Entrequadros

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Entrequadros a revista da nona arte

Ano I Edição 0 dezembro 2008

Alechinsky no país dos quadrinhos

Um olhar sobre o mercado de HQs

Hergé nos mínimos detalhes


Pierre Alechinsky


índice Carta do editor 2

Pílulas 3

Entrevista – José Aguiar 5

As auguras do crescimento 8

Capa – Alechinsky e HQs 12 Hergé desvendado 19 Crítica – The Education of Hopey Glass 27 Vitrine 28

Imagem: Will Eisner/ Reprodução

Sacco – Quadrinhos & notícia 30


Carta do editor

“I

números autores se diver­ tem com freqüência ao se referir ao fato de leitores lhes falarem de imagens que nunca desenharam; o que não causa espanto, pois elas nas­ ceram da imaginação do leitor.” Em seu livro A História em Quadrinhos, o francês Didier Quella-Guyot chama a atenção para uma particularidade da leitura das HQs: a narrativa passa também pelo espaço entre os quadros. “Entre duas imagens, a narrativa continua. A elipse é completada pelo leitor.” De fato, muito do que as HQs trans­ mitem está subentendido Entrequadros. São vários os estudiosos que defendem que os quadrinhos não se resumem a um gênero, pelo contrário, expandem-se em um meio de expressão artística que, assim como a literatura, divide-se em vários gêneros: aventura, policial, dra­ ma. Mais do que isso. Por usarem tantos recursos, os quadrinhos dialogam com as demais artes. E não apenas são influ­ enciados. Também influenciam.

O objetivo de Entrequadros é justa­ mente mostrar como os quadrinhos se comunicam com outras expressões artísticas, tal como trabalhado na ma­ téria de capa, que investiga a obra do pintor belga Pierre Alechinsky. Ele tanto absorveu a cultura de seu país natal que seus quadros – apesar de muito ab­ stracionistas – utilizam a linguagem dos quadrinhos, muitas vezes em vinhetas. Ainda nesta edição, mostramos co­ mo criou-se um tabu a respeito da ima­ gem dos quadrinhos e como o mestre Hergé usava recursos cinematográficos na clássica série As Aventuras de Tintim. Além de uma crítica à nova grafic novel de Jaime Hernandez e uma entrevista com o quadrinista José Aguiar. Nas últimas páginas de Entrequadros há uma inversão de papéis. Ao invés de falarmos jornalisticamente do uni­ verso das HQs, utilizamos o recurso dos quadrinhos para fazer jornalismo. Pois quadrinhos, como toda arte, são tam­ bém um meio de comunicação. Boa leitura!

Malu Barsanelli

Expediente Universidade de Brasília Faculdade de Comunicação Projeto Final em Jornalismo Alunas: Malu Barsanelli e Nair Rabelo Professora Orientadora: Márcia Marques Co-orientadora: Célia Matsunaga Colaboradores: Ilustrações: André Lins (alb206@hotmail.com) Matéria de capa: Marina Fernandes Revisão: Lúcio Barsanelli, Marlene Bovo e Vanda Rabelo Projeto gráfico, diagramação, texto, edição e tradução: Malu Barsanelli e Nair Rabelo Capa: Ilustração de André Lins sobre quadro La Jeune Fille et la Mort, de Pierre Alechinsky Gráfica Athalaia. Tiragem: 20 cópias 2

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Agradecimentos Aos nossos pais André Lins Diego Iraheta Flávia Foreque Graziela Mistura Marina Fernandes


pílulas

Há quem questione, mas não é novi­ dade que o eleitorado norte-americano busca no candidato à presi­­dência uma figura paterna, que afaste os medos e transmita a segurança quase extra-hu­ mana. A editora IDW Publishing, de San Diego, resolveu capitalizar em cima das extraordinárias vidas dos candidatos à Casa Branca, lançando duas HQs com o título Presidential Material: uma explo­ rando Jonh McCain e outra o já eleito futuro presidente, Barack Obama. O ex-candidato republicano é mostrado sendo espancado por seus captores num campo de prisioneiros de guerra no Vietnã. Obama é retratado como organizador comunitário, sentado em volta de uma mesa de cozinha com mo­ radores de Chicago, ouvindo-os. As ca­ pas das duas publicações mostram os candidatos em pé diante de uma ban­ deira americana. McCain sorri, voltado à direita, enquanto Obama olha para a esquerda compenetrado.

Imagens:divulgação

Não há melhor super-herói que o presidente

A mando de Stalin O cartunista russo Boris Yefimov, de 108 anos, morreu dia 1º de outubro. Sob or­ dens de Stalin, Yefimov satirizou Adolf Hitler e os Estados Unidos. Uma das cari­ caturas, na qual Hitler é figurado como um lunático, foi publicada em jornais so­ viéticos durante a Segunda Guerra Mun­ dial com o objetivo de manter a moral dos militares. Os soldados do Exército Vermelho recortavam suas charges dos jornais e as levavam no bolso. Em ent­ revistas, Yefimov disse que o líder na­ zista o pôs numa lista negra de figuras soviéticas que seriam enforcadas em Moscou. Dos soviéticos o cartu­nista recebeu a maior honraria pelo seu tra­ balho. O líder bolchevique Trotsky lan­ çou o seguinte comentário em um livro de charges de Yefimoz, dublado em 1924 ­–“Boris Yefimov é o mais político de nos­ sos artistas gráficos. (...) ele ­c­o ­­n­­hece política, gosta de política e a penetra em todos os deta­lhes. Este é seu traço mais forte”. De toda forma, Boris se ar­ rependeu de alguns trabalhos que fez. Entrevistado pela agência de notícias Reuteurs em 1998, ele afirmou: “Não poderia recusá-los... Mas hoje eu me lembro [deles] com desapontamento. (..) dizer ‘Não, não quero fazer isso, atirem em mim!’ seria ingênuo”.

Tintim nos cinemas só em 2020 O ano começou com breves anúncios de que Steven Spielberg e Peter Jack­ son planejavam transpor para a telona a saga do repórter Tintim, de Hergé. A Universal havia acenado interesse e até cotou-se o nome de um adolescente de 17 anos para encarnar o persona­ gem: seria o inglês Thomas Sangster (Simplesmente Amor). Ao conhecer os valores da adaptação, cerca de US$ 130 milhões, o estúdio desistiu. Agora a Sony Pictures Entertainment e Para­ mount Pictures parecem simpatizar com o projeto, segundo informações da revista americana Variety. Spielberg, que planejava já estar produzindo o lon­ ga, agora torce para completar o filme a tempo de lançá-lo em 2020. Entrequadros dezembro 2008

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Tesouro desenterrado A editora Conrad promete que em breve lançará a biografia de Che Guevara, El Che, escrita por Hector Oesterheld, tido como o principal escritor de quadri­ nhos argentinos – contraditoriamente, seus trabalhos perma­n ecem inéditos no Brasil. A biografia foi lançada em 1968, três meses depois que o líder re­ vo­­lucionário havia sido exe­cutado na Bo­lívia. Os desenhos ficaram por conta da dupla Alberto e Henrique Breccia, pai e filho, ­responsáveis por um traço preto e branco marcantes. Foi Alberto quem pre­s ervou a obra, perseguida durante a ditadura militar, enterrando um exemplar da biografia.

Quadrinhos no banco da escola O Programa Nacional Biblioteca na Es­co­ la (PNBE) foi criado em 1997 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de popularizar o acesso de crianças e adolescentes do ensino público. Desde 2006, quadrinhos figu­ ram a lista de livros. Para 2009, serão 19 títulos, sendo que três são de Will Eis­ ner (A Força da Vida, O Sonhador e Um Contrato com Deus), dois dos gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon (O Alienista e 10 Pãezinhos), duas de Laerte (Suriá – A Garota do Circo e Deus Segundo Laerte), duas de Ziraldo (A Turma do Pererê – As manias de Tininin e Maluquinho por Arte – Histórias em Que a Turma Pinta e Bor­ da), além de duas de Asterix.

