Historias de Beco - Atualizado

Page 1


HISTÓRIAS DE BECO Quando a poeira assenta, entrevemos rostos, punhos e corações

escritos e ilustrações sobre o maior complexo mercantil da cidade de Fortaleza, o “Beco da Poeira”


Universidade Federal do Ceará Instituto de Cultura e Arte Curso de Comunicação Social - Jornalismo Histórias de Beco: Quando a Poeira Assenta, Entrevemos Rostos, Punhos e Corações Autora: Mayara Carolinne Beserra de Araújo Orientador: Prof. Agostinho Gósson Banca Examinadora: Prof. Dr. Silas de Paula Prof. Dr. Ronaldo Salgado


“

Atirei - me ao mar mar de gente mar de gente


´

e o que eu mergulho sem receio,

´e

o que eu me sinto por inteiro. Mar de Gente, O Rappa



À família, proteção de todas as horas, Ao Dh, carinho de todas as horas, Aos amigos, ouvidos de todas as horas, Aos professores, mestres de todas as horas, E a Deus: aquele que é as horas todas.



sumário 011 introdução sobre Beco da Poeira, processo de produção e livro-reportagem

019 capítulo I o labirinto do ambulante no labirinto do tempo, uma interpretação da história

055 capítulo II uma primeira visita ou amigos de Beco

071 capítulo III o Beco em dias de sábado ou o Dia dos Pais carregadores

083 capítulo IV vida de sacoileiro ou o sustento a horas de distância

091 capítulo V rente ao chão ou a rua do por debaixo dos panos

103 capítulo VI cotidiano de Beco e o rap(p)a ou a trilha sonora também narra

121 capítulo VII as versões da mesma história ou onde está minha parte da verdade?

153 fechamento fim de beco e despedida

169 anexos informações da transferência, Termo de Ajustamento e fotografias



Introdução sobre Beco da Poeira, processo de produção e livro-reportagem



apresentação

R

egistrar o cotidiano de um espaço central, comercial e popular de uma cidade é praticamente entrevê-la em proporção menor, mas não menos dinâmica. Movimento, rede de relações e interesses, estereótipos, autonomia criativa e subversão são elementos identificáveis na bruma da correria dos mercados, em geral, existentes nas grandes cidades. Este projeto consiste na construção de uma longa reportagem a partir de relatos circunstanciais em crônica, conto, romance e entrevista, e de ilustrações jornalísticas a fim de captar esses tais elementos, esses sintomas do cotidiano urbano. A intenção é revelá-los, explicá-los ou simplesmente permitir que os leitores, indivíduos tão triviais e complexos quanto os envolvidos na reportagem, possam se projetar para a feira e conhecê-la em estrutura, personagens, rotina e problemáticas. O lugar é o Centro Comercial de Pequenos Negócios ou Centro de Pequenos Negócios de Vendas Ambulantes. O nome oficial não se conhece ao certo, o que não é um problema, já que o mercado é conhecido mesmo por Beco da Poeira, situado entre as praças da Lagoinha e José de Alencar, no centro de Fortaleza, capital cearense. Um dos maiores centros de comércio popular do Estado, o Beco da Poeira até 2010 era formado por duas grandes tendas contíguas, em ferro e amianto, que abrigavam 2.050 boxes organizados em cerca de 22 estreitas galerias, subdividas por gêneros comercializados: frutas e verduras, eletrônicos, miudezas e importados, calçados e confecções (grande maioria), artigos em jeans e as chamadas modinhas: blusas, saias e vestidos em malha fria ou radiosa, consumidas por clientes diversos, desde funcionários de outras lojas do Centro (que, muitas vezes, se recusam a comprar no estabelecimento em que trabalham


14 |

| Introdução

pela diferença significativa de preços) até sacoleiros de outros estados, que viajam centenas de quilômetros para reabastecer no Beco suas boutiques e barracas. Exemplo da capacidade de apropriação da cultura dominante, a moda do Beco consiste basicamente na transformação do que é consumido nas telenovelas e criações exclusivas das pequenas redes de confecções, baseadas em modelos “de marca”. Acessórios, roupas, cores, tendências, tudo é absorvido, reinventado e repassado ao freguês, que, muitas vezes, já vai ao Beco em busca desta moda previamente conferida na Tv e nos grandes shoppings. No contexto do livro, produzido ao segundo semestre de 2009, observaremos um Beco com os dias contados: existente há 18 anos, mas à beira da transferência. O Centro Comercial de Pequenos Negócios como era conhecido até abril de 2010 foi fundado em 1991, na gestão do prefeito Juraci Magalhães. No entanto, antes disso, o termo “Beco da Poeira” denominava um dos espaços mais perigosos do centro da cidade, lar dos “descuidistas e das prostitutas”, como diziam os jornais da época. Este era o Beco que se conhecia até 1987, quando a prefeita em exercício, Maria Luiza Fontenele, autorizou a demolição dos barracos que o constituíam. A ação fazia parte do mais novo programa de reforma do Centro: a operação “Reconquistando o Coração da Cidade”, que visava devolver à José de Alencar seu status de praça, retirando as paradas de ônibus (na época, o local funcionava como um terminal rodoviário) e os ambulantes, sobretudo os de carne e peixe, que davam ao espaço aparência e odor de mercado a céu aberto. As ações de Maria Luiza e de Juraci Magalhães foram duas das muitas tentativas de reorganização do Centro da cidade, comandadas por diversos administradores municipais. Na gestão de Luizianne Lins, mais uma tentativa foi posta em prática, motivada pela construção da Estação Lagoinha do Metrofor – projeto de metrô de Fortaleza, acordado desde Juraci Magalhães e apressado pela escolha


histórias de beco |

|15

de Fortaleza como uma das cidades sedes da Copa do Mundo, em 2014 . Segundo prefeitura e governo do Estado, a Estação que será construída onde está situado o Beco da Poeira precisa ser concluída em 2011, gerando novos sentimentos de apreensão e expectativas nos trabalhadores do Centro Comercial que, no período de apuração das reportagens, se preparavam para uma provável mudança definitiva, consolidada em abril de 2010. Como vivem os trabalhadores do Beco, como são seus dias, afazeres, preocupações, que histórias nos podem contar? Mais: o que pensam da mudança, da história do Beco? O que guardarão daquela estrutura, do aperto, do suor, do amontoado? E o que esperam do novo Beco da Poeira, fosse ele na antiga tecelagem na Avenida Imperador, como propunha a prefeitura, ou no “esqueleto” da Tristão Gonçalves, a construção inacabada feita com o dinheiro dos permissionários? Que novidades trará consigo o novo espaço e o que a organização e limpeza deste não será capaz de ofertar? Em suma, do que sentirão saudades? Muitas perguntas em tão pouco tempo e espaço. O objetivo, contudo, não fora apenas as respostas a estas perguntas, mas ainda o encontro com o acaso, com as circunstâncias imprevisíveis, berço autêntico da crônica. Para tanto, fui à feira como o estereotipado fotógrafo japonês, que com sua máquina ao pescoço, registra vorazmente tudo o que vê, a fim de que pudesse captar a maior quantidade possível de registros da feira, antes da transferência. A pretensão, pelo contrário, não fora necessariamente a correria nipônica, mas o olhar apurado e sensível, perseguido em seis meses de visitas frequentes ao Beco da Poeira, constituindo mais de 200 horas de vivência no objeto pesquisado, além do período de cerca de um mês e meio de consultas aos jornais da hemeroteca do Estado, na Biblioteca Menezes Pimentel. Um curto tempo para tanta história, sabe-se bem. Este compêndio é, contudo, um início, uma proposta de compilar a memória de um espaço da cidade. Estes escritos e ilustrações revelam-se, por fim, não à margem da história, contemplando as condições e circunstâncias em que


16 |

| Introdução

se desdobra o cotidiano do Beco, mas mergulha, imerge com eles, apresentando os protagonistas da reportagem como seres e situações inacabados, livros rabiscados, mas não definitivamente escritos. A história do Beco da Poeira e dos atores sociais que o constituem (inclusive membros das associações e prefeitura) está em marcha e este projeto caminha junto, tomando nota do possível. Breves considerações teóricas: pensando livro-reportagem Desde o advento da internet e de seus modos de interação e produção cada vez mais velozes, pesquisadores do campo da comunicação se perguntam o que será dos jornais impressos e, principalmente, dos livros. O fato é que, desde Gutemberg, percebe-se que a história das mídias está atrelada às revoluções tecnológicas, moldandose e reinventando-se a cada descoberta. As inovações no campo digital, mais perceptíveis a partir dos anos 90, vêm paulatinamente transformando os modos de fazer jornalismo, pois mudam também a forma como o público deseja receber a informação. Contudo, enquanto atualmente 140 caracteres são suficientes para informar as manchetes do dia, atualizadas a cada 20 ou 30 segundos, eles ainda não são capazes (e jamais o serão) de reportar com riqueza de detalhes descritivos e analíticos as nuances da notícia. É neste universo que se inserem os formatos ampliados – assim digamos – e, em especial, os livros-reportagem. Cabe a eles, neste contexto, receber as narrativas de grande porte, permitindo que se estendam na análise de perspectivas, nas descrições de ambientes e personagens, na apuração subjetiva dos acontecimentos, como resposta a esta tendência de informações por segundo, que sofrem consequentemente do vício da superficialidade. Os livros-reportagem, de modo geral, sempre foram suporte de experimentações em jornalismo, vide o uso dado às obras pelos adeptos do New Journalism, que geraram inclusive uma certa polêmica em torno do que é ficção e realidade. A proposta desta


histórias de beco |

|17

obra sobre o Beco da Poeira, em termos de teorias do jornalismo e de técnica de reportagem, é dar continuidade à ampliação dos usos de formatos e gêneros, inclusive fazendo emergir os debates para a construção de uma teoria dos elementos visuais - como o desenho, neste caso - enquanto suportes jornalísticos e não somente de editoração. Segundo a proposição deste trabalho, investir na produção do gênero livro significa, entre outros, comprovar a viabilidade de multilinguagens. O livro-reportagem pode e deve ser o lugar do conto, da crônica, da entrevista, do perfil, da poesia e das mídias visuais como as ilustrações e fotografias, formatos reunidos em torno do objetivo de reportar a história da vida humana com investigação, apuração, análise, pesquisa, maturação, condensação. Fazendo jornalismo a contra pelo, como diria Walter Benjamin. Assim, portanto, será visitado o Beco da Poeira. Por jornalismo, crônica, reportagem, entrevista, conto, ilustração, fotografia. Por olhos e ouvidos atentos, prestativos; por mãos ágeis, passos lentos e memória falante. Sigamos juntos esta história em marcha e esperemos juntos, como se espera em toda narrativa, um final feliz. Ainda que esta, sabemos, não tenha final. Boa leitura.



capítulo I o labirinto ambulante no labirinto do tempo - uma interpretação da história


A história do Beco, desde meados dos anos 80 até 2009, recontada através de um personagem fictício. A vida do Camelô funde-se à realidade por meio dos recortes de jornal, captados na hemeroteca de Fortaleza, e de suas falas: depoimentos reais de comerciantes antigos do Beco, revelados ao final do capítulo.


capitulo I

“Todo dia armava a barraquinha e tirava a noite. Demorava bastante. Lá era bom, a gente vendia bem. Era muito cansativo porque, quando chovia, as barracas se molhavam todas e dava muito trabalho. Montava de manhã cedo, ficava até quatro e meia, cinco horas...”

O

Camelô não aprendeu a montar barraca com ninguém. Viu talvez o pai ou a mãe, a vizinha amarrando as linhas de madeira, e aprendeu. Ou simplesmente já vinha armada e só se precisava cobrir ou. Disso não há nenhuma memória afetiva: montar barracas não fica, não marca, não é nada de mais. No fim das contas, diz-se que vida foi quem ensinou – quem mesmo, assim como se fosse gente. Foi ela quem ensinou: a montar, amarrar, botar a mesa, dobrar roupa, ensacar, vestir boneca, vender, desarmar e correr. Tudo o mais rápido quanto fosse necessário. O Camelô desse escrito é redigido assim, em letra maiúscula. Esse é seu nome, sua natureza arquetípica, pra que seja capaz de significar todos aqueles que, de certo modo, ao menos sob alguma perspectiva, com ele se identifiquem. O protagonista desta narrativa chama-se Camelô, Menino, Rapaz, e guarda nele, sobretudo nos depoimentos, marcas de muitos que, com suas vidas, deram-lhe forma. O Camelô é ficcional, mas sua vida não. Era novo quando começou a seguir o pai na venda ambulante. O produto eram sapatos. Por quê? Não havia motivos específicos. Àquela época, as sapatarias ainda resistiam, aquelas “de família”, em que se


22 |

| Capítulo I

pode levar o pisante para engraxar ou o tamanco para consertar o salto mesmo depois da compra; aquelas em que se aprontava uma costura no cabresto da alpargata e logo estava novinha em folha, supimpa, grau dez. Resistiam, mas os preços eram altos ainda para quem recebia poucos cruzeiros, cujos zeros davam a impressão de riqueza iminente, mas só impressão. Mesmo o caderninho – precursor do crediário, do boleto, do cartão de crédito – não impediu que os calçados fossem parar nas ruas, vendidos pela metade do preço. O primeiro ponto de venda que o Camelô, Menino ainda, conheceu foi a José de Alencar. O ano era 1985, tempo em que a praça era considerada o mais novo mercado concorrente do São Sebastião. O santo e o escritor direto no pau. No comércio ambulante, não há eleição de lugar. Se o dinheiro não permitia comprar meio metro de terra com o Sebastião, o instinto escolhia o Alencar – e o Conde D’Eu, e a Sé, e os Leões, e o Waldemar Falcão, e o General Bezerril e a Lagoinha, e. “Nós trabalhava no meio da rua. Trabalhava na José de Alencar. O rapa vinha, tirava a gente dum canto, depois voltava. Vinha eu mais uma vizinha que também tinha banca”. Na época, a praça era ainda terminal rodoviário. Centenas, milhares de pessoas circulando, para cima e para baixo, vindas de todos os cantos da Grande Fortaleza e reticências. Potenciais consumidores de quaisquer coisas: do chiclete ao utensílio doméstico, do milho cozido ao Cará-tilápia tratado na hora: tudo, absolutamente, se vendia. “Em todo canto era bom, viu, por que tinha dinheiro, caía dinheiro, vendia muito! Agora não, tem mais gente do que dinheiro, quase não vende mais nada. Aqui no Centro, todo canto é bom, onde botar é bom. Olhe, se você for um bom vizinho, você se dá em todos canto.”


Jornal O Povo - 26 de agosto de 1984


24 |

| Capítulo I

Na chusma de produtos, ali, beirando o teatro, estavam as barracas de calçados. Mas o Menino e o pai nem sempre tiveram tenda. Antes era só uma lona estirada no chão de cimento. O quadrado azul de plástico grosso demarcando as paredes da loja. E o Menino viajava naquela brincadeira imagética. “Pode entrar, senhora. Escolha aí. Deixe eu abrir a porta pra você”, ele dizia, e ia lá fingir que estava abrindo a porta. E o pai brigava, que atrapalhava os clientes. Mandava fazer qualquer serviço, que arrumasse as caixas, separasse os pares, que reparasse os moleques ladrões. Meninos não faltavam. A praça era cheia deles. Era a casa, o trabalho, o esconderijo. A maioria vendia bombom ou roubava coisas: o que vender e o que comer. Alguns estavam ali feito o Menino, com o pai ou a mãe ou um tio, e por completo ócio, vagavam. Vagabundeavam. Quando pequenos, era a falta do que fazer, quando maiores, vagabundear tornava-se o afazer deles, a profissão. O pai do Menino começou a montar barraca por isso, por causa deles. Os pequenos estavam crescendo, antes furtavam os clientes depois da compra. O pai do Camelô fazia o que podia: rogava apenas que não roubassem em frente a sua lona, fora dali era lá com os compradores. Mas o pezinho de chinela roubado na carreira, de pirraça, estava ficando para trás, era “café pequeno”. Logo estavam vindo buscar o outro pé. Logo a chinela dava lugar ao sapato social e tão mais logo alguém estirava outra lona de calçados não muito longe dali, vendendo uns sapatos e chinelos muito parecidos com os do pai do Camelô. A brincadeira virou roubo. Na barraca, suspensos, os sapatos pareciam mais seguros, além do que, o toldo protegia o couro do mocacim, já desgastado do sol e da chuva. Foi por volta daqueles anos que o ônibus pegou uma criança. Pegou vários, crianças ou não. Foi o alarde de que precisavam pra dizer que as barracas da José de Alencar não deixavam espaço para os passageiros, que se arriscavam esperando o transporte nas calçadas estreitas. O Menino, já Rapaz, leu no jornal a notícia, e viu


Jornal O Povo - 26 de agosto de 1984


26 |

| Capítulo I

que, escrita, a cena nem era tão feia quanto o que tinha visto. Mas fora feio. Quando viu a criança esmagada, quis botar fora a pouca comida do almoço, como quando era menor e passava mal nos lados da praça em que se instalavam os açougues a céu aberto. E sentiu as moscas gordas pousarem no corpo do menino feito pousavam nas cabeças de porco estiradas nas tábuas imundas de um vermelho e roxo imundos. Também a criança se tornara um rubro imundo, lavado depois da despedida do camburão. Passado o rodo, logo a vida voltava ao normal. Em 1987, a prefeita Maria Luiza Fontenele decidiu que era preciso tentar o que era de praxe em toda gestão: revitalizar o Centro de Fortaleza. O projeto chamava-se “Reconquistando o coração da cidade” e visava, principalmente, a reconstrução da praça José de Alencar e o reordenamento dos ônibus. O transporte coletivo seria distribuído entre as ruas do Centro, e os camelôs, o contrário: seriam reunidos em um espaço delimitado que chamariam Mercado Popular, construído no terreno da antiga Rádio Iracema, nas imediações da praça. Mas para reformar a Alencar, não podia haver feirantes. Para construir o Mercado, também não. O jeito era transferi-los todos, carregando barracas praça acima, terreno abaixo até que tudo estivesse reformado e limpo. Nessa procissão do comércio informal, o velho Beco emergiu do pó. De acordo com o planejamento, a Lagoinha receberia temporariamente os ambulantes enquanto reformavam o Beco da Poeira, este, por sua vez, seria mais um abrigo temporário durante a construção do Mercado Popular. O Rapaz não soube disso assim nesses termos. Soube, sim, do pai, que distinguiu duas ou três manchetes no burburinho, pros lados do açougue. De lá corriam as notícias, já que, quando fraquejava a clientela, os homens davam os facões às moscas e se valiam dos jornais de embrulho para distração. Naqueles dias, espalharam a história da transferência, lida no jornal de enrolar o peixe. Dessa vez, era possível que fosse sério.


(1) Caderno especial da administração municipal - 10 de dezembro de 1987 (2) Jornal O Povo- 10 de dezembro de 1987


28 |

| Capítulo I

“A época da Maria Luiza é a mesma de agora, só que tinha aquele sufoco, né, por que tinha aquele negócio do rapa bater em cima, querer carregar as coisas da gente, mas aí depois acalmou porque cadastrou todo mundo e pronto. Esse cadastro a gente ia fazer lá em cima, ia, botava o nome da pessoa e a gente ia lá pegar”. Às quatro e meia da manhã o cheiro do café forte acordou o Rapaz. O pai arrastava as alpargatas no chão de cimento. Era dia de cadastro. Ergueu-se, ainda zonzo, tentando explicar ao velho que os homens da prefeitura haviam marcado o sorteio para somente nove da manhã. O homem sacudiu-lhe, por pouco não lhe surrou as fuças. Que era preciso estar lá o quanto antes, que, ave Maria, perder uma vaga dessas, que o Rapaz não sabia de nada. Arrumaram-se calados, o pai, o Rapaz. A mãe na cozinha, também calada, corada da confusão, sacudia a borra escura no pano de coar. Cedo chegaram ao Centro. Na frente do Teatro, da prefeitura só havia mesmo um ou dois caminhões da Emlurb, responsável pela reforma da praça. Do cadastro, nada. Mas feirantes, sim, já aos montes, e o pai olhou torto o Moço. Em torno de 500 pessoas apareceram, deu no jornal depois, que noticiou ainda a agonia desses pobres todos: o que estava marcado para a manhã só aconteceu à tarde. Ficaram lá em pé, acocorados, do jeito que dava, em meio à poeira e à fedentina da praça, em plena reforma. Para aquele dia, péssimo mal entendido, estava marcado o desentupimento dos esgotos. José de Alencar e adjacências tomadas de um odor bolorento, abafado e “putrefato”, como disse o jornal, e, além dos funcionários da Emlurb, quinhentas pessoas precisaram conviver com aquilo durante todo o dia. Não fosse o Rapaz ter-lhe conseguido água e comida, o pai teria passado mal ali mesmo. E chegaram em casa ambos às custas de duas doses de cana para expulsar o fudum das narinas, a mãe reclamando do fedor empesteando a casa, que não sentassem no


(1) Jornal O Povo - 06 de novembro de 1987 (2) Diรกrio do Nordeste - 17 de novembro de 1987


30 |

| Capítulo I

sofá, que botassem as roupas para lavar. Mas no bolso da camisa, o papel precioso. Os dedos morenos, já enrugados, dobraram-no cuidadosamente e puseram-no embaixo da santinha de gesso antes de lançar a camisa à pia do quintal. No papel: área 01, alumínio, calçados, rede e artesanato; um metro e meio por um e meio. Cadastrado. O Beco da Poeira, nessa época, não era bem visto. Ninguém de lá era bem-vindo. Casa de homens e mulheres marginais, dos botecos 24 horas idem e dos cabarés idem ibidem, o Beco era mais um dos terrenos do Centro que, apesar de habitado, inventavam de chamar baldios. Para os comerciantes, a destruição do antro de fedentina, marginalidade e prostituição era toda a felicidade do mundo, para os 53 moradores do Beco, uma chance de recomeço – assim noticiaram os jornais à época. Aos 14 dias do mês de novembro, o Rapaz desamassou com cuidado o jornal de forrar sapato para ler a notícia. O povo parecia ter gostado. “Isso aqui era assim como um, você sabe como é um capoeirão? Pois era um campo limpo sem nada, um terreno baldio. É por isso que chama de Beco da Poeira, porque aqui tinha muita poeira, aí ficaram chamando”. “Pra lá tinha As Brasileiras, aqui era um terreno baldio fechado, tinha umas casinha de madeira, uma árvore, tinha umas paradas de ônibus mais pra lá, e uns barzinhos, e aqui no meio era como se fosse um quintal, o quintal das lojas, aí você entrava... Tinha uma casa de umbanda, depois teve um banco, um restaurante popular, mas também sempre teve essa parte que era cheia de casinha, como se fosse um quintal mesmo, tudo nesse espaço.”


