Historias de um Mestre

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Andrea Mesquita

HISTÓRIAS DE UM MESTRE “Causos” e memórias de Idrico Uliana, um homem à frente de seu tempo

1a Edição - 2018

SANTA EDWIGES

Piracicaba 2018


Autora Andrea Mesquita Projeto e Organização Bruno Fernandes Chamochumbi Operação de Projeto Fabiane Ducatti e Guilherme Vendrame Capa Marcel Yamauti Ilustração Amauri Ribeiro Editoração Marcel Yamauti Desenvolvimento e Revisão MBM Escritório de Ideias

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Andrea Mesquita

HISTÓRIAS DE UM MESTRE “Causos” e memórias de Idrico Uliana, um homem à frente de seu tempo



Agradecimentos Agradeço em primeiro lugar ao “seu” Idrico Uliana, como eu carinhosamente o chamava, pelas horas de conversa, pelo carinho, pelas risadas, pela emoção contida em algumas histórias, pela paciência, pelo amor e por tudo que ele generosamente me ensinou. À toda família Uliana, que me abriu as portas para contar seus momentos ao lado de seu Idrico, e também aos amigos que se dispuseram a conversar comigo. Pessoalmente ou por Skype, cada um deles contribuiu para enriquecer ainda mais essa história. Ao Bruno Chamochumbi, que me indicou para esse trabalho na hora certa. Sem a sua amizade, eu não teria conhecido seu Idrico. Lembro-me da sua ligação me dizendo que fazer essa história era “a minha cara”. E foi mesmo. Aos meus pais, que me estimularam a pegar esse trabalho e sempre me escutavam contar entusiasmada os “causos” de seu Idrico quando eu voltava das entrevistas. Assim como eu, eles aprenderam a admirar esse homem que mudou vidas e soube deixar sua marca. Por fim, mas não menos importante, a Deus, que sempre me ilumina e guia meus caminhos, mesmo que por vezes eles pareçam escuros e tortuosos. Andrea Mesquita



Prefácio Quando fui convidada pelo meu amigo Bruno Chamochumbi a entrevistar seu Idrico Uliana, fiquei curiosa em conhecer o homem pela descrição que me foi dada dele. Afinal, não é todo dia que temos a chance de conversar com uma pessoa que, aos 97 anos, tem uma memória afiadíssima, e está disposta a contar suas histórias e “causos” a uma desconhecida. Até aquele momento, não sabia ainda direito que a ideia de Kiko Uliana era contratar um jornalista para escrever um livro sobre seu pai. Talvez, se já soubesse “de cara” o tamanho do projeto, tivesse recuado. Apesar dos meus quase 23 anos de profissão, ainda não havia escrito um livro. Então, fui tranquilamente entrevistá-lo, em uma quinta-feira fria, na manhã do dia 29 de junho de 2017, na Indusparquet, em Tietê. Quando não conhecemos uma pessoa formamos imagens que, na maioria das vezes, não têm absolutamente nada a ver com ela. Esperava encontrar um homem idoso andando bem devagarzinho, falando baixo e compassadamente, e me deparei com um senhor alto, de passos rápidos e voz firme. Já impactada por essa impressão, demos início a nossa entrevista. Foram duas horas que poderiam ter virado quatro, e eu não sentiria o tempo passar. A conversa somente foi interrompida porque, fiel aos seus hábitos, seu Idrico encerrou a entrevista para ir para casa almoçar no horário de sempre, às 11h30. E esse ritmo manteve-se até o final de setembro. Às sextas-feiras, eu ia até a Indusparquet ou à Madeireira Uliana, onde conversávamos por duas horas, duas horas e meia. Desde o primeiro dia, nos sentimos à vontade um com o outro. Seu Idrico tem a capacidade de nos fazer sentir “parte da família”. As histórias e “causos” que me contava sempre eram entremeados de risos com suas tiradas ímpares. E o encanto surgido no primeiro encontro só foi aumentando com o tempo. A cada conversa, um novo aprendizado. A cada história, um exemplo de vida a ser seguido. Um dia, na madeireira, ao me apresentar ao sobrinho, ele me abraçou e disse que eu era “como uma filha”. Senti muito orgulho por


ser valorizada e considerada com tanto carinho por aquele homem, que tanta coisa estava me ensinando. Nas entrevistas com familiares, muitas vezes segurei as lágrimas, enquanto eles não inibiam o choro ao lembrar momentos emocionantes com o patriarca da família Uliana. Com os amigos, senti o carinho ao falarem da amizade e do respeito que nutriam por ele. Com a esposa, o amor refletido nas doces palavras ao contar do casamento e da convivência de mais de 70 anos de união. Com os filhos, o orgulho pelo excelente pai que seu Idrico sempre foi. Por tudo que ouvi, entendi que minha tarefa era ao mesmo tempo fácil e difícil. Fácil porque ia colocar no papel histórias que nos mostram coisas boas. Difícil porque não sabia se seria capaz de, em palavras, transmitir o que seu Idrico verdadeiramente representa. Ao encerrar esse livro, percebi que havia escrito mais do que planejara, mas muito menos do que sua rica história merece. Parte de seu legado agora está escrito para que suas memórias não se percam, e as futuras gerações possam saber quem ele foi e o que representou para sua família, sua cidade e seu tempo. Andrea Mesquita 9 de janeiro de 2018 P.S.: Infelizmente, quatro dias após entregar o original nas mãos de seu Idrico, ele faleceu vítima de uma pneumonia. Decidimos deixar o texto como estava, para manter sua memória viva. Exatamente dois meses antes, ele havia sofrido uma queda e quebrado o fêmur. Após ser operado e sair duas vezes da UTI (Unidade de Terapia Intensiva), ele estava em casa, mas já bastante enfraquecido. Quando viu que o livro estava terminado, ficou muito feliz. Pegou em minha mão, me beijou, perguntou se tinha ficado bonito. Ficou conversando e alisando minhas mãos longamente. Perguntei então: - O senhor está feliz? - Não. - Não? - Claro que sim, Pedro Bó! Esse era Idrico Uliana.


Sobre uma vida dedicada ao próximo Os acontecimentos de uma vida inteira não cabem em um só livro. Ao conhecermos a história de seu Idrico, temos a certeza de que uma biblioteca seria pouco para abrigar tantas ações e palavras transformadoras. Andrea Mesquita conseguiu captar mais do que partes importantes de uma trajetória, mas principalmente a essência do homem que mudou pessoas. A jornalista passou meses empenhada em escrever tudo que ouviu. Sem saber, seu primeiro livro nasceria justamente nos últimos dias daquele grande homem que ela acabara de conhecer. Pura semente. Não existe acaso, foi merecimento, dádiva. Era por sua inteligência e mãos que a história do marceneiro, marido, pai e empreendedor deveria passar. Como uma espécie de presente para ambos, a união criou um vínculo, os transformou e impacta em cada um dos leitores desse livro. Quatro dias após o texto do livro ficar pronto, Idrico se despediu. Esperou a vida toda por isso. Não propriamente pelo reconhecimento, mas pelo compartilhamento de um viver dedicado ao ser humano. Isso realmente precisa ficar registrado, pois é raro. Ele era especial porque sabia refletir o melhor de cada um. Nos ensinou que antes do diploma, a primeira faculdade é a da vida. O respeito por suas origens, a pontualidade e a força do trabalho o levaram longe. Ao ler essas memórias, me senti dentro delas, quis abraçar a família e me emocionei. De forma muito particular, me transportei para outro tempo, enxerguei em meus três filhos um pouco de Kiko, Antonio Carlos e Roberto. Me dedicarei para alcançar o amor que Idrico nutria pela vida. Ao assumir este projeto, sabíamos que estávamos diante de uma enorme responsabilidade: traduzir o amor e consolidar o legado de uma imensa obra. As pessoas vão, mas suas obras ficam. E no caso do “nosso” Idrico, sua obra é um grande castelo de nobre madeira onde cabem todos os sonhos do mundo. Bruno Chamochumbi Organizador



Sumário

Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9

| O início de tudo..............................................15 | Os anos escolares.............................................25 | A adolescência.................................................29 | O exército........................................................33 | Um visionário no trabalho...............................37 | O amor da sua vida..........................................45 | Sete décadas com Idrico...................................49 | Superações.......................................................53 | Exemplo para os filhos.....................................57

Capítulo 10 | Noras tratadas como filhas...............................71 Capítulo 11 | Tão criança quanto as netas..............................79 Capítulo 12 | Generosidade sempre.......................................91 Capítulo 13 | Paixão pelo futebol..........................................107 Capítulo 14 | Bom chefe, amigo, conselheiro........................111 Capítulo 15 | Homenagem merecida.....................................121



Capítulo 1

O início de tudo

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aranjal Paulista, 1920. A pequena cidade com 9.400 habitantes havia sido alçada ao posto de município em outubro de 1917. Em 5 de setembro, mais precisamente em um bairro chamado Morro

Vermelho, na colônia de sitiantes do Itapoá, na zona rural do município, nascia Idrico Uliana, filho do italiano Luigi Uliana e da brasileira Giovana Martin Uliana, conhecida por todos como Joana, ou mais carinhosamente, Nina. Luigi (Luis) ou “seu” Gigio, como era chamado, chegou ao Brasil aos 4 anos, em 1896, vindo de um vilarejo chamado Cornuda (população atual 6.000 habitantes), perto de Treviso, com seus pais, que aqui desembarcaram, assim como muitos conterrâneos, “para fazer a América”. “Ele me contava que não lembrava do dia em que havia embarcado na Itália, mas quando chegou ao Brasil pensou: ‘o mundo se abriu para mim’. A família desembarcou em Santos e de lá já veio para a região de Tietê. Meu avô morreu quando ele tinha 13 anos”. Gigio casou-se com Joana, de Laranjal Paulista, com quem teve oito filhos: Aurora, Angelo, Antonia, Idrico, Clodoaldo, Osvaldo, Alcides e Maria Luisa. Desses, apenas Idrico e Maria Luisa, com 85 anos, ainda estão vivos. Os avós de Idrico trabalhavam em uma fazenda em Laranjal Paulista, e seu Gigio também, onde era carroceiro. Idrico conta que o pai transportava o café para beneficiar, e, como era bastante versátil, teve a ideia de fabricar corotes de cinco ou seis litros e encher de água, para levar até a roça onde o pessoal trabalhava. “Ele também fazia cadeira trançada com taboa, e depois passou a fazer mesa. Assim, aos 25 anos, com seis filhos pequenos para criar, ele começou a trabalhar de carpinteiro”. Com a nova profissão, foi possível então sustentar a família e economizar cerca de 500 mil réis – ou cerca de R$ 61.500, em valores atualizados (2017). Com o dinheiro, comprou um terreno e fez uma casa com quatro cômodos: dois quartos, cozinha e sala de visita, além de uma despensa e a “casinha” que, como era comum à época, ficava do lado de fora. Além disso, fez um barracão, onde montou uma oficina de carpintaria e começou a fabricar móveis.

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Na mesma época, em uma vila vizinha chamada Jumirim, com cerca de mil habitantes, havia uma máquina de café e uma serraria. Um tio de Idrico, Lourenço Giriboni, casado com a irmã de sua mãe, tomava conta dos dois negócios. Como o serviço era puxado, seu sócio então pensou em convidar seu Gigio para tomar conta da serraria. “Ele falou que meu pai era um ‘demônio para trabalhar’. Em 1929 ele foi para Jumirim, mas acabou não dando certo, o que ganhava mal dava para tocar sua vidinha. Então meu tio, que era um homem muito bom, sugeriu a meu pai que comprasse a serraria, e pagasse quando pudesse. O negócio passou a se chamar Serraria e Marcenaria Bom Jesus, de Luis Uliana e Filhos. Em dois anos a situação melhorou e ele pagou a dívida”, orgulha-se Idrico. Mas nem tudo foi fácil nesta mudança. Os Uliana foram morar em uma baixada onde não havia casas, e a água vinha da bomba. A pequena residência tinha sala, cozinha, um quarto grande e um pequeno. As camas eram cercadas com cortinas, e o colchão era de capim. Em 1931, com uma condição financeira mais próspera, se mudaram para uma casa com um quarto para o casal, outro para os meninos e um para as meninas, e ainda um quarto pequeno. Na nova residência, foi possível acomodar melhor todos os filhos, que formavam uma escadinha, já que a cada dois anos dona Joana tinha uma criança. Lá ficaram até 1943, com a serraria. Tradicionalmente os meninos trabalhavam com o pai, e as meninas ajudavam a mãe. A irmã mais velha, Aurora, casou aos 17 anos, quando eles ainda estavam em Laranjal Paulista, e mudou para Jumirim com o marido. A outra, Antonia, casou com um porteiro de cancela da Estrada de Ferro Sorocabana, e quando assumiu a marcenaria Idrico lhe deu um emprego. A mais nova, Maria Luisa, chegou a fazer todo o magistério, mas acabou trabalhando pouco tempo, porque casou e mudou para Campinas. Idrico afirma que sempre se deu bem com todos os irmãos, sem fazer nenhuma distinção entre eles. Nas refeições, havia muita brincadeira, contavam

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piadas, e com o mais velho, Angelo, ele diz ter aprendido muita coisa. “Claro que havia às vezes uma desavença entre os irmãos, mas no geral a gente se dava muito bem”. Com as irmãs ele tinha a mesma proximidade, em especial com Aurora. Aos domingos, Idrico pegava o ônibus a ia visitar a irmã. Quando o primeiro filho dela nasceu, ele estava com 12 anos. “Eu estava na escola, mas ia ficar na casa dela cuidar da criança para ela poder trabalhar na roça. Depois, quando os filhos foram crescendo, parei de ir”. Ele também se dava muito bem com a irmã Antonia, a quem visitava a cada 15 dias, mesmo quando já estava casado e com os filhos pequenos. Como a diferença de idade entre ele e Marisa Luisa era de 12 anos, ela era muito pequena quando ele já estava adulto, e a proximidade não foi tão grande. Quase todas as lembranças de infância são mescladas à existência da serraria. Como Idrico estava lá o tempo todo, o local se tornou o ambiente favorito das muitas brincadeiras entre ele e os irmãos. Seu Gigio tinha quatro bois de mil quilos cada, que colocava no carretão para puxar tora. Com apenas sete anos, era Idrico quem tinha a responsabilidade de soltar os bois depois que o serviço havia terminado. Os animais volta e meia acabavam entrando na serraria e fazendo bagunça. Uma vez, ele lembra que o irmão Clodoaldo pegou formicida, colocou em uma seringa e jogou em cima do boi que estava entrando na serraria. Com o ardor, o boi arrebentou tudo. “Meu pai ficou super bravo com isso”, conta, rindo. Vendo a traquinagem, Idrico pensou em aprontar uma parecida, porém ficou frustrado com o resultado. Seu Gigio tinha uma mula, um cavalo e uma charrete. A mula vivia dentro de casa, bastava abrir o portão e ela já entrava. “Peguei uma latinha de formicida com um arame e deixei pendurada no arco da casa, para que quando ela passasse a latinha virasse e caísse nas suas costas. Ela estava pastando e eu fazendo serviço, só olhando. Mas ela era tão ladina que passava, olhava para mim e não entrava. Fiquei o dia inteiro esperando, mas ela não entrou e eu fiquei frustrado”.

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Idrico tinha um carinho todo especial pelo carretão, puxado pelos bois Canário e Benzinho. Após ele parar de trabalhar, o veículo ficou em Jumirim, e em 1980 foi emprestado ao Exército. “Vieram falar comigo na madeireira se podiam usar o carretão para participar de uma simulação da Guerra do Paraguai. Emprestei, levaram para Itu, o comandante do quartel colocou um canhão da guerra para ele transportar, fizeram o desfile, e depois meu irmão o levou para a fábrica dele”. Idrico lembra de um fato interessante que aconteceu com o pai em 1937. Seu Gigio comprava toras para a serraria, e em Tietê havia um italiano da família Pizzol, que tinha no sítio dele a maior árvore da região, um jequitibá rei. “Meu pai viu o buraco onde essa árvore estava plantada, que era muito fundo. Ele queria comprar a árvore, mas o italiano disse que ele ia perder dinheiro, porque ninguém ia conseguir tirá-la do buraco. Mas meu pai insistiu e ele então pediu um valor alto, que tinha de ser pago adiantado. Ele pagou à vista, e chamou quatro pessoas para a empreitada. Primeiro derrubaram a árvore, depois partiram em quatro pedaços, depois puxaram tudo com o carro de boi. Eu tinha 16 anos e fui ajudar. Demoramos uma semana para tirar a árvore, e aquilo foi algo pioneiro para a época”. Idrico descreve o pai como um italiano que não gostava de bagunça, sério, enérgico, que falava apenas sobre o trabalho, “não havia aquela coisa de amizade entre pai e filho”. Ele só sabia escrever o nome, mas era muito bom em contas. Era costume dos italianos, à hora das refeições, as crianças sentarem-se em outra mesa, na cozinha, para os adultos comerem sossegados. “Ele era muito amoroso, mas não demonstrava. Na mesa onde ele ficava ninguém conversava, isso até a gente ficar adulto, quando aí passamos a sentar na hora das refeições. O respeito era tão grande que ele sabia que eu fumava, mas não podia jamais fumar perto dele, mesmo depois de casado e já com filhos. O interessante é que ele vinha pegar cigarro do meu bolso, mas eu não tinha coragem de fumar com ele”.

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Mas a braveza desaparecia se um dos filhos ficasse doente. Jumirim não tinha médico nem recursos, se precisasse de ajuda era preciso ir a Tietê. “Ele largava tudo para cuidar da gente, que pegava as doenças da época: verme, amarelão, lombriga. Aí era muito amoroso, fazia de tudo para a gente ficar bem. Tenho muitas saudades dessa época, era uma vida difícil, mas eu queria voltar àquele tempo e comer minha raiz de cebola verdinha com pão”. Para Idrico, a maior herança deixada pelo pai foi o valor do trabalho. Em casa, seu Gigio levantava às seis horas, quando Idrico normalmente já estava em pé, andando pela casa, enquanto os irmãos continuavam dormindo. “Ele então passava a mão pela minha cabeça e dizia ‘esse aqui, esse aqui’, sabendo que eu seria muito trabalhador. Quando a gente trabalhava junto, ele fechava a bancada quando ficava com fome, vinha à cozinha, onde tinha toucinho, copa e pão na cesta. Ele abria o toucinho, tirava a carne, pegava um pedaço de pão e me dava um sanduíche. Meu pai sempre me ajudou, ficava contente porque eu não tinha medo de fazer força, levantava carrinho, madeira, e ele se orgulhava disso”. Quando deixou a serraria para os filhos, no começo da década de 40, ele se dedicou a um sítio de café que tinha, até morrer, aos 78 anos. O sítio era sua verdadeira paixão. “Meu pai passou então a viver no meio do cafezal. Quando ficou com reumatismo, pagava gente para trabalhar na plantação, mas não saía de lá. Além disso, também tinha vaca de leite. A marcenaria foi seu trabalho por necessidade, porque ele adorava a agricultura, e se pudesse teria vivido sempre da produção da terra”. Um hábito que Idrico herdou do pai foi fabricar o vinho caseiro. “Meu avô, meu pai e meu tio faziam vinho. Passei também a fazer em casa, e tanto acostumei que só gostava do vinho que eu fazia, que não era doce. Hoje gosto de um vinho ‘de classe’, daquele que eu fazia antigamente não gosto mais, desacostumei”. Ele tinha uma pequena vinícola, e fazia cerca de 400 litros de vinho por ano, que era consumido pela família e dado de presente aos amigos.

