Livro Terras Sem Sombra 2016

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Fundado em 2003, o Fe stiv al Te rras se m So mbra tem vindo a afirmar-se como o mais destacado do seu género em Portugal.

a É uma iniciativa da sociedade

civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, as igrejas da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra. a Resulta da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo e Ribatejo, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas locais e as famílias, sem esqueçer as instituições nacionais e internacionais aqui radicadas. a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo.

a Tem uma programação de qualidade internacional de que fazem

parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística. a O diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras. a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.

a A valorização

dos recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre. a Da carta mag na do Festival, fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade.

a Os concertos e demais actividades são de

acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.

TERRAS SEM SOMBRA | 12.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2016

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FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO

terras sem sombra Torna-Viagem O Brasil, a África e a Europa (Da Idade Média ao Século XXI)



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Sob o Alto Patrocínio de Sua Ex.ª o Embaixador do Brasil, Dr. Mário Vilalva


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terras sem sombra 12.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO 2016

Torna-Viagem O Brasil, a África e a Europa (Da Idade Média ao Século XXI)

sob a direcção de

José António Falcão


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DIRECÇÃO-GERAL

TRADUÇÃO1

José António Falcão

José António Falcão Manuel Gracia Rivas Maria das Dores Galante de Carvalho Maria de Fátima Egydo Nobre Pedro Lourenço Ferreira

DIRECÇÃO ARTÍSTICA

Juan Ángel Vela del Campo DIRECÇÃO EXECUTIVA

Sara Fonseca COMISSÃO ORGANIZADORA

António Gonçalves Francisco Lobo de Vasconcellos Joaquim José Galante de Carvalho José António Falcão Miguel de Pape Miguel Gaspar Sara Fonseca

FOTOGRAFIA2

Daniel Malhão Francisco Borba Imagens de Luz Joaquim José Galante de Carvalho Miguel Gaspar Sara Fonseca Sofia Perestrello DESIGN

Beatriz Horta Correia/Linha de Letras CONSULTOR

Pedro Azenha Rocha (Conservação da Natureza)

REVISÃO

António José Massano COMUNICAÇÃO

Ana Abrantes Carla Alves Andreia Teixeira e Bruno Ribeiro/PMW

IMPRESSÃO

Greca DEPÓSITO LEGAL

TEXTOS

Albert Recasens Alberto Corazón Alberto Zedda Alfredo Aracil Ana Santos Diogo Fernandes Francisco Torrão Iskrena Yordanova Ismael Fernández de la Cuesta Jean-Christophe Frisch João Guilherme Ripper José António Falcão José Miguel Almeida José Vicente González Valle Juan Ángel Vela del Campo Lidija Šircelj Lina Tur Bonet Maria João Vieira Massimo Mazzeo Pedro Azenha Rocha Polo Vallejo Sidney Molina

406659/16 © Departamento do Património Histórico e Artístico

da Diocese de Beja e Pedra Angular – Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja. Imagem da capa: Retábulo da capela-mor [pormenor]. Manuel João da Fonseca. 1703-1704. Beja, igreja de Nossa Senhora ao Pé da Cruz.

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A fixação dos textos interpretados é da responsabilidade

dos intérpretes e grupos convidados. 2

As demais fotografias são da responsabilidade dos intér-

pretes e grupos convidados.


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“UMA MÚSICA QUE SEJA... como os mais belos harmónicos da natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios, aumentando gradativamente de tom até atingir aquele em que se cria uma reta ascendente para o infinito. Uma música que comece sem começo e termine sem fim. Uma música que seja como o som do vento numa enorme harpa plantada no deserto. Uma música que seja como a nota lancinante deixada no ar por um pássaro que morre. Uma música que seja como o som dos altos ramos das grandes árvores vergastadas pelos temporais. Uma música que seja como o ponto de reunião de muitas vozes em busca de uma harmonia nova. Uma música que seja como o vôo de uma gaivota numa aurora de novos sons...” VINICIUS DE MORAES, Antologia Poética, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2015, p. 230.


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Conselho de Curadores do Festival Terras sem Sombra

Miguel Castro Neto, Presidente Ant贸nio Lamas Carlos Moedas Carlos Zorrinho Guilherme Reis Lu铆sa Bastos de Almeida


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A Armando Sevinate Pinto [1946-2015], in memoriam


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ÍNDICE 13 35 41

Brevíssima História da Música Sacra | José António Falcão Todas as Músicas, a Música | Juan Ángel Vela del Campo Evocação de Armando Sevinate Pinto | Diogo Fernandes

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PROGRAMA | TERRAS SEM SOMBRA 2016 CONCERTO ANTEPRIMA I | BEJA Ao longo do Caminho de Santiago: De Beja a Compostela (Missa de Beata Maria Virgine ) Igreja Matriz de Santa Maria da Feira | José António Falcão O Canto Gregoriano e a Tradição Litúrgica | Ismael Fernández de la Cuesta [AD LITTERAM]