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Mendes procura Deus Desde que o pregador texano Jesse Custer foi possuído pelo ente Gêne­ sis (filho de um anjo e de um demônio), ele vaga pelos EUA em busca de Deus – acompanhado por uma ex-namorada e um vampiro embriagado. Esse é o argu­ mento do próximo filme de Sam Men­ des, o diretor de Beleza Ame­r icana e de Estrada para a Perdição. E também o resumo da série Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon. A adaptação é um projeto da Columbia Pictures. Essa é a segunda vez que Mendes trabalha com adaptação de quadrinhos: Estrada para Perdição (com Tom Hanks e Paul New­ man) vem da grafic novel homônima de Max Allan Collins e Richard Piers Rayner, que por sua vez é inspirada no mangá Kozure Okami, de Kazuo Koike e Kojima.


entrevista

Do fundo da gaveta por Pedro de Luna

Publicado originalmente no dia 9 de junho de 2008

Ilustração: André Lins

no blog JBlog Quadrinhos (www.jblog.com.br/quadrinhos)

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Aos 33 anos, o curitibano José Aguiar divide seu tempo (e paga as contas) com ilustrações e trabalhos autorais. Militante do reconhecimento do termo quadrinista, recentemente lançou o livro Quadrinhofilia, um emaranhado de obras que viviam guardadas na gaveta Esse é o seu segundo livro solo após 10 anos de carreira. Por que optou por esperar uma editora se interessar e como foi o processo com ela? Ano passado lancei Folheteen pela Devir. Foi o primeiro álbum nacional publicado em 2007 e estou preparando uma seqüência. Na verdade, eu nun­ ca esperei por uma editora. É que as oportunidades foram surgindo nos mo­ mentos corretos. Até 2004 meu foco principal era o trabalho de ilustrador. Aquele foi o ano em que decidi investir seriamente na carreira de autor de HQs. Para publicar de forma indepen­ dente, eu teria de ter recursos. Não é o meu caso pois tiro meu sustento do trabalho como quadrinista, ilustrador e professor. Não disponho de tempo para cuidar de vendas e distribuição. Traba­ lhar só na promoção dos livros já dá muito trabalho. Por isso busco editores. Desde que publiquei na França passei a chamar mais a atenção deles. Quando ganhei o I Concurso interna­ cional de Quadrinhos em 2005, a Devir me abriu as portas. Então não havia porque ser independente no sentido de me autopublicar. Se bem que, na minha opinião, quase todos os autores nacionais são independentes de um forma ou de outra. Em Quadrinhofilia você se mostra bastante eclético em temas e estilos, quase como um portfólio. Essa foi a intenção? De certa forma sim, é meu portfólio quadrinístico. Sempre me interessei em fazer coisas diferentes, em me adequar ao desafio. Acho que há traços e narra­ tivas coerentes com cada roteiro. Mas há algo em comum sob a maquiagem de cada HQ. Não quero ser rotulado facilmente. Mas a intenção principal de Quadrinhofilia sempre foi desenterrar os trabalhos que nunca encontraram meios de serem impressos. 6

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O termo “quadrinhofilia” é a busca por um boa história ou pode designar HQs que estavam enterradas numa gaveta? Pode ser ambos. Mas o princípio do nome veio mesmo da idéia de desen­ terrar o arquivo-morto em busca do que valia a pena mostrar para dar cabo da sensação de eterno início de carreira. Enquanto não publicasse esse material eu estaria muito insatisfeito comigo mesmo. Creio que agora, com este li­ vro, finalmente deixei de ser um talento promissor.

“Quadrinhos são muito mais versáteis para se trabalhar e muito mais baratos de produzir que a maioria dos programas educativos que se vê por aí.”

Notam-se mudanças na sua técnica, como se antes você preferisse aquarela e nanquin e hoje utilizasse mais o traço vetorial e o Photoshop. Como decide qual técnica utilizar? Você acha que é conservadorismo restringir a arte ao artesanal? Não tenho conservadorismo algum. Ar­ tesanal e digital podem coexistir juntos ou separados. Usar o Photoshop nada mais é que uma questão de praticida­ de. Por exemplo, o ilustrador Orlando Azevedo certa vez disse numa palestra que um dia ele se flagrou não mais desenhando em escala grande, como era acostumado. Ele desenhava só no formato A4 por causa da praticidade do scanner. Hoje os prazos para criar, comercialmente falando, estão longe do ideal. Antigamente eu usava mais a aquarela. Até por que os recursos do Photoshop eram mais limitados. Mas

não por isso sou viciado nesse progra­ ma. Hoje, até brinco mais com o lápis de cor, coisa que não fazia por receio. Como é o seu processo de criação? Não é algo esquematizado. Gosto de pesquisar, ler e assistir a coisas rela­ cionadas aos temas que vou desen­ volver. Na verdade, ultimamente tenho montado meu “banco de idéias”. Foi uma coisa meio óbvia, mas que só me pareceu lógica depois que tive o prazer de ouvir do Quino (o autor da Mafalda) que ele costuma deixar idéias até anos guardadas, esperando a hora certa de finalizá-las. Eu fico assim, fermentando, quando o projeto é algo pessoal. Quan­ do é uma encomenda, já não tenho esse luxo. Tenho de me valer do meu repertório e experiência para fazer o melhor trabalho possível dentro das condições impostas. Mas uma coisa que gosto é de caminhar ao ar livre para soltar a mente. Ficar na frente do moni­ tor me esgota às vezes... Quanto do seu dia é ocupado com os trabalhos que pagam as contas e quanto com o autoral? Felizmente eu não faço nada fora da minha profissão. Meu primeiro dinheiro eu ganhei publicando tiras de jornal, aos 16 anos. Se não fazia quadrinhos, ilustrava. Se os quadrinhos não eram autorais, eram institucionais. E, como professor, dou aulas de quadrinhos. En­ tão, meu sustento vem da minha arte. Pode-se dizer que 40% é autoral e 60% para as despesas. Mas há dias que paro completamente para aprovei­ tar as idéias e resolver projetos pesso­ ais. Tento fazer render melhor o tempo. É possível sobreviver de HQs no Brasil? Sim é possível. Mas para viver de qua­ drinhos é preciso ralar muito. Ser autor significa trabalhar muito. Maurício de Sousa é a prova de que é possível. Ele


Você é professor de quadrinhos na Gibiteca de Curitiba. Qual é a importância da gibiteca no desenvolvimento de público e mercado local? E qual o perfil dos alunos e da sua metodologia? Eu também já fui aluno lá. Ela é um referencial, um lugar onde pode ser fomentada a continuidade de nossa arte. É um espaço pioneiro no mundo, criado há 25 anos e que se tornou uma espécie de centro cultural que agrega os amantes e autores de HQ. A maioria dos meus alunos são adolescentes e jovens adultos, entre 16 e 30 anos. Mas há excessões: já tive também alunos acima de 60 anos que sempre quiseram fazer HQ mas tinham vergonha. Hoje, a maior exposição da HQ na mídia ven­ ceu essa barreira. Outro fenômeno é que nos últimos anos tem se intensificado o número de estudantes de design e pu­bli­c idade em busca de formação na área. Em Reisetagebuchm, sua HQ sobre a viagem à Alemanha, você trata da invasão do mangá e da proteção ao autor nacional. Como você compara a realidade alemã com a brasileira? A realidade alemã é muito próxima da nossa. Pouca produ­ç ão local e muito material traduzido. Com a diferença de que lá o mercado francês tem mais penetração e o mangá parece ter ainda mais força do que aqui. Ainda nesse relato autobiográfico você comenta que na França existe um público mais velho, uma renovação do público leitor e que lá cerca de 300 títulos são lançados por mês. São tantos títulos que é difícil lançar novos autores. Devido à falta de es­ paço, se o título não vender bem pode

José Aguiar/ Reprodução

tem uma equipe grande que vive desse ofício. Antônio Cedraz com A Turma do Xaxado também é outro exemplo. Citoos para falar de estúdios que produzem HQs nacionalmente. Mas há também os que exportam. Mas ter um império não faz parte de minhas ambições. Eu traba­ lho para viver acima de tudo de meus quadrinhos. Mas não me importo de fazer outras coisas relacionadas. Elas são um refresco para as idéias. Gosto de lidar também com teatro, de escre­ ver. Claro que não é fácil, mas não troco a opção que fiz, de viver da minha arte.

