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Avenida São João, em São Paulo, após seu alargamento ocorrido entre 1912 e 1917. C i r c u i t o s
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I N T R O D U Ç Ã O
Abrindo caminhos Espraiada entre três maciços, por onde as matas das florestas se fecham, com planícies banhadas por quilômetros de praias, agraciadas por frescas lagoas e clima ameno, a cidade do Rio de Janeiro se apresenta em contínua beleza, apesar de todas as alterações feitas em seu sitio natural e das demolições de parte de seu patrimônio histórico. Foi essa cidade que, em 1933, com a edição do Primeiro Prêmio Internacional da Cidade do Rio de Janeiro, no Circuito da Gávea, pôs o Brasil no roteiro internacional das corridas automobilísticas. O Circuito da Gávea, conhecido como “Trampolim do Diabo”, tornou-se o grande marco na história do esporte motorizado da América do Sul. A primeira corrida brasileira, contudo, aconteceu em terras paulistas, em 1908, onde foi vitorioso o conde Sílvio Penteado, descendente de um bandeirante da antiga Vila de São Paulo de Piratininga. O automobilismo brasileiro na primeira metade do século XX viveu uma época em que as corridas ainda não haviam sido trancadas em autódromos, pela simples inexistência de pistas fechadas. Na falta destas, era nas ruas e estradas que os duelos sobre rodas eram disputados , principalmente nos Estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo, além, é claro, do Rio, então Distrito Federal. O primeiro autódromo do Brasil – Interlagos – foi criado somente em 1940, na cidade de São Paulo, uma iniciativa privada de Louis Romero Sanson. Daí, passou-se uma eternidade até que fosse construída uma segunda pista – a de Jacarepaguá – na cidade do Rio de Janeiro, em 1966. Entre uma inauguração e outra, houve algumas tentativas de implantar autódromos, como o de Adrianópolis, no município fluminense de Nova Iguaçu. Era um circuito projetado pelo ilustríssimo arquiteto-urbanista e piloto automobilístico Sérgio Bernardes, em 1954. No local, porém, foram editadas apenas algumas poucas provas sobre piso não-asfaltado. Uma outra tentativa de construção de autódromo se fez no bairro Jaquaré, na cidade de São Paulo, em 1936. Acima, vista geral da Quinta da Boa Vista, antigo Paço de São Cristóvão, na então capital federal, Rio de Janeiro. Este local foi palco de inúmeras competições automobilísticas, nas décadas de 1940 e 1950. Ao lado, o Maciço da Tijuca da também conhecida como “cidade maravilhosa”
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Ao lado, vista do Parque Dom Pedro II, na cidade de São Paulo, que no início do século XX começou a ganhar ares de metrópole
Ao término do século XX, o Brasil dispunha de, vários autódromos oficiais, como os de Goiânia (GO), Guaporé (RS), Tarumã (RS), Brasília (DF), Curitiba (PR), Cascavel (PR) e Fortaleza (CE). Alguns Estados contam também com autódromos não-asfaltados: como em Santa Catarina, por exemplo, onde ainda existem nove pistas de terra. De 1908 a 1958, exceto as provas editadas no Autódramo de Interlagos, os circuitos automobilísticos de porte nacional utilizaram logradouros urbanos ou estradas como palco para disputas de distintas modalidades automobilísticas. Além dos Grandes Prêmios de cada cidade, havia, por exemplo, subidas de montanha, reides, provas de quilômetro lançado e quilômetro de arrancada. As provas abrangeram diversas categorias, entre elas as de carros esporte, adaptados, monopostos, bipostos, mecânica nacional, força livre e esporte turismo. As primeiras corridas no mundo foram do tipo “cidade a cidade”, em percursos que abrangiam muitos quilômetros. A partir de 1894, a França promoveu corridas como a Paris–Rouen (de 126 quilômetros), considerada a primeira prova automobilística da história. No fim do século XIX, a França havia atuado como centro de exposição dos inventos mundiais, sendo Paris considerada a capital cultural do mundo. As corridas de bólidos movidos a gasolina, vapor ou eletricidade não poderiam ter um outro berço, senão o francês. Com o passar do tempo, veio a tendência de encolher o trajeto dessas provas. No início do século XX, as corridas passaram a ser desenvolvidas em torno de um determinado percurso, com um número de voltas decidido a priori, que os pilotos deveriam completar no menor tempo possível. Eram provas de velocidade. Um desses primeiros circuitos fechados de estrada foi o Course du Catalogue, com duas voltas, em 1900. Anteriormente, em 1898, a prova de Périgueux havia transcorrido em uma única volta de 145 quilômetros. Essas primeiras corridas francesas, denominadas Grands Épreuves (grandes provas), já tinham uma espécie e classificação por categorias, ainda que rudimentar: basicamente, dividiam os competidores entre carros de dois e de quatro lugares. A partir de 1900, as divisões passaram a levar mais em conta o desenvolvimento de motores. Com base na tecnologia que ia se aprimorando, foram formulados novos regulamentos.