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Coro de Canto Gregoriano de España Ismael Fernández de la Cuesta

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CONCERTO ANTEPRIMA II | LISBOA La Petite Merveille e Il Prete Rosso: Versalhes e Veneza no Tempo do Barroco Centro Cultural de Belém | Ana Santos Sonhos e Prodígios do Barroco | Lina Tur Bonet

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MUSIca ALcheMIca Lina Tur Bonet Kenneth Weiss

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CONCERTO ANTEPRIMA III | MADRID É tão Grande o Alentejo Círculo de Bellas Artes | Lidija Šircelj Dois Resgates: O Cante Alentejano e a Viola Campaniça | Diogo Fernandes [AD LITTERAM]

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Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento Os Ganhões Moços d’Uma Cana

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CONCERTO DE ABERTURA | ALMODÔVAR Como as Árvores na Primavera: Avison, Avondano, García Fajer Igreja Matriz de Santo Ildefonso | José António Falcão Entre o Oficio das Sete Palavras e a Oratória: Um Caminho de Espiritualidade | Massimo Mazzeo, Iskrena Yordanova & José Vicente González Valle [AD LITTERAM]

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BIOGRAFIAS

BIOGRAFIAS

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BIOGRAFIAS

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< Lactação de São Bernardo. Escola portuguesa. Século XVII, inícios. Rosário (Almodôvar), igreja paroquial de Nossa Senhora do Rosário.


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BIOGRAFIAS

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Bárbara Barradas Joana Seara Divino Sospiro Massimo Mazzeo

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CONCERTO II | SINES Sempre/Ainda – Ópera sem Vozes | Alfredo Aracil Centro das Artes | Francisco Torrão A Memória, o Tempo e a Consciência | Alberto Corazón & Alfredo Aracil [AD LITTERAM]

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BIOGRAFIAS

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Alberto Corazón Alfredo Aracil Juan Carlos Garvayo

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CONCERTO III | SANTIAGO DO CACÉM Petite Messe Solennelle | Gioachino Rossini Igreja Matriz de Santiago Maior | José António Falcão Um Pouco de Ciência, Um Pouco de Coração | Alberto Zedda [AD LITTERAM]

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BIOGRAFIAS

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Isabella Gaudí Cecilia Molinari Sunnyboy Dladl Pablo Ruiz Coro de Cámara de El Molino Alberto Zedda

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CONCERTO IV | FERREIRA DO ALENTEJO Pelo Mar, pelo Sertão: Música do Brasil nas Épocas do Reino Unido e do Império Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção | José António Falcão Emergências Musicais do Brasil Colonial | Jean-Christophe Frisch [AD LITTERAM]

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BIOGRAFIAS

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XVIII-21/Le Baroque Nomade Cyrille Gerstenhaber Sarah Breton Vincent Lièvre-Picard Emmanuel Vistorky Mathieu Dupouy Jean-Christophe Frisch

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CONCERTO V | ODEMIRA Anjos ou Demónios? Novas Tendências da Música Brasileira Igreja Matriz de São Salvador | António Martins Quaresma & José António Falcão

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Uma Conversa entre a Força e a Delicadeza | Sidney Molina

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Quaternaglia Guitar Quartet Sidney Molina

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CONCERTO VI | SERPA Onheama | João Guilherme Ripper Cineteatro Municipal de Serpa | Maria João Vieira Fiat Lux | João Guilherme Ripper Sinopse [AD LITTERAM]

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João Guilherme Ripper Orquestra Sinfónica Portuguesa Coro do Teatro Nacional de São Carlos Giovanni Andreoli Coro Juvenil do Instituto Gregoriano de Lisboa Filipa Palhares Miguel Costa Cabral Marcelo de Jesus

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CONCERTO VII | CASTRO VERDE Polirritmias: Ligeti Africano Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição | José António Falcão África Inspira o Ocidente | Polo Vallejo

BIOGRAFIAS

BIOGRAFIAS

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BIOGRAFIAS

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Alberto Rosado Shyla Aboubacar Justin Tchatchoua Bangura Husmani Polo Vallejo

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CONCERTO DE ENCERRAMENTO | BEJA Inesperado Resgate: Compositores Portugueses na Espanha do Siglo de Oro Igreja de Santiago Maior (Catedral) | José António Falcão No Tempo da “Monarquia Dual” | Albert Recasens [AD LITTERAM]

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La Grande Chapelle Albert Recasens

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Ao Serviço de Uma “Casa Comum” | Pedro Rocha Para a Salvaguarda da Biodiversidade no Alentejo Meridional | José António Falcão A Casta Antão Vaz e os Vinhos de Vidigueira | José Miguel Almeida Prémio Internacional Terras sem Sombra | Ana Santos

BIOGRAFIAS

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Brevíssima História da Música Sacra

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO Director-Geral do Festival Terras sem Sombra

