em Artes Visuais / ufrgs, maio de 1995, v. 6, n. 9, p. 38. 11. Cf. E. Chiron, op. cit, pp. 25-26. 12. Segundo Bellmer, sob o domínio do desejo ou da dor, “a imagem do dente se desloca para a mão, a imagem do sexo para a axila, a da perna para o braço, a do nariz para o calcanhar. Mão e dente, axila e sexo, calcanhar e nariz, em suma: excitação virtual e excitação real se confundem, sobrepondo-se”. H. Bellmer, La Petite anatomie de l’image. Paris: Eric Losfeld, 1977, p. 18.
13. “Mudando de espaço, mudo de pele, mudo de forma.” Marc Le Bot, Image du corps. Aix-en-Provence: Présence Contemporaine. 1986, p. 9. 14. Conforme o enunciado de Rimbaud: “Je est un autre” [Eu é um outro].
Em um ato primitivo, sem dúvida primordial, a mão aponta para nomear. Mostra o mundo, da mesma forma que aponta as partes do corpo. Delimita os territórios, indicando seus limites. Ela pode, também, multiplicar-se nessa obra: a artista imprime as duas mãos, e pinta, deixando visíveis os gestos de ambas. Como escreve em três idiomas, e do mesmo modo que a obra, ela própria se multiplica, assumindo vários corpos (de fato, quatro, suportes, separados uns dos outros). O corpo da artista também é múltiplo, ocupando lugares diversos e mudando a cada lugar,13 no lugar – corpo da pintura, as palavras que o designam se desdobram, também, em três línguas. A mão aponta várias origens, várias pertenças. É possível ter um único corpo? O nome das coisas: o título do conjunto, Morte eu sou teu, repete-se em cada pintura. Ao contrário das outras palavras, essas são impressas a partir de carimbos muito primitivos, com uma tinta azul. Sua cor e seu formato lembram carimbos com que, no Brasil, os serviços de inspeção sanitária marcam os pedaços de carne, em sua saída do matadouro. O título é voluntariamente impessoal e joga com outra ambiguidade: “Morte eu sou tu” – ora, teu é um signo de pertença de um sujeito masculino. Quem é, então, esse “eu” que fala? Nesta obra, eu é, literalmente, um outro.14 Eu pode, muito bem, ser tanto o observador quanto o sangue que enche o espaço e que nos devolve nosso olhar. Eu é o cordeiro que se entrega e sou eu que resisto, com meu corpo que se defende, à ideia do fim. Eu é a artista que se mantém na fronteira dos mundos, mas que cria corpos de pintura. Eu é o gaúcho para quem o ato de pintura sem dúvida ressignificou um gesto realizado dezenas de vezes. Morte eu sou teu. A pintora, à semelhança do cordeiro, abandona-se à criação, mas também à ideia da morte. Esse abandono desempenha o papel de um exorcismo. Mas de outro ponto de vista, o sangue aqui apresentado evoca a história violenta do Brasil, em um diálogo com o próprio corpo da pintora e suas indagações sobre suas origens e seu lugar no mundo. O lugar do sacrifício – in arena – é tanto o lugar das invocações como o do diálogo com a vida e a morte, lugar de troca de energia. Quem, eu? O corpo mortal da artista, ou a mão que realiza a obra? Eu me entrego a ti, ou te exorcizo, criando? Ou será que, criando através de minhas mãos, meus olhos, minha cabeça, meu coração, meu corpo inteiro, eu te presentifico e te aponto como elemento construtivo de minha obra e de minha vida? Publicado em La Main dans les Arts Plastiques, Paris: cerap / Editions de la Sorbonne, 1999. Organização de Eliane Chiron e tradução para o português de Sonia Taborda, com revisão da autora.
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Assim por diante a propósito de uma instalação de Karin Lambrecht
Jacques Leenhardt
Demais, demais na primeira página dos jornais, por toda parte, durante programas de televisão, escorrendo, obsceno. Há o sangue da História Antiga, a sangria dos Atridas há o sangue contemporâneo, degolador e pica-pau o sangue da vítima expiatória, sempre vão, ele também, o sangue dos conjurados o sangue dos demais e no entanto ele corre em minhas veias: rubro brilha majestosamente: rubi escorre no meu copo: bordô É a cor da vida, do poder, da beleza: vermelho; e é ele também que veste o quadrado vermelho de Mondrian, de púrpura os prelados e os tzares, a bandeira da Revolução. Vermelho. Mas: o sangue coagulou escuro, acompanha a morte, foi derramado por nada.
Lembro-me de uma tarde da infância. Brincávamos para ver quem era “o mais forte”, como sempre. Na corrida que nada detém quando se está nela, tive de passar por uma roseira. Sem hesitação, de um salto. Mas a rosa é delicada, teme por seu frescor. Protege-se dos visitantes importunos. Saí dali todo ensanguentado.
