Revista Literatas

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Maputo | Ano II | Nº 57 | Abril de 2013

Nova direcção da AEMO toma posse

Carmo Neto reeleito secretário -geral da União dos Escritores Angolanos

Não sei quem é Alexandre Chaúque Entrevista a Alexandre Chaúque | Moçambique


Outros temas

Poesia | Pág. 14 - 15

Contos | Pág. 16-17 & 22

A Morte da Tchanaze

Primavera esperada

Por Carlos Paradona

Por Manuel Neto dos Santos

Vista a camisa, Macunaíma Poesia de Bonde Por Ribemar Mitoso

Ensaio | Pág. 19 - 20

Personagem | Pág. 04

O autor pode, um dia não regressar, a obra nunca partirá

Angola: Ana Paula Tavares

Por Japone Arijuane

Outras Artes | Pág. 18-19

Livros | Pág. 07 & 08-09 Filinto Elísio: um poeta de ideias desassossegadas Por Eduardo Quive

Um movimento estético e sustentável: corpos em performatividade na comunidade quilombola de Monte Alegre

Por Sara Passabon Amorim


Editorial Dito Não Esquecido Acho que não existe receita [que forme como homem e intelectual um crítico literário]… No entanto, aquele que tiver seguido estudos literários, para quem a literatura for uma fonte de prazer, terá, à partida, condições para ser… Mas, em contrapartida, deverá resistir à má tentação de empregar conceitos e termos que, na maior parte das vezes, o leitor não entenderá e que terão o efeito contrário? Afastar o público da obra literária. Para mim, um bom crítico escreve de uma maneira clara e precisa. Michel Laban, in Pessoas Com Quem Falar (UEA, 2011)

(…) devemos pensar “com” os livros e não “contra” os livros. Por isso, e dado que me proponho encetar algumas reflexões sobre livros e a literatura, escolherei falar dos livros que me agradam e me abrem novas janelas para reflexão e não vejo a utilidade de me usar de um livro para visar o autor. Daí que se não gostar de um livro não falarei dele – coisa diferente é ser um livro falhado em relação ao propósito a que o livro se propunha, e há casos de livros falhados mais instigantes, que convidam à reflexão. (…) Como se lamenta Ungulani Ba Ka Khosa numa entrevista à revista Literatas, um dos dramas do actual panorama literário moçambicano é inexistência de uma crítica séria, competente e regular, pelo que é ainda mais grave que os arremedos de crítica se limitem à maledicência.

P

ara quem tem as palavras como sombra de companhia as vê de diferentes formas. Na verdade elas já fazem parte do instinto do ventre literário e não só, o que eram antes linhas sem sentido ante olhar analfabeto, um olhar sem noção desse crime sadio de saber ler. Esse indivíduo serlhe-ia perpetuado a morte por ignorância porque a natureza já é uma lauda repleta de objectos que criam palavras, que nos dias de hoje pousam como substâncias para construção de Homens; são apenas matérias-primas que, processadas pela indústria mental, reinventam outros ângulos na esfera da sapiência para além do que somos; essas produções vulgarmente conhecidas como palavras invocam o gosto raro de ler que é também um exercício crucial para os analfabetos do Quintana, que outrora disse: os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

É difícil esquecer o que nosso colega refutou numa das tertúlias entre amigos - são tristes os livros que exercem a tarefa de ser objectos de ornamentação nas prateleiras do mundo - de facto, esta visão foi necessariamente concebida com cautela. O facto de se ver o livro ou a casa da palavra como um museu que carece de viventes e se enche espontaneamente de apreciadores

E em falar dos desconhecidos que se conhecem, Alexandre Chaúque é um escritor mítico. Acredita nos deuses e muitas vezes tem agido como tal. Agora decidiu ir morar em Inhambane no aconchego desses defuntos que acredita que tinham agido em seu favor para vencer o Prémio Literário 10 de Novembro em 2011 com o seu recente livro “Ndekeni” pelo qual viajamos na entrevista desta edição.

Antonio Cabrita, in Savana, 15.03.13

Ficha técnica

Boa Leitura

Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: r.literatas@gmail.com | Tel. (+258): 82 27 17 645 | 82 35 63 201 | 84 07 46 603 Movimento Literário Kuphaluxa | www.kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa

DIRECTOR GERAL Nelson Lineu | nelsonlineu@gmail.com Cel: +258 82 27 61 184 EDITOR Eduardo Quive | eduardoquive@gmail.com Cel: +258 82 27 17 645| +258 84 57 78 117 CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele | amosse1987@yahoo.com.br Cel: +258 82 57 03 750 | +258 84 07 46 603 CONSELHO EDITORIAL Eduardo Quive | Amosse Mucavele | Jorge Muianga| Japone Arijuane | Mauro Brito. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa

COLABORADORES Moçambique: Carlos dos Santos Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soriano Samuel Costa Portugal: Victor Eustáquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio

COLABORAM NESTA EDIÇÃO: Angola Décio Bettencourt Mateus,

PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Eduardo Quive PERIODICIDADE Quinzenal

Brasil Sid Summers, Willian Delarte, Ribemar Mitoso e Sara Passabon Amorim. Moçambique Bonde, Nyama e David Bamo . Portugal Manuel Neto dos Santos.

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A revista Literatas é uma publicação electrónica idealizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divulgação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.


Personagem | Angola

Ana Paula Tavares

R

ecentemente galardoada com um dos mais importantes prémios da Itália, Premio Letterario Internazionale Ceppo Pistoia, Ana Paula Tavares é poetisa e historiadora nascida em Lubango, na província de Huila, em 1952. Obteve o grau de Mestre em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa. Reside actualmente em Portugal, onde exerce a docência universitária. As suas obras poéticas Ritos de passagem (1985), O Lago da Luna (1999), Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos (2001), e Ex-votos (2003), já foram traduzidas em francês, alemão, italiano e espanhol.

Rapariga

A mãe e a irmã

Cresce comigo o boi com que me vão trocar Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa

A mãe não trouxe a irmã pela mão

mas onde não cresce o capim.

viajou toda a noite sobre os seus próprios passos

A mãe sentou-se

toda a noite, esta noite, muitas noites

fez um fogo novo com os paus antigos

Filha de Tembo organizo o milho

A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado

preparou uma nova boneca de casamento.

a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas

Nem era trabalho dela

Trago nas pernas as pulseira pesadas Dos dias que passaram...

[vermelhas A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites

Sou do clã do boi —

[todas as noites

mas a mãe não descurou o fogo enrolou também um fumo comprido para o cachimbo. As tias do lado do leão choraram duas vezes

com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste

e os homens do lado do boi

e só trazia a lua em fase pequena por companhia

afiaram as lanças.

e as vozes altas dos mabecos.

A mãe preparou as palavras devagarinho

a falta de limite...

A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção

mas o que saiu da sua boca

Da mistura do boi e da árvore a efervescência o desejo a intranqüilidade a proximidade do mar

no pano mal amarrado

não tinha sentido.

nas mãos abertas de dor

A mãe olhou as entranhas com tristeza

estava escrito:

espremeu os seios murchos

meu filho, meu filho único

ficou calada

não toma banho no rio

no meio do dia.

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência O sono profundo do deserto,

Filha de Huco Com a sua primeira esposa Uma vaca sagrada, concedeu-me o favor das suas tetas úberes

meu filho único foi sem bois para as pastagens do céu

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

que são vastas

04 | 26 de Abril de 2013


Questão de fundo

Tomada de posse da nova direção da AEMO Eduardo Quive - Moçambique

Jorge Oliveira - Presidente do Conselho Fiscal

Márcia dos Santos - Relatora do Secretariado

Sangare Okapi - Relator do Conselho Fiscal Clemente Bata - Secretário-geral Adjunto

Ungulani Ba Khosa - Secretário-geral

Suleiman Cassamo - Vice-presidente de Mesa da Assembleia Geral

L 05 | 26 de Abril de 2013


Quest達o de fundo

L 06 | 26 de Abril de 2013


Livros

Filinto Elísio: um poeta de ideias desassossegadas Em “O Inferno Do Riso” encontra-se a poesia que nos sugere um mapa, ao mesmo tempo que arranca os espaços físicos a favor de uma viagem lunar Eduardo Quive - Moçambique

V

iajando na poesia caboverdiana, falar da poesia de Filinto Elísio é, sem dúvida, um exercício complexo, não pela dificuldade que se possa ter de ler a sua poesia – que não é pouca –, mas pela elevada investida que o poeta faz nos seus sujeitos de criação sobre os cenários que retratam. É difícil compreender o acto de filosofar quando está em poesia, apesar de, como o considera Ferreira Gullar, é mais poeta aquele que compreende a poesia que o que a faz. Uma poesia que nos sugere um mapa, ao mesmo tempo que arranca os espaços físicos a favor de uma viagem lunar. Não há chão que suporte os versos desassossegados do poeta das ilhas. Ele tem demarcado o seu território, porém navega no mundo como o verdadeiro ―O Inferno do Riso‖. Há, em Filinto Elísio, aquilo que revela Aristóteles em sua ―Arte Poética‖ ao distinguir também os poetas de heróicos e satíricos. Nessa perspectiva ao ler ―O Inferno do Riso‖ (Instituto da Biblioteca Nacional, 2001), encontramos as sagas e os paradigmas que se passam a volta dos sujeitos poéticos (satíricos) que Filinto Elísio usa para versar nas quatro ―estações‖ da sua poesia, sendo elas, I. O inferno do riso; II. Dos ventos; III. Dos fogos; IV. Das águas; V. Das terras; VI. Dos ares. A divisibilidade que o autor atribui à sua poesia em tempos, lugares e estados, incorporando, igualmente, a razão, criação e dimensão, atribuem-no, eficazmente, o título daquele que sente, observa, interpreta (ou imita como defende Aristóteles), o objecto da sua poesia. Aí começa o tal dilúvio da interpretação do ―Inferno do Riso‖, uma obra onde antes do poeta, o verso liberta-se das exigências dos que se podem chamar messias que nas nossas sociedades africanas são tantos que também são, os fantasmas que atribuem às ―coisas‖ o certo ou o errado. Como se Filinto soubesse dessas lamúrias, sarcástica e filosoficamente responde: ―não existe pecado coisa nenhuma/tudo é permitido ao filho do homem/ tudo é fogo antes mesmo de ser verbo (…)/não existe inferno coisa nenhuma/tudo é abismo dos desejos/tudo é vertigem de abismos à toa.‖ (p.36) ―O Inferno do Riso‖ mostra-se não só como uma das mais enxutas (típico do filósofo) expressões poéticas contemporâneas, mas como a anuência de outros debates que se camuflam em sociedades (excessivamente) regradas ante as mudanças do presente. Se assumimos que a África de hoje não é a mesma de ontem e, com efeito, a sede de alcançar a diáspora no sentido intercontinental é mais do que uma imposição dos sujeitos da globalização (o famoso ocidente), mas o ensejo dessa mudança vem do próprio africano. E que os não acostumados (que são tantos) têm a nostalgia como o lugar de aprisionamento, mas o poeta, que tem por privilégio, a audácia da ―rebeldia‖ dá aos olhos o que a alma sente (poema 6): Tento declamar em vão versos de Apollinaire/ Penso nos vagões rumo a Treblinka e Auschevitz/No vácuo das câmaras

