Do que eu falo quando falo de corrida

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Ela acorda aproximadamente às 9 horas. Digo isso baseado nas primeiras histórias que ela posta no dia. Por história, entenda como aquela função do Instagram onde você aponta a câmera para algo que acha interessante e compartilha para todos os seus seguidores para que eles também achem interessante por alguns segundos. A verdade é que ninguém nunca acha interessante. Mas todos surpreendentemente gostam. Vai ver todos apreciem a ideia de terem o seu próprio reality show onde eles são as celebridades. Passei a acordar também às 9 desde que confirmei definitivamente que esse era o horário que ela acordava. Vou ao banheiro, tomo meu café da manhã e então volto para a cama e checo o Instagram. Assim que abro o feed, lá estão elas, as histórias — bem no topo, um laranja chamativo, um clique tão fácil. Eu diria que sou forte o suficiente para ignorá-las, mas não sou. Digo, apagar o aplicativo seria o correto a se fazer para fugir do vício, mas daí eu perderia o meu único espaço para postar as fotos que eu tiro de postes à noite, meus sapatos na grama e algum ângulo diferente do céu, o que sempre me rende umas cinco ou seis curtidas — o que, pra você, pode não significar nada, mas Deus sabe o quanto isso é o suficiente para abrir o sorriso de um solitário. Mas sim: eu poderia até perder tudo isso, mas não poderia perder as histórias dela. Eu clico. Ela está de pijama, deitada na cama balançando a cabeça para uma música que ouve. Dessa vez é Two Door Cinema Club. Ontem foi Keane. Anteontem foi Radiohead — uma má escolha para começar o dia. O problema é que ela encara fixamente a câmera, o que traz os olhos dela diretamente pros


meus — o que acaba sendo um pouco constrangedor, se é que você me entende. E, ao mesmo tempo, apaixonante. Digo: não é sempre que você tem um par de olhos castanhos tão próximos de você, seguidos por toda essa garota num pijama, balançando a cabeça com tanta intimidade que você poderia facilmente fazê-la deitar no seu ombro. Deixo o meu dedo pressionado até que a história acabe em uns dez segundos, daí vejo de novo. Quando clico para rever pela quinta vez, tem outra história disponível. Dessa vez ela está escovando os dentes, ainda balançando a cabeça pra música e encarando fixamente a câmera. Na próxima, o seu polegar está fazendo um sinal de joinha para um pão com ovo. No próximo, ela foca num copo de Nescau. No seguinte, grava a sua mãe varrendo o chão. E então ela está de volta no quarto, vestida numa blusa azul e uma calça legging preta, com fones de ouvido e uma garrafa térmica na mão. A legenda diz lá vamos nós zZzZz. Devem ser 10 horas quando encontro ela na Vila Olimpíca. Está terminando de alongar os braços. Então toma um gole d’água da sua garrafa térmica, põe os fones de ouvido, respira fundo e entra na pista. Começa a correr num ritmo lento e vai graduando. Bebo água do bebedouro e então sigo em direção ao banco rente à pista. Sento e amarro os cadarços por três minutos, tempo o suficiente para ela terminar sua primeira volta e passar em frente a mim. Então levanto e sigo pra faixa de corrida um pouco atrás dela. O que me separa dela são seis corredores. Os dois primeiros que eu preciso ultrapassar são um casal de idosos caminhando, pelo visto indiferentes ao fato de que essa faixa é para corrida. Esbarro neles ao ultrapassar e peço um “desculpa” de má vontade para que percebam isso. O terceiro é um gordo tão cansado que você


aceitaria alguns quilos dele para que o rapaz não precisasse passar por isso. O quarto é um professor de academia correndo escandalosamente, como que exibindo alguma forma mais eficiente e saudável de correr. O quinto eu não preciso ultrapassar porque ele já está longe o suficiente de todos nós —  um adolescente musculoso em ritmo rápido que provavelmente está se preparando para algum concurso militar. Então só tem um rapaz na minha frente, da minha idade, no mesmo ritmo que eu e ela. É só isso que preciso — uma pessoa me separando dela, para que eu passe despercebido. — Caralho, Pedro? — diz o corredor à minha frente. Porra. — E aí — respondo, sem saber quem é. — Lembra de mim não? — diz, em voz alta. Ele desacelera para que fiquemos lado a lado. Agora ela está separada de mim por… ninguém. E o desconhecido está gritando o suficiente para que ela, a qualquer momento, tire os fones de ouvido e me note. Ainda sem olhar pro rosto do desconhecido, digo: — Lembro sim, pô. — Mas tu lembra mermo? — Lembro.


