Existe uma ordem divina no caos.
OUVIDOR 63 Do microcosmos ao macrocosmos: um reflexo. MARYANA DE ANDRADE SANT’ANA
OUVIDOR 63 Do microcosmos ao macrocosmos: um reflexo. Trabalho final de graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie para obetenção do título de arquiteta e urbanista Orientadores: Profª Ana Gabriela Godinho Profº Lucas Fehr São Paulo, Junho de 2016
A meus pais e toda minha família, por tudo. A todos que alguma hora cruzaram comigo nessa jornada. À queda que precede o voar...
Imagem ao lado: XVI The Tower, por Salvador Dali. Disponível em: <google.com/the-tower-dali>. Acesso em 18/05/2016.
sumário 09
resumo/abstract
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primeiro capítulo {Introdução} PRINCÍPIO
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segundo capítulo OCUPA OUVIDOR 63
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1º quadrante TERRITÓRIO
79
2 º quadrante ARTES
93
3º quadrante VIOLÊNCIA
103
4º quadrante ÂNIMAS
117
terceiro capítulo {Conclusão} UTOPIA
169
considerações finais
171
bibliografia
173
apêndice
_ _ _ . Ilustração pela autora.
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RESUMO Este trabalho trará através das lentes da autora, o contato com a realidade de uma ocupação. Uma ocupação com tendências artísticas, que desde 1º de maio de 2014 ocupou um edifício estatal abandonado, localizado na Rua do Ouvidor, nº 63, Sé, São Paulo, Brasil. O objetivo do estudo é compartilhar um pouco da dinâmica e complexa realidade em que vivem os ocupantes do Ouvidor 63. Relatando um pouco desse microcosmos e os vários universos que o compõem. Pelo déficit habitacional, e quantidade de edifícios vazios pelo centro da cidade, a realidade de ocupar prédios se tornou um fenômeno na cidade. Grupos dos mais diversos buscam dar uso a esses espaços ociosos, configurando peculiares formas de gerir e ocupalos.No processo do trabalho, exponho reflexões, e apresento uma proposta de projeto arquitetônico como resposta ao que interpreto como demanda no quesito arquitetônico. Entretanto, ao fim do trabalho me questiono o que um projeto como o proposto poderia acarretar a atual existência e essência do Ouvidor 63...
Palavras-chave: ocupação, ouvidor 63, torre 10
resumo
ABSTRACT The present work will bring through the author’s lenses, the contact with an ocupation’s reality. One ocupation with artistical tendencies, that since May 1º, 2014 has occupied an abandoned statal building, located on Rua do Ouvidor, nº 63, Sé, São Paulo, Brasil. The objective of the present study is to share a bit of the dynamics and complex reality that lives the ocuppants of Ouvidor 63. Describing a little of the smallcosmos and the several individual universes that composes it. For the house shortage, and number of empty buildings around the city center, the reality of occupy buildings has became a phenomenon in the city. Distinct groups search use for the loitered spaces, configuring peculiar forms of ocuppy and manage them. In the work process, I expose reflections, and present an architecture proposal as an answer to my interpretations of the architecture demands. However, in the end of the work, I ask myself what a project as proposed could really affect on the actual existence and the soul of Ouvidor 63...
Key words: ocupation, ouvidor 63, tower 11
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primeiro capítulo
_”Definição” do termo princípio; _Divagações pessoais; _Trecho de “As Portas da Percepção - Céu e Inferno” de Aldous Huxley; _Breve introdução sobre o movimento “squat”/”ocupa”; _O papel do etnógrafo em “Encontros Etnográficos” de Michel Aguier; _Relatos de experiências - que levaram a chegar no Ouvidor 63;
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PRINCÍPIO (latim principium, -ii) substantivo masculino 1. O primeiro impulso dado a uma coisa. ≠ FIM 2. Acto/Ato de principiar uma coisa. = COMEÇO, INÍCIO ≠ FIM 3. Origem. 4. Causa primária. = BASE, FUNDAMENTO, ORIGEM 5. O que constitui a matéria. 6. O que entra na composição de algo. = COMPONENTE 7. Opinião. 8. Frase que exprime uma conduta ou um tipo de comportamento. = LEI, MÁXIMA, SENTENÇA 9. Aquilo que regula o comportamento ou a acção/ ação de alguém; preceito moral. = LEI, NORMA, REGRA 10. Frase ou raciocínio que é base de uma arte, de uma ciência ou de uma teoria. princípios substantivo masculino plural 11. O princípio da vida, as primeiras épocas da vida. 12. Antecedentes. 13. Educação, instrução. 14. Opiniões, convicções. 15. Regras ou conhecimentos fundamentais e mais gerais. = ELEMENTOS, RUDIMENTOS
“princípio”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Dispoível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/principio>. Acesso em 01/02/2016.
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PRINCÍPIO O princípio do todo. Dimensões são criadas. Leis que regem o plano da matéria. Nada além de interpreações particulares da mente. Mentes condicionas, ou iludidas, que interpretam de forma distinta a realidade última. Muitas perspectivas sobre um mesmo fenômeno. Depende do ponto de vista do observador. E sem o observador? Continua a existir? Dos milhares de mundo que existem pelo universo me deparo com este, no qual vivemos, cheio de dicotomias. Toda interpretação parte da minha própria percepção. Emoção e razão são contrapontos. E dessa mescla de opostos por horas se faz difícil compreender a vida. O ponto de partida parece ser simples a princípio: somos humanos, com necessidades, vontades, desejos... Alguns básicos à existência... Aí voltamos, a existência de quem? A existência de um se distingue de outro, assim como necessidades e desejos e todo resto. Mesmo compartilhando dimensões de espaço e tempo, cada mente nada mais é que um universo particular. A partir desse ponto de início compartilho algumas abstrações, analogias, pensamentos e experiências pessoais do meu universo particular.
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“(...) Muitos desses universos são suficientemente semelhantes uns aos outros, para permirtir entre eles uma compreensão por dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. (...) Mas em certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. (...) Falam mas não se entendem. As coisas e os fatos a que os símbolos se referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente. Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos veem é uma das mais confortadoras dadivas. E não menos importante é o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram Mas e se esses outros pertencerem a uma espécie diferente e habitarem um universo inteiramente estranho? Assim, como poderá o indivíduo, mentalmente são, sentir o que realmente sente o insano? (...) E como poderá alguém, que este já nos limites extremos do ectomorfismo e da cerebrotonia, pôr-se no lugar de outrem que ocupa o limite oposto do endomorfismo e da viscerotonia ou (a não ser dentro de certas áreas restritas) compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo e da somatotonia? Para o behaviorista inflexível, tais proposições - suponho eu - são desprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista teórico, aquilo que, na prática, sabem ser verdade - isto é, que a experiência possui dois aspectos, um externo e o outro interno -, os problemas apresentados são reais e tanto mais sérios por serem, alguns, inteiramente insolúveis, e outros só poderem ser resolvidos em circunstâncias excepcionais e por métodos que não se acham ao alcance de qualquer um. É, pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou Joe Louis. Por outro lado sempre me pareceu possÍvel que, por meio do hipnotismo, do auto- hipnotismo, da meditação sistemática, ou ainda pela ação de uma droga apropriada, eu pudesse modificar de tal forma minha percepção normal que fosse capaz de compreender, por mim mesmo a linguagem do visionário, do médium e até do místico (..).” (HUXLEY, 1957)
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OCUPA Em tentativa de contextualizar nosso objeto de estudo, busco de forma abrangente falar de ocupações do mundo e afunilar até chegar no caso do Ouvidor 63. Para tal se faz necessário especificar com um pouco mais de exatidão que tipo de ocupação estamos nos referindo. O termo ocupação pode se tornar bastante amplo e genérico, porém gostaria de conduzir esse pensamento sobre as ocupações com base no movimento squat. Ainda sim um termo bastante amplo e que pode ter diferentes conotações de acordo com o local no mundo em que este fenomêno se manifesta. O squat/squatting/squatter (ver símbolo) traduziremos em nosso trabalho para o termo "ocupa"/"ocupar"/"ocupante". De maneira geral, um ocupa se estabelece, por diversos fatores, em um edíficio construído (ou área não construída quando com fins temporários de manifestação) com o intuito geral de utilizar um espaço ocioso para novas dinâmicas, seja por moradia, seja por espaços de construção coletiva com diferentes finalidades (café, bar, espaço de apresentação, espaço de ensaios, música, teatro, oficinas, workshops, encontros de debates políticos, etc...). Essas ocupações são encontradas por todo o mundo, e com características peculiares em cada região, onde, por exemplo em certos países da Europa, o squatting
“Squatting is an action of occupying an abandoned or unoccupied area of land or a building – usually residential – that the squatter does not own, rent or otherwise have lawful permission to use.” (Pukka Themes. Independent Journal.)
Squatting. Disponível em: <http://demo.pukkathemes.com/elliot/squatting/. Acesso em 19/04/2016.
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de locais ociosos e reutilização desses espaços não é visto como um ação ilegal, e por vezes (de acordo com a habilidade de organizar e conservar os edífcios por parte dos squatters envolvidos) a legalização e mesmo investimento por parte governamental se torna uma realidade (como o caso de La Tabacalera de Lavapíes). O movimento de ocupação é um fenomêno mundial e se caracteriza em cada parte do mundo de maneira distinta, uma favela brasileira assim como uma squat europeia, pode ter finalidades de reinvindicação de moradia e ocupação de espaços ociosos, ter propostas artistícas e políticas, e no meio de tantas diferentes caracterizações é bem possível nos perdermos. Para possibilitar o fechamento do tema, gostaria de relatar algumas de minhas experiências pessoais de campo que se relacionam de alguma forma com a ideia de ocupas e grupos autogeridos. As análises posteriores são feitas a partir da experiência pessoal e subjetiva da autora. A incorporação de outros pensamentos, ideias e desejos se faz a partir da vivência com outros seres. Os 4 próximos capítulos tratam de grandes temas chave, levantados e discutidos nos espaços das assembléias do Ouvidor 63 (Edf. localizado na Rua do Ouvidor, nº 63, Sé, São Paulo, Brasil), realizadas no espaço do porão entre agosto de 2015 e março de 2016, associados à experiências da autora antes e depois desse período, levando em conta experiências pessoais coletivas com outros grupos autogeridos.
Símbolo Squat. Disponível em: < www. google.com > . Acesso em 19/04/2016.
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Foto da autora
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“Eis aqui a outra dimensão do ofÍcio: tudo o que aprende lá, o etnólogo o mostra aqui. Ele traz o que aprende de sua viagem para comparar, mas sobretudo para aproximar, fazer dialogar, mostrar o que existe de comum nesse mundo de diferenças. O que faz dele um antropólogo: sua pesquisa visa construir um saber sobre o humano, de alcance universal. Então, nada de etnografia sem antropologia;para evitar o fechamento numa comunidade étnica ou numa equipe científica, ambas muito estreitas, herméticas e, finalmente, mudas. Reciprocamente, não há antropologia sem etnografia, pois a descoberta do outro que funda o saber dos antropólogos só pode ser uma aventura pessoal, marcante e sempre renovada. Ela não pode ser delegada aos aplicadores de questionários, não pode resultar de questões previamente pensadas pelo pesquisador e postas nos questionários "para verificação". Representa a experiência social sobre a qual o etnólogo se apoia para construir um saber original. Prático, esse saber pode se dizer um saber-viver. O etnólogo é um pesquisador insatisfeito com suas próprias palavras, cujas nuances intermináveis parecem desdizer o propósito central, um pensador que contesta as próprias definiçõess e se encontra assim aparentemente sem anteparo (e sempre "cientista maluco tanto distraído quanto infatigável). "Aonde ele quer chegar?", "Quais são seus objetivos?" perguntarão o estudante, o contribuinte, o leitor culto ou militante dos direitos do homem. Diante disso, o etnólogo tem alguns argumentos para se defender dos desafios consideráveis do conhecimento etnográfico (que ele é o único, ou quase, a perceber no momento onde pretende intervir num debate geral!) e que o tornam relutante a toda "redução" de seu saber. E se nesse gosto pelos destinos minúsculos residisse toda a sabedoria do etnólogo? De seus primeiros argumentos, ele retira um ensinamento: propõe a cada um - a cada indivíduo ou cada povo - tentar um retorno sobre si por meio do espelho que o outro representa. E acrescenta: "Este retorno sobre si mesmo no espelho do outro a quem me refiro, o tornará mais sereno e o aproximará deste outro, que se parece com você." (p. 10, AGUIER, 2015)
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EXPERIÊNCIAS Os três breves relatos a seguir são tidos para a autora como marcantes no processo que desencadeou todo o projeto em questão, tratados nessa monografia. Experiências de contato com possibilidades de construção de mundo a partir de um viés mais participativo, não-violento. O questionamento do status quo e a busca por paradigmas alternativos no modo de viver.
