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É Bom Voltar e Apaziguar

Voltámos a casa, avó. Voltámos a casa e a chuva golpeia a janela do avião. Ainda estamos no aeroporto, à espera das malas que despachámos no Camboja. Recordas as estórias que me contavas, avó? Sobre uma Lisboa que já não existe? Sobre o meu pai que, quando adolescente, passava horas a observar a chegada e a partida dos aviões desde a varanda do bar do aeroporto?

Contaste-me que fazia todo esse caminho a pé, só para observar os aviões: descia o Vale do Silêncio, subia a Avenida de Berlim, e finalmente atravessava a Rotunda do Aeroporto; subia as escadas, recolhia o ticket de cinco escudos consumíveis, e assim gastava incontáveis horas, intermináveis tardes. Era algo muito popular na altura, não era?

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Aos fins-de-semana as famílias reuniam-se ao redor das mesas metálicas, sob guarda-sóis que os protegiam do impiedoso calor de Agosto; as crianças partilhavam torradas com manteiga, os adultos dividiam acepipes e, à sua frente, o constante espectáculo destes gigantes pássaros metálicos.

eImagino o meu pai, de gadelha e bigode fartos, com um cigarro entre os lábios e uma chávena de café a seu lado. Imagino livros sobre a mesa que ocupa: Os Passos em Volta de Herberto Helder, ou Levantado do Chão, de Saramago. Imagino-o entre a multidão, a desenhar os lugares distantes, além-mar, para onde voam estes aviões. Lembras-te como desenhava o meu pai? Desenhava tão bem, pena ter parado. Também costumavas ir à varanda do bar do aeroporto, avó? Pois, trabalhavas muito, eu sei. No laboratório e depois em casa, eu sei. O teu tempo livre era escasso, eu sei, avó, eu sei.

Quem me dera recuar no tempo, avó. Aos dias em que tinhas a idade que hoje tenho, quando migraste do Alentejo para esta cidade que se agigantava, antes do teu cabelo esbranquiçar e das tuas mãos te falharem.

Quem me dera ter conhecido o bar do aeroporto; fotografá-lo a película como tanto gosto. Não imaginas o quão cara a película está, avó. Custa o preço do ouro. Quem me dera observar a partida dos aviões TAP para Madrid, Paris, Luanda, Beira; a chegada dos Pan Am de Nova Iorque e de Boston, dos Varig de São Paulo e do Rio.

Quem me dera percorrer o átrio principal; serpentear entre as longas lágrimas pelos que partiam e os apertados abraços àqueles que retorna-

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