— Qual é meu nome então? Olho pro rosto dele. Um colega de ensino médio que me pedia indicação de músicas, livros e filmes quando sentávamos lado a lado na sala de aula e que me chamava de cabaço tetudo quando estávamos em grupo. Detalhes o suficiente voltam à memória para que eu lembre quem é. Mas o nome… Rômulo? Rogério? Roberto? Rodrigo? — Tu é o Rô, pô — digo. — E não é que tu lembra mermo? — E eu me esqueceria? — Tu é amigo mermo — fala, e então passa o braço pelos meus ombros. Ele está suado e fedendo. Estou a ponto de afastá-lo quando ele mesmo o faz. — E aí, como tu tá? — diz.


— Por aí — respondo. — Foda. Olho pra ela. Ainda estamos no mesmo ritmo, mas próximos demais. Desacelero um pouco para que criemos distância. Só preciso que alguém nos ultrapasse. — Tá cansando já? — pergunta, em voz alta. — Vamo correr, bicho. Me puxa com o braço e agora estou num ritmo mais rápido que o dela. Me aproximando. Me aproximando. Me aproximando. Levo a mão à barriga. Faço cara de dor. — Que foi, mano? — Tô com uma dor aqui na barriga. — Mas já? Tu tá fraco demais. Me aproximando.


Me aproximando. Me aproximando. Faço mais cara de dor. — Porra, tu tá ruim mermo — diz, e começamos a desacelerar. Me distanciando. Me distanciando. Me distanciando. Terminamos a primeira volta e então ele me carrega para o banco rente à pista, onde eu me sento e começo a pensar em como me livrar dele. — Tá aqui há muito tempo já? — pergunto. — Uns vinte minutos. — Faz quanto tempo por dia? — Sei lá, depende da inspiração, saca? Às vezes meia hora… — Então tu tá acabando, né? — … às vezes duas horas.


— Ah. Baixo a cabeça. Pense. — Tá doendo ainda? — pergunta. Levo a mão de volta pra barriga. — Tá — digo, e faço cara de dor. — Sabe que que isso? — O quê? — É vesícula. — Hã? — Pedra na vesícula. Que que tu comeu de manhã? — Pão. — Pão com quê? — Só pão. — Quem caralhos come só pão? Ah, Bisnaguinha? — Não, pão normal. Francês.


— Porra, no seco? Nem um queijo e presunto? Uma manteiguinha? Requeijão? — Só pão só. — Tu é doido, né? Sempre foi. Ele ri. — E ontem à noite tu comeu o quê? — pergunta. — Sei lá. — Porra, tô tentando ver se tu tá doente. Esse negócio de pedra na vesícula aí é pesado. Se tu deixar acumular tu se fode. — Não é pedra na vesícula não. — E como tu sabe? — Ninguém da minha família tem. — Às vezes nem é genético. Às vezes tu come besteira demais. Lembro que tu metia pra dentro dois salgados por dia lá na época da escola. Tu sempre foi gordinho, né? Ele ri. — Não, não é pedra na vesícula não — digo.


— Se tu diz. Ficamos em silêncio. Ela passa por nós. É sua terceira volta. Ainda tenho tempo de voltar pra ela. — Pode ir, cara — digo. — Daqui a pouco eu tô melhor. — Que isso, e se tu passa mal aí? Eu fico aqui, tem problema não. Ficamos em silêncio. Então ele começa a ficar agitado, dobra e desdobra as pernas umas quatro vezes e faz sons estranhos com a boca. Como quem está duelando com um inseto que não quer ser mastigado e está tentando fazer seu caminho pra fora da garganta. O barulho começa a me irritar. Ele dobra a perna. Desdobra. Dobra. Desdobra. As pessoas correm. Outras caminham. Outras correm na faixa de caminhada. Outras caminham na faixa de corrida. Outras vão pela grama porque tem sempre um que quer ser diferente. Outros jogam futebol na quadra que tem no meio da pista. Todos fazem algo. Ele dobra, desdobra, dobra, desdobra e então faz o barulho estranho outra vez. — Passou, tô bem. — digo. — Tô bem. Me levanto e sigo em direção à pista. Ele vem atrás. Vou pra faixa de caminhada e caminho. Ele fica ao meu lado.