Jornal O Povo - 14 de novembro de 1987


(1) Jornal O Povo - 13 de novembro de 1987 (2) Jornal O Povo - 11 de novembro de 1987


(1) DIรกrio do Nordeste - 12 de novembro de 1987 (2) Diรกrio do Nordeste - 13 de novembro de 1987


34 |

| Capítulo I

Foram 634 vendedores encaminhados para o novo Beco. Entre eles, 53 que já habitavam o terreno e ainda 446 feirantes cadastrados. A promessa era de que também ali seria temporário, que logo iriam para um novo mercado, coberto, todo em alvenaria. Mas o importante acontecia naquele momento, ter seu lugar discriminado e não precisar fugir da polícia já era grande coisa. Desse modo aconteceu o mapeamento do feirão: na primeira área, para os lados da 24 de maio, foram instaladas 186 barracas de produtos como alumínio, calçados, redes e artesanatos. As tendas desse grupo ocupariam quadrados de 1,5m por 1,5m. A área 02 era designada para confecções, brinquedos e ferragens, possuía 146 barracas de 1m por 1,5m. Na terceira área, com maior quantidade de cadastrados, ficavam bijouterias e miudezas: eram 217 tendas de 1,5m por 1m. Por fim, nas áreas 04 e 05, para os lados da Tristão Gonçalves, 150 barracas grandes, de 1,5m por 2,5m, dividiam-se entre frutas, verduras e merendas.


histórias de beco |

|35

“Antes era só as barracas, era coberto com uma lona, que a gente cobria mode o sol. Mas era só as barraquinhas separadas, no Juraci foi que fizeram os boxes.” “Quando abriu aqui não era desse mesmo jeito, não. Essa parte aqui não existia. Era tudo descoberto, faltava terminar de cobrir tudo. Isso aqui era um chão limpo sem nada. O movimento aqui era pouco, não era como agora.” Os constrangimentos não custaram a aparecer. Faltavam dois dias para o Natal quando o carro de reportagem apareceu pela feira. O Rapaz viu as mulheres reclamando, enquanto os lojistas, do outro lado da rua, reparavam-nas irados. O Rapaz quis dizer qualquer coisa, concordar com elas, falar que também ele, quando o pai estava na banca, enrolava uns pares de sapatos numa lona e retornava para a praça reformada ou para o calçamento da General Sampaio, pois precisavam do sustento e o tal Feirão da prefeita, organizado e limpo, não dava dinheiro. No outro dia, leu a matéria toda. E concordou calado com a mulher que dizia que “o local destinado a gente é somente um beco pra passar fome”. Um beco pra passar fome. A notícia registrava uma queda de 50% nas vendas com a transferência para o Beco. A feira estava lá, mas ninguém passava por dentro. Se até para eles, o pai e o Rapaz (cuja banca ficava próxima à Avenida) estava difícil, imagine para as barracas de lingeries, fixadas no meio do mercado? Não dava outra: saiam aos montes, mulheres com calcinhas e sutiãs até os cotovelos, vendendo de rua em rua. E lembrou do que disse um comerciante vizinho da praça ao jornal: “na verdade, eles nunca saíram daqui”. O pai e o Rapaz sustentaram aquelas circunstâncias o mais que puderam. Só o Moço podia vender na praça, porque o velho


Jornal O Povo - 24 de dezembro de 1987


histórias de beco |

|37

não tinha mais fôlego para correr do “rapa”. Graças ao Rapaz, no Natal venderam bem. Não demorou muito até que o pai decidisse repassar o ponto. Era o mais certo. Com o dinheiro, voltaram a montar barraca, desta vez, na praça dos Leões. “Era bom lá na praça, melhor que aqui. Vendia bem. A gente tinha uma barraquinha, toda montada já, a gente quando saia só ia lá e cobria com um plástico, quando chegava cobria de novo e quando chovia. Tinha vigia, aí não era perigoso, não.” Nos Leões, como em qualquer lugar em que se instalem camelôs, era cada um por si. O horário voltou a incomodar o Moço nos primeiros dias. Era preciso tornar a levantar-se antes do sol, pois já não havia a relativa segurança do ponto e a possibilidade de dormir um pouco mais. O café voltou a cheirar às quatro da manhã. Os fornecedores chegavam cedo, perdê-los era desperdiçar o dia. “A banca dos outro cheia de novidade e a nossa pelada!”, resmungava o velho ao filho sonolento, agarrado às barras do ônibus, lotado já cedo da manhã. O Moço distinguia duas ou três palavras nos resmungos do pai, que se sacudia impaciente nas débeis cadeiras altas do coletivo. “Lesado, filho da...!” Devia referir-se ao motorista, definitivamente. O sol nem bem nascia quando chegaram à praça. Não havia nada de mais, nada poético naquele retorno, não para eles, não aparentemente. Montaram barraca, negociaram a mercadoria, esperaram os sacoleiros, venderam relativamente bem, arrumaram tudo, trancaram o caixãozinho, puseram lona contra a chuva, deram adeus e o trocado da cerveja ao vigia e foram-se embora sem grande entusiasmo. Mas à hora do silêncio, pouco antes de deitar-se, pouco antes de ser completamente nocauteado pelo cansaço dos dia estafante, quem sabe naquele momento o Rapaz tenha pensado


38 |

| Capítulo I

quão simbólica era essa volta. Quanta carga de significados esse retorno à praça compreendia. Em praças fora criado, a improvisar brinquedos com os bancos imundos e as árvores mortas de sede. Nelas crescera e maquinalmente, automaticamente, aprendera um ofício. Era um Homem agora, a banca era mais sua que do velho mesmo, e afinal, como uma revelação, o Homem, naquele parco momento de reflexão, compreendeu que aquele retorno à praça era dele. Uma sua obrigação. Uma sua sina. A noite seguinte ainda pensava em amanhecer e o Rapaz estava de pé, era Homem já. E o foi, de fato, quando durante o café com pão impediu que o pai fosse com ele. Estava velho demais, não era certo, não dava conta. Uma angustia sem tamanho, um aperto na goela no velho. Quis gritar, dizer que era irresponsável, um Moleque ainda, que era de beber, de farrear; que ia gastar mal o dinheiro, torrar com mulher e festa, que ia. Mas deteve-se a revirar-se na cadeira e queimar a língua no café da velha, que providencialmente, finalmente, dirigiu-lhe uma palavra: “o nêgo tá certo, a gente monta um negocinho pra você por aqui, mas pra você tá pra cima e pra baixo de ônibus eu não acho certo, não. Graças a Deus, ninguém precisa disso”. A Mãe fora sensata, Ele também. Era um Adulto já. Àquele dia, foi só, como em todos os outros. O Rapaz virou Homem e o Homem, Camelô. “Na época que era mais difícil, assim, né, tinha que chegar cinco hora, quatro horas da manhã pra pegar mercadoria. Não era nem tanto pra vender, era pra pegar a mercadoria que ia chegar. Aí tinha dias que a gente ficava até a noite, a gente querendo fechar e eles [os clientes] lá, atrás de comprar, não tinha hora certa. Aqui acolá aparecia o pessoal da prefeitura, mas só pra encher o saco mesmo, dizendo que iam organizar, pra gente não colocar muita mercadoria... essas coisas.”


histórias de beco |

|39

A fim de burlar a crise, o Camelô mudou de ramo: venda de confecções. Por uns meses, pela sobra de mercadoria do pai, sua banca fora a única dos Leões a vender roupa e calçado, o que despertava a inveja dos outros feirantes. Era preciso lidar com isso, lidar com tantas outras circunstâncias. Era preciso sobreviver. Certo dia, o Camelô tornou a desembrulhar jornais para forrar a barraca e achou interessantes as duas longas páginas do O Povo com colunas inteiras compostas de minúsculos nomezinhos: eram os aprovados no vestibular da UFC de 1988. Em meio a milhões de caracteres, um nome no trecho Comunicação Social, mais tarde, mereceria destaque: a recém aprovada, futura jornalista, Luizianne de Oliveira Lins. O Camelô sequer podia desconfiar.


40 |

| Capítulo I

Hora do almoço. Esteve quente àquele mês. Quente como se o dia soubesse que ia chover. Calor de teima, de birra. O bafo gordo do mormaço abafou a cachaça amarela, o copo suado. Desceu rasgando, queimando um dia quente na garganta. O Homem pediu a conta: lingüiça, farinha, Ypióca. Ergueu-se da cadeira surrada e sentiu-se tonto. Conversa é essa! De onde já se viu um homem daqueles cair por causa de três quatro doses? Conversa! Mas encostava-se discretamente nas coisas pra manter o prumo. Arrastando-se naquela morbidez embriagada chegou à banca. Não demorou até um alvoroço tragar-lhe feito onda. Do que viu foram vultos, três quatro pontos negros a mover-se muito rápido, depois gritaria, confusão, sacos pretos sacudidos sobre os lombos, zíperes, mochilas, caixotes, caixões nas costas. O Camelô, bêbado, não distinguiu nada. O que sentiu foi um braço ou dois lançando-lhe para o lado e uns pingos grossos duma chuva abafada acertarem-lhe a cara, tornando a balburdia mais turva do que já era. Lembrou depois ter visto, sim, o rapaz fardado levando sua mercadoria, as sacolas, os caixotes. Viu quebrarem a armação da barraca. Uma pilha de confecções mal ensacadas na boleia da pick up negra, Polícia Federal. Bonés, tênis, CD, DVD. Lembrou depois, mas só depois. Na hora, ouviu dois ou três gritarem pedindo que se levantasse, que carregasse suas coisas, e ele quis, quis erguer-se, juntou dois ou três sacos, mas não teve forças, não teve tempo. Era tarde. O rapa levou-lhe tudo e por sorte, muita sorte, não lhe levou preso. Naquela noite, o Camelô não chegou em casa. Dormiu na rua. Bebeu a passagem. Não quis chegar. Depois do rapa, só resta começar de novo. Arrumar lona, adquirir nova mercadoria... Batalhar. No dia seguinte, o sacoleiro que veio do outro lado do país, de ônibus, em busca do produto, não quer



42 |

| Capítulo I

saber se passou rapa, fiscal, polícia. Ele vai comprar a quem tiver. E o Camelô ao menos com uma coisa se divertia, era uma sua distração: reparar os sotaques. Dezenas de pessoas, de todo o país, passavam pelas feiras diariamente. Pará, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo. Pessoas simples, feirantes como eles, que tinham – e ainda têm – o Ceará como ponto de referência no reabastecimento dos estoques. Até hoje é essa ainda a grande mola motriz das feiras cearenses: a compra em quantidade. Quando saiam os clientes, a farra: haja imitarem os sotaques, o chiado carioca, a pressa mineira, a lentidão baiana, o di e o ti de recifenses e paraibanos. Era uma festa, uma algazarra, eram as horas poucas de confraternização desinteressada, essas que valem a pena. Essas das quais se lembra sempre, depois das dificuldades. “Do Ceará se a gente for sobreviver daqui morre de fome. Pessoal daqui não compra nada. Quando vão comprar é uma roupinha pra criança, uma meia, a pessoa tá gestante vem comprar um sapatinho, mas não é em quantidade. Por aqui a gente não sobrevivia, não. Pessoal daqui só trabalha pra atender o povo de fora, entendeu? Quem sustenta a gente mesmo é o povo de fora.” Foi no ano de 1991, especificamente, que os fiscais da prefeitura cumpriram o que a uns três anos já repetiam a cada cadastro e recadastro: “vocês vão sair daqui”. Uma nova contagem foi feita, desta vez para uma transferência efetiva. “A gente fazia o cadastro porque eles iam colocar a gente num lugar melhor e porque a praça tinha que ser desocupada. Aí, de fato, eles realmente cumpriram com a palavra, né? Desocuparam a praça e botaram a gente pra cá. Dizendo eles que isso era emprestado por uns dez anos por que o metrô ia passar por aqui. Já disseram na época que isso aqui tinha um projeto e que o metrô ia passar. Eu já sabia disso”.


histórias de beco |

|43

Em maio de 91, os jornais anunciavam a inauguração do Centro de Negócios do Vendedor Ambulante, um mercado estruturado em concreto, composto por 832 unidades, pequenos depósitos de cimento com portas de ferro que funcionavam como balcão para exposição da mercadoria. Segundo as reportagens, o empreendimento do prefeito Juraci Magalhães fora uma parceria entre a prefeitura e a Associação Profissional dos Vendedores Ambulantes do Ceará – APROVACE, na época já gerida por Antônio Amaro da Silva. Os feirantes (que desde então passariam a ser chamados permissionários) teriam custeado as despesas para a instalação dos boxes e a prefeitura, as obras de infra-estrutura e a cessão do terreno, no caso, o Beco da Poeira, espaço da antiga feira elaborada na gestão de Maria Luiza. O novo mercado fora apresentado como “o mais importante centro comercial destinado a camelôs em todo o Brasil”, “um empreendimento-modelo” e o prefeito foi admirado por seu pioneirismo e caráter inovador. Mas, no dia seguinte, no jornal de domingo, uma pequena nota sem referência na primeira capa dizia: “Mercadão inaugurado sob críticas.” “Eu acho que não houve inauguração não, cada um já foi chegando e colocando suas coisas... Aqui era péssimo, tinha um telhado que só faltava bater na cabeça da gente, um calor desgraçado, o chão não tinha piso, era só o barro mesmo e os box era tão úmido que você podia até lavar as mãos dentro que tinha água! A gente comprava isopor e forrava tudo de isopor que era pra não estragar a mercadoria.” “Era quente que era um forno. No Natal, tinha gente que passava mal lá embaixo, desmaiava, em dezembro, por que era muito quente”.


(1) Jornal O Povo - 25 de maio de 1991 (2) Jornal O Povo - 26 de maio de 1991


histórias de beco |

|45

De fato, a matéria curta no caderno de cidades denunciava que as calhas do telhado não escoavam a água, criando poças dentro da estrutura e, consequentemente, arriscando a qualidade dos produtos. O presidente da associação, Antonio Amaro, dizia que o Beco resolvia apenas em partes o problema do assentamento dos ambulantes na cidade, “que não são 832 dos alocados aqui, mas 4 mil espalhados nas ruas”, alertava. Os feirantes concordavam que a estrutura – com mais organização, segurança e higiene que as praças e ruas do Centro – representava uma melhoria nas condições de trabalho, mas temiam sim, não só pelos reparos necessários, mas pela má fama do local, capaz de, segundo eles, afastar a freguesia. O Camelô sabia disso como ninguém. Ele mesmo vivera a angústia de tentar ganhar a vida naquele mesmo espaço, e enquanto organizava a mercadoria sobre o balcão em seu primeiro dia de trabalho na feira do Juraci, relembrou amargo as palavras daquela vendedora de anos atrás: “um beco pra passar fome”. Sacudiu a cabeça, afastando o pensamento. Era preciso ter esperança. Da tal inauguração só os jornais lembraram, para o Camelô, as coisas simplesmente se transferiram, assim sem muita comemoração. Num dia, levanta-se para ir à praça, no outro, para ir a um lugar em que já esteve e precisou sair, pois lucro não dava. Tristeza e apreensão via-se em todos naqueles primeiros dias. Ficavam se olhando, ali, cada um arrumando sua mercadoria como dava. “Foi difícil no começo porque a gente se perdeu dos clientes e eles da gente, mas aí a gente perdeu uns e foi encontrando outros também. No começo, o movimento era pouco, mas aí foi crescendo e o pessoal [os fornecedores] foi crescendo também: lá [na praça] a mercadoria era bem breguinha, assim, o pessoal não tinha recurso, o pessoal não tinha máquina apropriada pra fazer mercadoria boa, aí fazia umas mais


46 |

| Capítulo I

ruinzinha, de feira mesmo. Hoje aqui a mercadoria tá melhor, é mais bonita.” “Aí já começou os fabricantes vir com a mercadoria, eles vinham mostrar. O movimento era bom. Era melhor aqui porque, mesmo sendo muito quente, quando chovia a gente tava protegido, né?” A adaptação foi lenta, mas aconteceu. Enquanto a prosperidade não vinha essencialmente do Centro Comercial, era possível ver aos sábados o movimento de sacolas e malas saindo dos boxes para ganhar as ruas no domingo. Neste dia, em que o Beco descansava, muitos feirantes fretavam carros e iam às feiras livres em outros pontos da cidade ou em municípios vizinhos. Os anos se passaram e os suados esforços dos ambulantes, agora permissionários, custearam diversas melhorias no local: o telhado que lhes apertava as cabeças foi destruído e alteado, o piso foi posto, novos boxes foram elaborados e replicados. Hoje os 832 cubículos se transformaram em mais de dois mil boxes, divididos em 22 ruas, estreitas e largas. “Aqui tudo a gente fez. Esse piso a gente fez, primeiro foi esse piso de cimento, né, depois ele começou a estragar e mandamos botar o piso; fizemos esse telhado todinho porque era só nessa altura aqui, né, era muito baixo e muito quente, aí nós pagamos e fizemos esse todinho de cima. Da ‘Rua Larga’ pra lá foi feito depois, e pro outro lado também, das colunas pra lá também é tudo novo.” No Beco, o Camelô arrumou clientela, mercadoria, esposa e filhos. Deu, de certo modo, orgulho ao pai, que falecera pouco depois. Os filhos do Camelô estão crescidos, mas não são feirantes. Aquele não era o futuro que queria para eles, ainda que o velho pai


histórias de beco |

|47

talvez estranhasse. Quem sabe, também ele tivesse desejado que o caminho do seu filho tivesse sido outro. E, de relance, o Camelô pensou nisso enquanto o caixão modesto – mas custeado por ele – era posto na cova. Há quase duas décadas está no Beco. Estão, na verdade, centenas de permissionários que, sob alguma perspectiva, assemelham-se a este conto e, assim, deram vida ao Camelô. Dezoito anos depois, uma nova mudança, expectativas e novamente apreensão, frustração, surpresa e saudade. Permissionários mais idosos, vendedores de eletrônicos e de CDs e DVDs não sabem seu destino. Destes, o que se escuta é o silêncio, ou minimamente um “vamos esperar...”. Do que há por vir, somente quem vive o cotidiano do Beco pode responder.


“Quando começaram a falar em Metrofor, disseram da gente se transferir pro outro canto. Foi mais de 2 mil reais, em dez vezes.” “No começo era bem baratinho, uns 700 reais”. “Nós já pagamos não sei quantas vez, nós é só pagando”. “A gente ficou apreensivo, né, e também preocupado por que a gente tinha empregado o dinheiro da gente e não viu terminar a construção. Parou ali. Nós ficamos acreditando que as pessoas que nos vendeu os box iam cumprir, né, só que agora parece que a gente não pode mais ir pra lá, a gente vai é pra Imperador. A gente tá esperando que lá seja melhor que aqui, porque aqui tá meio devagar, tá muito difícil.” “Eu já dei uma olhada lá, eu andei lá, vi a construção e quem sabe lá seja melhor que aqui, porque aqui tá muito apertado, no final de ano pra trabalhar aqui é muito difícil.” “Não é bom não se mudar porque vai se acostumar tudo de novo, né? Dizem que vai ser pior, por que não vai ter esquina como aqui, os box vão ser tudo colado. Uns dez box, oito, colado, vai ser pior.” “Aqui a proximidade é melhor, lá vai ser um tiro no escuro. Estamos torcendo que seja bom.” “ Vou sentir falta, né, mas se é pra melhorar a cidade... É triste quando a gente destrói e fica só no prejuízo, mas como a gente vai sair pra outro canto, a nossa esperança é de que seja melhor, né, deixa saudade sim, por que faz muito tempo que a gente tá aqui, mas se é pra melhora da cidade, tudo bem, a gente quer ver é a cidade crescendo e pra isso tem que contribuir, né?”


histórias de beco |

|49

Quem deu vida ao Camelô Dona Paulinha Dona Maria das Dores é conhecida no Beco por “Tia Paulinha”. É ambulante desde 1983. Ao separar-se do marido, encontrou no comércio informal um meio de vida. Veio da Praça dos Leões direto para o Beco. Tia Paulinha conta que, na época do cadastro, em meados de 91, esteve muito doente e os funcionários da prefeitura não conseguiam encontrá-la, quando iam a sua barraca só viam seu empregado. O rapaz, aproveitandose da oportunidade, pôs o Box no nome dele e dona Maria das Dores ficou sem nada. Somente depois pôde adquirir uma vaga, mas teve que pagar por ela.

“Quem repassa seu box aqui é mais por motivo de doença, eu vivo aqui mas eu vivo doente, vivo gripada eternamente, por que além de ser quente, tem muita poeira.”


50 |

| Capítulo I

Quem deu vida ao Camelô Dona Sula Maria Nonata da Silva é o seu nome verdadeiro. O apelido “Sula” surgiu do fato de ser a caçula da casa. A senhora de 77 anos é comerciante de confecções desde a praça José de Alencar e esteve na primeira tenda montada no Beco, na gestão de Maria Luiza. Dona Sula, contudo, diz nunca ter precisado daquela renda para sobreviver, já que o marido sempre garantiu à família uma renda estável. Ao longo da conversa, repetiu várias vezes que o Box era apenas uma forma de rever os amigos, de não ficar parada, tanto que chega a mantê-lo fechado por meses. Dona Sula contou-me ainda que já possuiu uma lancha e até um parque de diversões.