“Não podereis experimentar a verdade do que acabais de cantar, se não começardes a vivê-la. Por mais que o diga, por mais que me exponha, sejam quais forem as palavras que empregue, nada disso entra no coração daquele que não o vive. Começai por agir e compreendereis do que falamos. Então, a cada palavra correrão as vossas lágrimas; então, cantareis verdadeiramente este salmo. Há muitos que cantam com a boca e ficam mudos no coração. Muitos outros não movem os lábios, mas clamam com o afecto. Os ouvidos de Deus estão atentos ao coração do homem. Tal como o ouvido do corpo é feito para a boca do homem, assim o coração do homem é feito para a boca de Deus. Muitos, de boca fechada, são atendidos, e muitos, com grandes clamores, não o são. Devemos rezar com o nosso coração e dizer: Há quanto tempo a minha alma é peregrina. Com os que odeiam

a paz, fui pacífico. É esta a voz do trigo que geme no meio da palha.” SANTO AGOSTINHO, Comentário aos Salmos, Salmo 119

1. Entre Babel e Sião: A Dimensão Sagrada da Música Sob a égide da musa Euterpe, cujo nome significa “aquela que, de bom ânimo, proporciona o prazer”, a música surge como a mais misteriosa das artes. Talvez isso resulte do facto de, entre todas elas, ser, provavelmente, a que melhor logra imitar a natureza – por exemplo, o canto das aves. Em contrapartida, a sua aparente imaterialidade furtou-lhe, para sempre, a hipótese de uma figuração material, ao invés do que sucede com outras disciplinas artísticas de pendor objectual, nomeadamente a arquitectura, a pintura e a escultura, as quais, mesmo cultivando a abstracção, oferecem superfícies de volumes materiais; ou, já num plano distinto, a poesia, que se vale de palavras, levada pelo incansável afã de evocar objectos, ideias, sentimentos. O vocábulo latino musica deriva do grego μουσική, no qual se tem visto uma referência ao antigo canto em verso. Mas outras fontes remetem para uma fórmula mais completa,

< Porta do Sol [pormenor]. Século XIV, inícios. Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.

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μουσική τέχνη, a “arte das musas”. Além de Euterpe, que presidia, estão também ligadas à actividade musical nada menos do que cinco outras musas, ou seja, a maioria da família de nove irmãs: Clio, “a que proclama” (história e poesia épica); Calíope, “a da voz eloquente” (poesia e oratória); Terpsícore, “a que se deleita a bailar” (canto coral e dança); Érato, “a que difunde o amor” (poesia lírica); e Polímnia, “a que entoa inúmeros hinos” (canto religioso). As musas intervinham, enquanto “cantoras”, nas grandes festas dos deuses, o que atesta o primado de tal actividade sobre o universo. “Arte de combinar os sons”, dos quais parte, sejam eles naturais ou fruto do engenho humano, dir-se-ia que a música pode representar-se apenas, na essência, a si própria. Torna-se complexo, pois, pretender explicar, cabalmente, a raison d’être da peculiaríssima magia que exerce sobre o mais íntimo do ser humano. Daí que, quando posta em confronto com as outras artes, plásticas ou literárias, tende não só a evidenciar o seu carácter singular, mas também a pôr em relevo como o seu especial avanço se deve, em larga medida, à capacidade de interacção com essas mesmas artes. Vera linguagem sonora, ela mostra-se muito apta a exprimir, segundo Arthur Schopenhauer, “a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende”. Embora sujeita aos impulsos gerados no seio do mundo natural, tudo na música invoca o universo do homo artificialis. Com efeito, ela terá estado ligada, de início, ao domínio da palavra; em seguida, deu corpo à melodia e, a partir dela, à dança; finalmente, imitou a natureza e adquiriu, até, um pendor descritivo. Isto faz com que, ao princípio mais vinculada ao âmbito da natura naturans, acabasse por fixar-se no da natura naturata. Houve até quem afirmasse, decerto exagerando, que as suas formas dependeriam inteiramente da arte da proporção, à maneira de uma “arquitectura em movimento”; no entanto, tal denotaria, em última análise, que só eclodira após a descoberta das leis tonais, o que se afigura redutor. Para os mestres do pensamento da Grécia antiga, duas figuras de características opostas encarnavam as duas faces da actividade musical: Apolo e Dioniso. O primeiro, deus da luz, da poesia e da verdade, tangedor de lira, dirige as musas e simboliza a força civilizadora da música; o outro, deus do arrebatamento, da dança e da temulência, conduz ao transe que a música pode suscitar. Estes dois efeitos irão reaparecer, num contínuo jogo dialéctico, ao longo dos tempos, opondo, por exemplo, a música vocal e a música instrumental, a música sacra e a música secular, a música erudita e a música ligeira. Inspirado pela teoria pitagórica, Boécio, que viveu na transição do século V para o século VI, chegaria mesmo a estabelecer uma divisão em três patamares: música mundana (profana); música humana (que proporcionava o equilíbrio da alma humana); e música instrumental (a música propriamente dita). Sempre música, porém.

