Cadernos d’ RECENSÃO
CRÍTICA DO LIVRO:
APRENDER FORA
DA
ESCOLA –
PERCURSOS DE FORMAÇÃO EXPERIENCIAL
CÁRMEN CAVACO Introdução Foi de facto uma boa descoberta a leitura do livro de Cármen Cavaco sobre a aprendizagem fora da escola. Tratando-se de uma dissertação de mestrado –
em Ciências da Educação – Formação de Adultos, orientado
pelo prof. Rui Canário – é admirável a forma como a autora analisa a realidade dos adultos não escolarizados em meio rural, a forma como aprendem e como desenvolvem competências, em articulação com um enquadramento teórico tão claro e tão enriquecido com a matéria real de investigação. Desde muito cedo no texto, a autora apresenta de forma clara e directa o objectivo que norteia a sua tese: “compreender o processo de formação de adultos não escolarizados, residentes em meio rural”. Este é o objectivo central do estudo, dando lugar, depois, a um conjunto de outros pequenos objectivos, de outras questões que se cruzam com esta, central. Traçar um objectivo desta natureza, que procura investigar, analisar, descrever e compreender processos de aprendizagem fora do contexto escolar implica necessariamente partir de um pressuposto intuível, mas que a autora torna explícito conjuntamente com os seus objectivos: “os adultos nãoescolarizados são portadores de saberes, que adquirem ao longo do seu percurso de vida e lhes garantiram a inserção no contexto familiar, profissional e social”. Dito de outra forma, o que está aqui em questão – assumindo que todos nós, incluindo portanto os adultos não-escolarizados, aprendemos, adquirimos saberes de vários tipos ao longo da nossa vida, do nosso processo de socialização, de forma mais ou menos informal – é interrogarmo-nos sobre como se processa essa mesma aprendizagem,
Luis Castanheira Pinto Fevereiro de 2005
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Cadernos d’ como, quando, onde, em que contextos ela tem lugar. A autora define pois a sua questão orientadora da seguinte forma: “como se caracteriza o processo de formação de adultos não-escolarizados, residentes em meio rural?” Clarificados os objectivos, os pressupostos orientadores e a questão central do estudo, fica por conhecer a metodologia a utilizar para obter resultados tratáveis com estes fins. A este respeito, a autora explica que, perante um leque considerável de opções todas elas válidas, credíveis e pertinentes, a sua escolha incidiu sobre a entrevista biográfica. Explica a autora que “na presente investigação, pretende-se compreender o processo de formação de adultos não-escolarizados; deste modo, pensou-se que o mais adequado seria a realização de entrevistas individuais e orientadas para determinados aspectos da vida das pessoas (vida profissional, familiar, social),...” Enquadramento Teórico Educação de adultos uma dinâmica global: entre o escolar e o experencial De todo o conteúdo deste livro, foi a secção dedicada àquilo que poderíamos chamar de enquandramento teórico a que mais prendeu a minha atenção. Salientaria deste enquadramento teórico, três aspectos que considerei particularmente relevantes: (1) a clarificação do que é entendido por “educação de adultos”, (2) a distinção entre o uso dos termos “analfabeto”, “iliterado” e “não-escolarizado” e, finalmente, (3) o capítulo mais importante sobre “educação informal, aprendizagem e formação experiencial”. Educação de Adultos O termo educação de adultos, tão comummente utilizado nos contextos mais
variados,
compreende,
segundo
a
autora,
“um
conjunto
de
modalidades e situações educativas muito amplas e distintas”. É portanto, polissémico. Para o trabalho, entende-se a educação de adultos no seu
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Cadernos d’ sentido mais amplo, como sendo a “totalidade dos processos educativos que estão presentes ao longo da vida”. O que importa reter desta opção conceptual é o esforço de entender a educação de adultos para lá dos processos de escolarização, para lá daquilo que António Nóvoa (cit) criticava como sendo “os métodos para dar aos adultos a escola que não tiveram na infância”. Neste sentido, a educação de adultos é diferente de alfabetização ou de ensino recorrente. Se esta abordagem é importante, desde logo, pela amplitude de horizontes educativos que propõe – a aprendizagem em contextos formais (escolares), não-formais ou informais – ela é não menos importante pela chamada de atenção que faz em relação à especificidade da forma como os adultos aprendem. No entanto, a autora não explora em profundidade esta última questão; voltaremos a ela mais tarde. Analfabetismo e Alfabetização Deliberadamente, a autora decide distanciar-se neste estudo do conceito de analfabetismo e, portanto, de alfabetização (e ainda de iliteracia). De entre as diversas razões que justificam este afastamento, a central reside na ideia de que os analfabetos têm sido vítimas, historicamente, de uma forte estigmatização
social
e
que,
por
consequência,
os
processos
de
alfabetização mais não fazem do que reforçar esse mesmo estigma. Pelas suas palavras, “a construção social de um problema está na origem da construção de representações sobre as pessoas que são atingidas por um determinado fenómeno social, neste caso específico o analfabetismo”. O mesmo se passa com a iliteracia que, segundo a autora, mais não é do que um “novo analfabetismo”, assim designado com vista a evitar precisamente aquele mecanismo de estigmatização associado ao termo “analfabetismo”.