“Aqui todo mundo é amigo, só tem vizinho bom... às vezes tem uns assim meio doce, mas a gente aduba ele e num instante ele fica bom!” (risos)


histórias de beco |

|51

Quem deu vida ao Camelô Dona Conceição

De todos os entrevistados, dona Conceição foi a que mais me impressionou, não tanto pelas informações, mas pela idade: 93 anos. Esta senhorinha sai de casa, pega ônibus, abre e fecha seu Box todos os dias sozinha. Disseme que já foi dona de um Box, mas teve problemas com o vendedor vizinho e decidiu transferir a vaga. Voltou para casa, chegou a ter seis pessoas trabalhando para ela em costuras, mas não conseguiu ficar lá por muito tempo: vendeu suas máquinas e retornou ao beco, desta vez alugando o ponto. Ela mora apenas com a filha, que trabalha o dia inteiro. O que ganha só serve praticamente para pagar o aluguel do box, o Beco, no entanto, não é seu ganha-pão: é, na verdade, seu passatempo, sua pracinha, seu abrigo.

“Tristeza. Quando acabar [o Beco] eu vou sentir é tristeza. Eu vou bem ficar em casa sozinha? Aqui eu converso com um, com outro, é aqui que eu passo o dia.”


52 |

| Capítulo I

Quem deu vida ao Camelô Marcelo Monteiro

Marcelo teve uma vida bem parecida com a do Camelô, menino ainda, ia às ruas e praças da cidade de Fortaleza ajudar o pai, que vendia calçados. Foi ele quem lhe repassou o ponto do Beco, no qual hoje vende confecção. Marcelo e a esposa, Raquel, têm três filhos. Para melhorar a renda, aos domingos, reúnem a mercadoria e vão à feira da Messejana. O trabalho integral é cansativo, mas, segundo eles, recompensador, do Beco e da feira provém o sustento da família. Ambos estão apreensivos com a mudança, como estiveram em 1991.

“No começo a gente não queria vir, não. Vai mudar, ficar diferente. Mas todo mundo já se acostumou, já”


histórias de beco |

|53

Quem deu vida ao Camelô Dona Gorete

Pequena, mas dona de uma memória gigante. Dona Gorete é daquelas entrevistadas com as quais se passaria um dia inteiro conversando. Começou a montar barraca na praça dos Leões com uma vizinha e, desde então, está na luta. De acordo com suas contas, deve possuir quase duas décadas de vida ambulante. De Gorete vieram as descrições mais apuradas, ela lembrava até do seu primeiro dia no Beco. Ao pedir para que lhe tirasse uma foto, os vizinhos riram, disseram que eu iria vingar todos eles: Gorete é a fotógrafa da rua, costuma tirar fotos de todos os clientes e vizinhos com seu celular.

“Aqui tinha um teto que só faltava bater na cabeça da gente, o piso era só o barro, e os box era tão úmido que você podia até lavar as mãos lá dentro, de tanta água que tinha!”



capĂ­tulo II Uma primeira visita ou Amigos de Beco


Um relato de uma das primeiras visitas ao Beco com a intenção de produzir o livro. Nesta crônica, explico os motivos da escolha do Beco como objeto de estudo, comento sobre o processo de apuração jornalística e narro as primeiras entrevistas “oficiais”, ocorridas em uma circunstância bastante inusitada. Neste dia, pude considerar ter feito meus primeiros amigos no Beco da Poeira.


capitulo II

P

esquisava a relação entre programas policiais, ditos popularescos, e seus espectadores que se reúnem despretensiosamente ao redor de Tvs em bares e restaurantes populares, nos terminais rodoviários ou estabelecimentos do Centro, quando, tão ocasionalmente quanto as pessoas que entrevistei, fui levada a revisitar, com olhos de pesquisadora, o espaço que sempre cruzei desde menina: o Beco da Poeira. Adentrei-o e ali quis ficar. Troquei prancheta e questionários por borrão e lápis. O Beco como o conhecia estava com os dias contados, era sensato rabiscar-lhe as formas, guardar lembranças da tenda em relatos, fotos e nanquim. Não recordo a primeira vez em que estive no Beco. Provavelmente me deveria guiar o punho seguro de minha mãe, apressada, cruzando as vielas de tecidos; meus olhos infantis certamente turvos da correria e de obstáculos inúmeros: roupas, calçados, pessoas. O Beco nasceu junto comigo. Não a estrutura, inaugurada em 1991, mas a idéia, a decisão primeira: à tarde do dia 4 de novembro de 1987, na sede do Banco do Nordeste, a prefeita em exercício, Maria Luiza Fontenele, se reunia com sua equipe e acertava a reforma do terreno à época conhecido por “beco da poeira” para receber o “feirão popular”, ainda de frutas e verduras. Horas antes, na madrugada daquele mesmo dia, num hospital de Fortaleza, eu havia nascido – Mayara Carolinne Beserra de Araújo, filha de funcionário público e costureira, destinada a cruzar tantas vezes, anos depois, o comércio erguido sobre o terreno negociado àquele dia. A tarde fortalezense é quente e abafada. Os meses iniciais do ano trazem as chuvas de São José e, por isso, o bafo morno e impróprio do asfalto entope-me as narinas. Compro um lanche qualquer no


58 |

| Capítulo II

Shopping Metrô e cruzo a rua. Intrigante comparar o quarteirão do shopping com as fotografias da hemeroteca: eram meados dos anos 80 quando ali habitava As Brasileiras. Enquanto Hebe Camargo estrelava, sorridente, os cartazes publicitários da grande loja de departamentos, o verdadeiro beco subsistia do outro lado da rua, a contradição estampada, barracos de madeira e alvenaria formavam becos estreitos, abrigos de famílias e sustento de outros locatários: desempregados donos de biroscas; cafetinas, gigolôs, prostitutas velhas e muito novas; vendedores de lanche, frutas, verduras e carnes, cujos restos – vísceras, bagaços, miúdos – tomavam o chão das vielas. Uma latrina em forma de tosco labirinto a céu aberto. Sob a névoa da poeira, habitavam os esquecidos. Às duas horas de uma tarde quente em que há pouco chovera, entrar no Beco requer certo preparo psicológico para uma brusca mudança de ambiente, é quase como ser trancado em um fosso, um calabouço de teto rebaixado, quente e úmido. Se o Centro da cidade já revela uma dinâmica diferente do resto da cidade, no Beco, tempo e espaço sofrem uma nova subversão: há outra correria, outros modos, o tempo passa mais depressa, a passada aperta e os olhos correm vertiginosos. É dessa forma que as pessoas tornam-se não mais que vultos e as conversas, fórmulas repetidas – Quanto custa? Que cores tem? Que tamanhos? Tem desconto? Qualquer comportamento que fuja a essa dinâmica é encarado com estranheza. Minha presença inquisidora, curiosa e relaxada é quase ofensiva. Exceto naquele momento: em que conheci os meus primeiros “amigos de Beco”. A pesquisa nem bem começava, caminhava nas ruas da tenda reconhecendo terrenos, tentando me encontrar na incenteza das vielas. Andando devagar, nada parecia reconhecível, aquele nem parecia ser o lugar onde costumava andar. O Beco não mudara, mas meu olhar, sim. Despretensiosamente, pus-me a seguir duas atendentes de plano de saúde que entravam no Beco conversando sobre namorados, vizinhas, coisas quaisquer. Interessei-me pela conversa e logo estava em um corredor ainda desconhecido: a princípio, era estreito e depois


Beco em Panor창mica


60 |

| Capítulo II

mais largo, com uma lanchonete, cadeiras e mesas ao fundo. Pensei: “perfeito para rabiscar alguns esboços, não precisarei tomar o lugar de ninguém e vou poder agir discretamente”. Sentei-me, retirei lápis e borrão, observei o cenário. À esquerda, duas vendedoras conversavam, uma delas olhava o chão absorta, sentada em uma das pernas, trazia a bolsa a tira-colo, onde pudesse ver; mais à frente, outras duas também conversavam; à direita, um vendedor loiro olhava o movimento e à frente três moços concentrados, consertavam relógios. Já rabiscava a vendedora absorta quando notei uma certa movimentação curiosa em torno de mim: os vendedores cochichavam entre si e me olhavam desconfiados. Não demorou para que eu entendesse, tinham medo de eu estar desenhando os modelos de suas roupas. Decidi simplesmente continuar meus desenhos, não havia o que temer e estava ansiosa para saber no que se transformaria aquele discreto burburinho quando percebessem que os estava reproduzindo. Aconteceu logo. Durante cerca de uns quinze minutos, uma das moças levantou-se várias vezes, caminhava para além da minha cadeira e me olhava, eu a percebia sobre meus ombros. Todas as vezes que fazia este trajeto, voltava ao box com uma novidade, em pouco tempo os relojoeiros também me olhavam curiosos, todos sabiam o que se passava, mas ninguém dizia nada, até que a mesma vendedora levantouse uma última vez, olhou-me novamente sobre meus ombros, desta vez mais de perto, e perguntou: “posso ver o outro desenho que você fez?” Estava desmoronada a muralha do silêncio, da impessoalidade e, a partir dali, decantara a poeira do Beco: os rostos não eram mais vultos, mas pessoas, com suas histórias, temperamentos, humores, e quanto humor! Logo fui incluída, verdadeira algazarra em torno dos desenhos, todos querendo se reconhecer: “ah, mas eu não sou feio assim!”, disse irmão Toninho, “olha que essa aqui é Fulana!”, “esse é Ciclano!”... E me mostraram o desenho da Paizinha colado no alto da coluna: numa folha de caderno, uma boneca de longos cabelos, desenhada a lápis e com os dizeres: “Procura-se viva ou morta, recompensa R$ 0,50”. Ah, mas estava


A Vendedora Absorta


62 |

| Capítulo II

errado uma boneca tão feia, “Chama a Paizinha que a menina desenhista vai ter que desenhar ela!” Mandaram chamar Maria da Paz. Enquanto desenhava a moça dos longos cabelos loiros e cacheados, de repente, aquele esforço a que nós jornalistas nos submetemos certas vezes para obter algumas repostas caiu por terra, foi nocauteado pela brincadeira dos rabiscos, e logo lá estava eu entrevistando e principalmente sendo entrevistada: o que você faz? De onde é? Você compra no Beco? E ainda me quiseram pagar pelo desenho: R$ 2,00! Recusei, óbvio. Tão mais valiosa fora aquela experiência. Dias depois retornei para, de fato, escrever este relato. Com a espessa poeira da estranheza decantada, surgiram rostos. Descobri que ali era a vizinhança dos evangélicos e que eram todos amigos, alguns há mais de cinco anos. Rita de Cássia é a mais nova, tem 18, trabalha por dois turnos e estuda à noite, prestará vestibular para Serviço Social. Rita foi a primeira que se dispôs a falar. Desenrolada, a pequena contou-me que há três anos cuida do Box da mãe. Os primeiros dias de vendedora do Beco foram um tanto difíceis, era tímida, envergonhada e, como Rita mesmo diz, para trabalhar ali é preciso “swing”, molejo. Com o tempo, fez amigos e aprendeu a lidar com a clientela. Brinca declarando que aquela rua é a parte mais divertida do Beco, gosta do que faz e prefere estar ali a vender em feiras livres, onde se sentia insegura e o trabalho era mais pesado. Quanto à segurança, não só Rita como os outros vendedores confirmaram que se sentiam seguros no Beco, os malandros da praça volta e meia estavam por lá, mas pouco se ouvia de furtos. Quem assustava mesmo era a polícia em busca de CDs piratas. Nem tudo são flores, se o Beco representa oportunidade para centenas de trabalhadores, o preço que se paga por essa chance de bons negócios não é barato: para além das taxas de manutenção quitadas semanalmente (as quais, de acordo com a associação responsável, tinham alto nível de inadimplência), os vendedores se submetem a péssimas condições de trabalho. A estrutura é precária, em tempos de chuva, como os de agora, a água retorna pelos ralos do banheiro. Fedentina, calor e sujeira são companheiros inseparáveis de um Beco, por vezes, esquecido.


Rita de Cรกssia


64 |

| Capítulo II

Os funcionários reclamam ainda que, apesar do Beco ser, de certa forma, uma referência na venda de confecções, não existe um investimento na divulgação daquele espaço. “Nós só queríamos ser reconhecidos, entende?”, disse-me João Paulo, o Lôro, questionandome quantas vezes eu tinha visto alguma propaganda do Beco da Poeira na televisão. E apesar disso, como ele mesmo disse, possivelmente mais da metade das lojas de confecção dos shoppings da região Norte são abastecidas com roupas “made in” Beco. Aqui se lucra principalmente por quantidade e os maiores compradores descem aos montes na rodoviária fortalezense e têm outros sotaques. João Paulo de Souza, o Lôro, tem 23 anos e deixou o trabalho na roça, em Morrinhos (município a 208 quilômetros da capital), sua cidade natal, pra tentar a vida em Fortaleza. Foi camelô na Washington Soares e outras avenidas da cidade, vendia calculadoras, controles remotos, mas a vida de ambulante também não rendia. Lôro já pensava em voltar para Morrinhos quando um primo, fabricante de confecções, convidou-lhe para trabalhar no Beco. João Paulo cuida do Box do primo há cinco anos e afirma – com segurança – que se lhe oferecessem um emprego de vendedor em grandes redes de confecções, dentro de um shopping, recusaria prontamente. Os vendedores do Beco não divergem dos informais da praça, agem da mesma forma: aproximam-se, oferecem, insistem, “chegam junto” do freguês; cada passante é um potencial consumidor. Lôro confirma, disse-me que, em seu primeiro dia de trabalho, acostumado com a vida difícil de ambulante, chegou “arrepiando”: chamava o cliente, anunciava os produtos no gogó, oferecia a mercadoria, e, ainda sim, recebia em troca, muitas vezes, desprezo. Ali o “não” é comum, não frustra. A concorrência mora ao lado, é preciso manter certa disposição constante, apesar do cansaço, e o mais importante, como disse Rita de Cássia, manter o jogo de cintura. Se não há provador, com dois panos faz-se uma cortina; se não cabe, aperta; se a perna da calça é grande, uma dobra, um ponto e tudo está resolvido. O Beco da Poeira é o mercado do “jeitinho brasileiro”, constituído não só pelos permissionários, mas


L么ro de Morrinhos


66 |

| Capítulo II

por funcionários, marmiteiros, tapioqueiros, vendedoras de cafezinho, merenda, trufa, bombom... Nessa dinâmica, entre as galerias, além dos visitantes, dezenas de isopores, tabuleiros e até bicicletas desafiam a estreiteza dos caminhos, ganhando a vida à custa do ganha-pão de outros tantos. Essa é a vida de Francisco Antônio da Silva, 22 anos, mais conhecido como Pastel-menino. Francisco recebeu esse apelido do ofício de vendedor de pastel e suco. Ele percorre aquelas galerias há cinco anos, oferecendo o salgado e esperando alguém gritar “Pastel, menino!”, indicação de mais um cliente garantido. Pastel-menino mora na Praia do Futuro, acorda cinco e meia da manhã e deixa o serviço às cinco ou seis da tarde, quando o Beco fecha as portas. Ao contrário do que, em geral, se pensa, Francisco não é autônomo nem tem a liberdade de entrar e aproveitar o movimento do Beco como bem entenda, ele é contratado para vender os pastéis e, para que ele possa caminhar pelos corredores, seu patrão paga mensalmente uma certa quantia à associação. Pastelmenino não sabe quanto. Os jornais dos últimos meses anunciam a mudança iminente do Beco, o local de transferência é uma disputa à parte. Seja para a construção inacabada na Tristão Gonçalves, conhecida por “esqueleto”, ou para a antiga tecelagem Tomaz Pompeu, na Av. do Imperador, adquirida pela Prefeitura Municipal, vendedores, donos ou não dos boxes, especulam sobre como será o novo local. “Vai ter ar-condicionado, praça de alimentação...”, comentou Lôro, empolgado e brincalhão, seguido de um “Menos, Lôro, menos!”, do irmão Toninho. Mas o que essencialmente reivindicam as pessoas que diariamente convivem no Beco e dele sobrevivem, no fim das contas, são condições melhores de trabalho: boa instalação elétrica, espaço mais amplo entre os boxes, um sistema de ventilação adequado, banheiros dignos. Quanto aos ambulantes do Beco, como Pastel-menino, a situação é um tanto mais preocupante, já que eles não sabem se, em uma nova estrutura, haverá a possibilidade de ambulantes circulando nas galerias. Francisco está um pouco mais tranqüilo porque, com ou sem Beco, continuará vendendo


Pastel - Menino


68 |

| Capítulo II

seu pastel, já que no Centro não falta freguesia, mas sente por outros vendedores que não trabalham como ele. “A gente não sabe se eles vão deixar o pessoal andar lá dentro, nem se vão poder colocar barraca do lado de fora, vai que tem lanchonete lá dentro aí a gente fica sem saber como fazer...”, admite Francisco. A tarde cai tão rápido quanto chega. É hora de despedir-me com uma última pergunta: o que levam desse lugar, caso realmente se mudem? Do que terão saudades? Rita se adianta e diz “De nada, não tenho apego por esse lugar”, mas concorda, aliás, todos concordam, com a resposta de João Paulo: “Vou sentir falta dos meus amigos, por que lá a escolha dos boxes vai ser por sorteio, então não sei se a gente vai ficar junto, é muito difícil. Os meninos aqui já são meus amigos dentro e fora do Beco, a gente é tudo evangélico, então vai pra igreja junto, sai junto e lá eu não sei como vai ser a nova vizinhança.” Quando penso que irmão Toninho, João Paulo, Rita de Cássia, Paizinha, Pastel-menino, e outros tantos, simpáticos e acolhedores, não são sequer um décimo da população da grande feira, respiro fundo e entrevejo na poeira um caminho longo de outros vultos que se tornarão rostos, pessoas, punhos firmes a me guiar por aquelas galerias, em encontros sucessivos de histórias de vida. E me vou embora, às 17:40 da tarde quente e abafada, cruzando as vielas de verdadeiros contabilistas a calcular os lucros e a recontar estoques no fim de mais um dia de batalha, alguns fecham as malas para guardá-las nos boxes minúsculos, outros para levá-las à praça da Sé e lá enfrentar a feira livre que já começa e vira a noite até o raiar de um novo dia, em que todas aquelas pessoas, histórias de vida, se reúnem novamente. Deixo o Beco com a sensação de acompanhar uma história em marcha, mas, desta vez, não à margem, mas completamente imersa no rio da vida. E vou-me feliz, plena de imagens, relatos, grávida de tudo.


Corredor da Rua Larga



capĂ­tulo III O Beco em dias de sĂĄbado ou o Dia dos Pais Carregadores


Sobre o Beco da Poeira em datas comemorativas e fins de semana. Excepcionalmente naquele sábado, milhões de mulheres e crianças ganhavam as ruas do Centro, era véspera de dia dos pais. Vê-se ainda: o tumulto no comércio formal, o movimento pulsante na feira de uma Lagoinha que não envelhece e um Beco que insiste em funcionar, apesar do Centro já adormecido.


capitulo III

S

Manhã ábado: o pior e o melhor dia para estar no Beco da Poeira. Pior para os clientes, melhor para os comerciantes. Sábado é o dia da escapadinha do trabalho, dia em que, apesar do calor, da sede e do completo desconforto, milhares de outros trabalhadores invadem o Beco, vão às compras e se promovem de vendedores a consumidores, ao menos uma vez por semana. Hoje, o Beco está especialmente cheio: é véspera de Dia dos Pais. As modinhas femininas, campeãs de vendas, dão lugar a produtos masculinos. Neste dia, sacolinhas plásticas e sacolões jeans voltam para casa com calçados, cintos, bonés e blusas de time. A mãe de família leva os filhos e a irmã, juntos escolhem lembranças para os pais e os maridos. Os irmãos maiores repuxam bermudas, cuecas, calções de banho, sapatos e a camisa da mãe: não necessariamente nesta mesma ordem. O filho pequeno sacode-se impaciente nos braços da mulher, quer participar da brincadeira. Mas a mãe, meninos – negra, rija, roupas simples e carapinha enrolada apesar da escova progressiva – mesmo trabalhando de sol a sol, não tem dinheiro pra levar tantas coisas. E nem eu nem ela sabemos se o que a irrita é realmente a danação dos filhos ou o constrangimento de só poder levar lembranças: presentes são regalias do Natal, em doze vezes no cartão, quando a última parcela da geladeira acabar. Sacudo uns shorts, confiro as costuras e o vendedor me aborda. Seu Walmir, senhor de idade, cabelos (poucos) e bigode brancos, retira do estoque dezenas de camisas sociais, das quais conta vantagem: até o fim do dia – certamente - estarão vendidas. O veterano é mais um ambulante proveniente da praça dos Leões, onde,


A Compra de Lembrancinhas


Seu Walmir


76 |

| Capítulo III

segundo ele, foi feito o primeiro cadastro para a transferência oficial dos camelôs ao Centro Comercial, na gestão de Juraci. Pergunto-lhe das expectativas com a mudança iminente e sua resposta reflete o pensamento de muitos dos permissionários mais velhos, partícipes de ambas as circunstâncias: a vida ambulante e a de cadastrado. “Minha filha, eu penso que o certo é ir pro espaço que eu paguei, por que eu paguei, não é? Mas pra onde o vento pender eu vou.” Dona Josefa – Zefinha, funcionária de Seu Walmir, também veio da praça dos Leões. O marido vendia calçados na rua, cadastrouse e teve direito a um box. Há doze anos trabalha no Beco, já foi patroa, hoje é empregada. Chegou a adquirir dois boxes com o marido, mas a demora para receber o espaço foi tamanha que largaram o sonho do patronato: repassaram os papéis e seguiram como funcionários. Na casa de Zefinha, o Dia dos Pais será de saudade. O marido mudouse para São Paulo, arrumou um emprego de carpinteiro, construção civil. O filho homem logo seguirá o rumo do pai, que planeja mandar-lhe uma passagem: arranjou para ele serviço de pedreiro. “Namoro agora, só por telefone!”, diz Josefa num sorriso triste. No Centro, tudo o mais fervilha. E a cena da mãe se replica a perder de vista: são centenas de mulheres e crianças por todos os lados, lotando lojas de roupas e calçados masculinos, digladiando-se pela camiseta regata da promoção, as cuecas samba canção, pelo sandatênis e sapatos Kildare. Mas todas as mulheres destas lojas do comércio formal, que, às 3 da tarde, ocupam um lugar nas purgatórias filas de caixa, com trouxas de roupas numa mão e um filho angélico na outra, ainda que sofram com o calor que não podem abanar, com a fome que não fartaram, com a espera e a falação dos alto-falantes a proclamar milagres em forma de liquidação, todas elas comentam: “mas, graças a Deus, eu não estou no Beco. Imagine o inferno que está lá...”, iludindo-se com a certeza vã de que só no Beco mora o inferno mercantil.


