Monografia Online - Naruna: uma história sobre esculpir travessias

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UMA HISTÓRIA SOBRE ESCULPIR TRAVESSIAS



Mayara Lista

uma história sobre esculpir travessias

UFRJ | Centro De Letras e Artes (CLA) Escola De Belas Artes (EBA) Departamento De Comunicação Visual | BAV Projeto e monografia de graduação em Comunicação Visual Design 2017.1 Orientador: Marcelo Ribeiro Coorientador: Marcelus Gaio


Copyright © Mayara Lista Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade. Revisão: Paulo Noriega.

MAYARA LISTA graduou-se em Comunicação Visual Design na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 2017. Leitora de histórias em quadrinhos desde tenra idade, especializou-se em ilustração através de inúmeros cursos e descobriu novos horizontes para seus desenhos quando estudou na Kingston University em Londres. Já realizou trabalhos como capista de livros, ilustradora e agora quadrinista. Seu prazer é descobrir novas formas de contar histórias através da arte sequencial.


Agradeço imensamente aos meus pais, Sandra e James, pelo exemplo e por me ensinarem a acreditar que eu consigo fazer qualquer coisa que eu quiser. Ao meu irmão e melhor amigo, Ryan. A minha madrinha, Jeane, pelos conselhos de todas as horas. Aos meus orientadores, Marcelo Ribeiro e Marcelus Gaio, por acreditarem neste projeto ambicioso e me guiarem neste percurso. Ao “lobo-guará”, mestre e amigo, Ary Moraes, por ter me acolhido desde o início da graduação com paciência e carinho. Aos professores que me ajudaram ao longo do caminho: Nair de Paula Soares, Irene Peixoto, Elizabeth Jacob, Christiane Mello e tantos outros. A amiga querida e conselheira da vida, Paula Cruz, por ter me posto nos trilhos quando eu mais precisei. Obrigada por tudo. As companheiras de Fundão, Alana Maganha e Carolina Filippo. Juntas do início ao fim. A todos os meus amigos, em especial aos que me aconselharam durante este projeto: Lívia Prata, Yuri Reis, Pedro Alvarez e Guilherme Rodrigues. Muito obrigada.


RESUMO LISTA, Mayara. NARUNA - uma história sobre esculpir travessias. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Visual – Design) Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. Projeto de produção de uma história em quadrinhos elaborada a fim de utilizá-la como meio propagador do conhecimento do imaginário popular brasileiro através de uma narrativa original. O projeto procura analisar o atual cenário da produção de quadrinhos no Brasil e as possibilidades que esse momento oferece aos novos roteiristas, artistas e editores. Busca-se também compreender as etapas de desenvolvimento visual para a criação de uma narrativa sequencial em quadrinhos através de métodos de escrita de roteiro, criação de personagens e storyboard utilizados na produção de quadrinhos, livros ilustrados, cinema e animação que melhor se adequem a narrativa criada neste trabalho. A temática da narrativa criada para o projeto utiliza-se do imaginário popular brasileiro como ponto de partida para criar o enredo da história. Manifestações do imaginário ribeirinho e suas lendas, em especial as crenças em torno das carrancas do rio São Francisco, serviram como inspiração para o projeto. Palavras-chave: graphic novel, arte sequencial, história em quadrinho, desenvolvimento visual, imaginário popular brasileiro.

ABSTRACT LISTA, Mayara. NARUNA - a story about carving crossings. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Visual – Design) Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. Production project of a graphic novel in order to use it as a way of propagating the knowledge of the Brazilian popular unconcious through an original narrative. The project seeks to analyze the current scenario of graphic novels production in Brazil and the possibilities that this moment offers to new writers, artists and publishers. It also seeks to understand the stages of visual development for the creation of a graphic novel nar-


rative by using script writing, character design and storyboard techniques used in the production of graphic novels, picture books, cinema and animation that best fit the story created for this work. The theme of the narrative created for this project uses the Brazilian popular unconcious as a starting point to develop the plot of the story. Manifestations of the riverine unconcious and its legends, in particular the beliefs surrounding the carrancas of the SĂŁo Francisco River, served as inspiration for the project. Keywords: graphic novel, sequential art, graphic novel, visual development, Brazilian popular unconcious.


INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I História em Quadrinhos

CAPÍTULO II O Imaginário das Carrancas Brasileiras

CAPÍTULO III Naruna

CAPÍTULO IV Desenvolvimento Visual

CAPITULO V Projeto Gráfico

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1.1 Definições e fronteiras 14 1.2 A luta das HQs brasileiras 18

2.1 O imaginário como contexto 25 2.2 As carrancas e o imaginário ribeirinho 26

3.1 Motivação e pesquisa 31 3.2 Estrutura narrativa e roteiro 35 3.3 O título da história 39

4.1 Personagens e ambientes 41 4.2 Storyboard 62 4.3 Finalização 65

5.1 Tipografia e balonamento 70 5.2 Capa 71 5.3 Espelho 74

CAPITULO VI Projeto Final

6.1 Apresentação do projeto final 80

CONCLUSÃO

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BIBLIOGRAFIA

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Introdução

Quando voltávamos das aulas de natação, minha mãe costumava deixar que eu e meu irmão escolhêssemos uma revista ou uma história em quadrinho no jornaleiro. Com essa rotina, em 2003, eu comprei meu primeiro mangá. Eu tinha 11 anos e até então eu havia sido alfabetizada verbal e visualmente pelos gibis da Turma da Mônica e da Disney, os mangás eram um mundo ainda desconhecido. Quando eu li o meu primeiro quadrinho japonês, um título da editora JBC, estranhei muito o sentido de leitura da direita para a esquerda, o miolo em papel jornal barato e a ausência de cores nas artes em nanquim. Mas logo me vi absorta na história, e fiquei fascinada quando descobri que o autor e desenhista da história eram a mesma pessoa e, ainda por cima, uma mulher: Rumiko Takahashi. O que mais me impressionava nas histórias dessa quadrinista era que suas narrativas sempre traziam algum elemento específico do cotidiano, do imaginário folclórico ou da história japonesa. Esses detalhes não passavam despercebidos aos meus olhos e, por mais que eu não os entendesse numa primeira leitura, eles despertaram minha curiosidade e comecei a pesquisar sobre a sociedade japonesa. Consequentemente, eu comecei a aprender mais sobre uma cultura totalmente diferente da minha e ficava imaginando como seria incrível conseguir fazer o mesmo com a cultura brasileira. Esse foi o início da minha relação mais íntima com os quadrinhos e não demorou muito para que, estimulada pela minha família e professores, eu começasse a desenhar minhas primeiras revistinhas. Porém, essa

Introdução 11


brincadeira virou coisa séria quando eu iniciei minha graduação em Design na Escola de Belas Artes da UFRJ. Na graduação, eu direcionei meus estudos para o desenho e me moldei como ilustradora. Nesse percurso, os quadrinhos foram deixados meio de lado para dar vez à experimentações em outras áreas do design gráfico. Só depois de fazer uma disciplina sobre quadrinhos com o professor André Ramos, voltei a me interessar pela nona arte. Mas foi em 2014, quando eu fiz um intercâmbio pelo programa Ciência Sem Fronteiras, na Kingston University em Londres, que pude vislumbrar melhor o tipo de histórias eu queria contar. Longe do Brasil, eu passei a prestar mais atenção à nossa cultura popular e me encantei por ela. Eu acabei trazendo esse tema para dois trabalhos que eu desenvolvi lá fora e voltei para o Brasil querendo fazer mais. Paralela à minha história pessoal com as HQs, eu observei o crescimento na produção de quadrinhos nacionais, e isso tem acontecido graças ao crescimento do público leitor, ao fortalecimento de um mercado fomentado pelo surgimento de novas editoras e selos especializados, aos eventos que tem ocorrido em todo Brasil como feiras e festivais sobre quadrinhos, ao engajamento de quadrinistas e leitores em plataformas de financiamento coletivo e aos editais do governo que tem estimulado a produção de novas HQs. É verdade que ainda não temos uma grande indústria e nosso mercado está longe do ideal, mas nós nunca tivemos um momento tão bom para o mercado brasileiro de quadrinhos. Então, eu vi o TCC como uma oportunidade de unir dois interesses: o desejo de estudar mais sobre os quadrinhos e entender como funciona todo o seu processo de criação, desde o roteiro até a edição final, usando as habilidades adquiridas ao longo da minha graduação; e a vontade de perpetuar um pouco do nosso imaginário na forma de uma história original.