A
razão
que
está
na
origem
desta
mudança
de
terminologia surge com o reconhecimento da existência de analfabetismo nas
sociedades
mais
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desenvolvidas
(até
aí
impensável).
“Falar
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Cadernos d’ analfabetismo em sociedades com total expansão da rede escolar e da escolaridade obrigatória era admitir que o sistema escolar não estava a cumprir o seu papel, o que o obrigava a questionar o modelo escolar e a sua adequação às expectativas e necessidades dos vários tipos de públicos”. Ao querer distanciar-se destes termos, a autora demonstra na realidade uma grande preocupação em relação aos sujeitos do seu próprio estudo, não apenas evitando que o próprio processo de estigmatização se reproduza,
como
também
procurando
valorizar
outras
formas
de
aprendizagem, de conhecimentos adquiridos longe dos mecanismos de ensino formal, para lá da escolarização. Educação Informal, Aprendizagem e Formação Experiencial Educação Formal, Não-Formal e Informal “... a demasiada confiança que se depositou na escola provocou uma «cegueira generalizada».” (cit Lahire, 1999, p.84) Uma das grandes virtudes deste texto, é que ele coloca em destaque a amplitude de espaços educativos, segmentados nos conceitos de “educação formal”, “educação não-formal” e “educação informal”. A autora serve-se assim de uma distinção proposta por Coombs na década de 70 e hoje abundantemente utilizada por uma variedade de instituições internacionais tão diversas como a União Europeia, o Conselho da Europa ou a UNESCO. Consciente destes três sectores de aprendizagem, a autora coloca o âmbito deste estudo no sector da educação informal. É importante compreender esta opção precisamente porque ao questionar “como se caracteriza o processo de formação de adultos não-escolarizados”, este estudo está na realidade a querer saber como ocorreram processos de aprendizagem praticamente
espontâneos,
nem
sempre
conscientes,
raramente
intencionais, fora de qualquer situação de formação estruturada ou organizada. Ou seja, está no fundo a querer saber como se caracterizou o
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Cadernos d’ processo de educação informal destes adultos, deixando de parte aquilo que poderíamos chamar de educação não-formal. Recolhendo alguns apontamentos sobre este tema ao longo do texto, podemos dizer que, para a autora, “a educação informal apresenta-se como uma modalidade educativa não organizada, que pode ser intencional ou não, e que se designa de educativa em consequência dos seus efeitos na alteração dos conhecimentos, comportamentos e atitudes dos indivíduos. (...) está presente desde que existe o Homem, assim como a aquisição de saberes por via experiencial (...). O termo educação informal surge como complementar das outras duas modalidades educativas, (...). A educação informal ocorre ao longo da vida, na diversidade de contextos e, inclusivamente, também nas situações de educação formal e não-formal.” Importa aqui realçar que esta relevância atribuída aos processos de aprendizagem desenvolvidos em contextos informais não é frequente; ao contrário, ela surge contra uma corrente dominante de valorização das vias formais de ensino, completamente inscrita no que chamamos hoje a forma escolar moderna. A autora explica isto mesmo e justifica a maior atenção prestada actualmente à educação informal, não tanto como estratégia de valorização dos espaços extra-escolares, mas antes como resposta a uma encruzilhada da própria política educativa assente na predominância da forma de ensino em contexto escolar. Na realidade, este reconhecimento não se faz sem prejuízo para o peso do sector formal. Aliás, ele coloca em questão todo um património acumulado de saber, conhecimento e competências vinculado e confiado à escola. “No geral, pode dizer-se que estudar e reconhecer o valor da educação informal permite questionar a educação formal (os seus métodos, processos de ensino-aprendizagem, os conteúdos) e, no geral, todo o processo educativo”.