Estava sentado. Não chorava. Meus olhos seguiam as gotas de sangue que fluíam pelas pernas nuas. Nenhuma dor, somente o espanto de ver e correr aquela substância vermelha, levemente viscosa, absolutamente insólita, em minha perna. O sangue é a própria alma do homem, do macho, entende-se, o que ele tem, por definição, de mais interno e que dele não sai senão na guerra ou no momento dos juramentos. O sangue é glorioso, ou não é. Arredio a toda visibilidade. Sentado na beira do caminho, a situação não tinha nada de gloriosa e meu sangue escorria suavemente. Eu olhava aquela incongruência, sem desgosto mas também sem alegria, intrigado. A brincadeira me havia colocado na situação paradoxal de ver meu corpo naquilo que ele tinha de mais íntimo, exposto ao sol e coagulando lentamente sobre minha pele. Foi somente mais tarde que aprendi que as moças faziam essa experiência do caminho do interior para o exterior frequentemente. Elas sabiam, ou melhor, aprendiam o preço dessa exteriorização. Era um drama, às vezes, mas era, mais profundamente, a própria vida.
Tudo o que está escondido virá à luz. Apocalipse. Tudo o que é mostrado em sua obscenidade retornará à noite. Apocalipse Now. Como é difícil abordar o sangue por uma via ingênua! Eu não diria que é isso o que Karin Lambrecht tenta, mas é o que ela faz, quase sem querer. E por isso consegue ficar aquém do peso simbólico insuportável do sangue: inocente. Ela foi buscar o sangue onde a tradição o situa: nas veias do cordeiro. Mas não nos propõe nenhuma teologia. Recolhe-o dos criadores, para quem o animal é um objeto de atenção, não de sacrifício; de necessidade, não de supérflua dedicação a outros mundos. Da mesma forma que o agricultor não vê em torno de si “paisagens”, mas campos, estações, gramíneas e luas, assim também o pastor que cria o cordeiro para vendê-lo não se incomoda com símbolos ou rituais. Se corta o pescoço do carneiro, é porque a carne precisa ser limpa, sem pele, sem entranhas nem sangue. Seu trabalho é preciso, calmo, silencioso. Como o filho de Abraão confia na faca de seu pai, o carneiro sabe do amor do criador. Nenhum grito rasgará o horizonte. A ordem da vida e da morte será respeitada, exprimindo, cada gesto, a regularidade do destino. O que vem fazer a artista nesta cena bucólica? Vem afastar tudo aquilo que impede de ver escorrer esse princípio da vida lentamente, na harmonia cósmica. A própria ideia de fazer um quadro com esse vermelho, com essa matéria que se transforma lentamente em preto, é, a priori, insuportável para nós. Se o sangue deve ser derramado, que o seja fora de nossa vista, ou, então, em formas ritualizadas, no altar ou no cinema. Karin preparou outro caminho para nos conduzir a isso. Do ritual, ela conservou, nessa instalação, a presença das vestes sacerdotais. Quatro vestidos pendem do armário dos uniformes e librés dos criados, acompanhando simbolicamente o longo curso do rastro sanguíneo que ela recuperou à medida que a vida abandonava o carneiro degolado, sobre uma longa tela branca. Não é a toalha de um
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festim totêmico. A litania do sangue se desenrola ao longo dos dez metros da tela, cor pura, vermelho, carmim, grená, preto, conforme sua densidade. Essa tela, sismografia perdida no escoamento do mundo, é apenas um dos vários momentos de uma instalação. Quero falar agora dos quatro vestidos brancos. Eles também são quadros. Sua cândida brancura recebeu o batismo do sangue: sobre um, ele escorreu, deixando longos traços. Este outro é mais pálido: sua cor é suave como se o pincel tivesse sido lavado e não lhe aplicasse senão um sangue de aquarela. O terceiro traje é decorado com um motivo hierático. Dois círculos coloridos, no máximo de sua densidade, ocupam a parte da frente, como dois astros apagados. A quarta veste ainda branca, imaculada. Parece que a sacerdotisa se afastou do espetáculo. Essa virgindade espanta, mas, pensando bem, é talvez somente por ela que o ponto de vista da arte pôde se infiltrar nessa cena demasiadamente forte. Um pouco à distância, apenas tocada, ela se resguarda, poupada ainda da rudez violenta do contato com a vida, com o ciclo da vida e da morte. Desde sempre os artistas sofreram a tentação de realizar essa junção da arte com a vida, mas ela lhes é para sempre negada. O conjunto da obra compreende ainda uma outra parte: são dez desenhos − a palavra não é bem apropriada – ou melhor, dez marcas, deixadas por um pedaço de carne, após o corte do cordeiro, sobre dez folhas de papel. Cada um dos que assistiram à gênese da obra escolheu o que queria e assinou o documento no qual permanece a macha levemente rosa. Todas, independentemente do papel que desempenharam, atestam sua presença pela assinatura posta na parte inferior do documento, transformando a dispersão dos membros do cordeiro em uma obra coletiva. No acaso da vida do cordeiro, algo difícil de descrever enquanto obra de arte ou enquanto símbolo se reconstituiu a partir do sangue escorrido e processou, construiu até, uma outra vida. Embora de outra forma, a vida continua. E assim por diante.
Os nomes e as obras
Reynaldo Roels Jr.