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A produção durou de 1947 a 2005. O filho Antonio Carlos, durante um tempo, também fazia seu próprio vinho. Idrico tomava, todos os dias, meio copo no almoço e meio no jantar. “Comprava uva do Rio Grande do Sul e depois em Jundiaí e Louveira, onde todo ano tem a festa. Minha mulher fazia um ‘viradinho’ de frango, eu colocava meus três filhos no carro e a gente ia à festa”. Enquanto o pai ficava na serraria, sua mãe, carinhosamente chamada de dona Nina, cuidava dos filhos e do serviço da casa, além de ordenhar a vaca e cuidar da plantação de feijão e milho que seu Gigio tinha no quintal, para ajudar na alimentação da família. Já havia energia elétrica na casa, mas geladeira era artigo de luxo, por isso a carne era conservada na banha de porco e sal. “Meu pai comprava farinha de trigo e ela fazia uma fornada de pão na segunda-feira, que durava a semana toda, porque não tinha padaria no Morro Vermelho”. Dona Nina respeitava muito o marido. Até os 60 anos ele lembra da mãe muito quieta quando ele ficava bravo, mas depois dessa idade mudou, ao mesmo tempo em que o pai ficava mais calmo. Sempre carinhosa, ela encobria as artes dos filhos, e depois dos netos. Quando Gigio morreu, os filhos ficaram responsáveis por administrar sua herança. Idrico lembra de um fato interessante: ela tinha cabelo comprido, porque o marido não permitia que cortasse. “Era tão comprido que minha mulher tinha de ajudar a lavar e pentear. Pois bastou ele morrer que, um mês depois, ela foi lá e cortou”. O interessante é que o verdadeiro nome de dona Nina, Giovana, só ficou conhecido pela família quando ela faleceu, aos 86 anos, de edema pulmonar. “Dizem que quando ela foi registrada meu avô falou seu nome com jeito de italiano, e foi registrado Giovana, mas a vida toda ela foi chamada de Joana”. Assim como seu Gigio, ela também fumava, mas escondida do marido. “Ele não deixava, então ela roubava do seu fumo de corda e fazia o cigarro de palha. Mas todo mundo sabia que ela fumava, até meu pai, só fazia de conta que não. Minha mãe era muito divertida, quando nossos amigos iam em casa ela se vestia de palhaça. Uma vez ela pegou a farda do meu irmão, que estava

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no Exército, e apareceu vestida como soldado, com quepe e tudo, e veio fazer continência para a gente. O que meu pai tinha de sério, minha mãe tinha de brincalhona”, compara. Uma brincadeira que existe entre os Uliana até hoje surgiu do jeito da matriarca. “Ela não sabia ler nem escrever, e sempre falou o que fosse preciso para quem quer que fosse. Ao fazer isso, dizia que ‘deu uma indireta nele’, mas era bem direta. Quando ela morreu, a mulher de Kiko, Eurides, estava grávida de gêmeas, e uma das meninas foi batizada Giovana em homenagem a ela”.

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CapĂ­tulo 2

Os anos escolares

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uase aos 11 anos, chegou a hora de entrar para a escola, que só tinha turmas até o quarto ano primário. Na época era comum as crianças começaram a estudar mais velhas. A Escola Reuni-

da de Jumirim ficava a cerca de 500 metros da casa dos Uliana. Os dois irmãos mais velhos, Angelo e Aurora, não frequentaram essa escola. O primogênito foi a uma escola particular, e a irmã, aos 17 anos, casou e mudou-se de lá. Quando estava no terceiro ano Idrico repetiu, porque teve sarampo e precisou faltar a muitas aulas. Na quarta série estava com quase 16 anos, jogava vôlei com os amigos, todos da mesma faixa etária, e era mais alto que a professora. “Só faltava namorá-la”, brinca. O caderno do primeiro ano era comum, já no segundo tinha três linhas, para os alunos aprenderem bem a caligrafia, colocando a letra minúscula na linha de baixo e a maiúscula na de cima. Das matérias, Geografia era sua favorita. “Eu dava aula até na professora! Quando saí no quarto ano sabia todos os países da Europa, por quantos estados o Brasil era formado e o que cada um tinha. Sempre gostei de ler sobre o assunto na Enciclopédia Conhecer e nas Seleções (Reader’s Digest), que quase todo mês eu comprava”. Já nessa época Idrico era o líder entre os amigos, dos quais ainda se lembra de Fernando e Cláudio Fontana, Anselmo Luchesi, Plácido Nicoletti, Antonio Tomé, Hermínio Bertola, e tomava à frente nas aulas de agricultura, criando uma horta onde plantaram tomate, alface, almeirão, chicória, couve e cebola. Dos professores, se lembra com carinho da primeira, chamada dona Adi, “uma santa moça” que o ensinou a ler e escrever. No segundo ano, o professor João era bravo, tinha uma régua e uma varinha, que não hesitava em usar para corrigir os alunos, principalmente os mais bagunceiros. “A turma não era fácil, tudo levado, então ficava de castigo, em pé e até mesmo de joelhos. Eu não, sempre fui um aluno muito educado”, garante. Para ir ao banheiro, levantavam o dedo fazendo o sinal de número 1 ou 2, de acordo com a necessidade fisiológica. Idrico diz que fazia quase sempre

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o dois porque, apesar do tempo ser apenas para ir e voltar do sanitário, ele aproveitava para dar uma saidinha da classe. Do terceiro ano, quando repetiu, ele não guarda muitas recordações, mas da quarta série, com a professora Gersomina, lembra de um concurso de desenho na escola. “Era para desenhar um quarto de criança desarrumado. A gente tinha um livro para se basear. Fiz a cama, travesseiro, coberta amontoada, meia jogada, roupa suja no chão, ficou perfeito, como estava no livro. Ganhei o primeiro lugar”, orgulha-se. Já trabalhando com o pai, Idrico sabia bem como desenhar uma janela. Ele lembra com carinho de uma amiga sua, Balmerina Casale, que lhe pediu para desenhar uma janela, mas ela não sabia falar veneziana, e falava “venezuela”. Os dois eram bem ligados, e Balmerina, que sempre gostou também de desenhar, se destacou na vida adulta como pintora. A fidelidade à amiga pode ser descrita por um fato ocorrido em 2012, quando a irmã de Idrico, Antonia, faleceu. No enterro, um rapaz de 20 e poucos anos ficou conversando com ele e lhe perguntou quem era aquela senhora “feia” (Balmerina). “Respondi que aquela senhora ‘feia’ era minha amiga de infância, que tinha o coração muito maior do que o dele, sempre havia sido muito bela internamente, que gostava muito dela e que ele nunca saberia o valor que ela tem”. Ao fim do quarto ano, Idrico parou de estudar, para se dedicar ao trabalho com o pai na serraria. Apesar de não ter terminado os estudos, ele fez questão de que seus três filhos tivessem um diploma. “Na minha época era comum não continuar, porque trabalhando a gente ganhava mais dinheiro. Só tenho uma irmã, Maria Luisa, que chegou a terminar o magistério, mas exerceu a profissão por pouco tempo, porque depois casou”.

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Capítulo 3

A adolescência

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lém da escola, Idrico era responsável, junto dos irmãos Clodoaldo e Alcides, de carpir a plantação de cana de seu Gigio, que usava a produção também para tratar seu cavalo e bois. Pela convivência com o trabalho do pai, aos 16 anos ele já era um renomado marceneiro. Sem falsa modéstia, conta que fazia qualquer móvel, do começo ao fim, e que algumas pessoas chegavam a duvidar que fosse seu o produto, tamanho era o capricho. “Fazia guarda-roupa, cristaleira, guardacomida, guarda-louça, envernizava... Desde os 10 anos já ficava na serraria, meu pai ia rolando a tora e eu ia calçando para não rolar de novo. Comecei a trabalhar nessa idade. Era uma vida de sítio, antigamente todo mundo trabalhava e ninguém reclamava”. Mesmo com as dificuldades da época, suas memórias são as melhores possíveis. Seu primeiro par de sapatos, por exemplo, somente foi calçar aos 17 anos. Até então, só usava uma “sandalhinha” bastante popular chamada “come quieto”, feita de lona e sola de corda (sisal), fabricada pela São Paulo Alpargatas desde os primeiros anos do século passado. “Fazia frio, e a gente usava essa ‘sandalinha’ sem meias, andava nos pastos para ir ao baile, e o chão fazia o barulho da geada. Ninguém reclamava, todo mundo usava a mesma coisa”. A ida aos bailes em um sítio cerca de três quilômetros longe de casa com uma turma de moços e moças era o programa do final de semana. A esperança era conseguir dançar com alguma moça, mas nem todas as famílias permitiam isso. Uma vez foi com uma turma ao baile e, chegando lá, os moços não puderam dançar. “Tinha a casa, o cafezal e os pés de mamão. O baile estava acontecendo debaixo de um encerado usado para cobrir os pés de café do sereno, com lampiões dentro para iluminar. Esse encerado estava amarrado perto do pé de mamão. Nós então pegamos um facão e derrubamos o encerado, acabando o baile”, relembra rindo. A bebida das festas era o “quimo”, feita de milho e adoçada, ou a pinga com Fernet e limão, “que a gente tomava para dar coragem de chamar as moças para dançar”, que eram muito tímidas e arredias.

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Capítulo 4

O exército

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m período do qual Idrico não tem a mínima saudade são os quase quatro anos que passou no quartel em Itu, entre 1941 e 1945, em treinamento, enquanto aguardava uma possível cha-

mada para lutar pelo Brasil na Segunda Guerra Mundial. “Não queria ir, preferia desertar, porque não queria brigar com meus irmãos italianos. Considero que perdi muito tempo da minha vida lá dentro, entrei com 21 anos e saí com 25, ainda era solteiro”, lamenta. Junto de cinco outros jovens de Laranjal Paulista e três de Tietê, foi sorteado para ficar no quartel em Itu. Orientado pelos pais, que lhe disseram para falar que era lavrador e assim ser dispensado, Idrico omitiu que era marceneiro e carpinteiro, e foi convocado. Já na instrução, o tenente descobriu que ele era bom marceneiro, e depois de um ano assumiu essa função dentro do quartel. No primeiro ano, apenas fez treinamento e recebia um soldo pequeno nos primeiros seis meses de 51 réis, que depois passou a 110 réis. Depois de um ano passou à marcenaria, a moeda mudou e ele passou a receber 230 cruzeiros. “Daí fui ‘desarranchado’, dormia e comia fora, e só trabalhava na serraria. Para a época eu ganhava bastante, até sobrava dinheiro, porque não tinha nem onde gastar no quartel”. A vida em Itu não mudava. Entrava às 7h e saía às 10h30 para lanchar, voltava às 13h e saía às 17h para jantar. Quando ainda dormia no quartel, voltava às 21h e dormia. Se chegasse após o horário era punido e ficava detido. “Fiquei preso duas vezes por desobediência. Na primeira, havia ido ao dentista e extraí o dente do fundo. Saí do consultório e cuspi, e o tenente, que não gostava de mim nem eu dele, viu e me denunciou porque eu havia cuspido perto dele. Da segunda, aconteceu uma reunião e não fui. Das duas vezes fiquei detido quatro dias. Pegava meu cobertor e travesseiro e ia para a detenção, sem reclamar”. Idrico chegou a ser sorteado logo no começo para ir a Fernando de Noronha, mas pediu dispensa e foi atendido. Além de fazer trabalhos no quartel,

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ele também fazia móveis e assoalho para os capitães e coronéis. Às vezes, a encomenda era feita em Jumirim, e despachada sem frete para Itu. De vez em quando o jovem militar conseguia uma folga, pegava o trem e visitava a família. Se viesse de ônibus, movido a gasogênio, tinha de ajudar a empurrar na subida. Saía cedo de Itu, chegava ao meio-dia em Tietê e seu Gigio ia buscá-lo de cavalo, ou ele pegava a mula na estação e ia a Jumirim. Para sua mãe, era um sofrimento muito grande pensar que ele poderia realmente embarcar para o conflito que ocorria na Europa. Por isso, um dos dias mais felizes da sua vida foi quando recebeu a carteira de reservista e dispensa do Exército, das mãos do tenente – já promovido a general – que o havia mandado prender. A festa foi tão grande que ele e os amigos ficaram dois dias bêbados dormindo. “Ela ficava esperando o trem chegar, porque tinha medo de que eu fosse embora. Foi uma época muito difícil também porque eu não podia planejar nada, e isso estragou minha mocidade. Deus me livre se eu tivesse de voltar, não posso nem ver polícia por causa disso”.

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Capítulo 5

Um visionário no trabalho

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m 1940, seu Gigio não quis mais trabalhar com a serraria. Enquanto Idrico ainda estava no Exército, decidiu passar para os filhos o negócio. Angelo, o mais velho, ficou com a responsabi-

lidade de administrar a serraria, com um primo. “Meu tio Lourenço ainda tinha uma propriedade na serraria, um sobrado, que ofereceu para meu irmão comprar, em 1942, mas ele não tinha dinheiro. Nesse mesmo ano, Lourenço montou uma torrefação de café em Itapetininga, chamada Café Santo André, com seu sócio André Parducci”. Em 1947, o tio chamou os cinco sobrinhos para conversar, e propôs que montassem uma madeireira em Tietê, com Parducci. “Ele disse que nós sabíamos trabalhar, e André tinha o dinheiro. Achamos a proposta boa, e em 1947 surgia a Parducci e Uliana Indústria e Comércio de Madeira Limitada, que fabricava móveis e portas. Continuei em Jumirim com a serraria, e em Tietê eles faziam móveis. Compraram um terreno e montaram dois barracões, com tudo que havia de mais moderno na época. Até filmaram a madeireira para um documentário! Passamos também a produzir cabos de arado, que ninguém fazia na época, por isso fomos pioneiros e ganhamos muito dinheiro, vendendo para a Sorocabana (Estrada de Ferro, com cerca de 800 quilômetros), Santa Bárbara d’Oeste e Piracicaba”. Em Jumirim, Idrico ficou cortando a madeira e fazendo os arados. Também fazia móveis com jacarandá e imbuia, que ficaram famosos pela qualidade e beleza. “Eu fiz os móveis do meu casamento, cama, guarda-roupa, cômoda, penteadeira, criado-mudo, cristaleira, que existem até hoje e estão na casa do meu cunhado, em Jumirim. Durante seis meses à noite fui trabalhando nisso. Naquele tempo a gente usava palha de milho ou capim para o colchão, daí apareceu uma fibra vegetal, que uma fábrica em Tietê fez para mim. Esse colchão durou mais de 15 anos”. Sempre visionário e criativo, Idrico foi o primeiro carpinteiro a montar o telhado no chão. Ele media a casa, que antes não tinha laje, daí montava no

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chão, enumerava, levava na obra e colocava. “Eu tinha um amigo engenheiro que comprava casa com viga de madeira, só que não conseguia peça comprida com mais de 6 metros. Eu conseguia fazer de até 15 metros, emendando. Comecei isso na região, e fiquei famoso pelas minhas habilidades em Tietê, Capivari, Cerquilho, Porto Feliz”. Em 1954, mudou para Tietê para ajudar Angelo a administrar a madeireira, que naquele momento não estava dando lucro. O irmão ficou responsável pela parte administrativa, e Idrico fazia móveis, cabo de arado, portas e janelas. A empresa tinha cerca de 20 empregados. O trabalho era duro, e em 6 de janeiro de 1952, Dia de Reis, ele cortou a ponta de dois dedos. Correu então à Santa Casa, onde todas as enfermeiras eram madres religiosas. “Além de ter cortado os dedos e ficar oito dias sem poder ir à fábrica ainda levei bronca delas, porque estava trabalhando em dia santo”. Quando saiu de Jumirim, Idrico e seus irmãos entregaram a serraria para o cunhado tomar conta, dizendo para ele pagar quando pudesse. Em 1960, compraram a parte de André Parducci, e finalmente ficaram com a madeireira apenas entre os cinco irmãos. Nessa época, uma construtora de São Paulo, gerenciada por italianos, sugeriu aos Uliana que, ao invés de fazerem seus produtos por encomenda, passassem a produzir em larga escala, para que o negócio progredisse rapidamente. Eles garantiram então a compra do que fosse produzido, e a fábrica cresceu bastante e se modernizou, com a chegada de novos equipamentos como lixadeira e prensa. A madeireira fazia telhados, móveis, tacos e assoalhos e portas, e gradativamente foi tirando alguns itens da produção, ficando por fim somente com as esquadrias (portas e janelas). Idrico sempre fez questão de atender a todo mundo que o procurava na fábrica. Algumas vezes, chegava até mesmo a levar fornecedor para almoçar em sua casa. Mas um “causo” engraçado ocorrido entre os anos 60 e 70 mostra que sua generosidade tinha um certo limite. A empresa comprava madeira do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso, e era comum os madeireiros virem até

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Tietê lhe oferecer o produto. Em uma ocasião, um madeireiro apareceu na hora do almoço, bastante sujo e empoeirado por causa da viagem. “A serraria era em frente à minha casa. Fui à caixa d’água lavar a mão, ele estava embaixo na rua e veio falar comigo. Então disse: ‘estou indo almoçar, depois a gente conversa. Está servido?’. ‘Estou’. E já entrou na minha cozinha! Eu nunca o tinha visto, estava todo sujo de terra vermelha... Então falei que era melhor a gente ver a madeira logo e já disse que não queria o produto e nem deixei ele almoçar. Achei ele muito ‘confiado’, convidei por educação, e quando vi estava dentro da minha casa! Nunca mais ele voltou”. Como sempre estava com chapéu de palha para não ficar com o cabelo empoeirado, e avental para não sujar a roupa, muita gente o confundia com um empregado da madeireira. Em uma ocasião, após ajudar a descarregar um caminhão de madeira, ele recebeu um trocado do motorista, que entrou na fábrica para receber o frete. Para sua surpresa, ao entrar no escritório, foi recebido por Idrico, que estava sentado já em sua mesa! Uma outra vez, ele estava no escritório da madeireira, e havia mexido com graxa. “Lá estavam o motorista de um caminhão que tinha ido entregar madeira, dois empregados e um freguês. Entrou um frade para pedir dinheiro, pediu para todo mundo menos para mim, achando que eu era o mais pobre dali! Sempre fui assim, nunca quis ostentar que tinha dinheiro. Hoje, a pessoa mal começa a ganhar, e a primeira coisa que faz é comprar uma caminhonete cabine dupla em 48 prestações para dizer que está rico! Antigamente ninguém fazia isso”, critica. Os irmãos eram muito unidos, e tinham outros negócios juntos além da madeireira. Porém, um desentendimento com o mais velho, Angelo, culminou com sua saída da empresa em 1977. “Meu irmão tinha um filho que morava no Paraná e tomava conta de uma fazenda, da qual ele comprou uma parte. Nós também tínhamos uma fazenda juntos. Um dos meus irmãos não gostou de Angelo ter comprado aquela parte, e não com nós todos juntos.