do Holocausto/É a mesma mão que vergastou negros outrora/A mesmíssima mão sufoca a África nos vagões/E Senghor quer que Deus perdoe aos genocidas/E as mãos de Gulag as mãos de Hiroshima meu amor?/As mãos que apertamos no descuido as mãos de sangue/As mãos que desenham molduras nas terras…”(p.58) Aí entra o poeta e o papel da sua poesia em tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos, como a angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo, como já disse Carlos Drumond de Andrade. Filinto Elísio encontra na poesia esse espaço para pôr a pratos limpos, os prantos trazidos por esses problemas existenciais, aqueles que não só os cabo-verdianos enfrentam, até porque, Filinto girou por sociedades diferentes por essa faceta intertextual da poesia. Os seus desassossegos alojam-se em si como escultor da palavra, procura navegar pelas águas que cercam o arquipélago onde tem o eterno cordão umbilical, daí não se separar dos ventos, dos ares e dos fogos que vem desses territórios que se formam únicos apesar das águas que impõe limites geográficos às ilhas. Isto justifica a posição de um dos mais originais poetas africanos dos últimos tempos, em particular da África falante do português que é Filinto Elísio. E esse título, certamente, não é o que o poeta reivindica, afinal, há muitas questões pendentes que, filosoficamente, debate na sua poesia que traçam cenários para além da compreensão de um olhar não vocacionado ao dizer (poema 7):Topaste a cidade como está?/Crivadíssima de balas – dá vergonha!/Uma puta decadente e a propósito/São bestiais as putas de Manila?/E do vácuo tens ideia? Olha o precipício/Parece até sem fundo, mas a queda é pedra/Espatifa-se o suicida que nem é lembrado/Matar-se é um verbo filho da mãe!” (p. 19). Como é notável, nesse poema referente ao primeiro conjunto ―O inferno do riso‖, a relação entrecruzada dessa ―incompreensão‖ que o poeta tem sobre o cenário que vive, não o faz diminuto na dimensão sarcástica a que não se escusa estar ao longo da sua obra. Filinto Elísio tem a indagação como o percurso para chegar à razão desejada. São perguntas que se fazem em todo lado, no leitor também, inevitavelmente, se vão recompor. Por esse e por todos aspectos, encontra-se em Filinto Elísio a poesia de ideias, filosoficamente construída e, pelo seu grão de desassossego e sentimento, capaz de trazer o estrondo que só um bom poema sabe criar à alma. É ainda por esse empenho futurista que, a poesia cabo-verdiana nunca acomodada, vai guiando-se pelo mar das ilhas ao continente e aos continentes. Por isso e por muitas outras razões, Filinto Elísio, ―Das águas e dos ventos somos aqui ouvidos/Queremos novos dos fogos e das terras‖ antes que ―dorme poeta o teu sono merecido‖(.21). L

07 | 26 de Abril de 2013


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Livros

O cosmopolitismo de A Quadragésima Porta Esse livro inaugura, no Brasil, o romance cosmopolita de temática ecumênica Guido Bilharinho - Brasil

C

om exceção da obra de Teresa

Todavia,

A

Quadragésima

Porta,

limado

ou

Margarida da Silva e Orta (Aventuras de Diófanes, de

escoimado dessa tênue casca feérica, constitui

1752), de temática grega, clássica, e de um ou outro

romance frustrado, frustrante e irrealizado. Não são

romance de capa e espada, de cunho meramente

seus traços distintivos mais evidentes, como a

comercial, ou mesmo literário, mas, fraco, como Uma

colocação das personagens no olho do furacão da

Lágrima de Mulher (1880), de Aluísio Azevedo, ou,

História (no caso, não por mera coincidência, mas,

ainda, Eulâmpio Corvo (1909) e a trilogia Heloísa

propositadamente,

d’Arlemont (1918/?), do pernambucano Zeferino

Revolução Soviética de 1917, primeiros anos da

Galvão (1864-1924), e início de Mana Silvéria (1913),

Segunda Guerra Mundial), que lhe poderão dar, a ele

do gaúcho Canto e Melo, a ficção Brasileira palmilha

ou a qualquer outro romance, os predicados que não

trilha única e comum quanto à localização geográfica,

possui

social e econômica da temática elegida, sempre

obrigatoriamente deveria ter: estrutura romanesca e

restrita ao Brasil.

e

que,

Primeira

para

Grande

configurar

obra

Guerra,

de

arte,

profundidade analítica. Ou seja, qualidade estética e verdade humana.

Essa, pois, uma das características preponderantes dessa ficção.

Nem um nem outro desses atributos permeiam o romance, que,

Por isso, o romance A Quadragésima Porta (1943), de José

desnudado das lantejoulas e enfeites pretensamente históricos, não

Geraldo Vieira (Rio de Janeiro/RJ, 1897 - São Paulo/SP, 1977),

passa de obra menor, episódica. E que, pelo seu patente artificialismo,

surpreende pelo seu cosmopolitismo, não reconhecido pelo Autor, que

nem ao menos alcança a feição documental, ficcionalmente ancilar.

prefere, em nota introdutória, considerá-lo ―tentativa não de romance

Assim, despido das roupagens falsamente brilhantes e enfocado

cosmopolita, mas de encruzilhada ecumênica‖, o que, no caso, vem a dar

no que efetivamente importa, em se tratando de obra literária de ficção

na mesma.

(linguagem,

A surpresa, aqui, só é possível se decorrente da leitura planejada e cronológica, proporcionadora

do

impacto decorrente de

imediatas

observação e comparação.

estrutura

romanesca,

consistência

das personagens,

autenticidade e profundidade humanas), e comparado com as obrasprimas do romance brasileiro percebe-se, facilmente, sua insuficiência. A linguagem e a estrutura constituem elementos congênitos e

E é justificável, porque esse livro inaugura, no Brasil, o romance

intrínsecos ao gênero. A realidade do ser humano é requisito essencial e

cosmopolita de temática ecumênica. Conforme salienta Sérgio Milliet, em

elemento condicionante, cuja falta, ou precariedade, o desfigura e o

citação descontextualizada inserta na última capa da terceira edição

descaracteriza. Ao ficcionista cumpre e compete detectar ou descobrir

(provavelmente de 1968, como se registra no colofão, já que a editora

essa verdade substancial e criá-la artisticamente.

Martins omite a data na folha de rosto), ―com este romance iniciamos uma

José Geraldo Vieira, autor, ainda, entre outros, dos romances A

nova etapa. Rompemos o nosso isolacionismo e entramos na agitação do

Mulher Que Fugiu de Sodoma (1931), Território Humano (1936), A

mundo‖, completando, hiperbolicamente, que ―saímos da aldeia para a

Túnica e os Dados (1947), A Ladeira da Memória (1950) e Terreno

metrópole‖, o que, esteticamente, é indiferente, bastando lembrar que Eça

Baldio (1961), não logra, em A Quadragésima Porta, alcançar qualquer

de Queirós, em A Cidade e as Serras (1901), percorre caminho inverso

das citadas qualidades, pelo que esse romance não se consuma como

com melhor resultado.

obra de arte, erigindo-se, no vácuo daí resultante, um monólito, como

Assim, o contato com essa obra é, pois, nessa perspectiva,

afirma, pretendendo elogiá-lo, o crítico Tulo Hostílio Montenegro, opinião

impactante. Nesse caso, não em todos, reação obnubiladora da mente e

também transcrita na última capa da terceira edição. Realmente um

perniciosa como base de raciocínio, análise e avaliação.

monólito e, como ele, uniforme e tedioso, mesmo que construído

A inserção das personagens nas encruzilhadas geográficas do mundo e sua participação nos acontecimentos cruciais da História, levam,

mediante linguagem desenvolta, de cunho, todavia, artificioso, como também artificiais são a estória e as personagens.

no caso, a obscurecer e mesmo camuflar as limitações, carências e

Em suma, A Quadragésima Porta é romance enganador como

artificialismo da obra. Diante de seu feerismo, característica notada por

toda obra que flutua na periferia da realidade sem captar sua substância,

Ledo Ivo, também citado na última capa da 3ª ed., impressionados e

mas aparentando fazê-lo.

dominados por ele, pode-se (e muitos o fizeram), superestimar o romance, a ponto de incluí-lo, frequentemente, entre os ―dez melhores romances

(do livro, Romances Brasileiros – Uma Leitura Direcionada.

brasileiros‖, conforme noticia a ―orelha‖ da referida terceira edição. Ou de

Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 1998).

se dizer, como o fez Wilson Martins, citado aspeadamente na mencionada ―orelha‖, ser, esse, ―um dos romances basilares da literatura brasileira, merecedor dum lugar entre as grandes obras de todas as literaturas‖.