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Foto da autora
Reunião em Praça Pública dos Indignados_Madri, Espanha (2011) Reunião dos Indignados em praça pública em Madri, Espanha. Essa reunião se deu meio à crise que a Espanha estava sofrendo em 2011, e através de redes socias pipocaram manifestações pela Europa reinvindicando mudanças políticas. Esse movimento teve como evento propulsor o 15-M, 15 de maio de 2011, que teve reflexos em todo o mundo.
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Fotos pela autora
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Ocupa Sampa_São Paulo, Brasil (2011) Em resposta aos movimentos do 15-M, em São Paulo, Brasil, alguns meses depois, em outubro, coletivos e cidadãos se articulam via redes sociais e montam acampamento embaixo do Viaduto do Chá, ao lado da Prefeitura Municipal de São Paulo. Regido pelas decisões em consenso, apartidarismo e não-violência, o grupo se instala ali a ponto de montar um acampamento equipado com uma conzinha improvisada e espaço de aulas abertas, oficinas livres, e espaços de desconstrução e construção de ideias. Diante de uma realidade bastante hostil, o grupo depois de uns meses de existência se desintegra, entretanto deixando experiências singulares de busca de construção coletiva e autogestão num país com tantas dificuldades a enfrentar.
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Fotos pela autora
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La Tabacalera de Lavapíes_Madri, Espanha (2011) La Tabacalera de Lavapíes é um centro social autogerido localizado na antiga fábrica de tabacos em Lavapíes em Madri, Espanha. É um espaço de caráter coletivo, público, e de busca de transformação social. O espaço da antiga fábrica de tabacos, além de patrimônio histórico, é considerado Bem de Interesse Cultural. Depois de desocupado por mais de 10 anos (desde 2000), concursos e propostas para o espaço foram levantadas, mas por questão de custos elevados os projetos não foram levados adiante. Entretanto, por interesse da comunidade e coletivos articulados, a associação cultural SCCPP (Sabotaje Contra el Capital Pasándoselo Pipa) se encarrega de realizar um projeto artístico-cultural, em 9.200m² dos 30.000m² que compõem toda a edificação. Com o desenrolar do processo, é solicitado um convênio de concessão para este projeto de características autônomas e concedido. Hoje o espaço opera de forma autogerida e promove diversos eventos e atividades no local. Espaços de apresentações, de ensaio musical, marcenaria, espaço para skate, café, lanchonete, biblioteca, tenda grátis (brécho grátis), etc.
Centro Social Autogestionado. Disponível em: < http://latabacalera.net/ >. Acesso em 04/02/2016.
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segundo capítulo
_”Definição” do termo ocupação; _Ouvidor e seu entorno (a caverna vertical que abriga o universo do Ouvidor 63); _“XVI: A Torre” _Introdução da discussão sobre o Ouvidor; _Trecho de ”Massa e Poder” de Elias Canetti; _Trecho da matéria sobre o Ouvidor 63 para a Revista Independente P’Átua - por um estudante de arquitetura com vivências na ocupação; _“Uma arquitetura onde o desejo pode morar...” - Entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer - A Torre e o Labirinto; _”Requalificação de Cortiço” - produção do Laboratório de Projeto Integrado da USP (1999);
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Fotomontagem por Lucas Lerchs com foto de Igor Duarte (Coletivo Rua 7)
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OCUPAÇÃO (latim occupatio, -onis) substantivo feminino 1. Ato/Acto ou efeito de ocupar ou de se ocupar. 2. Posse. 3. Tempo durante o qual território se encontra conquistado ou invadido. 4. Profissão, emprego, trabalho. 5. Negócio; serviço. Palavras relacionadas: ocupado, ocupacional, emprego, desocupado, exército, desarrumar, afazer.
“ocupação”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/ ocupacao>. Acesso em 01/02/2016.
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OUVIDOR 63 “Esses 13 andares, brotando do coração de São Paulo como um tumor que sangra arte, não são andares comuns. São estrofes de uma poética tragédia urbana. Versos que carregam consigo muito mais do que aço e concreto. O que determina o peso do Ouvidor são as almas que nele vagam. Cacos de vidas e mortes que pertencem a esse edifício. Oferendas para uma entidade sobrenatural disfarçada de construção, um vampiro que se alimenta de sonhos e defeca verdades nuas e cruas. Um sanatório para artistas perdidos em suas utopias. Casa do efêmero. Templo da entropia. Suas portas estão abertas às multidões, mas apenas quem foi convocado pelo destino pode empunhar a chave. 13 andares edificados sobre os limites da condição humana. Nenhum artista, nenhum ser humano, seja lá de onde veio, sai de lá no mesmo estado em que entrou. As coisas que aprendi em 9 meses de Ouvidor só podem ser aprendidas nele. Lições, memórias e cacos que recolhi do chão e carrego sempre comigo. O Ouvidor é um professor rigoroso e uma mãe ausente. Uma favela de artistas idealistas que esfregam medo e esperança na cara do cidadão comum. Essa entidade só vai descansar quando nossas lágrimas caírem como chuva sobre uma sociedade que ainda não descobriu o que é cultura.” (ERTO, 2016) *de 06/14 à 02/15 ocupou o Ouvidor 63...
Fotocolagem do Ouvidor 63 Foto por Igor Duarte Colagem pela autora
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Imagem da carta “XVI: A Torre” do baralho de Tarot Crystal. Ilustração por Elizabetta Trevisan. Disponível em: <http://tarotator. com/wp-content/ uploads/>. Acesso em 10/12/2015.
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OUVIDOR 63 Dez dias depois do início da ocupação da Rua do Ouvidor nº 63, no primeiro evento organizado pelos artistas ocupantes, Samir, um dos primeiros novos ocupantes, abriu um baralho de tarot para a ocupação e a carta tirada foi: ∞ XVI: A Torre ∞ Conhecida também como A Casa de Deus, a carta mostra em sua imagem A Torre, uma pessoa caindo e um raio vindo do céu que destroí o topo do edifício. Sugere uma base forte que mantém a construção - relacionado à questão de valores, porém o raio divino do conhecimento dilacera e destroí o ego e o orgulho que representa o topo. Representa ideais de empreendimentos utópicos, onde a realização destes vai além do controle pessoal - e está no domínio do caos, esse que leva o indivíduo a cair pelas expectativas. Representa a destruição e a transformação, de onde apenas o que é sólido e legítimo permanece, partindo daí a possibilidade de reconstrução com grande potencial à transmutação.
RIEMMA, Constantino K. XVI. A Torre ou A Casa de Deus. Dispoível em: <http://www.clubedotaro.com.br/site/ m32_16_torre.asp>. Acesso em 01/02/2016.
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INTRODUÇÃO O tema do presente estudo é referente a ocupações. Pela enorme quantidade de sifgnificados e interpretações que o termo pode evocar, busco citar um objeto real como recorte de nosso estudo e análise. A ocupação da Rua do Ouvidor, número 63. se configura como uma ocupação em um edifício estatal de 14 andares abandonado. Ocupado por diferentes perfis, em sua maioria jovens artistas, constroem ali, dia-dia, o seu processo de morar coletivamente e autogerir o espaço desde 1º de maio de 2014. Localizado na região central da cidade de São Paulo, apresenta um entorno com diversas infraestruturas de transporte, serviços e lazer. A dois quarteirões da Prefeitura Municipal de São Paulo e da praça (cívica) do Vale do Anhagabaú, vizinha de quarteirão da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, e praticamente adjacente à Faculdade de Direito da Usp, se localiza o edifício em análise. Fora todos outros equipamentos e edifícios institucionais localizados próximos a Ocupação, em frente ao edifício está a passarela que liga a Rua do Ouvidor ao Terminal Bandeira, ponto de saída e chegada de ônibus que transitam pela metrópole. No quarteirão ao lado está uma das saídas do mêtro Anhangabaú (visto que a entrada principal se localiza à outra "margem" da Av. 23 de Maio; um abismo para os pedestres). O objeto em questão está localizado em uma das áreas mais bem estruturadas, em alguns aspectos, da cidade. Observamos que ocupações na região central são uma realidade para muitos. Perante a
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ociosidade de certos edifícos por diversas questões legais, judiciais, etc, os espaços acabam sendo ocupados afim de suprir o déficit habitacional. Situação gerada pela especulação da região central e seus arredores, que gera cada vez mais aglomerações nas periferias, enquanto espaços centrais são subutilizados numa área com rica infraestrutura de serviços, transporte, lazer, etc. Diante disso, grupos e pessoas articulam-se e mobilizam-se para ocupar e reinvindicar estes espaços. A partir da “conquista” desses territórios (pela invasão ilegal), as pessoas passam a se apropriar dos espaços e organizar suas vidas. Essa organização se faz de modo diferente de um condomínio “normal”, em que inquilinos e proprietários participam de reuniões esporádicas para resoluções de detalhes, enquanto existe uma equipe no dia a dia responsável pela manutenção da edificação. Nessas ocupações a forma de gerir os espaços se faz de forma distinta, e isso vale para cada ocupação, pois entre as ocupações existentes, diversas modalidades de gestão do espaço são observadas, seja com estruturas mais verticais ou mais horizontais. Aprofundando um pouco mais em nosso objeto, constatamos que em um outro momento, quando o Edifício era ocupado e caracterizado como um cortiço (de 1997 a 2004) organizado pelo FLM (Frente de Luta por Moradia) a estrutura de organização do espaço tinha traços de uma gestão muito mais vertical do que atualmente. A presente ocupação (me refiro a que acontece desde de 1º de Maio de 2014) busca a formação de gestão mais aberta, horizontal e participativa, possibilitando assim uma tentativa peculiar de
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autogestão. Diante da dinâmica e inconstância extremamente altas, se percebe que a rotatividade de pessoas no espaço é grande. Com isso, o senso de apropriação real do espaço às vezes se fragiliza, tendo como consequência a falta de cuidado e responsabilidade por parte de alguns ocupantes para com o edíficio. Após certa aproximação com a comunidade e o local definido como objeto de estudo, iniciaramse as especulações relativas à possibilidade de intervenção projetual no local. Primeiramente a revitalização do espaço existente seria um dos pontos-chave da proposta de projeto, uma vez que o prédio carece de manutenção e novas instalações. A estrutura do prédio por ser de concreto armado, o que lhe dá longo tempo de vida, entretanto a falta de manutenção, vazementos das instalações hidraúlicas e alterações na estrutura acabam sendo prejudiciais a o que era uma vantagem no início. As instalações hidraúlicas atualmente sofrem pelo mau uso e sobrecarga do sistema, acarretando assim muitas vezes vazamentos que geram infiltrações e complicações para o prédio. As instalações elétricas foram ao longo dos anos feitas e refeitas sem cálculos precisos para a demanda do prédio, por vezes os disjuntores mal dimensionados não dão conta da sobrecarga do uso desse sistema. A falta de condições de segurança (ausência de guardacorpos e extintores de incêndio, má iluminação nas escadas, etc..) causa um certo grau de perigo aos transeuntes. A apropriação dos espaços, que se dá de forma quase aleatória (existe a cada fase do Ouvidor 63, uma forma em que os ocupantes se apropriam dos espaços), não necessariamente junta grupos por 38
afinidade (por vezes sim), outras vezes a divisão de andares por perfis muito díspares acarreta conflitos. Desde o início da minha experiência na ocupação o número de crianças que vivem no edifício, que na primeira visita era apenas uma criança, subiu para cerca de 8 crianças. Isso demonstra que os perfis dos moradores vêm se alterando com o tempo, onde inicialmente eram muito mais jovens artistas do que pessoas com laços de parentecos como mães e filhos e/ou casais. Alguns dos moradores tem hábitos de fazer a xepa; pegar alimentos descartados pelo Mercadão para produção das refeições em alguns andares. O hábito de reciclar objetos descartados pelos lixos da região também faz parte da realidade do Ouvidor, em que sofás, colchões, movéis em geral, pallets, e outros itens acabam sendo levados para a Ocupação e incorporados no mobiliário dos espaços. Em meio a essa série de situações que enfrentam os ocupantes do Ouvidor 63, oficinas, ateliês, workshops, apresentações e atividades das mais diversas modalidades acontecem ali. Esses espaços acabam se tornando espaços de educação informal, onde o conhecimento sobre diversos assuntos (seja manutenção do edifício, seja de práticas circenses, ou mesmo de preparação de alimentos) acaba sendo trocado diariamente entre os ocupantes e as visitas constantes de curiosos que passam pelo prédio. Dentro do assunto educação vale mencionar sobre os espaços de construção coletiva do Ouvidor 63. Durante o período de agosto de 2016 até março de 2016, acompanhei nas segundasfeiras as reuniões/assembléias que acontecem no 39
porão ("Porão das Artes"). Essas assembléias tratam de pautas trazidas, tanto por moradores como por agentes externos (agentes de saúde, artistas que querem realizar parcerias, estudantes buscando fazer trabalhos sobre a ocupação, jornalistas, etc...) e discutem questões gerais da organização e funcionamento do edifício no geral. Esse é um espaço deliberativo no qual pessoas vêm para tratar de questões e problemas, e encontrar maneiras de solucioná-los, seja a questão de manutenção dos sistemas e instalções do edifício, seja dos conflitos internos, seja relativo a questões de realização e promoção de eventos de arte e cultura. A busca pela autogestão é um caminho para a sobrevivência da ocupação, entretanto, a construção de base para a proposição de um modelo como esse é um processo educacional complexo.