Dona Josefa


78 |

| Capítulo III

Tarde Às dez para as cinco da tarde de sábado, o coletivo libera mais meia dúzia de compradores às portas do Beco – se for mesmo possível considerar que o Beco tenha portas. O resto do Centro, há algumas horas, já se preparou para o descanso dominical, mas o Beco e a feira livre da Lagoinha ainda pulsam. Caminho entre os boxes mais fechados que abertos, a entrevista que marcara para hoje não pôde acontecer, pois o vendedor foi categórico: enquanto houver clientes, se for preciso, “entro pelas dez da noite”. Usei o tempo para fazer o que mais é permitido embaixo dessas tendas: caminhar. A esta hora, a feira lembra uma grande e velha fornalha cansada a qual alimentam insistentemente com todo o tipo de combustível a fim de vê-la queimar até mais não poder. Gatos pingados circulam, certos boxes insistem, outros vão se dando por vencidos, abaixam as portas a meio palmo, abrem as malas, ensacam as camisas, desnudam as modelos encardidas, mas se passo por perto, olhando atenta, reabrem as portas e me oferecem produtos. Sinto-me sempre uma presa aqui dentro: carne fresca na voracidade da lógica do comércio. Entendo, contudo, essa abordagem, em geral, invasiva. É preciso ganhar a vida, se trabalhasse ali, decerto agiria da mesma forma. No Beco, qualquer conversa é de domínio público, os gritos, avisos e falações têm longas pernas: correm como gente por entre as galerias. Vadiam feito almas penadas, trocando de hospedeiro de boca em boca. Começam em baixíssimos sussurros ao pé do ouvido, ruas depois explodem em chacotas estridentes. Naquele sábado, caminhou comigo, ao redor de mim, o burburinho de que uma moça fora surrada dentro do Box. Coisas de casal. Já são quase seis da tarde, o pôr do sol pinta o céu de boa noite. Quando os boxes fecham, a estrutura fica mais evidente. A precariedade também. Salvo o teto, construído depois, tudo o mais é velho, sujo e por vezes enferrujado. Os tons de cinza do nanquim tanto cabem nessa paisagem que mais parecem colorido; a esta hora,


histórias de beco |

|79

foram-se embora os matizes dos tecidos que embaralham os olhos na correria. O rosto dos vendedores exaustos também é gris. Deixo o Beco dormir seu sono de ressaca e sigo a Guilherme Rocha rumo à Av. do Imperador. Enquanto a velha fornalha se deixa reduzir a cansadas cinzas, na Lagoinha, o relógio não passa. Nem horas, nem dias, e, reparando bem, sequer os anos parecem passar. São dezenas de toldos a postos, catando a clientela que se perde nas fileiras. E as histórias dos jornais amarelos da hemeroteca emergem diante de mim numa sensação de dejavú do que li, mas não vivi. A Lagoinha de 1987 está pulsando aqui. São outras modas, músicas e gentes, mas como parecem as fotografias em preto e branco do caderno de cidades, reportando: “Camelôs invadem a Lagoinha”! O centro, dos permissionários, lojistas formais ou ambulantes, revela uma Fortaleza de guerreiros. A “praça dos malandros” é também dos trabalhadores, em suma, é a feira dos sobreviventes. Vou-me embora desejando, silenciosa, “feliz Dia dos Pais” aos homens cansados que carregam os lombos de sacolas amarelas. Amanhã, talvez, ganhem uma das camisas de botão que vendem na feira. E certamente se alegrarão por isso.





capĂ­tulo IV

Vida de Sacoleiro ou o sustento a horas de distância


Um recorte do esforço de centenas de consumidores diferenciados, preferenciais do Beco: os sacoleiros. Difíceis de estereotipar, estes viajantes em busca dos melhores preços são de várias localidades, idades e rendas. Esta diversidade é explorada a partir de quatro personagens, interrogados na correria: os únicos receptivos à entrevista, após horas de muitos nãos.


capitulo IV

S

egunda-feira e quinta-feira. Os dias estão na ponta da língua de qualquer funcionário do Beco. Estes sim, de feira mesmo. Perto deles, os dias restantes são chamados “pinga-pinga”. Segunda e quinta centenas de compradores de fora desembarcam na tenda. É para estes “dias de feira” que os permissionários se preparam, para atender aos compradores mais vantajosos, porém avexados do Beco: os sacoleiros, que, aliás, não parecem se reconhecer ou intitular assim, o nome é feio, pejorativo. Identificam-se, na verdade, como compradores, revendedores, micro-empresários, feirantes... dificilmente sacoleiros. Madrugada de domingo pra segunda, meia dúzia de ônibus estacionam nas proximidades da igreja da Sé, na capital Fortaleza. Deles desembarcam centenas de pessoas simples, humildes, com sacolas jeans e carrinhos a postos, que viajam dias a fim de reabastecer feiras como as das nossas praças e ruas. Assim fora sempre minha imagem dos sacoleiros. A sua também? Neste dia de ida ao Beco, contudo, repensei-a. São muitos os motivos da viagem, as formas de locomoção, os lugares, as distâncias, as condições de traslado, as histórias, enfim. Neste dia, revi paradigmas quanto a pessoas, ofícios e ao próprio jornalismo. Não, não será o melhor dos capítulos. Em mais uma quinta ensolarada, o Beco ferve de compradores, a correria supera a de quaisquer outros dias, exceto a da segundafeira. Os sacoleiros não são tão fáceis de reconhecer quanto parecem. Para ser sincera, achei que tudo seria muito mais fácil, sob diversos aspectos. Quando se está no Beco, compreende-se o que realmente significa um ambiente hostil ao exercício do jornalismo. Um lugar


86 |

| Capítulo IV

apertado, com muito barulho, sem lugar para se acomodar, todos em volta escutam a entrevista, e todos – absolutamente – estão muito ocupados para dar qualquer declaração. Em dias de sacoleiros, esta hostilidade se multiplica significativamente: primeiro, por que, de fato, andam todos apressados. Os transportes nos quais os revendedores se locomovem têm hora certa para chegar e sair, além disso muitos compradores não visitam só o Beco, mas fábricas e outras feiras informais: em suma, correm contra o tempo. Segundo: onde há comércio pesado – entenda-se mercadoria em quantidade e dinheiro (em quantidade) – não há conversa. Na hora dos negócios ninguém responde perguntas, qualquer descuido implica em perda financeira. Quem vai “dar bola” pra uma menina com gravador na mão querendo saber da minha vida? Mais: do meu negócio? Nessas circunstâncias iniciei minha peregrinação em busca de boas almas que topassem conversar enquanto separavam 40 peças de um modelo, 60 de outro, 30 de outro. As ruas estão incrustadas de sacolas amarelas, roupas empilhadas e amarradas em blocos ordenados. Quem não está negociando, está se preparando para isso: dobrando roupas, reunindo mercadoria e recebendo fornecedores (que também surgem estrategicamente). Na caminhada, depois de alguns bons “nãos” encontro Seu Gilberto. Ele e a esposa já desfazem um primeiro estereótipo dos sacoleiros: de que vêm de fora do Ceará. Seu Gilberto é de São Gonçalo do Amarante, município distante 59 quilômetros de Fortaleza, é funcionário público e a esposa tem uma loja de confecções, masculinas e femininas. Vêm ao Beco de ônibus, a viagem dura cerca de duas horas. Quando as vendas melhoram, costumam vir de 15 em 15 dias, quando não, vêm mensalmente, principalmente na última semana do mês. A preferência pelo Beco provém do preço, segundo Seu Gilberto é um dos únicos lugares em que é possível comprar mercadorias a um valor adequado para a revenda. Assim como Gilberto e a esposa, muitos outros comerciantes do interior do Ceará, sertão ou litoral, deslocam-se periodicamente


histórias de beco |

|87

à capital em busca das mercadorias de feira. É também o caso do senhor Argentino. Estava eu caminhando aos tropeços pelas ruas amarelas de sacolas quando ouvi a vendedora dar-lhe um “Bom dia, Seu argentino”, pensei: “Caramba, um senhor de outro país comprando no Beco?! Isso é matéria!” Aproximei-me já preparada para possivelmente retirar do armário meu mofado espanhol: “Bom dia, senhor, podemos conversar?”, “Pode... diga lá”. Audível e visivelmente cearense. Descobri, na verdade, que o senhorzinho de 74 anos se chama Argentino Ferreira da Silva. Ele vem de Tauá e desde 1992 compra no Beco. Seu Argentino, diferentemente de Gilberto, sofre com as condições da longa viagem. Diz-me que costumava levar cinco horas para chegar à capital, mas, por conta dos buracos na estrada, o traslado passou a demorar seis horas. De mês em mês ou bimestralmente ele enfrenta os solavancos da viagem e diz que, quando possível, vai e volta no mesmo dia. Não gosta de ficar na cidade, ainda que possua parentes em Fortaleza. Segundo ele, não lhe agrada incomodar ninguém. Naquele dia, dormira na casa dos sobrinhos e pretendia já voltar à tarde. Seu Argentino descobriu o Beco com uns compadres que, na época, já vinham à capital abastecer seus estoques. Como repassam essa mercadoria? De moto, de Kombi, de caçamba até. Como o jumentinho de outrora, que cruzava o sertão com o lombo fornido de caçoás, agora vai a motocicleta, abastecida de blusas, calças e bermudas femininas e masculinas, a correr os interiores, uma boutique itinerante. Mais à frente, enxergo a moça. Sentada, tranqüila, a indicar com o dedo de unha bem feita as peças preferidas, uns quatro sacos enormes já iam empilhados ao seu lado. Esta é Cíntia. Belíssima. Uma moça loira, grandes olhos claros, lábios pintados e as faces levemente rosadas com blush. Fala mansa, baixa, compassada e desconfiada. Cíntia representa bem uma outra imagem dos sacoleiros, aqueles que apenas se deixam intitular micro empresários, que caminham


88 |

| Capítulo IV

austeros pelo Beco, em geral mulheres acompanhadas de um ou dois homens visivelmente turistas com calculadoras de todos os tipos nas mãos. Cíntia, contudo, viera com a cunhada, mas geralmente viaja só. E tem nas faces a altivez e esperteza sóbrias de quem resolve seus assuntos sozinha. É paraense, de Santarém, e visita o Beco trimestralmente. De ônibus? Nada. Cíntia vem de avião. A passagem é cara, mas costuma compensar. Tem ido, no entanto, mais vezes a São Paulo, lá sim os preços são imbatíveis. Quando vem, costuma ficar uma semana inteira em Fortaleza, mas a cidade mesmo não conhece. Não está a passeio. Diz que os corretores auxiliam nos contatos e a semana é estrategicamente organizada para visitar feiras, fábricas e o Beco. Faz compras para ela e para a sogra, ambas possuem lojas. Foi, aliás, com ela que descobriu o Beco. A senhora fuçou todo o país em busca dos sonhos de todo revendedor: o bom, bonito e barato. O ceará é um desses lugares. Onze e meia, meio dia. A fome vai chegando não só ao meu estômago, as cozinhas do Beco são a única opção rápida de engolir qualquer coisa. Encontro meia dúzia de mulheres, uma delas grávida (um barrigão enorme, aliás), lançando ligeiras colheradas de um arroz com carne cozida à boca enquanto arrumam sacos e contam peças. Pergunto de onde são, se podemos conversar. Todas vieram na mesma caravana, de Natal, no Rio Grande do Norte, mas não há tempo para entrevistas, ainda que se mostrem bastante solícitas. O ônibus sai a uma da tarde e ainda vão tomar banho e acertar as contas com o hotel (um quarto, um guarda-volumes com banheiro, praticamente). Irrito-me de não ter chegado mais cedo. Encontro Dona Gorete (a fotógrafa, do primeiro capítulo, lembra-se?), que me consola. Até mesmo os vendedores se incomodam com o avexo dos sacoleiros, mas não podem pedir calma. O relógio não lhes dá trégua. Já descendo a rua rumo a Lagoinha, decepcionada com a manhã difícil, encontro dona Maria do Socorro. Forte, cabelos e pele pardos. Simpática. Guerreira: ela e mais cinco mulheres


histórias de beco |

|89

cruzam o nordeste numa topic fretada. De Caicó, interior do Rio Grande do Norte, para Fortaleza. Conversamos rapidamente. O rosto de Maria ferve. Lança-me um olhar sincero, daqueles de gente trabalhadora, não saberia explicar. Centenas de quilômetros percorridos à noite num carro apertado por estradas medíocres que são as nossas interestaduais. Centenas de quilômetros enfretados não uma vez ou outra, mas frequentemente. As seis mulheres chegaram na capital às cinco da manhã e não houve hotel, banho ou comida. O desembarque já foi na rua José Avelino, pros lados da Catedral, no alvoroço da feira insone. Nove da manhã estava no Beco, meio dia – quando nos encontramos – deixava a tenda, à tarde carregariam a topic e voltariam para casa. “O que é essa vida de sacoleiro, de comerciante?”, perguntei-lhe solidária ao suor que lhe empapava o rosto pardo, contido com a alça do macacão jeans. Maria olhou o chão antes de fitar-me com seus olhos de sobrevivente: “é muito difícil, muito corrida essa vida.” Mas lhe agrada? – não me contive, era preciso perguntar. “Muito. Eu gosto.” E aqueles olhos mostraram-me outros cinco que não conheci. E outros muito mais que cinco, impossíveis de aglomerar num perfil único, mas trabalhadores todos, como Maria, Cíntia, Argentino e Gilberto, cada um a seu modo. São milhões viajando o país inteiro, contatando outras culturas, sotaques, hábitos, lidando com um Brasil e uma brasilidade que poucos têm a oportunidade de considerar, mas que também lhes passam despercebidos, muitas vezes, já que o comércio da correria não permite turismo. O Brasil dos sacoleiros tem outras demarcações, outro mapa, em que estados e regiões se dividem por produtos, preços e etiquetas.



capítulo V Rente ao chão ou a rua do por debaixo dos panos


A rua mais escura e escusa do Beco vista de outro ângulo. Neste capítulo, descrevo, a partir do lixo, uma das galerias mais destoantes da feira: a rua da pirataria. Nela não se vende confecção. Frutas, eletro-eletrônicos, CDs e lanches formam um estranho conjunto de ofertas. Estranho e tenso. Autoridades e “Homens” vez em quando aparecem, gerando tumulto e correria.


capitulo V

S

ão dez horas de uma manhã qualquer. A claridade cega os transeuntes, fazendo-os milhares de toupeiras a se esbarrar na correria trivial da José de Alencar. Homens e mulheres ceguetas recorrem ao Beco em busca de óculos escuros a dez reais. Apesar do sol, uma rua da grande tenda é escura ainda. Ainda e sempre. Nela, o chão em falso, de cimento batido, não é mais que uma sombra alaranjada da lona, disputada por restos. São eles que dizem onde estou, isso é lei em todo o Beco: em quaisquer ruas, o lixo conversa conosco e é capaz de nos dizer dos vendedores e transeuntes, dos produtos vendidos e consumidos, de tal modo que, se me encostasse rende ao chão, saberia adivinhar em que rua estou. Deixem-me, então, fingir colar o rosto ao chão desta rua em que me encontro: Os restos de frutas dominam o início do corredor, nos lados da José de Alencar, o cheiro forte e adocicado camufla a rua escura, apresentando-a amistosa, uma reminiscente das feiras de frutas e verduras que migraram para o Beco. Após os três primeiros boxes, bagaços e sementes lentamente dão lugar a peças eletrônicas, lixos do século XX / XXI: molas, parafusos minúsculos, armações e outras miudezas de ferro e aço inox. As pequenas tralhas dizem-me dos relojoeiros, agora os donos da rua. Relojoaria resume parcamente o serviço realizado nesses apertos semi-escuros. Dentro do cubículo incrustado de sucatas cibernéticas eletro-eletrônicas, homens de meia idade alternam, concentrados, as mãos entre a imunda caixa de ferramentas e o notebook instalado entre peças afastadas no empurrão. Dentro desse coral de ferrugens e graxa trabalham os “gênios do faz-tudo”, como me agrada chamá-los. O gênio começou, de fato, como relojoeiro e amolador de alicates e ainda hoje o faz, mas, acompanhando a correria digital, de onde minam não só três


Pés No Lixo


O GĂŞnio do Faz Tudo


96 |

| Capítulo V

ou quatro reais de amolação ou troca de bateria, o gênio comprou computador, celular, meia dúzia de aparatos e hoje desseca telefones e mp3, 4, 5, 12; desbloqueia, troca firmware, abre máquina digital, e, se duvidar, ensina a comprar direto de Honk Kong. Encontro-me deitada ainda. Passam as tralhas de ferro, o escuro insiste abaixo das lonas laranjas e, do chão, parece fim de tarde. Retorna às narinas o cheiro adocicado de fruta: estamos entre as lanchonetes. Nesta rua, seria possível dizer que tecnologia e comida se misturam numa lógica esdrúxula, em que se unem o alimento do corpo e da mente. Ambos, contudo, não necessariamente sadios e ideais quanto a metáfora sugere. Tanto o lanche quanto os aparatos eletrônicos são manuseados, preparados, em condições bastante adversas. Em meio a parafusos, ferrugem e graxa, emergem verdadeiros mini-mercados. Vitaminas, hambúrgueres, salgados, sucos, refrigerantes, cervejas, guaraná em pó, marmita, e tudo o mais além disto. No mercadinhos de 1,5m por 1,5m vende-se ainda cadernos, canetas, sacos plásticos, copos descartáveis, absorventes, cremes dentais, escovas de cabelo, esmalte de unha, biscoito recheado e leite em pó. São estes supermercados em miniatura que abastecem as necessidades emergenciais dos comerciantes, na difícil tarefa de viver um terço de suas vidas na estafante tenda abafada. Logo ali, desvio dos primeiros sacos plásticos e impressões de parca tinta, o caco de CD no canto da parede entrega a nova mercadoria da rua, o carro-chefe do corredor: a pirataria de CDs e DVDs. Por mais que se vendam lanches, frutas e eletrônicos, esta rua será sempre a da pirataria. O pirateiro, assim como o faz-tudo, sobrevive do desafio diário de burlar a legalidade dispendiosa e financeiramente inacessível. Ele, ao contrário do gênio, é um rapaz ainda, estuda na escola pública à noite, mas ser aluno é sua condição mais coadjuvante. Ele precisa de dinheiro que patrocine: o cigarro, a bebida, o forró, a swingueira e o show dos covers dos Racionais. Ele precisa de dinheiro: que ajude em casa, já que o pai bebe o salário e a mãe está desempregada. Um dos dois também trabalha no box, possivelmente. O rapaz, contudo, não é dono do ponto. O


Supermercados em Box


98 |

| Capítulo V

pirateiro jovem até conhece o esquema, mas o que sabe não abarca completamente a dimensão do negócio. Na real, ele é apenas o menino de recados, menino da jujuba, e sabe disso, já que não é ele que resolve quando o Homem aparece pra tirar o Dele. Quando o Homem chega, os gerentes dos boxes (que provavelmente ainda não são os verdadeiros donos) saem das tocas para baixar as portas ou negociar o “troco”. Os Homens são como cães de rua: com eles se convive, se conversa e até alimenta, mas não se deve esperar demais, eles sempre podem mordê-lo. Não se pode fazer muito, sabe como é, ladrão que rouba ladrão... aquela coisa. Naquele dia de toupeiras, pernas avexadas chutaram o lixo do chão numa correria. Os gerentes saíram das tocas pra fechar as portas, delegando aos pirateiros que escondessem as caixas. O barulho de ferro desenrolado e cadeados sacudidos tomou conta da penumbra embaixo da lona laranja. Na contra mão, corro eu, procurando o epicentro. As almas penadas passeiam em cochichos: são as falações correndo pela rua estreita, desvio de suas grandes pernas imaginárias e aguço os ouvidos. O disse-me-disse me contou que os Homens chegaram pela entrada da José de Alencar e, por isso, os boxes no lado oposto, o da Tristão Gonçalves, estão baixando as portas. Após trancadas as grades, gerentes, pirateiros e quem mais que esteja na rua começam a se encostam às bancas fechadas e a conversar amigavelmente, como se nada tivesse acontecido. E já não saberia dizer se o que vejo me faz rir ou estranhar, talvez as duas coisas. Aquela era, de fato, uma situação surreal: um teatro esquisito de dezenas de pessoas em fila indiana, recostadas aos boxes fechados como se realmente estivessem ali para isto, conversar. Quanto aos boxes? “Meu? Meu não, tava só aqui passando, de bobeira, quando cheguei já tava assim, fechado. O que vende aqui? E eu lá sei!”. Essa era a resposta e provavelmente também a minha naquele momento. Faz rir e estranhar. Caminho de ouvidos em pé. Pelo meio do corredor, a falação falou em alarme falso e o burburinho virou anúncio, gritado de esquina em esquina: “Alarme falso, negrada! Tem Hômi, não!”