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Pedimos então para ele vender a sua parte na madeireira. Angelo foi mais calmo e então pediu para que nosso escriturário estimasse quanto valia tudo. Quando ele disse o valor, Angelo então falou que não queria nada da herança do meu pai e da parte dele na fábrica, a gente podia dar em terra no Paraná. Pegamos nossa fazenda, vimos quantos alqueires tinha, e demos a parte dele, e ficou tudo certo”. Idrico não se ressentiu da saída do irmão mais velho da madeireira porque, na época, já gerenciava o negócio. Ele avalia que foi a melhor solução, porque Angelo queria se dedicar aos negócios da sua fazenda com o filho. “Ou é tudo de Deus ou do Diabo. Ele estava trabalhando para nós e para o filho, e isso não ia dar certo. Mas não ficou ressentimento nenhum. Quando ele estava fora, nesse mesmo tempo, cada um construiu sua casa, e depois demos um dos nossos terrenos para ele construir a casa dele. A amizade era maior ainda porque não éramos mais sócios”. Com a idade, os irmãos foram morrendo. Primeiro Angelo, depois Osvaldo, Alcides e Clodoaldo. “Sinto muita falta deles. Trabalhávamos juntos, éramos vizinhos, um vivia na casa do outro. Tínhamos boa convivência, que acabou”. O trabalho árduo, para os cinco irmãos Uliana, foi a forma escolhida para conseguirem ter e dar conforto as suas famílias. Para isso, no sábado após o almoço, ou mesmo no domingo e feriados, com a madeireira fechada, eles faziam acabamento de assoalho nas casas. “Era meados da década de 50, e a gente fazia um ‘extra’ para complementar o orçamento e conseguir comprar um carro cada um. Quando conseguimos, íamos passear com a família em Ribeirão Preto, Campinas, Piracicaba, Sorocaba... Sempre fui vaidoso, e queria ter poder sobre a minha situação financeira. Eu queria ser independente e viver às minhas custas. Hoje eu vivo bem, do fruto do meu trabalho, e ainda sobra. Era esse o poder que eu queria”. O amor pela empresa era tanto que, após o almoço, Idrico pegava uma tábua e ia descansar um pouco na fábrica, antes de retornar ao trabalho. Aos

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sábados e domingos, mesmo com a madeireira fechada, ia sempre dar uma olhada ver se tudo estava certo. Em 1978, a madeireira saiu do centro da cidade para a Rodovia Cornélio Pires, onde se encontra até hoje, por causa das mudanças de legislação, que proibiram aquele tipo de atividade no meio da cidade. Ainda assim, ele pegava o carro, almoçava e voltava para descansar na fábrica, e não em casa. Idrico sempre foi favorável às inovações tecnológicas e de gerenciamento dentro da madeireira, mas ao mesmo tempo nunca se deixou levar facilmente por ideias que não lhe parecessem factíveis de serem implantadas. Um fato ilustra bem esse seu pensamento. Uma vez, quando a madeireira não estava dando lucro, foi contratada uma empresa espanhola para dar uma consultoria e melhorar seu desempenho. “O grupo chegou, cada um com sua malinha, puxando igual a um cachorrinho. Cada um que chegava sentava em uma cadeira e colocava a mala em outra. Perguntei: ‘Para que serve uma cadeira? Tirem as malas e deixem o povo sentar nas cadeiras’. Eles então tiraram todas as malas”. Os espanhóis então começaram a dizer o que iriam fazer com a fábrica, e disseram que, com o mesmo número de empregados, iriam aumentar a produção em torno de 30%. Idrico só escutava e observava que um deles, o tempo todo, consumia café e, a cada garrafa que acabava, mandava fazer mais. “Então o que estava falando perguntou se eu estava duvidando daquilo, e disse que sim, e quis saber em quanto tempo eles iriam mostrar resultado. Ele respondeu que em 30 dias. Então fiz a contraproposta: se em 60 dias aumentarem a venda em 20% eu dou um carro de valor médio, uns R$ 40 mil, para você. Pode vir buscar”. Segundo Idrico, eles riscaram o chão, fizeram layout do que seria implantado, não produziram nada do que me prometeram e sumiram. “Isso faz uns 20 anos, e eles não fizeram a fábrica produzir nada. O que eles queriam fazer dá certo para montar carro, mas não para trabalhar com madeira”.

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Com a estabilidade financeira, Idrico pôde desfrutar de um dos sonhos que tinha: viajar. A primeira viagem internacional, aos 60 anos, foi para Bariloche, e também a que mais o marcou, porque viu a neve. Depois, visitou Holanda, Espanha, Itália, Portugal, Alemanha, França, Suíça, Bélgica, Áustria, Estados Unidos e Oriente Médio. Nas viagens, o que mais gostava era da beleza natural dos locais, e também dos museus. Ele se admirou bastante com a beleza das cidades espanholas, e sempre viajou de excursão, para não haver problemas por causa do idioma. Faltando 20 dias antes da primeira viagem à Europa, Idrico estava trabalhando na fábrica quando cortou um dedo. O médico da Santa Casa que o atendeu disse que ele havia cortado metade do dedo, deu os pontos e fez o curativo. O corte não ficaria bom antes da viagem, mas ele embarcou assim mesmo. “Tinha um médico na excursão que olhava todos os dias o dedo. Passados os 34 dias eu estava novo, e tinha até tirado o curativo”. Mas antes da primeira viagem internacional ele já havia andado de avião, em julho de 76, quando foi para Imperatriz do Maranhão, onde ficou durante oito dias para comprar madeira, porque a matéria-prima de Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso havia acabado. Idrico então colocou terno e gravata para pegar o avião em Congonhas. Ao chegar lá, fazia um calor infernal, e ele foi direto do aeroporto visitar seu possível fornecedor. “Cheguei na fábrica todo agasalhado e eles em mangas de camisa. Nunca mais usei terno, parecia que estava soprando um calor de escapamento de caminhão na gente”.

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CapĂ­tulo 6

O amor da sua vida

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m dos planos deixados de lado durante o quartel foi o de casar. Durante esse período, ele “namorou” duas ou três moças, mas nada sério. Aquela época, o significado de namorar era bastante diferente dos dias atuais. O namoro era mais uma conversa, que poderia ou não evoluir para algo mais sério. Quando saiu do quartel, aos 25 anos, Idrico decidiu que já era hora de procurar uma esposa, afinal, não queria ficar “galo de São Roque”, ou seja, solteiro. Idrico não lembra exatamente o dia em que viu sua mulher Maria Alpina Fávero pela primeira vez, mas tem uma certeza absoluta. “Quando a conheci, foi o dia mais feliz da minha vida”. Ele já conhecia seus pais, Francisco Fávero e Santa Cinto Fávero, e inclusive havia aprendido a dançar nas festas com Leonor, a irmã mais velha de dona Maria. “Eu a vi num baile. Perguntei quem era aquela moça bonita, e depois descobri que já era amigo dos irmãos dela. Fomos apresentados, conversamos uns dois domingos, e no primeiro dia que a levei para casa encontrei meu sogro pelo caminho de volta. Ele já me conhecia, mas não sabia que eu estava interessado na filha dele, e ainda me perguntou se estava perdido ou tinha levado alguma ‘gatinha’ para casa. No dia seguinte ela não quis mais conversar comigo, porque já tinha sido noiva de um moço de Laranjal, que tinha terminado com ela. Mas a família dela – eram 12 irmãos – ficou do meu lado, pegou no seu pé e disse que ela não devia perder um moço bom como eu. Meu sogro acreditou na opinião dos filhos, então namoramos dois anos e já casamos”. Ele andava uns seis quilômetros – ida e volta – todo sábado e domingo para namorar a futura esposa. O namoro era na porta da casa de Maria, porque naquele tempo, enquanto não se conversasse com o pai da moça fazendo o “pedido oficial”, não podia entrar. O remédio era ficar duas a três horas conversando, apenas na porta. Já pensando em casamento, Idrico foi logo fazer o pedido a Francisco, que confiava muito nele, ao ponto de deixar a filha viajar com o sogro e a sogra antes do casamento, realizado em 26 de julho de 1947.

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Como todas as cerimônias da época em Jumirim, a festa foi um presente do pai da noiva, bem simples, com doce de padaria, de abóbora, de batata, suspiro, rosca, bolacha e bebida Tubaína Schincariol, seguida de um baile. Não havia lua de mel, e depois da festa os recém-casados já iam para casa. “Fomos morar em uma casa na serraria, com um quarto, sala, cozinha e despensa, toda ‘forradinha’. Tinha um quintal com pomarzinho, e a gente criava galinhas. Maria cuidava de tudo, e dali um ano já tivemos nosso primeiro filho, Kiko (Luiz Francisco), que nasceu em casa, com a parteira. O umbigo dele nós cortamos e ficou lá. Já Antonio Carlos e Roberto nasceram no hospital”. Idrico se diz realizado com a família, que sempre lhe deu somente alegrias. Pouco afeito a grandes comemorações de bodas, ele recorda que, quando fez 60 anos de casamento, reuniu os filhos e netos e todos foram à Pousada do Rio Quente, em Caldas Novas, Goiás, para celebrar a data. “Fizemos camisetas e à noite fomos à missa. A guia então contou ao padre sobre nosso aniversário, e ele nos chamou ao altar e fez nosso casamento. Depois, o hotel nos deu um bolo e fizemos uma festinha. Foi tudo muito bonito”.

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Capítulo 7

Sete décadas com Idrico

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omo era conviver com Idrico no começo do casamento? Afinal, nos tempos antigos, o namoro era apenas conversar e, quando muito, pegar na mão. A convivência durante o namoro era bas-

tante restrita, e sempre o casal estava acompanhado de outra pessoa, geralmente uma irmã ou amiga da moça. Aos 91 anos, dona Maria conta que Idrico sempre foi bastante enérgico, “queria as coisas bem direitas”. Quando casaram, ele trabalhava na serraria, e ela em casa. “Ele não mudou nada até hoje. Enérgico, querendo a coisa certa, mas sempre muito bonzinho comigo, nunca me proibiu de nada, não implicou com roupa, apesar de ser um pouquinho ciumento”, revela. Dona Maria lembra de seu casamento com saudades. A festa foi bem simples, e seu vestido de noiva depois se transformou em vários vestidinhos paras as sobrinhas pequenas. “Tinha o baile e quem fazia a festa era o pai da noiva, era um acontecimento”. Infelizmente não há fotos do dia, porque “não se usava, era caro e nem tinha fotógrafo em Jumirim”. Para ela, foi tranquilo se acostumar à nova vida. Sem empregada, o serviço era grande, mas dona Maria não reclamava. “A gente era acostumada desde cedo a trabalhar. Eu morava perto da minha mãe, que me ajudava se precisasse”. A chegada dos filhos foi uma alegria para o casal. “Quando nasceu Kiko Idrico estava todo empolgado, ele sempre gostou de criança. Eu sempre fui firme na criação dos meninos, ele podia confiar em mim totalmente e me ajudava com os três. Não chegou a trocar fralda, mas se precisasse ir ao mercado ou comprar roupinhas para eles fazia de muito boa vontade”, afirma. Em tempos que o dinheiro não sobrava para grandes luxos, dona Maria diz que o casal sempre se esforçou para dar o que podia aos filhos, e que eles entendiam quando não era possível ganhar algo. Além disso, Idrico usava suas habilidades como marceneiro para fazer brinquedos de madeira aos meninos. Assim como o pai Gigio, dona Maria fala que Idrico nunca foi de excessivas demonstrações de afeto, como beijos e abraços, mas sempre foi bastante

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amoroso. Mas diferente dele, que almoçava apenas com sua mãe Nina, Idrico fazia questão de todo mundo na mesa, “sempre na hora certa”. Dona Maria também cozinhava, e não foi difícil agradar ao marido, que sempre gostou de comer tudo. “Tem boca boa”. Mas o principal, até hoje, é sempre ter uma sobremesa. “Adora doce, tendo açúcar qualquer um está bom. Em casa tínhamos frutas, eu fazia doce de laranja, doce de leite, ele adorava”. Apesar de ser um “bom prato”, Idrico nunca gostou que se desperdiçasse comida em casa. “Sempre avisei meus filhos para tirar exatamente o que ia comer para não jogar comida fora. Até hoje prefiro deitar para descansar com um pouquinho de fome do que me sentindo mal por ter comido demais”. Dona Maria admite que é mais caseira que o marido, mas sempre o acompanhou quando podia em suas viagens, inclusive para fora do Brasil. Só não o fez quando os filhos eram pequenos e Idrico viajava a negócios. “Ele sempre prezou a família. Quando não tínhamos muito dinheiro a gente fazia passeios curtos, reuníamos uma turma, com as crianças, um fazia uma coisa, outro fazia outra, sentava todo mundo embaixo de uma árvore e comia. Não precisava de luxo, sempre fomos simples, nada de esbanjar, e a gente se divertia muito”. Ele também gostava de ir bastante ao cinema, e quando se casaram ela passou a acompanhá-lo às sessões. “Quando a gente namorava ele ia sozinho, mas depois de casados eu ia junto. Para dizer a verdade não gostava muito, mas o acompanhava. Depois que as crianças nasceram ficou mais difícil sair”. Tirando essas pequenas diferenças, ela afirma que o casal sempre combinou muito bem. “Claro que tivemos nossas discussões em 70 anos de casados, mas resolvíamos tudo conversando”. Hoje eles não saem muito, mas almoçam e jantam juntos todos os dias, mantendo uma rotina de horários que vem desde o começo do casamento. E qual o segredo para a longevidade da união? “Amor e muita paciência. A gente levava sempre tudo para o lado bom, e espero que meus filhos continuem seguindo nosso exemplo”.

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Capítulo 8

Superações

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m 1992, Idrico passou por um susto muito grande. Ele teve meningite, e ficou internado 13 dias no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Tudo começou com uma infecção no ouvido, que o

obrigou a colocar um dreno. Ele lembra de ir ao consultório médico e pedir para tirar o dreno, que o estava incomodando, e o profissional brincou “tem de tirar o presidente (Fernando Collor de Melo, que sofreu um impeachment na época), deixe o dreno aí”. Depois o dreno começou a sair sozinho, e então o médico o tirou. Quando isso aconteceu, o líquido passou a ficar no ouvido. Idrico começou a sentir muita dor de cabeça. Foi ao médico em Tietê, que puncionou sua coluna e viu que o líquido estava muito escuro. Ele foi imediatamente internado. Porém, não melhorava, e então o sócio de Kiko, José Antonio Baggio, sugeriu que o levassem para a capital paulista. A situação era tão grave que pediram ao filho Roberto, que estava na Europa, para retornar o mais rápido possível. Idrico ficou cinco dias na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e depois no isolamento. Kiko conta que o pai delirava, achava que tinha formiga no quarto. Dona Maria ia e voltava todos os dias de Tietê para visitá-lo, porque não podia ficar no hospital com ele. Durante todo esse tempo, os filhos se revezavam, mas Antonio Carlos não saiu do hospital nem um minuto. “Depois de cinco dias o médico me disse para ir para casa, tomar um banho e fazer a barba, que ele ia ficar bem”, recorda, emocionado. Idrico acredita que a infecção tenha começado num sábado em que foi à noite para São Paulo, numa excursão de ônibus, ver balé russo no gelo, e estava muito frio. No dia seguinte ele sentiu o ouvido inflamado, mas mesmo assim foi cedo ao sítio buscar frutas. “Eu estava bem, mas depois de almoçar fiquei com muita dor de cabeça e o estômago revirado. Tomei então um comprimido para ver se melhorava. O médico me disse que vomitei muito e só acordei cinco dias depois. Foi como se eu estivesse morto, saí de Tietê em coma. O médico aqui fez o que pôde, mas não havia muito recurso, então fui transferido. Quando acordei, perguntei quem eu era. Eu me livrei da morte

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porque ainda tinha muita coisa para fazer. Fiquei bastante fraco, demorei a me recuperar, mas depois o susto passou e não pensei mais nisso”. Passados cinco anos, Idrico foi pego de surpresa com um problema de visão grave. Ele estava um dia na fábrica, na máquina, quando um rebite atingiu seu olho. Idrico então foi conferir a madeira, e percebeu que a imagem sumia. Foi ao médico e falou sobre o incidente, que lhe disse não ter nenhum problema. Porém, 15 dias depois, ele retornou, falou sobre um “risquinho” em sua visão, e foi informado de que havia sofrido um derrame na retina. “Questionei por que ele não havia feito nada antes, mas ele disse que na outra consulta não havia esse problema, e daí me deu uma injeção, que não mudou nada. Primeiro perdi a vista direita. Tentaram fazer transplante, mas não funcionou. Fui aos Estados Unidos, à Espanha, foi um pesadelo, porque não havia cura”. Hoje ele só tem a visão periférica e, apesar do problema ter acontecido há duas décadas, ainda não se acostumou à situação. “Gostaria de ver um galho de árvore balançar, a cor dele, a natureza... Mas a gente tem de aceitar. No começo pensei que não ia aguentar, mas o tempo vai passando e a gente aceita. Tudo depende da pessoa. Se ela tem o que pensar, esse desespero passa. Também tive muito apoio da família, e graças a Deus gosto de produzir até hoje. Por isso falo que se tenho uma ideia deixe eu fazer, mesmo que dê prejuízo”. Com determinação, Idrico aprendeu a fazer as coisas com pouca acuidade visual. Até hoje ele consegue colocar no papel as ideias que tem para novos produtos da madeireira. “Ensino a desenhar, mas depois não consigo enxergar se ficou certo”. A neta Lis Uliana, filha de Antonio Carlos e responsável pela produção e controle de qualidade da Madeireira Uliana, explica como ele confere o produto criado. “Sua criatividade é infinita. Ele sempre tem uma ideia para uma porta nova, ou batente, ou um jeito diferente de produzir algo. Depois que fica pronto, ele pergunta a mesma coisa a várias pessoas, para conferir se realmente saiu como ele queria, e checa o resultado com as mãos. Às vezes sai do jeito que ele quer logo de primeira, em outras precisamos dar uma melhoradinha”.