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Foto por Marco Hovananian “A fronteira impede um crescimento desordenado, mas também dificulta e adia a desintegração. O que sacrifica assim em termos de possibilidade de crescimento, a massa ganha em durabilidade. Ela se encontra protegida de influências exteriores que lhe poderiam ser hostis e perigosas. Aquilo, porém, com que ela conta muito especialmente é a repetição. Graças à perspectiva de voltar a reunir-se, a massa sempre se ilude quanto a sua dissolução. O edifício espera por ela, existe por sua causa, e, enquanto ele existir, as pessoas voltarão a reunir-se de modo semelhante. Mesmo na maré baixa, o espaço lhes pertence, e, vazio, ele lembra a época da cheia.” (p. 16, CANETTI, 1995)
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Ocupa São Paulo - 01 maio. Disponível em: < https://www. youtube.com/watch?v=tN4ylMO577Q>. Acesso em: 24/04/2016. “(...) No emblemático 1º de maio de 2014, cerca de 100 artistas, oriundos de todos os lugares, ocuparam, de forma muito excêntrica, o edifício abandonado de número 63, da Rua do Ouvidor, no centro histórico de São Paulo. A proposta é transformar a local em um núcleo de arte, cultura, moradia e resistência artística. O urbanismo participativo e a manifestação da arte livre são algumas das características mais fortes do coletivo, que dinamiza e fustiga um modo de vida mais democrático e acessível. A ocupação, além de oferecer espaço de produção autônoma, representa um protesto contra os fundamentos de propriedade no ambiente urbano, contra a comercialização da arte, muitas vezes privada de ser realizada e/ou acessada. Logo, vai contra um sistema que prioriza o sistema econômico. Tudo começou quando alguns artistas vindos do sul, que residiam e trabalhavam na capital paulista, perceberam a dificuldade de ter espaço de produção e residência. Aos poucos, inúmeros artistas independentes e coletivos estavam reunidos em único grande grupo, sedento em realizar o sonho de criar um efervescente centro cultural referência em “multiarte” e cultura. Cerca de 40 pessoas chegaram de Porto Alegre para se encontrar com o restante do grupo, já preparado para se mobilizar em São Paulo. Antes de forçarem a entrada pela imponente porta de ferro com ajuda das pernas de um
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manequim, ocorreu um cortejo pelas ruas do centro, à tarde. O edifício foi meticulosamente estudado, através de uma pesquisa de situação do Centro Cultural Ouvidor 63. Em menos de 15 minutos, percorremos a Praça da Sé, Vale do Anhangabaú e Teatro Municipal. Seus vizinhos são a Defensoria Publica do Estado e a faculdade de direito da USP. A porta da ocupação fica em frente a um dos acessos do Terminal Bandeira. O prédio foi concebido na década de 40 e adquirido pela Fazenda do Estado no inicio da década de 50, por CR$ 6.500.000,00. Desde então, o lugar teve diversas destinações: foi Secretaria de Economia e Planejamento do Estado, Secretaria de Promoção Social, Secretaria da Cultura do Estado e, por fim, em 2007, foi concedido à CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano). Porém, na década de 80, o prédio foi abandonado e os proprietários nunca mais deram função para o edifício. Para acrescentar ao histórico de função do edifício, em 1997, o MMC – Movimento de Moradia do Centro ocupou o espaço. Na época, o imóvel abrigou dezenas de famílias, cerca de 650 cidadãos. O movimento recebeu apoio da Faculdade de Engenharia e de Arquitetura e Urbanismo da USP (130 pessoas): estudantes coordenados por professores, que fizeram projeto de requalificação de cortiço. Após 8 anos, em 2005 (a ocupação era a mais antiga de São Paulo), sofreu processo de reintegração e o edifício afogou-se mais uma vez no descaso dos proprietários. A Ocupação Ouvidor 63, nos primeiros meses, foi mistura de euforia e caos. Os artistas relevaram as consequências do abandono e do estado deplorável que o edifício encontrava-se em função do sentimento de fraternidade muito forte, em prol de um projeto que nos leva a refletir sobre antigas tradições, ainda enraizadas nos nossos costumes. Os artistas, em estado de júbilo, com o amor, sobressaindo-se, e muito esforço, conseguiram enxergar o chão depois de 5 dias de limpeza intensa. Em menos de 2 meses foram retiradas mais de 3 toneladas de entulho.(...)”
Por Vitor Campilongo. Trecho retirado da matéria “Ouvidor 63” da Publicação Independente P’Átua 2015.
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"Entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer - Uma arquitetura onde o desejo pode morar..." {p. 165} "...Tanto Derrida como Tschumi se interessam pelo estudo do lugar, do "ter lugar" de um acontecimento, e da dimensão temporal da experiência do espaço (caps. 9 e 13). A entrevista discute dois arquétipos cujos papéis normalmente se sobrepõem: o arquétipo da Torre de Babel, que serve em geral de metáfora para a imcompreensibilidade da linguagem, e o arquétipo do labirinto, que representa uma situação espacial ininteligível. Derrida permite que o labirinto se aproprie e se superponha a essa associação metafórica da torre, apesar das grandes diferenças entre os arquétipos. (Quanto a isso, Derrida poderia mencionar o artigo de Tschumi Questions of Space¹. que estabelece uma importante oposição entre o labirinto como modelo de um espaço sensorial baseado na experiência vivida e a pirâmide, que representa o aspecto linguístico, teórico, da arquitetura.) Para Derrida, os arquétipos da torre e do labirinto induzem a um confronto com sublime devido à impossibilidade de serem apreendidos (cap. 14). Ele deixa aberta a possibilidade da "existência de um caminho inexplorado de pensamento, parte do pensamento arquitetônico, do desejo, da invenção". Esse pensamento "somente poderia expressar-se pelo [...] sublime".
¹Bernard Tschumi, “Questions of Space”, Studio Internacional 190, n.977, set-out. 1975, pp. 136-142.”
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Foto por Marco Hovananian
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{p.168} (...) Pois bem, o próprio conceito de desconstrução parece ser uma metáfora arquitetônica. Costuma-se dizer que a atitude desconstrutiva é negativa. Algo foi construído, um sistema filosófico, uma tradição, uma cultura e lá vem um desconstrutor e destrói a construção, pedra por pedra, analisa a sua estrutura e a desfaz. Muitas vezes é isso o que acontece. Observa-se um sistema - platônico/hegeliano -, examina-se como foi construído, as suas pedras fundamentais, o ângulo de visão que lhe dá sustentação e, então, o modificamos e nos libertamos da autoridade do sistema. Creio, porém, que não é esta a essência da desconstrução. Não se trata simplesmente da técnica, à autoridade da metáfora arquitetônica e que, portanto, institui sua própria retórica arquitetônica. A desconstrução não é apenas como seu nome parece indicar - a técnica de uma construção ao avesso, pois é capaz de conceber, por si mesma, a ideia de construção. Poder-se-ia dizer que não há nada mais arquitetônico e, ao mesmo tempo, nada menos arquitetônico do que a desconstrução. O pensamento arquitetônico só pode ser desconstrutivo neste sentido: como tentativa de visualizar o que estabelece a autoridade da concatenação arquitetônica na filosofia. Dito isso, podemos voltar ao que relaciona a desconstrução com a escritura: a sua espacialidade, o pensamento concebido como um caminho, como abertura de uma trilha que inscreve os seus rastros sem saber exatamente onde eles vão levar. Assim pensando, é possível dizer que abrir um caminho é uma escritura que não pode ser atribuída nem a Deus nem ao homem nem ao animal, uma vez que ela designa, em um sentido muito amplo, o lugar a partir do qual esta 46
classificação - homem/Deus/animal - se constitui. Essa escritura é, na verdade como um labirinto, pois não tem começo nem fim. Nela, estamos sempre "em movimento". A oposição entre tempo e espaço, entre tempo do discurso e espaço do templo ou da casa não tem mais nenhum sentido. Vive-se na escritura e escrever é um modo de vida. {p. 170} (...) Daí se origina a tentativa por parte da arquitetura moderna e pós-moderna de criar um modo de vida distinto, que não mais se ajuste às antigas circunstâncias, a partir do qual o projeto não vise à dominação e controle das comunicações, da economia, do transporte etc. Uma relação completamente nova vem aflorando entre a superfície - o desenho - e o espaço - arquitetura. O problema dessa relação sempre foi muito importante. Para discutir a questão da impossibilidade de uma objetivação absoluta, passemos agora do tema do labirinto para o da Torre de Babel. Também indissociavelmente ligado à linguagem natural. Uma tribo, os semitas, cujo nome significa "nome", uma tribo, portanto que se chama "nome", pretende construir uma torre que supostamente atingirá o céu, como dizem as Escrituras, com o propósito de fazer o seu próprio nome. Essa conquista do céu, esta ocupação de um no céu², significa dar a si mesmo um nome e, com esse poder, com o poder
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Ilustração da ‘TURRIS DE BABEL’ por Athanasius Kircher. Disponível em: <https://upload. w i k i m e d i a . org/wikipedia/ commons/0/09/ Turris_ >Babel_by_ Athanasius_Kircher. jpg>. Acesso em 19/04/2016.
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do nome, da altura da metalinguagem, conseguir dominar as outras tribos, as outras línguas, isto é, colonizá-las. Mas Deus desce do céu e estraga todo o empreendimento ao pronunciar uma palavra: Babel. E essa palavra é um nome que se assemelha a um substantivo que significa confusão³. Com essa palavra, Deus condena os homens à diversidade das línguas. E, desse modo, eles devem renunciar ao seu projeto de dominação a partir de uma língua pretensamente universal. O fato de que essa intervenção na arquitetura, com uma construção que também é uma desconstrução, represente o fracasso ou a limitação imposta sobre uma linguagem universal para impedir um plano de dominação política e linguísta do mundo nos informa sobre a impossibilidade de controlar a multiplicidade das línguas, sobre a impossibilidade da existência de uma tradução universal. Significa também que a construção da arquitetura sempre permanecerá labiríntica. Não se trata de renunciar a um ponto de vista em favor do outro, que seria único e absoluto, mas de encarar a diversidade de possíveis pontos de vista. Se a torre de Babel tivesse sido concluída, não haveria arquitetura. Somente a impossibilidade de completá-la tornou possível à arquitetura, assim como à multidão de línguas, ter uma história. Essa história deve ser sempre compreendida com
² No hebraico, rosh, isto é, chefe, cabeça, início. [N.T.] ³ Balal quer dizer misturar, confundir. [N.T.]
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relação a um ser divino que é finito. Talvez uma das características do pós-modernismo seja de levar em conta esse fracasso. Se o modernismo se distingue pelo esforço para conseguir um domínio absoluto, o pós-modernismo poderia ser a realização ou a experiência de seu final, o final do projeto de dominação. O pós-modernismo poderia então desenvolver uma nova relação com o divino, que não se manifestaria mais nas formas tradicionais das divindades gregas, cristãs ou outras, mas que, mesmo assim, mostraria as condições para o pensamento arquitetônico. Talvez não exista um pensamento arquitetônico, mas, se ele existisse, só poderia se expressar na dimensão do Elevado, do Supremo, do Sublime. Vista dessa forma, a arquitetura não é uma questão de espaço, mas uma experiência do Supremo, que não seria superior, mas, de certo modo, seria mais antiga que o espaço e, como tal, é um espacialização do tempo."
Imagem ao lado: ‘Relativity’, por MC Escher. Dispoível em: < https://www.google.com/relativity-escher w>. Acesso em 20/04/2016.
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Foto pela autora da capa do livro Requalificação de Cortiço
“Este projeto tem características especiais: reuniu, de um lado, um grupo de jovens estudantes de arquitetura, engenharia, sociologia, direito, psicologia, terapia ocupacional e professores da Universidade de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica, Universidade São Franscisco e Universidade de Taubaté. De outro, um grupo de pessoas carentes, 83 famílias, ocupantes de edifício vago, de propriedade pública, situado na área central de São Paulo, rua do Ouvidor, 63. Esse edifício vago por um período de sete anos, deteriorado pelo abandono, 52
foi ocupado por moradores, no ano de 1997, que se instalaram precariamente em condições insalubres e até mesmo perigosas. A maioria dos moradores é filiada ao Movimento de Moradias do Centro (MMC), embora mais de 3/4 deles não tenha participado da invasão do imóvel. A integração e a participação foram condicionantes permanentes no decorrer de todo o processo do laboratório: desde a fase inicial, de conhecimento da realidade, tanto do prédio como da população moradora. As várias etapas do processo foram apresentadas, discutidas e confrontadas com a população, de forma que todas as propostas, nas diferentes fases do projeto, resultaram de um consenso. Essa metodologia, que pode parecer demorada, visou não só à troca de conhecimentos entre os vários integrantes do projeto, como a contribuir para habilitar a população à autogestão. Como projeto-piloto, poderá ser reutilizado em outras situações semelhantes. Desse encontro, que simbolicamente teve início durante a Semana da Pátria, resultou uma situação rara, em que os estudantes tiveram a possibilidade de realizar um exercício de cidadania, mostrando como o saber gerado na universidade pode ser estendido à comunidade, em uma prestação de serviços que pretende melhorar as condições sociais e habitacionais da população.” Maria Ruth Amaral de Sampaio Professora Doutora FAU/USP
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O direito de morar no Centro por Ermínia Maricato "(...) Atualmente, o interesse do capital imobiliário por áreas urbanas centrais decadentes constitui uma tendência mundial. Como se sabe, mercado e moradia social não guardam muita afinidade. Em uma sociedade em que a desigualdade social é radical como a brasileira, o direito à cidade é uma utopia. O fato de um terreno contar com investimentos de infraestrutura urbana e interessar ao mercado imobiliário já são motivos para excluir a maior parte da população de seu acesso. As periferias urbanas guardam alguma relação com as senzalas, que vigoraram até pouco tempo final do século XIX - na sociedade brasileira. As reformas urbanas desenvolvidas no começo do século em várias cidades, em especial no Rio de Janeiro, promoveram, ao lado dos investimentos em melhoramentos, a expulsão da população pobre moradora dos cortiços para os morros e as periferias.