O Troco do Homem


100 |

| Capítulo V

Novamente, portas de ferro foram enroladas acima dos boxes, cadeados libertam as prateleiras, milheiros de CDs e DVDs. Foi selada a falsa calmaria. O motivo da desconfiança aparece pouco depois: um Homem só, em farda cor de caqui. A boina escura vinha presa no cós da calça, ao lado do 38. Passeou de box em box conversando amigavelmente, enquanto comia dois ou três DVDs por banca, entocados no uniforme, o botão da camisa estrategicamente aberto. Puxava assunto, mostrava o celular e sorria, os curiosos se achegavam. No aparelho, fotografias feitas no camburão: “Eram de um cara que pegaram no Fortal, o cara morreu com uma faca na cabeça!”, contou-me o pirateiro. Desconfiado, disse-me sem que eu perguntasse: “É meu tio, ele”, referindo-se ao Homem. Os Homens são muitos e de muitas fardas: caquis, verdes, azuis e pretas. Elas, na verdade, são o que diferem os pirateiros e gerentes dos Homens. Não fosse o uniforme, muitos deles se igualariam no desafio de burlar a legalidade. O Homem, muitas vezes recebe outros nomes: o Polícia, o Rapa, o Fiscal, mas nem toda autoridade é Homem. Os Homens são um tipo de autoridade de descontrole social, sem a qual o esquema da ilegalidade não teria tanto êxito. Dos Homens dependem a pirataria, o tráfico, o contrabando. Os Homens são alguns dos que dão vida à ilegalidade institucionalizada e ajudam a desenvolver e incorporar cotidianamente o conceito de “jeitinho brasileiro”, que se reinventa a cada novo objeto de desejo “de marca”, que um assalariado não compraria sem crediário. Nesse meio tempo, os Homens e outros tantos sanguessugas do esquema enchem os bolsos do pedágio que tanto o rapaz comum que produz os DVDs que vende quanto o verdadeiro dono da banca pirata – o tal desconhecido, o que chega na Hilux preta, vidro fumê – pagam pra ter seus CDs e DVDs de volta. E enquanto isso, barracas de frutas nos primeiros boxes mascaram a escuridão dos terceiros, e o cheio forte de suas frutas pisadas confunde outros odores, de algo que não cheira bem.


Rua da Pirataria



capĂ­tulo VI Cotidiano de Beco e o Rap(p)a ou a Trilha Sonora TambĂŠm Narra


Um pouco mais do cotidiano do Beco e as questões inúmeras que giram em torno da iminente transferência. Os relatos deste capítulo, contudo, são intercalados com música, a trilha sonora da feira que muito denuncia a quem conhece ou não as letras do grupo carioca O Rappa, grande inspirador de toda esta obra, permanente nos ouvidos da autora em momentos de escrita.


capitulo VI

O intestino de metal que corta as ruas

S

ão vinte e dois corredores, eu acho. Sai contando e, do que andei, perdi a conta. Vinte e dois ora estreitos, ora largos corredores folhados de amianto agarrado de ferro e concreto. Recheiam a cobertura laminada pouco mais de 2 mil boxes com pouco menos de 2 metros quadrados cada: isso é o Beco da Poeira. “O espaço é curto/ quase um curral na mochila amassada / uma vidinha abafada” Cada galeria deve medir uns 100 metros, me disseram. Se assim for, percorri a pé em torno de dois quilômetros, ziguezagueando feito um resto de comida no intestino delgado. 2000 metros da vida que se replica a ponto de confundir as vistas. Pela décima segunda rua, achei já ter entrado ali umas duas vezes. Mas quanto calor, quanto aperto, quanta roupa e sacos e gentes e ferro cabem embaixo dessa estufa gigante? “O calor é solido/ um pedaço eu sinto como um bafo é/um pedaço eu sinto como um bafo é” A tenda não tem entrada, nem primeira ou última rua: na prática, entra-se por qualquer lugar. Convencionou-se, contudo, que os lados da José de Alencar são a frente, e que se conta o início da direita pra esquerda, talvez por que o corredor da ponta esquerda, o único murado, é o da pirataria e, portanto, a rua do receio. Das 22 galerias, cerca de dezessete delas são destinadas a roupas e afins:


106 |

| Capítulo VI

lingeries, sapatos, blusas de time e moda praia. As outras cinco se dividem em miudezas e importados, livros usados, frutas, lanches, plásticos, relojoeiros, CDs e DVDs. O Beco tem tudo para ser uma cidade: população própria, casas, esquinas, ruas principais e secundárias, tráfego e até engarrafamentos, vizinhos, prefeitura, e outras tantas peculiaridades que o desenvolvimento urbano lhe emprestou: desigualdade social, intrigas políticas, problemas estruturais, poder. Sob essa perspectiva, Fortaleza é como um organismo esdrúxulo, porém vivíssimo, e o Beco é o intestino de metal no meio das artérias - entupidas - do coração desse corpo estranho. O Beco é uma cidade que pulsa no Centro de uma outra. Uma cidade gorda, populosa, inchada e densa. “Como um Concorde apressado/ cheio de força/ Voa, voa, mais pesado que o ar/ o avião, avião, o avião do trabalhador” Nesta cidade-mercado (ou mercado-cidade), as galerias se chamam ruas e os estabelecimentos, boxes. Os vendedores próximos se chamam de vizinhos e ora se auxiliam ora se engalfinham tais quais vizinhos. Assim como as da cidade maior que o acolhe, as ruas do Beco também estão em péssimo estado, dificultando a passagem dos carregadores: homens que se enveredam na estreiteza com sacos enormes à cabeça, chegando a cobrir os olhos, gritando: “peeeso!”, para afastar os pedestres, feito uns caminhões lotados ou ambulâncias. Assemelham-se ainda à criatura raquítica e corada do filme Labirinto do Fauno, cujos olhos eram na ponta dos dedos. Só assim se explicaria que vissem com aquelas trouxas achatando as testas. Não eram feios como a criatura, contudo, isso não. Ainda que não pareça, também tal qual uma cidade, o Beco possui suas desigualdades. Há casas de luxo, de classe média, apartamentos e favelas. Quem mais investe, mais tem, assim, se o Box da Fulana possui somente a grade, a tranca e o vão de guardar o estoque, o da Cicrana tem isso mais ventilador; já o da Beltrana, tem TV preto


Carregadores Sem Olhos


108 |

| Capítulo VI

e branco; no vizinho, a TV é colorida; há deles com telefone fixo e até boxes mais “chiques”, com cartão de crédito. Siqueiras, Parangabas, Aldeotas e até Águas Frias: a cidade-mercado também é fatiada. Existem boxes mais altos que os convencionais, cuja parte de cima se destina ao estoque, semelhantes a apartamentos com ponto comercial e já outros, mirrados e espremidos, feito bangalôs. Uns são coloridos de rosa pink, verde limão, e se esforçam para se assemelhar a lojas de shopping a despeito do aperto. E se, em toda cidade que se preze, legal e arbitrário disputam espaços, também no Beco há marginalidade, no sentido do que está à margem, do que não segue os padrões: nas barracas montadas nos arredores do Beco não se paga condomínio, mas também não há perdão quando passa o rapa. A feirinha de fora representa a favela. “A viatura foi chegando devagar / e, de repente, de repente, resolveu me parar... De geração em geração / todos do bairro já conhecem essa lição” “Mas eu não sou autorizado e, quando o rapa chega, eu quase sempre escapo / Quem me fornece é que ganha mais / a clientela é vasta, eu sei” Onde há cidade, há imposto; onde há imposto, há dinheiro; e onde há dinheiro, meu amigo, existe sempre alguém se oferecendo para geri-lo. Na cidade-Beco, não é diferente. As disputas políticas, na verdade, em geral, não se acirravam. A desarticulação entre os vendedores ou falta de interesse por um lado e a aparente aprovação do líder por outro, levou-os a permanecer orientados pela mesma gestão desde que estão no Beco. Mas as perspectivas de transferência mudaram esse cenário. Novas associações de permissionários sugiram e se insurgiram contra a atual gestão. “Na muvuca, na encrenca, tem inocente, tem culpado”


Apartamentos Comerciais


110 |

| Capítulo VI

No dia em que percorri o Beco de ponta a ponta, as conversas ziguezagueavam feito peixe ensaboado. Levavam e traziam as mesmas perguntas: cadê o prédio? Cadê a associação? Cadê o dinheiro? Não se fala de outro assunto Bem mal desci os degraus do ônibus e já o burburinho. Não era o mesmo de sempre. Naquela manhã, o Beco resmungava de outro jeito – num misto de agitação e dúvida, de tensão e revolta. Aquele era o dia depois de mais uma audiência pública sobre a transferência dos permissionários para um “novo Beco”. “Nas esquinas, nas favelas /Não se fala de outro assunto/ É, não se fala de outro assunto” O papo evoluía desde os cochichos espritados, comentando da roupa que a vizinha do Box 6666 usou para o evento, até verdadeiras mini-conferências, em que, num exercício de memória e interpretação, meia dúzia de permissionários se ajudavam a relembrar e entender finalmente o que foi mesmo que o vereador disse e a prefeitura e a associação e o rapaz que se levantou no meio do discurso do outro, feito um “amostrado”. Mas discussão, só entre eles. Com os clientes: negócios apenas. O silêncio chega comigo, sou a censura por um momento, num movimento esquisito do povo de varrer para debaixo do tapete. “Papo de surdo e mudo/ papo de surdo e mudo/ surdo e mudo/ surdo e mudo”

- Sim, teve audiência ontem, não foi? – pergunto. - Foi. – respondem. - Cadê, resolveram o quê? (Dois dedos de silêncio) - Nada. Resolveram nada. Nada. Não aconteceu nada. E se aconteceu, vale a pena correr o


histórias de beco |

|111

risco por tão pouco, dar com a língua nos dentes? Quem sou eu ali além de uma desconhecida, curiosa, uma enxerida. Sinto-me o DIP a cada esquina, passo e todos se calam, põem sua melhor cara de comércio e repetem insistentes “vamos levar uma blusinha?”. Entre a censura e a verdade sussurrada o certo é que ecoam frases pelo corredor e, à cata das palavras, consigo ordenar alguns pensamentos. “A idéia lá corria solta, subia a manga amarrotada social / no calor alumínio/ não tinha caneta nem papel e uma idéia fugia” Três homens do box de blusa de time conversam. Querem cavar tudo em novembro, já naquele mês ninguém pode mais estar ali. O mais gordo, rijo e áspero, sequer acredita em Metrofor. Para ele, a estação vai ficar pelo meio do caminho e o beco volta a ser o que era em 86: um terreno baldio tomado de camelôs e mirins. Um dos rapazes deixa escapar a situação política em torno da decisão, “o problema, macho, é essa coisa de lado A e lado B.” As associações não se entendem, logo nenhum trabalhador parecia se sentir realmente representado. “Se eles são Exu, eu sou Iemanjá / se eles matam o bicho, eu tomo banho de mar / com o corpo fechado ninguém vai me pegar / lado A lado B / lado B lado A” Rapazes e moças às portas do corredor discutiam calorosamente. A estrutura será péssima, tão quente quanto a que está, e não vai haver esquinas, os boxes serão todos unidos, oito ou dez grudados até que haja uma esquina, e não serão nossos, vamos pagar aluguel! - Se do jeito que está, já existe confusão entre os vizinhos, imagine com o box grudado! – um vendedor. - Lá não é nosso, a gente pagou foi pelo outro, e se depois a prefeitura quiser o espaço? A gente fica sem teto! – uma vendedora.


Mini ConferĂŞncias


histórias de beco |

|113

Enquanto isso, a vizinha se reclamava de ter sido obrigada a fechar o box para ir à audiência e as mulheres dos importados comentavam da Assembléia Legislativa, onde nunca haviam entrado, vaidosas das câmeras que registravam tudo. Enquanto eu procurava juntar os cacos, à guisa de organizar na cabeça esses milhares de aspectos do dia anterior, uma senhora comerciante de confecções, numa tímida conversa com a amiga, atentou para um detalhe significativo. - Tão reclamando agora, todo mundo falando, mas na hora que a prefeitura mostrou o projeto, por que é que bateram palma? Na hora que ela disse que só ia ter rua estreita, que os box ia ser tudo junto, por que não reclamaram? Agora ficam aí falando. Na hora, quando a mulher perguntou se tinha dúvida, só uma mulher se levantou pra perguntar se ia ter rua larga. Só perguntou isso: se ia ter rua larga, mulher! Tu acredita? – Mas a feirante também não disse por que ela mesma não questionou. Apenas por volta da décima rua uma alma corajosa dirigiu-me a palavra para além do comércio. As mulheres dos boxes de modinha e lingeries debatiam confusas e, finalmente, contaram-me algo abertamente. Disseram que, do que se havia acertado, iriam mesmo para a antiga tecelagem, ainda que a prefeitura tenha aconselhado que continuassem querendo saber o que aconteceu com o dinheiro que investiram no prédio da Tristão Gonçalves. Este esqueleto, por sua vez, tornar-se-ia o que as moças chamaram de “vapt-vupt”, um prédio de serviços rápidos, DETRAN, Coelce, Correios, pagamento de contas, uma provável nova sede da Casa do Cidadão, ouviu-se ainda o boato do restaurante popular. - Mas, mulher, os vereadores pensam que a gente é besta, né? – relembrou uma das moças, atentando para o fato de estarem lá aos montes – Aquele da Tv, o Valim, dizendo lá que vai fazer uma CPI pra saber do dinheiro, vamo ver, né, se isso sai. Os bate-bocas sobre a mudança recordaram-me da minha tentativa de contatar a administração do Beco. Uma simples caminhada para mim, um ofício permanente e desgastante para pessoas como Rosa e Benvida. “Se era bom ou ruim, tava aquém de mim/ se era bom ou ruim, tava aquém de mim”


114 |

| Capítulo VI

Vários holofotes ligados “Moço, peço licença, eu sou novo aqui Não tenho trabalho, nem passe Eu sou novo aqui” Rosa e Benvinda já estavam lá quando cheguei. Antes percorri um centro desconhecido, para além da Av. do Imperador. Caminhões carregados de cana-de-açúcar descarregavam os filetes verde-roxos em imundos depósitos, casarões antigos ocos por dentro, desmanchados em galpão. No casarão vizinho, a placa diz “Janjão: conserta-se tudo”, uma casa da época do imperador, desconsertada para servir de abrigo a ventiladores, geladeiras, sofás, camas, fogões e tudo o mais que o Janjão conserte. Inúmeras casas antigas, inúmeros usos de hoje, feito uma pintura relativamente recente numa moldura velha. Moldura e pintura, ambas contam histórias. Deixo a abstração ao avisar o prédio da associação. Na recepção da sede, recebe-me uma moça. Repetiu-me o que dissera a dois ou três da sala, que o presidente estava em reunião com a prefeitura. À dona Rosa disse que Amaro voltaria ao meio dia, a mim disse não saber. Avisada a chegada de um funcionário responsável pelo assunto de dona Rosa, ela e dona Benvinda, além de um outro senhor seguiram para outra sala. Fui com eles. Logo à entrada do cubículo, dividido em dois por uma câmara de vidro em que se acomoda o funcionário, de frente para a porta, um quadro revela o tão sonhado Centrão, uma ilustração em 3D do que deveria se tornar o esqueleto da Tristão Gonçalves, cuja construção foi iniciada na gestão Juraci e estacionada em 2005. Dona Rosa pergunta de pronto, assim que entramos: - Esse aí vai ser o prédio da Imperador? É pra lá que vão nossos boxes? - Não, esse é o verdadeiro novo Beco, esse é o Centrão, o da


Na Associação


116 |

| Capítulo VI

Tristão Gonçalves. – explica o secretário. - E o da Imperador? - Não, não tem Imperador – retrucou – a gente só vai se for pra Tristão Gonçalves. Dona Rosa argumentou que a prefeitura havia dito que não teria como irem para lá, ao passo que o funcionário, secretário do presidente, explicou que, para que dêem continuidade à construção na Tristão Gonçalves, bastava apenas o pagamento do alvará da construção por parte da prefeitura. Segundo ele, a desapropriação do terreno, de responsabilidade do governo municipal, não foi paga. - A prefeitura comeu o dinheiro. – resumiu o secretário. Explicou que a administração municipal recebeu 4 milhões para fazer a desapropriação na época, não pagou e depois disse que não tinha dinheiro. - Agora, o governo do estado paga mais 8 milhões à prefeitura e ela diz que não tem mais verba. – continuou. Deixei a sala. Já era hora. Não sem antes, contudo, ser interpelada pelo secretário. Perguntou o que queria e expliquei-lhe meus motivos, que gostaria de falar com o presidente, ouvir-lhe a versão. O rapaz ofereceu-se prontamente, disse que ele mesmo resolveria. Recusei, no entanto. - Tentarei falar novamente com o presidente, caso não me receba, vejo se conversamos. Lá fora, procuro Rosa e dona Benvinda, uma senhora idosa já. Rosa faz questão de mostrar-me documentos e certificados que traz consigo. - O que está registrado em cartório não se perde, não é, minha filha. – a importância da minha resposta nos olhos dela. - Acho que não, dona Rosa. Guarde todos, hão de lhe servir. – digo, impotente. Há 5 anos adquiriram um box cada uma. O de Rosa custou R$ 6.700 reais, o de Benvinda, R$ 7.500. A moça vendeu um carro para pagar pelo estabelecimento e dona Benvinda, uma casa no interior.


histórias de beco |

|117

Rosa contou que, na época, chegaram a mostrar-lhe a maquete do lugar e garantiram que lhe ligariam, caso confirmassem algo. Nunca ligaram. Desde então ela percorre toda semana o mesmo caminho de casa até a sede para saber notícias. O consolo que o secretário lhe dá é que ela não está sozinha. - Só cinco anos? Tem gente que comprou box há 13 anos! Minha senhora, igual a você tem 468. Dona Rosa diz nunca ter encontrado ninguém reclamando como ela. Se encontrasse essas pessoas, ao menos procurariam se unir, lutar juntas, quem sabe. Com o Metrofor e a emergência da transferência, está apreensiva. O jornal diz que quando o espaço na Av. do Imperador estiver pronto, vão fazer um sorteio entre os permissionários, mas dona Rosa comenta que não se sente permissionária, por que não tem um cadastro confirmado. - Cadastrado, do que eu entendo, é o que paga todo mês a carteirinha da associação, mas eu não vou ficar pagando pra não receber nada, não é assim? - Situação confusa. Agora, a moça diz nem querer mais o box, apenas seu dinheiro de volta. - Nem que eu dê todo pra um advogado, mas não deixo com eles! – desabafa. Toda semana, esclarecimentos da Aprovace e boletins da prefeitura pipocam pela tenda. Os prazos envelhecem, permissionários e compradores também. Repórteres entram e saem cada vez mais do feirão popular que, depois de anos, volta às manchetes da editoria de cotidiano a cada nova audiência pública, debate, ou quando pessoas como Rosa e Benvinda decidem procurar a imprensa (e são atendidos). Como diria o grupo O Rappa, há “vários holofotes ligados aqui”, mas “quem sabe aqui dentro o que acontece sou eu”.

Eu sou guerreiro,


“ Sou trabalhador E todo dia vou encarar Com fe em Deus E na minha batalha. Espero estar

´


bem longe Quando o rodo passar!

Espero estar bem longe Quando tudo isso passar

Musicas dO Rappa utilizadas nos trechos Rodo Cotidiano | Papo de Surdo e Mudo A Feira | Nó de Fumaça | Lado A Lado B Documento | Meu Mundo é o Barro



capítulo VII As versões da mesma história ou Onde está minha parte da verdade?


Duas entrevistas marcam o fim desta compilação. Ainda que o objetivo da obra não tenha sido aprofundar-se nas questões políticas que envolvem a transferência da feira, com o avançar da pesquisa, ouvir membros da prefeitura e da Aprovace tornou-se uma necessidade. Nas falas constam os principais argumentos que tanto inspiram as conversas cotidianas de um Beco cheio de expectativas.


capitulo VII

E

ra preciso ouvi-los. Associação e Prefeitura. De fato, isto não estava nos planos. O objetivo do livro era contar um tanto do cotidiano do Beco e não imbricar-se por questões políticas. Mas ao chegar lá, ao caminhar por aquelas ruas frequentemente durante cerca de 4 meses, tornou-se impossível dizer que estas duas instituições não faziam parte do cotidiano do Beco. Aprovace e Prefeitura são os pivôs das conversas tensas e confusas que, todos os dias se ouvem ali. Nem que seja um comentário qualquer, uma dúvida, uma certeza falada com a vizinha da frente na hora do cafezinho, a transferência, o esqueleto, o dinheiro, a Imperador são sempre a pauta do dia. Não falar disso, não ouvir os protagonistas das discussões políticas seria cometer um erro gravíssimo: o de pintar o Beco com outras cores, recortá-lo ao meu bel prazer, ocultando partes da história. Os diálogos, contudo, não visam somente as discussões polêmicas, mas também a memória e as atribuições tanto da Aprovace quanto da Secretaria Regional do Centro, numa tentativa de inicialmente conhecê-las para depois ouvir-lhes as versões. Apesar de quase duas páginas inteiras já escritas sobre o dia em que estive com a Aprovace, decidi, ao invés de relatar com minhas palavras, publicar a conversa ipsi literis, em forma de entrevista. Ocorre que compreendo a dimensão da seriedade e da responsabilidade das declarações feitas, tanto pela Aprovace quanto pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, e acredito que reportá-las dessa forma é o modo mais eficaz de evitar que pareçam ter sido distorcidas. Confio que o leitor saberá julgar o que, por ventura, lhe pareça incoerente ou confuso, como eu mesma percebi em algumas