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CAPÍTULO I

História em Quadrinhos

1.1 Definições e fronteiras

Em 1939, o Grupo Globo publicava uma revista cujo nome caiu no gosto dos brasileiros e passou a batizar todas as revistas de quadrinhos do país. Gibi, que significa “moleque”, é como ficaram conhecidas as histórias em quadrinhos no Brasil, mas, em cada canto do mundo, elas são chamadas de uma forma diferente de acordo com o contexto da produção de cada país.

Segunda edição da revista Gibi. Acervo da Editora Globo.

1. HQs : Abreviação para “historia em quadrinhos”

Nos Estados Unidos, o nome comic stripes (tiras cômicas) ou comics são derivados do conteúdo humorístico de suas primeiras manifestações. Na França, os quadrinhos receberam o nome de bandes-dessinées, termo traduzido pelos portugueses como bandas (tiras) desenhadas, também por conta do formato das publicações em tiras de jornal. Já na Itália, são os balões de fala que dão nome aos quadrinhos, o fumetti (fumacinha). Os espanhóis, assim como os brasileiros, também nomearam seus quadrinhos a partir de uma revista infantil e ficaram conhecidos como tebeos. Se nos voltarmos para os países asiáticos, encontraremos ainda mais especificidades, com um mercado totalmente diferente e segmentado, como é o caso da grande indústria de mangás japoneses. Tanto no Ocidente como no Oriente, as HQs1 desenvolveram particularidades que são reflexo da cultura local, do contexto social e da tecnologia disponível. Por isso, elas foram inventadas e reinventadas diversas vezes ao longo dos séculos, e determinar sua origem depende de quais parâmetros são adotados para sua definição. Algo que vem se tornando cada vez mais amplo, como transcreve Rogério de Campos, no trecho de Patrick Lèfevre e Charles Dierick:

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“[A] discussão a respeito do inventor dos quadrinhos é um tanto sem sentido, porque não pode haver algo como um inventor no campo dos quadrinhos. Não há uma invenção técnica, como uma câmera para do cinema.

LÈFEVRE & DIERICK in CAMPOS, R., 2015: p. 16

Existe apenas um desenvolvimento gradual na narrativa visual ao longo da história da humanidade, desde as pinturas pré-históricas.”

A busca por uma definição do que é história em quadrinhos tem sido feita por diversos autores ao longo dos anos. Segundo Will Eisner, podemos estabelecer três termos diferentes (EISNER, W., 2005): • Narrativa Gráfica: um termo genérico referente a qualquer narração através de imagens, como nos filmes; • Quadrinhos: impresso com arte e balões dispostos sequencialmente como nas revistas em quadrinhos; • Arte Sequencial: disposição de imagens em sequência. Para Eisner, o mais importante nas histórias em quadrinhos é o caráter sequencial que se dá pelo conjunto imagem e texto. “No entanto, as histórias em quadrinhos são, ao mesmo tempo, uma forma de arte e de literatura e, em seu processo de amadurecimento, buscam o

EISNER, W., 2005: p. 5

reconhecimento como um meio “legítimo”.”

O termo Graphic Novel, difundido por Eisner, foi adotado neste trabalho para elucidar que, como veremos mais adiante, esta história não se trata de uma história em quadrinhos seriada, e se permite experimentar composições que não se restringem aos parâmetros clássicos que possam existir. Conforme Fábio Ballmann (2009): “Para Eisner, o lugar privilegiado das histórias em quadrinhos era a Graphic Novel, uma sensível evolução da tira diária do jornal ou dos cadernos ilustrados dominicais. A graphic novel era uma história sensivelmente mais longa e mais elaborada, com uma maior preocupação tanto no desenvolvimento da trama quanto dos personagens, o que demandava mais páginas e requadros. Era o lugar também para se experimentar novas aplicações de técnicas e métodos, em muito limitados pelo esquema da tira.”

Scott Mcloud dá continuidade às reflexões de Eisner quando estabelece diferenças entre a arte sequencial na animação e a arte sequencial nas

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BALLMANN, F., 2009: p. 26


histórias em quadrinhos. Na primeira, a sequencialidade das imagens se dá pelo tempo e não pelo espaço, como nos quadrinhos. Os quadros de um filme são projetados um a um em uma única tela, enquanto nas HQs os quadros são posicionados lado a lado em uma mesma página. Além disso, no cinema, o espectador é passivo quanto ao tempo da projeção, enquanto nos quadrinhos o leitor teria maior autonomia para ler as imagens e textos no seu ritmo, se demorando mais ou menos tempo em um quadro. (MCCLOUD, S., 2004) Esses parâmetros começam a ser questionados quando observamos as experimentações contemporâneas. Por exemplo, nos quadrinhos para a internet que fazem uso de gifs animados, a arte sequencial dos quadrinhos e da animação se misturam, pois a sequencialidade das imagens passa a ocorrer em ambos os níveis temporal e espacial. Mccloud, então, propõe a seguinte definição:

MCCLOUD, S., 2004: p. 9

“Histórias em quadrinhos: imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador.”

Essa definição amplia o que podemos chamar de pré-história dos quadrinhos. Ou seja, as primeiras tentativas de narrar histórias com imagens em sequência, como vista nas paredes das cavernas pré-históricas, nos mosaicos, afrescos e tapeçarias. Sem restrição do tipo de suporte, essa definição mais aberta dá margem para as formas de produção de histórias em quadrinhos que podem surgir no futuro com o advento das novas tecnologias. Essa ideia é corroborada por outros autores como Thierry Groensteen. Para ele, as definições que temos de quadrinhos são insatisfatórias e concebidas para apoiar um recorte histórico arbitrário e limitado. São classificações pautadas pelo tipo de suporte (página impressa), pelo uso das tiras de jornal (formato), pela presença de balões de fala e recordatórios, pela recorrência de um mesmo personagem ao longo dos quadros, etc. Groensteen refuta as teorias baseadas nesses aspectos e propõe que a definição de uma HQ deve abranger suas manifestações históricas, presentes, e também possibilitar produções teoricamente concebíveis, mas ainda não realizadas. Nesse caso, o elemento central das histórias em quadrinhos seria a chamada “solidariedade icônica”, ou seja, a interdependência de imagens. (GROENSTEEN, T., 2015)

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No entanto, é uma questão problemática tentar abranger essas produções ainda não realizadas, pois estas podem entrar no campo de intercessão com outras mídias e formas narrativas e, talvez, até gerar algo diferente de tudo que conhecemos. O conceito de história em quadrinho varia de acordo com o contexto social e tecnológico. Conforme Rogério de Campos (2015): “A definição do que é uma HQ tem mudado à medida que ela evolui. E junto vai mudando a visão que temos da história dos quadrinhos. É significativo que Töpffer só tenha sido reconhecido na segunda metade do século XX, à medida que o formato álbum — ou graphic novel — se consolidava. Para quem entendia quadrinhos como tiras infanto-juvenis, os livros de Töpffer

CAMPOS, R., 2015: p. 17

eram algo invisível como HQ. Do mesmo modo, fãs de super-heróis ou quadrinhos infantis podem hoje ter dificuldades em considerar o trabalho de Richard McGuire (Here) ou de Woodrow Phoenix (Autocracia) como quadrinhos: como pode ser HQ se não tem personagens? [...]”

As histórias em quadrinhos são um meio complexo que se apropria de elementos de outras formas de arte, mas que também colabora, cedendo aspectos de sua própria forma narrativa, para outros meios como o cinema e a animação. Sua definição está em constante questionamento à medida que novas produções desafiam os antigos conceitos estabelecidos, apropriando-se de elementos do livro ilustrado, flertando com a animação e explorando novos fluxos, suportes, tecnologias e formatos. Como disse Sônia Luyten (1985): “O fato de os quadrinhos terem nascido do conjunto de duas artes diferentes – literatura e desenho – não os desmerece. Ao contrário, essa função, esse caráter misto que deu início a uma nova forma de manifestação cultural, é o retrato fiel de nossa época, onde as fronteiras entre os meios artísticos se interligam.”