__________________________________ Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.

L

08 | 26 de Abril de 2013


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Crónica

Olha Alípio; “Influências”. Olha, esta música Alípio, devias ter pensado muitas vezes antes de publicá-la. Me recordas mortos e vivos. As minhas raízes. David Bamo - Moçamique davidbamo@gmail.com

S

ei que não tenho idade suficiente para te tratar apenas por Alípio. Sei que não tenho autoridade intelectual para uma fazer crítica ao seu rico espólio. Sei que daqui muitos apelidos poderei ganhar. Sei que de hoje em diante serei conotado pelos mais velhos e bem entendidos da matéria como o rapaz emocionado, e a minha geração vai me chamar de recluso do tempo, confuso e esquisito. Até um certo nível isso me agrada. Me agrada porque ao desfiar o fio da minha memória, encontro ao longo da história que viví e testemunho, os nomes atribuídos pela sociedade como grandes marcas do tempo. São marcas do tempo porque em Hulene, palco oficial da minha infância, os mais velhos tinham sempre nomes a mais; entre tios, manos e vovós fecundei o meu livro de recordações. Sacudi as poeiras da gaveta desta minha memória para resgatar os meus ―malumes‖, ―madalas‖, ―massungugates‖ e ―madodas‖. É! Dizíamos isso nós, frutos do projecto noventa, mesmo com os ares áridos e ácidos do actual Maputo. Esta cidade imensa, que como uma vez disse Ba Kha Kossa, está cada vez mais descaracterizada. Abel Filipe diz mais, onde o branco e o preto se caldeiam e os ardinas correm ruas. E as mamanas na bula-bula com olhos de Xirico lutam para ganhar o dia. Alípio, o Xirico, que eu não escutei, conhece-o apenas pelos livros, morreu aqui. Morreu porque ninguém quer saber mais dele. Ter este rádio em casa é sinónimo de fraqueza material. Todos querem saber de rádio satélite, pois os canais em sinal fechado já granjearam simpatia nesta ex Lourenço Marques.

É este Xirico que eu sei que te educou musicalmente. Nadaste em águas muito familiares para gostares de música. E deves ter percorrido uma longa estrada. Sei que passaste pela Banda RM, mas como Pedro Ben, tu querias mais e foste. E as fases da tua vida artística tiveram muitas manchas. Acho que foste muito perseguido pelas frustrações de não teres atingido algumas metas. Não sei, são apenas ideias. E se a especulação pode ser a base da construção de um conhecimento absoluto, eu vou mais longe, a tua infância foi musicalmente marcante. Acho que o teu pai gostava de música. E deve ter te obrigado a tocar o saxofone, esta foi a tua paixão imposta. Lá em Inhambane tiveste altas pitas e bons amigos. Na terra de boa gente, foste feliz e sabias que eras. Viveste a fraternidade em plena consciência, o que falta em muitos de nós. Deste tempo ao tempo. Mas o tempo te traiu. Não parou. Foi se e tu já estás grande. És sucesso confirmado. Se ontem choravas por não saber o que poderia ser o dia seguinte, hoje meu amigo, choras de orgulho. Mas como tu cresceste alimentando com os parágrafos de Samora (―não vamos esquecer o tempo que passou‖) nunca te esqueces do passado. E é por isso que sopraste ―Olhando para Trás‖.

Esta fusão é boa demais para ser verdadeira. É sério. Isto parece algum sonho. Não parece engenharia ou arte humana possíveis. Foste para além da criatividade natural. Neste sopro, me abraças e me contas a tua trajectória. As vicissitudes desta vida louca. As pancadas de ser artista num país dos outros. A guerra para se ter pão e água. Me provas que a carne humana mantêm-se viva pela força e coragem. Aqui fico a saber o que custou realizar o teu sonho. Passo a passo. É a tua história contada em 04 minutos e 50 segundos. Não empregaste nenhuma voz. Mentira, há voz sim, a do coração que fala comigo. Em ―Olhando para trás‖, Otis me levas ao delírio, me emprestando as donzelas de Inharrime e Zavala. Passeamos pela cidade de Inhambane. Comemos bolinho de sura no mercado municipal. A doçura das tangerinas me prende a tua terra natal. E juro que não mais quero sair daqui. Esta música é um reencontro. Aqui me sinto um verdadeiro filho de Inhambane. Me sinto a emergir nesta terra, como outrora não aconteceu. Sinto me bem vindo à espaço de sul de Moçambique. Não é por acaso que respeitas Inhambane, como sopras numa das suas outras faixas. E vais continuar a tocar para mim! Me provocando com ―Influências‖. Olha, esta música Alípio, devias ter pensado muitas vezes antes de publicá-la. Me recordas mortos e vivos. As minhas raízes. A origem das minhas forças que me obrigam a estar de pé todos os dias. As causas que abraço pelos filhos que não tenho. ―Influências‖ é pelos ricos ensinamentos do meu irmão mais velho. Os azares dos meus antepas-

sados que ainda recaem sobre mim. A teimosia de que sou herdeiro de um velho careca e sapateiro. ―Influências‖ é a minha vitória, minha derrota e minha luta. São os amores envenenados pelos meus defuntos. É a paixão pelo intangível que me bate o peito, e me mantém vivo até hoje. No final desta música caem-me lágrimas quando dizes ―bava anga pswalanga, ayo pswala swiguevenga‖ passando-nos a seguinte ideia; ―o pai não gerou filhos, só gerou marginais‖. Isto certifica que o seu pai te incentivou muito a gostar de música, Otis. Numa ocasião futura, se a inspiração me permitir, vou te juntar ao clã Tamele para uma croniqueta. Podes crer que não disse tudo sobre estas duas obras, merecias ouvir mais, mas o que sinto não consigo tirar. Preciso de ler mais o Amosse Macamo e Alexandre Chaúque para continuar a desbravar o seu enorme e rico espólio, como sempre dos grandes artistas da minha mãe Moçambique. Um abraço deste miúdo maluco

L

09 | 26 de Abril de 2013


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Entrevista

“Não sei quem é

Alexandre Chaúque”

C

onhecido por até cidadãos de ínfima cultura de leitura, Alexandre Chaúque, mais conhecido como Bitonga Blues, cronista, é também um dos maiores jornalistas culturais que o país tem ao mesmo tempo que é escritor e músico. Como escritor e cronista publicou Bitonga Blues, uma colectânea de crónicas publicadas nos diversos jornais em que foi colunista e em 2012, fez o upgrade da sua actividade como escritor ao publicar Ndekeni (vencedor do Prémio Literário 10 de Novembro 2011), a história “encantada” da busca de um jovem que parte de uma zona rural de Inhambane, Mucodoene, buscando realizar um sonho. É sobre esse livro misterioso que conversamos com aquele que tem fama de “único no mundo que canta blues em bitonga”. Por isso e por muito mais, nesta entrevista preferi transcrevê-la em jeito de crónica em que o próprio Bitonga Blues revela-se. Eduardo Quive - Moçambique

Alexandre Chaúque inicia sua carreira na comunicação social como locutor da Rádio Moçambique em Inhambane, actividade que desenvolveu durante dez anos, fazendo igualmente, relatos de futebol. Como jornalista de imprensa escrita destacou no jornal ―Notícias‖. Atendendo esse trajecto que certamente aqui é relatado mais resumidamente, Alexandre Chaúque é uma referência no ramo cultural jornalístico em Moçambique, conhecedor e conhecido por vários artistas

nacionais. Sobre as diferenças entre o jornalismo e a actividade de escrita literária o escritor não encontra várias diferenças até porque destaca o facto de um muitos dos seus artigos jornalísticos haver um elevado grau literário. Chaúque afirma outrossim, que foi a escrita que o levou para o jornalismo e, não terá sido de modo contrário.

10 | 26 de Abril de 2013


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Entrevista saberei respondê-lo. Não sei quem é Alexandre Chaúque. Procuro-me todos os dias, na música, na escrita, no jornalismo, ainda não me achei‖. Conclui, por último aquele que todos o conhecem como Alexandre Chaúque que, ele próprio desconhece.

NDEKENI, A HISTÓRIA “REAL” SOBRE A BUSCA DE UM SONHO Alexandre Chaúque, antes de mais, confessou que Ndekeni, o título do livro que, por conseguinte, é a personagem principal da estória que nos conta, é um nome real, um nome que existe. ―Ndekeni é nome do meu primo. Quando tive a ideia de navegar num estória mais alongada e escolhi os cenários, a pessoa que achei ideal para interpretar aquilo que eu queria era esse meu primo. Uma pessoa que tem as actitudes reais do NdekeAliás, em vários jornais como Savana, @Verdade, Público, assinou colunas de crónicas essencialmente literárias, vincando-se como um exemplo desse género e ganhando o nome que tem, inclusive, nos mais pacatos cidadãos. As suas viagens, permitiram-no fazer dessas crónicas um lugar revelador ao inventar entrevistas fictícias com figuras conhecidas no panorama sociopolítico nacional. Alexandre Chaúque pode também ser a qualquer hora ouvido numa rádio através da sua música, não menos famosa ―Wagu Khedza Mbeli‖, um autêntico blues cantado em Bitonga (língua falada na província de Inhambane), embora não seja por ela conhecido como Bitonga Blues. Apesar de tudo isso, Alexandre Chaúque diz-se desconhecido de si próprio. Questionado sobre quem é Alexandre Chaúque, o cronista que se afigura como um realista sarcástico com vidas e os cenários que retrata, entrou em monólogos. ―Tenho tido uma vida inconsequente desde que soube entender-me como pessoa. Desde a primeira bebedeira aos 16 anos de idade até agora que tenho 55 anos de idade, sou inconsequente. Sempre tentei, desde aí, ir a vários lugares que não cheguei, sempre caio quando sinto que estou no cume de uma montanha. Por nunca me preocupei com o que pode me acontecer amanhã.‖ ―Se os pássaros que são irracionais não se preocupam com nada, vão buscando alimentos aqui acolá, porque eu, tão superior que essas todas criaturas teria que me preocupar com o amanhã?‖ ―Por isso se me pergunta quem é Alexandre Chaúque, não

ni que está no livro‖. Realmente, a obra Ndekeni com que Chaúque exibe seu lado contrário de contador de estórias curtas, retrata cenários que se passam à nossa vista, desde aos locais como a Terminal Internacional de Autocarros da Junta, o movimento dos veículos naquela zona da Av. de Moçambique, o bairro do Aeroporto, o mercado de Estrela Vermelha e a rua do Bagamoyo, a afamada zona perigosa da baixa da cidade de Maputo. Podia, se calhar, referir-se à outros lugares que o autor nos mostra no livro como a própria origem de Ndekeni, Mucodoene, um lugar apaziguado da província de Inhambane. Esse foi um outro retrato falado por Alexandre Chaúque como um relato verídico na sua obra. De acordo com o escritor, Mucodoene, é onde nascem seus pais. Portanto, Chaúque, leva-nos, em Ndekeni, para lugares conhecidos, desde Inhambane que é onde parte a estória, embora comece a ganhar sentido exactamente quando Ndekeni, o protagonista da estória, “tchiquela” (chega) na Junta e é recebido com uma chuva torrencial e com aqueles acontecimentos muito recorrentes na nossa capital, um assalto. Aliás, um assalto que nos remete à própria vida do livro em alusão que levou 30 dias úteis para ser escrito e do seu autor no momento em que o escrevia. ―Escrevi o Ndekeni na AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos) à noite. Foi um livro que escrevi todo sob efeito de álcool. Eu não tinha computador na altura, e só tinha a AEMO para escrever o livro no ambiente que queria. Então quando ficasse tarde eu deixava que todos saíssem e eu ficava a noite toda a