124 |

| Capítulo VII

falas. Espero que esta escolha também esclareça e demonstre meu esforço em atuar da forma mais ética possível, procurando agir com uma imparcialidade necessária a este momento de conflito que permeia o Beco. Aprovace Mais uma vez retorno ao prédio da associação e novamente o Secretário Executivo me recebe. O presidente está em reunião ou saiu, não se sabe. Michael Maçal Mesquita, o secretário, recebe-me muito bem e recorda a última vez em que estive ali. Leva-me à sala do assessor de imprensa, o estudante de jornalismo Ítalo Lima, e lá conversamos. Mayara Carol Araújo – Eu tive acesso a jornais na hemeroteca de maio de 1991, na inauguração do Beco. A Aprovace já estava lá como instituição, correto? Ela existe desde quando? Michael Mesquita – Ela existe desde 1983. Quem criou o Beco da Poeira foi a Aprovace, o Beco é criação da Aprovace, não foi prefeitura, certo? Todo aquele comércio informal ali era da praça Waldemar Falcão e praça dos Leões. E lá o ambulante era, como eu posso dizer, desprezado, uma pessoa que não tem valor. Então a prefeitura da época entrou em parceria com a Aprovace. Arrumou o terreno, primeiro foram 830 [boxes], por que o Beco foi construído por etapas, em pedaços, e é por isso que até hoje você pode ver que tem [nos boxes] Aprovace e prefeitura ao lado. Mayara Carol Araújo – E como, quando, a Aprovace entendeu que era preciso arrumar um local para essas pessoas, como aconteceu esse processo? Ítalo Lima – Ela surgiu de uma necessidade, visto que os ambulantes não tinham... Como toda associação e toda instituição, eles precisavam de alguém para defendê-los. A Aprovace surgiu dessa necessidade de juntar representantes que nasceram ali dentro com a Aprovace. O objetivo da Aprovace era esse: essa enorme quantidade


histórias de beco |

|125

e diversidade de permissionários e vendedores ambulantes que não é só o Beco da Poeira, mas de todo o estado, a Aprovace defende. Ela surgiu para lidar diretamente com a prefeitura, com o estado, com todas as instituições sobre assuntos relacionados aos vendedores ambulantes. Mayara Carol Araújo – Mas quais as atribuições da Aprovace, vocês cuidam de quê, especificamente? Michael Mesquita – Nós cuidamos exatamente do Beco, é compromisso prioritário dela os próprios permissionários, os ambulantes e todo o mercado informal. Mayara Carol Araújo – Vocês cuidam também desta parte mais administrativa, então, recebimento de aluguel... Michael Mesquita – Não, de aluguel não. Até porque hoje no Centro Comercial é assim: se você for alugar é com o próprio permissionário. Ás vezes, o permissionário é doente e precisa fazer um tratamento, aí pra não deixar o box fechado, ele aluga ou então repassam pros próprios familiares... Mayara Carol Araújo – Como uma sublocação? Michael Mesquita – Exatamente... Mayara Carol Araújo – Mas mês a mês eles pagam uma taxa, não? De energia, água, luz? Michael Mesquita – Não é mês a mês, eles pagam semanalmente. R$ 14,50 pra manutenção do condomínio. Energia, luz, água, funcionários, limpeza... Mayara Carol Araújo – Todos pagam esse mesmo valor? Michael Mesquita – Todos. Todos são o mesmo valor, mas nem todo mundo paga. Ítalo Lima – O nível de inadimplência é muito alto. Mayara Carol Araújo – Já houve eleição para presidente? Como os permissionários fazem pra se candidatar? Michael Mesquita – Já houve. É de três em três anos. Mas sempre o presidente, que é o Antonio Amaro da Silva, né, são os próprios permissionários que elegem. De três em três anos temos


126 |

| Capítulo VII

eleições, cada pessoa que é associada monta uma chapa que disputa com a outra, mas toda vida o Amaro, os ambulantes... voltam nele. Mayara Carol Araújo – E os funcionários da associação são permissionários também? Michael Mesquita – Não, são contratados. Contratados pela Aprovace. Mayara Carol Araújo – Uma coisa que eu li nos jornais de 91, saiu uma matéria dizendo que o Beco havia sido inaugurado sob críticas e o próprio Amaro dizia que o Beco tinha problemas estruturais, é verdade? Michael Mesquita – É verdade. Ali, na época, o Beco foi construído assim como se fosse um acaso, entende? É como eu lhe falei, o ambulante não tinha valor. Então pra fazer essa conquista que hoje o Beco é, a Aprovace teve que lutar muito. Teve que mudar completamente, como hoje não é essa “coisona” não, mas está melhor. Na época, como você está falando, ele foi construído sem calha, entende, era só mesmo uma estruturinha, e com a Aprovace, com o dinheiro dos próprios permissionários, nós construímos teto, fizemos toda a fiação geral... Mayara Carol Araújo – Era também isso que eu queria saber, que melhorias vocês podem dizer que conseguiram, de estruttura, lá dentro? Que foi a Aprovace quem conseguiu? Michael Mesquita - Todas. Nós construímos os banheiros para comportar tanto os permissionários como os clientes, teto, ventilação que não tinha, certo? Ítalo Lima – A Aprovace significa principalmente, na minha opinião, organização, certo? Imagine os vendedores ambulantes daqui de fortaleza a 10, 20 anos atrás, como isso era. A Aprovace hoje trabalha exatamente para a organização desse pessoal, você vê que atualmente o Beco é uma instituição organizada. Tem seus problemas estruturais como qualquer outro lugar, tem, mas imagine que ali são vários vendedores ambulantes que passaram a vida toda lutando pra conseguir um Box daqueles. O trabalho da Aprovace hoje é manter essa organização.


histórias de beco |

|127

Michael Mesquita – E também reconhecer, não é, cada sofrimento que esse permissionário passou. Mayara Carol Araújo – Quando vocês [prefeitura, Aprovace e Governo do Estado] chegaram à conclusão de que era preciso se mudar da José de Alencar? Michael Mesquita – Na época do Juraci Magalhães, certo, saiu esse grande projeto do Metrofor junto com o governo do estado, que seria uma melhoria para a capital cearense. O local para ser a estação tinha que ser o centro da cidade, entre praça José de Alencar e praça da Lagoinha, ou seja, no Beco da Poeira. O Beco da Poeira era pra ter construído 2.585 boxes, hoje só tem construídos 2.050, por que 469 [permissionários] mais 79 da rodoviária Engenheiro João Tomé, que é pra vir também pro Beco, foram deixados para ir na mudança. Por isso foi feito um termo junto com a Aprovace, um Termo de Ajuste, que dizia que o Beco sairia de onde está para ficar entre as ruas Guilherme Rocha, São Paulo e Tristão Gonçalves, que é onde está o esqueleto. Mayara Carol Araújo – Por que lá? Michael Mesquita - Foi uma definição de local entre Aprovace, Prefeitura e Metrofor, certo, na época do doutor Juraci. Em 2001, foi feito esse Termo de Ajuste assinando que o Beco só saia se o outro estivesse pronto. Mayara Carol Araújo – Quando começaram a vender as vagas para este novo Beco? Michael Mesquita – É que o Beco era pra ter ido da Guilherme Rocha até a Liberato Barroso, só que ele não foi. Foi feito só até a metade, que fica de frente para o Hospital Cesar Cals. Até a Liberato barroso ia caber essa expansão de 469 boxes, autorizada pela própria prefeitura. Na época da mudança, que foi criado esse projeto do Metrofor, o Juraci Magalhães entrou em acordo com a Aprovace dizendo que os 469 só poderiam ser entregues na expansão, então entraram em plena reunião com a gente e olhamos qual o local mais perto, pra gente ficar no centro mesmo e foi escolhido exatamente onde hoje é conhecido por esqueleto.


128 |

| Capítulo VII

Mayara Carol Araújo – Mas eu quero saber se essas pessoas [esses 469] já estavam na expectativa por que já tinham pago por seus lotes... Michael Mesquita – Sim, já tinham pago. E isso já está com 13 anos por que isso é desde 96. Mayara Carol Araújo – Mas as vagas vendidas nesse novo lugar foram todas calculadas para que essas pessoas pudessem ir e não faltar lugar para ninguém, correto? Michael Mesquita - Exato, por que nós já tínhamos o nosso primeiro projeto que eram 2.585, podendo haver alteração. Por que o objetivo da Aprovace é também tirar todos os ambulantes da rua e colocar num local só. Até pra melhorar um pouco as vias públicas do centro da cidade. Mayara Carol Araújo – Nessa época, há 13 anos, quanto custaram esses boxes? Michael Mesquita – 1.829, em 1996 o valor deles era esse, R$ 1.829,00. Mayara Carol Araújo – Tudo bem, mas é que eu cheguei a entrar em contato com algumas pessoas que pagaram 6 mil, 7 mil reais em um box, por que esses valores? Michael Mesquita – É por que é assim: você compra da prefeitura junto com a Aprovace por 1.829,00, você comprava. Você passou um ano, dois anos, três, quatro anos esperando pelo seu box e não recebeu. Então eu chego pra você e pergunto, “você quer vender seu box?”, no caso, transferir por que não tem venda ali dentro, é transferência. Você fala “quero”, [eu pergunto] “qual o valor?” aí você me passava o valor que você queria. O interessado sou eu, você passa pelo preço que quiser, mas pra isso, se você compra o box no Beco da Poeira, você tem que passar a transferência na Aprovace. Mayara Carol Araujo – Então esses boxes não são mais vendidos pela Aprovace... Michael Mesquita – Não, não, não. Desde 1996 não teve venda de box pela Aprovace.


histórias de beco |

|129

Mayara Carol Araujo – Por que a obra [na Tristão Gonçalves] foi embargada? Michael Mesquita – A obra não foi embargada. A obra nunca foi embargada. Nunca foi embargada até por que se fosse embargada tinha uma placa lá, que toda obra que é embargada existe uma placa da Semam, da prefeitura, falando isso. Mayara Carol Araujo – E por que não está sendo construído? Michael Mesquita – Por que a Semam não autorizou! Por motivo de quê: na época, a prefeitura recebeu 4 milhões de indenização do Metrofor, do governo do estado, até por que onde o Beco está o terreno já não é mais da prefeitura, é do Metrofor, certo? Ele [o govenro do estado] entrou com 4,5 milhões. 4 milhões ele repassou à prefeitura para desapropriar o terreno e entregar todo o quadrilátero completamente limpo para a Aprovace construir, junto com o dinheiro dos permissionários. A prefeitura era pra ter desapropriado 30 prédios, desapropriou só 18. Aonde ela ia desapropriando, a Aprovace ia construindo, por isso que a Aprovace fez aquele “L”, depois daquele “L” a prefeitura parou, parou que não tinha mais obra e que ali ia ser construído o restaurante popular. Sem ter documentação, sem ter licitação, sem ter nada. Ela achou que tinha que fazer, pronto e acabou-se, e não é assim. Até por que tem Termo de Ajuste, tem decreto, tem tudo, tem até assinatura do Tasso Jereissati. De modo que Beco é entre a São Paulo, Tristão Gonçalves, 24 de maio e Guilherme Rocha, que até o Shoping Metrô faz parte também do terreno. Mayara Carol Araújo – E o que a Aprovace fez a respeito? Michael Mesquita – Aí a Aprovace... A prefeitura parou, não autorizou mais. Por que ela não desapropriou, ela não fez a parte dela que era pra ter sido feita, nós temos o documento aqui que o Metrofor indeniza, a prefeitura desapropria todo o quadrilátero e entrega a Aprovace pra ela construir junto com os permissionários. Então o Metrofor fez a parte dele, a Aprovace não fez a dela, não conseguiu terminar por que a prefeitura não fez a parte dela.


130 |

| Capítulo VII

Ìtalo Lima – Mas recebeu o dinheiro... Mayara Carol Araújo – A prefeitura... Michael Mesquita – A prefeitura recebeu o dinheiro. Mayara Carol Araújo – E o dinheiro dos permissionários? Michael Mesquita – O dinheiro dos permissionários quem recebeu foi a Aprovace pra construir, ele está no esqueleto e ainda tem material na construtora TeA pra fazer a finalização da obra. Mayara Carol Araújo – O que foi divulgado era que a Aprovace não tinha verba suficiente para dar continuidade ao prédio, então isso não é verdade? Michael Mesquita – Não, isso não é verdade. Mayara Carol Araújo – Os permissionários foram informados dessa discussão, de como as coisas aconteceram? Michael Mesquita – Foram. Mayara Carol Araújo – Por que meios? Michael Mesquita – Reuniões, assembléia geral, certo, convocamos para que eles também participassem dessa discussão. Mayara Carol Araújo – E agora, os permissionários vão mesmo para a Imperador, isso está confirmado? Michael Mesquita – É exatamente isso aí que não está confirmado. A prefeitura quer levar, só que a Aprovace, por direito, já que ela é representante legal do Beco, ainda não está de acordo, por que o nosso terreno é o esqueleto. Por que é o seguinte, ali na fabrica Tomaz Pompeu além dela ser hipotecada pelo Banco do Nordeste, o terreno é do estado do Ceará, não é dos permissionários. Mayara Carol Araújo – Eu ouvi alguns permissionários comentando que “ah, que aquele local [a fábrica Tomaz Pompeu] também não é nosso, daqui a um tempo eles pedem aquele local e nós ficamos na rua de novo”... Michael Mesquita – Vão pra casa, vão pra casa, vai todo mundo pra casa! Por que hoje o que a prefeitura quer é acabar com o mercado informal e passar todo mundo pra micro empresário. Ítalo Lima – Observe o que aconteceu com o pessoal da praça


histórias de beco |

|131

da Sé? Na época da transferência pro shopping Feira Center toda a imprensa caiu em cima, o pessoal foi transferido, mas foi trabalhar no estacionamento do shopping. O que aconteceu hoje: o shopping Feira Center está de portas fechadas, vai fechar o shopping, a ultima matéria que saiu foi relacionada a isso, o pessoal de lá não tem mais condição de ficar no estacionamento, a administração do shopping não quer mais eles, foi botada uma taxa pra eles pagarem, foi botada uma taxa pra prefeitura, quer dizer, são taxas por cima de taxas, o shopping vai fechar e o pessoal vai pra onde agora? O medo que a gente tem é de que aconteça a mesma coisa com o Beco da Poeira. Mayara Carol Araújo – Agora o pessoal da Sé também não é da gestão da Aprovace, também não é “gerido” por vocês? Ítalo Lima – Mas isso aí é outro caso, depende de até onde a Aprovace vai. E onde está o acordo entre a prefeitura de Maracanaú, e nós estamos falando de Maracanaú agora, que resolve levar o pessoal pra lá, a assistência dada ao pessoal é pra ser feita pela prefeitura e pelo shopping, o que não foi cumprido nem por um nem por outro. Mayara Carol Araújo – A aprovace não se envolveu no caso desses ambulantes. Michael Mesquita – Não, não. Voltando aqui, eu vou logo lhe fazer uma pergunta e você pode até responder: por que o Beco pode ir pra fábrica Pompeu e não pro esqueleto? Aí você já pode ter uma noção do porquê... O esqueleto é dos permissionários junto à Aprovace, é nosso, o terreno é nosso, o terreno foi doado na gestão de Juraci Magalhães, é nosso. Nós construímos e o pessoal fica lá bonitinho e não sai nunca mais. Fabrica Pompeu não, a moçada vai pra lá, na hora que o Governo do Estado precisar tem que entregar por que o terreno é deles! E pra onde é que a moçada vai? Vão pra casa, não é? É por isso que está tendo esse pepino todo, a prefeitura está contra a Aprovace, está querendo denegrir a imagem da Aprovace exatamente pra isso, pra enfraquecer a categoria e poder fazer o que ela realmente está querendo fazer. Ressaltando que no momento em


132 |

| Capítulo VII

que eles saírem do Centro Comercial, do Beco da Poeira, e passarem para a Tomaz Pompeu, onde a Aprovace não vai estar lá, por que a prefeitura não quer acordo com a Aprovace, na hora em que eles saírem, eles já passam de ambulantes pra comerciantes. Até no projeto dela tem um ponto da Sefaz dentro do prédio, exatamente para eles começarem a pagar os impostos. Por isso que toda a liturgia da prefeitura para tirar a Aprovace é justamente essa, por que a Aprovace é uma associação de ambulantes. Mayara Carol Araújo – E a prefeitura quer transformar os ambulantes em comerciantes... Michael Mesquita – Exatamente. Mayara Carol Araújo – Mas qual seria a real desvantagem disso, dessas pessoas se legalizarem e se tornarem comerciantes? Michael Mesquita – Desvantagem por que você sabe que ambulante ganha hoje, amanhã não. Vamos supor que amanhã ele ganhe 100 reais, no outro dia ele ganha dez. Ele vende o almoço pra comprar a janta. A situação de ambulante é precária. Não é como um empresário. É comércio, é, mas é completamente diferente. Hoje a prefeitura acha que ali dentro todo mundo é milionário, é rico, não. Tem gente que está com 18 anos ali dentro, que é o ano em que foi construído o Beco, já tem o seu carrinho, claro, por que trabalha todo santo dia, mas tem gente ali que não ganha nem o do pão. Não tem nada. É nessa situação que o pessoal fica prejudicado. Hoje a prefeitura acha que todo mundo ali tem condição de ser comerciante, não pode! Mayara Carol Araújo – Então a desvantagem seria por que eles não tem condições de pagar impostos? Michael Mesquita – Lógico, até uma pecinha que vender, vão ter que passar uma nota fiscal! É complicado. Mayara Carol Araújo – Uma outra questão: o local dessas pessoas que compraram vagas há mais de 10 anos está garantido nesse novo lugar? Michael Mesquita – É exatamente aí que nós já estamos


histórias de beco |

|133

lutando, por que a prefeitura não quer reconhecer essas pessoas, esses 469. Ela só quer reconhecer os 2.050 que de 3 em 3 meses tem uma renovação com ela e paga a taxa dela. As pessoas que ainda não receberam não tem vínculo com a prefeitura, por que não se cadastraram. Mas nós temos documentação que afirma que, na época, pra essas pessoas do 469 foi vendido o box, confirmando toda essa situação, então ela querendo ou não... por que nós da Aprovace não fizemos isso só de palavra não, nós fizemos isso juridicamente, nós fizemos com a prefeitura, a prefeitura autorizou! Pode ser Juraci, pode ser Luizianne... Ela tem que assumir o que a prefeitura lá atrás aceitou. Até por que já tem 13 anos que espera. Isso é uma falta de respeito que eu acho. Tem gente que vendeu sua casa na época, hoje mora de aluguel... Mayara Carol Araújo – Mas com todos esses documentos a Aprovace tem como garantir que essas pessoas vão estar lá? Michael Mesquita – Temos documentação, temos tudo. Mayara Carol Araújo – E se essas pessoas hoje dissessem “não quero mais saber disso”, elas podem recorrer e ter seu dinheiro de volta? Michael Mesquita – Tem como recorrer até colocando a própria prefeitura... Mayara Carol Araújo – Pra receber seu dinheiro de volta? Mas o dinheiro não está com a Aprovace... Michael Mesquita – Sim por que já foi pago á construtora e ela só não foi autorizada a construir por causa da prefeitura... Mayara Carol Araújo – E se a pessoa já pagou 6 mil, 7 mil reais? Michael Mesquita - A construtora não pode terminar a construção, mas ela está preparada para, a qualquer momento, a Aprovace chamar. Mayara Carol Araújo – Mas entenda, a pessoa compra de outro, ela pagou 6, 7mil reais, ela tem como recorrer desses 7mil reais? Michael Mesquita – Não, por que assim, ela já comprou


134 |

| Capítulo VII

de um terceiro... Pra encurtar a conversa: você concluiu com a prefeitura e a Aprovace 1.829,00. Você já tá com 13 anos, você está precisando, está com necessidades, você não está podendo esperar a boa vontade da prefeitura, certo? Então chega uma pessoa e diz, eu compro o teu. Então esse valor quem dá não é Aprovace, não é prefeitura. Até por que há 13 anos você está esperando, você sabe que se 1.829,00 estivessem na sua poupança já não era mais esse valor, tem sempre um reajuste. Então se você compra um box por 7 mil, não é da aprovace 7 mil, não é. Mayara Carol Araújo – Aparecem muitas dessas pessoas aqui? Michael Mesquita – Aparece. Principalmente quem não recebe e principalmente reportagens falando coisas ao contrário. Que a moçada perdeu o dinheiro e tal, e tal... e não pode ser assim, por que ninguém pode perder nada, não se perdem coisas assim. Mayara Carol Araújo – Hoje vocês ainda acham que é viável lutar pelo Centrão [prédio do esqueleto]? Michael Mesquita – Com certeza. Até por que aquilo é nosso, a gente tem que lutar pelo que é nosso! Pelo suor que nós derramamos, a gente tem que lutar. Nem a Aprovace vai abrir mão e nem os próprios permissionários, principalmente os que estão esperando. Mayara Carol Araújo – Vocês já tentaram algum contato com a prefeitura, o que ela diz? Michael Mesquita – Ninguém [da prefeitura] está dando nenhum contato, nenhuma satisfação nem nada. O problema da prefeitura hoje é derrubar a Aprovace, tirar ela de circulação pra fazer o que eu já lhe disse. Mayara Carol Araújo – Mas vocês deveriam estar conversando, pra tentar um acordo, não? Com que setor vocês tem contatado? Michael Mesquita – Nós estamos conversando sabe com quem? Com a nossa categoria, por que o que mais importa pra gente é a nossa categoria, certo, são os nossos permissionários. Por que nós


histórias de beco |

|135

já procuramos a secretaria, até com a própria prefeita! Mayara Carol Araújo – Surgiram depois outros sindicatos, associações... como é a relação da Aprovace com esses outros grupos? Michael Mesquita – Assim, surgiram duas associações, uma delas é chamada APBP (Associação dos Permissionários do Beco da Poeira), que é empresarial, que está em parceria com a prefeitura exatamente pra levar todo mundo pra lá e nós somos uma comissão que defende o esqueleto, pra gente não perder o termo de ambulantes. E a única associação que está contra, que é essa APBP é por que não é uma associação de ambulantes, mas de comerciantes. Então eles estão ajudando a prefeitura a levar o pessoal pra lá pra que eles possam administrar o novo Beco da Poeira. Tanto é que hoje as pessoas têm a convicção de que a Aprovace é a representante do Beco da Poeira, pode haver 10 mil associações, mas a representante legal do Beco da Poeira é chamada Aprovace, por que foi construída pelos permissionários. Prefeitura Às 11:40 de uma manhã quente recebe-me pontualmente a advogada Luiza Perdigão, responsável pela Secretaria Executiva Regional do Centro. Conversamos longamente (para o total desespero dos funcionários da repartição, que aguardavam a secretária para que pudessem outorgar a sagrada hora do almoço). Luiza Perdigão, contudo, pacientemente respondeu-me as questões, rodeada de documentos, aos quais lia para atestar suas falas. Mayara Carol Araújo – A quanto tempo a senhora está à frente da Secretaria? Luiza Perdigão – Há um ano. A Secretaria Executiva Regional do Centro foi criada por lei no final de 2007 e entrou em vigor em março de 2008. A partir daí ela passa a ser uma secretaria executiva como a I, a II, a III. Tem um orçamento próprio e financeiro próprio também. Pode executar as políticas públicas, as obras. Só que,