Foi justamente por esse caráter fronteiriço das histórias em quadrinhos com tantas outras linguagens que eu decidi usá-lo como meio para a história deste trabalho de conclusão de curso. O objetivo desta monografia não é tentar encaixar a história desenvolvida para este projeto em uma definição efêmera do que é uma HQ. O processo apresentado nos próximos capítulos busca incorporar elementos narrativos qua-

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LUYTEN, S., 1985: p. 11-12


drinísticos, mas também se permite explorar recursos de composição de página que, independentemente de serem classificados como quadrinhos ou não, contribuem para a narrativa que será contada.

1.2 A luta das HQs brasileiras

2. Fonte: CAPELAS, B. O Brasil nunca teve um momento tão bom nos quadrinhos Disponível em: < http://br.ign.com/turma-da-monica/4029/ feature/entrevista-o-brasil-nunca-teve-ummomento-criativo-tao-bom-n >. Acesso em 15 de outubro de 2017. LUYTEN, S., 1985: p. 62

“A gente nunca viveu um momento criativo tão bom como o de hoje para os quadrinhos no Brasil.” É o que diz Sidney Gusman, diretor de planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções, em entrevista2 à IGN Brasil. O futuro das HQs brasileiras é otimista, mas nem sempre foi assim. Em nossa história com os quadrinhos, os quadrinistas brasileiros já enfrentaram muitas provações e precisaram de persistência para conquistar espaço num mercado saturado de publicações importadas. Conforme Sonia Luyten (1985): “É importante sabermos como se deu a evolução da HQ nacional, seus desenhistas e personagens principais, por dois motivos: um deles, para avaliar a produção atual e suas tendências. A outra, talvez a mais importante: para tomarmos consciência da própria cultura brasileira que nela se reflete.”

Em meados do século XIX, surgiram as primeiras manifestações dos quadrinhos brasileiros. Considerado o quadrinista pioneiro no Brasil, Ângelo Agostini publicava em 1869 na revista Vida Fluminense “As Aventuras de Nhô-Quim”, uma história sobre as desventuras de um jovem caipira no Rio de Janeiro.

Fragmento de “As Aventuras de Nhô-Quim”.

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Agostini também foi o responsável pelo logotipo da revista O Tico-Tico, a primeira a publicar quadrinhos regularmente no Brasil, de forma ininterrupta, de 1905 a 1960. Com conteúdo voltado para o público infantil, a revista O Tico-Tico trazia histórias estrangeiras como “As Aventuras do Gato Félix” e “Mickey Mouse3”, mas também consagraram personagens brasileiros como Chiquinho4, Réco-Réco, Balão e Azeitona. Além disso, foi uma revista por onde passaram desenhistas de grande valor nacional, com destaque para J. Carlos. (LUYTEN, S., 1985)

3. Conhecido na época como “As Aventuras do Ratinho Curioso”.

4. Uma espécie de adaptação do personagem norte-americano Buster Brown, lançado por Outcault em 1902.

Posteriormente, A Gazetinha e O Suplemento Juvenil (pioneiro na publicação de quadrinhos norte-americanos) trouxeram para o Brasil material estrangeiro como “Fantasma”, “Little Nemo”, “Tarzã”, “Mandrake” e “Flash Gordon”. A EBAL (Editora Brasil-América Ltda.), fundada por Adolfo Aizen em 1947, teve papel importantíssimo para a difusão das HQs no país. Além de publicar material da DC Comics e Marvel Comics, ela também nos trouxe artistas europeus de renome, como Dino Bataglia, Hugo Pratt e Sergio Toppi. Ainda nessa época, a revista Gibi fez tanto sucesso que seu nome passou a ser o sinônimo de quadrinhos no país. As revistas dessa época foram importantes, pois fomentaram um público leitor de quadrinhos. Porém, a competição de mercado gerada pelo contato do leitor com os títulos importados e a falta de medidas de proteção ao artista nacional dificultaram o firmamento dos quadrinhos produzidos no Brasil. A produção estrangeira sufocava a nacional. Os personagens brasileiros não conseguiram atingir sua independência nessa época e não sobreviveram fora das revistas. Em contrapartida, os personagens americanos ficaram tão famosos que destacaram-se para além dos jornais, onde eram inicialmente publicados. Sonia Luyten faz uma observação a esse respeito: “Enquanto no exterior ficaram famosos os personagens, isto é, os elementos principais de uma história, no Brasil destacaram-se as revistas ou os suplementos.”

Após a Segunda Guerra Mundial, começou nos Estados Unidos uma grande campanha contra as HQs, e o Brasil também embarcou nessa. Professores e pais não viam as histórias em quadrinhos com bons olhos e acreditavam que elas influenciavam negativamente as crianças e jovens. Durante a ditadura militar, em meio aos protestos sociopolíticos e a censura nos meios de comunicação, nasce o movimento do quadri-

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LUYTEN, S., 1985: p. 70


nho underground brasileiro. As dificuldades das pubicações independentes, como má distribuição e poucos recursos, fizeram com que essas revistas tivessem uma vida curta, não passando de poucos volumes. Ainda assim, elas foram o berço de artistas como Laerte, os irmãos Caruso e Luís Gê, que seriam destaque nas tiras e charges da imprensa brasileira. Na década de 1970, foram nas páginas da revista O Pasquim que desenhistas como Jaguar, Henfil e Ziraldo usaram das tiras para fazer humor e crítica social. Ziraldo e Mauricio de Sousa são referência até hoje quando se fala em HQs brasileiras. Ziraldo, com sua revista Pererê, foi o primeiro brasileiro a produzir uma revista de um único autor. Em 1959, Mauricio publicava a primeira tira do personagem “Bidu” na Folha de S. Paulo. Com as histórias de “Turma da Mônica”, Mauricio se tornou um fenômeno editorial. O sucesso de seus personagens fez com que Mauricio ampliasse seu estúdio e fundasse a Mauricio de Sousa Produções, expandindo o alcance de seus personagens através do merchandising em produtos licenciados e produções para a televisão e cinema. Um dos maiores feitos de Mauricio foi ter conseguido alçar ares internacionais. O esforço para reforçar a imagem dos personagens garantiu a entrada do gibi brasileiro em cerca de 40 países. O modelo de mercado que a Mauricio de Sousa Produções conseguiu implantar no Brasil é o mais próximo que temos dos modelos do exterior. Como no mercado japonês, Mauricio conseguiu segmentar suas histórias e personagens para diferentes faixas etárias. Hoje temos os gibis da “Turma da Mônica” para crianças, a “Turma da Mônica Jovem” para adolescentes e pré-adolescentes, e as “Graphics MSP” para adultos e jovens.