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Do ponto de vista científico, como já fora explicado pelos velhos filósofos, esta deriva da utilização e da articulação de elementos sonoros – mormente quanto às relações que estabelece com a rítmica, a harmonia, a melodia, a composição. Pertence, também, ao campo da acústica. Mas, em obediência a uma perspectiva artística, viu-se nela, de modo primordial, a demanda da expressão do Belo mediante aqueles e outros elementos “físicos”. Na Antiguidade e na Idade Média, tal busca da magna pulcritude assumiu uma feição preponderantemente ética; entre os modernos e os contemporâneos, passou a integrar o contexto da estética. Indo um pouco mais longe, à imagem do que fez São Tomás de Aquino num memorabilíssimo capítulo da Summa Theologica, é igualmente forçoso reconhecer, fora das contingências espaciotemporais, a sua dimensão religiosa (e, em virtude dela, a sua finalidade maiêutica, ao serviço da fé). Tanto no Ocidente como no Oriente, uma infindável sequência de autores encontrou na música o veículo privilegiado para aceder ao que possui valor absoluto, ao que ultrapassa a simples condição humana, suscitando ora respeito e admiração, ora empatia e fervor – aquilo que Rudolf Otto denominou “o sentimento do estado de criatura”, o sentimento do numinoso (de numen, a majestade divina). Esta noção comporta um elemento de “receio”, ante uma potência absoluta, e um elemento de mistério, ante um continente ignoto, de que só se ausculta a presença. Ao mesmo tempo que lembra analogias com a noção da “desmesura”, revela uma capacidade de despertar o “fascínio”. Em seu torno gravitam, ainda, os conceitos de pecado, expiação, redenção, etc. De facto, a música assume um lugar importante na esfera religiosa, ao metamorfosear a disponibilidade em aspiração e, portanto, ao favorecer a aproximação ao transcendente. O estudo dos ritos demonstra à saciedade o que acabamos de dizer. Modernos ensaios de análise da psicologia da prática musical associada à devoção e à liturgia permitem vislumbrar que a sua acção transfiguradora não parece resultar tanto de uma manifestação exterior, isto é, de um “desdobramento” análogo a uma operação intelectual, como dos sons que “vêm do coração” e possuem uma qualidade, dir-se-ia, “interior”. Estes, sim, adquirem um significado decisivo para quem crê. Não será fruto do acaso que as recitações de melopeias trauteadas, cantadas ou mesmo salmodiadas amiúde incitem à possibilidade de “viver a verdadeira vida”. Pressupõe-se que essa mesma música permita estabelecer um certo número de relações que ajudam a superar a dimensão do indivíduo: primeiro, uma relação directa com o Altíssimo; seguidamente, uma relação com os outros. Actuando ao nível das motivações internas e, frequentemente, conduzindo a um estado diferente de ascese, a musica divina – uma categoria nem sempre fácil de discernir, por causa do grau de subjectividade que implica – exorta à catarse e ganha um valor

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“ascendente”. O cantor e o fiel que o escuta elevam-se acima de si próprios. Consoante tem sido realçado pela etnomusicologia, ao estudar quer as culturas “arcaicas”, quer as “evoluídas”, tal fenómeno pode corresponder, em certa medida, a uma praxis, a uma técnica, a uma chave para a concentração e, através dela, para a “evasão do mundo”: permite atingir um estado fora de si mesmo, um despojamento e, portanto, uma fusão de consciências. Em suma, trata-se de adormecer todas as preocupações materiais, de renunciar ao egocentrismo e ao que é secundário, e de atingir, através dos sons, o universal, o permanente, o nada que comunica tudo, o silêncio – Deus. Este grandioso legado espiritual e artístico atravessa muitas (para não dizer quase todas) as religiões e encontrou um terreno fértil no Cristianismo, à semelhança do que acontecera com o Judaísmo e do que sucederá com o Islão. Para as Igrejas, a música constitui, na liturgia e nas expressões da piedade, erudita ou popular, individual ou colectiva, algo maior: ergue o espírito dos fiéis, fomenta o sentido comunitário na assembleia e imprime solenidade às celebrações. Bento XVI, eminente teólogo e músico praticante, destacou nela a experiência do amor, a experiência da tristeza e o encontro com o divino, vislumbrando-a como o umbral de uma nova dimensão da vida e de um toque afectuoso de Deus. Porém, não deixou de sublinhar, à luz da liturgia, o que daí importa colher para a afirmação de uma solícita pedagogia da beleza, da dignidade e da oração. 2. Qui cantat, bis orat: Das Origens ao Canto Gregoriano (Séculos I-X) A actividade musical teve ampla presença no quotidiano do povo judaico, designadamente acompanhando as manifestações de alegria, entre elas os festins e as bodas. Jeremias evocou “os cantos do esposo e da esposa” (25,10); se os instrumentos faziam parte dos cortejos de casamento (I Mac., 9,39), os reis eram coroados ao som de trombetas (II Sam., 15,10; I Reg., 1,39; II Reg., 9,13 e 11,14), que também serviam para anunciar as investidas dos exércitos, conforme ocorreu na conquista de Jericó (Ios., 6,4-20); e as mulheres acolhiam os guerreiros vitoriosos agitando tamborins e címbalos (Iud., 11,34;