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CapĂ­tulo 9

Exemplo para os filhos

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er filho de Idrico Uliana é uma honra. Esse é o sentimento unânime de Luiz Francisco (Kiko), 69 anos, Antonio Carlos, 65, e Roberto, 61. Para eles, a imagem do pai sempre dedicado à família e ao trabalho é um exemplo a ser seguido. Os três ainda ouvem seus conselhos, principalmente no que se refere a negócios. Kiko, junto do sócio e primo José Antonio Baggio, comanda desde 1970 a Indusparquet, empresa líder no segmento de pisos de madeiras maciços. Antonio Carlos, com o sócio e primo José Arnaldo Bertola Uliana, tomou a frente da Madeireira Uliana, a “menina dos olhos” de Idrico; e Roberto é proprietário da Ulitintas, desde 1999. Kiko recorda que o pai sempre foi bastante enérgico com os filhos, principalmente em relação à questão de horário, mas ao mesmo tempo era muito bondoso com a família. “Ele queria todo mundo à mesa no horário. Ele sentava primeiro, depois eu ao seu lado direito, e até hoje é assim”. Manter o respeito dos filhos sempre foi importante para Idrico. Isso se refletia em pequenas atitudes, como jamais fumar na frente deles. “Eu até comprava os cigarros para ele, que não nos deixava vê-lo fumando para não dar esse exemplo. Na mesa, ele queria respeito, tanto que nunca existiu uma discussão entre os filhos na hora das refeições. Ele era o soberano”. Mesmo sendo um empresário de sucesso, Kiko não dispensa até hoje a opinião do pai tanto em seus negócios profissionais quanto pessoais. “Quando fui comprar meu último carro ele comentou: ‘mas vai gastar com carro de novo’? Daí eu disse que esse é meu único gosto, que só de olhar na garagem é uma satisfação. Então ele concordou: ‘está certo’”. Nos negócios, Kiko gosta de trocar ideias sobre as inovações da Indusparquet, como quando vai comprar uma máquina nova, por exemplo. “Ele tem muita visão, sempre foi assim. Nem sempre concordamos, claro, mas discuto tudo com ele. Na fazenda em que somos sócios converso sobre todo investimento que faço. Meu pai é um homem muito esperto, ouve rádio, as notícias, está muito bem informado sobre a economia do país, acompanha tudo. Em

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uma discussão você tem de pensar no que falar, porque ele tem uma memória incrível e lembra amanhã o que foi dito hoje”, destaca. Kiko se orgulha em dizer que se espelha em Idrico no seu negócio, por gostar muito de criar produtos na fábrica, que começou por ideia de seu pai. Mas seu gênio é diferente do dele. “Eu sou mais maleável”, compara. A rigidez de Idrico em relação à educação dos filhos nunca se manifestou de forma física. “Nunca tomei um tapa do meu pai, mas bastava seu olhar e já sabia que ele não gostava do que eu estava fazendo, e parava”. Talvez por saber-se rígido na medida certa, Idrico sempre confiou em seus filhos, e colocou neles a responsabilidade por seus atos como adultos. “Ele ajudava, claro, mas a gente tinha de se virar. Com as netas, ele sempre foi mais maleável. Ele sempre deixava elas fazerem o que queriam”. Quando criança, junto dos irmãos e primos, Kiko ficava em volta da fábrica em seu tempo livre. Nas férias, faziam banco de igreja, banquinho, grade para colocar telha em cima, carrinhos. “Meu pai nos dava as coisas mais simples para fazer. Daí ele nos pagava um valor, e com esse dinheiro eu comprava o que queria. Eu ganhava bem, aos 16, 17 anos já viajava por minha conta”. Mesmo quando voltava às aulas, Kiko costumava trabalhar na fábrica após a escola, “tudo para ganhar dinheiro”. Na concepção de Idrico, estudar era obrigação dos filhos, que nunca tiveram professor particular. Um ano Kiko repetiu. Apesar de rígido, Idrico não ficou bravo, apenas mandou ele tomar juízo, e isso não se repetiu mais. Após sair do antigo colegial, Kiko foi estudar Contabilidade na Escola de Comércio. Apesar de ser quieto, uma vez resolveu “entrar na onda dos colegas” e participar de uma “rebelião” para não ter aula. “Colocamos fogo na classe, e chamaram meu pai na diretoria. Ele disse que não ia falar nada para mim e me fez prometer não fazer mais esse tipo de coisa. Meu pai dava um voto de confiança para a gente, mas se fizéssemos algo errado uma segunda vez sabíamos que sua reação seria outra, então não fazíamos”.

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Kiko sempre viajou bastante a trabalho com o pai. Ele afirma que Idrico é muito respeitado no ramo das empresas madeireiras, e também entre os clientes e fornecedores. Já nos momentos de lazer, é muito extrovertido, fazendo amizade facilmente com desconhecidos, contando piadas e liderando o grupo. “Ele foi para a Europa com minha esposa Eurides, e ficou amigo do grupo. Depois que voltou, o pessoal da viagem vinha a Tietê se reunir”. Por isso, Kiko garante que o pai não é tão sério quanto aparenta no primeiro momento. “Ele é brincalhão, faz piada, relembra seus ‘causos’ da infância e adolescência, muitas histórias que realmente aconteceram, e o jeito com que conta esses fatos atrai as pessoas”. Por causa do trabalho e de viagens, Kiko hoje não consegue ver o pai todos os dias. Mas sempre passa em sua casa antes de qualquer viagem para avisá-lo que estará fora, e que os irmãos ficarão cuidando dele. “No fim de semana sempre vou, daí almoçamos na casa dele ou na minha chácara. Queria ir mais, mas nossos horários divergem. Eu chego em casa por volta das 19h, e meu neto todo dia está lá. Daí, quando ele vai embora umas 20h, meu pai já está deitado. Minha esposa passa mais vezes lá durante a semana, leva o doce que ele gosta, que diz que ela é a filha que ele não teve”. Para Kiko, o momento em que seu pai foi mais importante em sua vida aconteceu quando ele o ajudou e ao primo José Antonio a montarem a Indusparquet, fundada em 12 de janeiro de 1970. Ao mesmo tempo em que trabalhava na madeireira, Idrico teve a ideia de fazer o parquet, aproveitando as noites, os finais de semana e feriados, e passou a vender o novo produto para as casas de Tietê, Capivari, Porto Feliz e Tatuí. “Fazia e vendia tudo. Então chamei Kiko e falei para ele parar de trabalhar com tecido, e ajudei ele e o primo a montarem uma fábrica. Colocamos um galpão pequeno em um terreno, e a Indusparquet começou assim. Eles trabalhavam todos os dias, de segunda à segunda. Um dia, o madeireiro que trazia matéria-prima me falou: ‘Idrico, você está vendo seu filho e seu sobrinho? Eles vão ter a maior fábrica

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de madeira de parquet do Brasil’. E isso aconteceu mesmo, hoje é conhecida até no exterior! Se eu não tivesse dado aquele início a Indusparquet não existiria. Até hoje há pisos desenhados por mim em prédios antigos”, orgulha-se. Kiko confirma a história. “Não tínhamos dinheiro para comprar nada, então ele financiou uma máquina e um caminhão de madeira para matéria-prima, e disse que ia vender nosso produto na madeireira, já que ainda não tínhamos nome no mercado. Ele e meu tio Alcides ajudavam a gente. Meu pai começou fazendo mosaico, criando um desenho que foi muito sucesso na época. Então me disse para trabalhar com parquet, que eu iria ganhar dinheiro. ‘Vai ser seu sucesso’, previu. Começamos a trabalhar eu, meu sócio e um funcionário. Ficou marcado em minha memória o dia em que ele disse ‘estou financiando uma fábrica, mas você vai me pagar, não estou dando de graça’. Então fez esse empréstimo, que eu e meu sócio pagamos em um ano”. O começo foi de bastante trabalho duro. Kiko, José Antonio e o funcionário faziam o parquet durante a semana, e no sábado e domingo iam montar nas casas em Piracicaba, Campinas e Sorocaba, às vezes São Paulo. Os irmãos e primos iam ajudá-los também, e durante quase um ano essa foi a forma de trabalho. “Era de segunda a segunda, de manhã até à noite. Meu pai chegou a me falar para ir mais devagar, porque estávamos trabalhando muito, e eu dizia que trabalhar não mata ninguém”. Para o empresário, entretanto, mais importante que o empréstimo para o início da fábrica, o que mais ajudou no sucesso da Indusparquet foi a criação do produto. “Foi isso que valeu e fez virar o que a empresa é atualmente. Até hoje vou à máquina pessoalmente e ainda faço aquele produto que meu pai ensinou. Ele foi um espelho para mim, devo muito aos seus ensinamentos, é meu verdadeiro ídolo”. Segundo Kiko, o pai sempre foi um líder nato, não apenas em seu núcleo, mas perante toda a família. Ele fala que tanto os irmãos de Idrico quanto os sobrinhos sempre respeitaram muito suas opiniões e ensinamentos, além de

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seu espírito de iniciativa. “Tudo partia dele. Essa é a visão que tenho e sempre terei dele. Aprendi muito com ele, por tudo que fez, faz e ainda vai fazer”.

ef Antonio Carlos é o filho que mais convive com o pai, desde o início da década de 80, quando junto do primo e sócio José Arnaldo Bertola Uliana passou a comandar a Madeireira Uliana. Antes de chegar ao negócio familiar, ele fez o curso de Ciências da Computação na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e trabalhou nas empresas Facon e Vigor, em São Paulo. Nessa última, ficou um ano e meio e, como conta, “era molecão, tinha 27 anos e feito carreira muito rápido”. “Meu pai queria que eu voltasse para Tietê, mas não demonstrava. Um dia cheguei dizendo que tinha pedido demissão e estava voltando para casa. Meu primo já trabalhava na madeireira, temos a mesma idade, somos muito próximos, é a pessoa com quem mais ‘briguei’ até hoje, então comecei a trabalhar com ele e meu pai”. O ano era 1980. Aos poucos, Idrico foi passando o comando da fábrica para o filho do meio e José Arnaldo. Antonio Carlos avalia que o pai usou de muita sabedoria e tranquilidade para fazer essa transição, preparando os futuros administradores da empresa, que tinha quatro sócios. Idrico então optou por colocar um herdeiro de cada irmão: Antonio Carlos; José Arnaldo, filho de Osvaldo; Sérgio, filho de Alcides; e Moacir, filho de Clodoaldo. Nessa época, os irmãos de Antonio Carlos já tinham cada um seu negócio próprio, então coube a ele assumir a parte da empresa que era da família. “A fábrica estava em meu nome e dos meus irmãos. Estipulou-se um preço, eu comprei a parte de Kiko e Roberto. José Arnaldo tinha um irmão que também trabalhava na madeireira. Meu pai achou que não daria certo os dois irmãos trabalhando juntos, então meu sócio comprou a parte do seu irmão. Começamos a trabalhar na fábrica, meu pai continuou e foi passando a parte administrativa devagar

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para a gente. Nessa transição houve muita sabedoria, e várias outras famílias da cidade fizeram ou tentaram fazer isso da mesma forma”. Ele afirma que foi fácil entrar na produção da madeireira, já que havia praticamente “nascido” dentro da fábrica, assim como seus irmãos e primos. Desde muito cedo ele aprendeu a trabalhar com madeira, fazendo seus próprios carrinhos e até mesmo um caminhãozinho, entre outros brinquedos. “Aos cinco anos eu já ficava lá. Lembro que tinha uma serra de fita (máquina cuja fita de serra se movimenta continuamente, podendo realizar quaisquer tipos de cortes retos ou irregulares, tais como círculos ou ondulações), e quando ela estava virando a gente colocava uma ‘ripinha’ e cortava”, descreve. Antonio Carlos também fazia pequenos trabalhos na fábrica para ganhar um “dinheirinho” e comprar suas coisas. Aos nove anos, ele conseguiu uma bicicleta e uma bola de couro. “Meu pai nunca nos deu nada de mão beijada, ele nos ensinou a conseguir o que queremos. Nas férias de julho, com 7, 8, 9 anos, eu ficava uns dez dias na fábrica. Ele cortava madeira, eu pegava os pedaços pequenos e colocava em uma pilha. Ele ia ao escritório, eu ia junto. Uma coisa bacana é que ele ensinava a importância do trabalho de um modo recreativo, e não cansativo. Meu pai conseguia me dar responsabilidade sem exigir, então eu agradeço muito a ele por ter passado isso para mim”. Ele também conta que o produto principal da madeireira eram portas, mas que quando havia uma crise passava a produzir cocho para galinha e grade para telha. “Ele se virava e botava a fábrica para trabalhar, e nos dava a oportunidade de montar essas coisas. A gente trabalhava um pouco, se divertia e ainda ganhava um dinheirinho”. Sempre bastante dedicado à família, nos finais de semana Idrico colocava a esposa e as crianças no carro e fazia pequenas viagens a cidades próximas, como nas festas de frutas de Jundiaí e Louveira. “Minha mãe fazia comida, a gente parava na estrada, numa sombra, almoçava e ia para a festa. Também íamos visitar os parentes”.

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Para Antonio Carlos, uma característica marcante do pai é a confiança que sempre teve nos filhos. “Fui fazer cursinho em 1971, em São Paulo, no Anglo da Rua Tamandaré. Peguei o ônibus, fiz a inscrição e arrumei pensão, tudo sozinho. Voltei, disse quando ia custar, ele confiou em mim e falou ‘pode fazer’. Hoje quando a pessoa sai de casa vão pai, mãe, avó, cachorro, todo mundo para ver aonde vai morar, levam geladeira, enchem de comida, é uma redoma”, compara. Ele destaca que o pai deu bastante apoio à sua decisão, porque foi o primeiro filho a ir a uma faculdade. Antonio Carlos mudou-se para a capital com um amigo de Tietê, e vinha para casa a cada 20 dias, ou um mês, porque todo final de semana tinha prova e aula. “Ninguém ia lá me paparicar. Eu tinha um casal de tios em São Caetano do Sul, que depois das provas de domingo me pegava algumas vezes para almoçar”. A independência era total. Em uma ocasião, ele estava indo ao cinema e encontrou um amigo, que falou sobre a inscrição para o vestibular da UnB (Universidade de Brasília). Antonio Carlos esqueceu o filme, pegou o ônibus para Tietê, chegou meia-noite em casa, para surpresa do pai, que perguntou o que havia acontecido. “Pedi o dinheiro, ele falou onde estava e que podia pegar. Voltei para São Paulo, peguei ônibus, fui para Brasília, tudo sozinho. Quando passei na Unicamp mudei para uma república, e levei algumas coisas velhas de casa que não usavam mais. Sempre tomei as decisões sozinho, e ele sabia que podia confiar em mim”. Para ele, Idrico ensinou aos filhos apenas uma coisa “ruim”. “Meu pai nos ensinou a julgar as pessoas segundo seu próprio caráter. Porém, nem sempre a pessoa é como a gente. Mesmo assim, ele dá um voto de confiança a elas”. Talvez seja essa característica que tenha feito de Idrico um homem disposto a ajudar os outros. “Ele sempre foi muito acolhedor. Recebeu em casa primos que moravam em Jumirim e vinham estudar em Tietê. Na minha casa sempre tinha gente, eram raríssimos os dias que não tinha uma pessoa al-

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moçando lá durante a semana, fosse um amigo, um parente, um cliente, um fornecedor. A casa dele sempre foi cheia, e hoje a minha vive assim”.

ef O filho mais novo de Idrico, Roberto, também participou ativamente das brincadeiras na fábrica e, diferente da lenda que fala que os caçulas são mimados, não escapou de trabalhar para ganhar seu dinheiro extra e comprar suas coisas. “Desde meus 10, 11 anos, se eu quisesse trocar a bicicleta ou comprar um aparelho de som, precisava trabalhar um pouco na madeireira. Eu trabalhava cinco, seis semanas, juntava o dinheiro, comprava o que queria e aí parava um tempo. Essa renda era algo extra além do que já ganhava do meu pai normalmente, e fiz isso praticamente todas as minhas férias, até sair morar fora e fazer cursinho. Meu pai ia fazendo as coisas e a gente observando, e assim fomos aprendendo naturalmente como funcionava a empresa”. Roberto guarda dessa época uma memória que marcou sua vida pelo senso de justiça do pai. Aos 16 anos ele estava trabalhando para comprar um aparelho novo de som da Phillips. Porém, num acidente de trabalho, acabou cortando a pontinha do dedo. “Tive de parar de trabalhar, e fui ajudar Kiko na sua empresa. Com isso, não pude juntar o dinheiro. Um dia, meu pai chegou em casa com o aparelho que eu queria, e me deu de presente”. Outra memória marcante foi quando, aos 6 anos, ganhou um caminhão de madeira de Natal, feito pelo pai. “Toda vez que sinto cheiro de tinta a óleo lembro dele pintando o caminhão na véspera de Natal, para eu poder brincar no outro dia”, emociona-se. Quando Idrico inventava alguma coisa para fazer, colocava logo as mãos à obra. Roberto conta que uma vez ele fez um aquário com roda d’água e colocou papel celofane colorido. “A gente ficava ‘viajando’ de tão lindo que ficou. A dedicação para fazer aquilo foi demais, eu era criança e nunca esqueci”.

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Diferente de Kiko e Antonio Carlos, Roberto lembra da única vez que Idrico levantou a mão para um filho. “Estava no curso primário e odiava ir ao dentista da escola, aqueles aparelhos para mim eram a morte, eu preferia a forca! Então no dia do dentista falei para minha mãe que não queria ir à escola, mas não disse a razão. Fiquei teimando e brigando com ela, até que meu pai chegou da madeireira e me deu um ‘peteleco’, porque eu estava respondendo a minha mãe. Mas foi a única vez, porque bastava ele olhar e eu já parava o que estava fazendo de errado”. Roberto também foi a São Paulo sozinho para se matricular no cursinho do Anglo, e montou uma república com dois amigos de Tietê. Da mesma maneira independente, também se organizou sozinho quando foi estudar Engenharia Civil na Unicamp. “Acho que meu pai nunca foi à minha república ver se eu estava morando bem. Ele confiava em todos em termos financeiros, às vezes até queria dar dinheiro a mais do que o necessário e a gente recusava. Aliás, ele sempre deu mais até do que precisava”. Quando se formou em 1980, Roberto passou a construir casas para vender, com um sócio. Ambos os pais deram terrenos aos jovens empreiteiros. “Meu pai me deu oito lotes. A gente construía, vendia, daí comparava material. Eu ainda morava com meus pais, só casei em 1983. A gente sempre tinha bastante material para construção, cimento, ferro, areia, e um tempo depois o governo parou com os financiamentos, e nossa firma quase quebrou”. Quando se viram nessa situação, os sócios resolveram comercializar seu estoque, porque não tinham mais tantas construções, e acabaram criando a Ulimax, que produzia esquadrias especiais para as obras, além de vender tinta. “Em 1997 a gente tinha mudado, e falamos para nossas mulheres ficarem com a tinta, e nós na esquadria. Esse acordo funcionou até sete anos atrás, quando comprei a parte da tinta do meu sócio e depois saí da Ulimax. Eu consultava meu pai para ver o que ele achava. Ele foi um bom conselheiro, na época da decisão de sair da sociedade me deu apoio, dizendo que eu estava no caminho

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certo. Ele participa ativamente das decisões dos filhos, sempre pergunto o que ele acha das minhas coisas, ainda existe essa troca entre a gente”. Com a dificuldade dos pais para sair atualmente, Roberto costuma vê-los menos do que antes, mas ainda assim os encontra um dia da semana e depois no sábado e domingo. “Sempre um de nós leva meus pais ao médico em São Paulo, nunca um motorista fez isso. Meu pai às vezes fica impaciente enquanto espera a consulta, então a gente fica conversando e ele nem sente o tempo passar. Às vezes conversamos mais no consultório do que em casa! Já aconteceu de sairmos daqui com ele nervoso, sério, e na volta estava outro. Sinto que a conversa faz isso”. Roberto faz coro aos irmãos, que costumam brincar que o pai é bastante fácil de lidar, desde que “seja tudo do jeito dele”. Mas ele ressalta que isso acontece porque Idrico sabe que o jeito dele é o certo, não por teimosia, mas por acreditar no que fala. E lembra uma passagem que mostra bem isso. “Uma vez, em 1982, ele ganhou um alambique caseiro de fazer cachaça, de um amigo de Capivari. Ele me chamou e disse que íamos fazer pinga. Falou que tinha um amigo em Laranjal Paulista, e que tínhamos de ir até lá buscar a garapa para fazer a cachaça porque para fermentar daria muito trabalho, e dessa maneira era só destilar. Pegamos o caminhão, fui dirigindo, e buscamos um tambor de 100 litros de garapa em um lugar que ficava a uns 40 quilômetros para frente de Laranjal, em uma estrada de terra. Voltamos, fomos para seu sítio, deixamos para ferver no gás. No final, isso rendeu dois litros de pinga”, ri. Mas a aventura não foi só isso. “Perdemos o sábado, o domingo, andamos uns 100 quilômetros de caminhão, mas ele ficou satisfeito. Ainda por cima no meio do caminho teve um acidente na estrada, e a Polícia mandou a gente parar achando que era um assalto! Essa pinga ficou mais cara que o melhor uísque escocês, e nunca mais foi feita”. Em outra ocasião, ele estava viajando a trabalho com o pai no Pará, na represa de Tucuruí. Durante o jantar, ele observou que o restaurante era cober-

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to com sapé, e quis uma cobertura assim no seu sítio. “Um amigo que estava com a gente conhecia um rapaz que fazia esse trabalho, e que se fosse preciso ele viria a Tietê. Pois meu pai comprou todo o material necessário, e ele veio montar aqui a cobertura de sapé. Não teve quem o demovesse da ideia”. Para Roberto, a liderança de Idrico sempre esteve presente entre todos os membros da família Uliana. “Mesmo não sendo o filho mais velho, ele foi o líder de tudo, tomando à frente nos negócios, determinando o que fabricar e como, e tudo dava certo”. Muito parecido fisicamente com o pai, ele se orgulha dessa semelhança. “É uma honra parecer com ele, por tudo que fez em Tietê. Vejo isso pelo respeito com que ex-funcionários e comerciantes falam dele. Qualquer filho gostaria de ter um pai assim. Esse será o maior legado que ele vai nos deixar”.