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Por esses motivos, garantir a moradia social no atual estágio de renovação do centro de São Paulo exige uma proposta ofensiva: tecnicamente viável e competente, acompanhada por mobilizações sociais que reivindiquem o "direito à cidade". Tratase de vencer a resistência da elite paulistana que não reconhece o direito à cidadania à todos. As ocupações de edifícios em áreas centrais são um indicador importante da disposição de setores sociais em lutar pela moradia no centro. Elas constituem um alerta a toda a sociedade sobre o drama da habitação. Elas revelam o descontentamento com o destino aparentemente inexorável do exílio na periferia desurbanizada e das favelas. A proximidade da oferta de empregos, serviços de saúde e educação, menores gastos e menor tempo dispendido nos transportes, são algumas das vantagens de morar no centro (...).”
SANTOS et al, André Luiz Teixeira. Laboratório de projeto integrado e participativo para requalificação de cortiço, São Paulo: FAUUSO, 2002
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segundo capítulo primeiro quadrante
_Definição do termo território; _Breve discussão do termo território a partir da leitura “Um estudo sobre o conceito de território na análise geográfica” de Matheus Pepe Crespo; _Construção de cartografia do território em estudo; _Relato analítico do território do Ouvidor 63, a infraestrutura da edificação e suas dinâmicas; _”Os monte de pedras” - “Massa e Poder” de Elias Canetti;
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Ilustração da autora
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TERRITÓRIO território | s. m. ter·ri·tó·ri·o substantivo masculino 1. Área dependente de uma nação, província ou localidade. 2. Termo. 3. Jurisdição.
“território”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http:// www.priberam.pt/dlpo/territ%C3%B3rio [consultado em 31-05-2016].
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TERRITÓRIO Os seguinte paragráfos tem relação com a leitura da publicação do trabalho de Matheus Pepe Crespo(2010), “Um estudo sobre o conceito de território na análise geográfica” e concluiu com reflexões pessoais da autora. △ Do latim, territorium; pedaço de terra apropriado. Segundo HAESBAERT (2009) o conceito carrega um caráter político, e sua etimologia pode dar margem a interpretações dúbias, onde por um lado a conotação refere à apropriação da terra, e por outro, a territor, que remete a aterrorizar/aquele que aterroriza. Em várias áreas de conhecimento humano é possível perceber a complexa trama de significados que o conceito pode expressar. Em cada área, a abordagem se distingue da outra, mostrando a complexidade que um conceito pode carregar. Território e espaço são conceitos que confundem-se muitas vezes. A distinção entre estes dois conceitos depende da interpretação do pesquisador e como este formulará sua narrativa. Há estudiosos que compreendem território como um conceito, enquanto espaço seria o objeto de estudo em si. “Do ponto de vista epistemológico (teoria do conhecimento), transita da vaguidade da categoria espaço ao preciso conceito de território. (MORAES, 2000, p. 17) “É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, 60
concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço [...] O território, nessa perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder.” (RAFFESTIN, 1980, p. 143) “O território usado constitui-se como um todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares e conflitantes. Daí o vigor do conceito, convidando a pensar processualmente as relações estabelecidas entre o lugar, a formação socioespacial e o mundo. O território usado, visto como uma totalidade, é um campo privilegiado para análise na medida em que, de um lado, nos revela a estrutura global da sociedade e, de outro lado, a própria complexidade do seu uso.” (SANTOS apud HAESBAERT, 2009, p. 59). Nota-se que território é um conceito de significações que chegam a ser até um pouco subjetivas a partir da analise e interpretação pessoal do pesquisador. Porém algumas coisas parecem ser comuns a todas essas visões apresentadas: a intervenção do ser humano sobre um espaço, seja ela uma construção material ou mesmo uma construção abstrata sobre o espaço (fronteiras, por exemplo). Logo a compreensão do território sempre será relativa, a partir da subjetividade de quem constrói esse território, as analises e focos serão particulares ao individuo, ou grupo que realiza a observação.
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Partindo dessa compreensão relativa do conceito de território, foi construída uma cartografia a partir da observação do território em estudo. Para tal, delimitou-se um raio imaginário de estudo na região central da cidade de São Paulo, região na qual será desenvolvido o projeto proposto pela atividade do Trabalho Final de Graduação. Essa construção cartográfica leva em consideração algumas análises e interpretações subjetivas da autora. Utiliza a linguagem gráfica com intuito de passar essa observação pessoal e simultaneamente dar abertura a outras possíveis análises e interpretações.
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Mapas elaborados pela autora
Arte pela autora
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LEGENDA 1. MAPA GEGRAN Mapa desenvolvido pelo Grupo Executivo da Grande São Paulo. 2. MAPA HISTÓRICO Mapa construído com base na cartografia desenvolvida pelo Sara Brasil da década de 30. Em azul é representado o triangulo histórico. Disponível em: <http://www.arquiamigos.org. br/expo/2011ahsp/1930-1954-for macao-dametropole/1930-mapa-sara-brasil.html>. Acesso em 30/08/2015. 3. MAPA DAS VEIAS E ARTÉRIAS Esse mapa demonstra as rotas de transito principais da região com suas avenidas. 4. MAPA DOS GRANDES ACESSOS (Mêtro) Esse mapa pontua as estações de mêtro e o fluxo genérico (levando em consideração os possivéis caminhos) de pessoas que se distribuem pela cidade. 5. MAPA DAS ILHAS Mapa que demonstra as ilhas (quarteirões); situação principalmente causada pelo sistema de vias. Disponível em: <https://snazzymaps.com/>. Acesso em 30/08/2015.
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6. MAPA DO ABISMO E SUAS COSTURAS Mapa desenvolvido considerando o abismo (preto) que a avenida 23 de Maio causa no tecido do território em estudo. As costuras representam as possibilidades de passagem de pedestres de um lado ao outro (cinza). 7. MAPA DE EDIFÍCIOS NOTÁVEIS Mapa que constrói uma rede articulando edifícios históricos, tombados e de importância fundamental para a organização social do sistema vigente. 8. MAPA DAS OCUPAÇÕES Mapa desenvolvido baseado nas mapografias desenvolvidas pelo Grupo de Estudos Mapografias Urbanas, considerando a alta dinâmica e complexidade do tema foram aqui registradas todos os pontos q houveram ocupação levantados pelo GeMAP entre1997 e 2012. Em mira da bala está a ocupação de estudo localizada na rua do Ouvidor, nº 63 (referência ao filme “La Voyage Dans la Lun” de Georges Méliès). Disponível em: <https://mapografiasurbanas. wordpress.com/>. Acesso em 30/09/2015.
Mapas produzidos pela autora a partir de bases dos mapas do GEGRAN, GoogleMaps e Sara Brasil.
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Fotos por Nathalia Comte
A infraestrutura é um assunto essencial em nossa análise. De acordo com a infraestrutura disponível é possivel despender menos ou mais energia de forma menos ou mais eficiente em função da execução de uma determinada atividade/ação. Dentro da realidade informal, a construção de espaços-suporte para vivências de determinadas ordens, depende muito do que existe no espaço. Fazendo um recorte menos amplo e abstrato do assunto, na realidade dos grupos/ movimentos que ocupam espaços (seja por reinvindicações pela paz planetária, pela moradia ou por espaços de cultura e lazer) existe em sua maioria algum grupo organizador (que emerge de acordos com diversas variantes) que bola estrategicamente uma ocupação, seja ela em baixo do Viaduto do Chá, ao lado da Prefeitura, ou em um prédio abandonado no centro da cidade de São Paulo, por exemplo. A partir
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do espaço existente e dos recursos disponíveis (doações, materiais reciclados, materiais descartados, ou mesmo materiais comprados) são constante e diariamente construídos esses espaços. De acordo com a finalidade do grupo, espaços são construídos e modificados afim de realizar distintos objetivos/atividades. Em nosso objeto de analise e estudo, verificamos a existência de um prédio localizado no centro de São Paulo, na rua do Ouvidor nº 63, 14º andares, construído na década de 40, e comprado pelo Governo do Estado de São Paulo em 1950, posteriormente perdendo sua função em 1990. Ocupado pelo MMC (Movimento de Moradias do Centro) entre os anos de 1997 e 2001 com finalidade habitacional para famílias como cortiço. Em 1º de maio de 2014 foi realizada novamente uma ocupação com finalidades mistas (moradia e artística), e é a partir dessa nova fase do Edifício (entidade), que chamaremos de Ouvidor 63 que debruçamos nossa analise sobre. Desde o primeiro contato, até as discussões mais atuais entre o grupo que ocupam o Ouvidor 63, o tema da infraestrutura sempre foi um assunto de grande relevância. A partir de relatos de diversos ocupantes (alguns que estavam desde o 1º de maio de 2014) e a partir de observações de campo, o prédio passou por diversas mudanças fisícas desde o começo dessa última fase de ocupação em estudo. A partir de relatos documentados no livro Requalificação de Cortiço, é possível ter em vista um pouco do estado do prédio anterior ao dia 1º de maio de 2014. Foi relatado que o prédio era um cortiço com mais de 200 moradores (83 famílias), e coexistiam no espaço onde atualmente vivem em torno de 100 pessoas (a partir do levantamento feito pelos próprios moradores em 6 de outubro de 2015). Desde lá,
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a discussão do espaço e suas instalações se vê presente, levantando sempre a maneira informal como os ocupantes encontram resoluções para as questões infraestruturais. As instalações hidraúlicas e elétricas são sempre trazidas à discussão, e muitos dos ocupantes surgem com propostas de soluções "underground" (termo utilizado por um dos moradores engajados desde o início no movimento). Essas soluções informais são realizadas com constância pelos próprios moradores, que por vezes possuem algum tipo de formação técnica na área, experiência prévia no assunto ou por prestadores de serviço externos (como no caso do desentupimento do esgoto em 24 de outubro de 2015). Os famosos "gatos" são a solução para resolver paleativamente os problemas dos ocupantes, entretanto o mau uso dessas instalações e mesmo a sobrecarga desses sistemas que não estão preparados para o número de usúarios, faz com que a problemática seja constante. O tema da estrutura do prédio também é discutida por consequência de vazamentos, infiltrações e ação do tempo. Parte da estrutura começa a apresentar patologias decorrentes da falta de manutenção desse sistema como um todo. Aberturas aletórias nas paredes, por vezes atingem partes estruturais ou das instalações causando Fotos por Nathalia Comte
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abalos na estrutura ou mesmo vazamentos nas instalações hidraúlicas (como no caso em que equivocadamente foi aberto uma tubulação de esgoto e como consequência durante um tempo aqueles dejetos infectaram um dos andares, fora os casos dos quais não se teve ciência durante todo o processo que podem ter acarretado várias infiltrações). A falta de conhecimento técnico no assunto faz com que a especulação seja alta no tema e que as consequências das soluções especuladas muitas vezes se tornem mais um problema. Em consequência desses vazamentos e sobrecarga da rede hidraúlica do prédio, a SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) chegou a visitar o Ouvidor 63 informando que o uso de água do prédio estava excedendo os limites aceitavéis. Em função disso a qualquer momento funcionários poderiam ir com o objetivo de cortar a água do prédio. Uma vez trazido à assembléia um fato desses, os residentes dialogam e chegam a acordos de ações. As propostas surgem dos membros da comunidade visando resolver ou vezes postergar problemas que não tem soluções viavéis (ex: o pagamento das contas e multas não é uma realidade possível para os atuais ocupantes). Uma vez encontradas as possíveis soluções e consensuadas (ou votadas em assembléia) o grupo encontra diversas maneiras para a arrecadação dos recursos necessários para a manutenção. Foram observadas 3 maneiras principais de arrecadação de itens/ equipamentos/recursos para os processos: 1) arrecadação interna entre os moradores 2) arrecadação a partir de eventos para o público externo 3) doações. 1) A arrecadação interna entre os moradores dispende um alto nível de energia entre o grupo, pois existe no coletivo diversas realidades financeiras entre os membros, fora o fato
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de que a cobrança às vezes se torna difícil por 50% dos moradores na maioria das vezes não estarem presentes nesses momentos deliberativos; essa modalidade durante os meses acompanhados foi realizada duas vezes com muita dificuldade. 2) A arrecadação a partir de eventos para o público externo ("Varietés", "Cabarés", "Cortejos") demonstrou ser uma forma menos desgastante e mais produtiva para a comunidade em geral. Um dos eventos realizados pela comunidade (presenciados pela autora) foi um evento realizado pelos residentes artistas que utilizaram a rua /início da passarela (rua que é fechada para carros e bifurca na passarela que vai para o Terminal Bandeira) como palco de apresentações livres. O evento aconteceu numa sexta-feira (29/10/2015), começou no período da manhã e se estendeu até a noite; houve apresentações circenses (malabarismo com fogo, bambolê, clavas, etc), apresentações musicais, e exposição dos trabalhos realizados pelos artistas (quadros, obras...), brécho e venda de artesanatos. No 3º andar houve a preparação dos alimentos destinados aos artistas que estavam realizando o evento, e o espírito de coletividade era alto. Outro exemplo de arrecadação a partir do público externo é a realização de eventos no edifício (muitas vezes no porão) com apresentações e estimados algum valor com intuito de destinar a contribuição Fotos por Nathalia Comte
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às necessidades de manutenção, fora os gastos do evento em si. 3) As doações são eventuais e acontecem a partir de eventos ou mesmos doações espontâneas de recursos, livros ou mesmo equipamentos eletrônicos, etc. A GARAGEM é um dos espaços mais insalubres do edíficio. A circulação de vento é mínima e a incidência de sol escassa. Esses fatores contribuem para que o ambiente se torne úmido, escuro e que a proliferação de pragas aconteça. Incluindo a caixa de gordura e esgoto que não tem nem adequada nem constante manutenção, o que torna a garagem um ambiente de risco para os moradores. Por vezes este espaço é utilizado como depósito, uma vez que diversos mutirões de limpeza (como relatado pelos ocupantes) foram realizados afim de tirar todo lixo e entrulho que inicialmente estavam ali. Este espaço durante o semestre que decorreu, foi tema de amplos debates. Houve em determinados momentos pessoas habitando aquele espaço. O grupo consciente da insalubridade do local definiu e delimitou que o espaço da garagem não poderia ser habitado (como moradia) por representar risco não somente ao indivíduo, mas à comunidade como um todo, independentemente se houvesse o intuito do interessado (a habitar o espaço) de limpar, construir e fazer a manutenção do espaço. O coletivo durante o processo vai tomando cada vez mais autonomia para intervir em atividades que julga de interesse comum para a comunidade. O PORÃO é o espaço onde as assembléias acontecem. Foi nomeado como Porão das Artes afim de se tornar um espaço para que a energia artística fluisse. É o espaço suporte para as mais diversas atividades do coletivo (debates, festas, oficinas, cinema, lanchonete, brechó, etc). Durante a vivência foi constatado que o espaço é uma
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constante conquista entre a comunidade. As condições de abertura do espaço para o público constante ou para determinadas atividades, depende da fase e da dinâmica organizativa do momento. Os andares consecutivos são dinâmicos, houveram momentos em que os espaços eram utilizados para galerias, laboratórios, etc, entretanto, constantemente os espaços que teriam algum caráter semipúblico foram sendo ocupados com finalidade de moradia. A COBERTURA, por sua vez, é um espaço comum e de livre acesso a todos ocupantes, um mirante para o Terminal Bandeira.