Uma das histórias de Quadrinhofilia, onde Aguiar expõe diversos trabalhos e estilos

correr o risco de ficar apenas uma semana em exposição. Ter um público jovem convivendo com o de mais idade é reflexo do hábito pela leitura de HQs que é passado pela família. Aqui, o que me assusta é que o público está enve­ lhecendo e pouco se faz para cativar diferentes faixas etárias de leitores. Se você pudesse sugerir políticas públicas para incentivo a HQ nacional, quais seriam suas sugestões? Precisamos de editais de fomento à produção, pesquisa e resgate histó­ rico de nossos quadrinhos. Leis que incentivem a difusão cultural, festivais e ensino. O preparo de professores para a utilização de HQs em sala é fun­ damental. Quadrinhos são muito mais versáteis para se trabalhar e muito mais baratos de produzir que a maioria dos programas educativos que se vê por aí. Também acho importante que haja uma reserva de mercado para a HQ na­ cional, contanto que existam mecanis­ mos para que esses produtos cheguem ao público por um preço acessível e

competitivo, se compararmos com o que vem de fora. Num mercado profissional tão concorrido, quais conselhos você daria para um quadrinista se destacar? Ser persistente e realmente profissio­ nal. Quadrinhos são uma forma de arte, mas também um meio de comunicação. E é preciso receber dignamente, pois não é apenas um “hobby”, mas tam­ bém uma profissão. Você usa a seguinte frase em seu livro: “cada país tem a crise das HQs que merece. Qual é a nossa?”. Ao seu ver, qual é nossa crise? A nossa é uma mistura de várias: a falta de um mercado de quadrinhos estabe­ lecido, a falta de profissionalismo de quem edita e a de quem faz também. Mas o que mais me preocupa é o como­ dismo das pessoas que só reclamam e nada fazem para mudar o cenário. Fe­ lizmente muita gente pensa como eu e está agitando a cena e mudando as regras do jogo. Entrequadros dezembro 2008

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Síndrome de Peter Pan por Malu Barsanelli e Nair Rabelo

Apesar de uma produção nacional promissora e já bastante premiada, o público leitor de quadrinhos cresce lentamente. O passado e o mercado explicam o porquê

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A

té parece que existe um universo paralelo que separa os brasileiros familiarizados com as HQs adultas e aqueles que juram de pé junto que quadrinho é sinônimo de gibi que, por sua vez, é um pequeno conjuntinho de papel recheado de desenhos coloridos e infantis. Daí um enorme buraco de desinformação que faz os menos familiarizados com o gênero cunhar os leitores adultos de quadrinhos como: nerds, bito­ lados, crianções, eternos adolescentes ou uma seqüência infinda de vocativos típicos do período colegial. O curioso é que o Brasil publica quadrinhos há 103 anos. E um dos precursores da arte – é arte sim, e tem muita gente disposta a comprar uma briga feia para defender a idéia, exemplo é o francês Claude Beylie, o primeiro a utilizar o termo nona arte em referência às HQs – foi o italiano radicado no Brasil Angelo Agostini, considerado o terceiro no mundo a traçar os primórdios das HQs. Isso ainda no sé­ culo XIX. Agostini lançou a primeira revista ilustra­ da do Brasil e criou Zé Caipora, personagem cuja história se desenrolava em fascículos publicados em 1886. Ou seja, nosso primeiro protagonista de HQ era um cara engraçado que falava de política e vira-e-mexe soltava uma crítica social. Era para gente grande. Uma teoria possível é a de que a grande respon­ sável pela confusão seja a Tico-Tico, a primeira revista oficialmente de quadrinhos publicada no Brasil, em 1905. E para quem era voltada? Para o público infantil. Assim, há mais de um século a idéia que se passa é daquela lembrança de um periódi­ co que publicava as histórias de Chiquinho, o mes­ mo Yellow Kid de Buster Brown – considerado o primeiro HQ do mundo. Não se pode negar que o Brasil sempre este­

ve conectado com os grupos que achavam que a arte seqüencial era uma extraordinária forma de se contar uma história. Enquanto não possuíamos gente interessada e capacitada o suficiente para produzir nossas próprias HQs, traduzíamos as gringas. Nessa onda foi criada em 1945 a Editora Brasil América, a Ebal, de Adolfo Aizen, que trou­ xe para cá as histórias de Tarzan, Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente e Flash Gordon. O mercado adorou. O público consumia as revistas como se estivesse à frente da melhor produção de entrete­ nimento conhecida. Aliás, essa tendência de prefe­ rir os produtos estrangeiros não mudou muito dos anos 40 para a atualidade do mercado editorial de quadrinhos. Maria Célia Furtado, diretora executiva da Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), resume, em uma frase, o problema: “no Bra­ sil, poucas editoras se dedicam aos quadrinhos nacionais, fazendo com que o mercado seja do­ minado pelos personagens estrangeiros”. Na briga por leitores – e amargando o arrepen­ dimento de não ter comprado a idéia de Aizen de publicar no Brasil um suplemento com as histórias americanas no jornal O Globo – Roberto Marinho contra-atacou lançando O Gibi. O responsável pe­ lo sinônimo de HQ, que de vez em quando faz as ve­ zes de alcunha, popularizou ainda mais as histórias de super-heróis. Crianças e adolescente estavam felizes, diver­ tindo-se com histórias surpreendentes e cheias de fantasia. Até chegar uma onda de intelectuais (compreenda-se políticos, comunicadores, religio­ sos e educadores) que começaram a ver problema nas páginas ilustradas. Questionavam o conteúdo, apontavam imoralidades e acusam os quadrinhos de proliferar imagens distorcidas da realidade. Bin­ go! Criou-se um tabu.

Ilustração: André Lins

The Umbrella Academy, de Gabriel Bá e Gerard Way: vencedor do Eisner de melhor minissérie

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Mesmo Delivery, de Rafael Grampá. Experimentalismos gráficos que receberam elogios de Mike Mignola, criador de Hellboy

Sujeitos de colante “Quando criança, eu sabia exatamente o que eram his­ tórias em quadrinhos. Quadrinhos eram revistas coloridas, cheias de aventuras idiotas e sujeitos de colante. Claro que eu só lia livros de ‘verdade’. Eu me achava muito velho para quadrinhos.” A introdução que o quadrinista norte-americano Scott McCloud dá a seu livro Desvendando os Quadrinhos explicita bem um sentimento que não se restringe ao brasileiro. Desde sua aparição moderna, no século XIX, os quadrinhos são vis­ tos como expressão inferior e infantil. Em seu livro, McCloud cita uma colocação de 1845 do artis­ ta gráfico e escritor suíço Rudolf Töpfer que, apesar de ser um dos pioneiros dos quadrinhos e defensor ferrenho do gênero, ainda os tratava como uma arte menor: “as histórias ilustra­ das, que críticos negligenciam e eruditos mal notam, têm tido grande influência em todas as épocas, talvez ainda mais do que a literatura escrita. Além disso, elas atraem sobretudo as crianças e as classes inferiores.” Outro gênio dos quadrinhos, Will Eisner – este do nosso século – explica em seu livro Quadrinhos – A Arte Seqüên­ cial que a própria indústria tratava as HQs como produto ex­ clusivamente infantil. “Entre 1940 e o início da década de 1960, a indústria acei­ tava, comumente, o perfil do leitor de quadrinhos como uma ‘criança de 10 anos, do interior’. Um adulto ler histórias em quadrinhos era considerado sinal de pouca inteligência. As editoras não estimulavam nem apoiavam nada além dis­ so.” Reflexo do próprio conteúdo das HQs americanas da época, que insistiam quase que obsessivamente em protago­

nistas com superpoderes e roupas “co­ lantes” num ambiente em que a fantasia reinava absoluta. Os europeus andavam em outro rit­ mo. Exemplo tradicional: embora bas­ tante lidas na infância, as histórias de Asterix e Obelix, de Albert Uderzo e René Goscinny, ajudaram a criar uma noção nacional sobre os antepassa­ dos franceses, os gauleses. E ainda aproveitavam para dar algumas alfine­ tadas em Charles de Gaulle, presidente na época, sempre com humor. O quadrinista Túlio Caetano estu­ dou HQs na Escola Superior da Imagem, em Angoulême, na França (a cidade é a sede de um dos maiores salões de qua­ drinhos do mundo). A imersão no siste­ ma francês de concepção e consumo de quadrinhos deu ao artista goiano uma visão privilegiada sobre a questão: “É uma comparação injusta [entre os hábi­ tos de leitura dos franceses e os brasi­ leiros]. Por várias questões conjunturais, o Brasil não teve muitas possibilidades de crescer além das ofertas mercadoló­ gicas do segmento infantil. Não houve uma cultura aqui que fosse além do in­ fantil e do comics americano”. Autor de Dr. Bubbles & Tilt – a primei­ ra HQ nacional da editora Zarabatana