Em 1935, era forte o desejo de construir um autódromo no Centro Industrial Jaguaré, na cidade de São Paulo. Mas o primeiro autódromo brasileiro foi inaugurado somente no dia 12 de maio de 1940, o Autódromo de Interlagos. Abaixo, foto desse dia histórico
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Na foto ao lado, o presidente Getúlio Vargas (ao centro), tendo a seu lado o padre Olimpio de Melo, grande entusiasta do automobilismo. Abaixo, Antônio Prado Júnior, um dos fundadores do Automóvel Clube de São Paulo, em 1907
As Grands Épreuves deram início às provas de Grand Prix (grandes prêmios) em 1920. As evoluções naturais foram o surgimento do Campeonato Europeu, em 1931, dos Campeonatos de Fórmulas, e, a partir de 1950, das provas de Fórmula-1. No Brasil, os organizadores das primeiras corridas procuraram seguir os moldes das Grands Épreuves européias. Também houve uma grande influência das regras elaboradas pelo Automobile Club de France (ACF), cujos regulamentos também regiam associações de automobilistas de outros países. Fundado em 1895, o clube francês foi um dos principais responsáveis pela promoção de provas internacionais até 1950. A liderança começou com o Prix Internationale (1900-1905), criado quando o ACF recebeu de James Gordon Bennett Jr., bon vivant e proprietário do New York Herold, um troféu para ser disputado anualmente por automobilistas de diversos países. Em 1906, o ACF criou – e liderou - a Commission Internationale, que preparou os regulamentos para as Grands Épreuves. Em 1922, as agremiações se reuniram na Association Internationale des Automobile Clubs Automobile Club de France
Reconnus (AIACR), que apresentou uma subcomissão denominada Commission Sportive Internationale (CSI). Esta tinha a missão específica de formular as normas para as provas de GP internacionais. A atuação da AIACR ficou extremamente restrita após 1939, por causa da Segunda Guerra Mundial. No fim de 1946, a Fédération Internationale de l’Automobile (FIA) substituiu a CSI, assumindo suas atribuições. Para a promoção do esporte automobilístico, foi fundado no Rio de Janeiro, em 1907, o Automóvel Club do Brasil (ACB), que seguia as normas do ACF. Era uma iniciativa do sr. Pereira Carneiro, logo entronizado primeiro presidente da associação, cuja sede hoje situa-se no palacete da Rua do Passeio, 90, de frente para o belo Passeio Público, com vista para o mar e próximo à Escola Nacional de Música, um sítio onde outrora existira a Lagoa do Boqueirão. Mas o automobilismo no Rio sempre
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enfrentou resistência por parte da municipalidade. Poucos foram os governantes que prestigiaram as corridas – algumas raras e honrosas exceções foram os prefeitos Antônio Prado Júnior (1926-1930) e Padre Olímpio de Melo (1936-1937), assim como o presidente Getúlio Vargas, que investiram politicamente no desenvolvimento do esporte motorizado, propagando internacionalmente as pistas cariocas. Desde a gestão do prefeito Saturnino Braga (1986-1988), a cidade ficou fora dos circuitos internacionais e poucos são os campeonatos realizados no autódromo Nelson Piquet. Em 11 de junho de 1908, foi fundado o Automóvel Club de São Paulo (ACSP), com uma sede provisória na Casa Martinico, sala 7, Rua São Bento, próximo do Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado. Entre seus fundadores estava Antônio Prado Junior (o mesmo que viria a se tornar prefeito do Rio), Silvio Álvares Penteado, Clóvis Glicério, José Paulino Nogueira, Bento Canabarro e
Acima, o automóvel, como elemento novo na sociedade, inspira o nome e a logotipia de uma revista em 1907
