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Testemunho transiente juliano garcia pessanha



Para Luciana Araujo, que inscreveu em minha carne o livro que ainda nรฃo estรก aqui.



9 prefácio Franklin Leopoldo e Silva 23 Sabedoria do nunca 29 Ficção 53 Poemas e fragmentos 63 Ensaio

85 Ignorância do sempre 89 Poemas e fragmentos 107 Ensaio 139 Micro-histórias

145 Certeza do agora 151 Ensaio 161 Heterotanatografia 187 Ensaio 197 Poemas e fragmentos 201 Ensaio

211 Instabilidade perpétua 217 Introdução 219 Ensaio 225 Heterotanatografia 237 Performance 255 Ensaio 275 Aforismos e pensamentos estremecidos 285 Pequena entrevista

291 Posfácio para uma tetralogia 297 prefácios às primeiras edições



Prefรกcio



Se um prefácio significa enunciar de algum modo condições prévias de leitura, como uma introdução a uma certa escrita, talvez mesmo, num excesso de pretensão, uma direção de compreensão, então um prefácio dos livros de Juliano Garcia Pessanha será sempre inevitavelmente uma traição. Não em relação ao escritor, como uma tentativa de “interpretar” ou “decifrar” o sentido, mas uma traição ao próprio ato da escrita, enquanto origem não fundante de si e da expressão a ser captada pelo outro. Com efeito, não haveria maior insensatez do que tentar “explicar” o ato da escrita, e a prova disso está em que o escritor se perde como tal toda vez que procura sugerir que sua obra possui portais de inserção para aqueles que dela se aproximam. Não existe maneira de atravessar a escrita como um caminho pelo qual se vai deixando marcas no intuito de, depois, voltar à situação de início. Pois aquele que é capaz de voltar para o lugar de si mesmo não adentrou verdadeiramente o caminho que deveria percorrer, nem se aproximou da sabedoria que se (des)constitui pelo contínuo adiamento da chegada. Somente aquele que, ao empreender a jornada, já pudesse saber que nunca chegará, somente este saberia algo acerca da própria viagem. Essa relação entre a escrita e a perda (entre a obra e o fracasso) talvez seja o único motivo para escrever ou, dito de outro modo, é possível que a desesperança seja, no mundo de hoje, a única forma aceitável de lucidez. Aquele que divisa contornos no horizonte provavelmente enxerga ilusões. Isso não quer dizer que a escrita tenha sabor de aventura; pelo contrário, ela é incompatível com expectativas e projetos, como se vivesse de si mesma e, assim, de incertezas, daquilo que é sempre ignorado e ignorância. Nunca é um modo de se dizer para sempre. Diante dessa articulação negativa, qual seria a possibilidade, para o leitor, de se situar, talvez valendo-se da antecipação que, em certos casos, um “prefácio” permite? Creio que essa singularidade da escrita de Juliano Pessanha provenha de sua peculiar busca da palavra. Ele nos alerta, em várias passagens de seus textos, para a necessidade de evitar as palavras que se beneficiam da estabilidade da linguagem, 11  prefácio


não apenas por serem inócuas, mas sobretudo porque inoculam uma espécie de vírus que fomenta o uso burocrático das palavras. É preciso reinventar, mas não se trata somente de virtude estilística e sim de uma ética da escrita, que nada tem de “elevação espiritual”, pois visa o reencontro das origens esquecidas do pensar e do dizer. Para que haja alguma aproximação desse estrato originário, é preciso encontrar na escrita a dimensão instável que, paradoxalmente, a conduz. É preciso tentar entender como a perda do fio de Ariadne reconstitui a situação labiríntica. E como não se pode contar com parâmetros nitidamente definidos, será o recurso às impressões de leitura que fará as vezes do fio condutor inexistente. Tais impressões me levam a destacar inicialmente dois aspectos, no sentido mesmo de duas maneiras de ver, talvez tão circunstanciais e contingentes quanto outras tantas possíveis, já que aquilo que poderia ser essencial está fora da relação de leitura. Refiro-me ao exílio e ao tempo. Não devem ser entendidos como chaves interpretativas, já que, repito, a escrita de Juliano não as comporta, mas como reações impressionistas às quais se subordina a eventual reflexão que se venha a fazer a propósito. Creio que o estatuto subordinado da reflexão é necessário, neste caso, para desenvolver uma leitura aproximativa. O exílio e o tempo se relacionam na escrita dos diários, forma de expressão que ocorre no deserto (solidão) e na temporalidade subjetivamente intensa e objetivamente vazia (a história pessoal da impessoalidade). Com efeito, o verdadeiro exílio não consiste em estar em outro lugar, mas em vagar num deserto que se caracteriza pela ausência de lugar. A falta de referências não resulta em simples homogeneidade, mas numa pluralidade caótica em que nada pode ser identificado, a começar por aquele mesmo que atravessa o deserto e que não pode dizer eu. A descoberta dessa travessia é que o Eu é em geral objetivo, tanto quanto todas as invenções da psicologia. Assim uma história pessoal inautêntica se dá no contexto da impessoalidade. Em contrapartida, a ausência do Eu, quando se assume que se trata da designação do impessoal, 12  prefácio