10 Pãezinhos, o fanzine que os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon publicam há uma década

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Imagens: Reprodução

Books –, Caetano avalia que na França os quadrinhos são maciçamente utiliza­ dos, seja pelas crianças que devoram Asterix e Tintim quase como uma obri­ gatoriedade cultural, como pelos adul­ tos que lotam as livrarias em busca de um novo álbum que una traços mais so­ fisticados com histórias mais bem ela­ boradas. Porém, as obras de maior saída são “as mais pueris, sendo de comédia, infantis ou juvenis”, aponta Caetano, que resume o que se requer – em termos mercadológicos – para que uma HQ seja um best seller: deve fazer rir e agradar uma criança. Nova safra A vitória inédita de três brasileiros nos Eisner Awards – o Oscar das HQs – chamou a atenção da mídia e de leitores para os quadrinhos nacionais. O gaúcho Rafael Grampá e os gêmeos paulistanos Fábio Moon e Gabriel Bá, além da ame­ ricana Becky Coonan e do grego Vasilis Lolos, receberam o prêmio na categoria Melhor Antologia pela revista indepen­ dente 5. Além disso, Moon levou pra casa o prêmio de melhor HQ digital por Sugar­ shock, que realizou com o americano Joss Whedon, e Bá faturou a estatueta

de melhor minissérie por The Umbrella Academy, que fez em parceria com o vocalista da banda My Chemical Ro­ mance, Gerard Way. Mas, apesar da euforia pela nova e talentosa safra de quadrinistas nacio­ nais, o mercado brasileiro ainda sofre com o consumo estagnado. “Segundo dados do Instituto Verificador de Circu­ lação e Estimativas de Mercado (IVC) o setor representa 4,2% de participação em circulação no mercado”, diz Maria Célia Furtado. E para piorar, algumas das tradicionais editoras de quadrinhos ameaçam fechar as portas. “Os livros em HQ representam a últi­ ma fronteira a ser explorada pelo mer­ cado editorial”, comentou S. Lobo, dono do selo Barba Negra, em entrevis­ ta ao jornal O Estado de São Paulo. Lobo também disse que as editoras têm hoje maior interesse em se aventurar pelo universo das HQs. “A Companhia das Le­ tras, por exemplo, deve impulsionar sua Companhia dos Quadrinhos, o que pode impulsionar o mercado.” Ao que tudo indica, esta é a tendên­ cia dos quadrinhos: sair da publicação

em revistas e fanzines e migrar para o mercado livreiro, onde os autores en­ contram um público de poder aquisitivo mais alto e que se interessa mais por literatura e artes. Outra saída é apro­ veitar o amplo espaço da web, que tem permitido a publicação e divulgação de vários novos quadrinhos. E o Brasil tem visto crescer a oferta de bons quadrinistas. Grampá, com seu traço violento e incisivo, que até rece­ beu elogios de Mike Mignola, criador de Hellboy, tem feito sucesso com Mesmo Delivery, seu primeiro álbum individual. Bá e Moon já ganharam um Jabuti pela adaptação de O Alienista, de Machado de Assis, e há 10 anos publicam o fanzi­ ne 10 Pãezinhos. Outros nomes também merecem atenção. André Kitagawa, Fabio Lyra, Rafael Coutinho e DW. Experimenta­ ções gráficas e roteiros muito bem em­ basados fazem deles nomes promisso­ res no mercado internacional. Não é a falta de talento brasileiro que limitará o crescimento de um público leitor adulto. Mas o recorrente pesadelo das crises editoriais sempre assombra.

Abaixo, os traços de Rafael Coutinho

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capa

Um país chamado

Alechinsky

por Marina Fernandes

A tradição belga de HQs influencia todo mundo. Transparece até nas telas do pintor Pierre Alechinsky. Seus traços simples e sua tendência de “narrar” histórias,

Imagens: Reprodução

da mesma forma, marcaram a obra de diversos artistas pelo mundo

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cartunista Art Spiegelman deixou, em 1986, a ilustração de ficções e pequenos projetos de novelas para contar as memórias de sua família durante o holocausto na badalada série de HQs Maus. Sueco de nascimento e filho de judeus, ele cresceu na Nova York do pós-guerra, onde mais tarde seria conhecido por seu desenho de traço grosso e pela substituição das co­ res por padrões de linhas e pontos. Spiegelman não sabia que durante sua adolescência, na mesma cidade, tinha fama um outro europeu que também fa­ zia arte sob herança da II Guerra Mundial. Pierre Alechinsky, nascido e criado na Bélgica, pintava na tela com traços muito similares aos do cartunista, mas em histórias que atingiram o lado oposto ao da figuração. A similaridade da arte do belga com as histórias em quadrinhos é tamanha que levam a uma divagação. Talvez, se Art Spiegelman tivesse crescido sob a influência do teórico surrealista André Breton, ele seria mais um Pierre Alechinsky. Alechinsky é pouco conhecido no Brasil, mas nos remete às histórias gráficas como os humanóides de um pintor bem

pop, o americano Keith Haring. O desenho de ambos tem for­ ça num dos elementos mais básicos das artes gráficas: uma linha negra contorna personagens e objetos representados na tela. Sem tanta popularidade quanto o americano, Pierre Alechisnky não sente falta dos holofotes. Apesar de suas obras estarem nos maiores museus de arte moderna do mun­ do, como Tate de Londres, o MoMA e o Guggenheim de Nova York, sua glória figura em coleções particulares, nas paredes das casas de inúmeros e discretos fãs. Discretos, mas tão apaixonados que John Russel, respei­ tado crítico de arte falecido em agosto deste ano, chegou a afirmar que eles não venderiam suas preciosas aquisições nem se Pierre Alechinsky em pessoa tentasse, num surto possessivo, comprar seus quadros de volta. “Mesmo representado em Nova York pela galeria Lefebre durante mais de 25 anos, ele conseguiu desaparecer na toca de seu privilégio, chamando atenção para si o mínimo possí­ vel. Porém, mais do que sabe, ele é idolatrado”, comentou em uma crítica no The New York Times quando da última re­ trospectiva do artista no museu Guggenheim, em 1986.

Ao lado, Au Dedans, de 1994. Abaixo, Maus, do sueco Art Spigelman: traços similares aos de Alechinsky

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Apesar de despertar amores, a obra de Pierre Alechinsky não é de fácil ab­ sorção. Pudera, seu furor artístico nas­ ceu no pós-guerra, na turbulência que gerou também o expressionismo abs­ trato de Pollock e o Surrealismo de Dali. Em 1948, a ânsia por liberdade dos que sofreram diretamente a fúria do nazis­ mo levou o jovem Pierre, então com 22 anos, e outros artistas a fundarem o grupo Cobra, junção dos nomes das ca­ pitais de seus países de origem, Cope­ nhagen, Bruxelas e Amsterdã. Almejan­ do liberdade de expressão e de experi­ mentação técnica, o grupo tinha como

Em Central Park, 1965, Alechinsky reúne suas influências surrealistas e abstracionistas, características marcantes de sua obra

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norte a negação das regras impostas por outras correntes artísticas, como a ausência obrigatória de figuração do abstracionismo ou a racionalidade do cubismo analítico. Segundo o próprio Alechinsky, que veio a escrever ensaios sobre o trabalho do Cobra, o intuito era desferir um golpe de humor contra o pa­ lavratório, a hesitação e o centrismo, que abafariam a arte e a comunicação entre os povos. “Consideramos que o único caminho para uma atividade inter­ nacional continua sendo uma coopera­ tiva orgânica e experimental, que evite toda teoria estéril e dogmática”, cons­

ta no manifesto de fundação do grupo. Pierre Alechinsky finalizava, nessa época, seus estudos em artes gráficas na Escola Superior de La Combre. O cur­ so tinha ênfase na ilustração de livros e na tipografia. As restrições técnicas do oficio, entretanto, passavam longe do seu cavalete, e na tela ele expandia sua criatividade em infinitos tons de ver­m elho e azul, rondando aglomera­ dos quase humanos sem rostos. Em seu quadro Le Feu, pintado em 1950, per­ nas e braços alongam-se em uma dança onde todos os representados na tela parecem um só.


Da imprensa ao Kanji O Cobra não teve longa duração. Em 1951, o grupo se desfez e seus com­ ponentes trilharam caminhos diversos, ainda focados na arte. Alechinsky partiu rumo a Paris, onde se dedicou aos estudos de impressão por xilografia no consagrado Atelier 17, de Stanley William Hayter. O que para ele era a continuação de seus estudos em arte gráfica, mais tar­ de iria aproximá-lo dos quadrinhos por um mero acaso. A limitação física da madeira talhada resulta na impressão de formatos retangulares, como qua­ dros: não por coincidência, as avós das graphic novels de hoje nasceram na dé­ cada de 1920 a partir de novelas ilustra­ das com a mesma técnica, a xilogravura. Já por coincidência, um dos pioneiros dessa arte foi outro belga, Frans Mase­ reel, um dos primeiros a contar história em 165 quadros xilografados, a Passio­ nate Journey. Alechinsky, mesmo sem usar a técni­ ca em suas pinturas, jamais abandona­ ria o reduzido espaço dos retângulos.

