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ANTOLOGIA POÉTICA Selecção e prefácio por Inês Marques Miguel Ferreira Rita Sampaio


Prefácio: Este livro é uma antologia poética constituída por obras de poetas de diferentes partes do Mundo, mas sobretudo de países de língua oficial portuguesa. A maior parte dos poemas que foram inseridos nesta obra não são de interpretação fácil, mas a exigência faz parte do período de aprendizagem pelo qual nós, seleccionadores do conteúdo das páginas que estão prestes a ler, estamos a passar.

Os poemas não estão ordenados por alguma ordem em especial, apenas com a ordem pela qual os encontrámos e escolhemos segundo os nossos gostos, segundo os critérios pessoais de cada um. Não há, portanto, nenhuma temática específica que o livro procure abordar mais a fundo. O leitor poderá aqui encontrar e envolver-se em trabalhos de autores que vão desde Camões, poeta amplamente traduzido e admirado, considerado por muitos a figura cimeira da língua e literatura portuguesas, ou Fernando Pessoa (e seus heterónimos, com os quais conseguiu criar diversas personalidades e estados de espírito), a Florbela Espanca, onde o sofrimento, a solidão, o desencanto, aliados à imensa ternura e a um desejo de felicidade plena, que só poderá ser alcançada no infinito, constituem a temática veiculada na sua magnífica linguagem poética, passando por músicos como José Afonso e James Morrison.

O nosso objectivo é que desfrutem tanto desta leitura como nós, seleccionadores, desfrutámos da pesquisa e de pôr mão à obra, criando esta compilação. Esperamos que se possam sentir através deste mar de poesia, acima de tudo, felizes e que todo o tempo a nós dedicado seja tempo ganho.

Cumprimentos poéticos.


«He hum não querer mais que bem querer» (X) Eu queria mais altas as estrelas, Mais largo o espaço, o sol mais criador, Mais refulgente a lua, o mar maior, Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas Das almas, mais rosais a abrir em flor, Mais montanhas, mais asas de condor, Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida, - Quanto mais funda e lúgubre a descida Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente, Um dia adormecer, serenamente, Como dorme no berço uma criança!

Florbela Espanca


Adeus Tristeza Na minha vida tive palmas e fracassos Fui amargura feita notas e compassos Aconteceu-me estar no palco atrás do pano Tive a promessa de um contrato por um ano A entrevista que era boa E o meu futuro foi aquilo que se viu Na minha vida tive beijos e empurrões Esqueci a fome num banquete de ilusões Não entendi a maior parte dos amores Só percebi que alguns deixaram muitas dores Fiz as cantigas que afinal ninguém ouviu E o meu futuro foi aquilo que se viu Adeus tristeza, até depois Chamo-te triste por sentir que entre os dois Não há mais nada pra fazer ou conversar Chegou a hora de acabar Na minha vida fiz viagens de ida e volta Cantei de tudo por ser um cantor à solta Devagarinho num couplé pra começar Com muita força no refrão que é popular Mas outra vez a triste sorte não sorriu E o meu futuro foi aquilo que se viu Na minha vida fui sempre um outro qualquer Era tão fácil, bastava apenas escolher Escolher-me a mim, pensei que isso era vaidade Mas já passou, não sou melhor mas sou verdade Não ando cá para sofrer mas para viver E o meu futuro há-de ser o que eu quiser

Fernando Tordo


Dies irae Apetece cantar, mas ninguém canta. Apetece chorar, mas ninguém chora. Um fantasma levanta A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita. Apetece fugir, mas ninguém foge. Um fantasma limita Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre. Apetece matar, mas ninguém mata. Um fantasma percorre Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! Maldição do tempo em que vivemos, Sepultura de grades cinzeladas, Que deixam ver a vida que não temos E as angústias paradas!