I Sam., 18,6), ao passo que os homens tocavam flautas (I Reg., 1,40). O efeito da música tanto permitia enaltecer o espírito bom, como esconjurar o mau: David, exímio harpista, foi admitido na corte de Saul, pois os seus acordes dissipavam os acessos de furor do monarca (I Sam., 16,16-23). Se podemos multiplicar as alusões, no Antigo Testamento, à música, devemos salientar que, acima de tudo, ela surge aí para exprimir o louvor a Deus e marcar o compasso da liturgia. Isto é lembrado, em vigorosas anáforas, no Salmo 150, ao enunciar os principais instrumentos usados no Templo de Jerusalém (3-5):

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“Louvai-O ao som de trombeta, louvai-O com a harpa e a cítara, louvai-O com tambores e danças, louvai-O com instrumentos de cordas e com flautas. Louvai-O com címbalos sonoros, louvai-o com címbalos retumbantes.”

Tendo em conta tais antecedentes, não oferece grande dúvida aos historiadores que as origens da música da Igreja brotem, de uma forma directa, da tradição de Israel, ascendendo, fundamentalmente, à liturgia sinagogal, em particular ao costume de se executarem cânticos rituais nas celebrações religiosas. Este uso foi seguido, quase na íntegra, pelas primeiras comunidades cristãs e encontra-se documentado em vários trechos do Novo Testamento. Segundo os Actos dos Apóstolos, estando São Paulo preso, com Silas, “oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos escutavam-nos” (16,25). Na Epístola aos Efésios, o apóstolo convidou os fiéis a cantarem para celebrar o Senhor (5,19-20): “Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vossos corações, dando sempre graças, por tudo, a Deus Pai, em nome de nosso Senhor, Jesus Cristo.”

E na Epístola aos Colossenses (3,16): “A palavra de Cristo permaneça em vós abundantemente em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando, sob a acção da graça, louvores a Deus em vossos corações.”

O Livro do Apocalipse, por seu turno, mostra os eleitos a entoarem cânticos, os da Antiga Lei e os da Nova Lei (5,9 e 15,3). Nos escritos dos Padres da Igreja, há também abundantes notícias a respeito desta dimensão ritual, que não passou despercebida a outros olhares, incluindo o das autoridades romanas. Em carta dirigida ao imperador Trajano, ca. 111, quando exercia o cargo de cônsul na Bitínia, Plínio, o Jovem, solicitou-lhe conselhos acerca da melhor maneira de proceder com os cristãos, que tinham o hábito de se reunirem num dia fixo da semana, antes do nascer do Sol, e cantarem hinos a Cristo. À imagem do que sucedia no âmbito judaico, a música adquiriu, para a Igreja nascente, uma expressão litúrgica, fazendo parte do rito.

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Independentemente da dispersão geográfica das comunidades, abundam os testemunhos da utilização da língua grega – cimento de uma realidade ecuménica – nos cânticos litúrgicos dos tempos iniciais do Cristianismo, o que continuou, pelo menos, até ao século III. A estrutura simétrica dos Salmos terá presidido, em geral, à origem do método das antífonas. Quanto às melodias, fluíram em grande número de regiões orientais do Mediterrâneo, apresentando-se quase sempre ornadas por melismas, trechos melódicos com várias notas para uma mesma sílaba, ou, inclusivamente, por sumptuosos floreados vocais. Ocorreu, assim, uma fecunda síntese de influências hebraicas e greco-latinas, além de achegas regionais. É deveras eloquente o testemunho de São Basílio de Cesareia na Biografia de Efrém, o prolífico hinógrafo sírio do século IV, a respeito do entrosamento da música cristã, litúrgica e devocional, dentro da tessitura de um quadro já estabelecido: “Quando Efrém viu como os habitantes de Edessa gostavam de cantar, instituiu uma contrapartida às músicas e às danças dos jovens. Formou coros de religiosas, às quais ensinou hinos divididos em estrofes com refrães. Colocou nesses hinos pensamentos delicados e instruções espirituais sobre o Natal, o baptismo, o jejum e os actos de Cristo, sobre a Paixão, a Ressurreição e a Ascensão, bem como sobre os confessores, a penitência e os defuntos. As virgens reuniam-se no domingo, nas festas solenes e nas comemorações dos mártires; e ele, qual pai, colocava-se no meio delas, acompanhando-as com a harpa. Para os cantos alternados, dividiu-as em coros e ensinou-lhes diferentes melodias musicais. Deste modo, toda a cidade se reuniu à sua volta e os adversários ficaram cobertos de vergonha e desapareceram.”