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CapĂ­tulo 10

Noras tratadas como filhas

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onhecer a família do futuro marido nem sempre é fácil. Para a maioria das mulheres, o encontro envolve possíveis diferenças que podem ou não ser instransponíveis, além de muita expectativa sobre como será a recepção dos pais do namorado. Porém, para as três noras de Idrico – Eurides, casada com Kiko; Vera, com Antonio Carlos; e Olga, com Roberto – essa dificuldade não existiu. As três são unânimes em dizer que, desde o primeiro momento, foram acolhidas tanto por ele quanto por dona Maria como filhas. “Foi amor à primeira vista”, afirma Eurides. “Foi um impacto muito bom, porque ele é extremamente receptivo, espirituoso, gosta de brincar e fazer piada. Fui muito bem recebida, tanto que, quando viajávamos em excursão, o grupo sempre achava que eu era sua filha, e não nora, de tanto que nos damos bem”. A admiração pelo sogro é explícita. “Conversar com ele é beber da fonte da cultura e do conhecimento, além de se impressionar com sua excelente memória, que o torna um ótimo contador de ‘causos’. A gente sempre teve um relacionamento maravilhoso. Se fico uma semana sem ir à casa dos meus sogros já dá saudade. Aos domingos, é uma delícia quando eles vão à minha chácara ou quando almoçamos com eles, sempre um prazer muito grande”. Nos pequenos gestos Eurides faz questão de demonstrar o carinho pelo sogro, como no casamento da filha Marina, quando pediu à banda para tocar “Fascinação”, música favorita dele. “Dançamos essa música e foi muito emocionante para mim, tem até uma foto na casa dele desse momento”. Quando Idrico começou a viajar para fora do país, Eurides acompanhou os sogros a dez países da Europa e depois aos Estados Unidos e Oriente Médio. Ela lembra que todos se impressionavam com o grande conhecimento dele sobre os lugares visitados. Nessas viagens, ele sempre perguntava “isso está bom para você?”. “Daí dizia ao guia: ‘então está bom para nós dois’. E o resto da excursão que se virasse”, ri.

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Porém, quando começou a ficar sem visão, Idrico parou de viajar. “Foi um vazio para nós. Até hoje, quando viajo com Kiko, eu falo ‘se o seu pai estivesse aqui ele ia falar isso e aquilo’, porque a gente o conhece tanto que já sabe a impressão que ele teria do lugar, então fica aquele oco”, lamenta. Nos voos, o sogro sempre lhe trazia uma balinha, e nos hotéis levava vinho e salame ao quarto dela, onde todos se juntavam e ficavam conversando. “Ele sempre foi muito cuidadoso comigo em todas as ocasiões, então tudo isso faz muita falta para a gente”. Em uma viagem à Califórnia, um fato bastante inusitado arrancou muitas gargalhadas da família. “Sempre tive o hábito de, toda vez que estamos saindo, rezar com todo mundo. Kiko estava na direção e estávamos rezando a Ave Maria, quando o sinal fechou e ele brecou de repente. Seu Idrico então falou ‘Santa Maria puta que o pariu’ com o susto. Todo mundo deu risada e depois continuamos a rezar”. Na mesma viagem, em uma floresta, todos deram a mão e tentaram abraçar o tronco imenso de uma sequoia, mas não conseguiram fechar o círculo. “Eu achei que, por ele ser madeireiro, aquilo o emocionou muito”. Na Rota 66, ficaram hospedados no Hotel Three Rivers, em frente a um riacho, onde sentavam todos os dias no fim da tarde para conversar. Também faziam muitos piqueniques, chegando até mesmo a comprar a tradicional toalha xadrez branca e vermelha para a ocasião. Desde solteira Eurides já viajava com os sogros. Em uma época em que moças não viajavam com o namorado, seus pais confiavam plenamente em Idrico e dona Maria, e então ela foi com eles para cidades próximas como Louveira, e também ao Paraguai. “Eu dormia no quarto com eles. A gente levava um pacote de goiabada no carro e cada um dava uma mordida. Seu Idrico levava uma espiriteira, e a gente parava na estrada para fritar carne e comer. Tudo era feito com muita alegria, não tinha nada de reclamar porque não podíamos ir a um restaurante. Com isso, aprendemos o valor do trabalho

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e do dinheiro. Tenho o maior orgulho de contar isso a minhas filhas, e dizer que segui o exemplo deles”. Eurides não se recorda de Idrico antes do namoro com Kiko, mas o sogro afirma que a conhece desde quando ela era uma menina de 6, 7 anos, e acompanhava seu pai à madeireira. “Eu era muito magra, tive até de improvisar uma faixa na cintura do meu vestido de casamento. Ele diz que minha neta Ana Laura é igual a mim quando criança, que lembra de mim quando eu ia com meu pai na fábrica”. Quando não está viajando, Eurides não passa uma semana sem ver os sogros. Ela diz que, em algumas ocasiões, Idrico se mostra um pouco chateado, reclamando da idade e de não poder mais enxergar. “Eu falo: ‘faça o favor, o senhor está se desmerecendo’, e faço de tudo para animá-lo. Quando venho embora ele está ótimo”. Ela também faz os doces que ele mais gosta, e às vezes o sogro fala que está dando trabalho. A nora retruca que, se puder fazer por eles metade do que eles fizeram por ela, então ela vai ficar feliz. A personalidade de liderança foi extremamente importante no momento mais difícil de sua vida. “Quando meu primeiro filho morreu, logo após nascer, ele sozinho trouxe o caixão para enterrar aqui. Ele aguentou tudo, e trouxe o primeiro neto para ser enterrado. Isso me marcou muito. Ele sempre soube estar presente no momento certo”. Para a nora, a principal qualidade do sogro é sua sabedoria de vida. “Ele é uma das pessoas mais inteligentes que conheci. Seu Idrico foi o alicerce da Indusparquet, ele deu o ‘start’ e todas as dicas que Kiko e José Antonio foram inteligentes e souberam aproveitar. Kiko, até uns dez anos atrás, não comprava um prego sem falar com o pai. O sucesso dos sócios, além do seu próprio trabalho, claro, é o exemplo do seu Idrico”.

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Casada há 39 anos com Antonio Carlos, após seis anos de namoro, Vera conta que a entrada para a família Uliana, no começo, foi um “choque”. “Sou descendente de portugueses e espanhóis, então não tinha a influência da família italiana, da comida, do jeito alegre... Então primeiro foi o choque, mas logo de cara já me acostumei, e para mim essa convivência sempre foi fantástica!”. A primeira impressão do sogro foi a de um homem “de mente aberta”. “Ele é uma pessoa bem inteligente, lia muito, conversava sobre outras coisas além do trabalho, e até hoje é assim. Nosso relacionamento é excelente, sempre foi muito bom para mim e as minhas filhas, um excelente avô”. Vera comenta que aprendeu muita coisa com sua persistência e seu otimismo, qualidades que ela considera importantes na vida de qualquer pessoa. Sobre o “gênio forte”, ela avalia que isso teve um efeito extremamente positivo na vida do sogro. “Acredito que se ele não tivesse esse gênio não teria construído o império que construiu, vindo de uma família humilde, que aqui não tinha nada, em um tempo difícil, com o mundo passando por sérias dificuldades. Mesmo com tudo isso, ele sempre foi otimista”. Outra qualidade que ela destaca é o espírito brincalhão, que sentiu desde que entrou para a família. “No primeiro momento já me senti acolhida, ele sempre estava brincando. O italiano já ‘puxa’ a gente, e mesmo com as diferenças das culturas familiares nossa convivência foi ótima. Acho que eu e Antonio Carlos viemos para ‘quebrar os padrões’, e tirávamos a situação de letra”. Vera admira a dedicação do sogro à família. Segundo ela, excetuando as viagens a trabalho, Idrico nunca fez um passeio sem estar acompanhado de dona Maria. “Quando as meninas eram pequenas a gente ia à praia nas férias com ele, e também à fazenda. Era muito divertido, ele muito paciente com as netas, deixava fazer o que quisessem, um total desprendimento. Minhas filhas ainda têm bastante ligação com ele por conta disso”, observa. “A gente viajava bastante, e agora ele quase não sai. Sinto falta da companhia dele e de dona Maria, queria muito levá-los à praia de novo, em Itanhaém, onde ele adorava ir”.

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Sempre inovador e participativo nos eventos da família, Vera conta que foi Idrico quem teve a ideia de servir sorvete de sobremesa em seu casamento, realizado no começo de janeiro. “Estava muito quente e ele sugeriu que servíssemos picolé aos convidados, o que foi um sucesso. Meu pai e ele eram muito amigos, e toda a família ‘palpitou’ no nosso casamento, que foi uma festa deliciosa, com um churrasco”. A participação do sogro na vida dos filhos sempre foi importante. “Ele estava sempre apoiando a gente em qualquer situação, e até hoje é presente na vida de todos, mesmo com suas atuais limitações. Antes ele vinha aqui, agora a gente vai até ele. Se não vou pelo menos uma vez por semana eu ligo, e sempre levo algo que ele gosta para comer”. Bióloga com doutorado, Vera costumava viajar muito por causa do seu trabalho. Ela lembra que o lado italiano tradicional do sogro então aparecia, quando dizia brincando e “meio sério” que uma hora ela iria se acostumar a ficar em casa. “Acho que isso é da nossa cultura machista no geral, que ainda vai demorar para acabar. Eu dizia que eram outros tempos, ele mudava de assunto, mas nunca discutimos por causa disso. Claro que, como estamos ainda na terra, é impossível não haver pequenos atritos com ninguém. Para conviver com as pessoas, se não houver nada de diferente, não tem nem graça”.

ef Olga, casada com Roberto há 34 anos, após 4 de namoro, considera o sogro um “paizão”. “Ele tem ‘aquele’ gênio, já ficou inclusive bravo comigo e me deu bronca como um pai. Por isso, sei que ele me trata mesmo como filha”. Após quase 40 anos de convivência, ela percebe que a idade foi “suavizando” Idrico, que passou a ser uma pessoa mais carinhosa com todos. “Quando casei ele era mais formal, mais ‘durão’, mas depois passou a abraçar e a beijar a gente quando nos encontramos”.

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Ela está acostumada às alternâncias de humor do sogro, que pode estar bem-disposto e contar piada, ou estar bravo e então não querer conversa com ninguém. “A gente já acostumou e aprendeu a respeitar o humor dele. Nós também mudamos, vamos amadurecendo, compreendendo mais as pessoas e as aceitando como elas são”, reflete. “Quando casei não aceitava um monte de coisas de uma família que era diferente da minha, mas com o tempo a gente se adapta a eles e eles à gente”. Olga conta que uma vez ele disse “na cara” de um namorado da neta Isabela que não havia gostado dele. “Ele falou tudo que eu queria, porque também não havia gostado muito do rapaz. Pouco tempo depois o namoro acabou. Foi um livramento. Por isso confiamos muito no julgamento dele. Sua cabeça é muito boa, melhor do que a da gente. Acho que isso acontece porque, diferente das pessoas de hoje, ele nunca ficou no celular e computador o tempo todo”, avalia. Os momentos com a família são lembrados com carinho por Olga. “A gente ia para o sítio, reuníamos todo mundo para fazer churrasco, e ficávamos lá a tarde toda. Depois de alguns anos, quando as reuniões foram diminuindo, ele vendeu o sítio, porque dizia que o lugar só tinha valor se fosse para a família usar. Foi assim também com a casa de praia em Itanhaém. Todos íamos, mas aí Kiko comprou um apartamento no Guarujá, depois Antonio Carlos fez o mesmo e nós também, daí ele vendeu o dele. Seu Idrico dizia que se fizesse ou tivesse algo era para usar, se não fosse não precisava ficar guardando”. Dentre os momentos importantes que o sogro participou em sua vida, Olga destaca quando Roberto resolveu investir na loja de tintas. “O apoio que ele nos deu na hora de separar a sociedade foi muito importante. Ele disse que nos ajudaria e que depois podíamos pagar. Ele sempre acreditou nos filhos, teve muita visão das coisas, foi muito justo com todos. Ele enxerga o que é e o que não é de cada situação e se acha que está errado fala na hora. Da mesma maneira, se dá algo para um, dá a todos, sem fazer nenhuma diferença”.

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Capítulo 11

Tão criança quanto as netas

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chegada da primeira neta, Fabiana, filha de Kiko, foi, nas palavras de dona Maria, “a felicidade completa”. Eles têm oito netas: Fabiana (40 anos); as gêmeas Marina e Giovana (38), filhas de

Kiko; Lis (37), Ana (35) e Maira (34), de Antonio Carlos; e Isabela (31) e Roberta (29), de Roberto, além dos bisnetos Ana Laura (15), Bruno (14), Mayara (9), Lucas (8), Ana Beatriz (8), Isabella (7), Gabriel (2) e Carlos (1). “Ele gosta muito de criança. Sempre deixou as meninas fazerem o que queriam, teve paciência e foi brincalhão com elas”. Essa paciência não tinha limites. Idrico deixava as meninas colocarem “chuquinhas” em seu cabelo, passarem laquê, pintarem as unhas das mãos e dos pés, passarem até batom. “Às vezes tinha cinco meninas em cima de mim brincando, uma com o cabelo, duas nas mãos, duas nos pés... Eu digo que a coisa mais gostosa do mundo são as minhas netas”, afirma. “Elas sempre foram boazinhas, faziam tudo que eu queria e eu fazia tudo que elas queriam, então não tinha o que discutir. Tenho muitas saudades de quando eram crianças”. Para todas elas, a casa dos avós Idrico e Maria sempre era uma festa. Fabiana mora em Curitiba há seis anos com o marido Alessandro Faria, e as filhas Ana Laura e Ana Beatriz. Muito ligada aos avós, ela faz questão de visitá-los quando vai a Tietê. “Gosto muito de conversar com eles, por isso passo na casa quando chego e antes de ir embora. Além disso, levo meu avô cortar o cabelo. Sou sua fã porque ele é minha referência, tudo que pergunto ele sabe. É um exemplo de homem trabalhador, e acompanhou a evolução das coisas, não ficou parado no tempo”. Uma das mais afetuosas memórias de Idrico com Fabiana foi quando a neta, com pouco mais de um ano, aprendeu a andar na casa dele, segurando seu chapéu. “Eu tinha um chapéu de aba larga branco, e estava com ele na mão. De repente, ela pegou o chapéu, se apoiou e começou a andar sozinha”. O carinho dele se estende também aos bisnetos. A filha mais velha de Fabiana, Ana Laura, tinha cerca de quatro anos quando machucou o pé, e só

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queria colo, mesmo depois de estar bem. Ela estava na casa dos bisavôs e Idrico a chamou. “Falei ‘venha’, e ela não teve medo de colocar o pé no chão. Ficou andando o dia todo aqui e não lembrou mais do machucado”. O espírito brincalhão do avô estava presente na hora das traquinagens das meninas, principalmente aos domingos, quando a família se reunia para o almoço com as delícias de dona Maria. Umas das brincadeiras favoritas das netas era deixar uma nota de dinheiro na rua, amarrada a um barbante, e quando a pessoa se abaixava para pegar elas puxavam. E quem dava o dinheiro? Idrico, é claro, que ficava observando a “peça”. Outro programa frequente era ir ao sítio, onde as meninas se esbaldavam na piscina, até dona Maria chamá-las para o almoço “ao meio-dia”. A regra era clara: depois que comiam, tinham de esperar três horas contadas no relógio para voltar a nadar. “A gente obedecia, era bem diferente de hoje, que a criançada até come dentro da piscina”. A pontualidade, sagrada para Idrico, faz parte da sua rotina até os dias atuais. “Uma vez estava aqui e disse que ia almoçar com eles. Cheguei às 11h40 – eles comem às 11h30 – e os dois já tinham almoçado! Minha avó me ligava e eu dizia ‘já estou indo’, e quando cheguei meu avô ficou bravo”. Idrico se defende. “Na casa dos outros não falo nada do horário, a casa dos outros é dos outros, eu mando na minha casa”. Para Fabiana, mudar para Curitiba foi bastante difícil, exatamente por causa da distância da família. “Quando meu marido disse que havia surgido a proposta para mudar pensei em não ir, mas acabei cedendo, apesar de contrariada. Demorei três anos para acostumar, e hoje sei que não volto mais. Sinto não poder vir sempre como gostaria, por isso quando estou aqui quero aproveitar ao máximo a presença deles”.

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As gêmeas Marina e Giovana tinham um costume diário: esperar o avô passar em frente à escola onde cada uma estudava. Marina frequentava o Objetivo, perto da casa de Idrico; após sair da aula, às 12h20, esperava-o passar de carro, um Santana Branco, às 12h40, “para ter a alegria de gritar de ‘vô’”. “Ele passava sério, então eu sempre fazia alguma macaquice para ele me ver e dar uma risada. Uma vez pulei em cima do carro para chamar sua atenção!”. Quando adolescente, gostava de ver o avô tomar uma dose pequena de uísque. Ela pedia um “golinho”, que ele dava “na maior naturalidade”. “Tomar um gole daquele copo era uma delícia, tinha um sabor de ‘vô’ e de confiança. Para dizer a verdade eu odeio uísque, mas com o gosto dele não tem igual”. Ele é padrinho de batismo de Marina, que diz se sentir privilegiada por isso. Para ela, o avô é um exemplo de inteligência fora do comum, além de possuir uma memória extraordinária. “Hoje ele tem 97 anos, e sempre me pergunto por que ele chegou a essa idade com tanta qualidade de vida, com uma saúde de ferro, e sendo essa fortaleza. É muito raro hoje em dia uma pessoa chegar a essa idade assim, com a vida de trabalho que ele teve”, avalia. Idrico conta que um dos maiores sustos da sua vida foi protagonizado por Marina. A menina era pequena e estava brincando em frente de casa, quando sumiu. O desespero tomou conta de todo mundo, acharam que a criança tinha sido sequestrada, porque tinha um rastro de automóvel onde ela havia sumido. “Tomei um choque. Depois de horas, vi três cabecinhas em cima do muro da fábrica nova. Kiko havia saído com ela sem avisar ninguém. Quando vimos que estava tudo bem, Eurides sentou no chão e começou a chorar. Não deu ‘estupor’ (enfarte) em mim, porque não era para dar”. A neta Giovana, que estudava na Escola Plinio Rodrigues de Morais, também esperava o avô passar em frente ao local às 7h e ao meio-dia. “Ficava sentada no muro esperando ele passar, apenas para gritar seu nome e ver ele buzinar e me dar tchau”. Assim como a irmã, ela também ficava ao lado dele na mesa, e aprendeu a tomar vinho com o avô. “Ele tomava sopa e um cálice de vinho, eu pedia um golinho, que ele dava. Hoje tomo vinho todo dia, igual a ele”.