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Entrevista em Maputo, servindo-se da sua intuição, partiu para África do Sul, por sinal, local para onde os seus defuntos o indicaram, através do sonho que teve. Tendo então, na terra do Rand realizado seu sonho e onde termina a sua estória. A par de que o escritor não desconstruiu a estória durante o processo da sua escrita, questionamos se o jeito em que a encerra o satisfazia pelo que respondeu. ―acredito que poderia ter fechado a estória de outra forma. Mas aquela foi a que me deu e por causa disso acho que fechei onde devia fechar. Está fechada. Obedeci o poder que estava sobre mim.‖ ―Chego a acreditar que de como escrevi Ndekeni, com aqueles personagens todos tão verdadeiros quanto as pessoas reais que conheço. Todos os nomes que estão no livro existem. Por isso acredito que o livro não tinha como não vencer o prémio. Há a possibilidade de ter havido a mesma influência sob o júri do prémio e por conta disso me foi atribuído. É um livro que tinha uma carga de deuses.‖ Mas a seguir, Alexandre Chaúque acrescenta a sua experiência na matéria de escrever uma estória alongada. ―A parte mais dolorosa de um livro é o fecho.‖ escrever.‖ Conta Chaúque acrescentando, o que coincide com o livro. ―Fui roubado o computador na Junta. Fiquei desnorteado quando isso me aconteceu. Já imaginas o que é ficar sem computador para quem trabalha com a escrita. Ter que escrever nas redacções era mesmo complicado. Foi muito difícil.‖ Quem lê Ndekeni pode encontrar os episódios e não os associar à essas realidades, mas o encaminhamento dos acontecimentos leva à uma realidade conhecida por vários moçambicanos.

“EU ACREDITO NO PODER SOBRENATURAL” Alexandre Chaúque disse nesta entrevista porque fala da morte em quase todas suas estórias. ―A morte faz parte da vida. A morte é a ponte para a luz‖. No Ndekeni os mortos aparecem, se não permanecem, em todo o percurso da narrativa, acompanhando o protagonista na busca dos sonhos. Pode-se até, entender o livro como o presságio do poder dos mortos e da respectiva superstição em que nos remete essa temática.

Escrevi o Ndekeni na AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos) à noite. Foi um livro que escrevi todo sob efeito de álcool. Eu não tinha computador na altura, e só tinha a AEMO para escrever o livro no ambiente que queria.

Sobre essa abordagem no seu livro, Alexandre Chaúque, afirma que é um ser que acredita no submundo e nos deuses. Esses defuntos, poderão ter o ajudado a escrever o livro. ―Eu acredito que escrevi o Ndekeni obedecendo seres acima de mim, forças superiores. Escrevi esse livro em um mês e meio contando. E não mexi a estória. Apenas fiz correções ortográficas, mas fora disso, não alterei a estória, mudando alguma coisa ou acrescentando outra depois de a ter escrito. Logo que terminei, não me dei mais tempo, meti no envelope e mandei logo para o prémio. Por isso acredito que não fui eu quem escreveu o livro.‖ Ndekeni ao chegar em Maputo como lugar onde iria concretizar seus sonhos de ter um bom emprego e ganhar dinheiro para voltar à sua terra como um herói, nota que é tudo o contrário. Encontra uma cidade que o recebe com caos e alguma miséria. Vive os piores momentos da sua vida que até chega a lembrar da sua pacata zona de Inhambane. Lembrou-se, igualmente, da cama da madeira onde dormia em Mucodoene quando dormiu num prédio isolado na rua do Bagamoyo enquanto as prostitutas faziam seu serviço. Daí, Ndekeni teve que achar outro caminho para realizar seu sonho. Determinado, como mostra-se em toda obra, Ndekeni, jovem que ―aparenta‖ ter 30 anos de idade, não tendo conseguido trabalho

“DE MORTE EM MORTE”

Ainda em conversa connosco, o escritor Alexandre Chaúque revelou estar a preparar um romance livro cujo tútulo poderá vir a ser ―De morte em morte‖. Uma autobiografia de acordo com o autor. ―A personagem principal desse livro é o Alexandre Chaúque na terceira pessoa. Esse livro surge depois de ter iniciado um outro projecto de livro sobre o médico. Queria retratar a vida do médico em Moçambique, mas a essa história frustrou-se porque roubaram-me o computador na Junta, eu ia a Inhambane. Sendo assim foi-me difícil voltar aonde tinha deixando a história do médico para continuar. Depois que consegui ter um outro computador, com ajuda de algumas pessoas, arranquei com um outro livro este que já anuncio.‖

L

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Entrevista

Um trecho do livro Ndekeni de Alexandre Chauque

N

dekeni!!!!!!!!!!

Ndekeni tremeu quando ouviu uma voz forte a chamar por ele, quando ia atravessar a estrada, sem respeitar as regras de trânsito, ele cortou a rotunda da Junta a meio, para o outro lado onde apanham-se os chapas para o bairro do Benfica, e, quando ouviu o brado, poderoso, a chamar pelo seu nome, estava numa das faixas de rodagem da grande roda projectada pelos engenheiros e quis voltar para trás. Os holofotes dos automóveis encadearam-lhe, trazendo de volta o medo que estava a desvanecer. Mas o que é isto? Será que vou morrer aqui? Não, não posso morrer agora, muito menos aqui, eu não posso sucumbir no asfalto, os carros que vão a merda, que me deixem voltar atrás para ver quem é que me conhece aqui, e ainda por cima nesta noite iluminada pelo néon. O jovem balançava, para frente e para trás e para os lados, até que, resolutamente, recuou, deixando o trânsito completamente embaraçado e continuava, falando para ele próprio e para os defuntos, eu não sou daqui, é verdade que tenho um espírito de elefante, vou morrer longe da minha terra, mas não será aqui onde vão ser esmagados os meus ossos, e essa voz que me chama, não será, com certeza, para me decepar. Eu vou, vou sim, e os carros que se danem. Eu sou Ndekeni, filho de Nassone e de Nwa Txihono. Agora quem sois vós que queres se interpor no meu caminho? Vão se foder! A chuva parou de cair completamente e o alcatrão continua molhado, dando-nos uma imagem espectacular dos faróis dos automóveis reflectidos na estrada. As vozes dos chapeiros que haviam sido caladas pelas fortes bátegas voltaram ao show que se justifica pela procura diária do pão que a mulher em casa e as crianças precisam.

Em todo perímetro da Junta o chão está empapado e, caminhar por cima daquele matope, é repugnante. Já estão lá as mulheres e os jovens que vendem de tudo, desde bugigangas e bolinhos desqualificáveis, passando pelo pão descoberto, ostentado às poeiras e a tudo o mais. Não se ouve o apelo dos jovens, homens e mulheres, que estão dispostos a discutir os preços até níveis incríveis e compreensíveis. Os autocarros que vão partir amanhã estão lá, perfilados, e um e outro vão chegando de distâncias longínquas como Pemba e Lichinga e Nampula e Tete. E Ndekeni está à procura da voz que chamara pelo seu nome. Do outro lado está um homem de meia idade, de pé, com os braços cruzados no peito largo, a olhar para Ndekeni que ainda não percebeu o que está a acontecer com ele, muito menos à sua volta. O indivíduo é um sósia do Mangoba, esse anfíbio que tem a missão de salvar vidas nas baías de Inhambane e Maxixe. Mangoba é um barómetro humano e, quando vaticina algo, é infalível. Ele acorda de manhã, olha para o horizonte e diz, hoje vai haver mau tempo, não vos aconselho a meter os vossos barcos na água. E haverá mau tempo! A palavra dele é um decreto, todos vão cumprir porque este homem é um marinheiro que vai para além disso, é o último reduto. E está ali, vestido na pele do homem que espera, calmo, como um verdugo, pelo Ndekeni que, espantado, vai desencadear várias perguntas para si mesmo, como agora que ele se indaga, este gajo é o Mangoba? Está a fazer o quê aqui? É muito estranho que ele, vocacionado para o mar, esteja debaixo deste bulício todo. Quem é que vai controlar a fúria das baías de Inhambane e Maxixe? Aonde é que as mulheres vão encontrar o talismã nos dias aziagos? Foda-se! Ele está a olhar para mim como se me conhecesse! Eu conheço a ele, porém ele, com certeza, não me conhece, nunca ouviu falar de mim, mas eu vou ao encontro dele, ele é que chamou pelo meu nome. Vou!

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Poesia Carta Magna

Ranse Nyama - Moçambique

Perseguido pelos beijos probos Das flores enlaçadas Invoco-te para as contemplarmos

Willian Delarte - Brasil

Renuncio ao supremo cargo de humano ordinário, renuncio.

Acusado pelas carícias agrestes Das noites solitárias Procuro-te para as suavizarmos Molestado pelo chilrear idílico Dos pássaros encantados Chamo-te para os admirarmos

Renuncio ao status de degradado. Renuncio ao posto de otário, danado abjeto, verme degenerado, renuncio. Renuncio à imagem de bom moço, bom marido, bom amigo, bom filho, bom partido, renuncio.