Pelo século IV, aprimorou-se uma sistematização desta vasta literatura em repertórios corais específicos, conforme as liturgias entretanto definidas – mormente a ambrosiana, a galicana e a moçárabe – nos principais centros da vida cultural. Santo Ambrósio, famoso bispo de Milão [reg. 374-397], autor de apreciados hinos que, por seguirem as normas da métrica clássica, ajudaram a consolidar a vinculação do Cristianismo à cultura greco-romana, deu o nome à primeira. Conhecem-se escassos testemunhos do repertório vocal galicano mais antigo; a liturgia a ele associada, vigorosa do século IV ao século VIII, acabou por ser absorvida pela gregoriana durante os reinados de Pepino,

o Breve [reg. 751-768], e do primogénito deste, Carlos Magno [reg. 768-814], o qual estabeleceu que o canto romano, muito admirado, se praticasse em todas as igrejas da Gália (reforma romano-carolíngia). Ocorreu algo de similar com o repertório moçárabe: conheceu um auge, na Península Ibérica, sob os reis visigodos, nos séculos

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IV-VIII, mas, com o apagamento do seu poder, foi suplantado pelo Canto Gregoriano, correntemente dito canto romano ou romana cantilena, o canto da Igreja de Roma. Este principiou a tomar forma pelo século IV, como evidenciam os Magistri Romanæ

Ecclesiæ, constituídos por centenas de cantos, ora da Missa – Sacramentário –, ora dos ofícios divinos – Antifonário –, para todos os dias do calendário litúrgico. No entanto, de acordo com Alberto Turco, a primeira documentação escrita sobre ele, abarcando textos cantados, mas ainda sem notação musical, vem do século VIII, quando o repertório dos textos da Missa estava quase completo, pelo que o nascimento dessa modalidade e a elaboração de todo o seu repertório remontaram aos séculos precedentes. A designação que vingou tardiamente deriva do nome do papa São Gregório Magno [reg. 590-604]. Uma traditio, propagada nos séculos IX e X, atribuiu-lhe a organização, segundo ordem sistemática, do corpus musical litúrgico, com base nos textos em latim, não nas melodias; à época, ainda não existia um sistema de notação escrita, pelo que a música se transmitia por via oral, de geração em geração. Já antes da Schola Cantorum, instituída por São Gregório, funcionara uma Schola Lectorum, herdeira e sucessora dos mosteiros do tempo de Sisto I, os centros iniciais da liturgia romana. Terá sido precisamente nos séculos IX e X que ocorreu a codificação do repertório Gregoriano, difundido em toda a Cristandade ocidental por força da irradiação missionária. O seu fundamento encontra-se na monodia, a cargo de vozes masculinas e sem recurso a instrumentos. Ao princípio, era aprendido de cor e representado por sinais rudimentares, baseados nos sinais da acentuação. Só no século VIII se vulgarizaram os códices, ainda sem designação de intervalos, e as formas musicais em verso (até então, o ritmo Gregoriano recorria unicamente a textos em prosa). Datarão do mesmo período os primeiros exercícios conhecidos de notação escrita para a classificação dos sons. Este sistema foi aperfeiçoado ao longo dos séculos IX-XI por teorizadores – perduraram os nomes de Ucbaldo e de Guido d’Arezzo – a quem se devem, além de outras inovações, a clave, a nomenclatura dos sons (notas) e o aproveitamento dos espaços. Um estudo atento dos textos chegados aos nossos dias permite alcançar as sucessivas etapas que tais inovações, revolucionárias para a época, comportaram. Do século X em diante, apareceram de modo sistemático manuscritos com notação musical que usa os neumas, os sinais convencionais derivados dos acentos fonéticos (acento grave e agudo), mas in campo aperto, isto é, ainda sem linhas. Entre o século X e o século XI, tais neumas “em campo aberto” passaram a ser dispostos com maior precisão, ao redor de uma linha imaginária; mais tarde, apareceram, primeiro, uma linha e, depois, duas linhas coloridas para assinalar os graus sobre o meio-tom: uma vermelha para o Fá e