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Ela lembra que, aos domingos, as netas se juntavam na casa dos avós e pegavam folhas, que grudavam com um clipe e, por cima delas, colocavam uma nota de dinheiro. Depois, amarravam em uma linha e ficavam esperando alguém passar e tentar pegar, quando puxavam a linha. “Meu avô adorava ver as netas se divertindo. Quando todas se juntavam para fazer as unhas e os cabelos dele, eu era a cabeleireira, fingia que estava cortando, penteava, colocava de lado. Meu avô sempre deixou a gente muito livre, não falava ‘faça isso’ ou ‘não faça aquilo’, ele confiava demais nas netas”. Mãe de Bruno e Lucas, ela conta que Idrico tem um grande carinho pelo mais novo, que é autista. O menino também é bastante carinhoso com o bisavô. “Lucas vê meu avô e pega na mão dele, no cabelo... Ele tem uma sensibilidade que nós não temos, ele sente que meu avô é muito presente, que se preocupa com ele. A visão dele é como se meu avô fosse um anjo de proteção, e é bem isso mesmo, ele nunca se esquece de perguntar do meu filho”. Giovana admira a força de vontade do avô que, aos 97 anos, ainda levanta todos os dias e vai à madeireira. “Ele sempre tem certeza do que está falando. Ele não perdeu essa força, vai lá e faz a coisa acontecer. Nem a perda da visão tirou essa vontade dele. Quem nasce para ser guerreiro não vai fracassar, tem força, determinação, vontade, é da sua própria personalidade”. Outra qualidade é o respeito pela sua própria palavra. “O que é não é não e o que é sim é sim, e ele mantém sua palavra, não volta atrás”.

ef Lis recorda que seus avós sempre gostaram da casa cheia, do barulho das crianças aprontando e dos adultos conversando. “Eles sempre tiveram muita paciência com a gente. Lembro que meu avô trouxe de viagem um abajur lindo da Holanda, em formato de moinho, e de tanto virar suas pás acabamos quebrando o abajur. Ele não ligou, nunca se importou com esse tipo de coisa”.

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Responsável pela produção e controle de qualidade da Madeireira Uliana, Lis encontra com o avô praticamente todos os dias. “No verão ele vem a semana toda, só no inverno que não. A fábrica faz um intervalo às 9h, e então paro para levar um café bem doce a ele, e ficamos conversando. Ele fica me esperando, e ai de mim se eu não trouxer”, brinca. “Criei esse hábito porque nem sempre tenho como lhe dar atenção por causa da correria da produção, mas nesse intervalo a gente consegue conversar. Isso é muito importante para ele e para mim também”. Idrico continua tendo ideias para o desenvolvimento de novos produtos. Mesmo com pouco acuidade visual, ele consegue explicar ao desenhista exatamente o que quer. Algumas vezes, ele conta com a ajuda de um funcionário mais antigo, ainda da época em que continuava na administração da empresa. Lis fala que tem “trabalho dobrado” quando ele está na fábrica, porque precisa ter um funcionário disponível para ele, mas já estava sentindo falta do avô, que na época da entrevista havia sido operado após uma queda e estava em recuperação. “Não vejo a hora que ele volte, porque meu avô não vem aqui apenas ‘bater perna’, ele conversa sobre meu trabalho, se interessa pelo que desenvolvi, como foi feito, o tempo de produção, custo, se há demanda do mercado. Ele sempre amou o que fazia e acreditou que ia dar certo. A madeireira é a vida dele e essa relação é muito forte”. Para Lis, a maior característica de seu avô é a extrema vontade de viver, e sua positividade em todos os aspectos. “Ele pode ser meio ‘ranzinza’, às vezes reclamar, mas é muito positivo, um líder, e não vê o ‘não’ à sua frente. Eu também acredito que a base dele para ser tudo que é hoje está na minha avó. Suas qualidades de liderança, positivismo, ser honesto, trabalhador, já vieram dele, mas ela é uma parte muito importante de tudo que ele é hoje, porque sempre foi o seu suporte”.

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Morando há 12 anos na Austrália, casada com o neozelandês Karl Mulvaney e mãe de Mayara e Carlos, Ana Uliana fala com carinho do avô, que considera amoroso demais. “Ele é assim até com meu marido! Quando decidi morar na Austrália ele perguntava o que tinha de tão bom aqui que não tinha no Brasil. Nós moramos dois anos em Tietê antes de virmos definitivamente para cá, e por essa convivência com o Karl ele ‘pegou amor’ no meu marido e percebeu que ele era muito bom para mim. Ele acabou amando o Karl como se fosse neto dele, e a primeira vez que voltamos ele abraçou meu marido e eu vi suas lágrimas”, recorda. Ana foi morar na Austrália para aprender inglês. O projeto era ficar seis meses, mas depois de conhecer Karl acabou ficando dois anos. Depois, eles vieram para Tietê, onde moraram mais dois anos, e por fim decidiram se estabelecer na Austrália. Após tanto tempo, Ana diz que agora o avô entende e apoia sua decisão. “Ele fala que se estou feliz devo ficar aqui e cuidar do meu marido, dos filhos, da minha casa e trabalhar. Inclusive ele procura saber bastante coisa da Austrália para poder conversar comigo”. Mesmo longe, ela mantém contato com eles, mas quando vem para casa, na hora de voltar, seu coração se aperta muito. “Quando chego já no dia seguinte vou visitá-lo. Ele sempre quer me dar um presente, então me dá dinheiro por causa do peso na bagagem. Ele pergunta do meu marido, passa a mão no rosto das crianças. É muito difícil se despedir, meu avô fala que não sabe se vai me ver mais... A cada ano que eu vou se torna mais difícil voltar por conta disso, mas sempre acho que vou vê-lo de novo”.

ef A neta Maira, residente em Presidente Prudente, também recorda as farras com as primas na casa dos avós com saudade e carinho. “Quando meus pais precisavam sair eles ‘distribuíam’ as três filhas, para não sobrecarregar

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ninguém, e eu ficava sempre na casa da minha avó Maria. Além disso, íamos muito aos domingos almoçar, quando todas as netas se reuniam em volta do meu avô para mexer no seu cabelo, pés e mãos. Para nós cuidar dos cabelos e fazer a unha dele era uma coisa séria, e ele inclusive nos dava um ‘dinheirinho’ por isso, enquanto se divertia conosco”. Maira fez faculdade de Engenharia Agronômica na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu, distante cerca de 100 quilômetros de Tietê, e às vezes voltava para casa aos domingos para almoçar com a família, quando aproveitava para visitar os avós. Hoje ela mora a cerca de 450 quilômetros, então a frequência com que visita Idrico e dona Maria diminuiu bastante. “Vou menos do que gostaria, mas sempre passo lá, eles já estão velhinhos, e a gente sente bastante em não poder estar perto”, confessa. Para ela, mesmo o avô tendo sido criado de uma forma mais dura por seu Gigio, ele sempre foi muito carinhoso e atencioso com as netas. “Há muito tempo a coisa era diferente, e ele teve três filhos homens, para então chegarem oito netas! Imagina a gritaria que eram todas juntas na casa dele, a gente fazia o que quisesse, não tinha nem olhada feia, era o paraíso! O clube é ali ao lado, então a gente saía da piscina e ia lá, minha avó fritava coxinha e nos dava refrigerante, meu avô chegava da madeireira e ficava ali conversando, todo mundo se divertindo! Tem um armário ao lado direito da televisão onde sempre pegávamos seu chocolate e a balinha de hortelã, que ele adora, e não tinha bronca”. Maira também tem boas memórias dos passeios no sítio do avô, e lembra de um deles em particular que marcou todas as netas. “Lá perto tinha um ‘barzinho’, onde os adultos iam comprar alguma coisa que precisassem de última hora, mas a gente nunca ia junto. Uma vez meu avô nos deixou ir, subimos todas na caçamba da caminhonete, e ficamos tão felizes que começamos a gritar ‘eu amo a vovó Maria e o vovô Idrico também!’, e esse nosso ‘hino’ virou uma marca. No aniversário de 90 anos da minha avó, em 2016, a gente ‘reviveu’ esse grito, e foi muito gostoso, imagine oito mulheres gritando isso!”.

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A paciência de Idrico é lembrada em pequenos detalhes. Maira fala que na casa dos avós ainda há um relógio carrilhão, que as meninas gostavam de ouvir tocar as horas. Então o avô dava corda para fazer a vontade delas, que ficavam encantadas. “Mas depois a gente pedia para desligar, porque tínhamos medo quando o relógio tocava de madrugada, e ele não se importava”. Em suas lembranças, ela fala que Idrico sempre teve o espírito brincalhão, de dar muita risada e contar piada. “Ele até hoje ouve rádio AM, aquelas músicas de raiz e também as piadas dos locutores. Por isso, meu avô tem um repertório de piadas muito longo”, observa.

ef A neta Isabela tem uma ligação especial com Idrico: ela nasceu no mesmo dia do aniversário do avô. Quando Fabiana está em Curitiba, é ela quem leva Idrico ao barbeiro cortar o cabelo. “Eu levava minha avó, e ele daí pegou esse costume. Eu gosto de fazer isso, é bem tranquilo, ele é muito ágil, está sempre pronto quando chego, mas tem de ser no horário marcado, senão fica bem bravo”, conta. “Eu o deixo no barbeiro e na hora certa volto, nem preciso descer do carro, ele já sai e entra bem rápido. Uma vez voltei a trabalhar na loja e acabei me envolvendo com alguma coisa, tanto que me esqueci de buscá-lo. Quando lembrei saí correndo, e ao chegar à barbearia ele já tinha ido embora com uma carona. Meu avô ficou bem bravo aquele dia, mas depois que me desculpei e ficou tudo certo”. Sua irmã Roberta gosta bastante de conversar com o avô, a quem vê pelo menos uma vez por semana, quase sempre aos domingos. “Eles gostam que a gente vá, e quando deixamos de ir meu avô já quer saber o que houve. Ele é muito interessado em todo mundo, pergunta sempre do meu marido e do da minha irmã. Ele conversa de tudo, e com meu marido fala sobre futebol, já que os dois são palmeirenses”.

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As irmãs lembram de almoçar sempre na casa de Idrico quando crianças, os adultos na sala e as meninas na cozinha. Dona Maria se preocupava em agradar a todo mundo, e assim sempre tinha “aquele monte de comida”: filé à parmegiana, risoto com frango, macarrão. Quando ficavam com os avós, as meninas aproveitavam para dormir mais tarde do que o horário tradicional de casa, e faziam muita bagunça com as primas. O piso da casa era polido, bem liso, e então uma das meninas subia em cima de um tapete, enquanto as outras a iam arrastando pelos cômodos, e depois outra subia, e todas participavam da brincadeira. Pouco tempo atrás, Isabela fez um agrado ao avô, que gosta de crostoli, um doce tipicamente italiano. “Ele disse que o meu era bem fofinho, igual ao da mãe dele. Pediu para eu fazer mais, e todo fim de semana cobrava para fazer de novo, até enjoar do crostoli”.

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CapĂ­tulo 12

Generosidade sempre

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generosidade e vontade de ajudar de Idrico não se restringem à esposa e aos filhos. Preocupado também com os sobrinhos, ele sempre deixou sua casa aberta àqueles que precisassem de

um lugar para ficar quando saíam de Jumirim para estudar em Tietê, além de orientá-los em suas vidas profissionais. Hoje ele fica muito feliz ao acompanhar o sucesso deles. “Fico triste se a pessoa vai para trás, porque todos eles tiveram o exemplo do trabalho”. Um dos sobrinhos de dona Maria, Reinaldo Gardenal, ficou em sua casa durante três anos para estudar. Isso foi logo no início de seu casamento, com o filho Kiko ainda pequeno. O garoto, que tinha entre 12 e 13 anos, ajudava Idrico em alguns serviços da casa e no pomar. “Um dia plantei uma carreira de uns 20 ipês, e ele cortou todos os pés, porque não sabia que era planta e foi limpar o lugar para mim. Fiquei super bravo, mas vi que era coisa de criança e relevei. Quando ele casou, entre tantos tios, me convidou para padrinho, e fiquei muito contente com essa consideração”. Maria do Carmo de Luchesi Fávero Gongora, 72 anos, sobrinha de dona Maria, contou com a generosidade do casal durante quase quatro anos, quando aos 14 anos mudou de Jumirim para Tietê, com a irmã mais nova Erci, para fazer o colegial. “Minha irmã foi morar com meu avô e eu com tia Maria e tio Idrico. Ele tem as melhores referências que posso pensar de uma pessoa. Aquela retidão, aquele caráter, aquela coisa belíssima dele, sempre ético, essa coisa maravilhosa que ainda admiro nele”, elogia. Carmo se encantava que, já naquela época, final dos anos 50, Idrico lia o jornal todo dia e ia ao cinema sempre, não deixando de ver nenhum filme que entrava em cartaz. “Isso fazia parte da sua formação intelectual, ele era um homem além do seu tempo. Quando chegou a televisão ele foi a primeira pessoa da cidade a comprar um aparelho, que nunca deixou restrito. Sua sala de jantar virou um cinema, com os tios, primos, avós, amigos, todo mundo ia assistir televisão na sua casa. Ele sempre foi muito generoso”.

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Assim como os filhos de Idrico, Carmo recorda que ele gostava das coisas sempre no lugar e do respeito aos horários, sem fazer disso uma neurose ou cobrança extrema, mas sim como um método para que tudo funcionasse. O senso de justiça também fazia parte da rotina da família. “Seus pais e irmãos moravam todos próximos, e a convivência era muito bonita. Eles tinham um sítio onde havia criação de galinhas. Tudo que era colhido e também os ovos eram divididos de maneira igual entre os cinco irmãos Uliana”. Única menina do meio dos filhos de Idrico e seus irmãos e sobrinhos, Carmo era muito bem tratada por todos, que acharam ótimo ter uma garota entre eles. “Meus pais me deram muita educação e senso de responsabilidade. Minha irmã que morava com meu avô tinha horário para chegar em casa, já tio Idrico nunca me impôs isso. Eu saía com minhas amigas, primos e até mesmo com namorado, e ele confiava em mim, sabia que podia ficar tranquilo porque sempre iria agir da maneira correta”. O “fraco” por doces já era notado por todos. No almoço e no jantar dona Maria sempre fazia uma sobremesa para ele. Naquela época açúcar era algo difícil nas famílias, que compravam geralmente em sacos grandes, de 60 quilos para todas as necessidades, e seu uso era controlado. “O pai dele (Gigio) era rigorosíssimo, não queria que fizesse doce sempre. Dona Nina fazia escondido, então os filhos e netos chegavam a sua casa e perguntavam ‘tem daquilo?’, que significava doce de leite. A família Uliana sabe até hoje que ‘daquilo’ quer dizer doce de leite”. A relação de Carmo com dona Maria, que era sua madrinha, também sempre foi muito forte. Elas iam à igreja juntas, e a tia lhe emprestava sapatos quando ela ia sair. “Ela sempre foi muito elegante, meu tio cuidava muito dela. Ele ia para Piracicaba e Campinas, comprava cortes de seda para suas roupas. Minha tia sempre estava muito bonita, era uma mulher que todos admiravam”. Com os três primos a convivência também era bastante harmoniosa. Eles a viam como uma irmã mais velha, não havendo disputa, ciúme ou compe-

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tição. Ela ajudava nas coisas da casa e depois estudava o dia todo. Quando terminou o grupo escolar em Jumirim, Carmo não sabia se realmente queria ir para Tietê, mas ao terminar o ginásio ela já estava decidida a ir para São Paulo, onde estudou artes e teatro. “Meu tio me incentivou a ir. O cinema já era parte da vida dele, e ele tinha profunda admiração por isso, me estimulou, e isso foi um diferencial”. A ligação com os tios continuou forte mesmo após sua ida para a capital. Carmo é hoje a dona do sítio onde moravam seus avós maternos, em Jumirim. “Eles sempre foram muito presentes na minha vida e muito companheiros da minha mãe. Essa tulha que temos aqui foi tio Idrico quem fez, aos 16 anos. Ela está caindo, mas eu não quero que a derrubem. O pai dele foi quem assentou esses tijolos, esse ladrilhado de café. A irmã mais velha de tio Idrico, Antonia, era muito amiga da minha mãe. Então minha ligação é muito maior do que ter morado com eles durante quatro anos”. Quando o pai de Carmo teve câncer de estômago, a presença de Idrico foi muito importante durante seu tratamento. “Meu pai sempre foi muito sociável e brincalhão. Tentamos tudo o que foi possível para ele ficar bem, e já nos últimos meses de sua vida os Uliana vinham aqui todos os sábados para visitá-lo. Tio Idrico vinha conversar, contar histórias, enfim, tentar animá-lo, e fez isso até ele falecer. Ele dizia que minha mãe era a irmãzinha dele. Nosso sentimento nunca foi uma coisa postiça, já era de família mesmo. Por isso eu dificilmente passo mais de duas ou três semanas sem conversar com ele e tia Maria, e sempre que estou em Jumirim procuro visitá-lo”. Para ela, a característica principal do tio é a sua inteligência, que o faz ser um líder nato. “Para ser líder é preciso ser inteligente, ter dentro de você sensibilidade, humanidade e generosidade, o que ele tem”.

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A convivência do sobrinho José Antonio Baggio com Idrico remonta à infância, quando ele e Kiko brincavam na fábrica, por volta de seus 8, 9 anos. Naquela época, ele ainda morava e estudava em Jumirim, mas aos 14 anos foi convidado por Idrico a mudar para a casa da avó materna em Tietê, após o falecimento do avô Gigio. Com a idade, a avó Nina não podia mais cozinhar, então a convivência com o tio se intensificou, já que José Antonio ficava bastante tempo em sua casa. O sobrinho fala dele como um homem bastante objetivo, sem muita conversa, e um excelente pai de família. “Eu estudava pela manhã e à tarde ficava na madeireira, onde trabalhava como office boy, varria o chão, limpava banheiro, fazia de tudo um pouco. Ele tinha muita paciência com a gente, mas não podia sair nada errado. Fiquei lá até os 20 anos, estudava à noite e me formei contador, inclusive nessa época já fazia a contabilidade da empresa, mas sem assinar”. José Antonio lembra que às vezes chegava algum cliente na madeireira e Idrico pedia para que ele fosse atender. “Ele dizia ‘fale que não estou, senão ele vai me pedir desconto e não vou ter como recusar’. Daí eu negociava e não dava o desconto, dizendo que estava ali cumprindo ordens e não podia ceder”. O lado pândego de Idrico também se manifestava às vezes na madeireira. O sobrinho conta que uma vez passou um pedinte, e ele estava com um chapéu que usava na fábrica, e afundou na cabeça. O pedinte passou por todo mundo e o pulou, achando que ele não tinha dinheiro. “Ele tinha um cliente italiano que, toda vez que vinha comprar, qualquer preço que ele dissesse, dizia que era caro, ‘tutti ladri’. Um dia então meu tio disse que ia sacaneá-lo, e quando ele perguntou o preço disse ‘40 cruzeiros’. O italiano respondeu ‘tutti ladri’. Daí meu tio retrucou ‘errei, são 400 cruzeiros’, e ele comprou!”. A sociedade com Kiko teve início em 1970, quando a Indusparquet começou a funcionar. “Meu tio começou a fazer parquet e percebi que esse mercado ia crescer, então montamos a fábrica. Ele sempre nos deu muito apoio, quando ia comprar madeira nos apresentava os fornecedores e também clien-

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tes. Como sempre gostei muito de ler, para mim a parte administrativa do negócio era fácil, e além disso eu tinha a experiência de trabalhar na madeireira, que na época era uma empresa grande comparada à nossa”. José Antonio diz que Idrico literalmente vibrava com o sucesso e crescimento da Indusparquet. Além disso, dava importantes conselhos, em sua maioria sempre bons, que os sócios aliavam às novidades tecnológicas que iam implantando na fábrica. Para ele, o tio tem uma visão de negócios que pouca gente tem, sendo um visionário. “Ele sempre me dizia que o valor que você paga por um funcionário é aquele que você tem de ganhar, que é preciso ser parceiro do seu empregado. Ele sempre valorizou muito seu trabalho e o do empregado, o enxergando como peça importante da empresa”. Sobre a personalidade do tio, José Antonio diz que, como qualquer pessoa que não gosta de ouvir notícia ruim, ele não aprecia ser contrariado. “O produto pode ser de qualquer cor, mas tem de ser amarelo, se for a cor escolhida por ele”, brinca. “A gente tem de saber lidar. Se você tiver paciência faz o que quer dele, que tem bom coração, ajuda, é generoso com todos. Ele é uma pessoa inteligente, e com a graça divina, aos 97 anos, tem uma memória melhor que a minha. Sabe tudo que acontece, está sempre com o radinho ligado nas notícias”. Além do trabalho, eles também viajaram por lazer. Uma ocasião, foram de carro até a fazenda de Idrico em Mariluz, no Paraná, e ao chegar à cidade José Antonio, que é rotariano, conheceu os membros do Rotary local e foi convidado a uma reunião que aconteceria aquela noite. Ele convidou o tio, que não quis ir. Então, chamou o filho do caseiro para acompanhá-lo. “O prefeito estava lá, teve um jantar e fiz uma palestra. Chegamos à fazenda e dormimos, e no dia seguinte o rapaz contou para ele como tinha sido a reunião. Daí ele disse: ‘Mas por que você não me levou?’, e eu respondi, ‘Mas eu convidei o senhor!’. Ele então respondeu: ‘Mas você tem de insistir, não é assim que se faz’”.