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“Os montes de pedra Contudo, há também montes inteiramente diversos, não comestíveis. Os montes de pedra são erigidos porque é difícil desfazê-los. São erigidos para que durem muito tempo, uma espécie de eternidade. Eles não devem sofrer diminuição alguma, mas permanecer como são. Não se transferem para um estômago qualquer, e nem sempre se mora neles. Em sua forma mais antiga, cada pedra representa o homem que contribuiu para juntá-la ao amontoado. Posteriormente, o tamanho e o peso das partes aumenta, de modo que somente a reunião de muitos é capaz de dar conta de cada uma delas. O que quer que tais montes representem, eles contêm em si o esforço concentrado de árduos e incontáveis caminhos percorridos. É amiúde enigmático de forma se logrou a construi-los. Quanto menos se compreende a sua presença, quanto mais distante o local de origem da pedra e mais longos os caminhos, tanto maior o número de homens que se há de imaginar como seus construtores, e tanto mais vigorosa a impressão que causarão nos pósteros. Tais montes de pedra representam o esforço rítmico de muitas pessoas, um esforço do qual nada mais permanece senão esse monumento indestrutível.” (p.88, CANETTI, 1995)
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segundo capítulo segundo quadrante
_”Definição” do termo artes; _”1º aniversário do Ouvidor - 1º de maio de 2015 - Exposição de artes no Porão das Artes; _Relato e observações das relações com as artes, ocupantes e o edifício; _Memórias fotográficas (mescla de fotos por Ana C. Viotti, Ana Buim, Marco Hovnanian, Thiago Han, Vitor Campilongo e pela autora);
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ARTES substantivo feminino ar·te (latim ars, artis, maneira de ser ou agir, conduta, habilidade, ciência, talento, ofício) substantivo feminino 1. Preceitos para fazer ou dizer como é devido. 2. Livro de tais preceitos. 3. [Figurado] Modo; artifício. 4. Habilidade. 5. Ofício. 6. Manha, astúcia. 7. [Técnica] Aparelho de pesca (ex.: arte de xávega). 8. [Brasil, Informal] Travessura, traquinice. artes substantivo feminino plural 9. As artes liberais; aquelas em que o espírito toma maior parte que as mãos. “artes”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Dispoível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/arte>. Acesso em 01/02/2016.
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Fotos pela autora
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Quando me refiro às artes, nesse primeiro momento, digo a respeito das atividades artísticas realizadas em grupo, organizadas com finalidade de realizar eventos de arrecadação, eventos festivos, ou eventos externos que demandam determinado nível de organização para aconteceram (apresentação no evento COCIDADES; organizado junto ao grupo do Jornal Independente P’átua, apresentação na passarela, apresentação de bandas do Ouvidor num evento da Prefeitura no Vale do Anhangabaú, FAI Festival de Arte Independente realizado no prédio inteiro, etc..). Nesse segundo momento me atenho a descrever um pouco das atividades realizadas individualmente durante o cotidiano da ocupação. Alguns dos espaços servem, por exemplo, de área de treino para muitos dos malabaristas e circenses que residem ou frequentam o local. Distintas modalidades de malabares são treinadados principalmente no espaço do porão (que possui um pé direito duplo e uma área sem muitas divisórias ou paredes). Existe também indivíduos que utilizam de seus espaços ‘privados’ (onde residem), para fazer atêlies ou espaços que possam desenvolver suas respectivas habilidades artísticas. Dentro dessa esfera busco citar algumas: confecção de tambores, escultura, pintura em tela, bambolê, costura de bonecas, confeçção de figurino e sapatos, estúdio musical, desenho de caricaturas, estúdio de tatuagem, teatro, yoga, pintura, desenho, etc. Quando houve a ocupação do Edifício da Rua do Ouvidor, nº 63, os envolvidos no ato da ocupação inicialmente; eram em grande maioria artistas. Articulados pelo Estúdio Lâmina (Estúdio localizado na Av. São João que funciona como residência artística) e vários coletivos independentes da cidade, o ato da ocupação contou com vários 84
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indivíduos também vindos do sul em um ônibus já objetivando esse fim. No início grupo visava fazer do espaço uma residência artística, entretanto, o grande número de coletivos e indivíduos envolvidos e que se envolveram durante o processo fez com que esse desejo nem sempre fosse colocado como a questão principal. Uma discussão pertinente levantada pelos ocupantes diz respeito à função social do prédio. Diante de uma realidade de especulação imobiliária em toda região central, a moradia é tema de discussão de vários movimentos de reinvindicação por habitação, principalmente na região central, território provido de infraestrutura de transporte, saneamento, água, luz, serviços, comércio, com grande oferta de empregos. Essa discussão pela reinvindicação por espaços de moradia com dinâmicas similares às que já acontecem em outras ocupações da região central caracterizadas pela moradia familiar, foi em muitos momentos pautada em assembléias. Pode se constatar que o perfil dos ocupantes durante esse processo dinâmico constante, foi se reconfigurando. Inicialmente um grupo de jovens artistas em sua maioria, foi dando espaço a um tipo de perfil muito mais heterogêneo (em agosto de 2015 sabia-se da existência de 3 crianças morando na ocupação, em dezembro de 2015 esse número já havia aumentado para 7 segundo as contagens internas feitas pelos residentes e compartilhadas nos momentos de assembléia). Artistas circenses vindos de toda a América Latina, malabaristas, artesãos, tatuadores e comerciantes da região central também começaram a integrar-se no grupo. Diante da compreensão que a dinâmica e rotatividade do prédio é grande, é difícil falar de atividades que apresentem uma constância ou regularidade definidas. O que se pode observar é que 86
Foto por Raju Raychowdhury
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existem eventos e momentos em que a propensão para as atividades de cunho artístico são maiores de acordo com os indíviduos e seus desejos. O Ouvidor e suas atividades acontecem de forma orgânica e espontânea. Quando existe o anseio por parte de indivíduos com senso de proatividade alto, a tendência a essas atividades acontecerem aumenta. O que se constata a partir da observação durante o processo é que em distintas fases do prédio, a forma de se organizar e gerir se caracterizaram de formas distintas, e como consequência dessas, as atividades artísticas acontecem de uma forma ou outra. A produção tanto individual quanto coletiva são constantes na vivência do Ouvidor 63. O espaço é ocupado por diversas instalações e intervenções artísticas. Pode se observar também que há pixos em diversos locais. A discussão do que é arte não se faz notar, diante duma realidade na qual não existe uma banca julgadora para avaliar o que é ou não arte ali dentro da produção do Ouvidor 63. A legitimidade não me cabe discutir, mas é uma manifestação e expressão dos indivíduos que ali circulam. Intervenções que vezes nem mesmo são de autoria de algum morador, mas de artistas externos. Por vezes há exposições que contam tanto com o trabalho interno quanto externos de artistas dos mais diversos círculos sociais.
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Foto por Raju Raychowdhury
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segundo capítulo terceiro quadrante
_‘Definição’ do termo violência; _Sutil passagem sobre o tema; _Trecho de “Massa e Poder” de Elias Canetti;
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Foto pela autora
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VIOLÊNCIA substantivo feminino 1. Estado daquilo que é violento. 2. Acto/Ato violento. 3. Acto/Ato de violentar. 4. Veemência. 5. Irascibilidade. 6. Abuso da força. 7. Tirania; opressão. 8. [Jurídico, Jurisprudência] Constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obrigá-la a fazer um acto/ato qualquer; coacção/ coação.
“violência”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Dispoível em: <http://www. priberam.pt/dlpo/violencia>. Acesso em 01/02/2016.