No início da década de 1950, Ale­ chinsky deu um decisivo passo rumo à definição de sua arte. Um antigo inte­ resse em caligrafia oriental levou-o ao Japão em 1955, onde aprofundou seus estudos em caligrafia japonesa. Foi en­ tão que o artista encontrou seu polegar opositor. A técnica de pintura de papéis no chão foi o motor de sua evolução, levando-o a abandonar o cavalete. Nos flertes com o desenho em seda chinesa sobre o chão, o artista passou a utilizar a tela tradicional somente como supor­ te, expondo suas criações a partir de colagens. Mesmo com a transposição da pintu­ ra de cavalete para o chão, não seria a técnica japonesa que o aproximaria dos quadrinhos. Sem nunca pretender ser um Will Eisner dos museus de arte mo­ der­na, o que o levou inconsciente ao mun­d o das HQs foi a despretensiosa, po­rém culpada, tinta chinesa. Seu traço mar­c ado, aliado ao dinamismo do pin­ cel de cerdas grossas, aproximou o de­ senho de Alechinsky do nanquim, tão es­ sencial aos cartunistas e ilustradores.

Debâcle de Mars, 1987. O traçado marcado e dinâmico de Alechinsky se aproximam do nanquim – ferramenta essencial de ilustradores e quadrinistas

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Cartum em ateliê As diversas influências artísticas em Alechisnky provocaram mais que uma arrebatadora soma. Fizeram do emo­ tivo pintor um especialista em lingua­ gens, materiais e técnicas que culmina­ ram, em 1965, no estilo Alechinsky que conhecemos hoje. Então com 37 anos e vivendo em Nova York, o artista finalizou a tela Cen­ tral Park, sua primeira pintura de tinta acrílica sobre papel colado em tela. Inventiva e multifacetada, a represen­ tação do parque foi emoldurada por uma sucessão de imagens em nanquim separadas por quadros, ora narrativos, ora anárquicos. Em apenas uma tela ele foi capaz de reunir todas suas influên­ cias, flertando com surrealismo e abs­ tracionismo, numa versatilidade que se tornou o padrão para suas pinturas. Em uma das suas obras mais nar­ rativas, La Jeune Fille et la Mort, Ale­ chinsky explora seqüências oníricas de uma personagem feminina, criaturas e astros. Apesar da similaridade com as HQs, as imagens da borda não contam história com início e fim, mas parecem reforçar a idéia de passagem do tempo, com formas geométricas em mutação. Enquanto isso, a assustada garota no centro da tela briga pela atenção do observador, mas a força expressiva das figuras marginais quase extrapola o limi­ te demarcado pela linha de nanquim. A partir da década de 1980, quando se tornou professor da escola de belas artes de Paris, Alechinsky começou sua busca por novos materiais. Faz a volta ao mundo com pinturas sobre papéis

de cartografia, espalhando sua arte em flores e plantas de tinta que cobrem a península ibérica; criaturas cujo corpo é formado pelas divisões políticas e relevo da Europa e Ásia, como se pas­ seassem entre os oceanos e o mar Me­ diterrâneo. Por essas abstrações nefelibatas que marcaram sua obra desde o princí­p io, Alechinsky também pôde ver o mundo que criou descrito pelo escritor argen­ tino Julio Cortázar, um de seus grandes apreciadores. No conto Um país cha­ mado Alechinsky, publicado em 1960, o escritor narra aventuras de uma comu­ nidade de formigas que, por acaso, co­ nhecem o ateliê do artista. A notícia do universo de labirintos e cores espalhase pela comunidade desses pequenos seres, que passam a freqüentar museus, sob proteção do silêncio da noite. “Entrar em nossas cidadelas notur­ nas deixou de ser uma visita em grupo que um guia comenta e conduz”, conta uma das formigas. “Agora eram nossas, agora vivíamos nelas, nos amávamos em seus aposentos e bebíamos o mel da lua em terraços habitados por uma multidão tão dedicada e agitada como nós, criaturinhas e monstros que ocu­ pavam o mesmo território sem receio, como se fôssemos figuras pintadas, o desenho dinâmico da tinta em liberda­ de”. Também como as tais formigas, os apreciadores das viagens de Pierre Alechinsky por vezes se perdem, em sonhos e pesadelos fantásticos, mas com a ga­­ran­tia de encontrar, em cada esquina, sempre uma nova face da arte, a alma de outras vidas.

La Jeune Fille et la Mort, de 1967. Seqüências oníricas de mulher, criaturas e astros Os quadros reforçam a idéia de passagem de tempo

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Imagens: Divulgação

A influência dos quadrinhos na obra de Harring –­­ ele desenvolveu um estilo bem cartunista de pintar – o aproximou do pop art

Sobre Keith Haring O pintor Keith Haring (1958- 1990) foi um dos grandes ativistas na luta contra a aids nos Estados Unidos. Suas obras eram facilmente captadas pelo público pela simplicidade dos traços e temas, como o amor ao próximo, a violência urbana, a doutrinação da televisão. Sua inspiração nos quadrinhos e a pin­ tura de muros o alçaram à categoria de pintor pop, conhecido pelo público também pela sua vida liberal. Antes de pintar estações de metrô a giz, que lhe trariam fama, o artista traçou seus primeiros cartuns a partir dos ensina­ mentos artísticos do pai, que o incenti­ vava a inventar suas próprias histórias.

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Apaixonado por Walt Disney e Dr. Seuss, Haring desenvolveu um estilo bem cartunista de pintar, com bone­ cos em movimentos delimitados pela simplicidade da linha. Uma das suas grandes influências veio aos 19 anos, quando visitou a exposição retrospecti­ va de Alechinsky no Instituto Carnegie, em Pittsburg. A partir da obra do belga, Haring adquiriu confiança para pintar em grandes superfícies com inspiração emotiva. O artista morreu aos 31 anos, vítima de doenças decorrentes do HIV, tendo criado a Fundação Keith Haring de apoio a crianças com aids e pintado diversos quadros sobre o assunto.


O cinema de Hergé O belga Georges Prosper Remi, mais conhecido como Hergé, tornou-se famoso por ter criado o personagem Tintim, o repórter curioso – sempre acompanhado do cão Milu – que deu origem à série Aventuras de Tintim. Aparecendo pela primeira vez em 1929, o personagem topetudo conquistou fãs interessados em assuntos contemporâneos apimetados por uma pitada de humor e de crítica política. Perspecti­va­, plano-seqüência, travelling, rapidez de movimento, ordem das histórias... É com a utilização de recursos cine­matográficos que Hergé deu a As aventuras de Tintim um senso de ação e suspense que fazem a série tão palpitante.

MATÉRIA TRADUZIDA DA EDIÇÃO HORS SÉRIE TINTIN À LA DÉCOUVERTE DES GRANDES CIVILISATIONS DA REVISTA BEAUX ARTS, PUBLICADA PELO JORNAL LE FIGARO EM 2008. A PUBLICAÇÃO PODE SER ADQUIRIDA PELO SITE WWW.LEFIGARO.FR/TINTIN/

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1. O jogo de profundidade de campo

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rincar com a profundidade de campo permite “ali­ viar” a imagem, organizando a paisagem, os per­ sonagens e a ação, desde o primeiro até o último plano. O personagem com a cesta – do livro O Lótus Azul (2) – e a árvore – do castelo de Moulinsart (2) - , iniciam o primeiro plano, o que acentua o efeito de profundi­ dade e ­o ri­en­­­ta o ­o lhar para o ponto de interesse da imagem, que pode ser um obstáculo a ultrapassar (uma barreira poli­ cial) ou um objetivo (conquistar o castelo de Moulinsart). Essa composição em profundidade, ligada à escolha do enquadramento e do formato do quadro, confirma a ação e o efeito dramático que Hergé quis dar às imagens. A verticalidade e o formato de página inteira criam a monumentalidade da paisagem e acentuam a estreiteza do as­s unto. O leitor é atraído (como o personagem de Tintim parado, pronto para escapar) pelo efeito de obstrução e de aprisio­namento e pelo sentimento de intransponibilidade. Contrariamente, na paisagem de Moulinsart (2) a escolha do formato horizontal, quase cinematográfico, imóvel em toda a largura da página, libera o horizonte, elimina o obstáculo ao mesmo tempo em que acentua a majestade do castelo. Tudo marca a conquista. Se ainda resta aos personagens caminho a percorrer até o castelo, eles vão direto ao ponto, com pas­ sos determinados, o que mostra que eles já o conquistaram. Isso faz lembrar a utilização de profundidade de campo no cinema, como no gênero western, que evidencia a imensidão da paisagem para mostrar aos pioneiros toda a riqueza da terra a ser conquistada, ou, ao contrário, bloquear o horizon­ te para criar um obstáculo à conquista ou significar o perigo em uma passagem sempre aventureira de um cânion.