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José Antonio, cujo pai era funcionário de Idrico, visita o tio sempre que possível. “Meu pai faleceu há mais de 20 anos, em 1995, e eu o considero meu segundo pai, temos um laço familiar muito forte por esse motivo”.

ef O sócio de Antonio Carlos, José Arnaldo Bertola Uliana, 63 anos, convive com Idrico “desde que era bebê”. Seu pai Osvaldo era um dos irmãos que morava na “vila” em torno da fábrica. O sobrinho ia à casa dele todos os dias. Nas férias, os tios davam serviços leves para a criançada, como montar grade para secar telha. Os moleques ficavam no pátio brincando e jogando bola. Por estar no negócio da família há 37 anos, José Arnaldo também tem a imagem do tio de um líder, que sempre comandou a sociedade. “Meu tio Angelo era o mais velho, mas quem liderava todos mesmo era Idrico, e meu pai um pouco menos. Ele sempre foi um líder nato, extremamente inteligente, rápido em contas”. Idrico e Osvaldo iam sempre juntos à fazenda em Mariluz, da qual eram sócios. O sobrinho recorda que a fazenda era relativamente grande, e eles saíam de manhã para andar com a criançada junto, e em cada moitinha que encontravam colocavam fogo. Com isso, faziam os meninos andarem por todo o terreno a pé, sem se cansarem. Em Porto Feliz, onde tinham um sítio, pegavam os meninos aos sábados, e colocavam debaixo do encerado para colher algodão. Nesse sítio, Idrico falou para Osvaldo que queria produzir energia elétrica, e resolveu construir uma roda d’água. “Fez um cano de tábua para virar a roda que carregava o gerador produziu energia, mas não deu muito certo, porque era pequeno para o tamanho do sítio”. Quando começou a trabalhar na madeireira, em agosto de 1979, a fábrica tinha cerca de 30 funcionários. José Arnaldo é formado em Estatística pela Unicamp, profissão que nunca exerceu. “Eu e Antonio Carlos tentamos abrir

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uma revenda de portas em Ribeirão Preto, mas não deu certo. Então meu pai e meu tio nos chamaram para trabalhar na madeireira. Ele falou para eu ficar ao lado dele que ia me ensinar tudo. A gente já vivia dentro da fábrica, então tinha noção de como funcionava porque escutava as conversas dos mais velhos. Vim trabalhar na produção, no pesado, para substituir tio Idrico”. José Arnaldo fala que o tio sempre foi muito exigente no trabalho, mas como um pai para ele. “Eu ‘tomava dura’ porque merecia. Uma vez uma porta estava ruim e troquei sem falar com ele, que quando viu o que eu tinha feito disse: ‘por enquanto quem manda aqui sou eu’. Pedi desculpa, daí ele falou que estava tudo bem, que eu podia trocar a porta. Em compensação, sempre me defendeu com unhas e dentes quando eu tinha razão. Ele para mim sempre foi um segundo pai, sentimento que aumentou após a morte do meu, há 12 anos. A gente de vez em quando briga, ele sai xingando, mas a gente fala o que tem de falar, exatamente como pai e filho”. Para o sobrinho, todos os tios têm seus méritos, mas foi de Idrico que ele obteve todo o aprendizado de liderança. Ele destaca que os cinco irmãos Uliana ajudaram todos os sobrinhos, sempre liderados por Idrico. “Ele me ensinou que tem a hora de ser bravo, hora de ser macio, hora de avançar e hora de recuar. Meu pai era mais quieto, mas por trás sempre me apoiava”. Como Idrico vai quase todos os dias à fábrica até hoje, a relação entre eles ainda é bastante forte. José Arnaldo considera que o tio pensa longe, porém, ao mesmo tempo tem opiniões que remetem ao passado. “As relações hoje entre as pessoas são diferentes do que no tempo dele, quando eram mais rudes. Às vezes estou no telefone negociando e reclamando e ele fala ‘mande à merda’. Isso naquela época não tinha tanto problema, mas hoje é diferente, capaz de a Justiça entrar no meio”, diverte-se. O sócio de Antonio Carlos enxerga Idrico como um homem ainda muito ativo, sempre tentando fazer alguma coisa nova, pensando na fábrica e em maneiras de economizar e impulsionar o negócio. “Às vezes ele quer inventar

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alguma coisa e meu primo não, então eu o escuto, porque conheço bem seu jeito, tenho mais paciência, questiono se realmente vai dar certo. Ele pega as coisas e mostra para mim, e também me procura para saber fatos cotidianos, como a cotação do milho onde ele tem fazenda, por exemplo, para saber se vai ter lucro ou prejuízo com sua plantação. Sempre foi assim, gosto dele e sinto falta quando não vem. A gente de vez em quando discute, tem dias que ele sai bravo, mas dois dias depois está de volta”. A personalidade forte do tio nunca foi um problema. “Ele é às vezes impulsivo, com um bom italiano, mas do mesmo jeito que briga ele ‘desbriga’. Num minuto parece que vai cair o fim do mundo, daí vira as costas, volta da cozinha e acabou. Nunca foi uma pessoa rancorosa, muito pelo contrário, sempre está preocupado com os outros e tentando ajudar a quem for preciso”.

ef Não são apenas os sobrinhos que sentem uma profunda afeição pelo tio. O respeito e carinho também fazem parte dos sentimentos dos cunhados Ester Aparecida Fávero Moret (Cida), 81 anos, irmã de dona Maria, e seu marido Fioravante Moret, 79 anos, casados há 56 anos, moradores de Cerquilho. Cida não tem muitas memórias de quando Idrico namorava a irmã, porque ainda era criança e sua atenção se concentrava nas brincadeiras infantis. A convivência com o casal se intensificou quando ela mudou de Jumirim para Tietê, onde eles já estavam instalados. “Eu ainda era solteira, e Idrico sempre foi um pai para todos nós, com muita bondade, e tudo que a gente precisou ele estava presente”, afirma. Fioravante concorda com a mulher sobre a bondade do concunhado, e também admira seu senso de justiça. “Como todo mundo ele tem o lado bom e o ruim, só que o lado ruim dele é bom. Para ele, o que é certo é certo, sempre mantém a mesma postura, não vai falar nada apenas para agradar uma pessoa.

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Se algo está ruim ele não vai falar que está bom, vai falar a verdade. Desde que o conheço, sempre foi muito transparente”, afirma. Ele avalia que Idrico impressiona as pessoas desde o primeiro momento. Mesmo com a idade avançada, ainda se mantém atualizado em todos os assuntos. “Em fevereiro deste ano (2017) fomos a Ivinhema, onde um homem veio apresentar um sistema novo de irrigação para sua fazenda, para ampliar o que já funciona lá. Estavam presentes ele, Kiko, Antonio Carlos e Roberto. Falei que ia passear enquanto eles discutiam o assunto, mas ele me convidou a ficar. Idrico participou da conversa de igual para igual, dando palpites com fundamento sobre o assunto”, conta. Para Cida, a presença do cunhado sempre foi importante para a família, principalmente em momentos difíceis. “Em 1973, minha mãe morava em São Paulo e eu em São Caetano do Sul. No dia 16 de setembro, viemos para nossa chácara aqui e minha mãe morreu de repente. Idrico apareceu sem avisar, mas não disse a verdade, falou que minha mãe não estava passando bem e que precisávamos ir embora. Quando chegamos lá, vimos o pessoal e aí pensei que algo de ruim havia acontecido. Foi um dia que me marcou muito”. Os casais viajaram juntos à praia durante cerca de 30 anos, tanto à Vila Mirim, na Praia Grande, quanto a Itanhaém. “Sou quase 18 anos mais novo que ele, que nunca se importou com a diferença de idade. Embora o poder financeiro dele fosse bastante alto em relação ao meu, sempre me senti bem à vontade porque a gente dividia as despesas, sem esbanjamento, então dava para acompanhá-lo”. Dessas viagens, ele lembra de uma quando a casa de Itanhaém tinha acabado de ficar pronta e não tinha ainda os móveis. Ele então chamou o cunhado para montar as camas, que seriam levadas por Antonio Carlos e dona Maria. Naquela época não havia aparelho celular, e os dois chegaram bem depois do horário estimado. “Ele ficou super nervoso, achando que tinha acontecido alguma coisa, e quando os dois chegaram foi aquela festa”.

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Fioravante e Cida procuram sempre visitar o cunhado, e costumavam também recebê-los para almoços em sua casa. Depois da refeição, Idrico sentia-se em casa para tirar um cochilo. “Ele falava ‘você fica à vontade que eu vou dormir’”, conta o casal rindo. Quando estava de mau humor, porém, Idrico não gostava muito de brincadeiras. Cida relembra de um caso ocorrido durante um churrasco em seu sítio em Tietê. “A casa era grande, mas não tinha churrasqueira, então improvisamos em uma laje em cima de um poço tampado. Quando estava tudo pronto começou a chuva e o vento, e resolvemos então improvisar o churrasco na cozinha. Idrico na época estava fazendo carvão, e tinha trazido um saco. Quando acenderam a churrasqueira dentro da cozinha fez aquela fumaceira. Eu ia brincar sobre isso, mas Kiko me avisou que ele estava bravo aquele dia, porque tinha comprado três freezers e matado um boi, e nenhum deles havia chegado. O churrasco estava esfumaçando a casa, e resolvi ‘cutucar a onça com vara curta’. ‘Mas que fumaceira Idrico, será que não é o carvão?’. Ele disse: ‘Se não estiver bom, vá comprar’. Eu sabia que ia levar bronca, mas não resisti”. Fioravante também sempre se valeu da experiência do concunhado para lhe pedir conselhos sobre negócios. “Quando resolvi comprar o sítio eu estava em dúvidas, porque não queria fazer uma dívida. Falando sobre o assunto, sem eu pedir nada, ele me disse que podia comprar sem medo, que era um bom negócio e, se precisasse, ele me ajudaria. Não precisei do seu dinheiro, mas só de ele me oferecer foi o suficiente para eu fazer a compra sem medo. Ele me ajudava muito com conselhos. E quando ele me dizia que um negócio era ruim, se eu fazia, acabava perdendo dinheiro que nem água”, admite. Os cunhados admiram a vida regrada que ele sempre teve, sem beber ou comer demais, fazendo tudo na medida certa. Para Cida, a maior qualidade de Idrico é a bondade, e para Fioravante o fato de jamais carregar desaforo para casa. “Ele fala o que tem de falar para quem for e na hora, mas se ele erra tem a humildade de pedir desculpas”.

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ef Passar pelo crivo de Idrico para namorar sua neta mais velha, Fabiana, foi o maior “obstáculo” encontrado por Alessandro Faria, que há 20 anos faz parte da família. Para conquistar o coração do avô da namorada, valia até torcer pelo Palmeiras, mesmo sem se interessar muito por futebol. “Tinha a impressão de que ele era bravo, e no primeiro mês de namoro, quando Fabiana me convidava para ir à sua casa, eu recusava. Quando comecei a ir, perguntei para que time ele torcia e me respondeu que era palmeirense, já perguntando o meu time. Eu respondi ‘se o senhor é palmeirense, eu também sou’”, recorda, rindo. Alessandro é de Cerquilho, e sua família também é do ramo madeireiro. O avô, Eduardo Gaiotto, tinha caminhão e havia “puxado madeira” para Idrico. “Desde criança eu já sabia quem ele era. Quando comecei a namorar Fabiana meu avô já havia falecido, mas seu Idrico lembrava dele”. Ele enxerga o avô da esposa como uma pessoa carismática, que conquista todo mundo, além de ser muito bom. Alessandro era funcionário da Cipatex, em Cerquilho, e em 1999 começou a trabalhar com o sogro Kiko na Indusparquet. Por ser da área industrial, logo teve afinidade com Idrico. “Ele sempre foi carinhoso comigo. Também conversamos sobre o que vou fazer na fábrica, muitas vezes peço a opinião dele quando venho visitá-lo”. Quando entrou para a família, Idrico deu um conselho que Alessandro sempre levou em conta. “A gente tem um nome a zelar, então zele muito pelo nome Uliana. A maior identidade que uma pessoa pode ter é o nome que ela representa. Faça o que tem de fazer sempre bem feito”. A boa convivência não se restringe aos negócios. Há cerca de cinco anos, Idrico decidiu plantar uma árvore para todo mundo lembrar dele, e Alessandro o acompanhou ao sítio de Kiko, para que pudesse realizar sua vontade. “Gosto de estar com ele e me sinto muito à vontade para falar de tudo, às

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vezes ficamos uma, duas horas conversando e ainda sobra muito assunto. Me espelho nele como pessoa e profissional. Admiro esse seu carinho de manter toda a família unida”. Quando entrou na Indusparquet, o sócio de Kiko, José Antonio, lhe falou que Idrico ainda gostava bastante de “inventar” coisas e produto novo para a fábrica. “Fui avisado que, quando ele ligasse, devia parar tudo que estivesse fazendo para atendê-lo. ‘Ele é a prioridade número um! Se não fizer isso, já sabe a consequência depois’”. Alessandro conta que uma vez levou uma “bronca” para nunca mais esquecer. “A gente estava indo para a fazenda em Ivinhema há uns três anos, com Kiko, Roberto, ‘seu’ Idrico, dona Maria, Fioravante e dona Cida. Ele estava comigo em outro carro com meu cunhado Plinio, e excedemos bastante a velocidade, daí tivemos de frear bruscamente. Não tinha ninguém na estrada, mas ele ficou super bravo, disse que nunca mais voltava comigo de carro, e ficamos umas duas semanas meio sem conversar. Esperei a braveza dele passar, e ele ligou perguntando se eu não ia mais visitá-lo. Fui e nem tocamos no assunto. Ele tem liberdade e intimidade para chamar minha atenção como se fosse filho dele”, afirma. O relacionamento entre eles é tão forte que Alessandro admite às vezes ter mais liberdade de contar algo a ele do que ao próprio pai. Idrico, que trabalhou sempre sem olhar fim de semana e feriado, hoje dá um conselho diferente ao marido da neta: “Trabalhe até onde puder, mas aproveite um pouco mais a vida, e valorize as suas filhas”.

ef A ideia de colocar em um livro as histórias de Idrico pode ser creditada ao médico Plinio Toledo Moura Campos, marido de Marina Uliana, que há dez anos entrou para a família. Plinio conheceu todos os Ulianas de uma vez

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só, no casamento de Ana, prima de Marina. “A gente estava chegando e ela disse ‘olha, aquele é meu avô’. Esse foi o primeiro contato, mas nesse dia não conversamos, era um dia de festa. Logo depois a gente se encontrou de novo, e aí pude conhecê-lo de verdade”. A fama de bravo de Idrico já havia chegado aos ouvidos do médico, porém, ele não fez jus ao que todos falavam para Plinio. “A primeira vez que conversamos não achei nada do que haviam dito. Ele fala bastante, gosta de contar histórias, e nunca foi bravo comigo”, garante. Há dez anos, ao ouvir Idrico contar em detalhes, inclusive com a data correta, como havia sido a mudança da família da área rural para Jumirim, Plinio falou a Kiko que era preciso colocar suas histórias no papel. “Falei que ele tinha de escrever um livro. Fiquei impressionado como ele lembrava de detalhes e datas, com a memória prodigiosa que ele tinha. Achei que isso precisava ficar registrado”. Médico de Idrico, Plinio diz que ele é um paciente que respeita as orientações e faz tudo sem questionar. Semanalmente ele passa visitá-lo ou, se for o caso, dia sim, dia não. Mas essa rotina foi uma vez quebrada por cerca de três meses, após o episódio da bronca de Idrico em Alessandro, por correr na estrada. “Eu estava no carro e vi o quanto ele ficou bravo. Então também achei melhor dar um tempo das visitas, até que ele ligou me cobrando, lembrando até o dia em que a gente tinha se visto pela última vez! Ele sentiu a nossa falta, e tudo voltou ao normal”. Dentre os vários “causos” que cercam a vida de Idrico, Plinio lembra-se de um em especial, que mostra como o marceneiro enxerga a vida. “No primeiro churrasco que fui, na chácara de Kiko, eu ainda não o conhecia muito bem. Cortei uma picanha e, como ia servir para um senhor de quase 88 anos na época, tirei toda a gordura. Ele olhou e perguntou ‘quem fez essa porcaria?’. Falei que tinha sido eu. ‘Onde está a gordura?’, ele perguntou. ‘No lixo’. ‘Por que?’ ‘Mas o senhor come gordura?’, perguntei. ‘Eu tenho 80 e tantos anos

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você quer tirar de mim o que eu mais gosto de comer?’, ele reclamou. A partir daquele dia, passei a dar a ele o pedaço com mais gordura”, afirma. Desse episódio, Plinio tirou uma lição. “Ele me ensinou que, aos quase 90 anos, para que mudar a vida de uma pessoa, qual a necessidade? ‘Ah, vai ter um enfarte’. Se não teve até agora, por que mudar? Aprendi isso com ele: a viver do melhor jeito possível, e intensamente”, finaliza.