Condenado pelo sussurro opressivo Das madrugadas eremíticas Busco-te para o silenciarmos 02.12.85

Renuncio ao legado de Deus, ao amor dos bichos, à ciência dos homens, renuncio. Renuncio.

Primavera esperada

E no tênue horizonte em que me abraço me perpasso e me travisto me consolo e me reviso e me refaço / braço lasso passo crasso presto e grasso / longe tardo farto ardo e anuncio: que a vida é outra! que a vida é mais! que a vida, irmãos, está morta! Renuncio (lenço na boca) Renuncio (mãos sobre a face) Renuncio (tarja nos olhos) Renuncio (pedra nos dentes) Renuncio (pregas na língua) Renuncio (pregos na cara) Pregos na cara - vejam, na cara! Oh, como lateja essa vida crucificada como rasteja a vida, irmãos, a Vida.

Manuel Neto dos Santos - Portugal

Vem amor, quando chegar a Primavera, Fazer com que floresça o meu sorrir, Prender-me com os teus braços de hera E amar-me no regaço do devir. Vem amor, quando a terra florescer E o ar, almiscarado de perfume, Em brisas de ternura te disser Que acendas no meu corpo esse teu lume. Vem amor, quando a greda revolvida Florir, numa aguarela aveludada; Boninas, lírios brancos, açucenas… Vem, amor! Quando o dia, a alvorada, Florir as flores, mesmo as mais pequenas E traz-me, então, de volta a própria vida. 6.8.80

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Poesia Engano

E eu era teu Kwanza

Sid Summers - Brasil

Eu volto para casa bêbado e continuam me confundindo com um boêmio. É só desespero não escondo. Meus bolsos estão vazios desprovidos de moedas mas a mão oculta no bolso empunha o cabo de um canivete filipino assassino pronto para ser usado qualquer hora do dia.

Décio Bettencourt Mateus - Angola

Eu era o teu kwanza Caudaloso E tortuoso Destreza A fartalhar as margens Das tuas paragens! Um kwanza vaidoso E sinuoso A fundir a doçura Do meu açúcar Na salgadura Das ondulações do teu mar! Ou ainda a nostalgia Dum pôr-do-sol a entardecer A luz do teu dia Eu era a delicadeza Duma brisa A sussurrar-te o amanhecer!

Bonde - Moçambique

O Nada pode seguir-me. Eu curvo os meus neurónios à preguiça, deusa poética dos peregrinos da noite. O Nada! Paira em mim o sonho de mártir, e sento o meu corpo sobre o soalho, imaginando-me a beber chá com golos maiores que a chuva à janela. – Confessarei meu pecado ao vento, perto da gaivota solitária que cantarola à hora da criação!

E, o que será o Nada oculto ao sol? ... O céu adiante desfaz-se e fico com os grãos de pó. As sombras são incómodas como os cabelos que coloquei no átrio dos pensamentos. Agora, as árvores correm ao vento, e as lágrimas do firmamento não cessam, apoderando-se da minha jangada na encosta da cidade.

Era a noite solitária A beijar a insónia Da tua madrugada Uma mania D´aurora adiada Na maré da tua praia! Era a melodia Do trecho Do canto dum riacho Harmonia D´água a batucarem pedras E a polirem lascas ásperas! Um aceno distante No anoitecer Da tua noite Dormida-acordada Eu era o kwanza da tua almofada A balbuciar-te o alvorecer! Luanda, 07 de Junho de 2007. In Xé Candongueiro!

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Conto

A Morte da Tchanaze Trecho do romance “Tchanaze a donzela de sena” do escritor moçambicano Carlos Paradona Rofino Roque

A

noite apresentava-se tão apertada que os morcegos em vão podiam ver qualquer presa que fosse. Um vento oculto cilibava por entre o capinzal, donde provinha uma música lúgubre e macabra que fazia lembrar a presença de defuntos à solta e muito temidos na aldeia. Aliás, era crença generalizada que, em noites escuras e macabras como esta, os que haviam morrido encontravam prazer e se punham a deambular por toda a aldeia em visita às amantes, que em vida tiveram, ou se dirigiram às margens do rio, para banho de que há muito tinham saudades. Tratava-se de lavar a poeira trazida do escuro das tumbas. Enfim, era a nostalgia dos tempos vividos. No meio da agitação dos mortos, que pareciam ter entrado em greve com os vivos, a escuridão engolira por completo a mata já crescida, não permitindo que se divisasse a cabana erguida junto duma árvore frondosa, cujos ramos a encobriam de cima, onde Tchanaze jazia no solo húmido. Do seu peito, a respiração, embora fraca, se fazia sentir; era um pulsar de desespero, de medo e vergonha, por ter sido tomada por mulher por indivíduos há muito falecidos. No interior da cabana, além da sua respiração pausada, havia o buliço de vozes indecifráveis, capazes de fazer gelar a medula espinal de qualquer homem. Segundo a mística por todos aceite, deviam estar ali, junto do corpo caído, os espíritos de N‘tchimica, Nhambire e Tchinai, falecidos há anos, num naufrágio verificado no leito do Zambeze. Em vida, e porque eram bruxos, foram homens dos mais temidos de Sena, por todos respeitados e venerados. A morte deles ocorrera quando, na tentativa de atravessarem para outra margem, foram apanhados de surpresa por um mau tempo, já ao meio do rio, o que fez naufragar a canoa. Como muitos, mostraram-se impotentes no combate à fúria das águas e, como muitos outros, foram arrastados ao encontro da lama e matope por forças estranhas, até aqui não explicadas. No dia, seguinte, foi a notícia que se alastrou por toda a parte. Dizia-se que, uma vez mais, o Zambeze tinha mostrado a sua fúria para com os homens, que reclamava por uma veneração de todos. E também se

dia que qualquer mulher que morresse era recebida de bom grado por esse trio de bons amigos, desde o tempo em que eram vivos. E, como tal, o grupo devia estar ali presente. O corpo da Tchanaze rebolava-se no chão húmido, entre vozes ininteligíveis. Ouviam-se sons fúnebres vindos da escuridão ao seu encontro, risos de regozijo chegavam-lhe no interior dos ouvidos. Havia gritaria, mas não via ninguém. Mãos invisíveis assaltaram-lhe a nudez, fazendo deslizar a dhanda e as missangas, mas não via ninguém. De repente, sentiu um crepitar de lenha ardendo em fogo que não podia ver; um cheiro nauseabundo de um assado maligno chegava-lhe, em réstias intercortadas, ao olfacto. Tentou suspirar, mas várias e incontáveis vozes, que pairavam na escuridão da noite, amordaçavam-na. Não chegou a perceber que a vida se afastava de si, se é que não se afastara já há muito tempo. Era porque os espíritos encontravam nela o prazer, espalhando os seus orgasmos por entre aquelas tetas, que mesmo em vida nunca chegaram a conhecer. A sua vida desaparecia no prazer das almas vagueantes de Sena, Murraça e Caia; dependia dos defuntos dos vivos; dependia da gula carnal dos três mortos do naufrágio, que ainda permaneciam na memória dos vivos. A morte, esta, acabaria por aparecer. Aparecia com a chuva, que, entretanto, começou a fazer-se sentir sobre as copas das árvores. A noite tornou-se tenebrosa e enormes gotas de água começaram a cair com muita força, sacudidas por rajadas de vento, que cada vez mais se agigantavam. Num charco de água que rapidamente se formou, jazia Tchanaze, desprovida agora de qualquer tipo de movimento. Apenas ela, ante o olhar espasmo de almas saciadas tilintando na noite escura e chuvosa de Sena. A chuva, que, entretanto, continuava a cair com muita intensidade, refrescava as gargantas das almas há muito sedentas de sexo, espíritos dos defuntos inconformados com a sua presença no inferno, teimando, desse modo, com a sua vontade maléfica de espalhar a miséria entre os vivos, vivos de Sena, Dona Ana e Inhangoma e terras circunvizinhas e distantes. L

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Conto

Vista a Camisa, Macunaíma Macunaíma ficou dando porque nasceu índio e não aceitou o Reino Unido cantar a morte de seus antepassandos Ribemar Mitoso - Brasil

M

acunaíma nasceu índio, virou preto e terminou branco. Mais ou menos como o Brasil: Nasceu Tupi, virou branco, se empreteceu, se acabocou e agora tira uma de branco. Pirou de vez: Com a partícula condicional antes do verbo: se? É uma construção modernista. Invenção sintática de Mário de Andrade. Não sei se foi o Brasil que inventou Mário de Andrade que inventou Macunaíma ou se foi Macunaíma que inventou o Brasil que inventou Mário de Andrade.Parece que os fatos que os fatos estão em interação dialética: É preciso que se veja os efeitos nas causas nos efeitos: Quer dizer. Macunaíma adora carnaval. Fica sem fazer nada, ai que priguiça! No carnaval Macunaíma brinca de não fazer nada. Por isso que no carnaval nada funciona. Puro feitiço de Macunaíma. Mestiço presepeiro. Macunaíma quer e o banco não funciona. O visor do caixa eletrônico recebe sua ordem e brinca de carnaval: Estamos temporariamente com o sistema fora do ar. Retorne mais tarde. Se Macunaíma não fosse presepeiro, bastava informar: Acabou o dinheiro. Retorne amanhã. Ou quando o carnaval acabar. Macunaíma quer e o caixa eletrônico volta a funcionar.Com um computador que leva duas horas para processar cada comando, mas volta. Ordem de Macunaíma. Caixa eletrônico lento. Computador macunaímico: Qui priguiça. Como notou o cronista Epitácio Neto: As bandas não saem mais do lugar. Pura priguiça. Outro feitiço de Macunaíma. Macunaíma esteve presente na banda das piranhas, não se fantasiou: Foi só levar feitiço para a banda não se mexer. Tinha fi-fi vestido de piranha que gritava: Pim-Pom, Pim-Pom bonbeiro, pombeiro, vem meu pajé, me sangra! Não era Macunaíma. Macunaíma queria apenas que a banda não saísse do lugar e deu uma ordem – todo homem deve ir fantasiado de piranha. As mulheres podem ir ao natural, quer dizer, coisas de Macunaíma. Macunaíma é eclético. Só não gosta de macaquice. Adoro toada, dançar bailando do boi-bumbá e cantar Vermelho. É a cor do seu coração e que ta do lado esquerdo . Macunaíma adora este verso: Tudo é garantido quando a rosa avermelhar. Tudo é Garantido quando