Imagens: reprodução

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2. Vertigem, velocidade e pontos de fuga

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ara Hergé, contar uma história é manter o leitor na ex­ pectativa, encontrar a maneira mais simples e mais eficaz de fazê-lo participar da ação, até mesmo o surpreender ou desestabilizá-lo para mergulhá-lo no coração do perigo. Em Tintim na América, a perspectiva vertiginosa (1) que Hergé adota para mostrar como Tintim passa de uma janela a outra do 37º andar de um imóvel de Chicago é sem dúvida um dos desenhos mais espetaculares de sua obra. O ângulo de profundidade escolhido dá a impressão de uma fachada sem fim, tanto em largura como em altura (con­ trariamente ao desenho da versão original em preto e branco que limita a largura da fachada por um ângulo, e sua altura pelo solo no canto inferior direito); a ausência de marcos topográficos, o quase parale­ lismo das linhas de fuga, que só convergem fora de campo, muito longe do chão, do qual não podemos saber a distân­ cia: tudo leva o leitor à verti­ gem e isola o personagem na audácia e no perigo de sua em­ preitada. O desenho seguinte (2) elimina o perigo, mas não a audácia: graças à mudança de eixo e à escolha de uma escala

de “plano” mais próxima da ação, é possível medir a distân­ cia percorrida, tomar consciência da coragem dessa passa­ gem de uma janela a outra, na dinâmica da continuidade das duas imagens. Ainda na América, Tintim aparece bem minúsculo na linha de mira (3), visto que o atirador domina todo o primeiro pla­ no. Colocar o leitor aqui, na visão daquele que ajeita seu tiro, é fazer participar, sem poderes, à ameaça – e ao suspense – de sua própria mira. Hergé pode também embarcar o leitor em um carro de corrida, a toda velocidade, em uma estrada íngrime (4) (aqui, na versão de 1934 de Os Charutos do Faraó, publicada em folhetim no Petit Vingtième, o suplemento do jornal belga Le Vingtième Siècle) pela escolha do ângulo e da composição, de onde é possível sentir a velocidade e o vazio do precipício. Tantos “pontos de vista” audaciosos que evocam a “direção do especta­ dor”, segundo Hitch­ cock: saber jogar com as expectativas do público, romper seus costumes para fazer nascer o medo, de­ sen­c adear a vertigem e manter o suspense.

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3. O travelling vertical

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esta série de quatro imagens tiradas de Tintim na América, o pequeno repórter sobe a escada (6) assim como ele “sobe com a escada”. Iria ele mais rápido que o “ponto de vista” adotado por Hergé? Para mostrar que seu herói sobe de quatro em quatro degraus, o desenhista fraciona a ação em quatro imagens estreitas, o que tem por efeito acelerar a leitura e, por conseqüência, dar a impressão de velocidade do movimento representado. Mas jogando com a aceleração do formato, da paisagem, das cores e até mesmo da ação (forçosamente repetitiva, apesar de suas variações de sentido), Hergé dá uma verdadeira con­ tinuidade a essa fração: nós “seguimos” o movimento sem o tirar os olhos, apesar dos intervalos, um pouco como se ob­ servássemos Tintim de um elevador que sobe com a mesma velocidade que ele. Esse ponto de vista remete àquele do travelling do cinema – aqui vertical – procedido por uma ação que é restituída em sua duração e continuidade: seguir assim um curso ininterrupto de Buster Keaton (ator e diretor de co­ médias norte-americano), por exemplo, é mostrar o esforço real, que sempre pode ser explorado.

4. A subida rápida

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ma locomotiva chega. Ela anda muito rápido. Ela se aproxi­ma. Mas do que ela se aproxima então? Pouco importa aqui. Aqueles que leram Tintim na América sabem que esse momento é grande para o pequeno repórter e cada vez maior à medida que a loco­ motiva vai mais rápido. Não nos contentamos em olhar essa locomotiva passar: de um quadro a outro, de mudanças de eixo a rupturas de escala e perspectiva, nós somos seduzi­

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dos para provar a velocidade. “Subidas” em cascata, esses três desenhos diferentes do movimento de uma mesma máquina sugerem a velocidade do movimento. No cinema, um procedimento de montagem rápida, em todos os âmbitos comparável aos desenhos, –até mesmo no que se refere à in­ serção de grandes planos da engrenagem – foi utilizado pelo diretor francês Abel Gance em seu filme La Rue (1920) para produzir o mesmo efeito de velocidade e de aceleração.


5. A escolha de um eixo de perspectiva

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uas versões diferentes de uma mesma cena para duas versões sucessivas de uma mesma história, uma em preto e branco (1938) e outra colorida (1947). As escolhas estéticas dos dois álbuns de O Cetro de Otto­kar são muito diferentes: elas se refletem seu modo de fabri­c ação. De uma à outra, Hergé passou da produção a cada semana de uma página de folhetim à “su­ perprodução” minuciosamente preparada em estúdio. Na economia do folhetim, a paisagem é sucinta, as figuras são menos abundantes, pela falta de tempo para entrar em de­ talhes. Hergé escolheu então o eixo de perspectiva mais efi­ caz para dispor o mínimo de informações necessárias à ação que ele quer representar. A espontaneidade da cena em nada atrapalha a solenidade do momento. No “remake” de 1947, os detalhes abundantes e a escolha da perspectiva frontal aumentam o caráter cerimonial e pomposo do local: a soleni­ dade aqui não dispensa a gravidade. Qual das duas versões deve-se escolherr? Muito malandro quem conseguisse esco­ lher entre o Robin Hood de Douglas Fairbanks (1922) e o de Errol Flynn (1938). Os dois são insubstituíveis.

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6. O plano-seqüência instantâneo

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e toda sua abundante produção, o desenho era uma das preferências de Hergé. Ele dizia ter co­ locado na arte “um atalho de espaço e tempo”, pois em um único caso (o espaço) a sucessão do movimento (no tempo) é decomposta e repartida entre di­ versos personagens. A instantaneidade do desenho pode repre­s entar a duração de um ato, como se ele fosse visto em plano-seqüência? Julguemos. Frente à sequência de impropérios proferidos pelo capitão Haddock, os saqueadores fogem, apavorados, como se fossem um único homem (2). Pois esse movimento, onde cada um é atraído individualmente em uma fase diferente da fuga, é composto de tal maneira (no espaço, segundo uma curva traçada na profundidade de campo que começa embaixo do quadro, passa pelo centro da figura para caminhar até a borda direita) que ele poderia ser um único homem (no tempo): ainda deitado e surpreso, o saqueador se levanta e hesita, se prepara para fugir e, final­ mente, foge. Encontramos uma antecipação dessa técnica, que permite ver o movimento e o “tempo” de uma ação pela sua decomposição simultânea no espaço, no desembarque dos policiais de A Ilha Negra (1). O procedimento é referência aos registros cronofotográficos (o ancestral do cinema) do fi­ siologista Étienne-Jules Marey: é fotografando uma ação (um salto sobre arbustos, por exemplo) em intervalos muito cur­ tos que ele permitia ver sobre o papel tanto desdobramento no espaço quanto no tempo.

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7. Elipse, flash-back e dramatização

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s imagens de Tintim aban­ do­­na­do em pleno deserto e como náu­f rago mostram não somen­t e o que se passa mas também contam o que irá acon­ tecer (sempre crian­d o o suspense do que pode ocorre). Desmaiado no de­ serto, Tintim foi abandonado por quem o mantinha apri­s ionado e que fugiu no horizonte. Perseguido e ameaçado por toda a tripu­lação do cargueiro onde estava, Tintim e Haddock escaparam de seus perseguidores em um bote. Es­ ses desenhos são lidos no presente e

no passado: a ação que se desenrola no presente nos permite reconstituir a ação precedente que não vimos (le­ mos). Hergé falava desse aspecto como “uma forma de flash-back mental” feito pelo leitor, termo eminentemente cinematográfico para um procedimento também chamado de “elipse narra­ tiva”. A composição na profundidade de campo desses dois desenhos cria, além disso, um efeito de forte drama­ tização para deixar o leitor na incerteza e na angústia frente à seqüência da nar­ rativa, o que é próprio do suspense.