5. A partir de 1999, a Beinal de Quadrinhos foi substituída pelo FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos)

Na década de 1990, o mercado foi impulsionado pela realização da 1ª e 2ª Bienal de Quadrinhos5 do Rio de Janeiro e a 3ª em Belo Horizonte. Esses eventos contaram com a participação de um grande público além de convidados internacionais. Essa também foi a década em que os mangás se popularizaram no Brasil, trazendo ainda mais opções de leituras para as bancas. No século XXI, o mercado brasileiro de quadrinhos se encontra em um cenário muito promissor. O barateamento dos custos de produção, a proliferação de eventos e o uso da internet como ferramenta de venda e contato com o leitor dá espaço para o surgimento de novos autores,

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abordagens e temas. Uma das características dessa nova fase do quadrinho nacional é migração do seu ponto de venda. Com maior acabamento editorial, as HQs, que na década de 1980 vendidas principalmente em bancas de jornais, passam a ocupar as prateleiras das livrarias e lojas especializadas (as comic shops). Novas pequenas editoras e selos exclusivos de quadrinhos surgem com publicações cada vez mais refinadas e com a vontade de publicar novos autores e artistas brasileiros. É o caso da Veneta, Jupati Books, Editora Mino, Graphic MSP, e muitas outras. Ainda cabe destacar o esforço para publicação de mulheres quadrinistas no selo Nemo, do grupo Autêntica. Além da possibilidade de se publicar quadrinhos através de editoras, hoje, o quadrinista conta com um novo aliado: o financiamento coletivo (crowdfunding). Plataformas online como o Catarse, Kickante e Apoia.se permitem que o autor, através das redes sociais, divulgue seu projeto diretamente para o leitor, que avalia se adere ou não a campanha. O financiamento coletivo é uma alternativa cada vez mais adotada pelos quadrinistas independentes, pois permite um contato mais direto com o público que o acompanha. Essa prática tem feito tanto sucesso que, de 2011 a 2016, o Catarse arrecadou mais de R$4.390.000,00 para financiamento de quadrinhos e contou com 39.329 apoiadores, sendo a quarta categoria que mais arrecadou dinheiro entre as 18 oferecidas no ano de 20166. Mas produzir quadrinho independente dessa forma também requer maior planejamento e estratégia pois, além de produzir a HQ, o quadrinista precisa atuar como editor, designer, produtor gráfico, distribuidor, e gerente de marketing. Também existem alguns incentivos à publicação de quadrinhos por meio de editais do governo como o ProAc-SP (Programa de Incentivo à Cultura do Governo do Estado de São Paulo), que busca promover a produção literária independente. Esse tipo de edital tem permitido que autores publiquem suas primeiras obras com sucesso. Muitos quadrinistas que optam pelo financiamento coletivo programam suas campanhas para que os lançamentos ocorram justamente em eventos voltados para as HQs e cultura pop. Esses eventos têm se mostrado outro fator importante para o crescimento da produção de quadrinhos no Brasil, pois eles são, além de um contato de venda direta

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6. Fontes: ALEANDRO, G., 2017. e CATARSE.


entre quadrinista e leitor, uma grande vitrine para que editoras conheçam os trabalhos de novos artistas e venham a publicá-los no futuro. São grandes eventos como a SIQ (Semana Internacional de Quadrinhos da UFRJ), O FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos) e a CCXP (Comic Con Experience). Por outro lado, a difusão do quadrinho na web (webcomic) também é um recurso utilizado tanto pelos que desejam, posteriormente, prospectar suas histórias para o papel (como ocorreu com “Bear” de Bianca Pinheiro), como por autores que buscam explorar as peculiaridades que o meio digital pode oferecer as histórias. O Social Comics, por exemplo, uma plataforma que oferece um serviço de streaming de quadrinhos na web, disponibiliza a leitura online tanto de HQs de grandes editoras como histórias de artistas independentes. A internet, então, gera maior visibilidade para o artista e suas histórias. Para dar conta da divulgação das novas publicações impressas e digitais, surgem veículos de comunicação focados neste tipo de conteúdo. O canal do Youtube Pipoca e Nanquim traz resenhas e novidades sobre HQs estrangeiras e nacionais. O site Universo HQ produz, desde o ano 2000, matérias e resenhas sobre o assunto e estende seu conteúdo para o Podcast “Confins do Universo”. É preciso destacar, também, a enorme contribuição do site Lady’s Comics. Há 7 anos no ar com uma pauta feminista que tem por objetivo tratar de mulheres que estão ou estiveram presentes no universo dos quadrinhos, o Lady’s comics lançou em 2015 (através de financiamento pelo Catarse) a primeira edição da revista RISCA com o tema “Memória e Política das Mulheres nos Quadrinhos”. Também é importante citar os esforços dos pesquisadores brasileiros em história em quadrinhos. Conforme Sonia Luyten, durante muito tempo a pesquisa sobre quadrinhos foi alvo de preconceito dentro da academia, mas com o crescimento da produção de HQs, editores e artistas de qualidade inegável, a pesquisa da nona arte no Brasil tem ganhado mais espaço. Na USP, por exemplo, temos o Observatório de Histórias em Quadrinhos comprometido com a divulgação, publicação e organização de eventos de produção acadêmica. Um fator importante no incentivo à pesquisa é a inclusão das categorias de melhores teses (TCC, Mestrado e Doutorado) no Troféu HQMIX (uma das maiores premiações do quadrinho brasileiro que ocorre desde 1988). Com a maior produção de pesquisa sobre HQs aumentam os livros e publicações so-

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bre o tema que chegam nas mãos dos artistas, e assim, quadrinistas e pesquisadores alimentam um ciclo de produção e reflexão necessários para que os quadrinhos sejam levados a patamares cada vez mais altos. (VERGUEIRO, W.; RAMOS, P.; CHINEN, N. (Org.)., 2013) Acredito que, em nosso país, as histórias em quadrinhos são um mercado em expansão, mas ainda são pouco aproveitadas em áreas como a de educação, onde seu potencial de alfabetização verbal-visual ainda é explorado por poucos. São pouquíssimos os quadrinistas que conseguem viver somente de quadrinhos no Brasil. A maioria dos profissionais ainda precisa conciliar a sua produção com outros trabalhos que são sua real fonte de renda. Diante de tantas dificuldades, os quadrinistas ainda persistem criando material com tanta qualidade que alguns têm conseguido o feito de exportar histórias e artes originais para além de nossas fronteiras, como é o caso de Marcelo D’Salete, Marcello Quintanilha e os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. Esse cenário pulsante dos quadrinhos nacionais foi sentido por mim em 2015, na minha primeira visita ao FIQ (edição marcada pela forte presença feminina como produtoras e leitoras), onde vi de perto uma produção rica em temáticas, traços e abordagens diversas, uma verdadeira miscigenação em quadrinhos. E constatei que o que move o mercado de quadrinhos brasileiro é o desejo e qualidade inabalável que temos de produzir boas histórias, não importando as circunstâncias.

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CAPÍTULO II

O imaginário das carrancas brasileiras

2.1 O imaginário como contexto

Este trabalho busca construir uma narrativa com a temática do imaginário popular brasileiro como contexto. Mas antes é preciso que se explique a ideia de imaginário que foi adotada. Segundo o sociólogo francês Michel Maffesoli, o imaginário é uma atmosfera coletiva que ultrapassa o indivíduo. É o estado de espírito de um povo que fortalece os vínculos entre os indivíduos de um determinado grupo. A cultura de um povo é composta também pelo seu imaginário que a extrapola e alimenta e, diferentemente dela, não é passível de descrição, é uma espécie de aura. (MAFFESOLI, M., 2001) “A cultura pode ser identificada de forma precisa, seja por meio das grandes obras da cultura, no sentido restrito do termo, teatro, literatura, música, ou no sentido amplo, antropológico, os fatos da vida cotidiana, as formas de organização de uma sociedade, os costumes, as maneiras de vestir-se, de produzir, etc. O imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável.”

Os mitos e lendas brasileiros são manifestações do nosso imaginário popular e foram matéria-prima para a construção da narrativa desse trabalho. Conforme será visto no Capítulo III - Naruna, existem inúmeras histórias de ficção que incorporam elementos do imaginário popular de um povo ou época como pano de fundo para a narrativa. Nesse trabalho de conclusão de curso, o imaginário das populações ribeiri-

Capítulo II O imaginário das carrancas brasileiras 25

MAFFESOLI, M., 2001


nhas que vivem às margens do rio São Francisco serviu como inspiração para o desenvolvimento da trama.