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A violência é mais um dos temas principais discutidos em assembléia. É decorrente de uma série de fatores. A coexistência de várias pessoas em um ambiente sem regras, a princípio, faz com que essa coexistência aconteça nem sempre da forma mais harmoniosa. A questão da segurança é relatada com dois vieses; da questão externa e da interna. Quando me refiro à questão externa, digo pessoas que não fazem parte da comunidade (mesmo que já tenham feito um dia, e por exemplo, que por algum motivo tenha sido expulso), ou mesmo ações de reintegração que o prédio possa vir a sofrer por ordens governamentais. Quanto à questão da violência interna, após diversos episódios de violência entre os residentes pelos mais diversos motivos, chegou-se a realização de um estatuto/regimento em que qualquer tipo de violência verbal, fisíca, moral ou psicológica seria compreendida como algo inaceitável na comunidade, passível de julgamento em assembléia, tendo como consequência a expulsão do prédio [...mas a memória é curta]. A superlotação de alguns espaços, a insalubridade de outros, instalações elétricas e hidraúlicas precárias, insegurança (quanto à entrada e saída de pessoas sem o funcionamento da portaria - que é de fase também) contribui com os fatores que dificultam as interrelações. A busca da de participação dos residentes nos espaços deliberativos são tentativas de fazer a comunidade estar mais presente para a compreensão das necessidades de manutenção do espaço e construção da identidade do Ouvidor 63. Quando citada a identidade do Ouvidor 63, se refere à questão da construção do senso comum da comunidade. Esse senso comum diante de uma comunidade tão heterogenea é tão desigual como os próprios indivíduos em si. Com histórias e backgrounds tão distintos, é compreensível que a noção dos 96
moradores quanto a temas como violência, respeito, bom-senso, etc sejam tão dispares. Por isso, o espaço de desconstrução e construção de conceitos, que é a assembléia, se torna muito importante para a comunidade. Com o aumento da população infantil do edíficio (ao longo dos meses de acompanhamento das assembléias), percebe-se cada vez mais a reinvindicação, não só das mães, mas por outros membros, da importância de manter os espaços sadios. Seja no aspecto da limpeza do edíficio, seja no respeito quanto à produção de fumaça em locais fechados públicos (como é o caso do porão em que muitas crianças frequentam o espaço durante os momentos deliberativos). Essa abordagem é feita neste capítulo compreendendo que o não cuidado dos espaços pode ser uma forma de violência contra os usúarios que zelam e respeitam o espaço. Outro tema de discussão da comunidade gira em torno do uso de substâncias que alteram o “estado de espírito” dos indivíduos (álcool, etc.). Pelos relatos levados em assembléia, pode-se perceber que a influência do uso de algumas substâncias, às vezes, colabora com situações de desentendimento entre as pessoas que frequentam o espaço. Não se pode fazer disso uma regra geral, porém, a comunidade cada vez mais busca modos de evitar certas situações que qualifiquem qualquer tipo de violência. Quanto à questão de segurança externa, é fato a existência de um medo/insegurança por parte dos moradores quanto a riscos externos. Esses riscos podem ser inúmeros, dadas as circunstâncias um prédio ocupado de forma ilegal e sem critério de segurança na entrada do mesmo. Alguns moradores têm receio de invasão de exmoradores que por vezes possam ter sido expulsos por desrespeito à 97
comunidade de alguma forma, da entrada de pessoas desconhecidas (caso muito comum, em que um indivíduo se aloca em alguma parte do prédio e permanece ali vivendo sem nenhum tipo de concordância dos moradores), etc. Alguns dos habitantes carregam histórias relacionadas a algum tipo de violência, seja a falta de oportunidade, a violência doméstica, a marginalização, etc. Essa série de desventuras anteriores de diversos dos residentes faz com que a relação com a resolução de problemas seja conduzida de formas distintas. Enquanto uns tomam atitudes violentas na busca de resolução desses conflitos, outros buscam o diálogo como forma alternativa à violência. Um dos importantes papéis dos espaços das assembléias/reuniões é justamente a desconstrução dessas diversas formas de violência naturalizadas por algumas culturas. A construção de um novo paradigma é no minímo ousado de se dizer, considerando que cada um possui um senso particular, mas se percebe que entre alguns é uma busca constante alinhar o pensamento.
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Foto por Marco Hovananian
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Foto pela autora
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“O ataque exterior à massa só faz fortalecê-la. Os corpos apartados são tanto mais vigorosamente para junto uns dos outros. Já o ataque proveniente do interior, pelo contrário, é realmente perigoso. Uma greve que tenha obtido algumas conquistas espedaça-se a olhos vistos. O ataque proveniente do interior apela a desejos individuais. A massa o sente como um suborno, como “imoral”, visto ir ele de encontro a sua clara e límpida disposição básica. Cada um dos membros de uma tal massa abriga em si um pequeno traidor, que deseja comer, beber, amar e ter o seu sossego. Na medida em que ele realiza tais atos secundariamente, deles não fazendo grande alarde, deixam-no estar. Tão logo, porém, ele lhes dá voz, começam a odiálo e temê-lo. Sabe-se, então, que ele deu ouvidos às tentações do inimigo.” (p.22 , CANETTI, 1995)
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segundo capítulo quarto quadrante
_”Definição” do termo ânima; _Reuniões gerais; realizadas nas segundas no Porão das Artes, no Ouvidor 63; _Reflexão sobre a essência do Ouvidor 63 _Depoimentos de ocupantes; _Caos;
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ÂNIMA (do latim anima; alma) substantivo feminino a.ni.ma sf 1 alma, espírito. 2 essência, núcleo. 3 fig energia, sopro vital, vida. 4 ser vivo, indivíduo. 5 habitante. 6 causador, agente, pessoa que causa algo. buon’anima defunto, falecido. “ânima”, in Dicionário Michaelis da Língua Italiana. Dispoível em: < http://michaelis.uol. com.br/escolar/italiano/definicao/italiano-portugues/anima >. Acesso em 01/02/2016.
Arte por Luis Só | Foto por Thiago Han
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Foto pela autora
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O perfil dos moradores é demasiado heterogêneo. Alguma minoria vem de uma condição social privilegiada e busca ideologicamente uma experiência, para outros, o ato de ocupar é uma necessidade. A partir dos relatos dos ocupantes, é possível notar que o histórico e a maneira que cada um dos indivíduos chegou ao Ouvidor são distintos. O perfil do jovem artista que era predominante no início da ocupação foi se configurando com o decorrer do processo. O ingresso de diversas pessoas sem nenhum tipo de articulação com algum coletivo ou grupo passou a ser maior, cada um com sua mais diversa história. Entretanto, se constata que esses cidadãos, muitas vezes marginalizados pela sociedade,têm,mesmo enfrentando adversidades e violências que a cidade pode cometer à um cidadão, uma energia intensa de criação e vida fluindo. Se nota por todos os lados do edifício pinturas, pixos, grafismos, artes; uma necessidade constante da expressão e manifestação desses seres. Ao circular pelo edifício se observa todo tipo de atividade acontecendo, sejam demonstrações de afeto entre membros, seja a produção de conteúdo musical (da banda ensaiando no estúdio do 3º andar, de um grupo reunido na escada cantando, um grupo produzindo e gravando um rap, etc), seja a produção de forma coletiva de alimento, seja treino de malabares, etc. Os espaços suportam a constante transmissão de conhecimento; seja de aprender malabares (uma das profissões de uma parte da população), ora de culinária (e confecção de alimentos - uma vez que o gasto com a compra de alimentos preparados é um custo relevante para os moradores), ora de arte e afins (confecção de instrumentos, de canto, de expressão, de yoga).
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Essa enorme diversidade de identidades que compõem o Ouvidor 63, por vezes acaba reunindo grupos de afinidades. Esses grupos são uma forma que o próprio coletivo encontrou com o tempo de se organizar dentro dos espaços. A própria tipologia que os andares têm, já a princípio, configura como muito particulares os espaços. A própria tipologia dos andares (algumas com resquícios da época em que o prédio era utilzado como cortiço por famílias) é bastante diversa, somando as peculiaridades dos grupos e indivíduos, causa configurações espaciais muito distintas em cada um dos espaços de moradia. Modificações espaciais são constantes (reflexo da constante dinâmica do local). Novas configurações espacias, novas paredes de alvenaria ou de materiais alternativos, inclusão de novos movéis (doados ou reciclados dos lixos do centro da metrópole) o espaço torna-se cada dia diferente do anterior. Essa constante alteração reflete bastante da transitoriedade dos próprios residentes na ocupação, alguns constantes, outros andarilhos, viajantes, mochileiros; cada um se relacionando de uma forma distinta com o Ouvidor. Essa enorme variedade de relações que os indivíduos tem com o próprio espaço é um tema também delicado, enquanto uns realmente utilizam o espaço como moradia, outros utilizam o espaço como acomodação temporária, dentre outras modalidades de uso. Essa relação acarreta diferentes sensos de pertencimento e responsabilidade perante o espaço, não apenas pela relação de tempo que os indivíduos se instalam no espaço, mas pela própria compreensão de cuidado e respeito pelo espaço coletivo/público.
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DEPOIMENTOS
“Tenho 25 anos, conheci o ouvidor fazendo ações diretas com movimentos de moradia, me interessei muito por ser uma ocupa diferente de qualquer outra, um ocupação artística cheia de amor e arte e pessoas maravilhosas, aí decidi fazer parte desse time de feras e aprender a produzir artisticamente através de música ,artes visuais e atividades circenses. Hoje em dia me sustento de arte e vivo de amor.” Ricardo (ocupando desde 15 de junho de 2014 até hoje]
“Tem cem dedos apontados pra mim, não tem ninguem varrendo o chão. Dá licensa que eu tenho que varrer. Um coletivo é formado de indivíduos e cada um só precisa fazer sua parte sendo si mesmos” Augusto Amaral [ocupante de junho à dezembro de 2014]
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“Pra mim foi muito enriquecedor. Eu sempre conversava com o Augusto das questões do sistema, do jeito que as coisas são, de buscar alternativas em relação a isso e falavamos muito sobre como começar alguma coisa. E ai não, ainda teria que comprar uma terra, a gente queria dar uma fugida do capitalismo. Ai surgiu: “Pô, a gente podia ver um esquema de ocupação”, então começamos a frequentar e a visitar algumas galeras, alguns movimentos de ocupação e tal. Na época eu não tava muito envolvido, estava fazendo meu trabalho final. Ai voltei para Brasília. Tava estudando sustentabilidade, tava numa comunidade, ai depois fiquei um tempo na casa dos meus pais, e na verdade não tenho uma relação muito boa com meu pai. Chegou num ponto que eu não tava mais querendo ficar lá. Falei com o Augusto e ele tava na ocupação, e eu fui pra lá. Foi muito enriquecedor, eu aprendi muito, coisas que não se aprende em escola alguma. Não só arte, como graffitti, pintura e tal. Também questões sociais, sobre relações sociais, sobre necessidades humanas. Eu fiquei mais humanizado, concerteza. E além de tudo, aprender a viver sem grana, que eu tava sem dinheiro nenhum também. Bastante enriquecedor, porém bastante desafiador. O que eu poderia falar das experiências lá; do quanto o ser humano é capaz, cara, a gente via cada pessoa, cada indivíduo com tanta criatividade, tanta capacidade, e ao mesmo tempo, tanta gente com tanta necessidade, tanta necessidade de suporte. Então percebese que, é possível a gente viver em uma outra sociedade. Não é só possível como eu acho que é necessário. Foi um grande desafio, foi um desafio que me fez uma pessoa mais resiliente.” Yuri Lopes (oocupante de setembro de 2014 a janeiro de 2015)
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“Tenho 49 ansos, sou natural de Codó (Maranhão), mas resido em São Paulo há 16 anos. Atua em movimento de moradia faz uns 10 anos. Atualmente sobrevivo trabalhando com tecnologia, mas já trabalhei com artes gráficas, serigrafia, como educador na antiga febem, hoje fundação casa, também já fiz teatro. Apesar de já ter atuado com arte e correlatas, a minha proposta na Ouvidor foi desenvolver projetos de permacultura, terapias corporais (que alguns encaram como arte), veganismo, tecnologias alternativas e dar uma força na manutenção já que eu me viro bem com elétrica, hidráulica e correlatas... Somei-me a esse projeto da Ouvidor por acreditar, na época, que seria possível junto com vários coletivos e pessoas construir uma estrutura independente, onde se fomentasse e desenvolvesse arte sem depender da burocracia e dos privilégios ilícitos da máquina estatal... Fora da análise crítica, sob uma ótica subjetiva resumi com esse poema: “Nós somos loucos, desregrados, bichos soltos nas arestas atemporais dos relógios. Recusamos as “caixinhas” preparadas para nós. Ávidos em aprender e ensinar, mas refutantes às rotas “cnossóicas” das universidades que levam inevitavelmente à insaciedade do sistema minotáurico. A única medida que admitimos e a medida do AMOR!” (Jorge Prado, mês dos ventos gerais no peito)”
Paulo Jorge Matos Prado (ocupante desde o primeiro dia da ocupa; 1º de maio de 2014)
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Foto por Raju Raychowdhury
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CAOS substantivo masculino de dois números 1. Confusão dos elementos antes da criação do universo. 2. [Figurado] Confusão. 3. Desordem. 4. Perturbação. *“caos”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Dispoível em: <http://www. priberam.pt/dlpo/caos>. Acesso em 20/04/2016.
Caos, deus primordial da mitologia grega. A mais velha consciência divina. Força geradora de vida por meio da cisão, da separação. É com essa entidade que o Ouvidor se relaciona. Permeia entropia entre as ânimas que perambulam por uma torre. Um labirinto.
Imagem ao lado: Magnum Chaos, por Lorenzo Lotto. Arte na Basílica di Santa Maria Maggiore em Bergamo, Itália. Dispoível em: < https://www.google.com/Lotto_ Capoferri_Magnum_Chaos >. Acesso em 20/04/2016.
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terceiro capítulo
_”Definição” do termo utopia; _Divagações sobre a Utopia (baseadas em aula do TFG_Fundamentação e Critíca Sobre a Utopia); _O mito da “Jarra(caixa) de Pandora - a esperança _Reflexões sobre a esperança e o desespero, “Felicidade, desesperadamente” por André Comte-Sponville; _Memorial descritivo do projeto; _O projeto; _Desenhos técnicos; _Referências arquitetônicas de projeto;
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Grafitti por Laser em Londes. DispoĂvel em: < http://sargasso.nl/wp-content/uploads/2015/01/mermaidLaser-3.14-your-utopia-my-dystopia-London-graffiti-1420628531.jpg >. Acesso em 24/04/2016.
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UTOPIA (latim tardio utopia, palavra forjada por Thomas More para nomear uma ilha ideal em A Utopia, do grego ou-, não + grego tópos, ou, lugar) substantivo feminino 1. Ideia ou descrição de um país ou de uma sociedade imaginários em que tudo está organizado de uma forma superior e perfeita. 2. Sistema ou plano que parece irrealizável. = FANTASIA, QUIMERA, SONHO “utopia”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Dispoível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/utopia>. Acesso em 20/04/2016.