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A construção de uma seqüência Contar uma história antes de tudo: a arte de Hergé tem apenas esse intuito, diversas vezes presente como o único válido para os quadrinhos. Por essa sua maneira de fazer dos quadrinhos, ele acrescentava sempre, quase uma desculpa para essa obsessão de cons­ trução de uma narrativa pelo desenho e pelo diálogo. Esse trabalho começa pela “decupagem” da página. Pois ela é uma “seqüência” em si mesma: ela dá ritmo à história, é preciso conser­

var sua autonomia sem romper com o que vem antes e depois, dar a ela uma unidade estética, sempre respeitando a continuidade da história. Idealmente, ela deve terminar com um “prolon­ gamento, que seja um suspense ou uma piada”, para obedecer às leis dos queridos folhetins de Hergé. Entremos na página, aqui trecho da versão em preto e branco de O Lotus Azul para “ver” a arte do contador de história. A unidade parte a princípio

da “luz” escolhida por Hergé: nessa seqüência noturna, ele opta por um jogo de silhuetas e sombras chinesas. O preto da tinta que resulta dessa es­ colha estética radical percorre toda a página, se expande do veleiro aos rochedos sobre a praia, e das silhuetas humanas às das árvores. É preciso que nasça uma harmonia de tom ao mesmo tempo que se man­ tenha a atmosfera de mistério preten­ dida pelo autor.

Quadros A1 - A2

Uma ação cujo objetivo ignoramos. Em um veleiro, com as velas abaixadas, espera-se um sinal do navio que se encontra ao largo. A2: a vela alçada, a onda que leva o navio, tudo marca a ação e o movimento em contraste com a espera imóvel do quadro ante­ rior. O diálogo explica a ação: nós ire­ mos ver.

Quadros B1 - B2

Aqui somos informados: trata-se de “pesca” das caixas (B1). Pelo viés de uma elipse temporal (de A2 a B1), o “tempo” de passar de uma linha à ou­ tra, Hergé nos mergulha diretamente na ação onde nos levou o quadro ante­ rior. Seu layout é uma montagem: ele “cola” duas ações que se encaixam logicamente, suprimindo o caminho que leva de uma a outra. Outro efeito de decupagem-montagem: por deslo­ camento espacial e temporal (B2) e sem perder de vista o veleiro, desco­ brimos alguns personagens na costa.

Quadros C1 - C2 - C3

Uma nova elipse nos mostra os mes­ mos personagens, que desembarcam as caixas (C1). O desenho seguinte (C2) aumenta o campo para mostrar como a ação em curso se segue, por uma distância já percorrida, do veleiro à praia, e por uma distância a percor­ rer, da praia ao automóvel no canto do quadro, em primeiro plano. O que confirma a partida do carro no último desenho da página (C3), que conclui a seqüência sem desvendar o mistério desse descarregamento noturno. Para saber mais, só na página seguinte... 26

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Jaime Hernandez/ Reprodução

crítica

Traduzido da edição de 17 de outubro de 2008 do jornal The New York Times (www.nytimes.com)

A audácia de Esperanza por Douglas Wolk

O

s quadrinhos de Jai­­­­­­­­­­­­­­­­­­ me Hernandez ge­­­­­­­­­­­­­­­ ralmente provocam gargalhadas – não necessariamente por serem cômicos, mas por serem cons­­­­­­­truídos de forma tão perspicaz. Sua graphic no­ vel The Education of Hopey Glass começa com uma hilá­ ria e perfeita cena: Esperan­ za Glass, a Ho­p ey, uma ex-ro­ queira punk que aparece nas histórias de Hernandez des­ de o início dos anos 80, prova armações de óculos e tagare­ la sobre coisas que associa a cada par. Ela também flerta com a vendedora, que é mui­ to nova para entender suas alusões culturais. Ho­p ey tem hoje seus 40 anos e nas pá­ ginas seguintes do livro Her­ nandez deixa claro que as despreocupações impulsivas que fizeram Hopey tão char­ mosa nos seus 20 anos só lhe trou­x eram uma casa vazia

e uma namorada sofredora. Day by Day With Hopey, a primeira de duas breves se­ qüências do livro, mostra uma se­mana na vida de Hopey em que ela se pre­p ara para um tra­b alho que realmente re­ quer res­p on­s abilidade: dar au­­­las a crianças pequenas. Tam­­bém há algumas apari­ ções da mel­­hor amiga de Ho­ pey e personagem preferida de Hernandez: Maggie Chas­ ca­r illo. Ex-mecânica superha­­bilidosa – que agora, já na meia idade, firmou-se como ge­­rente de um complexo de apartamentos do Vale de San Fernando –, ela desistiu da maioria de suas ambições, mas parece mais centrada do que nunca. E Hernandez mos­ tra suas mudanças de perso­ nalidade mais com ima­­­gens do que com pa­la­v ras. A outra metade de The Education é um romance no limite com o policial. Ray Do­

mingues, outro per­s o­nagem há muito tempo pre­s en­t e na obra de Hernandez, envolvese com Vivian, uma stripper/ atriz boca-suja, cujo ex-na­ morado, um cri­mi­n oso de passatempo, aca­b a de ser linchado. Os de­talhes do as­ sassinato gra­dualmente se revelam, mas o que a história aborda realmente é como Ray ainda está apaixonado por Maggie, anos depois de eles terem terminado. É uma farsa de humor negro or­ questrada de forma clara, um balé de desejos frustrados e equi­v ocados, com delicio­ sa economia de linguagem e de linhas. O que o afasta do cinismo é a óbvia afeição de Hernandez por quase todos seus personagens. Como a maioria dos livros de Hernandez, The Education foi inicialmente publicado na série Love and Rockets, que ele divide com seu irmão Gil­

bert desde 1982. Os dois qua­ se nunca trabalham juntos e suas obras não poderiam ter estilos mais distintos, mas o trabalho dos dois aparece lado a lado com tanta regu­ laridade que muitas vezes eles simplesmente referemse a si mesmos como “Los Bros. Hernandez”. Depois de 50 números como revista e outros 20 num formato mais padrão de quadrinhos, Love and Rockets entrou em sua terceira encarnação como um livro anual com o subtítulo New Stories. Na tentativa de alcançar um território de desconfor­ to para o leitor, tanto Jaime quanto Gilbert buscam “New Stories”. Numa idade em que artistas tendem a procurar maior sucesso, os irmãos Her­nandez desafiam-se tanto quanto o faziam há um quarto de século, e é uma diversão vê-los enlouquecer.

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vitrine Almirante negro Chibata!

Olindo Gadelha escreveu e Hemeterio dese­nhou Chibata!, a HQ que propõe contar detalhes da in­ sur­gência dos marinheiros brasileiros em 1910. Insa­tisfeitos com o tratamento que recebiam – que incluía severos castigos físicos, como a já citada chibata – os marinheiros do Encouraçado Minas Ge­rais tomaram o navio em protesto. Daí a insur­ reição (que ganhou mais tarde o nome de Revolta da Chibata) foi aderida pela tripulação do Encoura­ çado São Paulo e de outros navios. Logo a histeria

tomou conta do Rio de Janeiro, na época capital do país, ameaçada pelos navios, apontando as ar­ mas para a cidade. O gover­n o cedeu às pressões, os marinheiros ficaram satisfeitos, mas em breve se viram perseguidos, expulsos, presos ou tortura­ dos, e centenas acabaram executados sem julga­ mento. Personagem dessa história é João Cân­ dido, o líder da revolta: torturado, acabou em um hospício e teve sua saga ignorada por décadas, resultado da eficiente repressão militar.

Hemeterio e Olinto Gadelha Editora Conrad

Tragicomédia universal Baby Blues

A intenção dos americanos Rick Kirkman e Jerry Scott é encontrar humor no drama diário que duas pessoas – geralmente um homem e uma mulher – passam quando se vêem ante o mistério/dádiva da procriação. Para humanizar o drama (ou ter­ ror) universal, os criadores da série usam o casal MacPherson – Wanda e Darryl – para viver as augu­ ras dos pais de primeira viagem. Aliás, quem não pegou, Baby Blues é uma brincadeira semântica com o significado real da expressão: uma versão mais light de depressão pós-parto. Em 2000, Baby

Rick Kirkman e Jerry Scott Editora Devir

Blues ganhou uma adaptação animada, que durou 13 episódios produzidos pela Warner Brothers. Nos EUA, a família cresceu bastante: Wanda e Dar­ ryl não se descabelam apenas com a primogênita Zoe Jennifer, hoje adolescente. O clã aumentou de três para cinco, com os nascimentos de Hamish (o tradicionalmente inquieto filho do meio que se en­ tretém vendo Zoe se meter em problemas) e Wren, a caçula. A série que já dura 18 anos começou como tirinhas de jornal. Hoje, figuram diariamente em mais de 1.100 jornais espalhados em 28 países.