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Capítulo 13

Paixão pelo futebol

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T

orcedor fanático do Palmeiras e do Comercial Futebol Clube, de Tietê, Idrico nunca praticou o esporte, mas sempre acompanhou os jogos, chegando até mesmo a ser presidente do Clube

Atlético Jumiriense, de 1950 a 1954. “Tomava conta do campo, do time, dos jogadores, assistia aos jogos. Só gastava dinheiro, não ganhava nada, comprava camisa, presenteava o jogador. Formei o time com jogadores de Tietê, Laranjal Paulista, Sorocaba, pagava a eles um valor que cobria a viagem, para comer e disputar o campeonato”. Quando mudou para Tietê, montou então o time Parducci e Uliana, mesmo nome da madeireira, que disputava o campeonato interno da cidade. Nas décadas de 50 e 60, participou da diretoria do Comercial e ajudou o início do América Futebol Clube, também de Tietê. Idrico se empenhava tanto pelos clubes que chegou a trazer para disputar partidas pelo Comercial o já famoso goleiro do Palmeiras, Oberdan Cattani (1919-2014). O gosto pelo futebol era tão grande que ele conta que em Jumirim chegava a brigar por causa do time que dirigia. Quando ia ao estádio ver o Comercial, levava um rádio enorme, que precisava de 12 pilhas grandes para funcionar “e pesava uns 15 quilos”. Viajava também pelo interior com os filhos para ver jogos de times grandes como Palmeiras, Santos e até mesmo do arquirrival Corinthians, apenas pelo prazer de ver o bom futebol em campo. “Em São Paulo fui várias vezes ao Pacaembu, e no antigo Parque Antártica uma vez só. Toda a irmandade era fanática por futebol, a gente pegava três ou quatro carros, colocava os filhos dentro e ia embora para Bauru, Ribeirão Preto, e Piracicaba ver os jogos. Mas nunca brigamos com ninguém, só tirávamos sarro dos adversários”, destaca. Com tanta adoração pelo Palmeiras, era natural que os três filhos acabassem torcendo pelo mesmo time do pai. Porém, Idrico conta que Antonio Carlos estava “pendendo” a ser santista, problema solucionado rapidamente com uma bola de futebol dada por Cattani, goleiro ídolo do Palestra.

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Apesar do amor pelo esporte bretão, Idrico confessa que nunca teve vontade de jogar. “Eu era duro que nem um pau, não tinha ginga. Até tentei, mas machucava o dedão do pé, o joelho, caía, então fiquei na torcida e na administração. Ajudei bastante os times, fazia campo, dava dinheiro para arrumar o que fosse preciso”. Apesar da vista comprometida, ele ainda acompanha os resultados do seu time. “Menos do que antes, mas quando acordo às 6h30 já quero saber quem ganhou o jogo do dia anterior. Ainda torço bastante pelo Palmeiras”.

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CapĂ­tulo 14

Bom chefe, amigo, conselheiro

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A

admiração por Idrico não vem apenas de seus familiares. Antigos empregados, amigos, empresários e clientes também vêm nele um exemplo de vida. Antonio Carlos Gardenal, 64 anos,

ex-funcionário da Madeireira Uliana, conviveu com Idrico durante dez anos, entre 1976 e 1986, quando saiu da fábrica para montar seu próprio negócio. Mas a relação com a família Uliana havia surgido bem antes, quando morava em frente à casa de seu Gigio. “Eu era pequenininho e o via passar com a charretinha para ir ao sítio em Jumirim. Ele sempre brincava com meu pai. Dona Joana também gostava muito de mim”. Em 1976, a madeireira, ainda no centro da cidade, estava precisando de um contador. O irmão de Idrico, Clodoaldo, estava na casa de Antonio Carlos, que na época tinha uma confecção com a família. Ele tinha as tardes livres, então foi convidado a trabalhar na fábrica meio-período. “Eu era o ‘guarda-livros’, mas quem assinava os balanços era Kiko, que já era formado”. Ele lembra da rapidez de Idrico para contas. “Quando chegava o caminhão de madeira, ele pegava um lápis vermelho quadrado e calculava quantas portas aquela matéria-prima daria, e por qual preço seria vendida. Além de ficar no escritório, também ‘punha a mão na massa’, ao lado dos empregados. Uma vez ele perdeu a ponta do dedo e estava com a mão enfaixada. Chegou o pessoal do sindicato, e não sei o que falou para ele. De repente ele deu um murro na mesa e gritou: ‘Seus vagabundos! Porco Dio! Olha meu dedo machucado de tanto eu trabalhar e vocês vêm aqui encher o saco’. Só sei que todo mundo saiu rapidamente, e nunca mais voltou”. Além de pegar no pesado junto deles, Idrico valorizava os funcionários. “Quando eu fazia os cálculos mostrava se dava para aumentar o salário, e ele acatava minha sugestão. Por ser sempre justo, todos gostavam muito dele”. Antonio Carlos lembra de dois fatos engraçados ocorridos quando trabalhava na madeireira. Às 11h, todos os dias, a fábrica parava para o almoço, quando soava um apito. Quando ainda era no centro da cidade, um garoto

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chamado Tadeu entrou escondido e tocou o apito às 10h. “Seu Idrico entrou que nem louco no escritório. Imagine parar uma madeireira uma hora antes do habitual! Ele ficou muito bravo com o moleque, que sumiu do escritório”. Em outra ocasião, havia pinheiros plantados na frente da empresa, e ele chamou um senhor que trabalhava na limpeza, chamado Sátiro, e pediu para cortar os galhos. O homem cortou três pinheiros inteiros. “Quando ele olhou pela janela, ficou vermelho e saiu gritando ‘Porco Dio, que você está fazendo?’, e também ficou bem bravo”. Acima de tudo, Idrico pensava no crescimento da empresa. Quando vendia gado de sua fazenda no Paraná, por exemplo, comprava um novo lote e, com a sobra da negociação, investia em madeira para o estoque da fábrica. “Madeira é um investimento importante. Se você tem matéria-prima consegue passar por uma crise de um ano, até dois anos. Ele era um empresário nato, enxergava isso”. O ex-funcionário destaca que Idrico era um bom negociador, sem jamais se aproveitar da necessidade do outro para tirar vantagem. “Sempre foi muito honesto. Dizia que a gente devia conseguir um preço mais barato, mas sem desvalorizar o produto que estava sendo comprado, nem roubar o cliente ou ficar devendo. Ele ensinou que a honestidade e seriedade são muito importantes para a gente vencer na vida. ‘Se você faz coisa boa, coisa boa vem para você’, afirmava”.

ef As lembranças com Idrico do arquiteto e criador de búfalos Jonas Camargo de Assumpção, conhecido por Josito, remontam há 66 anos, quando ele tinha dez anos e entrava na Madeireira Uliana pegar restinhos de madeira para fazer carrinho de rolimã. Aquela época, a empresa ainda tinha como sócio André Parducci. Quando ele entrava no galpão, Idrico estava bem em

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frente trabalhando. “Eu não ia pegando, tinha de pedir permissão. Mas evitava pedir ao Idrico porque ele era tão viciado no trabalho que não me dava muita atenção, e queria me enxotar logo da fábrica, porque de alguma forma eu estava atrapalhando. Já o André era a calma em pessoa, punha a mão na minha cabeça, interrompia o que estava fazendo e indicava o que eu podia pegar”. Em 1965, quando se formou em Arquitetura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, na capital paulista, a sociedade com Parducci já havia sido desfeita, e logo nos primeiros trabalhos Josito começou a ter uma relação profissional com a madeireira, ainda localizada no centro de Tietê. “Normalmente Idrico me atendia nos orçamentos, relações de materiais, compras. Dessa relação comercial surgiu uma relação de respeito recíproco, de admiração que eu tenho pela família dele e por ele, pela dedicação ao trabalho em tempo integral. Apesar de termos uma diferença de idade relativamente grande, a relação comercial se transformou em uma bonita relação de amizade”. Como a madeireira ficava próxima à casa de Idrico, ele levava Josito tomar café com dona Maria. “Ambos me tratavam com uma delicadeza muito grande. Talvez podia ser um pouco de peso na consciência pelo fato de me tratar rispidamente quando era moleque”, brinca. O escritório onde o arquiteto sentava para negociar tinha uma janela que dava para um corredor de passagem de veículos da rua para o fundo, onde ficava o galpão de trabalho da madeireira. “Algumas vezes vi Kiko passando, lá pelos seus 20 anos, com uma Kombi carregada de pedacinhos de madeira, e era nítida a expressão de Idrico para contar o que o filho estava fazendo. Ele dizia algo como ‘olha, esse moleque não tem mais o que fazer, está daninhando, vem aqui pegar esses pedacinhos de madeira que sobram, e com o primo (José Antonio) pega esses moleques engraxates, levam para um galpão não sei aonde, e serram tudo em pedacinho pequeno para fazer parquet. Acho que está montando um jardim de infância com os engraxatinhos’. Ele contava isso de uma forma que, ao mesmo tempo em que dava pouco valor à iniciativa

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do Kiko e do primo, mostrava orgulho do menino trilhando um caminho próprio. Estava claro que ele chamava a minha atenção para contar do Kiko de forma jocosa, mas com muito orgulho, e evidentemente torcendo para que o negócio desse certo”. Josito observa que era muito fácil negociar com Idrico, porque sentia que estava sempre recebendo um orçamento com produtos de qualidade, pelo preço justo, tanto que não se sentia bem em “espremer” o preço. “Quando a relação comercial vira uma relação de confiança total, o trabalho se transforma em um grande prazer para ambos. Só lembro de negociar as condições de pagamento. Se eu estava com disponibilidade de dinheiro daí perguntava se ele tinha interesse em receber à vista, e assim dar um desconto, mas sobre preço nunca disse que estava caro. Ele sempre foi totalmente justo e honesto nas negociações”. Apenas uma vez Josito se lembra de Idrico ter ficado bravo em uma negociação. Há cerca de 25 anos, ele estava comprando um lote grande de portas e batentes para uma obra de um edifício em Campinas. O arquiteto explica que, no meio de 100, 200, 300 folhas de portas, às vezes chegavam unidades com algum defeito, que ele achava que extrapolava o que seria aceitável, então levava de volta à madeireira e fazia a substituição. “Quando estava prestes a fechar esse pedido, ele já tinha me dado a cotação do preço e resolvi fazer uma proposta. ‘Idrico, vamos fazer um pouco diferente desta vez. Em vez de ficar lhe aborrecendo com trocas de portas com algum defeito, o que você acha de a gente aumentar 5% no preço e eu vir aqui assistir ao carregamento do material? Daí eu mesmo faço uma seleçãozinha na hora de carregar’. O homem ficou bravo, ele recebeu a minha proposta como uma ofensa! ‘Você nunca reclamou de material que eu entreguei, agora está achando que estou fazendo porcaria? Por isso quer assistir carregar o caminhão? Você vai carregar? Você nunca fez isso! Você não entendeu ainda que em madeira não se consegue fazer duas peças iguais? Que tem madeira secada na estufa do mesmo jeito que

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outra, e que reage com o tempo de maneira diferente, e que apresenta alguma imperfeição? Você não aprendeu isso ainda? Estava na hora de aprender!’”. Apesar da discussão, ele fechou o negócio, da forma como sempre era feito. O arquiteto admite que então percebeu o quanto ele havia se ofendido com a proposta. “Era como se ele estivesse recebendo na madeireira um fiscal para saber o que ia pôr no caminhão. Percebi o quanto fui ingênuo, porque foi uma coisa de rompante, e o quanto o ofendi com isso. Imediatamente pedi desculpas, a gente até se abraçou e eu disse não queria ofendê-lo de jeito nenhum. O episódio não deixou nenhuma marca desagradável, deixou apenas o fato de a gente até hoje lembrar disso e rir do incidente”. Além da relação comercial, Idrico participou de um momento bastante importante na vida empresarial de Josito, que cria búfalos há quase 49 anos. Tietê, no final dos anos 70, chegou a ter uma quantidade bem grande de criadores de búfalos. Nos manuais de turismo, a criação de búfalos constava como atração principal da cidade. Em 1976, criadores da raça resolveram fazer uma exposição nacional de búfalos em Tietê, mas não havia recinto de exposições e nem infraestrutura. Ainda assim a exposição aconteceu, de forma totalmente improvisada, com um recinto construído em um terreno cedido pela Prefeitura. Mesmo com todo amadorismo, o evento acabou fazendo muito sucesso e teve repercussão muito grande, porque foi a primeira no âmbito nacional. No ano seguinte, os criadores queriam repetir a exposição, mas precisavam profissionalizar a sua realização. “Apesar do amadorismo total, a exposição apareceu no ‘Jornal Nacional’, recebeu turistas americanos e teve a participação de búfalos de oito ou dez estados do Brasil. Os bufaleiros de fora queriam que Tietê continuasse a sediar o evento, mas nós não víamos solução para dar continuidade à essa exposição. Então lembrei que o atual galpão da Madeireira Uliana já tinha a cobertura totalmente pronta, mas a empresa ainda continuava funcionando no centro da cidade. Era uma cobertura que se prestaria muito bem para abrigar o evento”.

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Mas havia um detalhe: nenhum dos irmãos Uliana tinha qualquer relação com a criação de búfalos, nem interesse na exposição. Mesmo assim, Josito expôs a ideia aos criadores, e eles disseram que o único que poderia apresentar essa proposta à família era ele mesmo, por sua relação comercial e de amizade. “Decidi arriscar, o máximo que podia ouvir era um não. Tive uma grande surpresa quando, ao conversar com Idrico, ele chamou os irmãos, e em menos de um minuto disse ‘está cedido o galpão para vocês’. O mais velho deles, Angelo, então falou: ‘Mas tem uma condição: vocês não vão fazer aquela porcaria que fizeram ano passado. Eu vou tomar conta das obras que tiverem de fazer debaixo do galpão, e vamos fazer uma coisa decente’. Veja a grandiosidade do desprendimento deles: além de ceder o recinto por um período de pelo menos 60 dias, entre a organização e depois desmontar tudo, Angelo gerenciou o projeto, com a mão de obra que a Prefeitura e os bufaleiros iriam fornecer. Ele sabia que nossa mão de obra não tinha capacidade de fazer uma coisa decente, então muita coisa de madeira saiu da própria Uliana. Isso tudo sem receber nada, sem interesse nenhum, seja político, seja de nada”. Segundo Josito, a segunda exposição foi um sucesso absoluto. No primeiro dia, para organizar o trânsito na Rodovia Cornélio Pires, foi preciso ajuda da Polícia Rodoviária, Guarda Municipal, voluntários, e funcionários da Prefeitura. “Ninguém esperava essa grandeza. O agradecimento dos bufaleiros foi geral. No ano seguinte, com um auxílio mais forte da Prefeitura, se criou um recinto de exposição, ao qual se deu o nome Luis Uliana, em homenagem ao pai do Idrico, como reconhecimento ao que a família tinha feito no ano anterior. Sou grato até hoje, e evidentemente que nunca me esquecerei disso”.

ef Sair de Coronel Vívida, pequena cidade paranaense ao lado de Pato Branco, para montar uma madeireira em Rondon do Pará. O que podia parecer

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loucura para alguns no final dos anos 80 se transformou em realidade para os irmãos Belusso – Fernando, Eliezer e Moacir – que embarcaram nessa aventura estimulados por Idrico Uliana. Aos 67 anos, Fernando mora atualmente em Santarém, e sua amizade com Idrico teve início por volta de 1975, quando ele estava começando a administrar a serraria do pai no Paraná. “Ele apareceu de caminhão para comprar cedro. Nessa primeira negociação aconteceu um fato interessante. Eu estava começando a fazer negócio, e acertei com meu pai o preço antes de fechar o acordo. Quando meu pai chegou ele disse que eu havia vendido muito barato para Idrico, que retrucou, ‘mas então o senhor me dá dez de lucro que eu desfaço o negócio’. Aquilo era uma brincadeira, porque o negócio já estava acertado. Foi então que ficamos amigos”. Depois daquilo, Fernando ainda vendeu madeira a Idrico mais duas ou três vezes, quando o empresário começou a falar que ele devia ir para o Norte montar uma serraria. “Ele me incentivou, dizia que aqui tinha madeira, e meu pai também tinha essa visão. Acabamos vindo e compramos uma serraria e umas áreas. Continuamos a fazer negócio com Idrico e começamos com Kiko. No começo ele me deu apoio moral, mas depois também me ajudou financeiramente. Então conheci seu irmão Alcides, seu sobrinho José Antonio (Baggio), e sempre tive apoio maciço deles. Acho que negociamos madeira até uns 7, 8 anos atrás”. A amizade ficou tão forte que Fernando o apelidou de “veio Idrico”, mesmo sabendo que ele não gostava disso. “Ele não gostava que o chamassem de velho, mas quando a gente conversava eu falava ‘veio’ e ele não ficava bravo comigo. Segundo Kiko e Antonio Carlos eu era a única pessoa que o chamava assim. Mas claro que nunca foi em tom pejorativo, sempre foi em amizade”. Além da relação comercial, Fernando se hospedou na casa de Idrico algumas vezes, e ele também em sua casa, e chegaram a viajar juntos. “Eu acho que existia uma confiança recíproca. Em honestidade e seriedade ele passava do

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prumo, assim como meu pai”, elogia. “Tenho a maior admiração do mundo por ele. Tinha horas que ele me xingava, como se faz com os filhos. Me corrigiu muitas e muitas vezes e nunca me ensinou nada errado. Ele tem muitas histórias que servem para a gente se espelhar”. Fernando não vê Idrico há cerca de quatro anos, quando esteve em sua casa em Tietê. Hoje, ele mantém mais contato com Kiko e José Antonio, com quem ainda faz algum negócio esporadicamente. “Quando eles vêm ao Pará a gente se encontra. Aquele contato constante, com o tempo, vai acabando, mas a amizade e admiração que tenho por Idrico nunca diminuíram”. Para o empresário, a primeira qualidade de Idrico é ser um pai excelente, que criou filhos maravilhosos e sempre manteve uma relação harmoniosa com toda a família. “Em segundo lugar, e não menos importante, ele é um megaempresário para a época que viveu e pelo estudo que teve. A prova está nas empresas que ele deixou. Eu o considero um segundo pai, uma pessoa fantástica. Até hoje baseio a criação da minha família nos princípios primeiro do meu pai e depois dele”.

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CapĂ­tulo 15

Homenagem merecida

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V

isionário, trabalhador, honesto, bom conselheiro, empreendedor, pai de família excelente, amoroso, brincalhão, exemplo de vida. Os adjetivos são muitos para descrever Idrico Uliana, e

inclusive lhe renderam, no dia 5 de setembro de 2017, seu aniversário de 97 anos, o nome de uma rua em Tietê, por causa do projeto 36/2017, apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Vladir Sandei e aprovado pela Casa. O local escolhido fica na Rua do Comércio, bem próximo à Rua Luiz Fernandez Diogo, onde existe uma viela de extrema importância ao tieteense, usada pela população e que facilita o trânsito de quem mora nas imediações. Por essa razão, visando oficializar a rua de servidão, identificando-a de forma correta, o prefeito solicitou à Câmara que se oficializasse a denominação de Idrico Uliana no local. Segundo o prefeito, a intenção foi, além de dar créditos – uma vez que Idrico era morador das imediações e, inclusive, foi o responsável, pela doação desse terreno – prestar às devidas homenagens a quem de fato merece. “Seu Idrico é um exemplo a ser seguido. Homem dedicado à família, sempre acreditou que o trabalho é a locomotiva da vida. Por isso, trabalhou muito e construiu um império madeirense que coloca Tietê no topo do mundo quando o assunto é arquitetura e design. Tenho certeza que essa singela homenagem acalenta o coração de todo e qualquer tieteense. Afinal, falar de seu Idrico é falar de família, dignidade, honra e, sobretudo, é falar de sucesso; características que nos enchem de orgulho e nos faz plenos de satisfação pela história da nossa cidade e pelas vitórias dos homens que aqui vivem.”

Fim

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