136 |

| Capítulo VII

embora tenha entrado como executiva em março de 2008 somente com a minha entrada no cargo em junho de 2009 é que a secretaria começou a ser implantada, de fato, como executiva. Mayara Carol Araújo – Essa desvinculação da Regional II partiu de que necessidade? De que o Centro merecia essa atenção diferenciada? Luiza Perdigão – Claro. O Centro, embora seja uma área menor, em torno de 6 km², com cento e poucas ruas, ele é muito específico, eu costumo dizer que ele é o centro de todos e o centro de tudo. Por aqui passam todos e aqui acontece tudo o que acontece na cidade. A praça do Ferreira é assim a maior representatividade de manifestações públicas que você puder ter dentro de uma cidade. Então o Centro tem essa especificidade, histórica até. Existe um patrimônio histórico que precisa ser preservado, a cidade nasceu aqui. Tem a questão do riacho Pajeú que também não podia ser tratado ainda desta forma vinculada a Regional II, então tem que ter esse olhar especial mesmo. Mayara Carol Araújo - Antes de entrar na Sercefor, a senhora chegou a ter algum contato com essa questão do Beco da Poeira? Luiza Perdigão - Cheguei por que eu acumulei dois cargos nessa primeira gestão da Luizianne Lins, eu fui coordenadora do patrimônio imóvel e como aquele ali é um patrimônio imóvel do município então eu tinha um controle, inclusive acompanhando já essa questão da desapropriação, do estado, não é, que é desde 1997. Lá e uma área grande composta por vários imóveis e eles foram todos registrados em nome do município, então eu estava já fazendo a passagem desses imóveis para o estado. Mayara Carol Araújo - E quando foi tomada a decisão de transferir o Beco da Poeira? Quando surgiu essa necessidade de ter que sair dali para ir a outro lugar? Luiza Perdigão - Na verdade, durante o ano de 2007 e 2008 a prefeitura discutiu muito, nós tivemos salvo engano 4 audiências públicas durante o ano de 2008 em que se discutiu exaustivamente na


histórias de beco |

|137

Câmara Municipal essa questão da passagem do Beco da Poeira para outro local. Deixa eu te colocar a par de algumas situações: em 1997 o estado desapropriou aquela área [onde está o Beco atualmente], já para o metrô, já para o uso do Metrofor. De 97 a 2001, o Estado ficou tentando amigavelmente que a prefeitura desocupasse a área. Como a prefeitura não providenciou a desocupação da área, em 2001 – já encabeçado aí pelo ministério Público – o estado, o município e a Aprovace, que estava administrando àquela época o Beco da Poeira com a conivência do município, foram chamados a fazer um Termo de Ajustamento de Conduta. Neste termo, formado por estes três entes... na verdade, você tem que ver assim, formado pelo governo do estado e pelo município por que a Aprovace leia-se é um permissionário, um concessionário do município, então a Aprovace foi chamada por que na época o município achou que era importante que ela participasse, por que afinal eles estavam também de posse na administração do bem público municipal. Então esses três atores entraram em Termo de Ajustamento de Conduta, onde o estado se comprometia a pagar efetivamente a desapropriação, o município se comprometia a receber este dinheiro e desapropriar um terreno já identificado pelos permissionários do Beco e pelo município... Mayara Carol Araújo - Na Tristão Gonçalves. Luiza Perdigão – Isso, que é onde hoje está aquela área inacabada, chamada de esqueleto, e, deste termo, a Aprovace se encarregava, de uma forma esdrúxula do ponto de vista jurídico, de construir o prédio dentro da área publica. Bom, a partir daí, se já vinha havendo por parte do município uma conivência com toda a ação que a Aprovace vinha desenvolvendo lá dentro, se passa a ter uma conivência muito maior por que o município passou, eu repito, de uma forma esdrúxula, deu a um privado, por que a Aprovace é uma instituição de direito privado, a posse de um bem público e eles passaram a construir pelo município. Mayara Carol Araújo – Então você diz que a prefeitura, naquele momento, deveria ter tomado a frente das discussões, da construção...


138 |

| Capítulo VII

Luiza Perdigão – Exatamente, exatamente. Na verdade, a prefeitura jamais deveria ter dado poder a uma associação para administrar o poder dos seus permissionários. Sim por que permissionário é do município, quem dá a permissão é o município. Mayara Carol Araújo - No primeiro beco, em 1991, você tem conhecimento se houve alguma intervenção da prefeitura? Luiza Perdigão – Houve, houve. Em 1990, a prefeitura assinou um Termo de Permissão, e começa tudo daí, a partir desse termo o município permitiu que a Aprovace arrecadasse dinheiro para construir os boxes. Mayara Carol Araújo - Eu teria como ter acesso a esse termo de ajuste, o de 2001? Luiza Perdigão – Claro, veja aqui, aqui diz o seguinte, olhe [Luiza Perdigão lê para mim o Termo de Ajustamento de Conduta] “Com uma indenização o estado pactuou pagar o município o equivalente a 4milhões de reais, 4milhões e 500 mil, em quatro parcelas, tendo o município se comprometido, em maio de 2001, a providenciar a desocupação dos imóveis” aqui há várias matrículas... Mayara Carol Araújo – E se os prédios foram desapropriados, por que as obras não continuaram? Luiza Perdigão – Não, aí vamos por partes. Em 2001, o que a Aprovace fez? Arrecadou o dinheiro... Deixa eu abrir um parêntese aqui: no ano de 97 eu descobri depois, folheando os papéis aqui, e depois de várias denúncias de pessoas que chegaram aqui, que a Aprovace já fazia a venda de box a mais. Por que o termo de 1990 foi composto de mais 04 aditivos... Mayara Carol Araújo – Deixa eu abrir um outro parêntese, tem algum problema de eu publicar o seu parêntese? Luiza Perdigão – De jeito nenhum, isso aqui é publico, não tem problema não. Então, em 90 houve uma assinatura de um termo de permissão entre o município e a Aprovace, que depois sofreu 4 aditivos, que foram justamente aumentando o número de boxes que


histórias de beco |

|139

tinha dentro do Beco da Poeira, inicialmente foram... Mayara Carol Araújo – Foram 830, depois 2.050... Luiza Perdigão – Exato, isso foi chamado de expansão. Essa expansão aí Aprovace já vendeu a mais. Quando chegou lá no esqueleto eles também já estavam vendendo boxes a mais. A gente tem aqui no inquérito policial, você vê aqui, ó [mostra-me uma pilha considerável de documentos xerocados, comprovantes de compra de boxes] venda de box de 1996, antes da desapropriação... Mayara Carol Araújo – E essas pessoas ficaram prometidas de irem para o novo Beco? Luiza Perdigão – Talvez. Possivelmente, né, por que se não cabia lá, pra algum lugar elas tinham que ir. Mayara Carol Araújo – Segundo a Aprovace, o que acontece é que eles venderam na certeza de que eles teriam um lugar certo nesse novo beco. Luiza Perdigão – O problema é que tem box vendido em 95, em 96, antes do estado desapropriar. O estado desapropriou no final do ano de 1997. Mayara Carol Araújo – E a prefeitura não interviu na venda dessas vagas? Luiza Perdigão – O que acontece, a prefeitura tinha que ter intermediado, por que havia um fluxo: feito esse pedido de permissão, a Aprovace apresentava o permissionário ao município e havia um termo de permissão com o municipio. Só que o que a gente vê aqui [volta aos papéis], que em 96 quem vende o box, quem faz toda a intermediação do box, é a Companhia Brasileira de Construção, em nenhum momento você vê aqui nada do município, você está vendo aqui, ó, Aprovace e Combrac, isso aqui é a cópia de um inquérito... Então você vê essas várias situações de irregularidades bem antes da desapropriação de 1997. Mayara Carol Araújo – Quanto essas pessoas pagaram nessa época, que valores são citados nesses relatórios? Luiza Perdigão – Tem valores aqui de todo tipo, por que


140 |

| Capítulo VII

são várias parcelas de 350, olha, tem gente que pagou 2.697,00, tem esse aqui de 4.000. Enfim, então, na verdade, criou-se uma confusão muito grande nessa história: o município, o permissionário e a Aprovace. A Aprovace foi tomando uma força e foi ela própria... Pra você ter uma idéia isso aqui ó é um box vendido pelo irmão do Amaro, mesmo sem ser permissionário do box. Esse rapaz aqui [o comprador do box, o nome não será citado] comprou um box do irmão do Amaro, o rapaz entrou na justiça e perdeu a ação por que o juiz corretamente entendeu que a senhora [a verdadeira dona do box] não tinha vendido o box, isso aqui é um caso de estelionato, você entende? Até hoje a mulherzinha é permissionária do box dela. Esse rapaz é aidédico, vendeu tudo o que tinha pra comprar um box... Então tem ações assim que eles passavam por cima de todo mundo, dos verdadeiros permissionários, do município... Mayara Carol Araújo – Entendo. Mas voltando à construção, em 2001, por que ela não continuou? Luiza Perdigão – Essa construção de 2001, antes dele entrar pra construir, ele teria que encaminhar um projeto para a Semam, como qualquer pessoa encaminha, como o próprio município faz quando vai construir uma obra, manda os documentos pra Semam, ela avalia o projeto... Aí o que aconteceu: ele começou a construir sem o projeto, ele fez um projeto lá, não sei como ele fez, sei que ele começou a construir. Deve ter um projeto por que tem que ter cálculo estrutural, como é que você vai construir uma coisa que não tem nem um projeto, né? Mas o fato é que ele construiu sem a autorização do município, que foi lá para embargar a obra. A Secretaria Regional II, a Semam, na época, chegou e disse “olha, querido, cadê as plantas aprovadas pelo município?” Quando o município foi ver o projeto era irregular do ponto de vista de recuo, tinha algumas irregularidades, então ele foi notificado pra responder por elas. O que ele devia ter feito? Desmanchava uma parte e recuava, como faz qualquer construtor. Mayara Carol Araújo – Quer dizer, o fato de a construção ter parado foi um problema com a Aprovace? Se ela tivesse chegado


histórias de beco |

|141

à Semam e perguntado: “Como podemos regularizar essa obra?” Ela teria continuado a construir? Luiza Perdigão – Eu acho que sim... Não é da nossa época esse fato, tá certo, do ponto de vista de gestão, mas normalmente você pode fazer isso, você pode se regularizar, até mesmo fazer um outro projeto! Mayara Carol Araújo – Agora, de acordo com a Aprovace, eles ainda não construíram por que não tiveram a quantidade de prédios necessários para a obra. Luiza Perdigão – Não, não existe isso. O município desapropriou o que pode com o dinheiro que ele recebeu do estado. [Busca o termo de ajustamento a fim de explicá-lo] Olha o que eu acho interessante, ó, você está gravando? Pode gravar, olhe só: em 31 de dezembro de 1997 a área é declarada de utilidade pública do estado [a área do Beco, na José de Alencar], durante todo esse tempo, de 97 a 2001, não sei o que rolou entre a prefeitura e a Aprovace, mas eles não desocuparam a área, quando foi em agosto de 2001, olhe aqui, isso é muito interessante, preste muita atenção nisso aqui, em 29 de agosto de 2001 o município desapropria a área referente à estrutura de concreto [O esqueleto. O valor apresentado pelo documento realmente equivale ao que a própria Aprovace diz que já foi desocupado, em torno de 6 mil metros quadrados]. Aí no dia 14 de setembro, logo depois, menos de 15 dias depois, o estado, o município e a Aprovace sentam pra firmar o Termo de Ajustamento de Conduta, isso quer dizer o que? Isso significa que quando o município senta pra fazer o ajustamento de conduta ele já estava com tudo pronto pra isso, o município já havia desapropriado a área. [Lê as obrigações acertadas para cada uma das partes] “O município se compromete a providenciar a desocupação dos bens públicos encravados entre Avenida Tristão Gonçalves, Guilherme Rocha, 24 de maio e São Paulo”, justamente aquela área de 1997, “declarando de utilidade publica parte da área compreendida... no total de bens necessários ao remanejamento do comercio ambulante fixado na área descrita no ano anterior!” Ou


142 |

| Capítulo VII

seja, o município não tem a obrigação de desapropriar mais nada, não. Eles [a Aprovace] encaminham isso aqui dizendo que com essa redação aqui o município tava se comprometendo a desapropriar o resto, nunca houve essa promessa, gente. É muito simples. No dia 29 de agosto, o município desapropriou essa área aqui... Mayara Carol Araújo – Quer dizer, a área que era de responsabilidade do município desapropriar era somente o “L”, onde levantaram o esqueleto, esses 6 mil? Luiza Perdigão – Exatamente. 6.181, 47, que é o que tem lá hoje. Nunca oficialmente, aí se a Aprovace teve oficiosamente alguma conversa com alguém da prefeitura de Fortaleza na época isso aí ninguém pode saber, mas não existe coisa oficiosa no poder público, o que existe são documentos oficiais, publicados em diário oficial. Você não pode, enquanto gestão pública, prometer alguma coisa e ser promessa não, tem que botar num papel, e o que o município botou no papel foi isso. Mayara Carol Araújo – Ok, agora, com todo esse trabalho de desapropriação já feito, por que investir na Imperador [na fábrica Tomaz Pompeu] e não na Tristão Gonçalves? Luiza Perdigão – Isso aí é uma questão de tempo. Aí eu vou lhe mostrar aqui ó [abre no computador uma apresentação de slides com o histórico do Beco, repete as explicações dos anos iniciais: 1990, 97, 2001] Em 2003, tem um memorial descritivo e justificativo, realizado pelo Engenheiro Joélio Nunes da Silva, dá conta das áreas dos boxes, nas instalações atuais [na José de Alencar] e futuras [no esqueleto], e das quantidades de permissionários presentes nas instalações do esqueleto, olha aí, 1.846. Mayara Carol Araújo – Que entrariam a mais? Luiza Perdigão – Não, a mais não! 1.846 boxes foi o que eles conseguiram colocar aqui dentro, então por que eles estavam vendendo mais se não iam caber nem os permissionários iniciais! Mayara Carol Araújo – Quer dizer, no Beco atual dizem que são 2.050... Eu pensei que caberiam 1.846 a mais, fora os 2 mil...


histórias de beco |

|143

Luiza Perdigão – Não, não. A coisa mais injusta é o seguinte, é que nem os 2 mil cabiam no que eles estavam fazendo. Eles venderam mais de 400 a mais, gente. Tem noticia de 469 boxes vendidos a mais! Aí em 2005 [ainda com base na apresentação de slides], houve uma prestação de contas da Aprovace atestando que o valor da obra, do esqueleto, era de R$ 7.864.950, que eles já tinham arrecadado cerca de 3mil e 500, que o valor das peças de pré-moldado dentro do pátio em depósito na empresa era de 521 mil e que o saldo mesmo da Aprovace eram 78 mil. O total dos valores já investidos, do dinheiro todo, tinham sido R$ 4.188.289. Prestou contas em 2005 e ficou essa confusão aqui, o que é que faz com a obra... E a gente começou a receber uma avalanche de denuncias, de confusão e a própria Semam dizendo que a obra era irregular... Nós entramos 2006 já dentro da problemática Beco da Poeira, nesse ano o município instituiu um comitê gestor para levantamento da situação do Beco da Poeira e para apresentar sugestões com vistas à conclusão da obra. Mayara Carol Araújo – Do esqueleto? Luiza Perdigão – Do esqueleto. O município tentou em 2006, qual a solução, o que a gente pode fazer... Então não venham me dizer que eles não tiveram a oportunidade de regularizar a obra. Tiveram que está aí a prova, mais de uma vez. Em 2008 houve três audiências publicas, o que surgiu dessas três audiências? Ficou o consenso de que o problema foi causado pela Aprovace; que o prazo seria de 180 dias para desocupar a área sob pena de imobilizar o cronograma do Metrofor. Você vê que 180 dias de maio de 2008. Pelo amor de Deus, gente, não tem mais. Não tem mais como a gente segurar essa situação, nós vamos ter que tirá-los dali de qualquer jeito. E o estado foi muito foi bom por que ele já podia a muito tempo ter entrado aí com uma medida judicial de reintegração de posse e tudo. Foi dito ainda no relatório a necessidade de afastar a Aprovace das administrações do Beco da Poeira e da construção das novas instalações, seja lá onde elas fossem; e apresentaram duas alternativas: uma era retomar a construção inacabada, implicando


144 |

| Capítulo VII

na desapropriação de mais 10 imóveis, estimada em 2 milhões, e os permissionários arcariam com a construção, ou a outra alternativa seria a desapropriação de um único imóvel, que seria a fabrica Tomaz Pompeu, só esse imóvel ao invés de 10, e os permissionários arcariam com as obras através de recursos da caixa econômica federal. Mayara Carol Araújo – E os 78 mil da Aprovace? Luiza Perdigão – Ainda estão com a Aprovace! Mayara Carol Araújo – Mas eles não entrariam com este recurso, já que foi arrecadado dos permissionários para a construção, por que aí consta que entrariam recursos da Caixa Economica, não é isso? Luiza Perdigão – Eles [Aprovace] não entrariam. A Caixa Econômica ia ser parceira, tanto numa solução como na outra. Só que, pra que a Caixa pudesse ser parceira, os permissionários teriam que ter procurado a caixa, teriam que ter avançado, nessas duas propostas eles não avançaram. Quando foi em 2009, houve uma necessidade imperativa de desocupação para a construção do Metrofor, até novembro. As obras estão correndo e em ritmo aceleradíssimo, daqui a pouco aquelas pessoas vão estar correndo risco de vida ali em cima! Agora é tempo de imperatividade mesmo, não é mais pra estar discutindo nada. Houve uma impossibilidade temporal e financeira de continuação das obras do prédio inacabado para atender o cronograma do Metrofor. Então o que a prefeita fez? Ela alterou a destinação publica do imóvel, colocando aquela obra pra ser o restaurante popular... Mayara Carol Araújo – Então é verdade o que dizem da prefeitura já possuir um projeto para aquele espaço, no caso, um projeto de restaurante popular? Luiza Perdigão – Corretíssimo. Mayara Carol Araújo – Mas desde quando existe esse interesse de construir ali um restaurante popular? Luiza Perdigão – Nós temos uma verba, certo, do Ministério do Desenvolvimento Social reservada pra Fortaleza construir um


histórias de beco |

|145

restaurante. Essa verba pode ser utilizada em qualquer local, mas a prefeita quer que ela seja utilizada no Centro por que, de fato, lá cabe um equipamento como esse. Aquele bem, onde está aquela obra inacaba, é do município, sim por que eu não estou falando da benfeitoria, mas do bem, do terreno, a rigor a rigor aquilo ali é tudo do município. O que o município pode fazer, que é um caminho jurídico viável: indenizar a benfeitoria. É justo. Agora, indenizar a benfeitoria pra quem? Pra quem você indenizaria a benfeitoria, pra Aprovace? E as pessoas que pagaram? Mayara Carol Araújo – Pela lógica, a prefeitura teria que ir ao encontro dessas 469 pessoas para indenizá-las, não? Luiza Perdigão – Isso é um embrolho jurídico que a gente vai ter que resolver, a gente está quebrando a cabeça aqui por que quem é legitimo para receber esse dinheiro aí é a Aprovace. Por que foi com a Aprovace que o município tratou desde sempre, infelizmente. Mayara Carol Araújo – Ainda sobre a construção, e a fábrica Tomaz Pompeu? Luiza Perdigão – Em fevereiro de 2009, houve a desapropriação da Tomaz Pompeu. Eu me reuni com os permissionários dias 17 e 18 de julho, mostrando o projeto, pedindo sugestões e alterações... Mayara Carol Araújo – E houve sugestões? Luiza Perdigão – 31 sugestões foram apontadas pelos permissionários. Mayara Carol Araújo – E foram atendidas? Luiza Perdigão – A grande maioria. Uma não foi atendida, que era a criação de um jardinzinho lá dentro, mas não tinha espaço, aí a gente produziu uma ventilação de outra forma, e outras duas sugestões nós estamos vendo ainda, que é a colocação de uma lotérica e de um depósito. Mayara Carol Araújo – Qualquer pessoa que chegar aqui e disser: “Eu quero ver o projeto”, pode fazer isso? Luiza Perdigão – Qualquer pessoa. Pode chegar aqui e ver, melhor ainda, você pode ter acesso à obra. Hoje nós temos grupos de