2.2 As carrancas e o imaginário ribeirinho “[...] Das mãos de Guarany surdiram monstros que colocados na proa dos barcos protegiam os viajantes contra os terrores do rio. Eram monstros benignos, conjunção de forças milenares enlaçadas na mente de Guarany. [...]’ — Carlos Drummond de Andrade

O Brasil é um país rico e diverso em sua cultura e costumes. A mistura dos hábitos e vida indígenas dos nativos com a imigração de diferentes povos europeus e escravos africanos culminou numa cultura multidiversa. Esse choque cultural resultou numa riqueza de mitos e lendas folclóricas que são contadas e reinventadas há gerações, tanto via oral, visual quanto escrita. Contos e recontos dessas histórias fizeram surgir variantes dos mesmos temas por todas as regiões do país, dando ao nosso imaginário uma unidade plural. Assim como existem manifestações culturais que ecoam de uma ponta a outra do país, também existem as que sobrevivem exclusivamente em um só lugar. Manifestações assim correm o risco de perder suas origens ao longo dos séculos e ganharem outros significados graças às novas histórias e crenças do povo. São histórias que estão às margens de nossa cultura, muitas vezes afogadas em um mundo globalizado, mas que dizem muito sobre nós. Esse é o caso das carrancas, assustadoras figuras entalhadas em madeira que habitavam a proa das barcas navegantes do rio São Francisco.

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Também conhecidas como leões de pau e cabeças de proa, as carrancas são um importante ícone do artesanato popular. Já foram bem diferentes das figuras totêmicas que encontramos nas lojas de artesanato, como as famosas Carrancas Vampiras, de enormes dentes brancos, olhos e boca vermelhos, do mestre Bitinho (Severino Borges de Oliveira). Antes de chegarem às lojas e enfeitarem as casas, protegendo seus moradores contra o mau-olhado, as carrancas podiam ser vistas na proa das barcas que navegavam os trechos do médio São Francisco entre 1880 e 1950, entre as cidades Pirapora e Januária e os municípios de Juazeiro e Petrolina (COSTA, A., 2017). Embora seu uso só tenha se difundido no século XX, as figuras de proa do São Francisco foram citadas pela primeira vez, em 1888, nos livros de Antônio Alves Câmara e Durval Vieira de Aguiar. Existiram figuras de proa em diferentes partes do mundo com funções decorativas e místicas. Neste sentido, as carrancas brasileiras receberam influência das decorações navais dos povos primitivos do Ocidente. Na Idade Média, por exemplo, os drakkars7 possuíam figuras de proa móveis em forma de animais fantásticos como dragões, serpentes e cavalos e tinham a função de amedrontar o inimigo. (PARDAL, P., 1979) Segundo Paulo Pardal, as carrancas do São Francisco podem ser fruto da tentativa de imitar a decoração dos navios de alto-mar. Mas, diferentemente das figuras de proa encontradas nos navios oceânicos, as carrancas brasileiras só representam o pescoço e a cabeça da figura e não o corpo inteiro. Além disso, elas eram esculpidas em pedaços de troncos independentes (geralmente cedro) e não a partir do próprio corpo da embarcação. O isolamento dos habitantes rurais do São Francisco permitiu o surgimento de um tipo inédito de figura de proa, que é uma mistura selvagem de homem e animal. Essa é a característica mais marcante das carrancas brasileiras. O que torna essas figuras tão originais é justamente o seu estilo zootropológico, ou seja, a mistura de traços animalescos e humanos. Os elementos antropomorfos mais comuns são semelhantes

Capítulo II O imaginário das carrancas brasileiras 27

7. Drakkars são barcos de guerra vikings.

8. No subcapítulo anterior (2.1), tratamos do “imaginário”, segundo Michel Maffesoli. Mas aqui o termo tem significado diferente e corresponde aos escultores de imagens santas.


as imagens dos imaginários8: são olhos e sobrancelhas arqueadas e longa cabeleira. (PARDAL, P., 1979) Conforme Pardal (1979): PARDAL, P., 1979: p. 6

“Fecha-se assim o ciclo: a evolução das embarcações primitivas levou as figuras de proa, surgidas basicamente com conotações místicas, aos grandes navios, onde sua função era decorativa. E a influência dos grandes navios levou à imitação de suas figuras de proa, com intuito inicialmente decorativo, em pequenas embarcações de uma sociedade rural primitiva. Seus membros, entretanto, deram frequentemente a essas figuras uma conotação mística.”

LINS, W., 1960: p. 122

Através da fala de Pardal, podemos apreender duas explicações a respeito da origem das carrancas de proa: a finalidade econômica-decorativa e interpretação popular mística. Antes de ganharem conotação mística, as carrancas eram utilizadas com finalidade econômica, como uma forma primitiva de publicidade. Conforme explica Wilson Lins (1960): “Acredita-se que os donos de barcas tenham adotado o uso das figuras de proa como meio de atrair a curiosidade da gente das fazendas sobre as embarcações e, assim, aumentar as possibilidades de negócios.”

A esse respeito, Paulo Pardal completa dizendo que os fazendeiros do São Francisco teriam se baseado nas figuras antropomorfas vistas por eles em navios nos portos do Rio de Janeiro e de Salvador. As carrancas teriam sido originalmente projetadas como indicativo de status e propriedade. Elas também teriam função comunicativa, pois os bustos podiam ser vistos ao longe e, assim, os ribeirinhos poderiam identificar mais facilmente seus proprietários. PARDAL, P., 1979: p. 16-17

“O motivo original das figuras de proa foi provavelmente a necessidade de facilitar a caça e a pesca. Em seguida veio a interpretação mística. Mais tarde, outros motivos as explicam: pura decoração artística, intimidação do inimigo, sinal de prestígio, indicação de propriedade ou origem, facilidade de comércio. Conclui-se que todas as causas que originaram o uso destas peças contribuíram para o surgimento e a generalização das carrancas do São Francisco.”

A vida humilde dos remeiros do São Francisco deu margem para explicações sobrenaturais para os perigos do rio, como enchentes, naufrá-

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gios e afogamentos. Os ribeirinhos associaram esses eventos às histórias de seres fantásticos como o duende do rio, mãe d’água, minhocão, caboclo d’água, cavalo-de-água e muitos outros. A difusão dessas lendas deu as carrancas uma função mística e atribuiu a elas uma missão diferente da sua finalidade econômica inicial: a missão de proteger os barqueiros das criaturas do rio, emitindo três gemidos quando há iminência de naufrágio. Por conta desse caráter protetor, a carranca deve ter a aparência assustada de quem viu um ser do rio e, ao mesmo tempo, assustadora de quem tenta aterrorizá-lo. (PARDAL, P. 1979) Pode-se dizer, também, que uma das explicações para a expressão assustadora das carrancas é o fato de elas representarem justamente os seres dos quais se deseja proteger, como afirma Câmara Cascudo (1988): “O melhor amuleto afugentador do Cavalo do Rio é sua própria representação na proa da embarcação.”

A partir da década de 1940, com a substituição das barcas movidas a varas e remos por motores a explosão, as carrancas deixaram os rios e migraram para as lojas de artesanato em forma de totens. Em 1954 foram reconhecidas como arte popular e passaram a ser peças de colecionadores no mundo todo, consagrando alguns carranqueiros, entre eles o mais conhecido, Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (PARDAL, Paulo, 1979). Além disso, as carrancas começaram a servir de inspiração para peças de outros artesãos, como é o caso das carrancas de barro de Ana Leopoldina dos Santos, conhecida como Ana das Carrancas. Quando me deparei com as carrancas em minha pesquisa, elas se tornaram um elemento-chave na história que eu resolvi contar. Conforme será visto no Capítulo III - Naruna, a função mística das carrancas, sua aparência assustadora e sua semelhança com os seres fantásticos que deseja assustar foram aspectos dos quais me apropriei para contar a história desse projeto.

Capítulo II O imaginário das carrancas brasileiras 29

CASCUDO, L., 1999: p. 263



CAPÍTULO III

Naruna

3.1 Motivação e pesquisa

Depois da pesquisa inicial, todo o material coletado que serviu como inspiração e referência no percurso deste projeto foi arquivado no blog www.tccmayaralista.tumblr.com. Essa metodologia foi útil para facilitar a documentação dos links, vídeos, imagens e textos que ajudaram a criar essa história.

Capítulo III Naruna 31

Tela da página inicial do blog.


A concepção da história começou primeiro com imagens. A partir da pesquisa, surgiram os primeiros esboços que tinham em comum o seguinte tema: uma figura feminina atravessa um rio sobre uma vitória-régia.

Primeiros esboços.