Miguel Torga


Natal Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade Nem veio nem se foi: o Erro mudou. Temos agora uma outra Eternidade, E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. Louca, a Fé vive o sonho do seu culto. Um novo deus é só uma palavra. Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa


O dia em que eu nasci, moura e pereça

O dia em que eu nasci, moura e pereça Não o queira jamais o tempo dar, não torne mais ao mundo e, se tornar, eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se escureça, mostre o mundo sinais de se acabar, nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes, as lágrimas no rosto, a cor perdida, cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes, que este dia deitou ao mundo a vida mais desgraçada que jamais se viu

Luís de Camões


"Requiem" de Mozart I Ouço-te, ó música, subir aguda à convergente solidão gelada. Ouço-te, ó música, chegar desnuda ao vácuo centro, aonde, sustentada e da esférica treva rodeada, tu resplandeces e cintilas muda como o silente gesto, a mão espalmada por sobre a solidão que amante exsuda e lacrimosa escorre pelo espaço além de que só luz grita o pavor. Ouço-te lá pousada, equidistante desse clarão cuja doçura é de aço como do frágil mas potente amor que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

II Ó música da morte, ó vozes tantas e tão agudas, que o estertor se cala. Ó música da carne amargurada de tanto ter perdido que ora esquece. Ó música da morte, ah quantas, quantas mortes gritaram no que em ti não fala. Ó música da mente espedaçada de tanto ter sonhado o que entretece, sem cor e sem sentido, no fervor de sublimar-se nesse além que és tu. Ó vida feita uma detida morte. Ó morte feita um inocente amor. Amor que as asas sobre o corpo nu fecha tranquilas no possuir da sorte.

Jorge de Sena


Já não me importo

Já não me importo Até com o que amo ou creio amar. Sou um navio que chegou a um porto E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta Do que quis ou achei. Cheguei da festa Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar Que, sem o poder ver, Sei que é sem ar De olhar a valer.

E só me não cansa O que a brisa me traz De súbita mudança No que nada me faz.

Fernando Pessoa


A Morte Saiu à Rua

A morte saiu à rua num dia assim Naquele lugar sem nome para qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai E um rio de sangue de um peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual Só olho por olho e dente por dente vale

À lei assassina, à morte que te matou Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim Que um dia rirá melhor quem rirá por fim

Na curva da estrada há covas feitas no chão E em todas florirão rosas de uma nação.

José Afonso


Pedra Filosofal Eles não sabem que o sonho

máscara grega, magia,

é uma constante da vida

que é retorta de alquimista,

tão concreta e definida

mapa do mundo distante,

como outra coisa qualquer,

rosa-dos-ventos, Infante,

como esta pedra cinzenta

caravela quinhentista,

em que me sento e descanso,

que é cabo da Boa Esperança,

como este ribeiro manso

ouro, canela, marfim,

em serenos sobressaltos,

florete de espadachim,

como estes pinheiros altos

bastidor, passo de dança,

que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam

Colombina e Arlequim,

em bebedeiras de azul.

passarola voadora, pára-raios, locomotiva,

Eles não sabem que o sonho

barco de proa festiva,

é vinho, é espuma, é fermento,

alto-forno, geradora,

bichinho álacre e sedento,

cisão do átomo, radar,

de focinho pontiagudo,

ultra-som, televisão,

que fossa através de tudo

desembarque em foguetão

num perpétuo movimento.

na superfície lunar.

Eles não sabem que o sonho

Eles não sabem, nem sonham,

é tela, é cor, é pincel,

que o sonho comanda a vida,

base, fuste, capitel,

que sempre que um homem sonha

arco em ogiva, vitral,

o mundo pula e avança

pináculo de catedral,

como bola colorida

contraponto, sinfonia,

entre as mãos de uma criança.

António Gedeão


Blues Fúnebre

Parem todos os relógios, desliguem o telefone, Impeçam o cão de latir com um osso enorme, Silenciem os pianos e ao som abafado dos tambores Tragam o caixão, deixem as carpideiras carpir suas dores.