pode levar à consciência de que a história de cada um só começa de fato quando o sujeito tenta sair de dentro de si, a única possibilidade de escapar da prisão cujos muros são a representação de si e a representação do mundo. É nesse sentido que se dá a impossibilidade do conhecimento de si, uma ilusão alimentada pelos parâmetros da sujeição à impessoalidade. Isso não significa que alguém seja indiferente a si mesmo, mas sim que tem a certeza de estar no deserto, lugar da desidentificação, pois a certeza agora, como na instantaneidade do cogito cartesiano, significa que nunca se terá certeza. Quando o mundo se ilumina e a vida se esclarece, isso acontece “em vão”. Por isso a escrita se dá no deserto: o nome, e a subjetividade como o nome de todos os nomes, aprisiona, e só se pode escapar dessa “ditadura” quando alguém pratica o dilaceramento que consiste em expor-se para “fora” como se expõem as vísceras. Por isso o exílio é a travessia do deserto, não para chegar, mas para vagar; aquele que está no deserto é sempre recém-chegado, nunca pode saber de fato onde está. Essa é a contraprova de que a iluminação de si e dos lugares obscurece a existência, ocultando a gratuidade do estar-aí. Assim, não se pode falar de história pessoal e interpessoal a não ser como falsa orientação que impede a ex-posição a afetos desconhecidos. O homem moderno é o homem “blindado”: como o “fora” não o afeta nem o surpreende, a subjetividade o aprisiona, pois não há maior ilusão de que a crença de que o confinamento na subjetividade nos permite “ver dentro”. Tudo que ela propicia é o “negócio da administração [medicalizada] da vida”, que é uma inoculação da “normalidade”. O tempo do exílio não é o tempo da história com seus nexos causais, seu começo e sua finalidade. Por isso aí se dá a busca da palavra heterodoxa: o deserto é a terra da escrita. O diário, nesse sentido, não é a escrita subjetiva, aquela que vai do eu ao eu: na verdade, consiste em escrever para ninguém. Aquele que escreve não se lê de fato, e com isso evita a leitura como consumo de “palavras eficazes” e normalizadas. No exílio e no deserto, a neutralização da comunicação torna-se a única pos13  prefácio


sibilidade de expressão, a autêntica experiência da palavra. A palavra pronunciada no tempo do exílio sai da escuridão e para ela retorna, mas esse movimento, aparentemente inútil, é o que nos expõe e fecunda a escrita, pois no deserto não se encontram esconderijos intelectuais, onde se possa elaborar uma biografia preservada. A escrita sobre si, o diário lúcido, é sempre uma heterotanatografia, isto é, uma vida em que o eu-outro se expõe à morte. Com tudo isso, o deserto é o lugar em que não se encontra a violência da palavra que informa deformando (“a grande falcatrua” familiar e social), que tritura insistentemente a existência, e sim o “lugar” onde se experimenta a violência poética presente nas relações “viscerais” do exilado com a palavra e da palavra com a linguagem. Não se diz o horror com palavras objetivas gestadas na violenta docilidade de uma linguagem cúmplice, cuja comunicação se dá pelo homem vestido de branco que aplica injeções em alguém amarrado a uma cama metálica. O horror infinito exige palavras que desafiem a finitude e revelem, na sucessão dos instantes que parecem um eterno agora, o processo de encarnação da morte. Revelação de uma realidade designada por palavras mortas, palavras-coisas emitidas e recebidas por pessoas-coisas. Enfim, a necessidade de produzir a ilusão da chegada, miragem que a linguagem pode fabricar, para fugir à narração do exílio. Mas a chegada supõe um tempo definido pela expectativa de se completar o périplo e sair do labirinto. O tempo do exílio, verdadeiramente vivido, é incompatível com tais expectativas: nele não se cresce, não se amadurece, não se chega a ser. A existência é um estar em cada instante, pois o tempo não tem fim ou finalidade. Entretanto, é exatamente a ausência da expectativa de chegada que faz com que alguém possa chegar a si mesmo. Não no sentido de descobrir a identidade, mas sim de compreender a dor: tocar em si e tocar o outro. Daí o paradoxo: alguém só pode se encontrar depois de ter abandonado a si mesmo. “Visitado pela ruptura” é a expressão dessa condição. Ninguém tem a si mesmo; só se chega a si por herança, pois o ser humano é herdeiro da dor. Esse modo de despertar implica o 14  prefácio