Para descobrir qual recorte sobre o imaginário popular seria adotado no projeto, foi feita uma pesquisa de campo com visitas aos acervos das seguintes instituições e eventos: • • • • • • •

Rio de Chita - Festa da Rua 2016 (organizado pelo Instituto de Arte Tear); Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas; CRAB - Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro; Museu de Folclore Edson Carneiro; Galeria Pé de Boi; A exposição “Festa Brasileira: Fantasia Feita à Mão” no CRAB A exposição “Mostra Mundo Giramundo” na CAIXA Cultural do Rio de Janeiro.

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Fotografias tiradas por mim durante a pesquisa de campo.

CapĂ­tulo III Naruna 33


A pesquisa de campo foi parte fundamental na metodologia para o recorte necessário dentro do tema do imaginário popular brasileiro. Conforme será visto no Capítulo IV - Desenvolvimento Visual, também a partir dessa pesquisa foi recolhido material de referência como peças de artesanato, vestuário e cores que foram posteriormente utilizados no desenvolvimento visual dos personagens e ambientes da história. Além das referências coletadas na pesquisa de campo, algumas histórias de fantasia que utilizaram o imaginário popular como pano de fundo da narrativa tiveram grande importância no desenvolvimento deste projeto. Foi o caso de “Hoje é Dia de Maria” (2005), minissérie brasileira produzida e exibida pela Rede Globo que traz personagens e crenças populares do sertão do Brasil; e de “A Viagem de Chihiro” (2001), o longa-metragem de animação japonesa produzido pelo Studio Ghibli que explora o imaginário japonês. Essas duas narrativas fantásticas serviram de inspiração para a história que será contada a seguir.

Pôsteres da minissérie “Hoje é Dia de Maria” e do filme “A Viagem de Chihiro”.

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3.2 Estrutura narrativa e roteiro

Essa história foi construída utilizando como base os 12 passos da Jornada do Herói (Termo cunhado pelo antropólogo Joseph Campbell em seu livro “O Herói de Mil Faces”. Trata-se de uma estrutura de jornada cíclica que aparece nos mitos e é usada como base em muitas estruturas narrativas. No livro “A Jornada do Escritor”, Christopher Vogler demonstra como os roteiros de cinema se utilizam dessa estrutura.) em conjunto com uma Estrutura de Três Atos (Paradigma de roteiro segundo Syd Field em seu livro “O Manual do Roteiro”). Para transformar o texto em um roteiro que atendesse as necessidades do projeto a história passou por três processos de estruturação: Storyline, Argumento e Escaleta. Ao fazer uso desses esquemas de estrutura e construção de roteiro me permiti aproveitar somente os recursos convenientes para este projeto, isto é, não houve necessidade de fazer uso de esquemas formais clássicos de construção de roteiro para história em quadrinhos.

PRIMEIRO ATO Apresentação: Pescadores reclamam das carrancas de Naruna. Pressionada pelo mestre, ela começa a tentar esculpir a carranca.

TERCEIRO ATO Resolução: Dentro da cobra, Naruna consegue, com o apoio do lobo, terminar de esculpir a carranca. A cobra se desfaz quando Naruna completa sua provação e transforma-se no próprio rio. Naruna consegue atravessar o rio e retornar para sua vila com a carranca completa.

mundo comum ponto de virada

mundo especial ponto de virada

Naruna se fere com sua ferramenta, fica com raiva e joga a carranca no rio.

SEGUNDO ATO

A carranca racha e de, dentro dela, sai uma grande cobra que engole Naruna e o lobo.

Confrontação: Naruna cai no rio e, ao chegar na outra margem, um lobo-guará a incentiva a terminar a carranca. Capítulo III Naruna 35


O Storyline é o resumo da história em um parágrafo: “Naruna, uma jovem aprendiz escultora de carrancas, tem seu ofício ameaçado porque é incapaz de criar uma carranca que seja assustadora. Por conta disso os pescadores, seus clientes, estão sempre reclamando que seus barcos afundam devido a ineficiência das carrancas. Depois de muitas tentativas e de quase desistir, Naruna acaba encontrando, do outro lado do rio, um lobo-guará que a ajuda a persistir e esculpir uma carranca realmente assustadora.” A partir do Storyline foi escrito o Argumento, ou seja, o desenvolvimento de tudo que acontece na história: “Naruna é uma jovem aprendiz de artesã e escultora de carrancas na oficina de seu mestre, numa pequena cidade ribeirinha. Só se consegue atravessar o rio com uma carranca na proa, porém, os clientes de Naruna reclamam que suas carrancas não funcionam como amuleto de proteção. Elas não são assustadoras o suficiente e não dão medo. Os barcos que as usam sempre afundam. Advertida pelo seu mestre e com seu trabalho ameaçado, Naruna tenta incessantemente fazer uma carranca assustadora, mas não consegue êxito. Persistente, Naruna continua tentando esculpir sua carranca no pier na beira do rio, até que acaba ferindo-se com um pequeno corte em sua mão. Frustrada e com raiva, Naruna joga a carranca no rio e quase desiste. Após hesitar, ela volta atrás, desce do pier e vai caminhando sobre as vitórias-régias até a carranca que está boiando na água. Naruna cai na água, agarra-se a carranca e elas são levadas rio abaixo. Naruna passa por fortes correntezas e águas agitadas, mas acaba chegando em terra firme, na outra margem do rio. A carranca é esquecida na beira da água e Naruna percebe que está em uma floresta. Ela encontra um lobo-guará que passa a acompanhá-la enquanto ela tenta construir uma pequena jangada para voltar para sua vila. Porém, ela não consegue atravessar, a embarcação sempre acaba afundando. O lobo traz a carranca esquecida na boca e Naruna a joga para longe, achando tratar-se de brincadeira. O lobo traz a carranca mais uma vez, e Naruna finalmente entende e volta a esculpir a carranca.

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Naruna continua o trabalho nessa carranca até que um golpe de sua ferramenta cria uma rachadura na madeira. De lá, sai uma cobra gigante que engole Naruna, o lobo e a carranca. Dentro da cobra tudo parece perdido, mas o lobo incentiva Naruna a não desistir e a continuar esculpindo sua carranca. Conforme ela trabalha, a figura lobo desaparece e Naruna finalmente termina de fazer uma carranca assustadora. A cobra se transforma em rio e transborda, conectando as duas margens. O mestre e os pescadores da vila avistam o retorno triunfante de Naruna sobre as águas com a carranca assustadora e semelhante a cobra que ela enfrentou, na proa da jangada.” Posteriormente, o texto foi reestruturado na forma de Escaleta, isto é, organizando o Argumento em Atos, Sequências e Cenas: ATO I SEQUÊNCIA 1 - NA OFICINA Cena 1: Naruna está na oficina esculpindo na madeira, quando seu mestre a chama. Cena 2: Naruna vai até a entrada da oficina. Lá ela se esconde atrás de algumas carrancas de lobo e escuta seu mestre atendendo alguns pescadores. Os pescadores estão devolvendo as carrancas de Naruna e reclamam que elas não funcionam e, por isso, seus barcos estão afundando. Cena 3: Depois que os pescadores vão embora, o mestre de Naruna começa a conversar com ela. Ele conta que só se consegue navegar pelas águas do rio com uma carranca na proa e que, para isso, elas devem ser figuras medonhas. Ele diz que Naruna precisa conseguir esculpir uma carranca que seja realmente assustadora ou não poderá mais trabalhar ali. Cena 4: Naruna faz sua primeira tentativa de tenta esculpir uma carranca assustadora, mas sem êxito. O mestre observa a tentativa frustrada com preocupação.

PONTO DE VIRADA 1

Capítulo III Naruna 37


SEQUÊNCIA 2 - NA BEIRA DO RIO Cena 1: Naruna está na beira do rio tentando esculpir uma carranca, mas, com sua ferramenta, ela acaba ferindoa a mão. Naruna, frustrada e cansada, joga a carranca no rio e pensa em desistir. Cena 2: Naruna hesita e dá meia volta para tentar pegar a carranca que está boiando no rio. Cena 3: Naruna caminha sobre as vitórias régias até o meio do rio, mas antes de alcançar a carranca, ela acaba caindo na água. Ela se agarra à carranca e é levada pela correnteza.