Numa de Oliveira. Associados ao Automóvel Club do Brasil, os gaúchos fundaram o Automóvel Club do Rio Grande do Sul, em 1953, e José Rimoli foi seu primeiro presidente. Em 1926, a presidência do Automóvel Club do Brasil passou para Carlos Guinle, que, juntamente com o barão Raymund Backx van Buggenhout, filiou o ACB à AIACR. Nos anos 30, iniciaram-se as provas internacionais do GP da Cidade do Rio de Janeiro, no Circuito da Gávea, cujas edições passaram a fazer parte do calendário automobilístico mundial. Além dessa prova, o ACB promoveu outras disputas reconhecidas como GPs internacionais – assim foram os GPs da Quinta da Boa Vista, no Rio, e, em seguida, os GPs da Cidade de São Paulo, em Interlagos. A contribuição desses homens, aliados a outros notáveis como Manuel de Teffé, Sábado D’Ângelo, Norberto Jung e Primo Fioresi, entre outros, permitiu criar os alicerces de uma tradição automobilística no país. Em 1929, a primeira prova brasileira da modalidade Subida de Montanha ocorreu na estrada Acima, cartaz promocional de uma prova no Circuito da Gávea, na década de 30. Ao lado, trecho da Avenida Niemeyer, uma fantástica vista deste circuito, que também ficou conhecido como o“Trampolim do Diabo”
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Rio–Petrópolis, inaugurada um ano antes pelo presidente Washington Luiz. O vencedor foi Irineu Correa, pilotando um Studebaker. Outros percursos também foram utilizados para esse tipo de corrida, como a Subida do Alto da Tijuca, no Rio, e a Subida Estrada Velha de Santos, em São Paulo. Esses desafios motorizados contaram com a participação de pilotos como Hans Stuck, Manuel de Teffé, Júlio de Moraes, Rubem Abrunhosa e Irineu Correa, um dos maiores incentivadores desse tipo de disputa. A caricatura foi um recurso gráfico muito utilizado por jornais e revistas no início do século passado. Artistas como Raul Pederneiras, K. Lixto e J. Carlos reproduziram, com muito talento, as mazelas do dia-a-dia, em revistas humorísticas como Fon-Fon, Careta e O Malho
As provas cariocas de Quilômetro de Arrancada e de Quilômetro Lançado também tiveram início na década de 20. Eram realizadas em logradouros afastados, como a então bucólica Avenida Vieira Souto, a estrada de São Conrado ou a Rio–Petrópolis. Posteriormente, passaram a acontecer também em São Paulo, sendo que as principais corridas eram na Avenida Brasil e em Cumbica. Chico Landi, Nascimento Júnior, Irineu Correa, Prado Júnior, Primo Fioresi e Benedito Lopes eram os pilotos mais destacados. O Quilômetro de Arrancada consistia em percorrer mil metros no menor tempo possível, sendo que a partida era dada com o carro parado. Já o Quilômetro Lançado media o tempo gasto entre dois marcos previamente estabelecidos, com o bólido já em movimento. As principais provas brasileiras disputadas em perímetro urbano ocorreram no Circuito da Gávea e no da Quinta da Boa Vista. Essas duas competições oficiais internacionais foram extintas em 1954 e em 1957, respectivamente, e as corridas na cidade do Rio de Janeiro passaram a ser realizadas nas ruas da Barra da Tijuca, até a inauguração do autódromo. Outros sucessos cariocas foram as provas realizadas na orla marítima, desde a Ponta do Calabouço (perto de onde hoje fica o Aeroporto Santos Dumont) até o final da Praia de Botafogo: eram disputas como as do Circuito do Calabouço, do Morro do Castelo, da Praça Paris, da Amendoeira, de Botafogo. Houve também as provas no Circuito do Maracanã, na década de 50. No Estado do Rio, foram importantes os circuitos das cidades de Petrópolis, Nova Iguaçu e Volta Redonda. No interior do Estado de São Paulo, os municípios de Piracicaba, Pirajuí, Campinas e Araraquara tiveram um automobilismo muito forte. Mas foi o Rio Grande do Sul que teve o maior número de cidades promovendo provas automobilísticas na rua, como em Passo Fundo e Porto Alegre, com o Circuito do Cristal e Parque Farroupilha, entre outros. Essas provas gaúchas forjaram pilotos reconhecidos até internacionalmente, como Norberto Jung, Catharino e Júlio Andreatta, Breno Fornari, Aristides Bertuol, Orlando Menegaz e Diogo Ellwanger. Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Recife também promoveram provas em seus logradouros. Aos poucos, porém, esse tipo de corrida foi abandonado em função da falta de segurança para pilotos e espectadores. Além disso, as cidades cresciam, inviabilizando muitos circuitos. Em 1968, as provas de rua foram proibidas no país – com poucas exceções como Brasília, que pôde continuar com as disputas por mais alguns anos, em decorrência da modernidade de seu traçado viário. Hoje, alguns Estados da federação retornaram a editar alguns desses tipos de provas.