estranhamento, decorrente do sentimento da instabilidade do tempo, e é isso que produzirá a diferença insuperável entre os que consomem um presente que acreditam eterno e os que aprenderam a postergar a verdade e a enfrentar o assombro na travessia do deserto, reiterando as perguntas formuladas a partir da imensidão e da fragilidade. A impossibilidade de chegar, no sentido de que o lugar de chegada estaria em continuidade com a viagem, é a impossibilidade da certeza que ultrapasse o agora. Creio que já foi possível perceber que a travessia do deserto que se estende fora de si é filosófica e literariamente construída por via de uma espécie de solidão partilhada com algumas personagens com as quais o autor trava um diálogo silencioso que nada tem a ver com “influências”, mas sim com uma permuta vivida como experiência visceral: além de Blanchot, Heidegger e Kafka. O primeiro se faz presente todas as vezes que o Fora aparece nos textos de Juliano como indicação do antiespaço, que seria o espaço da invenção, isto é, da imaginação literária e filosófica. Heidegger, ao pensar a existência como não-lugar, faz com que essa inconsistência da origem da realidade humana propicie uma total inversão da questão do sentido da condição humana, isto é, da pergunta pelo ser a partir da existência como “ser” da realidade humana. E Kafka, ou K, ou Joseph: a mais intensa experiência do anonimato e da gratuidade do estar-no-mundo. Uma ignorância que expõe e protege, e talvez a única maneira de compreender o outro (e também que cada um é outro) não pelo conhecimento, mas por ouvir e olhar. Modos de revelação de um mundo no qual, como assinala Jünger, vigora a avassaladora “espiral do progresso e a mobilização total”. Assim, não há “lugar” que escape a esse destino. “Quando a armação tecnológica invade a própria província familiar enquanto lugar da natalidade, então desaparece a possibilidade de qualquer contato humano.” É o triunfo da funcionalidade: o recém-nascido é acolhido em sua “chegada” pela “função-mãe” e pela “função-pai”, de modo que a maternidade e a paternidade técnicas abafam toda repercussão exis15  prefácio


tencial do recém-chegado. Começo de uma história que não chegará a seu fim de forma muito diversa, já que a “destituição” é a tônica dominante. O problema é que as formas da cultura moderna, entre as quais a psicanálise, emolduram a destituição e tudo que ela envolve, transformando a antevida numa história. Ora, se a história pessoal é a de uma “imensa destituição”, como recuperar a raiz, ou melhor, como chegar às perguntas que envolvem o (des)enraizamento? Como redescobrir a pertença humana ao antes, ao fora e ao aberto? Perguntas que envolvem um radical questionamento do que seja saber e certeza. E pelo menos uma suspeita de que o “lugar” é o caminho, e o deserto, a ausência da terra prometida. A história é passagem e o seu registro é existencial: “Apenas escrevi no papel o que antes se inscreveu em mim”. O verdadeiro nascimento se dá quando a palavra passa a habitar aquele que irá então escrever o que nele se inscreve. Nunca mais nascimento e morte serão extrínsecos, nunca mais haverá um lugar que não seja a viagem, nunca mais haverá acomodação, mas sempre deslocamento, nunca mais haverá residência, mas sempre exílio e resistência. Já que o mundo revogou o benefício da chegada ao recém-chegado, ele estará sempre desalojado e desabrigado da identidade. O verdadeiro nascimento se dá na “terra dos diários”, pois cada um é, lá, aguardado por si mesmo, para que a palavra se inicie. E, lançado assim para fora de si, para o espaço que a psicologia não pode alcançar, a hiperdeterminação e a indeterminação coincidem, como na tensão que caracteriza a narração em Kafka. É assim que procura descrever a si e ao mundo aquele que abandonou a segurança do “dentro”, que é o espaço conceitual e a garantia prévia do sentido. Somente de “fora” se pode escapar a essa determinação mortal, que é também o encobrimento da finitude. Assim vemos que o deserto é a transitoriedade vivida radicalmente, um tempo que não passa porque o deserto não tem fim. Na concepção habitual da transitoriedade, o que nos consola é que o tempo passa e o momento da chegada se aproxima, como numa viagem programada. Mas, se a exis16  prefácio