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uma amarela para o Dó. O uso das tradicionais quatro linhas do Canto Gregoriano, tal como hoje o conhecemos, foi ainda mais tardio. 3. Cultura Erudita e Devoção Popular: Sob o Império da Polifonia (Séculos X-XVI) Um notável investigador da música sacra, Ettore Napoli, chamou a atenção para o facto de que o Gregoriano representa não só o canto que a Igreja sempre admitiu por seu, nas celebrações litúrgicas, como também deu corpo ao primeiro património cientificamente documentado da civilização musical europeia no Ocidente, de que se tornou uma fonte primordial e uma referência basilar, indispensável para se compreender a respectiva evolução. Em bom rigor, importa salientar que tal ritmo é, antes de mais, canto e não música, porque não existe e não vive sem uma estreita ligação ao texto; constitui, pois, em virtude de tal natureza, o canto da palavra usada na liturgia da Igreja, a oração cantada. Arte apuradíssima, conhece-se-lhe um repertório vasto, heterogéneo e anónimo de mais de 3000 melodias ditas “históricas”, de variadas épocas, formas, lugares e origens. Desta monodia nasceu a polifonia, ou seja, a sobreposição de duas (ou mais) partes que se movimentam em simultâneo, um fenómeno que terá ocorrido em solo francês, pelo século X; a Schola Cantorum da catedral de Notre-Dame, de Paris, contribuiu decisivamente para aprimorá-lo e guindá-lo, nos séculos XII e XIII, a um clímax de sofisticação. O lançamento vertical das vozes, como que “aplicadas” uma por cima da outra, sucessivamente, e ligadas a uma melodia de base, ao estilo Gregoriano, nas especificidades litúrgicas do organum – a adição de uma ou mais vozes a um cantochão existente – e do motetus – composição a várias vozes, cada uma com ritmo e texto próprios –, é um traço marcante da sua técnica compositiva, que produz uma textura sonora específica. Pode estabelecer-se, de resto, um paralelismo entre ela e o pendor ascensional da arquitectura das igrejas góticas, onde se elevavam tais manifestações supremas do génio medieval, amplificando até ao zénite a técnica acústica de que os construtores dos monumentos românicos já tinham dado bastas provas. Segundo explicou Dietrich Schwanitz: “Deus está por toda a parte, porque o eco dos cânticos se propaga por toda a igreja; e Deus ouve tudo, porque nestas construções se ouve o mínimo sussurro. O canto em latim, reforçado pelo poder de ressonância das igrejas, foi provavelmente uma das demonstrações mais convincentes da omnipotência de Deus que a Idade Média conheceu.”

Apesar da veloz expansão da polifonia, as formas litúrgicas monódicas permaneceram vivas. Testemunho conspícuo disto são as laudas, canções religiosas, mas extralitúrgicas,

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em língua vulgar e de carácter popular. Integrando a herança da espiritualidade franciscana, floresceram, com sucessivas alterações, a partir de finais do século XII, mormente no âmbito de instituições confraternais laicas, de natureza penitencial, então propagadas na Itália central. Esta peculiar modalidade foi desenvolvida através de cânticos devocionais, de oração e processionais a Nossa Senhora, cujo andamento melódico, assaz despojado, nutria a fé das massas. Prestou-se igualmente à interpretação dramática de temas gratos à sensibilidade desse público alargado; um dos seus exemplos mais impressionantes é o célebre Stabat Mater Dolorosa, do franciscano Beato Jacopone da Todi. No século XIV, o rito da Missa, sempre de escrita polifónica, veio somar-se às modalidades rituais anteriores, seguindo parcialmente o esquema do Ordinarium Missæ: 1.º Kyrie

4.º Sanctus

2.º Gloria

5.º Benedictus

3.º Credo

6.º Agnus Dei

Pode apontar-se a Missa de Notre Dame, escrita ao redor de 1350 por Guillaume de Machault, como a primeira missa concebida por um só autor de que há notícia; antes, costumava recorrer-se a trechos de diversas origens. No século XV e na primeira metade do século XVI, este género permaneceu o de maior prestígio artístico, realidade para que sobremaneira concorreram as obras de insignes músicos da Flandres, designadamente Guillaume Dufay, Johannes Ockeghem e Josquin des Prez. Nas suas composições, sejam elas missas ou motetes, a imponência da polifonia, aumentada pela presença de instrumentos de sopro que exaltavam as arrojadas sonoridades vocais, estava em consonância com o luzimento dos ritos celebrados nas sumptuosas igrejas renascentistas. Tudo obedecia a cânones rigorosos, que procuravam emular a harmonia das esferas. Shakespeare fez-se eco da vertente doutrina numa formosa exortação de Lourenço a Jessica, a quem estava unido por amor profundo, em O Mercador de Veneza: “Senta-te, Jessica, olha como a superfície do céu Se incrusta profundamente de patenas de ouro brilhante: Não existe a menor órbita que possas alcançar, Que no seu movimento não cante como um anjo, Quieto coro para os querubins de olhos jovens. Tal harmonia existe nas almas imortais Mas, enquanto estas vestes decadentes e enlameadas Grosseiramente as encerrarem, não as podemos ouvir.”