O fenômeno é comum e nem um pouco moderno: conhecer as coisas apenas pelos nomes, sem jamais ter tido contato com elas. (Já houve até quem afirmasse que as coisas não são nada, e os seus nomes, tudo.) Polêmicas à parte, estão em exposição no Rio de Janeiro dois artistas plásticos que têm em comum o fato de serem bastante conhecidos no circuito, mas suas obras raramente ou nunca aparecerem por aqui: Karin Lambrecht, gaúcha de 30 anos, e José Resende, paulista de 42 anos. O fato é tão mais curioso quando se sabe que Resende é um dos escultores brasileiros contemporâneos mais respeitados de qualquer geração, e que Karin já se fez notar o suficiente para participar de duas bienais internacionais de São Paulo. Apesar disso, José Resende só expôs no Rio três vezes nos últimos treze anos, e Karin, nem isso: é a primeira vez que a artista aparece em uma individual na cidade. As esculturas de Resende estão em exposição desde ontem, na Galeria Sérgio Milliet da Funarte, e encerram a primeira parte do ciclo Escultura, promovido pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas (os artistas mostrados anteriormente foram Nuno Ramos, Carlos Fajardo e Ana Linnemann). Na Thomas Cohn, Karin está apresentando os trabalhos mostrados por ela na última Bienal, quatro conjuntos de pinturas e esculturas reunidos sob o título genérico de Ester entrou no pátio interior da casa do rei, inspirado no tema bíblico da mulher que arriscou a vida para salvar seu povo (na verdade, se não arriscasse, estaria ameaçada de qualquer jeito: é melhor tentar, nesses casos). Ester, ou a arte sem um plano
A história de Ester, que violou um interdito para tentar salvar seu povo (e, consequentemente, a si mesma), é apenas um tema: Karin não se preocupa muito com ele enquanto trabalha, quer apenas ficar com o “espírito da coisa”. Assim como também uma de suas principais preocupações, e que ela espera que fique evidente nas obras, é o seu repúdio à destruição sistemática que a natureza vem sofrendo. Mas as relações entre a obra concluída e o tema de Ester ou da natureza são “abstratas”, como diz, e não uma ilustração. A título de exemplo, pode-se comparar seu trabalho com o de outro artista, este bastante famoso, que se dedica a protestar contra a devastação que a natureza brasileira vem sofrendo: Frans Krajcberg. As esculturas de Krajcberg são diretas, mantêm uma relação inequívoca e evidente com o problema ecológico. Os quatro trabalhos de Ester em nenhum momento fazem referência direta à ecologia. “Não trabalho com projetos prévios, e é através da prática do trabalho que cada obra se desenvolve. Por isto, o tema está presente na obra apenas de maneira indireta, e a relação que estabelece com o material se torna tão importante.”
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Antes conhecida como pintora, Karin passou a recorrer também a objetos tridimensionais, sem pretender se tornar uma escultora; a madeira, a sucata e outros objetos são “integrados à pintura”: “Os materiais que utilizo têm uma memória, foram já utilizados e reutilizados. Quando pego a sucata, eu olho para ela com olhos de pintora, procuro as manchas em sua superfície, situações que possam gerar novas situações. Mas sempre tenho em mente algo que vai sofrer um processo de reintegração com a natureza. Assim como uma cidade que, depois de destruída, seria novamente ocupada pelos vegetais e animais. Minha casa, em Porto Alegre, é um pouco isto. Ela foi construída por minha avó e é atualmente o acúmulo de coisas que vão sendo colocadas por ali, tentando reaproveitar o que já havia.” As quatro obras que compõem Ester, um conjunto de telas pintadas e montagens tridimensionais com sucata, têm um aspecto semiarruinado, entre o arcaico e o futurista, de um universo poeirento e estático. Algumas das peças tridimensionais adquirem a dignidade de um ídolo esquecido, em situação precária mas ainda de pé. A situação precária, aliás, não é uma novidade no trabalho de Karin, que em sua fase anterior (mostrada na penúltima Bienal) utilizava técnicas de pintura em que misturava água e óleo, e o seu controle sobre a imagem tornava-se dependente, em grande medida, dos materiais e do seu comportamento antes da secagem: um “controle precário”. “Esta foi a fase da Fertilidade de Anita, um tema ligado ao problema da mulher, sua relação com a vida, como Ester. Havia ainda um sentido irônico, de humor, na história toda. Mas eu não me preocupava com o tema enquanto trabalhava. Ainda hoje é assim.” Na Thomas Cohn, Ester está montada exatamente segundo as especificações da artista, cada um dos trabalhos em uma só parede, mantendo assim a noção do pátio, o que não foi possível na Bienal. Lá, colocados lado a lado em uma única parede, os quatro trabalhos pareciam um mingau meio indistinto. Agora, devidamente separados uns dos outros, eles adquirem o impacto desejado pela artista: “Mesmo que a relação entre o tema e a obra seja abstrato e indireto, o que espero é que o espectador sinta aquilo que quis dizer com eles. Hoje em dia, fico pensando se consegui transmitir tudo através dos meus trabalhos anteriores. Acho que sim, e acho que também consegui a mesma coisa agora, com Ester.” Escultura com matéria e gesto