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Cadernos d’ Formação Experiencial A formação é entendida, grosso modo, “como um processo de transformação e de integração da experiência pessoal.” (cit Landry, 1989) Esta relação forte entre formação e experiência, entre vida e aprendizagem, cristaliza, no fundo, a base de sustentação conceptual deste estudo e, em última análise, das respostas à questão central que o norteia – como se caracteriza o processo de formação de adultos não-escolarizados em contexto rural. A
autora
explica
a
multidimensionalidade
do
conceito
de
formação
experiencial (assim como as nuances terminológicas entre formação experiencial e aprendizagem experiencial) e aponta, ao longo do texto, algumas das suas características comuns. A formação experiencial tem um forte potencial heurístico, a avaliação é feita pelo próprio aprendente, há sempre um contacto directo entre o sujeito e o objecto de aprendizagem, o contexto de aprendizagem nunca é neutro, provoca frequentemente uma tensão e eventualmente uma ruptura com quadros de referência, etc. Em termos sintéticos, e seguindo a proposta de Kolb, o processo de formação experiencial de que a autora nos fala, em quatro etapas, pode ser descrito esquematicamente da seguinte forma: Prática
Aplicação
Reflexão
Conceptualização
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Cadernos d’ Estas quatro etapas do ciclo de formação dão lugar ao que Kolb designa de quatro “estilos de aprendizagem”: (1) a aprendizagem a partir da experiência concreta, (2) da observação reflectida, (3) da conceptualização abstracta ou da (4) experimentação activa. Este esquema – este ciclo, ou este processo, como o queiramos entender – ajuda a compreender aquilo que a autora mais tarde vai designar como sendo uma “forte actividade intelectual” na formação dos adultos nãoescolarizados em meio rural. Na realidade, aquilo que nos parece à primeira vista intuitivo, inato, “normal” no ser humano, incorpora uma intensíssima actividade de reflexão, de abstração e aplicação, num sentido ora indutivo, ora dedutivo, em permanência ao longo de toda a vida. O modelo escolar, assente na “constituição de um universo separado para a infância, do recurso às regras de aprendizagem, à organização racional do tempo, à multiplicação e repetição de exercícios que não têm outra função senão a de aprender e aprender segundo regras” (Vincent e outros, 1994:39), ao privilegiar aquilo a que chamaríamos de saber enciclopedico, deixa-nos acreditar que este tipo de processo de aprendizagem, experiencial, tem menos
valor,
e
é
portanto
menos
merecedor
de
ser
reconhecido
socialmente. Como já foi dito, esta abordagem conceptual e teórica – de valorização da educação informal e da aprendizagem experiencial – vai ser validada por este estudo. Os adultos não escolarizados, em meio rural, aprenderam, adquiriram um conjunto alargado de competências enunciáveis, e fizeramno através, entre outras coisas, de uma actividade intelectual intensa.
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Cadernos d’ Conclusões do Estudo Das conclusões apresentadas pela autora – e que ela afirma não serem generalizáveis – gostaria de salientar as que respondem a quatro das questões (dos objectivos específicos) a meu ver mais relevantes deste estudo: Que tipo de aprendizagens ocorreram nos contextos profissionais, familiares e sociais? O estudo evidencia que se tratam de aprendizagens diversificadas, cruzando saberes multidimensionais: saber, saber-fazer e saber-ser. A transmissão do conhecimento e informação é altamente contextualizada – aprendizagem experiencial em estreita ligação com a acção. Trata-se normalmente de conhecimentos resultantes da tradição oral (lendas, adivinhas, orações, lenga-lengas), de conhecimentos relacionados com a literacia (conhecer os números e o seu valor, conhecer o dinheiro nacional, domínio básico de uma língua estrangeira, sinais e regras de trânsito) e de conhecimentos referentes à natureza e aos recursos (orientação no espaço, previsão do clima, locais de alimentos). “Os
entrevistados
adquiriram
também
um
conjunto
de
saberes-ser
fundamentais ao seu desempenho profissional e à sua vida familiar e social tais como: capacidade de comunicação, espírito de iniciativa, de risco e empreendimento, capacidade de relacionamento interpessoal, capacidade para gerir e rentabilizar os recursos existentes, assumir uma atitude optimista face às dificuldades e exigências profissionais, familiares e sociais e uma atitude de investimento permanente na aprendizagem.”