ATO II SEQUÊNCIA 3 - NA CORRENTEZA Cena 1: Naruna passa por fortes correntezas e águas agitadas. SEQUÊNCIA 4 - NA OUTRA MARGEM Cena 1: Naruna chega na outra margem, larga a carranca na beira do rio e percebe que está numa floresta. SEQUÊNCIA 5 - NARUNA E O LOBO (NA FLORESTA) Cena1: Naruna encontra em lobo-guará que começa a acompanhá-la. Cena 2: Naruna constrói uma jangada para atravessar o rio, mas a embarcação se desfaz e afunda. Cena 3: O lobo, que estava observando, traz a carranca incompleta de Naruna, mas ela ignora e a joga longe na floresta achando que o lobo quer brincar. Cena 4: O lobo traz a carranca novamente e encara Naruna que, dessa vez, entende e, finalmente, volta a trabalhar na carranca. PONTO DE VIRADA 2 SEQUÊNCIA 6 - ENCONTRO COM A COBRA Cena 1: Um golpe da ferramenta de Naruna cria uma rachadura na carranca. Cena 2: De dentro da carranca, sai uma cobra gigante.

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Cena 3: A cobra engole Naruna, o lobo e a carranca.

ATO III SEQUÊNCIA 7 - DENTRO DA COBRA Cena 1: O lobo incentiva Naruna a não desistir e a continuar esculpindo sua carranca. Conforme ela trabalha, a figura do lobo desaparece. Cena 2: Naruna consegue terminar de esculpir sua carranca. SEQUÊNCIA 8 - A COBRA E O RIO Cena 1: A cobra vira o rio, que transborda unindo as duas margens. SEQUÊNCIA 9 - RETORNO Cena 1: Na beira do rio, o mestre e os pescadores da vila comentam a curiosa enchente. Cena 2: O mestre e os pescadores avistam Naruna navegando triunfante sobre as águas com a carranca assustadora e semelhante a cobra que ela enfrentou, na proa da jangada. FIM

3.3 O título da história

A escolha do título dessa história se deu ao mesmo tempo em que eu pesquisava possíveis nomes para a protagonista. Durante a fase de pesquisa do projeto, entrei em contato com diversas lendas e mitos brasileiros, e quando me deparei com a lenda amazônica da guerreira Naruna, senti que esse era o nome perfeito para a personagem. Na lenda indígena, Naruna é a chefe de sua tribo. O fato de ela ser líder em uma sociedade indígena matriarcal já despertou meu interesse na história, e seu confronto é com a figura opressora de Jurupari, o “Filho do Sol”. Como a história trata de uma jornada pessoal de autodescobrimento da protagonista, resolvi usar seu nome como título. Posteriormente acrescentei o subtítulo “Uma história sobre esculpir travessias”, uma forma de aludir a jornada de Naruna e ao seu trabalho como carranqueira.

Capítulo III Naruna 39



CAPÍTULO IV

Desenvolvimento Visual

4.1 Personagens e ambientes

Para criar os concepts dos personagens e cenários dessa história, foi feita uma pesquisa visual utilizando imagens de referências agrupadas em moodboards. Primeiramente, foi criado um moodboard geral como referência para a atmosfera da história e para os cenários da oficina de carrancas, da vila ribeirinha e do rio.

Capítulo IV Desenvolvimento visual 41

Moodboard geral.


NARUNA A protagonista, Naruna, é uma jovem de atitude e persistente. Suas características físicas foram inspiradas em mulheres reais e da ficção que tivessem pele morena e traços indígenas. O físico de Naruna é atlético, e seus braços são torneados devido ao fato da personagem utilizar muito trabalho braçal na confecção das carrancas.

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Moodboard Naruna Nas imagens: 1. Vanessa Giácomo (atriz) 2. Nani (da animação Lilo & Stitch, da Disney) 3. Moana (da animação Moana, da Disney) 4. Dira Paes (atriz) 5. Maria José Gomes da Silva, conhecida como Zezinha (artesã mineira) 6. Lucy Alves (atriz) 7. Carolina Oliveira (atriz)

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NARUNA l Estudos

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NARUNA l Concept final

Foi feita uma escultura da personagem em massa de modelar para ter um melhor modelo de como seriam as proporçþes da protagonista.

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Para compor o figurino da Naruna, eu usei a saia de chita, um tecido de algodão com estampas florais, que é veste característica de diversos folguedos e festas populares por todo o Brasil.

Versão final.

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MESTRE E LOBO-GUARÁ O mestre carranqueiro é uma figura importante na história, pois é o mentor de Naruna. Para desenhá-lo, utilizei como referência tipos matutos e de pele negra. Além disso, também me inspirei em carranqueiros e artesãos reais, como o próprio Mestre Guarany e Zé do Chalé. Ao longo da história, aparece um outro personagem: o lobo-guará. Esse animal tem uma conexão especial com a figura do mestre, ele é uma extensão desse personagem e, por isso, ele serviu de base para o design do carranqueiro. A postura, braços longos, o formato da cabeça e até a cor das roupas do mestre foram concebidos através de um desenho zoomórfico.

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Moodboard Mestre e Lobo Destaque para as figuras: 1. Zé do Chalé (artista sergupano) 2. Francisco Biquida dy Lafuente Guarany, o Mestre Guarany.

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MESTRE E LOBO-GUARÁ l Estudos

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MESTRE E LOBO-GUARÁ l Concept final

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VersĂŁo final.

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CARRANCAS Na história de Naruna, as carrancas foram inspiradas nas antigas figuras de proa do rio São Francisco, que combinavam traços humanos e animalescos. Nas cenas que se passam no interior da oficina do mestre pode-se perceber diversos modelos de carrancas com traços de diferentes animais da fauna brasileira. Dentre eles é dado um destaque às carrancas de lobo. Essas são as carrancas do mestre justamente por sua conexão com o lobo-guará que aparece no meio da história.

Moodboard Carrancas

Existem duas carrancas principais: o modelo que a protagonista sempre faz, que não dá medo em ninguém; e a carranca final que encerra a trama e simboliza o êxito de Naruna quando ela consegue fazer uma figura assustadora. Essas carrancas remetem a imagem da cobra que a personagem enfrenta ao fim da história. São, portanto, o símbolo do desafio que Naruna deve enfrentar.

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CARRANCAS l Estudos

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CARRANCAS l Concept final

Versão final das carrancas de Naruna.

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Versão final das carrancas do mestre.

O mestre carranqueiro tem seu próprio modelo de carranca, que é a figura do lobo. Um prenúncio de sua ligação com o lobo-guará que Naruna encontra do outro lado do rio. COBRA

Moodboard Cobra

A grande cobra que engole Naruna e o lobo é um ser fantástico inspirado nas figuras mitológicas do imaginário ribeirinho como a Cobra Norato, Boiúna e Minhocão. Seu desenho foi feito com base na jibóia, sucuri e na píton, que simboliza os medos e inseguranças da Naruna e, assim como o mestre e o lobo-guará, ela tem uma conexão com a protagonista que transparece não só no modelo de carranca que ela esculpe, mas também na cor verde de suas roupas e na própria sinuosidade do rio onde acontece o conflito da história.

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COBRA l Estudos

Versão final.

Capítulo IV Desenvolvimento visual 61


LINE UP E SILHUETA DOS PERSONAGENS PRINCIPAIS

4.2 Storyboard

Primeira versão do Storyboard.

Em paralelo ao desenvolvimento do roteiro, comecei a montar o Storyboard. A primeira versão continha apenas as cenas-chave iniciais dos momentos mais importantes. Posteriormente foi feita uma versão mais completa com as demarcações de cada ato e ponto de virada. Após alguns ajustes e refinamento de traço, cheguei ao desenho final das páginas.

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ATO I

ATO II

ATO III

Ponto de Virada

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A etapa seguinte foi a escolha do Color Script, isto é, o mapeamento das cores e da atmosfera de cada parte da história. Nas cenas do interior da oficina, escolhi usar tons castanhos alaranjados, refletindo um ambiente de segurança. Do outro lado do rio, os tons são mais azulados e, nos momentos de perigo, o vermelho cria a sensação de tensão na página. Estudo para o Color Script.