o sol vermelhecer. Macunaíma às vezes, se apaixona. Amar dá um sono. Macunaíma quer e o bailado fica mais lento. Macunaíma esteve presente na BICA. Não deixaram ele entrar no ― reservado das autoridades ‖ . Macunaíma não gostou e fez chover. Molhou todo mundo. Todo mundo ficou igual, quer dizer. Ah bicho danado. Macunaíma esteve na festa da Camélia. Macunaíma é preto, mas não gosta de preta. Diz que os pretos bons, que vieram dos melhores lugares da África, ficaram todos na Bahia. Prá cá só veio nego de tribo ruim. Macunaíma só salvou o Nestor, o Ademar e um ou outro. Macunaíma não salvou a Camélia, que caiu do galho e deu apenas dois suspiros. Macunaíma não tinha mais o que fazer e foi ao sambódromo. Adorou o veneno da Sagrada Família. O estilista e carnavalesco Boajam Holanda abusou da inventividade. Comprou alguns rolos de gaze, enrolou no corpo e ganhou mais atenção que os destaques com suas fantasias milionárias. ― Gastei 20 reais e brilhei mais que os brilhosos ‖ , disse ele. Múmia macunaímica. Foi ele quem trouxe o feitiço. Orelana era espanhol, mas as velas de suas caravelas estavam pintadas com a Cruz de Malta portuguesa, quer dizer: feitiço de Macunaíma ficou dando porque nasceu índio e não aceitou o Reino Unido cantar a morte de seus antepassandos. Vilipêndio a cadáver. Macunaíma não gosta disso. Ficou aborrecido. Não arrepiou, não pegou geral e , se navegar é preciso. Macunaíma vai de Ubá. Macunaíma cansou do carnaval. Ontem pela manhã, em plena segunda-feira, Macunaíma cansou foi ao Em Tempo. Foi sem camisa, quer dizer: Foi como nasceu, filho da Boca-da-Noite. Quando ia começar a trabalhar, ouviu um especialista dizer na televisão: Cuidado com a Siíndrome da Segunda-Feira. Ela não deixa ninguém levantar para trabalhar. Ele gostou. O Aldísio também. Deu priguiça em Macunaíma. ― Vou voltar para floresta. Vou voltar a ser índio ‖, disse o bicho danado. Aldísio não gostou e mandou Macunaíma voltar: ― Não inventa esse negócio de síndrome da Segunda-Feira. Volta aqui mestiço. E vista a camisa Macunaíma. Acabou o carnaval e hoje já é Segunda-Feira ‖. Macunaíma fez cara feia para o poeta. Ai qui priguiça, poetinha. Acho que peguei a Síndrome da Segunda. Já vou.

L

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Outras Artes

Um movimento estético e sustentável: corpos

em performatividade na comunidade quilombola de Monte Alegre (conclusão)

O

Caxambu é importante no fazer/construção dos seus atuantes, e em sua influência, no movimento artístico, estético e social da comunidade. A expressão de corpos que sustentam ―espectros‖ de seus antepassados, ora é elemento de um ritual, ora é elemento de divertimento de um grupo, e ora é elemento de confraternização, em busca de uma performance dos povos africanos. Considerando o processo eficaz, a identidade do ser negro aparece numa estética peculiar, que justapõe aos seus elementos constitutivos como a fogueira, o tambor, os brincantes, o mestre, o terreiro/espaço de atuação, desenvolvendo uma performance espetacular. Uma pratica que è definida, sobretudo, pelo atuante e sua relação com a dinâmica da ‖motriz cultural‖, corporificada no inseparável trio cantar-dançar-batucar. O Caxambu em Monte Alegre normalmente se dança no dia 13 de maio, dia da libertação dos escravos, nos dias de santos católicos de devoção da comunidade, nas festas juninas, e mais recentemente, em apresentações públicas, no projeto do turismo étnico e no movimento de sustentabilidade da comunidade. Atualmente, Monte Alegre conta com o grupo de Caxambu mirim, composto por crianças e jovens que executam a dança e cantam seus versos.

Sara Passabon Amorim - Brasil Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

mesmo, levando tudo a este centro; outras, ele se descentra, coloca-se na periferia de si mesmo. Cada cultura determina o que considera como corpo controlado ou corpo solto, o que parece ser ritmo rápido, lento ou normal (PAVIS, 2003:76) Vale lembrar que o performer, também em manifestação tradicional, é o condutor de suas ações e movimentos, visto como um corpo dentro do conceito sugerido por Barba (1995) e Grotowski (1971), que alertam quanto à valorização dos dispositivos do bios (vida) e da pré-expessividade do atuante (BARBA, 1995), evidenciando traços próprios de cada performer, na formação física e mental desse ser humano, sua relação social, geográfica e histórica, instauradas numa estética construída gradualmente e (re)significada no processo do ato performativo, num contexto, social e individual. O corpo representatividade

é e

definido como elemento fundamental para organização dos afro-descendentes na contemporaneidade, na comunidade de Monte Alegre, elevando-o como sujeito principal de suas experiências/ ações e criações artísticas. ―O corpo retirando-se do mundo O performer dessa prática objetivo, arrastará os fios é como alguém que mobiliza todas intencionais que o ligam ao seu as energias no ambiente em que ambiente e finalmente nos atua. Sempre codificado, porém revelará o sujeito que percebe consciente das regras que se assim como o mundo impõem, em outro tempo-espaço, percebido‖ (MERLEAU-PONTY, diferente de sua vida cotidiana. 2006: 110). Promove então a Portanto, a atuação deste experiencia integral do sujeito, pressupõe desempenhar um papel do qual o corpo é elocução de sem perder a responsabilidade princípios estéticos, ancestrais e pela sua própria vida. O que não o restaurados num movimento de obriga a experimentar uma Fig. 2 – Apresentação de Dança, 20 de novembro 2009, Dia da Consciência Negra puro vigor e envolvimento de separação e a constatar uma todos. A criança, o jovem, o adulto, o idoso, atualmente, na comunidade distância a respeito de si mesmo. Mas ser um corpo que se abre e segue o seguem os princípios da experiência e memórias corporais, em que o corpo jogo dos atos performativos colocando-o em condições de interdependência e centraliza a ação na coletividade numa possibilidade de ligar a expressão interatividade: gesto/expressão, percepção, vibração, respiração conjunta, natural, espontânea e o patrimônio cultural herdado, á experiência viva do cumplicidade entre quem produz e quem assiste; entre quem se projeta e quem presente. O corpo negro significa seus atos, corporificados em todas as reage a esse comportamento, ou seja, participações diferentes descodificação performances, artísticas e culturais onde (re) propõem o conjunto de valores e de signos, interpretação e afirmação de novos signos, entre todos. hábitos, tanto sociais e comportamentais como estéticos e culturais num Nas práticas artísticas e culturais dos quilombolas em Monte Alegre é espaço comum de organização e expressão, contextualizado nos gestos e possível visualizar o ―esforço humanitário‖ que define Laban (1978) como movimentos que caracterizam os afro-descendentes de princípios ancestrais. sendo capaz de resistir à influencia de capacidades herdadas ou adquiridas Segundo Ligiero ―podemos observar nas performances de origem africana na podendo o atuante ter condições de controlar hábitos negativos e desenvolver atualidade, que o corpo é o foco de tudo. Ele se move em direções múltiplas, qualidades e inclinações que lhe possam beneficiar, apesar de influencias ondula o torso e se deixa impregnar pelo ritmo percussivo‖ (LIGIERO apud adversas. O fazer das performances artísticas e culturais está diante do desejo SANTOS, 2007: 84). do ser negro de se ―fazer presente‖, ultrapassando muitas das suas limitações E dessa forma o corpo negro se mantém em uma constante busca da corporais, fato que os leva a conduzir a criação de uma linguagem expressiva estética determinada numa prática corporal sem fronteira, em que o ato criativo viva e única. é desvelado como atitude e objetivos determinado pelo espaço, e o próprio Ao apreciar o corpo negro (Figura 2) em atos performativos, artísticos e modo de elocução do corpo, em alternância com uma modernidade e culturais, é importante considerar os hábitos e costumes herdados, do ancestralidade ali registrada. Tudo isso e uma espécie de embate ―narrativo‖ ambiente cultural em que vive. Um corpo que sob efeito da presença e do olhar corporal, nas relações de uma sociedade, afirmando assim a criação/recriação do outro, busca-se "dilatar" (BARBA: 1995), físico e mentalmente, em cena: artístico e cultural, com todo respeito aos elementos e as estruturas primordiais corpo e mente dilatada em interdependência recíproca. da tradição da diáspora africana. [...] Cada contexto cultural tem regras quanto ao que é permitido exibir. Diante do exposto fica claro o quanto é intensa a exploração do corpo, O corpo ora é manipulado do exterior, ora comanda a si próprio. Ou é, então, que em situações prazerosas, lúdicas, ritualísticas e ou de divertimento, "agido" pelos outros ou age por si mesmo. Às vezes, está centrado em si