— Tá bem mermo? — pergunta. — Tô. — É que tem um postinho de saúde aqui perto… — Tô bem, fica tranquilo. — Então beleza então. Ela passa por nós correndo. Depois de uns segundos, vou pra faixa de corrida e entro no ritmo dela. Estamos separados por três pessoas. Zona de segurança. Observo ela. Suas pernas saltam como se nenhum cansaço tivesse abatido ela mesmo depois de quatro voltas de corrida, seu cabelo preso atrás balança quase a ponto de soltar e sua pele brilha como se ela tivesse permissão de suar ao mesmo tempo que continua bonita. Ela… — Rapaz, olha isso — ele diz. — O quê? Ele aponta com a cabeça para uma mulher imediatamente à frente. Deve ter uns quarenta anos. Loira, cabelo preso. Calça legging rosa, blusa preta. Ele aponta de novo com a cabeça, dessa vez mais pra baixo. A bunda dela. É uma bunda redonda e admirável. Ele aponta de novo, como que querendo reafirmar as duas últimas características que eu mencionei. Balanço a cabeça para cima e para baixo e dou um sorrisinho.


— Gostosa, né? — diz, não tão alto mas alto o suficiente para eu acreditar que ela possa ouvir. Assinto de cabeça baixa. — Porra, delicinha. Cabeça baixa. — Do jeitinho que eu gosto. Cabeça baixa. — Velhinha safada. Cabeça baixa pra caralho. Começo a desacelerar pra criar distância dela. — Que foi, cara? — pergunta. — Tá doendo de novo? — Não, só tô cansado. — Porra, tu é franguinho demais. — É. Olho pra ela, a garota pela qual eu vim, e agora ela está a quatro pessoas de distância e ficando mais longe.


— Se liga, isso aí ó… — Aponta a cabeça para a bunda de novo. — … é o que você precisa para perder essa barriguinha aí. — O quê? — Tu tem que vir correr e ficar atrás de uma belezura dessas, de uma bundinha redondinha dessas pulando e balançando pra você. É um showzinho particular com a diferença de que é grátis, amigo. — Ah. Desacelero. — Primeiro porque com um rabinho desses aí na frente você marca teu objetivo: vou emagrecer pra pegar umas gostosa assim. Segundo porque você vai correr sempre no ritmo que ela decidir só pra não perder esse rabo de vista. Cinco pessoas de distância e ficando mais longe. — É um troféuzinho pra você correr atrás — diz. Fico em silêncio. — Que cara é essa? — pergunta. — Que cara?


— Tu fez uma carinha aí de quem não concorda. Dou de ombros. — Amigo, se serve pra eu emagrecer, é como dizem… como é que é mermo, ah: os fins justificam os meios, né não? — Ele ri e me dá um tapinha no ombro. — Quem foi que disse isso mermo, foi Jesus? — Maquiavel. — Esse cara aí. Ficamos em silêncio. Seis pessoas de distância e ficando mais longe. — Fora que — ele continua repentinamente — um daqueles caras que você me apresentou na escola, o David Bouí… — Bowie — sussurro. — … ele tem uma música que fala alguma coisa “eu estava procurando pela sua bunda”. Eu lembro porque agora eu leio as letras das músicas, que nem tu falava pra eu fazer… — Ah, sim. — … e se o David Bouí…


— Bowie. — … pode, eu também posso. — Mas o Bowie tem suas acusações aí de ser pedófilo, racista, estuprador e os caralho, então o cara não é bem um exemplo a ser seguido. Ele fica calado. — Foda-se, eu gosto de rabo e corro atrás de rabo — diz. Sete pessoas de distância e ficando mais longe. Silêncio. À distância, ela tira o prendedor de cabelo e os seus cabelos castanhos se soltam pela pista, como que ziguezagueando para os dois lados conforme ela corre. Seis pessoas de distância e ficando mais perto. A sua bunda faz um rebolado que me mantém preso por alguns segundos, até que lembro do diálogo que acabo de ter e então volto os olhos para o seu cabelo solto. Cinco pessoas de distância e ficando mais perto.