Cores finais.

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4.3 Finalização

Foram necessários alguns testes antes de escolher qual seria a técnica de finalização para esta HQ. Alguns das técnicas testadas foram: lápis grafite, tinta nanquim, tinta guache, aquarela, colorização digital, lápis dermatográfico e pastel oleoso com lápis de cor sobre papel vegetal. Testes de finalização.

Capítulo IV Desenvolvimento visual 65


Testes de finalização.

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Por fim, optei por uma técnica mista com giz pastel oleoso, solvente, raspagem e lápis de cor sobre papel bristol 180g/m2. Essa técnica me possibilitou obter texturas e ao mesmo tempo criar bases de manchas mais abstratas que criaram uma atmosfera presente em todas as imagens. A finalização das páginas foi feita conforme as seguintes etapas: 1. Pintar o quadro com o pastel oleoso. 2. Aplicar o solvente de tinta a óleo sobre a pintura utilizando o algodão/cotonete ou o pincel de cerda chata. 3. Desenhar os detalhes necessários com lápis de cor. 4. Raspar as áreas de textura com estilete. Materiais usados na finalização das páginas.

Solvente de tinta a óleo Pastel oleoso

Pincel Estilete

Lápis de cor Algodão e cotonete

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Exemplo de pรกgina finalizada.

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CAPÍTULO V

Projeto Gráfico

5.1 Tipografia e balonamento

É típico das histórias em quadrinhos o uso de letras bastão nos balões de fala. Foram usadas duas fontes no projeto: a Komika Hand para os textos nos balões e a Gosmick Sans para o pré e pós-textual. Para integrar os balões com as texturas das ilustrações, escolhi desenhar balões mais angulosos e com o outline irregular,

kOMIKA HAND

11PT

ABCDEFGHIJKLMNOPQESTUVWXYZ !? 0123456789 GOSMICK SANS

11PT

ABCDEFGHIJKLMNOPQESTUVWXYZ !? abcdefghijklmnopqestuvwxyz 0123456789

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5.2 Capa

A capa contém todos os principais elementos da narrativa e foi baseada nos primeiros esboços do projeto, quando tudo que eu sabia era que a história seria sobre uma menina que atravessa o rio em uma vitória-régia. Esboços para a capa.

Capítulo V Projeto Gráfico 71


No lettering do tĂ­tulo, eu resolvi assumir o papel da protagonista e simular um entalhe em madeira, como se fosse a assinatura da prĂłpria Naruna. Para isso, eu fiz um carimbo em linoleogravura.

Carimbo feito em linoleogravura para o lettering da capa.

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Especificações Editoriais As especificações editoriais abaixo foram escolhidas com base nos padrões adotados pelas HQs brasileiras, independentes ou não, nos últimos anos. Depois de comparar algumas edições de quadrinhos nacionais, constatei que, com o número de páginas deste projeto, 170mmx240mm com orelhas seria o formato ideal. Livro brochura Capa: 600x240mm 4x4 cores em cartão supremo FI 250g Miolo: 64 pgs I 170x240mm 4 cores em papel Offset Alta Alvura 150g. Acabamentos: costurado, hot melt, com laminação soft touch, nos lados 1(Capa) Dobra

170mm

240mm

6,8mm

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120mm


5.3 Espelho

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CAPÍTULO VI

Projeto final

6.1 Apresentação do projeto final As páginas a seguir mostram o resultado do projeto de TCC.

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CapĂ­tulo VI Projeto Final 153


Conclusão

Quando eu iniciei este projeto de TCC, eu mal sabia o que seria. Eu não sabia se seria um livro ilustrado ou uma história em quadrinhos, se faria uma publicação impressa ou digital, se usaria um texto original ou se pegaria algum conto como base, não sabia nem se teria texto de fato. Eu só sabia que o projeto tinha que ser meu. Então, eu me permiti deixar as respostas surgirem durante o processo e as perguntas me guiarem até caminhos que afetassem o meu íntimo e abalassem as minhas certezas. O resultado é uma mistura sem pudor de processos de criação de história em quadrinhos, livro ilustrado e animação que me permitiu compreender melhor essas etapas e aproveitar delas o que fosse conveniente para o projeto. No momento em que eu percebi o impacto que as histórias em quadrinhos tiveram na minha vida, eu decidi fazer do TCC um meio de, não só me reconectar com esse mundo, mas também começar a vê-lo através de outros ângulos. Além disso, eu também comecei a alimentar a pretensão de usar as histórias em quadrinhos para contar um fragmento do que é nossa cultura e alma. Foi um processo muito intenso e de altos e baixos, mas eu nunca me senti tão apaixonada por um projeto como nesses meses de trabalho. Eu senti fome de aprender e, a cada nova etapa, eu sonhava em ver esta história viva. Foi, de longe, meu maior desafio acadêmico até então. Durante a fase de pesquisa, eu fiquei fascinada pelos estudos das histórias em quadrinhos, e por conta disso, demorou um tempo até que eu conseguisse fazer o recorte no conteúdo que cabia nesse TCC. Realizar

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essa pesquisa que sustenta o meu projeto me trouxe um grande prazer e me fez vislumbrar a continuidade dos meus estudos futuramente em uma pós-graduação. Além de pôr à prova tudo que eu aprendi na graduação sobre design e ilustração, eu também me coloquei outro desafio: escrever. À medida que a história de Naruna ia se desenhando na minha mente, eu precisei adquirir novas habilidades que me permitissem pôr essa história no papel usando palavras. Comecei a estudar sobre narrativa e técnicas de roteiro, algo totalmente novo para mim. Escrevi, reescrevi, apaguei, comecei do zero, escrevi de novo inúmeras vezes. Embora eu tenha desacreditado, em alguns momentos, que seria capaz de escrever essa história, acredito que foi uma excelente oportunidade para que eu me enxergasse não só como designer e ilustradora, mas como autora. A etapa de desenvolvimento visual, além de muito prazerosa, foi outro aprendizado. Foi preciso desenhar muito, fazer muitos planejamentos, composições, layouts, esboços, testar divesos estilos e técnicas até que eu me sentisse confiante com qual caminho seguir. Sem dúvida foi muito trabalhoso, mas fazer isso tudo sozinha me confirmou a importância da direção de arte para um projeto coeso e me fez crescer como artista. Uma das minhas motivações para criar essa HQ era usá-la como veículo de propagação de uma parte do imaginário e da identidade brasileira. Queria evocar a sensação de familiaridade de um universo que conhecemos mesmo que superficialmente, e despertar curiosidade para que possamos valorizar as nossas raízes. Ao concluir esse projeto, vejo as histórias em quadrinhos como um poderoso meio pra propagar enriquecimento e representatividade cultural e, por que não, ajudar a criar uma sociedade mais consciente de suas histórias. Portanto, acredito que as HQs, como produto industrial de cultura de massa, são ótimos veículos para a propagação de culturas populares. Por mais que nós ainda não tenhamos uma grande indústria de quadrinhos no Brasil como no Japão — onde a publicação de um mangá sobre basquetebol consegue alavancar a popularidade do esporte no país inteiro e um mangá cujo protagonista é um estudante de uma universidade agrícola provoca um aumento de mais de 50% nas inscrições para esse vestibular — não consigo deixar de pensar o que as histórias em quadrinhos brasileiras seriam capazes de fazer em alguns anos.

Conclusão 155


Concluo esse TCC e essa etapa da minha vida mais confiante e consciente do meu papel como designer, ilustradora, e agora, quadrinista. Sem que eu me desse conta, acabei colocando muito de mim em Naruna. Muitas vezes me senti como ela, à deriva em águas turbulentas, agarrada a minha carranca que era esse trabalho. Naruna, ao tentar esculpir sua carranca está, na verdade, esculpindo a si mesma, se moldando e crescendo. Domando uma parte de si que antes não conseguia ver a superfície. Realizar esse projeto significou o mesmo para mim e, é claro, tive ajuda de vários “lobos-guarás” ao longo dessa travessia.

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