Loucura coletiva Eles ganharam este ano o Eisner Awards pela co­ laboração na revista independente 5. Agrupados na seara dos melhores do ramo da atualidade, os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá foram convidados para o projeto que transforma clássicos da litera­ tura em grafic novels. Ficou a cargo dos irmãos O Alienista, de Machado de Assis. Simão Bacamarte, protagonista da obra, encarna os questionamen­ tos machadianos sobre fé na ciência, lideranças

populares (mas especificamente o processo de ascensão e inevitável queda) e loucura. Bacamarte é médico renomado, com talento reconhecido na Europa, que se instala no interior do Rio de Janeiro. Lá, começa sua empreitada de internar pessoas e identificar diferentes classes de loucura. Até que a população local começa a se questionar: o que é realmente loucura? Os gêmeos levaram um Jabuti pela obra.

O Alienista Fábio Moon e Gabriel Bá Editora Agir

Desista!

Expressionismo kafkaniano O traçado expressionista de Peter Kuper traduz em quadrinhos o clima claustrofóbico perene nas obras do tcheco Franz Kafka. Desista! é resultado de série de contos curtos do escritor europeu que nunca pagou as contas com a literatura, mas que conseguiu traduzir sentimentos pouco explorados: os medos angustiantes sobre a dúvida, o vazio e a solidão. Lembrando xilogravuras, os desenhos transportam o leitor para um universo sombrio sal­t eado por humor negro em que os tradicionais arquétipos kafkanianos dão as caras. Kuper parece 28

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Peter Kuper Editora Conrad

ter gostado da aventura no absurdo mundo de Kafka: após Desista! rumou para a adaptação de A Metamorfose – mas que foi lançada no Brasil antes de seu precursor. O trabalho deste ameri­ cano (que se tornou conhecido ao assumir a série Spy vs. Spy na revista Mad após a aposentadoria do criador dos personagens, o cubano Antonio Prohías) aparece regularmente no Times, no New York Times e na Business Week. Desde 2006 ele mora com a mulher e a filha em Oaxaca, no México, para documentar a situação política local.


Pequenas revoluções

Morpheus pop

virtuais Começou assim: um ilustrador e designer gráfico, que explo­ ra os não-limites da internet para publicar HQs, resolveu estudar a fundo essa nova mídia que anda assustando todo mundo envolvido com o mercado editorial. Daí partiu para um mestrado em artes visuais pelo Instituto de Artes da Unesp e acabou por pu­ blicar História em Quadrinhos – Impresso VS. Web. O autor é Anselmo Gimenez Mendo que detalha no livro o passado das HQs e compara-as com as nascidas pós surgimento da internet. Mendo investiga a função dos quadros, da dia­ gramação, dos balões e das letras em todo o processo de leitura – que conduzem o leitor ao desfecho de forma fluida. Nesse cenário de análises, ele retrata a revolução causada pela web, principalmente a decorrente absorção do con­ teúdo multimídia: no início, os autores ape­nas enviavam suas histórias para a internet, sem adaptar suas páginas para a tela dos PCs. Hoje, as novas criações absorvem as possibilidades não lineares, in­fluenciadas pela quase ins­ tantânea comunicação com os leitores que opinam sobre o andamento da história.

História em Quadrinhos – Impresso VS. Web Anselmo Gimenez Mendo Editora Unesp

Sandman Neil Gaiman Editora Pixel Media

Neil Gaiman ganhou fama com a saga de Morpheus, o senhor do sono e personagem título de Sandman, que é capturado por um grupo de humanos e passa décadas confinado. Quando escapa, tenta retomar a vida em seu reino e parte em busca de três artefatos poderosos que lhe foram tira­ dos. E por aí a trama se desen­ rola em 75 números. A Pixel re­ solveu entrar mais uma vez na empreitada de lançar a história completa, desde o início. A promessa é de que a cada três meses, saia um novo número. A tradução é nova e o material segue o padrão recolorizado da última reedição da série nos EUA. Gaiman conquistou fãs tão distintos que sua popu­ laridade pode ser medida pela sua aparição na última Festa Literária de Paraty: a presença dele na cidade histórica flumi­ nense registrou uma das mais longas filas vistas na história do evento. Outro ponto para Morpheus vai para seu êxito em agradar gente famosa que acabou influenciando na abertura de mercado para os quadrinhos adultos. O senhor do sono ficou tão pop, que até quem torce o nariz para os quadrinhos o lê.

Filosofia, ética e travessuras infantis A dupla já tem 23 anos. No idio­ ma de criação, o inglês de Bill Watterson, o cartum chama-se Calvin & Hobbes, em alusão ao teólogo protestante francês Jean Calvin e ao filósofo inglês Thomas Hobbes. Inspirado no trabalho de Charles Schulz (autor de Snoopy), Waterson arranjou um garoto com uma imaginação invejável e com disposição interminável às travessuras para representar seu alter-ego questionador. Daí as reflexões sobre ética e valores sociais que resultaram numa infinidade de frases clás­ sicas (e excelentes) como: “faça o que tem que fazer e deixe os outros discutirem se é certo ou não”. Criaturas Bi­ zarras de Outro Planeta! é o quinto título da série publicado pela editora. Criada em 1985, a tirinha foi publicada diaria­ mente, durante dez anos, em mais de 2.400 jornais ao re­ dor do mundo. Detalhe: man­ tendo a integridade ética de Waterson, a tirinha não gerou nenhum tipo de merchandising oficial – nada de lancheiras, bonecos, decalques ou outras bugigangas. Calvin & Haroldo: Criaturas Bizarras de Outro Planeta! Bill Watterson Editora Conrad

Imagens divulgação

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Jornalismo em quadrinhos O jornalista e quadrinista Joe Sacco revolucionou o que já se manisfestava como uma das artes mais inovadoras. Ele uniu a sede pela notícia com a vontade de contar uma história quadro a quadro. O resultado é

Gorazde, sua terceira obra nesse gênero. A partir desta edição de Entrequadros, o leitor confere o resultado desta união

por Nair Rabelo

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Área de segurança Gorazde: a guerra na Bósnia Oriental 1992 – 1995, é o ter­ ceiro quadrinho jornalístico de Sacco – os dois primeiros são Palestina: na Faixa de Gaza e Palestina: uma nação ocupa­ da, publicados em 1996. E foi também o melhor elaborado: entre os meses fi­ nais de 1995 e o início de 1996, Sacco viajou quatro vezes a Gorazde, uma área de segurança delimitada pelas Nações Unidas durante a Guerra da Bósnia. An­ tes uma cidade de fraterna convivência entre sérvios e mulçumanos, durante três anos a cidade esteve sobre a amea­ ça sérvia que a cercava e que punha em risco a vida dos mulçumanos. Além do retrato dos escombros do que antes foi uma cidade pacífica, Sac­ co apresenta ao leitor pessoas que ten­ tavam sobreviver àquela realidade ab­ surda acreditando que a guerra estava próxima de chegar ao fim. Nesta edição, o leitor encontra as seis primeiras páginas dessa experiên­ cia que consagrou Sacco.

Área de segurança –Gorazde Joe Sacco Editora Conrad

Imagens: reprodução

J

oe Sacco deu continuidade a um novo gênero que surgia: os quadri­ nhos jornalísticos. O jornalista ca­re­c a nascido na ilha de Malta ousou ­juntar duas formas de comunica­ ção que para muitas pessoas parecem incompatíveis. Quem critica desconhece as raízes desse processo que nasceu dos quadri­ nhos undergrounds da década de 60 e que alcaçaram o auge em 1992 quando Art Spiegelman ganhou o primeiro prê­ mio Pullitzer de jornalismo a uma HQ por Maus. A obra retrata Vladek Spiegelman, pai de Art, prisioneiro de Auschwitz e sobrevivente de campos de concen­ tração. Unida à grande sensibilidade do roteiro, a grande sacada do quadrinista foi retratar judeus como ratos, nazistas como gatos, poloneses como porcos e americanos como cães. Outros autores vieram comprovar que uma visão ilustrada da realidade é uma maneira perfeitamente legítima de se construir uma reportagem.


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