As nove esculturas de José Resende expostas na Sérgio Milliet, da Funarte, são resultado do trabalho que o escultor vem desenvolvendo desde 1985, com couro, feltro, papelão, chumbo, tecido e parafina. Por meio destes materiais, Resende estrutura situações “expressivas” de seu relacionamento com a matéria (mas não expressivas de um “eu interior”, elemento que ele não procura em seu trabalho). Outra coisa que Resende também não procurou fazer nesta exposição, mas que tem sido relativamente comum nos últimos tempos, é criar uma instalação com as peças em exposição: em vez de abafar a individualidade de cada uma das esculturas em favor de um conjunto coerente em si mesmo, ele as montou individualmente, de maneira a
dar a cada uma de suas esculturas seu caráter próprio, mantendo o relacionamento e o diálogo entre elas, e não cedendo em nenhum de seus aspectos particulares. Resende se limita a alguns procedimentos simples, sempre determinados pelas propriedades específicas do material com que está trabalhando no momento. São todos maleáveis em maior ou menor medida e, no caso da parafina, ela é utilizada em estado líquido e depois deixada solidificar. Nas esculturas em chumbo, por exemplo, é o peso do metal, ou a maneira como se deposita ao derreter, que determina a estrutura da obra. Os demais materiais são dobrados ou enrolados sobre si mesmos e, em seguida, a parafina ainda líquida é acrescentada. Ao tornar-se sólida, ela irá segurar os demais materiais em sua posição original, e a estrutura resultante é condicionada pela tensão entre ambos. “Existe uma gestualidade em meu trabalho, e ela põe em evidência uma série de tensões, tais como aquela que existe entre o material e a maneira como o manipulei, ou mesmo entre a noção de espaço, concebido de acordo com a tradição da arte moderna de Picasso, Duchamp e Beuys, e a maneira como utilizo esta tradição. Mas os problemas de espaço estão sempre presentes, até nas esculturas ‘de parede’, tradicionalmente o lugar privilegiado da pintura.” As tensões existentes nos trabalhos de José Resende colocam em evidência, além das propriedades dos materiais e do meio como foram manipulados, o próprio processo de estruturação da obra, os procedimentos necessários à sua realização e o tempo que cada uma das etapas imprimiu a elas. Trata-se, no caso, de trabalhar com o concreto, com situações de escultura determinadas a partir da utilização de certos materiais, e não de esquemas abstratos, apriorísticos na maior parte das vezes, nos quais a matéria interfere apenas como suporte de uma ideia. “No caso da parafina, por exemplo, ela adquire sua forma a partir das propriedades em estado líquido, mas depois ela se solidifica e mantém a forma anterior. E a transparência que a parafina adquire também é um dos elementos que compõem o trabalho: é a verdade do material.” Coincidência ou não, as obras de José Resende têm muito em comum com os demais artistas que participaram do ciclo da Funarte, e todos eles se destacam por discutir problemas de espaço, sim, mas mediado pelas possibilidades concretas de manipulação do material. O trabalho de Resende, que não foge à regra, se diferencia naturalmente dos demais por suas especificidades. De qualquer modo, parece ser esse o caminho escolhido por um número significativo de escultores contemporâneos, que abriram mão dos esquemas e ideias a priori, para começar a discutir situações que surgem do manuseio imediato da matéria. O ciclo da Funarte será interrompido durante alguns meses, para ser retomado ainda no segundo semestre, com uma lista de nomes ainda não divulgada. Se as escolhas continuarem no mesmo nível desta primeira etapa, a Funarte estará dando uma contribuição decisiva para a escultura brasileira, que, por alguns motivos já bastante sabidos e provavelmente outros que não são públicos, não vem recebendo a atenção que merece. Publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1988. Caderno b, p. 4.
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LISTA DE OBRAS
Diamonds in the Sky, 1993 desenho em nanquim e texto datilografado 20 x 20 cm
[original perdido, editado em fôlder de exposição individual na Universidade Federal Fluminense, Niterói]