Deixem os aviões aos círculos a gemer no céu Rabiscando no ar a mensagem Ele Morreu, Ponham laços crepe nas pombas brancas da nação, Deixem os sinaleiros usar luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste, Minha semana de trabalho, meu Domingo de festa Meu meio-dia, meia-noite, minha conversa, minha canção; Pensei que o amor ia durar para sempre: foi ilusão.

As estrelas já não são precisas: levem-nas uma a uma; Desmantelem o sol e empacotem a lua; Despejem o oceano e varram a floresta; Porque agora já nada de bom me resta.

W.H.Auden


Como Visto Nos Uffizi Uma audiência de pastores Assiste em adoração Enquanto Maria embala O bebé com devoção.

Ao lado de Maria está José. Ele olha para o infinito. Seu fito é a meia distância. Desejaria que tivessem ido

Pela montanha alta acima Pela borda ao povoado Morar por entre os pastores Até tudo acalmar um bocado

Dan Brown


Sei um ninho Sei um ninho. E o ninho tem um ovo. E o ovo, redondinho, Tem lรก dentro um passarinho Novo.

Mas escusam de me atentar: Nem o tiro, nem o ensino. Quero ser um bom menino E guardar Este segredo comigo. E ter depois um amigo Que faรงa o pino A voar...

Miguel Torga


Liberdade Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada, Estudar é nada. O sol doira Sem literatura. O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança; do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria, e, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mor espanto, que não se muda já como soía.

Luís de Camões


Acordo de noite subitamente

Acordo de noite subitamente. E o meu relógio ocupa a noite toda. Não sinto a Natureza lá fora, O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas. Lá fora há um sossego como se nada existisse. Só o relógio prossegue o seu ruído. E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa Abafa toda a existência da terra e do céu... Quase que me perco a pensar o que isto significa, Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca, Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa É a curiosa sensação de encher a noite enorme Com a sua pequenez...

Fernando Pessoa


Pedras no caminho? "Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo... E que posso evitar que ela vá à falência. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se um autor da própria história... É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma... É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um 'não'!!! É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta...

Pedras no caminho?

Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."

Fernando Pessoa


Poema à Amizade Pode ser que um dia deixemos de nos falar... Mas, enquanto houver amizade, Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe... Mas, se a amizade permanecer, Um de outro se há-de lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos... Mas, se formos amigos de verdade, A amizade reaproximar-nos-á.

Pode ser que um dia não mais existamos... Mas, se ainda existir amizade, Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe... Mas, com a amizade construiremos tudo novamente, Cada vez de forma diferente. Sendo único e inesquecível cada momento Que juntos viveremos e lembraremos para sempre.

Há duas formas para viver a vida:

Uma é acreditar que não existe milagre. A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.

Albert Einstein


Não Tocar na Terra

Não tocar na terra, não ver o sol Nada mais a fazer a não ser fugir, fugir, fugir Vamos fugir, vamos fugir Casa no topo do monte, a lua jaz quieta Sombras nas árvores testemunhando a brisa selvagem Anda, querida, foge comigo Vamos fugir Foge comigo, foge comigo, foge comigo Vamos fugir A mansão é amena no topo do monte Ricos são os quartos e os confortos lá Vermelhos são os braços de luxuosas cadeiras E não vais saber nada até entrares lá dentro Corpo morto do Presidente no carro do condutor O motor funciona a cola e alcatrão Anda connosco, não vamos muito longe Para Este conhecer o Czar Foge comigo, foge comigo, foge comigo Vamos fugir Alguns foras da lei vivem junto ao lago A filha do ministro está apaixonada pela serpente Que vive num poço junto à estrada Acorda, rapariga, Estamos quase em casa Sol, sol, sol Queima, queima, queima Lua, lua, lua Apanhar-te-ei em breve... em breve... em breve! Eu sou o Rei Lagarto Posso fazer qualquer coisa

James Douglas Morrison


Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta, Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter, Pergunto a mim próprio devagar Porque sequer atribuo eu Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza? Tem beleza acaso um fruto? Não: têm cor e forma E existência apenas. A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão. Não significa nada. Então porque digo eu das coisas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver, Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens Perante as coisas, Perante as coisas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ser senão o visível!