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As provas em estrada foram realizadas no Brasil, nas décadas de 30, 40 e início de 50. Seus percursos normalmente ligavam cidades de um mesmo Estado, mas também havia corridas que ultrapassavam divisas e até cruzavam as fronteiras. Graças à proximidade do Rio Grande do Sul com a Argentina e Uruguai, onde o automobilismo esportivo também era muito apreciado, foram promovidas diversas provas entre o Brasil e os países vizinhos. As “carreteras” gaúchas foram inspiradas em disputas homônimas argentinas. Um exemplo desse tipo de circuito era a Copa Rio Grande do Sul, percurso de 760 quilômetros que partia de Porto Alegre e passava por Canoas, São Leopoldo, Caxias do Sul, Vacaria, Passo Fundo, Guaporé, Bento Gonçalves e Farroupilha até retornar à capital do Estado. Era um risco tanto para os pilotos, quanto para os usuários das estradas, pois geralmente essas provas eram disputadas sem que houvesse interdição ao tráfego normal. As provas de regularidade no Brasil mantiveram tanto a denominação inglesa – rallye – como também os regulamentos básicos, em que o piloto acompanhado de um navegador recebe uma planilha com indicações da média de velocidade a ser cumprida em cada trecho da prova.
Trecho da pista do Circuito do Calabouço, o Palácio Monroe, o Obelisco, o Morro do Castelo, pouco antes de ser demolido, e o inicio da Ponta do Calabouço
As precursoras dos ralis foram as provas do tipo Raid (reide) na década de 20. Com rotas que iam de cidade em cidade, alguns reides receberam primárias marcações de tempo. Pode-se dizer que eram mais para passeios turísticos do que competições propriamente ditas. Os reides eram freqüentes em terras bandeirantes, como as provas São Paulo-Ribeirão Preto (1925). Em 1920, sob os propósitos de ampliar melhorar a aeração e o saneamento da cidade, ampliar o centro histórico e abrigar a Exposição Internacional do I Centenário da Independência, o então Prefeito do Distrito Federal, Calos César de Oliveira Sampaio fez promover o desmonte do Morro do Castelo, para a criação de uma grande explanada e as transformações na região do calabouço. Durante os festejos do Centenário da Independência, em 1922, ocorreu nessa esplanada uma
Casa do trem e a ponta do Calabouço
exposição de automóveis e uma prova automobilística, que ficou conhecida como Circuito do Calabouço. Esta prova contou com a participação dos pilotos Primo Fioresi, Cabino, Luiz de Moraes, e Júlio de Moraes, entre outros. O vencedor foi Primo Fioresi pilotando um Ford modelo “T”. A Casa do trem e a ponta do Calabouço, por conta do Calabouço, chamava-se a ponta de terra que entrava pelo mar separando a antiga Praia de Santa Luzia da antiga Praia do Manuel. Nessa área, desde o século XVIII, situava-se o conjunto arquitetônico formado pelo Hospital da Santa Casa de Misericórdia, Calabouço, e a Casa do Trem que também tinha acesso pelo Largo do Moura.
Acima, em 1922, o piloto Primo Fioresi no Circuito do Calabouço (atual Aeroporto Santos Dumont), o vencedor desta prova. À esquerda participantes do Raid Rio de Janeiro – Belo Horizonte, em 1924
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À direita, aspectos da primeira prova oficial ocorrida no Brasil, em 1908 C i r c u i t o s
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As primeiras Grandes Provas Brasileiras No início do século XX, ocorreram as primeiras Grandes Provas Brasileiras que se fizeram tal como as Grands Épreuves Francesas. Seus traçados compreendiam percursos de cidade a cidade ou longos trechos pelas ruas das cidades. O acesso ao automóvel, agregado ao crescimento populacional de vulto em curto período de tempo, provocou significativas transformações na maioria dos grandes centros urbanos do país. No Brasil, no período de 1891-1907, aproximadamente 600 carros foram importados, e de 1908 a 1913 esses número aumentou para 9.915 carros importados. No que se refere à cidade de São Paulo, em 1905, ela contemplava 25.976 prédios, abrigando 300.569 habitantes e 68 automóveis (1907). Em 1913, ela passou para 43.940 prédios, 460.261 habitantes e frota de 2.568 automóveis (1917). Em 1925, somente a cidade de São Paulo tinha uma frota de 12.970 automóveis. Assim como, no Continente Europeu e nos Estados Unidos, algumas cidades brasileiras passavam por mudanças de costumes e de valores da sociedade e acompanhavam o acelerado desenvolvimento industrial e tecnológico. E, ainda, ávidos por emoções, os brasileiros descobriam um novo prazer – a competição entre veículos motorizados.
Um dos primeiros carros a cruzar a linha de chegada na primeira disputa oficial envolvendo mais de um veículo, na corrida Paris –Rouen, foi este Peugeot, na França, em 1894