Montanhas e pedreiras, 2007 obra caligráfica 22 x 14 cm [cada]
Cruz elementar, 2009-12 dobradura triangular em papel, lápis, grafite, recortes com bloco de madeira, folhas de prata e feltro em tenda de voal 30 x 30 x 15 cm
coleção Miguel Chaia arquivo Galeria Nara Roesler © Everton Ballardin
Cruz elementar, 2009-12 [detalhe] © Fabio Del Re
coleção da artista
20,5 x 13 cm [cada]
Legendas para Bergman, 2011-12 recortes das legendas em português para o documentário A ilha de Bergman, um filme de Marie Nyrerod, sobre papéis de seda brancos
coleção da artista
135 x 60 cm [cada]
Words, 1979 caderno com seis páginas em fotocópia e serigrafia
exposição Cores, palavras e cruzes, 2012, curadoria de Glória Ferreira, Galeria Nara Roesler, São Paulo arquivo Galeria Nara Roesler © Everton Ballardin
Sem título, 2008 lápis e pigmento azul ultramarino 30 x 41,5 cm
coleção da artista [página de caderno de anotações e desenhos realizados em Israel e Jerusalém para o trabalho Pai] © Fabio Del Re
Caminho do rio, 1982 estudo de cores; pigmentos em têmpera de ovo sobre caixa de papelão e goma-laca impermeabilizante para flutuar na água do rio Spree, Berlim arquivo Karin Lambrecht
Sem título, 2001 quatro vestimentas em algodão branco com manchas de sangue derradeiro de três carneiros abatidos respectivamente em três diferentes municípios no Rio Grande do Sul 130 x 45 cm [aprox. cada]
coleção Justo Werlang [xxv Bienal de São Paulo, 2002] © Juan Guerra
Relações entre os seres vivos, 1980 fotocópia e serigrafia 21 x 30 cm [cada]
coleção da artista
Mundu, 2011-12 pigmentos em emulsão acrílica, chuva, marcas de pedras e caligrafias sobre lona 200 x 340 cm
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Desmembramento, 2000 linha de sangue derradeiro de carneiro sobre lona 180 x 1 170 cm
mam-rj / coleção Gilberto Chateaubriand © Beto Felício
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Desmembramento, 2000 [detalhe] © Beto Felício
Lugares desdobrados, 2008 exposição na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre © Fabio Del Re
Territórios d’areia menor e maior, 2011 pigmento, emulsão acrílica sobre lona 190 x 200 cm
coleção particular © Galeria Nara Roesler
Morte d’luz, 2007 sobre uma tela (instalada em uma parede de 51 m2, no mac-usp) coberta de mel de laranjeiras, cultivado pelo setor de Biociência da usp, cerca de três mil folhas de ouro medindo 15,5 x 15,5 cm [cada] foram alinhadas por estudantes da eca-usp. Mel escorre / Ouro escurece. Em uma reação viva, o esplendor do dourado vai sendo consumido pelo mel. Em alusão ao Como explicar pintura para uma lebre morta?, de Joseph Beuys, 1965, Morte d’luz refere-se também à condição da pintura atual e ao seu processo físico e pictórico, que o mel acentua, por exacerbar a natureza quase incontrolável do material. [obra efêmera] Arquivo Karin Lambrecht
Cor te, 2006 feltro sintético recortado com pigmentos em emulsão acrílica sobre lona 150 x 135 cm
coleção Miguel Chaia © Romulo Fialdini
Territórios d’areia ii, 2011 pigmentos e cinzas de vegetais em meio acrílico, marcas de pedras, pastel seco e água da chuva sobre lona acervo Galeria Nara Roesler © Galeria Nara Roesler
190 x 155 cm
coleção Miguel Chaia © Romulo Fialdini
Krankenhaus: Ser, sentir, mundo, 2011-12 cobre, pigmentos em emulsão acrílica, pastel seco, chuva e marcas de pedras sobre lona 200 x 350 cm
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Eu e você, 2001 [detalhe] impressão de vísceras e carnes de ovino sobre folha de papel canson medidas variadas coleção Justo Werlang © Yole Lambrecht Chapman
170 x 150 cm
coleção Banco Itaú © Galeria Nara Roesler
190 x 365 cm
Sem título, 2003 pigmento em emulsão acrílica e óleo e pastel seco sobre lona com marcas de pedra e chuva
Cisterna / Territórios d’areia, 2011 pigmentos em emulsão acrílica, chuva e cobre sobre lona
Cruz vermelho cadmium, 2009 elemento de cobre cadmium vermelho em meio acrílico sobre lona 208 x 235 cm
coleção Justo Werlang © Fabio Del Re
Fragmento, cobre e vermelho, 2006 feltro sintético, cobre recortado, pigmentos em meio acrílico sobre lona 225 x 200 cm
coleção particular © Fabio Del Re
Respiração em fragmentos, 2009 pigmentos em meio acrílico sobre lona 208 x 268 cm
coleção Justo Werlang © Fabio Del Re
Sem título, 1989 pigmentos em emulsão acrílica sobre lona com recortes, 252 x 255 cm
coleção Marcantonio Vilaça © Eduardo Ortega
Marie, 1989 pigmentos em emulsão acrílica sobre lona 200 x 300 cm
coleção particular © Fabio Del Re
Ester ou Ester entra no pátio interior da casa do rei, 1987 quatro conjuntos de pinturas mam-rj / coleção Gilberto Chateaubriand © Vicente de Mello