Alberto Caeiro


Segue o teu destino Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias.

A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses.

Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam.

Ricardo Reis


Deus Às vezes sou o Deus que trago em mim E então eu sou o Deus e o crente e a prece E a imagem de marfim Em que esse deus se esquece.

Às vezes não sou mais do que um ateu Desse deus meu que eu sou quando me exalto. Olho em mim todo um céu E é um mero oco céu alto.

Fernando Pessoa


O Universo não é uma ideia minha

O Universo não é uma ideia minha. A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Alberto Caeiro


Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira a entreter a razão, Esse comboio de corda que se chama o coração.

Fernando Pessoa


Às vezes, em sonho triste

Às vezes, em sonho triste Nos meus desejos existe Longinquamente um país Onde ser feliz consiste Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce Sem o querer nem saber. Nessa ilusão de viver O tempo morre e renasce Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar São banidos dessa terra. O amor não é amor Nesse país por onde erra Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive: É uma infância sem fim. Parece que se revive Tão suave é viver assim Nesse impossível jardim.

Fernando Pessoa


Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis


Epígrafe Murmúrio de água na clepsidra gotejante, Lentas gotas de som no relógio da torre, Fio de areia na ampulheta vigilante, Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem que fazes tu? Para quê tanta lida, Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça? Procuremos somente a Beleza, que a vida É um punhado infantil de areia ressequida, Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...

Eugénio de Castro


Eu Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino, amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca


Torre de Névoa

Subi ao alto, à minha Torre esguia, Feita de fumo, névoas, e luar, E pus-me, comovida, a conversar Com os poetas mortos, todo dia. Contei-lhes os meus sonhos, a alegria Dos versos que são meus, do meu sonhar, E todos os poetas, a chorar, Responderam-me então: "Que fantasia, Criança doida e crente! Nós também Tivemos ilusões, como ninguém, E tudo nos fugiu, tudo morreu!..." Calaram-se os poetas, tristemente... E é desde então que eu choro amargamente Na minha Torre esguia junto ao céu!...

Florbela Espanca


Ser Poeta Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca


Amar! Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? É mal? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar

Florbela Espanca


Terror de te amar Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição Onde tudo nos quebra e emudece Onde tudo nos mente e nos separa

Sophia de Mello Breyner


Amor é um fogo que arde sem se ver

Amor é um fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se e contente; É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís Vaz de Camões


Poema em linha recta Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cómico criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado, Para fora da possibilidade do soco; Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo, Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho, Nunca foi senão - príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses! Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos


Sou um guardador de rebanhos O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei da verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro


O Suspiro Voai, brandos meninos tentadores, Filhos de Vénus, deuses da ternura, Adoçai-me a saudade amarga e dura, Levai-me este suspiro aos meus amores:

Dizei-lhe que nasceu dos dissabores Que influi nos corações a formosura; Dizei-lhe que é penhor da fé mais pura, Porção do mais leal dos amadores:

Se o fado para mim sempre mesquinho, A outro of'rece o bem de que me afasta, E em ais lhe envia Ulina o seu carinho:

Quando um deles soltar na esfera vasta, Trazei-o a mim, torcendo-lhe o caminho; Eu sou tão infeliz, que isso me basta.

Bocage


Este livro é uma antologia poética e contem textos da autoria de diversos prestigiados poetas como Luís Vaz de Camões, Florbela Espanca ou Fernando Pessoa. Os textos que nele podem ser encontrados foram seleccionados por Inês Marques, Miguel Ferreira e Rita Sampaio, que tiveram como critérios de selecção os seus gostos pessoais e a tentativa de os adequar com o gosto do leitor. Aliada à escolha dos textos poéticos está ainda a elaboração de um breve prefácio explicativo da criação da obra.


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