tência é transitória, ela é o tempo ao qual pertencemos e não podemos deixá-la: nesse sentido, o tempo do exílio não passa porque quando ele passar já teremos nós também passado pela vida. Trata-se de uma insegurança que não podemos evitar, ainda que tentemos fazê-lo por via da fabricação da vida, da autofabricação de nós mesmos e da instituição da palavra, do homem sob medida, da dedução e da observação apenas externa. Táticas para fugir ao deslocamento constitutivo da existência e que provam seu poder quando vemos, na atualidade, o pensamento disciplinado, a literatura normalizada e a vida administrada. “Mundo pavimentado.” Mas a transitoriedade possui seus abismos, e o tempo, que não passa, nos devora. Se observássemos melhor a criança, veríamos que o início é o enigma. E essa origem, como arque, nunca nos abandona. Mas a forma de ter sempre presente essa terra natal não é recordar ou decifrar a infância, e sim transmutá-la em poema, espécie de celebração do país natal e um constante face a face com o enigma, sem a pretensão instrumental de decifrá-lo. Somente dessa maneira poderemos manter a intensidade do episódio inaugural, que não traz em si o sentido, mas que revela a origem. O que significa, dito de maneira simples, que a experiência deve ser vivida sem interpretações. Livremo-nos da “interpretose infinita” e tentemos conservar o segredo da primeira presença, “aquela que sempre nos é roubada”. Assim talvez possamos evitar que a vida seja desperdiçada antes de ser vivida. Mas tudo isso é totalmente contrário à biografia, que parece conter o risco intrínseco da domesticação dos afetos por via de uma descrição lógica. A “terra dos diários” não é o lugar da biografia, mas a anotação dos deslocamentos que impedem a organização biográfica que gira em torno da identidade. Leitor de Blanchot e Kafka, Juliano sabe que o “lugar” é sempre uma “questão”. “A casa é um além a que não se chega.” Portanto, se definíssemos a existência pela sua finalidade ou totalização, teríamos que admitir que a condição humana supõe “inexistir”, tal é a intensidade da negação que preenche a existência. 17  prefácio


Por isso a experiência, entendida de forma radical, integral e abrangente, não pode receber qualificações que a definam, e quando julgamos poder enumerar suas características, ainda assim nos foge o que ela é, como uma grandeza intensiva inatingível por qualquer cálculo. O “abismo da mortalidade”; o “estranhamento”; a condição “apátrida”: qualquer que seja a dificuldade, pelo menos podemos saber que a descrição dessa experiência é uma arte tão terrível e inóspita quanto a vivência da privação que ela implica. Nietzsche e Kafka, cada um à sua maneira, remetem a essa impossibilidade, são seus filhos e herdeiros. Com efeito, a literatura é mais que o literário e a arte é mais do que o estético: constatação ou advertência que nos leva de volta à questão do nascimento pela palavra: “O poeta é o guarda das nascentes”. E a experiência literária inclui a visão de onde brota o dizer, borbulhas que não se encaixam em qualquer trajetória. Ainda mais porque o nascimento do dizer é o silêncio do “antes” que toda palavra exprime sem que nenhuma o diga. Mas no mundo em que vivemos, as pessoas se preocupam mais com a proficiência do que com a experiência. Isso significa que o mundo é visto como um lugar em que todos devem se “encaixar” e quem não o faz sofre exclusão: Gregor Samsa é o exemplo perfeito do excluído, pois se transformou em barata porque se recusou a vestir a máscara do animal racional. A humanidade é industrial, quer dizer, produz pessoas abstratas e sem singularidade, e as possíveis referências nos são roubadas, porque tudo que importa é a medida que nos faz conforme o padrão. Essa linha de montagem é o “amor-morto”, ou a perda imediata do afeto. A mãe é aquela que nos é roubada assim que nascemos: ela será a função-mãe, a medida da maternidade. Toda fala é funcional e qualquer palavra autêntica cai na desmedida. Desencaixar-se é abandonar o eu, “essa alteridade chamada si mesmo”; é “dispor de si”, do racional e do metafísico e expor-se ao “espinho [que] corta a carne”, contato em que o eu racional “deve mergulhar e deixar-se desmanchar”. A palavra não deve ser dada ao eu, mas “àquele que migrou de si”. 18  prefácio