Sem título, 1992-93 pigmento terra de verona e cinzas em meio acrílico sobre tela com recorte e arame com chave 264 x 230 cm
coleção Banco Itaú © Iara Venanzi / Itaú Cultural
Terra queimada, 1989 pigmento e terra com recortes em ferro sobre lona 300 x 300 cm
coleção Justo Werlang © Romulo Fialdini
Cruz, anos 1990 rosa seca, carvão e cinzas sobre tela 83 x 82 cm
coleção Gisela Waetge e Flávio Kiefer © Fabio Del Re
Emergência, 1989 terra e argila em estrutura de madeira e lona
Cais, 1989-90 pigmento em meio acrílico sobre tela recortada, poema de Fernando Pessoa inscrito em placa de metal
113 x 117 cm
280 x 155 cm
coleção Marcantonio Vilaça © Eduardo Ortega
[paradeiro desconhecido] © Leopoldo Plentz
Homem dormindo, 1989 terra, carvão vegetal e argila sobre lona e recorte
Anunciação, 1991 pigmentos em meio acrílico e chapa enferrujada sobre tela
200 x 300 cm
275 x 130 cm
coleção Marcantonio Vilaça © Eduardo Ortega
coleção da artista © Fabio Del Re
Engel, 1991 pigmentos em meio acrilico, esmalte sintético, colagem de papel e chapa de metal sobre tela
2010, 1990 pigmentos e terra em emulsão acrílica e madeira sobre lona com dobraduras
Wim, 1993 pintura com rasgos, terra e pigmentos em meio acrílico
200 x 132,5 cm
333 x 205 x 7 cm
215 x 220 cm
mam-rj / coleção Gilberto Chateaubriand © Vicente de Mello
coleção Dulce e João Carlos Figueiredo Ferraz © Romulo Fialdini
coleção Sandra e William Ling © Fabio Del Re
São Matheus e Marie, 1993 armário de madeira, livro, terra, tecidos recortados e costurados 200 x 300 x 100 cm (área) [objeto efêmero] exposição no mac-usp, São Paulo © Romulo Fialdini
Sem título, 1993 terra e pigmento azul-paris sobre tecido em caixa de madeira 70 x 70 cm
coleção particular © Romulo Fialdini
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Corpus, 1994 pigmento, terra e cinzas em meio acrílico, sobre tela com elemento de cobre
Ainozama, 1992 ferro enferrujado, terra, pigmentos, laca e raiz sobre tela
210 x 210 cm
Ludwig Forum für Internationale Kunst, Aachen, Alemanha © Miguel Rio Branco
270 x 270 cm
Sem título, 1994 pigmento, terra e cinza em meio acrílico sobre tela com recorte e costura
Sem título, 1992 [projeto para Ainozama] aquarela
230 x 220 cm
coleção da artista © Miguel Rio Branco
Sem título, 2000 terra dos municípios de Santa Rosa e Santo Ângelo (rs), zona dos povos das missões jesuítas, com pigmento em meio acrílico, cera de abelha e tinta a óleo sobre lona
coleção particular © Luiz Carlos Felizardo
coleção Miguel Chaia © Luiz Carlos Felizardo
200 x 360 cm (aprox.)
6,5 x 10 cm
Sem título, 1999-2000 terra rosa da região de Caraiva, sul da Bahia, em meio acrílico e carvão sobre lona coleção Sandra e William Ling © Fabio Del Re
270 x 270 cm
coleção particular © Fabio Del Re
Sinais, 1992 pigmentos em meio acrílico sobre tela 190 x 190 cm
Colección Patricia Phelps de Cisneros, Nova York © Carlos German Rojas
[Vento, luz e forma] Elemento, pano, quase transparente, quase pintura, porém, um pouco objeto sólido... sobre as doze janelas representando os doze discípulos de Cristo, no projeto original do arquiteto (Siegfried B. da Costa) em 1934, 1997 pigmentos, laca, goma de lebre, rasgos e cortes em algodão
Sem título, 1999-2000 terra de diferentes regiões do Brasil e pigmento em meio acrílico sobre lona 270 x 270 cm
coleção particular © Fabio Del Re
300 x 600 cm
O lago, 1992 pigmentos em meio acrilico, terra e recortes em papel, arame e ferro sobre tela.
coleção da artista [instalação Vento, luz e forma, igrejinha Martin Luther, Porto Alegre, 1997] © Jochen Dietrich
Desmembramento, 2000 linha de sangue derradeiro de carneiro sobre lona
190 x 140 cm
mam-rj / coleção Gilberto Chateaubriand © Vicente de Mello
180 x 1.170 cm
[Vento, luz e forma] Elemento, pano, quase transparente, quase pintura, porém, um pouco objeto sólido... sobre as doze janelas representando os doze discípulos de Cristo, no projeto original do arquiteto [Siegfried B. da Costa] em 1934, 1997 [detalhe] © Jochen Dietrich
coleção Gilberto Chateaubriand– mam-rj © Beto Felicio
Desmembramento, 2000 [detalhe] © Beto Felicio
Genealogia de Jesus, 1994 (Evangelho de Lucas 3.23-38) anotações sobre papel 31,5 x 21,5 cm
coleção da artista © Fabio Del Re
Por favor mais luz – a criação do mundo em sete dias, dependurada, 2009-10 pigmentos, cobre, recortes e dobraduras em papel 95 x 60 cm
coleção particular arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Desmembramento, 2000 [detalhe] © Beto Felicio
Genealogia de Jesus, 2003 (Evangelho de Lucas 3.23-38) pigmentos em meio acrílico, óleo e pastel seco sobre lona
Uma provável criação do mundo,
282 x 322 cm
2009-10
Desmembramento, 2000 [detalhe] © Beto Felicio
coleção Justo Werlang © Fabio Del Re
Caixa do primeiro socorro, 2005