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Outras Artes configuram em verdadeiras experiências, desmistificando qualquer atitude ou ação de manipulação ou virtuosismo da performance corporal, onde ao movimentar-se no espaço e no tempo definem os atos artísticos. Corpos em performatividade, ―atos‖ artísticos e culturais elaborados e ou restaurados a partir de motes afro-brasileiros, revela uma expressão singular, como referência para a construção da identidade étnico-racial e a organização dos afro-descendentes dimensionada ao povo que residem naquela comunidade. As festas, as comemorações, e as apresentações de um modo geral, sempre prestigiado por todos, até por aquele que é visitante. Um fazer artístico que comunga de uma história de sofrimento e resistência, apresentada pelo performer identificando e ordenando sua relação com o espaço artístico-cultural e social num momento contemporâneo. A atualização pessoal dos elementos codificados e a composição de linguagens expressivas distintas promovem a vitalidade dos participantes, que em sua maioria se entregam nesse fazer com vigor e doação integral, demonstrando agilidade, criatividade, expressividade, e ritmo, na tentativa de apreender e responder a mítica da kinesthesica7, convidando a todos os presentes para ser também o criador desse momento espetacular. Podemos dizer então que toda a pratica artística e cultural desenvolvidas na comunidade de Monte Alegre seguem semelhantes modos da experimentação física, concreta e harmônica em que buscam adaptar sempre as criações individuais com trabalho comunitário. Manifestações que sempre, inovam, encantam o público ao viabilizar os valores dos seus gestos e movimentos, das encenações e possibilidades de exploração no qual mente e corpo se harmonizam. Nesse processo os atuantes fazem uso da reflexão e da elaboração no fazer/entender tanto a estética e a cultura afro-descendente na tentativa de compreender/perceber seu próprio processo e o meio em que está inserido. Para poder apreciar as diferenças existentes e buscar uma harmonia ou uma ―paralela‖ nas manifestações da comunidade, em que através da coletividade é possível expressar de modo singular a sua vinculação ao social, garantindo a multiplicação de saberes ancestrais num corpo, elocução de princípios estéticos, onde todos da comunidade possam conhecer aprender e desenvolver os valores culturais afro-brasileiros e a história de Monte Alegre. É bom lembrar que muitas das vezes, diante do movimento de sustentabilidade, possa parecer que pretende com esse movimento o desaparecimento de raízes africanas, no entanto busca-se com tudo isso a consciência de que as dinâmicas trazidas pelos africanos se afirmam tão poderosas numa comunidade quilombola na contemporaneidade que parecem seduzir a um numero cada vez maior de performers locais interessados em descobrir suas linguagens, originária da diáspora Africana e desenvolvidas por afro-brasileiros e simpatizantes, promovendo assim visibilidade negra. Sendo assim é visível o aumento da auto-estima, dos quilombolas de Monte Alegre até pouco tempo chamado pejorativamente de ex-escravos. Envergonhavam-se de serem quilombolas e hoje tem orgulho de serem negros, a valorização da cor, da raça e dos hábitos e costumes de Monte Alegre, efetivados num corpo, elocução de princípios estéticos ancestrais e revelados em atos artísticos e culturais como referência para a construção da identidade étnico-racial. Um fazer, um expressar, e um conhecer que comunga de uma história de resistência num momento contemporâneo. NOTAS 1

Monte Alegre, Zona Rural de Cachoeiro de Itapemirim no sul do Espírito Santo. Comunidade que tem hoje pouco mais de 600 moradores, a maioria negra remanescentes de quilombos. 2

“Tudo que é visto como que fazendo parte de um conjunto posto à vista de um público. O espetacular é uma noção bastante fluida, pois, como o insólito, o estranho e todas as categorias definidas a partir da recepção do espectador, ela é função tanto do sujeito que vê quanto do sujeito visto.‖ (PAVIS, 2003:141) 3

Conceito desenvolvido por LIGIÉRO, (Prof. Dr. do PPGAC-UNIRIO, Coord. do Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias – NEPAA) a partir dos estudos das práticas performativas Afro-Brasileiras. 4

Sustentabilidade é um conceito sistêmico, relacionado à continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais da sociedade humana. A sustentabilidade abrange vários níveis de organização, desde a vizinhança local até o planeta inteiro. Para ser sustentável, um assentamento ou empreendimento humano, necessita atender a quatro requisitos básicos, ser: ecologicamente correto; economicamente viável; socialmente justo; e

culturalmente aceito. 5

Utilizo esse termo seguindo o que Schechner nos fala: ―Performance são feitas de pedaços de comportamento restaurado, mas cada performance é diferente das demais. Primeiramente, pedaços de comportamentos podem ser recombinados em variações infinitas.‖ (O PERCEVEJO, 2003:28) 6

“O Performer, ao contrário, é também cantor, bailarino, mímico, em suma, tudo o que o artista ocidental ou oriental, é capaz de realizar (to perform) num palco de espetáculo. O performer realiza sempre uma façanha (uma performance) vocal, gestual, ou instrumental, por oposição à interpretação e à representação mimética do papel do ator.‖ (PAVIS, 2003:284) 7

―A kinestesia (ou cinestesia) é a percepção consciente da posição ou dos movimentos e de seu próprio corpo graças ao sentido muscular e ao ouvido interno. O nível kinestésico diz respeito à comunicação entre atores e espectadores, como, por exemplo, a tensão do corpo do ator ou a impressão que uma cena pode causar ‗fisicamente‘ no público.‖ (PAVIS, 2003:225-226)

BIBLIOGRAFIA ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org). Representações Performáticas Brasileiras: Teorias, práticas e suas interrfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. BARBA, Eugenio. A arte secreta do Antropologia Teatral. Campinas: HUCITC, 1995.

Ator:

Dicionário

de

BRAVIN, Adriana; SANTANNA, Leonor de Araújo; OSÓRIO, Carla. Negros no Espírito Santo. Espírito Santo: Escrituras, 1999. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001. FONSECA, Hermógenes; MEDEIROS, Rogério. Tradições populares no Espírito Santo. Vitória: 1991. GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003 PRADIER, Jean-Marie. Ethnoscélogie: la profondeur des émergences”, Internationale de I’imaginaire. N° 5 Paris: Maison des Cultures du monde, Babel, 1996. REVISTA DE TEATRO, CRÍTICA E ESTÈTICA. O Percervejo. Rio de Janeiro: P.P.G. T UNIRIO: Ano 11, n12, 2003. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2003. SANTOS, Cláudio Alberto dos. Dança Moçambiqueira – liturgia do corpo/espaço/tempo. In: Performance Afro-Ameríndia – Revista apresentada no IV Colóquio do NEPAA: memória e identidade, UNIRIO. Ano 4 nº 4, p.81 a 95. Rio de Janeiro, 2007. SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. Philadelphia: The University of Pennsylvania Press, 1985. ____________________. Performance: teoría y prácticas interculturales. Buenos Aires: Rojas: UBA, 2000. TEIXEIRA, João Gabriel L.C., et al (Org). Patrimônio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília: ICS-UnB, 2004. TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ publications, 1988.

Sobre a autora: Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, Mestre em Teatro e Graduada em Pedagogia. Diretora de Teatro enfocando o teatro na educação e o teatro universitário e Professora do Centro Universitário São Camilo - Espírito Santo nas áreas de Pedagogia, Psicologia e Comunicação Social. Desenvolve pesquisa na área de Práticas Performativas em comunidades de periferias ou rural dos centros urbanos no Espírito Santo. L

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Ensaio

O autor pode, um dia não regressar, a obra nunca partirá Ensaio sobre a obra “O Regresso do Morto” de Suleiman Cassamo Japone Arijuane - Moçambique

D

iz o provérbio Árabe: As mãos perecem, não as obras, bom, literariamente, estamos perante a uma dessas obras; onde o protagonismo, individual, do escritor engole-se pela tamanha proporção da obra. O autor dO regresso do Morto pode mesmo, um dia, não regressar, mas O Regresso do Morto, a obra, nunca irá partir. Mas estas duas identidades, aliando-se a terceira, à do leitor (leitor preciso), aliás há palavras para isso: Tríade: estas três identidades, dentro da significação dos signos linguísticos que ultrapassam a própria linguagem, revelam-se, não só, como nos ensina o Pirce, significado, significante e objecto, encontram aqui nesta obra uma harmonia, mas em leitores precisos e capazes com sensibilidades poética. Essa interpretação deve e pode ser entendida pela contextualização completa da obra e o seu meio: desde o espaço geográfico, o tempo histórico e as dinâmicas sociais deste tempo, aliás como nos diz António Ferreira (p.24):

Embora uma obra possa ter valores por si próprios, desligado do seu autor, não há duvidas que o contexto sociocultural explica e ilumina muitas das suas denotações e conotações.¹

Na verdade a obra sugere-nos uma visão altruísta, profunda, onde o autor concebe à sem nenhuma intenção, aliás como diz o Francisco Noa: ―a intenção literária é uma questão individual, que floresce na medida que desfolhamos o livro, não do autor; a literatura que é feita com intenção, qualquer que seja, perde-se no tempo. Na literatura cada sentença é uma intenção literária, por vezes o crítico surpreende o autor com a intenção literária da obra”.² Sendo assim, dir-se-á que a interpretação e compreensão dos signos desta obra baseia-se, legitimamente, na descodificação dos factores imanentes a obra, tais como o tempo histórico, espaço geográfico, e as dinâmicas sociais, as quais influenciam, na reconstrução da espinha dorsal da narração destes contos que mesmo na medida que passa o tempo, não se acrescentaram pontos. Mas a consistência narrativa, destes contos, até certo ponto remete-nos a ideia de um romance, se o critério disso for o tempo e espaço. O Regresso do Morto abre uma problemática complexa, desde a formalidade literária, a contextualização do factor literário, descrevendo paronimicamente, de forma realista, os conflitos sociais: de classe e de ecossistemas (campo e cidade), político-económicos, e vai, de certa forma, romper a moral socialmente dogmática, salvaguardando uma vanguarda utópica de libertação das camadas socialmente oprimidas, nas quais a mulher assume o protagonismo. Para todos efeitos, dir-se-á que estamos perante a uma fotografia fiel da

realidade social do tempo histórico, onde o autor tenta ironicamente sensibilizar-se com estas camadas desfavorecidas, acima referidas, que a mulher pela sua condição, oprimida, acaba sendo a personagem principal de maior número de contos aqui compilados. Ora vejamos as complexidades problemáticas: Primeiro a formalidade literária: a obra rompe com os cânones, as regras puristas do português europeu, abrindo aqui uma nova forma, que talvez não seja esta obra a pioneira, mas a forma como são colocados os diálogos, numa autêntica força vanguardista, transgredindo, primeiro, com as normas gramáticas, e no que tange a própria escrita, transcrevendo as marcas todas da oralidade para escrita, e com o acréscimos tão e quanto dos empréstimos linguísticos, talvez com a não intenção de cristalizar uma moçambicanidade, mas com o propósito de uma melhor interpretação e compreensão; este fenómeno pode ver-se quase que em todos os contos, um português, não moçambicano como diz a Ana Maria Gonçalves Perpetua, mas mais do que isto, um português que deixa a desejar, sem tirar o mérito