146 |

| Capítulo VII

permissionários que visitam a obra. Marcam lá com a Associação dos Permissionários do Beco da Poeira, que é o senhor Liandro Carlos e vão. Às vezes vão em grupos de 8, 10... Mayara Carol Araújo – Você tocou num ponto que eu queria saber: hoje quem responde pelo Beco da Poeira pra prefeitura é a APBP? Luiza Perdigão – Não. Nós não temos vinculação com nenhuma associação, tá certo? Representativamente, eles tem vindo pra cá, tem conversado com a gente e nós temos acatado como uma instituição legitima, até por que eles têm um estatuto, têm uma associação registrada... Quando a gente quiser discutir a gente chama todos os permissionários e discute. Quem vai administrar o Beco da Poeira é o município. A administração do Beco da Poeira, possivelmente, eu penso que seja mais correto, mas nós ainda vamos discutir isso, será composta com pessoas da associação junto com o município, mas nós jamais devemos incorrer no erro de conceder a uma entidade privada tanto poder. Mayara Carol Araújo – Então a afirmação de que a APBP vai administrar o novo Beco da Poeira é apenas um boato? Luiza Perdigão – É um boato. Nós nunca dissemos isso. Eles podem participar, eu já estive com eles aqui, eles já inclusive pediram pra administrar o Beco, eu disse: “olha, não, vocês podem participar da administração”. É importante, é importante ter um associado, pra ter fim de associação, o que é isso? É você promover pros permissionários um desconto na Unimed, é se juntar e alugar um ônibus e ir visitar outras feiras do nordeste, é você aperfeiçoar as técnicas de costura através de um convênio com o Sebrae... É pra se organizar pra alugar, por exemplo, um estacionamento no centro pros permissionários. É por que a Aprovace desvirtuou o uso da associação, entendeu? Ela ficou sendo uma associação que recolhe dinheiro e os benefícios que eles têm com o associado eu não entendo, não sei o que é, entendeu? Mayara Carol Araújo – Uma das grandes preocupações dos


histórias de beco |

|147

permissionários é com o discurso de que a fábrica, assim como a José de Alencar, não é deles. Eles correm o risco de, caso o governo do estado precise do terreno, serem despejados? Luiza Perdigão – Evidentemente, em qualquer hora, em qualquer lugar! Entenda, hoje a sua casa pode ser desapropriada para o interesse publico. A sua casa que é própria, que é sua, o poder público pode querer passar uma avenida e desapropriar. Eu não estou entendendo a sua pergunta. Se sua pergunta é se aquela área do município, enquanto for de propriedade dele, se aquelas pessoas vão estar tranqüilas? Sim, sim, vão estar. Mas se você estiver me perguntando, por que sua pergunta é capciosa, é capciosa e é com isso que joga a Aprovace, com a insegurança das pessoas! Eu estou lhe dizendo que se em algum momento o governo ou a união entenderem que aquela área é de interesse público, eles vão ter que provar que é realmente de interesse publico, mas eles podem intervir... Mayara Carol Araújo – Deixe eu me explicar, então. Por que eu fiz essa pergunta? Por que o discurso, em meio à confusão, que a gente escuta é: “Se nós formos pra Tristão Gonçalves, o terreno é nosso, nós pagamos por ele...” Luiza Perdigão – De onde que o terreno é deles! É preciso desfazer essa confusão na cabeça deles, eles nunca foram donos de nenhum terreno, nem do terreno de 1990 [A José de Alencar], nem de 2001[o esqueleto], nem de 2009[a fábrica], essas áreas são públicas municipais, eles são permissionários do poder público! Isso aí é o discurso da Aprovace de investir na desinformação, causar medo nas pessoas quando elas não precisam viver com medo, certo? Por que o município está garantindo a um cidadão fortalezense que ele desenvolva a sua atividade comercial dentro de um bem público municipal. O município não tem nenhum interesse de sair daquela área, pelo contrário, nós queremos é que lá se desenvolva a plena atividade do comerciante, é comerciante, não é mais ambulante! Eles estão com síndrome de ambulante! Eles agora são pequenos


148 |

| Capítulo VII

empresários e tem que usufruir das beneficies do poder público e partir pra frente, pra que no futuro, Carol, eles não sejam mais micro empresários e sim grandes empresários e estarem em outro patamar. Então o que eles tem que fazer agora é crescer, olhar pro negócio deles e seguir em frente por que o município vai continuar parceiro, com mais cuidado, visando sempre a segurança deles, pra que nunca mais eles caiam na conversa de ninguém. Mayara Carol Araújo – Que taxas vão recair sobre os permissionários a partir dessa legalização, na mudança para a Av. do Imperador? Luiza Perdigão – Olha, a prefeita também já assinou o decreto do preço publico, nós estamos só esperando que seja publicado, e ele estabelece o mesmo valor que eles pagam hoje à Aprovace. Mayara Carol Araújo – Vão pagar o mesmo? Para a Aprovace eles pagam em torno de 14,50 semanais, não é isso? Luiza Perdigão – Eles pagam 58 reais mensais, o preço publico será este mesmo preço. Esses 58 reais nós vamos receber dos permissionários e ver o que dá pra fazer com esse dinheiro. Pode até ser que a gente chegue à conclusão de que não precisa de 50, mas de 30. Mayara Carol Araújo – É capaz de até reduzir este valor? Luiza Perdigão – Sim, por que nós não estamos visando o lucro, a prefeitura não tem o objetivo de arrecadar, de lucrar. Mayara Carol Araújo – Estou perguntando por que outra preocupação dos permissionários é a de que, com essas taxas de legalização, eles não consigam vender a mercadoria pelo mesmo preço. Luiza Perdigão – Eu não vejo porque, já que o preço público que a gente instituiu foi o mesmo preço que eles pagam à Arpovace. Mayara Carol Araújo – Pra quando a prefeitura marca a ida dos permissionários para a Av. do Imperador? Luiza Perdigão – Dia 15 de dezembro nós vamos receber a obra, então nós vamos agora montar um plano de transferência, pensar como a gente vai fazer, por exemplo, de tantos a tantos boxes


histórias de beco |

|149

vai tal dia, outros vão tal dia... Mayara Carol Araújo – Será uma mudança gradual então? Luiza Perdigão – Sim, vai ser gradual, até pra não dar confusão. Mas o governo do estado quer que seja ainda este ano. E eu me preocupo por que tem a questão do natal... Mayara Carol Araújo – É, de fato, eles têm essa preocupação muito grande, da prefeitura atrapalhar o natal... Luiza Perdigão – É mas isso não é uma coisa que depende só da gente, Carol, mas da própria necessidade da obra do Metrofor, então também não é nem uma ruindade não, talvez esse seja um natal ruim mais outros natais virão. Mas eu vou lutar pra que isso não aconteça, tá bom? Mayara Carol Araújo – As pessoas que compraram boxes a 13 anos atrás, como ficam? Terão suas vagas garantidas? Luiza Perdigão – Quem comprou excedente? Mayara Carol Araújo – Sim, os 469. Luiza Perdigão – Absolutamente. Eles deverão procurar os seus direitos na justiça. Mayara Carol Araújo – É possível que eles recebam seu dinheiro de volta? Luiza Perdigão – Isso eu não sei, quem vai decidir é o juiz, talvez pensar em uma indenização... Eu sei que tem muita gente prejudicada, mas o município não tem como acolher esse pessoal não.


~

Nesse pais ´ que se divide ~ em quem tem e quem nao tem, sempre o sacrificio ´ cai no braco operario ´ Eu olho para um lado, eu olho para o outro, vejo desemprego e vejo quem manda no jogo


^

E voce vem, vem, pede mais de mim diz que tudo mudou e que agora vai ter fim, mas eu sei quem voce ´e e ainda confio em mim Esse jogo ´e muito sujo ~ mas eu nao desisto assim ^

Bezerra da Silva - O Rappa Candidato Caô Caô



fechamento Fim de Beco e despedida



Fechamento

T

arde de sexta-feira, aos noves dias de um abril histórico, recebeu-se a notícia em forma de documento oficial: a transferência anunciada e reverberada a pelo menos duas décadas aconteceria no dia seguinte. Do dia dez não passaria. Para onde iriam? Para a antiga tecelagem Thomaz Pompeu, na Avenida do Imperador. Tumulto. Apitos e gritos de guerra marcaram a resistência dos que decidiam não sair, a menos que o esqueleto da Tristão Gonçalves fosse liberado, sob o argumento – já aqui exposto – de que aquele seria prédio para o qual deveriam ser transferidos. A marcha percorreu os corredores, invadiu a administração, quebrou tapumes que obstruíam entradas e saídas, tudo sob o olhar espectador da Polícia Militar. “O esqueleto é nosso!O esqueleto é nosso!”

“O povo, unido, jamais será vencido!” “O esqueleto é nosso!O esqueleto é nosso!”

“O povo, unido, jamais será vencido!” “O esqueleto é nosso!O esqueleto é nosso!” “O povo, unido...!”

Gritos e apitos. Gritos e apitos. Eu os ouço agora, vivamente. Você não? E os resistentes comunicaram: se preciso, pernoitariam no Beco a fim de garantir o trabalho no dia posterior.


156 |

| Fechamento

Na manhã seguinte, não apenas o céu do Centro amanheceu nublado. A barra gris e tensa que se depositava no horizonte refletia por acaso a circunstância que se avolumava logo ali entre Guilherme Rocha e Tristão Gonçalves. Quem desembarcou na Imperador viu da Lagoinha um cruzamento sitiado e, de longe, um cinturão de vultos também nublado, que se distinguia passo a passo, definindo-se em fardas, coturnos e capacetes: Polícia Militar, Raio, Gate, Guarda Municipal, batalhão de choque e cavalaria cercavam os 12 mil metros de Beco. Era o dia. Cumprindo o mandato emitido no dia anterior, os vendedores, de fato, não abriram seus boxes, o que, no entanto, não lhes impediu de permanecer no local. Aos repórteres, que também cedo labutavam, diziam não lhes ser de interesse impedir ou prejudicar o desenvolvimento do Estado e do município, e por isso concordavam em deixar a estrutura contanto que fossem para o esqueleto, posição não acordada pela Prefeitura. Anunciavam ainda que não estavam ali para retaliar nenhum dos permissionários que quisesse se transferir para o prédio da Av. do Imperador, como solicitava a administração municipal. Estava posto o impasse. Aos poucos, permissionários com sacos de arroz, sacolas, bolsões, carroças e carros de mão punham-se a transferir mercadorias para a Imperador, numa crua despedida, enquanto outros deixavam o Beco rumo ao esqueleto. Às 8h30 daquela manhã de sábado, tinha início um episódio paralelo à transferência, que viria a se tornar uma das maiores operações policiais dos últimos anos em Fortaleza. Diante do contingente formado por 200 policiais militares e 150 guardas municipais, os manifestantes entenderam que a única forma de continuar protestando seria invadindo a estrutura inacabada da Av. Tristão Gonçalves. Desse modo, permissionários e vendedores ambulantes liderados por uma frente intitulada Comissão


histórias de beco |

|157

Independente do Beco povoaram os dois andares do esqueleto, delimitando seus espaços com pedaços de madeiras, tijolos e garrafas. Algumas pessoas chegaram a fazer greve de fome a fim de reivindicar a finalização do prédio e a transferência definitiva para lá, outras levaram mercadorias e ali mesmo comercializavam. A polícia fazia a guarda, orientada a não permitir que ninguém mais entrasse na estrutura. E os vendedores ali permaneceram. Na manhã do dia 27 de abril, contudo, dezessete dias após a ocupação, mulheres saíram do esqueleto para montar guarda à frente do prédio, trazendo consigo uma faixa improvisada. Trinta, quarenta delas deram as mãos e protestaram a nova forte presença policial, aproveitando a cobertura da imprensa. Do outro lado de uma arenosa e desértica Tristão Gonçalves, semelhante aos filmes de faroeste, cerca de 200 policiais entre militares, Raio, Gate além de guardas municipais aguardavam uma ordem superior: invasão do prédio e desocupação sumária. Segundo a polícia, o contingente havia sido destacado para averiguar e conter uma “invasão dentro de outra”, pois, entre os dias 25 e 26, os manifestantes teriam rompido os tapumes que sitiavam o esqueleto e permitido a entrada de mais pessoas, não necessariamente envolvidas com a questão do Beco da Poeira. As lideranças dos ocupantes contra-argumentavam, garantindo que estavam em mesmo número e que as autoridades apenas procuravam uma desculpa para retirá-los dali sem permissão judicial. Quanto à faixa estendida pelas manifestantes? Uma mensagem de fazer pensar: sobre as reivindicações, sobre as lutas, sobre Fortaleza. Nela, os resistentes, aparentes “inimigos” da polícia àquele momento, apoiavam a causa dos servidores que, por aquelas semanas, negociavam melhorias salariais junto ao Governo. A faixa dizia aos policiais: “Estamos ao lado de vocês e das suas famílias, que estão sofrendo com os salários que recebem”.


158 |

| Fechamento

As negociações foram tensas e duraram o dia inteiro. Por telefone, a Comissão Independente do Beco acordou com o secretário de Segurança Pública do Estado, Roberto Monteiro, a retirada pacífica das pessoas não reconhecidas pela PM e a não-comercialização de produtos na estrutura em troca de uma audiência com o secretário a fim de buscarem juntos uma solução para o impasse.

Durante esses dias em que se seguiu a ocupação do esqueleto, o antigo Beco da Poeira fora completamente desocupado, não sem confusão, correria e saques. Comerciantes que não conseguiram retirar suas mercadorias a tempo alegaram prejuízos de até quatro mil reais. Tão logo vazia, a estrutura fora tomada por catadores e pessoas de todos os cantos, interessadas em reaproveitar partes da estrutura. Produtos deixados para trás, caixas de papelão, portões de ferro e até o teto de amianto foram roubados. Em matérias do dia 12 de abril, os jornais já davam conta de 40% do telhado saqueado e 90% de feirantes transferidos, naturalmente confusos e atarantados no novo espaço, insatisfeitos com o calor e a falta de energia elétrica. E os depoimentos dos transferidos faziam lembrar as palavras de Dona Gorete sobre a mudança da José de Alencar para o antigo Beco, há dezoito anos, em que reclamavam do calor e da estrutura, em que se haviam perdido de fornecedores e clientes por alguns dias.

“Como pode uma semana, de repente, fazer um marco na história de Fortaleza?” Pensava eu, constantemente, enquanto caminhava pelos escombros. Estava feito. A segunda semana de abril de 2010 é sim um marco para esta cidade. Junto à pergunta, uma frase martelava-me, ainda incrédula: “acabou-se o que era Beco”.


histórias de beco |

|159

Da Praça da Lagoinha, o que restara da feira mais parecia um leão ferido, uma fornalha reduzida a cinzas – fumegante, porém inativa. No Beco em ruínas, a despeito dos construtores que já trabalhavam na afamada Estação Lagoinha, vultos semelhantes a baratas domésticas percorriam o que sobrara dos corredores à guisa de sucata e papelão, itens de sobrevivência. Eu também era ali um inseto de cozinha, desconfiado, frágil e ligeiro, ávida por rastros daquela história demolida. Lá dentro, saltaram-me as lembranças de fotos de jornais antigos, folheados na hemeroteca. No lixo, que cobria o chão tal qual relva, ficaram os resquícios de 18 anos de um povo trabalhador e sobrevivente, que há de continuar a sê-lo em qualquer lugar. Nos olhos curiosos de quem passava nas ruas ao longo desses dias de tensos e contínuos acordos, via-se a ânsia pelo novo. Talvez suspeitassem de que viviam também aquele tal momento histórico. Em mim, de tudo, restou pronunciar minha sincera tristeza às eventuais perdas, meu desejo de dias generosos para permissionários e vendedores, onde quer que devam permanecer, mas sobretudo minha solidariedade àqueles que pagaram por boxes, mas – por algum motivo (quais?) – não receberam. Que a justiça seja feita, por ela sempre valerá a pena lutar. Felicidade? Claro, muita, em poder dizer: deu tempo, sim, de registrar o possível. Uma parte da história do Beco está aqui comigo.







fechamento

D

esde que decidi trocar uma pesquisa praticamente conclusa para, em menos de um ano, produzir um livro-reportagem ilustrado, sinto-me mais madura e, sobretudo, mais próxima do que seja não apenas Comunicação Social, mas jornalismo: essa atividade tão complexa, tão interdisciplinar que, por vezes, parece diluída no rio das ciências humanas, mas quando se está em exercício, no meio da rua, revela muito claramente seus conceitos ao repórter, como uma certeza, uma revelação que ele sente, segue e talvez não saiba explicar. Na rua, revisei todas as disciplinas, das Teorias da Comunicação à Ética e Práticas Jornalísticas. E me arrependi amargamente das aulas perdidas, das dúvidas não tiradas, de tudo o que poderia ter sugado mais dos profissionais – alguns, mestres, de fato – responsáveis por me instruir. E senti por aqueles que, ao invés da busca pela formação acadêmica, escolhem a rua para aprender. Um caminho tortuoso, que, a meu ver, não ensina tudo o quanto seja necessário. Quando penso sobre estes textos que escrevi, não creio ter feito um grande trabalho. Às vezes, leio, releio e os acho medíocres. Tantas coisas ficaram de fora, tanto poderia ser melhor explorado, aprofundado, fontes a ouvir, detalhes a apurar... Mas observo e admito, contudo, que nesta obra está encerrado o meu possível por hora. O que pude, até aqui, está publicado. O repórter, por mais que persiga a notícia, nem sempre alcançará a completude das complexas redes de relações que se constroem em torno do objeto. Investigar algo por certo tempo pode levar-nos a cair na armadilha de confundir real e ficção. Mas as pessoas todas presentes nessas páginas, citadas ou não, existem, têm suas vidas, seus hábitos, têm uma imagem pública principalmente, e tudo o que narrar aqui poderá marcá-las. Assim descobri o quanto o exercício do jornalismo


166 |

| Fechamento

está estritamente relacionado à ética e ao que a vida nos levou a entender por certo e errado. Como aquela propaganda de carros em que todas as escolhas e memórias do rapaz protagonista o levam a ter o veículo. Minha vida me trouxe até aqui e eu revi alguns conceitos e resgatei outros que vão se perdendo na liquidez desse cotidiano de princípios variáveis, relativos, do “jeitinho brasileiro”. Sobre o processo de produção, gostaria sim de esclarecer alguns pontos: não tenho envolvimento algum com as discussões políticas do Beco da Poeira. Não possuo nenhuma relação pessoal com membros da prefeitura, da Aprovace ou de nenhuma das outras instituições envolvidas, seequer com os permissionários. De conhecidos e amigos tenho apenas as pessoas com quem conversei ao longo da reportagem, procuradas ao acaso, durante a pesquisa. Resumindo: o livro não foi produto de nenhum interesse político pessoal, além da intenção de guardar na memória o cotidiano de um espaço importante para a história do Centro de Fortaleza. Ouvir a Aprovace e a Sercefor foi uma decisão que julgo competentemente esclarecida no capítulo a isto dedicado, a fim de apenas contemplar esta parte da história. Esta produção foi feita a fim de registrar as pessoas que, independente de serem proprietárias dos boxes, abrem as portas deles todos os dias das sete da manhã até o cair da noite. É por estas pessoas, que diariamente lutam contra as situações adversas em prol de garantir seu sustento literalmente suado, que me dediquei, porque delas deverão se lembrar os fortalezenses, cearenses, enfim, brasileiros. Foram elas que fizeram o Beco, porque abriram as portas dele todos os dias. Muitas, a maioria delas, sequer pode opinar em nada que diga respeito ao Beco, porque não são permissionárias. Mas meu olhar não esteve interessado apenas nos donos ou nas autoridades, mas nos atores do cotidiano, os que vi enquanto perambulei por aqueles corredores. A vida de jornalista está só começando. Com ela segue-me este preocupação constante com o conteúdo veiculado. Um temor que, espero, ronde-me sempre. Só este medo sôfrego desperta os repórteres nas horas de desleixo ou nas de indecisão. Ele e a sensibilidade, a humanidade em permanente cultivo, nos fazem compreender a importância de cada


histórias de beco |

|167

fala e, para além dela, a dos olhares, gestos e silêncios, fundamentais à construção da narrativa. Em Estética e Comunicação de Massa, aprendese que o autor nunca é o dono do texto. Ensinou-me a professora que o que escrevo agora – e você lê, também num agora que não é o meu – será também escrito com toda a carga cultural que você possui, o que sabe sobre o Beco da Poeira, seus costumes, sua ideologia. Sofrerei esta frustração de não possuir minhas palavras, mas, ao final, jogarei a toalha, porque o encanto também está nisto: não sou autora sozinha. Resta-me, por fim, cultivar a palavra generosidade, uma das que mais pode representar essa experiência de caminhar por ruas desconhecidas em busca de rostos que, em geral, são vultos. Generosidade recebi aos montes. De professores, alunos e alunas que viram algo deste trabalho na Universidade, de familiares, amigos, mas principalmente dos entrevistados. Quando me lançava ao protocolo honesto, pedindo com certo constrangimento que me concedessem dois dedos de conversa para uma reportagem, do emaranhado de tecidos, surgia-me uma cadeirinha, um banco, um caixote, seguidos de uma desconfiança existente, mas generosa: “Sente, diga lá o que você quer saber.” Agradeço aos banquinhos, que me resgataram a concepção de boa vizinhança. As mãos que me puxaram cadeiras, guiaram-me a outros boxes, outras histórias. E me ensinaram jornalismo quando perguntaram: e você é de onde? Faz o que? Você compra no Beco? Quando a lógica era invertia, eu me divertia da minha pouca habilidade em ser assim tão curiosa, sem vergonhas talvez, e, de certa forma, aprendia com eles. Obrigada, sobretudo, aos votos de sucesso, de que este livro fosse aprovado, publicado. Agradeço generosamente. Faltarão páginas, faltarão sempre. Este livro deveria possuir 2.050 delas, uma para cada box. Outras tantas para quem ainda espera um. Mais outras para quem não tem box, mas trabalha ali de sol a sol, como Pastel-Menino, por exemplo. A maior dor de escrever um livroreportagem é que o livro acaba, mas a história não. Faltarão páginas, faltarão sempre. É isso. Obrigada a todos.



Anexos Informações da transferência, Termo de Ajustamento e fotografias












Fotos de referência Panorâmicas

O Beco visto das alturas, pelos lados da José de Alencar

Junção de duas fotos tiradas do hospital. À época, a José de Alencar ainda passava por reformas


A feira fora da feira: o comércio em torno do Beco

A vista da Tristão Gonçalves, do alto da farmácia


Fotos de referência Corredores

Entrada do Beco pela Av. Tristão Gonçalves. Ao fundo, o acesso ao último corredor do Beco: a rua da pirataria

Roupas em paredões dão boas vindas


Corredor dos eletrônicos. relógios, celulares e importados são o carro-chefe da rua. Na josé de Alencar, contudo, ela começa com venda de livros e termina, na Tristão Gonçalves, com roupas e lingerie.

Aproveitando o espaço: bonecas expostas em três andares

Estrutura: Entrada para os banheiros


Fotos de referência Cotidiano

Na apuração: à esquerda, Rita de Cássia, e abaixo parte dos amigos de Beco. Destaque para o rapaz no centro da foto, Lôro de Morrinhos, e a moça de pé, Maria da Paz, citados no capitulo II


Ruas incrustradas de sacolas e vendedores no aperto, é dia de sacoleiros

Supermecados em box: verdadeiras lanchonetes improvisadas no corredor

Questões políticas: a obra inacabada conhecida por “esqueleto”



Livro-reportagem apresentado como Trabalho de Conclusão do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), habilitação em jornalismo.

Produção, edição, diagramação e projeto gráfico por Mayara Carol Araújo Crônicas de Tudo http://mayaraujo.wordpress.com Portfólio http://mayaraujo.carbonmade.com Este livro foi impresso em Fortaleza, em agosto de 2010. A fonte usada no miolo é Minion LT Display, corpo 11/14. Outras tipologias utilizadas: Stylograph, Wc Mano Negra e Times and Times Again.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.