Pai, 2008 exposição Lugares desdobrados, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, rs © Fabio Del Re
sete caixas de papel, pigmentos em meio acrílico sobre papel recortado e dobrado, alguns com folhas de ouro. O trabalho é composto por sete partes: 1º dia: expansão 2º dia: esquecimento 3º dia: perdão 4º dia: confiança 5º dia: amor 6º dia: passagem 7º dia: descanso dimensões variadas coleção particular © Fabio Del Re
[detalhe]
abate do carneiro na região metropolitana de Santiago Arquivo Karin Lambrecht
pp. 147-153 Pai, 2008 [detalhes] © Fabio Del Re
A cela dela, a pele dele, 2012 cobre, carvão vegetal e pigmentos em emulsão acrílica sobre lona
Pai, 2008 [detalhe] 77 pequenas cruzes de algodão cru mergulhadas na lavagem do sangue de abates ovinos em Deir el Asad, norte de Israel, para as comemorações da festa judaica Succot dimensões variadas coleção Justo Werlang © Yael Engelhart
60 x 60 cm [díptico]
A casa de São Matheus e Marie, 2009 cobre, dobraduras e recortes em papel 50 x 50 cm
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Perdão, 2012 cobre, pastel seco e pigmentos em emulsão acrílica sobre lona 50 x 59 cm
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
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Janeiro/verão, 2012 pigmento em emulsão acrílica e pastel sobre lona recortada
Morte eu sou teu, 1997 sangue de carneiro sobre toalhas e desenhos
63 x 52 cm
170 x 171 x 15 cm
acervo Galeria Nara Roesler © Romulo Fialdini
coleção Justo Werlang © Fabio Del Re
Legendas para Bergman, 2011-12 1 e 2/10, papel de seda translúcido e folhas de prata sobre papel de seda
Morte d’luz, 2007 sobre uma tela (instalada em uma parede de 51 m2, no mac-usp) coberta de mel de laranjeiras, cultivado pelo setor de Biociência da usp, cerca de três mil folhas de ouro medindo 15,5 x 15,5 cm [cada] foram alinhadas por estudantes da eca-usp. Mel escorre / Ouro escurece. Em uma reação viva, o esplendor do dourado vai sendo consumido pelo mel. Em alusão ao Como explicar pintura para uma lebre morta?, de Joseph Beuys, 1965, Morte d’luz refere-se também à condição da pintura atual e ao seu processo físico e pictórico, que o mel acentua, por exacerbar a natureza quase incontrolável do material. [obra efêmera] Arquivo Karin Lambrecht
135 x 60 cm
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Meu corpo Inês, 2005 mãe e filha com vestimenta e sangue derradeiro de carneiro Mosteiro de Alcobaça, Portugal dimensões variadas paradeiro desconhecido © Yole Lambrecht Chapman
Meu corpo Inês, 2005 mulher com vestimenta e sangue derradeiro de cordeiro, 16 de março de 2005, Lua Nova, rs tamanhos variados paradeiro desconhecido [detalhe] arquivo Karin Lambrecht
Sem título, 1999-2001 marcas de chuva, cera de abelha, carvão vegetal e pigmento em meio acrílico sobre lona
Dia, 2005 feltro sintético, papel, grafite, recortes, linho, mel, ouro e cera de abelha 98 x 74 cm
coleção Miguel Chaia © Romulo Fialdini
Caixa do primeiro socorro, 2005 sangue derradeiro de carneiro e ovelha das regiões metropolitanas de Santiago, Chile e São Borja, RS, sobre lençóis brancos e impressões de vísceras com imagem de sua filha 200 x 800 x 10 cm
coleção da artista [instalação da v Bienal do Mercosul, Porto Alegre] © Fabio Del Re pp. 184-86
Caixa do primeiro socorro, 2005 [detalhes]
Noite, 2005 feltro sintético, papel, grafite, recortes, linho e cera de abelha 98 x 74 cm
coleção Miguel Chaia © Romulo Fialdini
230 x 250 cm [aprox.]
acervo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Animal, 2004 sangue de carneiro sobre tecido branco e papel 170 x 50,7 x 126 cm © Pedro Andrada
Sem título, 2006-07 linho, grafite e tecido de algodão branco recortado sobre papel com cruzes de cobre e óleo de linho 150 x 107 cm
coleção Justo Werlang © Fabio Del Re
Sem título, 2006-07 linho, grafite e tecido de algodão branco recortado sobre papel com cruzes de cobre e óleo de linho
Sem título, 2008 colagem, recortes em cetim, tinta a óleo e óleo de linho sobre papel canson
150 x 107 cm
300 x 150 cm
coleção Justo Werlang © Fabio Del Re
coleção particular acervo Galeria Nara Roesler © Ding Musa
Longe, 2009 recortes em cetim, feltro sintético, cera de abelha, pastel seco e pigmentos em emulsão acrílica sobre linho 140 x 190 cm
acervo Galeria Nara Roesler © Romulo Fialdini
Sem título, 2008 pigmentos e terra em emulsão acrílica, pastel seco, cetim e fio de cobre sobre linho 225 x 130 cm
coleção particular © Ding Musa