Permanecer no eu confinado é conformar-se à medida de todas as medidas, a normalidade, a possibilidade da autobiogra­ fia, mas também a “amputação das possibilidades”. O migrante só pode contar com a heterobiografia, a “experiência viva” de existir fora de si. “Narrar a si mesmo é dizer o outro.” E tocar-se a si mesmo é tocar a própria dor; se tocar o outro é tocar a sua dor, encontramos aí a única possibilidade da subjetividade e da intersubjetividade. Por ter recusado a dor, por tê-la relegado ao diagnóstico, à força repressiva do dizer científico, a filosofia e a literatura “definham” e são cada vez menos modos autênticos de enunciação da condição humana. Ora, se o exercício da alteridade é a escuta da dor, toda tentativa de nomeá-la e controlá-la retira do humano a possibilidade de dizer a dor, uma vez que se procurará substituir esse dizer pela enunciação formal, que é o obscurecimento do sentido da dor. Assim, muitas vezes, as terapias são estratégias de adestramento do sujeito que visam o encobrimento da dor. Não é fácil dizer a dor: talvez tudo que se possa fazer nesse sentido é dizer a dificuldade de dizer, o que passa habitualmente por uma fala pouco inteligente. Reencontramos então o enigma, entre o acessível e o velado, o que não significa meio-termo, mas tensão absoluta. O sujeito não é senhor de sua fala: “Pensar é ser pensado e falado por uma questão”. Temos a tendência de julgar que o sentido é um abrigo, a casa como lugar privilegiado. Mas o sentido deve ser antes procurado na “carência de lugar”, espécie de desmedida ou o não-lugar da arte. Por isso, num mundo em que se diz tudo, já não existe a possibilidade da arte, e como nada fica por dizer, também já não há a possibilidade de mundo. Somente a palavra que procura sustentar a dor pela arte pode resistir à morte do mundo. A casa é para onde vamos em contínuo deslocamento, em perpétua instabilidade. E o exílio é o tempo literário que transgride o tempo histórico. Nada seria mais equivocado do que entender essas palavras como um enaltecimento da arte, como um privilégio do dizer literário porventura instaurador de positividade. Pelo contrário, a transgressão faz do dizer literário um desdizer. “A litera19  prefácio


tura diz o mundo desdizendo-o.” Não se trata de fugir, mas de um ficar que é um insistente estranhamento. Desdizer é a única forma de resistir à palavra instituída e instaurar a negatividade, cuja experiência é o estigma do escritor. Em todos os textos de Juliano Garcia Pessanha encontramos essa resistência não apenas como posição literária, mas como empenho visceral. O escritor experimenta sua época na totalidade de seu ser, na carne exposta aos espinhos, na travessia do deserto onde nada floresce. A passagem pelos “gêneros” não é um experimento literário da diversidade, mas uma forma de intensificação da busca interminável. É por isso que vemos nos ensaios a resistência à forma teórica e a opção pela experiência do caminho do pensamento. Nos poemas, a resistência às formas poéticas e ao ritmo cadenciado da expressão. Na ficção, a presença do imaginário comprometido com a desmistificação da realidade domesticada. E, na base de tudo isso, uma experiência muito singular da leitura em que a universalidade que esgota a cultura se desdobra numa rigorosa seletividade, cujos critérios são o estranhamento como potencial da palavra, a fragilidade da expressão e o resguardo da negatividade. Daí a insistência em Kafka e Gombrowicz, os “engolfados pelo enigma”, aqueles que não apenas constatam o que já existe, mas fazem uma literatura “de aparição”, na tensão entre o minimalismo e o excessivo, a tentativa de apreender a instabilidade, ou a “fronteira entre a dispersão radical e a simplicidade da lucidez”. Se fosse possível vislumbrar a escuridão aquém da identidade, diríamos que é a natalidade o ponto visado nessa espécie de horizonte por detrás, que o “olho da nuca” deveria enxergar. Somos filhos de Deus, ou da Natureza? Da transcendência ou da ciência? O problema é que, em ambos os casos, estamos dependentes da metafísica: ou do despotismo da fé ou do totalitarismo do conhecimento. Talvez a ética da existência esteja então no reconhecimento da orfandade e nunca na entrega de nossa paternidade a igrejas ou laboratórios. O mundo da tecnologia é o lugar do perigo; a onipresença da segurança é a iminência do desastre. O homem tornou-se a medida de seu fra20  prefácio


casso. Logo não nos lembraremos de nossos nomes, mas os números de controle estarão claramente inscritos nos cartões que são também passaportes que autorizam a cada um a permanência no mesmo mundo, como turistas prisioneiros. Mais do que escapar, mais do que encontrar a saída, a literatura de Juliano Garcia Pessanha cultiva a estranha esperança de que alguém se possa reinventar Fora, na plenitude vazia do exílio, no além-território do Poema, no tempo de não ser o mesmo, onde o “escondido e o indizível devem aflorar junto da palavra” e arrebentá-la por dentro, propiciando assim a aparição do ocultamento. Franklin Leopoldo e Silva

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