O Regresso do Morto abre uma problemática complexa, desde a formalidade literária, a contextualização do factor literário, descrevendo paronimicamente, de forma realista, os conflitos sociais: de classe e de ecossistemas (campo e cidade), político-económicos, e vai, de certa forma, romper a moral socialmente dogmática 20 | 26 de Abril de 2013


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Ensaio cómico da coisa, pode se ler:

(…) Assim é vida? Insultos sempre-sempre, trabalhar todo o dia do xiquembo³ parece burro de puxar nholo⁴ muito burra assim parece mesmo boi de puxar charrua (…)

Mas aqui frisar que esta fragmentação da formalidade não põe em causa o enredo e mais, ajuda a interpretação, como já o disse antes, tendo em conta o meio rural onde decorre a narrativa ou mesmo em meio urbano com personagens rurais. Isto vai até certo ponto sustentar a questão dos conflitos sociais de um lado rural que entram em contrastes com meio urbano, argumentos a isto inundam nas falas dos personagem na medida que estes tentam urbanizar-se tendo como primeira obrigação falar o português, isto dá no que pode ler na obra, um autêntico atropelamento gramatical. Mas isto não só se manifesta na forma mas também no conteúdo, exemplo concretos a isso são os contos: “Vovô Felina” e “Madalena, Xiluva do meu coração”, onde vive-se um verdadeiro contraste de mundo (Rural e Urbano). Os eventos político-económicos ficam claros na medida que não se testemunham relatos de presença colonial, mas por outro lado a uma luta de sobrevivência, catalisada pelas políticas do tempo, das reformas sociais, como as bichas de pão, que se exaltam no conto “Laurinda tu vais mbunhar‖, mostrando claramente que tratava-se de tempos pos – independência, o tal das reformas, tempos das cantinas e aldeias comunais, em que tudo era adquirido de forma colectiva, pois o regime, dessa altura, era o socialismo.

mais imigrada para as minas da África do sul, aliás este facto é motivador d‘ o regresso do suposto morto que realmente vivo e trabalhador nas minas sul-africanas, não só, como motiva o título da obra. Esta obra é e será, realmente eterna, pois o investimento poético feito na composição engrossado por uma tamanha sublimação literária que faz dela uma verdadeira obra, sui generis, única no mundo literário moçambicano, partindo do princípio que este género (conto) é pouco explorado, que se diga, sem bases categóricas que estamos perante a um clássico da literatura moçambicana, uma que conseguirá por si só sobreviver no tempo e no espaço, com a mesma expressão original, a expressão moçambicana. É casos para dizer bem-haja o espírito criador. Bem-haja o morto que regressou.

NOTAS

¹FERREIRA, Antonio. CASTRO, ²Francisco Noa, in palestra na Livraria Minerva, 27 de abril de 2012. ³Deus ou feitiço ⁴Carroça

BIBLIOGRAFIA NOA, Francisco. 2002, IMPERIO, MITO E MIOPIA, Moçambique como Invenção literária, ed: Caminho, Lisboa - Portugal FERREIRA, 1889, António. CASTRO, ed: Ulisseia, Faro - Portugal ARISTOTELES, Arte Retórica e Arte poética, ed: EDIOURO, SP - Brasil

Por último, no que concerne ao rompimento com as praticas aceites socialmente, como por exemplo a submissão feminina, isto evidencia-se constantemente, não só numa Laurinda que vai em busca de pão, mas também num a Nyelete que vê-se obrigada a acasalar-se com um homem muito mais vejo do que ela, só pela coesão social e caprichos do pai. A obra traz a superfície a submissão grossa que a mulher passa, que lamentavelmente continua passando, isto remete-nos a uma análise verosímil, inibindo a possibilidade da ficção, mostrando-se similar a certos aspectos e traços característicos do espaço social e que a partir das quais vão engendrar o espaço geográfico, processo este que Platão designou por Mimese.

De uma forma particular encontramos, nesta obra, uma preocupação de afirmação da submissão, não só das camadas desfavorecidas, mas sim do moçambicano, no lugar e o tempo exacto. Fica no subentendido da obra, isto é, não explicito, a questão: o que podemos nós como moçambicanos (do sul principalmente) em Moçambique? Poder no sentido de sobrevivência social, com uma sociedade cada vez

L

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Exercícios Finais

A hora dos Sobreviventes da noite e do Ualalapi

Temer (te) mer parqué ZINALDA, morte vai chegar Lily dos Amures - Moçambique

a Ao Eduardo Quive

T

empos se lá vão, que não vemos prosas a cavar covas, a cavar prosas ate a cavar noites desabitadas, tenho muito medo das noites, tenho muito, medo mesmo da mortes. As vezes paro e penso, para quê viver? Se temos de viver lamentações se apenas nenhuma canção que se pousa em palavras lindas como a de canções lindas da morte, e/ou mesmo não temos medo da morte? e/ou temos? Abrigo-me em perguntas SANTANHIOQUADAS que nem estas, lamentações da morte, Para quê? Se a morte é diferente da vida e sou vivera bem quem fazer diferença. Nas minhas/nossas noites do Niassa acordo as 00h:00 min, para ver as estrelas espalhadas pelo céu (In) alegres cantando soluções inexistentes para a vida que vivemos. São enormes estrelas, sem segredos de desabafar o bafo que inala as gargantas que se tem no além da vida que temos de viver fomegavelmente num futuro não muito promissor. Se vamos esperar . Quando me desperto vejo sensações sexuais fermentadas nos sutiãs e saiotes das menininhas ao lado da minha FENY. E já em tempos que passeio vejo dias e noites mornas sem colchões e almofadas molhadas de merdas amanhecidas do da anterior batalha antes da partida. Que sabor corpos (des) Kapulaneados! Maneira de viver. Das boas maneira meu confrade. Quanto me surpreendo ver rabiscos de lamentações de socorro, mas muito socorro de gritar adeus e um mas nenhum adeus sobre a virgindade. Para quê? Continuar viver viver ainda de limão si tivermos açúcar? Qual SATANA? Não os vejo sua mentirosa, será terá medo de tanto sabor? Desista de viver. Fornicação de merda? Desista de viver senhorilíssima. Eu mesmo gostava de ser a ―(…) senhora moça ao mundo desvirginado‖ e não só desvirginada, mas no meu dia da do (des)virginamento ate morrer no mesmo dia para ir ao alem sentindo sabor até a morte também ser saborosa (saborosíssima) , mas a senhora nada, lamenta, filha da (…) L

S

Izidro Dimande - Moçambique

r. Director, obrigado por ter mandado publicar esta minha saudação inicial ao Chico, como carinhosamente os amigos o chamam, e, Ungulani como a literatura o chama e mestre como eu o chamo. Na planície vasta de onde decorriam as batalhas erafrequente encontrarem-se restos de corpos de homens sem vida e restos de vida dos animais sem pastos e pastores que pegaram em armas de escritas e se dirigiram a majestosa assembleia dos escribas. Ao som do chicote de rabo de raia, o escriba dilacerava as imagens da civilização, e questionava os detalhes do relatório e da vida a querer dar ao reino dos escribas, transmitindo aos seus os ensinamentos de hoje. Hoje chegou a vez dos sobreviventes e outros contos reinar na majestosa casa da leitura e escrita nacional. O ritual estavafeito quando Francisco Esaú Cossa tomou as rédeas da Associação dos Escritores Moçambicanos na manhã em que o voto tornou-se a única arma da modernização que não impediu aos cheios de esperança escreverem seu nome em letras bens gravadas e indeléveis. O chefe da assembleia, nome que levou acerimónia na manha lusco-quente nas terras de Ka Maputo entre os membros do vasto reino que a AEMO ocupa, anunciava a sua vitória numa das batalhas mais frescas que seus guerrilheiros chefiados por Ungulani não temeram asarmas dos seus adversários. O rei ou hósi como vem descrito numa das suas obrasliterárias, fará deste mandato o alicerce entre as pontes literárias pósindependência e pós-cheias (não achei um período exacto para comparar as duas gerações literárias, o pós-cheias é o período em que eu comecei a conhecer os clássicos literatas, comecei a furtar livros na biblioteca do meu tio, comecei atreinar sem parar a grafia literária, comecei a estudar nas escolas de hoje a literatura – hoje fala -se duma literatura juvenil de grande enredo e drama, não serão estes jovens do pós-independência!) em que muitos coetâneos reclamam seu espaço nesta arte gráfica. E ai, todos exaltaram de alegria na manhã em que isso aconteceu e chamaram nomes de verdade ao novo hósi desta casa que todos a frequentamos com esperança de possuir um cartão e lugar na prateleira da escrita. O mestre Ungulani, tem o dever de voltar a acender a luz das tardes literárias que há muito nos fugiram, quando acotovelávamo-nos entre jornalistas, escritores, amantes em jornalistas e escritores, estudantes disfarçando o seu conhecimento literário nos dias de pesquisa, falando do estado em que nos encontramos como país e nação, tem o dever de devolver os livros que as prateleiras do pósindependência da AEMO já não vemos, tem o dever de dar continuidade a projectos dos mutumes deixados em papeis que enlouqueceram Manua. Assim como, tem o devolver dos infices a sua arte de caçar talentos e patrocínios para mais publicações dos seus membros que encheram as gavetas com estorias de matar abutres em tempo de fome e solidariedade, em tempos de orgias e loucos espantos. Há um provérbio que sepode empregar nesta espantosa aventura: A ntchele wa mamba ya yala ku tchela, a ku hlometela va hlometela (não se cava o buraco da mamba, mas pode-se espreitar). Aplica-se para animar alguém que vai fazer um pedido a uma pessoa com fama de má. Quase tem a certeza de não ser atendido. Mas sim detentar. Nada perde em experimentar. E tem, o mestre (co-fundador da Charrua), um só direito, de ser o novo secretário-geral da AEMO. L

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