O quarto de Camus, 2008 cruz em madeira mdf sobre o solo, com três recortes centrais em baixo-relevo na dimensão de uma cama de solteiro, mesa de cabeceira e escrivaninha. O recorte da cruz remete a uma planta baixa que, quando remontada, fecha-se em quatro paredes claustrofóbicas. Sobre o mdf há manchas de pigmento azul-paris, que relembra o azul de uma caneta-tinteiro. Do lado esquerdo, um painel em mdf com desenhos e caligrafias que replicam a página do livro Jornaux de Voyage, de Albert Camus, da noite de 9 de agosto de 1949, que passou por Porto Alegre. Há també uma carta de Jacques Leenhardt que especula os possíveis sentimentos do antropólogo durante essa viagem. Ao fundo, é projetadoum céu nublado em preto e branco. No espaço penumbroso, um foco de luz realça a caligrafia do escritor. © arquivo Galeria Nara Roesler
64,8 x 49 cm
coleção e edição: Clube de gravura do MAM de São Paulo © Romulo Fialdini
Pai, Gólgota, 2011-12 pastel seco e pigmento em meio acrílico sobre lona 61 x 50 cm
acervo Galeria Nara Roesler © arquivo Galeria Nara Roesler
Mundo, 2012 pastel seco, carvão vegetal e pigmento em meio acrílico sobre lona 50 x 61 cm
acervo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
Sem título, 2012 pigmento em meio acrílico, pastel seco e recorte de cobre sobre lona
Sem título, 2008 pigmentos em emulsão acrílica e cetim recortado sobre linho cinza-escuro
64 x 45 cm
acervo Galeria Nara Roesler © arquivo Galeria Nara Roesler
145 x 195 cm
coleção Miguel Chaia © Romulo Fialdini
Fragmentos da cruz negra, 2006 ponta-seca, água-forte e água-tinta
pp. 197-200
O quarto de Camus, 2008 [detalhes]
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Nós, 2012 pastel seco, pigmentos em emulsão acrílica e chuva sobre lona
Margem do eu, 2011-12 pigmento em meio acrílico e pastel seco sobre lona
63 x 58 cm
120 x 145 cm
acervo Galeria Nara Roesler arquivo Galeria Nara Roesler © Fabio Del Re
coleção particular
Setembroutubro, 2010 pigmento em meio acrílico e recorte de cobre sobre lona 75 x 73 cm
acervo Galeria Nara Roesler © arquivo Galeria Nara Roesler
Noite, inverno, 2010 pigmento em meio acrílico e carvão vegetal sobre lona com recorte 67 x 48 cm
acervo Galeria Nara Roesler © arquivo Galeria Nara Roesler
Margens, 2012 pigmento em meio acrílico e pastel seco sobre lona 120 x 145 cm [aprox.]
coleção particular © Romulo Fialdini
Noite, verão, 2011-12 cobre recortado, pigmento em meio acrílico, chuva e marca de pedra sobre lona 110 x 120 cm
coleção particular © Fabio Del Re
Todos os esforços foram feitos para reconhecer os direitos de imagem neste livro. A Cosac Naify agradece qualquer informação relativa à autoria, titularidade e / ou outros dados que estejam incompletos nesta edição, e se compromete a incluí-los nas futuras reimpressões.
Organização Glória Ferreira
© Cosac Naify, 2013 © Karin Lambrecht, 2013 © Textos: os autores, 2013
Conceito Glória Ferreira e Rara Dias Coordenação editorial Ana Carolina Ramos e Charles Cosac Assistente editorial Paulo Pirozelli Preparação Leny Cordeiro
Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
COSAC NAIFY
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Revisão Claudia Cantarin Projeto gráfico Rara Dias e Paula Delecave Tratamento de imagem Ipsis Produção gráfica Aline Valli
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Ferreira, Glória Karin Lambrecht: Glória Ferreira, Miguel Chaia, Agnaldo Farias, Viviane Gil Araújo. São Paulo: Cosac Naify, 2013 272 pp.
Fotografias cronologia [pp. 220-33] figs. 1-7, 10-14, 16-19, 21-23, 25, 26, 30, 33, 34, 36, 38, 44, 47 e 49 arquivo Karin Lambrecht; pp. 218-19, figs. 8 e 9 arquivo Michael Chapman, fig. 15 © Martin Streibel, arquivo Karin Lambrecht; p. 221, fig. 20, p. 223, fig. 29 © Leopoldo Plentz, arquivo Karin Lambrecht; pp. 222-23, fig. 24, pp. 226-27, fig. 40 e 41 © Romulo Fialdini; pp. 222-23, figs. 27 e 28 © Miguel Rio Branco; pp. 224-25, fig. 31 © Flávio Kiefer, fig. 32 e 35 © Elaine Tedesco, fig. 37 © Fabio Del Re; pp. 226-27, fig. 39 © Sérgio Guerini, fig. 42 © fotógrafo, arquivo Galeria Nara Roesler, fig. 43 © Pinacoteca do Estado de São Paulo; pp. 228-29, fig. 45 © Luiz Cruz, fig. 46 © Yaelen Gelhart, fig. 49 © Fabio Del Re, fig. 50 © Everton Ballardin,
arquivo Galeria Nara Roesler.
isbn 978-85-405-0445-5 1. Arte - Brasil - Século xx 2. Crítica de arte 3. Lambrecht, Karin, 1957 4. Pintura - Brasil i. Chaia, Miguel. ii. Araújo, Viviane Gil. iii. Ferreira, Glória. iv. Farias, Agnaldo. v. Título. 13-03472
cdd-709.81
Índices para catálogo sistemático: 1. Arte brasileira : apreciação crítica 709.81
Fonte Aptifer Slab LT Pro Papel couché fosco 150 g/m² e pólen bold 90 g/m² Impressão Ipsis Tiragem 2 000
Agradecimentos A autora agradece, com amor: à minha mãe e à minha filha; aos meus amigos, que me inspiram e me ajudam a compreender e a seguir em meu caminho e trabalho; e a todos que contribuíram para este livro.
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