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Ao projetar, visualisamos o espaço ideal. O processo de criação está atrelado à subjetividade do criador. Subjetividade esta que inclui a visão de mundo, o sentido, a busca, os desejos, as intenções. Toda utopia diz respeito a um indivíduo ou grupo e seu desejo por alcançar o inalcançável. A utopia é o horizonte, é o fim do arco íris; intrínsicos à sua existência é a sua condição de ser inatingível. Reflexo do termo é a insatisfação constante e busca eterna do ser humano por melhorar sua condição existencial. Desde muito tempo já existe na literatura e nas artes expressões desse conceito, seja com Thomas Moore (séc. XIX) e sua utopia da Nova Insula, ilha paradisíaca à parte da realidade, seja com a história Bíblica da Torre de Babel em que uma construção humana busca atingir o céu. Com a evolução das cidades, novas utopias de cidades futuristas com máquinas e altos níveis de complexidade vão sendo elaboradas nas mentes e pro jos parecem
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voltar-se à relação mais próxima com a natureza, depois da percepção das mazelas seguidas da euforia da era industrial. Não contente, o ser humano se mostra capaz de construrir cidades em meio a desertos, como Masdar city, e demonstra sua capacidade de conquistar e ir cada vez mais longe. Incansável, o ser humano, continua com suas projeções e inquietações. O homem alcança a lua. A utopia de chegar a lua deixa de ser a partir do momento que Neil Amstrong pisa nela, partindo então do desejo de ir além, alcançar o que se parece inalcansável, conquistar outros astros, planetas, galáxias. O ser humano se encontra cada vez mais inquieto numa busca que parece nunca ter fim, pela tal da felicidade, essa que talvez seja feita apenas de momentos. Como saber o que é a felicidade sem a dor? Essa utopia da paz e harmonia entre todos os seres humanos e sociedades, parece ser o horizonte mais distante, a utopia mais surreal. Porém, a partir do momento que isso deixar de ser uma utopia, como tantas outras que deixaram de ser, o que virá depois? Se não há mais o que buscar, qual será então o intuito da vida? O puro gozo? Como apreciar algo se o oposto é desconhecido, se não há o constraste para enxergar? Talvez esse desejo pela utopia nos faça continuar prosseguindo no caminho da existência. Existência condicionada (por hora) num loop de dificuldades e conflitos do ego humano. Mas, talvez faça parte da existência aceitar que existem coisas que podemos alterar e coisas que estão sobre o domínio do caos, esse que tem sua lógica operacional particular e que por limitação humana desconhecemos seus mecanismos e não compreendemos. A arquitetura dentro desse processo de busca, é fundamental na expressão da subjetividade do ser humano, quanto à questão do que seria o tal do mundo ideal. A partir da analise dessas várias expressões é possível compreender um pouco da evolução do sentido que conduz a busca humana. Esta que por sua vez muitas vezes é ingênua, de não perceber que não é apenas de Jardins do Éden, Ilhas paradisíacas, Torres, Cidades complexas ou Estações intergaláticas que são feitos o espaço da utopia. Ela envolve as relações humanas, peça chave do encontro da harmonia. Sem esta sintonia humana, a Torre de Babel cai. E todo espaço perde mais uma vez o sentido. Dando lugar à incessante busca de um novo ideal, com diferentes características. Como se estas solucionassem o que na verdade, talvez seja a busca por um estado de espiríto de paz.
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“ P a n d o r a ” Ilustração por Elizabetta Trevisan. Disponível em: <www.redbubble. co/people/betta/ works>. Acesso em 10/04/2016.
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A JARRA DE PANDORA “Nenhum mito nos é mais familiar que o de Pandora, mas talvez nenhum outro tenha sido tão mal compreendido. Pandora é a primeira mulher, a maldade em forma de beleza, ou ‘belo-mal’; ela abre a caixa proibida, de onde saem todos os males que a humanidade haveria de herdar; somente a Esperança permaneceu. A caixa de Pandora se tornou uma imagem proverbial, e o mais extraordinário é que Pandora jamais possuiu caixa alguma.”
Por Jane Ellen Harrison, retirado do livro: “A Caixa de Pandora - As transformações de um simbolo mítico” de Dora e Erwin Panofsky
“Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura, que há, e o desespero, a maior felicidade. “ “Mahabharata” por Krishna Dvapayana Vyasa. Épico clássico indiano sobre espiritualidade.
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“Felicidade, desesperadamente” por André Comte Sponville; “(p. 11) Temos uma idéia de felicidade. É sempre a idéia de Pascal: todo homem quer ser feliz, inclusive o que vai se enforcar. Se ele se enforca, é para escapar da infelicidade; e escapar da infelicidade ainda é se aproximar, pelo menos tanto quanto possível, de uma certa felicidade, nem que ela seja negativa ou o próprio nada... (p. 12) “o desejo é a própria essência do homem”, como escrevia Spinoza (...) ser feliz é - pelo menos numa primeira aproximação - ter o que desejamos. O que é o desejo? (...) O que é o amor? Para resumir, Sócrates dá a seguinte resposta: o amor é desejo, e o desejo é falta. E Platão reforça: “O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor.”(...) na medida em que desejamos o que nos falta, é impossível sermos felizes. Não que o desejo nunca seja satisfeito, a vida não é tão difícil assim. Mas é que, assim que um desejo é satisfeito, já não há falta, logo já não há desejo. Assim que um desejo é satisfeito, ele se abole como desejo: “O prazer”, escreverá Sartre, “é a morte e o fracasso do desejo.”. (p. 15) ”Há duas catástrofes na existência”, dizia George Bernard Shaw: “a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são. “ Frustração ou decepção. Sofrimento ou tédio. Inanição ou inanidade. É o mundo do Eclesiastes: tudo é vaidade e correr atrás do vento. (p. 16) É o que eu chamo de as armadilhas da esperança - sendo a esperança a própria falta no tempo e na ignorância. Só esperamos o que não temos. (...) Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. (p. 17) (...) outra estratégia. (...) uma tentativa de nos libertar desse ciclo da esperança e da decepção, da angústia e do tédio, uma tentativa - já que toda esperança é sempre decepcionada - de nos libertar da própria esperança. (p. 20) De fato, o que é a esperança? É um desejo: não podemos esperar o que não desejamos. Toda esperança é um desejo; mas nem todo desejo é uma esperança. O desejo é o gênero próximo, como diria Aristóteles, do qual a esperança é uma espécie. (p. 23) Só esperamos o que somos incapazes de fazer, o que não depende de nós. Quando podemos fazer, não cabe mais esperar, trata-se de querer.(...) O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós: esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder. (p. 25) Que diferença há entre a esperança e o amor? Em ambos os casos, há desejo. Mas a esperança é um desejo que se refere ao irreal; o amor, um desejo que se refere ao real. (p. 26)Então, o que sabemos é que a felicidade é desesperante; o que tento
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pensar é que o desespero pode ser alegre: que a felicidade seja desesperada e o desespero, feliz! Isso quer dizer que o desespero, no sentido em que eu o tomo, não é o extremo da infelicidade ou o acabrunhamento depressivo do suicida. É antes o contrário: emprego a palavra num sentido literal, quase etimológico, para designar o grau zero da esperança, a pura e simples ausência de esperança. (...) A palavra desespero, em sua dureza, em sua luz escura, exprime a dificuldade do caminho. Ela supõe um trabalho, no sentido em que Freud fala de trabalho do luto, e no fundo é o mesmo trabalho. A esperança é primeira; portanto é necessário perdê-la, o que é quase sempre doloroso. Eu gosto, na palavra desespero, que se ouça um pouco essa dor, esse trabalho, essa dificuldade. Um esforço, dizia Spinoza, para nos tornar menos dependentes da esperança... (...) Seria o desespero do sábio: seria a sabedoria do desespero. Por quê? Porque o sábio (...) não tem mais nada a esperar/aguardar, nem a esperar/ter esperança. Por ser plenamente feliz, não lhe falta nada. E, porque não lhe falta nada, é plenamente feliz. Eu evocava a fórmula de Spinoza, na Ética: “Não há esperança sem temor, nem temor sem esperança.” (...) A sabedoria é a serenidade, a ausência de temor... (...) Estamos desesperados, explica Spinoza, quando passamos do temor (sempre mesclado de dúvida e de esperança) à certeza de que o que temíamos se produziu ou vai necessariamente se produzir; em outras palavras, quando já não há motivo de duvidar nem, portanto, de esperar. (...) Não é portanto uma palavra que tomo emprestada de Spinoza, mas certa idéia, mas certo caminho. Que caminho? O da desilusão, da lucidez, do conhecimento, o caminho que deve “nos tornar menos dependentes da esperança e nos libertar do temor”. Que idéia? A de béatitude: a felicidade de quem não tem mais nada a esperar. Porque está perdido? Não, porque não tem mais nada a perder, porque está salvo, salvo aqui e agora. Nesta vida. Neste mundo. Porque a verdade lhe basta e o sacia.(...) Eu queria mostrar que o desespero e a beatitude não são dois contrários, entre os quais seria preciso escolher, mas antes, aqui também, como as duas faces de uma mesma moeda. (p. 30) O amor é desejo, mas o desejo não é falta. O desejo é potência: potência de gozar o gozo em potencial! (p. 34) Não se trata de se impedir de esperar, nem de esperar o desespero. Trata-se, na ordem teórica, de crer um pouco menos e de conhecer um pouco mais; na ordem prática, política ou ética, trata-se de esperar um pouco menos e de agir um pouco mais; enfim, na ordem afetiva ou espiritual, trata-se de esperar um pouco menos e amar um pouco mais.”
Trechos de “Felicidade, desesperadamente” de André Comte.
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Maquete pela autora
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memorial descritivo de projeto
A partir da vivência e das noções explicitadas nos capítulos anteriores, para exercício tanto de projeto como de manifesto pessoal da autora, propõe-se a revitalização do edifício já existente e a ampliação deste mesmo. A ideia é recompor os espaços, de tal maneira que a cultura e modo de vida existentes sejam respeitados ao máximo, e que as atividades de cunho educativas e artísticas sejam potencializadas a partir de uma estrutura espacial que as suporte da melhor maneira possível. Entretanto, se assume que haja algum tipo de contrato social em que o respeito pelos espaços propostos como de uso comum e compartilhados, e mesmo os "privados", seja um senso comum a todos. Isso parte do pressuposto que o respeito por si e por todos faz parte desse senso. Antes de seguirmos adiante com o tema, é necessário esclarecer que a ocupação e as dinâmicas que acontecem no local acontecem justamente pela condição de ser uma ocupação e não um espaço institucionalizado, com estrutura hierárquica clara e definida. Essa condição de ilegalidade abre brechas para que as coisas aconteçam de forma muito espontânea, sem necessidade de burocracias ou complicações nesse sentido. Mas é quase que óbvio que a implantação de um projeto como o que será proposto a seguir é quase que uma elucubração de uma utopia pessoal da autora, e que dificilmente leva em consideração todas as complexidades das relações humanas. Não quer dizer ao mesmo tempo que não seja possível e não haja um modelo real desse em outras situações pelo mundo. Entretanto, a descaracterização de alguns processos possivelmente ocorreriam, assim como, talvez, um processo de gentrificação aconteceria,
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se a organização, ordem ou institucionalização fossem instaurados, mesmo que com fins de “potencializar” (aos olhos da autora) todas aquelas atividades que carecem de uma estrutura adequada para desenvolver ao máximo as habilidades e apitidões dos artistas e seres ali viventes. Diante da autocrítica desenvolvida a partir da percepção que a arquitetura pode ajudar a estruturar espaços para diversas atividades e simultaneamente desconfigurar dinâmicas preexistentes por diversas variavéis, ainda sim é proposto como manifesto pessoal um projeto que sintetize e busque a transformação das condições espaciais sem interferir na essência cultural dos individuos que ali já habitam e existem. Talvez arrogante por um lado de dizer, seria necessário que de alguma forma fossem incorporados formas de concientização e instruções para que a perpetuação daquele grupo, ou outros que virão, posssam ser mais autossuficientes, pelo menos no quesito que diz a gestão e manutenção do espaço. O que se vê possível, uma vez que se compreende que o processo de formação individual e sua conscientização é parte de uma construção da educação coletiva, que se dá através do tempo e vivências. A partir da análise do preexistente e das demandas observadas, é previsto que ambas edificações, a existente e a nova, sejam capazes de suportar tanto o existente quanto possibilitar ainda mais a vida e vivências no complexo. A ideia é que o programa conte com três categorias de usos: os espaços “privados”, os “semi-públicos” e os “públicos”. Como estratégia de projeto da ampliação/anexo do Ouvidor 63, estabeleceu-se
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que os terrenos adjacentes ao lado da empena cega (os edifícios das 2 lanchonetes, 1 estacionamento e do Educafrio) e o terreno da frente (que atualmente sedia um posto de serviços de limpeza urbana) fossem incorporados ao terreno de projeto. Um trecho da atual passarela que liga o Terminal Bandeira à Rua do Ouvidor foi deslocada para abrir espaço para a nova edificação, afastando-se também da empena cega perpendicular à rua Riachuelo. Com essa mudança, a rua do Ouvidor que antes ia até a Riachuelo, agora fará a transição da rua do Ouvidor, dando continuidade na passarela que liga ao Terminal Bandeira. Essa solução foi adotada pelo fato de que a rua atualmente não conecta nada a lugar nenhum, devido a parte dela ser fechada e utilizada às vezes apenas para estacionar as viaturas da Secretaria de Segurança do Estado e pessoas transitarem (com uma inclinação muito superior a qualquer norma de acessibilidade aceitável). Considerando essa mudança, é proposta uma alternativa ao pedestre que vem da Rua Riachuelo com intenção de chegar à rua do Ouvidor, sendo necessário acessá-la passando por dentro da praça coberta, subindo uma escadaria para alcançar o desnível, ou utilizando o equipamento de plataforma de acessibilidade instalado nessa escadaria principal. Considerando o desnível acentuado que começa embaixo na Rua Richuelo e segue subindo a rua do Ouvidor, propõe-se a reorganização das três principais cotas; uma da rua do Ouvidor que segue na passarela, outra intermediária na cota do porão que coincide com a do trecho mais alto do terreno na rua Riachuelo, e outro mais baixo na cota mais baixa da rua Riachuelo (este último sendo a cota da praça).