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Cadernos d’ Como adquiriram os saberes e competências evidenciados nos contextos profissionais, familiares e sociais? Os saberes em questão foram adquiridos unicamente através da educação informal, muitas vezes sem qualquer intencionalidade educativa, e tendo por referência a sua utilidade. Observa-se que quanto maior a exigência e os desafios, mais rica e diversificada é a aprendizagem. A aquisição de saberes resulta quase sempre das experiências vividas: mecanismos de observação, imitação e experimentação (tentativa e erro). Foram adquiridos num contínuo de situações educativas, implicando um esforço permanente de mobilização do que foi anteriormente adquirido. São conhecimentos gerados, portanto, a partir de um intenso processo reflexivo: aprendizagens relacionadas com a dimensão saber resultantes de processos indutivos. Apesar de se tratar de uma aprendizagem altamente contextualizada, há lugar à transferência de saberes (aplicação em contextos diferentes daqueles onde os adquiriram). Em todo este processo, torna-se evidente a importância da memória e da oralidade. “... a formação experiencial não se limita ao vivido e à experiência, ela supõe uma actividade intelectual intensa, afim de confrontar a experiência, de a integrar, de lhe dar sentido e de a voltar a investir.” (cit Landry, 1989) Que percepção têm da escola e dos cursos de alfabetização? As
conclusões
extraídas
da
resposta
a
esta
questão
revelam-se
extremamente interessantes. Relativamente à escola, a maioria dos adultos não-escolarizados entrevistados têm uma percepção muito positiva. Entendem que ela favorece a inserção e progressão profissional e representa, portanto, uma mais valia muito importante. No entanto, acham que esta não lhes fez falta – a sua vida seria a mesma com ou sem escolarização.
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Cadernos d’ Já no que respeita aos cursos de alfabetização, os entrevistados desvalorizam essa experiência, explicando que, por um lado, não estavam motivados para esse tipo de saberes – desmotivação essa compreensível pelo facto de o domínio das competências de literacia não serem uma condição necessária à sua sobrevivência – e, por outro lado, sentiam uma inadequação dos conteúdos, das metodologias e atitudes dos formadores em relação ao seu contexto e às suas necessidades específicas.
Qual a sua percepção das alterações sociais, económicas e políticas? Apesar de se situarem num nível de iliteracia elevado, os adultos não escolarizados
entrevistados
revelaram
uma
grande
capacidade
de
interpretação do mundo à sua volta, sendo capazes e procurando mesmo comentar questões de actualidade política, social ou económica. A autora sugere uma frase de Paulo Freire para explicar este resultado: “... desde muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos rodeia; por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos “lendo”, bem ou mal, o mundo que nos cerca.” Com estas conclusões – entre outras – fica não apenas respondida a questão central deste estudo, de como se caracteriza o processo de aprendizagem de adultos não-escolarizados em meio rural, como ainda validado o pressupossto de base e reforçada a importância da educação informal e da experiência na formação dos adultos. O que este estudo não nos diz, no entanto, é que tipo de aprendizagens tiveram lugar de forma espontânea, não intencional, e que tipo de aprendizagens foram “provocadas”, geradas com um propósito educativo orientado e estruturado. Por outras palavras, fica por explorar como se caracteriza o processo de aprendizagem dos adultos não escolarizados em contexto de educação não formal.
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Cadernos d’
O que sabemos hoje é que o processo acima proposto por Kolb pode ser proporcionado, de forma orientada e estruturada, com fins educativos específicos. Seria interessante conhecer em particular se estes adultos passaram por experiências deste tipo, como se caracterizaram, e que resultados evidenciaram; sendo que não estamos aqui a falar nem de ensino recorrente, nem de cursos de alfabetização, mas sim de uma estratégia de educação de adultos que transforma um ciclo “natural” de aprendizagem experiencial, numa metodologia de formação específica.
BIBLIOGRAFIA: Cavaco, Carmen (2002), Aprender fora da escola - Percursos de formacão experiencial, Lisboa, Educa.
Vincent, Guy (1994), L’éducation prisonnière de la forme scolaire?, Lyon, Presses Universitaires de Lyon.
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