E então o balanço do seu cabelo assume um ritmo fixo, que entra em sintonia com o rebolado da sua bunda, e ambos mexem de um lado pro outro ao mesmo tempo, como que numa sintonia que nem mesmo a Orquestra Sinfônica Brasileira conseguiria atingir. Quatro pessoas de distância e ficando mais perto. O tempo parece correr mais lento conforme isso acontece, e à minha frente só existem duas coisas: seus milhões de fios de cabelo descendo até a bunda para uma direção, e então para outra, para uma direção, e então para outra… Três pessoas de distância e ficando mais perto. Meus olhos correm pra cima e pra baixo dela, pra cima e pra baixo, cima e baixo… Duas pessoas de distância e ficando mais perto. O momento onde planetas e galáxias inteiras entram em sintonia com mínimas moléculas e átomos logo à minha frente. Uma pessoa de distância e ficando mais perto. No meio do caos, um único momento de ordem e ele se desenha nela. Nenhuma pessoa de distância e ficando mais perto. — Agora eu entendi — diz.


Saio do transe e o encaro. Ele está com um sorriso malicioso para mim. — Agora eu entendi, rapá — repete. — Que foi? — Tu também tá correndo atrás de rabo. Nenhuma pessoa de distância. Próximo demais. Ela está logo à minha frente. — Quê? Não, cara — Rio, sem jeito. — Do que que tu tá falando? Próximo demais. — Essa garota aqui de calça preta, né? — fala baixo, mas não baixo o suficiente, e dá um tapinha no meu ombro. — Gostosa. Novinha. Tu tem bom gosto. Próximo demais. Ela tira o fone.


Próximo demais. Ela olha para trás. Próximo demais. Ela me olha. Próximo demais. Ela ri. Vira o rosto de volta, põe o fone e mantém o ritmo. Começo a desacelerar. Uma pessoa de distância e ficando mais longe. Duas pessoas de distância. Três pessoas. Quatro. Cinco. — Que foi, rapá? — pergunta. Seis.


Sete. Oito. — Tu viu? — pergunto. — O quê? — Ela olhou para mim. — E daí? — Ela olhou pra mim, porra! Eu saio da pista assim que fecho a volta e sigo em direção à saída. Ele segura o meu ombro e diz: — Que que tem que ela olhou pra você? — Ela olhou e sorriu pra mim, mano! Ele aperta o meu ombro para que eu pare, eu paro, me viro, empurro ele com as duas mãos, levanto o dedo médio com um sorriso maior do que minha boca consegue traçar, e então digo: — Foda-se, irmão, foda-se. Ele pára. Eu me viro e sigo em frente.


Ela olhou para mim. E sorriu. Do que mais eu preciso?

Chego em casa. Tiro o tênis. Tomo banho. Deito na cama. Pego o celular. Abro o Instagram. Uma história dela disponível. Clico. Ela está deitada na cama, ainda na mesma roupa e ainda olhando bem fundo nos meus olhos, como fez na pista.


— Gente, eu tô aliviada demais — ela diz pra câmera. — A minha meta de três meses de corrida fecha hoje e com mais uma semaninha de dieta eu vou ter atingido o que eu queria. A faculdade volta na próxima semana, então ou nessa semana ou na outra eu me mudo de volta pra república em Niterói. Não liguem por eu estar suada porque… A história termina. Tem outra disponível. Não clico.

obs: roubei o título do livro do Haruki Murakami porque 1) ambos falam de uma forma ou de outra sobre botar um tênis e sair pra correr, 2) eu sempre invejei esse título, 3) o Murakami também pegou a ideia desse título de algum lugar e 4) eu não consegui pensar em nada melhor.




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