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A proposta é que essa praça incorpore o subsolo do atual Ouvidor 63, criando, assim, uma pista de skate (desejo de alguns ocupantes), um bicicletário (muitos ocupantes usam bicicleta como meio de transporte), e vestiários. E que esse trecho se estenda até o conjunto de circulação vertical da outra edificação do outro lado da rua, aproveitando também a cobertura da passarela para um espaço de feiras livres. Embaixo do palco fixo, proposto para apresentações que possam ser desfrutadas desde a passarela, se propõe (a uma cota mais rebaixada que a da praça) um Café Bar (Quintal do Mapping). Na praça em questão são também destacados o espaço da escadaria e inflexão do gramado, idealizados como um anfiteatro voltado para o palco movél estruturado a partir da projeção da passarela. O espaço do porão, anteriormente citado como trecho de passagem da rua Riachuelo para a rua do Ouvidor, é proposto como sendo um espaço integrante da Praça (por toda busca de fazer aquele espaço se tornar público por diversas gestões do Ouvidor), compartilhado por uma lanchonete/bar (Lê Chá), um palco e espaço livre. A ideia é que do 1º ao 5º andar haja um interligação que busque integrar as diversas atividades que acontecem nesse espaço caracterizado como semi-público. O 1º andar do edificio anexo ao Ouvidor (B) é destinado à parte administrativa do complexo, contando com salas de reunião e espaços de idealização projetual. Compartilha o espaço com a ilha de edição e conteúdo, destinada a iniciativas de jornalismo e divulgação de informações e eventos (Mídias Independentes; Coletivo P’átua) que auxiliem nas atividades constantes do complexo.
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O 2º andar conta com uma galeria aberta, que se conecta ao bloco (C), um atêlie de artes, e salas de suporte ao desenvolvimento de projetos (marcenaria, laboratório de serigrafia e cerâmica, sala de máquinas, etc). No 3º andar estão as salas de oficinas corporais e um espaço amplo de pé direito bastante alto, para que as atividades malabarísticas e circenses possam ser praticadas. No 4º andar estão os estúdios relativos a gravações de audiovisual. Conta tanto com uma sala com camarim, área técnica, sala de chroma key para gravações, sala de estúdio de gravações musicais. Uma área comum com copa também faz parte do andar para suporte a esses estúdios, e uma pequena arquibancada para visualisar as atividades do andar inferior. No 5º andar do Ouvidor se localizam os quartos e banheiros do Hostel, a rampa que dá ao outro andar no bloco (B), ligeiramente numa cota inferior, interliga a área comum do hostel (sala, cozinha comunitária, espaço de jogos e vivências) contando também com uma pequena arquibancada voltada para o centro, que comunica visualmente com os andares inferiores. Do 6º ao 10º (andares “privados”) estão localizadas as diversas tipologias de apartamentos, que vão desde quartos individuais, áreas comuns e banheiros compartilhados, a kitnets/estúdios, e duplex com possibilidade de 2 ou 4 quartos, também com áreas comuns à disposição. Essas diferentes tipologias visam atender a vasta diversidade de perfis “familiares” que o complexo pretende abrigar. O 7º andar
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conta com uma passarela que se conecta ao bloco (C) (edificação proposta ao lado oposto da rua) que possui um mirante com arquibancada que permite a visualização de projeções na empena cega do edifício adjacente (considerando atividades que já eram feitas pelos moradores de projetar filmes e documentários na empena cega do edifício). No 11º andar está a biblioteca. O 12º andar possui um pequeno restaurante (Moni Moni) e um Café (do Toninho) com generosa varanda, em que ambos possuem uma perspectiva para o Terminal Bandeira (uma área livre de altas edificações). Na cobertura, além das casas de máquinas dos elevadores e caixas d’água, existe uma arquibancada para o mirante urbano com vista para o Terminal Bandeira e o centro da cidade. O bloco (C) que se conecta ao bloco (B) (edificação nova imediatamente anexa ao preexistente) abriga as salas de aula (com diversos fins educativos). Possui no penúltimo andar um espaço livre que permite projeções (de filmes, artes, etc) na empena cega do edifício adjacente, como citado sobre o 7º andar. A volumetria proposta busca expressar a complexidade dos diversos universos particulares dos indivíduos que transitam pela atual ocupação do Ouvidor 63. A irregularidade das lajes da nova edificação busca explicitar essa sensação. A busca pela unidade se dá através da união do existente com parte do novo edifício proposto. Busca-se, através do alinhamento da altura dos novos prédios com as empenas dos edíficios do entorno, o respeito. Empenas cegas localizadas à esquerda (ver imagem de apresentação no início) são perpetuadas afim de dar continuidade às atividades de
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projeção de imagens, filmes, etc; que são projetadas desde o Ouvidor. Pés direitos distintos buscam criar espaços generosos para as diversas atividades circenses e espontanêas. Rampas criam percursos de admiração da clareira urbana promovida pelo Terminal Bandeira. A atual cobertura do Ouvidor é um mirante para os ocupantes, e abrir ao público esse espaço e propor que as coberturas do complexo sirvam essa função é mais uma forma de perpetuar o uso de mirante urbano da cidade. Diversidade tipológica dos apartamentos refletem a variedade de possibilidades de configurações ‘familiares’. As amplas varandas buscam continuar uma vivência de espaços compartilhados, como se fossem espaços de um cohousing (um modelo de habitação coletiva), assim como os diversos espaços comuns compartilhados pelos andares de moradia.
Croquis de estudo das escadarias pela autora
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O PROJETO O uso do concreto (na selva de pedras) é a constante. As pessoas são as variavéis. A estrutura independente é a tentativa para que a arrogância arquitetônica possa ser transgredida pelos usuários e os espaços possam estar em constante mutação. A impermanência é regra observada no Ouvidor. Que a liberdade e o respeito coexistam na complexidade que é a teia de relações humanas que o projeto proposto se torna cenário.
Fotomontagem do Complexo Ouvidor 63 Foto por Igor Duarte Maquete eletrônica e arte pela autora
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Rua do Ouvidor
Rua São Franscisco
Passa rela
Rua Riachuelo Av. 23 de
Maio
Terminal Bandeira
IMPLANTAÇÃO
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CORTE A-A
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ELEVAÇÃO 1
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ELEVAÇÃO 2
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ELEVAÇÃO 3
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Parkroyal on Prickering, Singapore, China WOHA
Robson Square, Vancouver, Canadรก Arthur Erickson
Copan, Sรฃo Paulo, Brasil Oscar Niemeyer
Jussieu Library, Paris, Franรงa OMA 166
referências arquitetônicas
Museu Judaico, Berlim, Alemanha Daniel Libeskind
Bazalel Academy Jerusalem, Israel SANAA
MIS, Rio de Janeiro, Brasil Diller Scofidio
Habitacíon, Paris, França Harmonic & Masson Associes
Beirut Terraces Herzog de Meuron 167
Fotos do google. Disponível em: <google. com/images>. Acesso em: 31/11/2015.
No primeiro capítulo, apresentamos o princípio do trabalho; esclarecendo o quanto tudo parte de uma visão particular de observação, apreensão e interpretação da autora (relacionando a o processo de um trabalho etnográfico). Logo abordamos com mais especificidade o tema ocupação. As experiências de campo são trazidos como memórias que explicam um pouco o que levou a autora a tomar decisão pelo tema abordado. No segundo capítulo, tentamos aproximar um pouco o leitor do microcosmos do Ouvidor 63, trazendo histórias e analogias para situar um pouco do complexo contexto. Dividimos o restante do capítulo em 4 quadrantes. Cada um desses quadrantes abordou um dos grandes temas discutidos nas assembleias (realizadas nas segundas-feiras no Porão das Artes no edifício) que a autora frequentou durante o ano de pesquisa (de agosto de 2015 a março de 2016). Território (o edifício e a infraestrutura), artes, violência e ânima(s). No terceiro e último capítulo, antes de apresentarmos o projeto de arquitetura, refletimos sobre a utopia. Trazemos o Mito da Jarra de Pandora como uma analogia à esperança (uma vez perdida na entropia do caos da experiência da autora com o Ouvidor 63), e finalizamos com a reflexão do livro imemorial da espiritualidade ndiana; Mahabharata de Vyasa: “Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura, que há, e o desespero, a maior felicidade.”. Concluímos com a bibliografia e o apêndice; este último porém não menos importante. Nele são inseridos projetos (no apêndice - cd) inspirados pela nossa musa: o Ouvidor 63.
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considerações finais
- O resultado de um workshop na Semana Viver Metrópole 2014 (da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie), com vivências dos alunos na ocupação, com reflexões e pequenas propostas de intervenção projetual no espaço. - Projeto de Conclusão de Curso do intercambista Lucas Lerchs (FAU/USP), que ocupou o edifício durante alguns meses, enquanto elaborava seu projeto final de graduação sobre o Ouvidor 63. - A elaboração de uma maquete mapeada, realizada pelo coletivo Rua 7, inspirada no Ouvidor 63. E exposta na Semana Viver Metrópole 2015 (da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie). - Registros da conversa com os ocupantes do Ouvidor 63 durante a Semana Viver Metrópole FAUMACK 2015; No Brasil há várias pesquisas sobre movimentos por moradia e ocupações com esse caráter. São constantemente realizados e explorados pela questão da habitação social, especulação imobiliária, centro e periferia, etc. Nesse contexto meu trabalho buscou um viés mais particular da experiência da singular Ocupação da Rua do Ouvidor 63, não na época em que foi um cortiço, mas sim desde a última ocupação que acontece desde 1º de maio de 2014, que contém características que se relacionam com as ocupas europeias e ao movimento “squat”/”ocupa”. O trabalho busca trazer um relato mais parecido com o ofício de um etnógrafo. Um trabalho com caráter muito mais subjetivo. Reflexo da interpretação do Ouvidor em si, algo extremamente peculiar a cada indivíduo que o experiência.
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bibliografia AGIER, Michel. Encontros Etnográficos: interação, contexto, comparação. Alagoas, Editora Unesp, 2015. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia - Histórias de deuses e heróis. São Paulo, Martin Claret, 2006. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2001. ERTO, Rafael. Ouvidor 63. www.erto.com.br HAESBAERT, Rogério; ARAUJO, F.G.B. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2009. HOVNANIAN, MARCO. Representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento. São Paulo, 2013. HUXLEY, Aldous. As portas da percepção - Céu e Inferno. São Paulo, Editora Globo, 2002(Primeira edição 1957). NESBITT, Kate. Um Nova Agenda Para Arquitetura - Antologia Teórica (1965-1995). São Paulo, COSACNAIFY, 2008. PANOFSKY, Dora and Erwin. A Caixa de Pandora - As transformações de um símbolo mítico. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. RAFFESTIN, Claude. Por Uma Geografia de Poder. São Paulo, Ática, 1980. SANTOS et al, André Luis Teixeira dos. Requalificação de Cortiço. O projeto da rua do Ouvidor, 63 no centro de São Paulo. São Paulo, FAUUSP, 2002. VYASA, Krishna-Dwaipayana. The Mahabharata. Texto épico indiano sobre espiritualidade escrito en sânscrito, escrito entre 1100 e 800 a.c. 171
apĂŞndice
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Maquete Mapeada - Ouvidor 63
por Coletivo Rua 7 apresentada na Semana Viver MetrĂłpole 2015 - FAUMACK
Fotos selecionadas e organizadas por Leonardo GusmĂŁo
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Conversa com ocupantes do Ouvidor 63
Atividade realizada durante a Semana Viver Metrรณpole 2015 - FAUMACK
Fotos selecionadas e organizadas pela autora
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