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Datam da mesma etapa as primeiras missas de Requiem, cujo nome lembra as palavras iniciais da oração do Requiem æternam: “Requiem æternam dona ei (eis), Domine, et lux perpetua luceat ei (eis)” – “dai-lhe (lhes), Senhor, o eterno descanso, entre os esplendores da luz perpétua”. A sua estrutura musical aproxima-se da patente na liturgia da Missa dos Defuntos e incluía cantos como o Tractus e o Dies Iræ, mas sem o Gloria e o Credo, embora nunca pondo de parte, segundo as circunstâncias impunham, a coerência do Proprium Missæ. Cabe assinalar que a fixação do texto não impediu que, à semelhança do verificado com a missa polifónica, a missa de Requiem acabasse por se desligar da liturgia, adquirindo uma total autonomia artística; demonstram-no, em dois contextos muito distintos, as escritas por Wolfgang Amadeus Mozart ou por Giuseppe Verdi. Uma vez publicada a Reforma, os compositores do Protestantismo serviram-se do Canto Gregoriano, sobretudo numa fase inicial, a primeira metade do século XVI, analogamente ao que sucedera com a polifonia em tempos anteriores. Martinho Lutero, preocupado com a participação directa dos fiéis na liturgia, defendeu que os ofícios se celebrassem em língua vernácula, para que toda a congregação pudesse entendê-los e neles intervir activamente. De modo a que tal se tornasse mais plausível, a intrincada música da liturgia romana foi substituída por corais – hinos e versos rimados, com melodias simples, que qualquer um podia entoar. Esta busca de um repertório de fácil execução valorizou a tradição dos lieder, cantos populares de pendor espiritual, que ascendia ao século IX e desenhou um percurso idêntico à das melodias do Canto Gregoriano. Quanto aos textos, eram geralmente traduções livres em alemão de hinos e salmos antigos (ou invenções poéticas a eles alusivas). O papel conferido à música na liturgia reformada transparece do conjunto de corais, quase sempre acompanhados a órgão, que foram escritos até aos finais do século XVIII e amiúde recolhidos em antologias, subdivididas de acordo com o calendário litúrgico. É possível observá-lo igualmente pelo lugar atribuído à suprema forma musical dessa liturgia, a cantata. Trata-se de uma composição vocal, para uma ou mais vozes, com acompanhamento instrumental, às vezes também com coro, que apresenta habitualmente mais de um movimento e cujo texto, em vez de ser historiado, é lírico, descrevendo uma situação psicológica. No campo do serviço litúrgico protestante, a sua execução costumava estar associada ao sermão. Grandes mestres germânicos da era barroca – sobressai, entre todos, Johann Sebastian Bach – contribuíram para a criação um extraordinário repertório de textos, que cedo ultrapassou esse âmbito e deu corpo a um dos mais brilhantes capítulos da História da Música. Ocorreu algo de similar com outras formas bem conhecidas da liturgia protestante, v.g. a Paixão e a Missa Brevis,

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esta constituída apenas pelos dois números iniciais do Ordinarium Missæ, o Kyrie e o

Gloria. Querendo objectar à disseminação da Reforma, a Igreja de Roma inclinou-se, no Concílio de Trento (1545-1563), para uma uniformidade litúrgica em todo o orbe católico do Ocidente. Se é certo que, onde existissem costumes litúrgicos com mais de 200 anos, se preconizou que deviam continuar em vigor, razões de vária ordem – especialmente algum facilitismo criado pela imprensa – favoreceram uma adesão quase generalizada ao Rito Romano. Em paralelo, defendeu-se a necessidade de o património musical ser expurgado das excrescências, mormente as acumuladas nos últimos três séculos, com destaque para o uso de melodias profanas, de certos instrumentos e, até, de vozes femininas. Sem nunca terem sido transformadas em regras fixas, estas directrizes encontram-se assaz presentes na obra litúrgica de Giovanni Pierluigi da Palestrina, insuperável arquitecto do contraponto, que soube adequar à perfeição a polifonia romana, dita

a cappella, com a exclusiva utilização de sons vocais, ao movimento de renovação espiritual da Contra-Reforma. No decurso do século XVII, um dos momentos privilegiados da música litúrgica foi o das vésperas, a parte do Ofício Divino celebrada entre as 15 e as 18 horas, a oração da tarde; o seu zénite seria atingido com as Vespro della Beata

Vergine, de Claudio Monteverdi, que incorporam uma famosa colectânea do mesmo autor, Sanctissimæ Virgini Missa Senis Vocibus ac Vesperæ Pluribus Decantandæ, saída dos prelos de Ricciardo Amadino, em Veneza, no ano de 1610. Findo o ciclo renascentista, dominava agora, como salientou Claude Palisca, uma tensão entre o desejo de preservar um elevado nível de habilidade contrapontística e o impulso de acompanhar as imagens, as ideias e os sentimentos descritos nos textos, algo característico do Maneirismo. Segundo Maria Maniates, este distingue-se por opções bem definidas, mormente o pendor experimental no campo da harmonia, a exploração de intervalos pouco comuns na linha melódica, os ensaios de música microtonal, as tentativas de criação de um sistema de temperamento igual e a atribuição de outros significados aos elementos da retórica musical em vigor… Os próprios músicos reivindicavam um stilo nuovo, comum à arte profana e à arte sacra. Adrianus Petit Coclico (Compendium Musices, 1552) intitulou os artistas da geração de Guillaume Dufay

musici mathematici, os da geração de Josquin des Prez musici prestantissimi e os contemporâneos musici poetici, pondo em relevo uma distinta sensibilidade, de assumida feição poética, que deixaria também profundas marcas na esfera religiosa.

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4. Para a Maior Glória de Deus: A Contra-Reforma, o Barroco e o Rococó (Séculos XVI-XVIII) No lapso que se estendeu da segunda metade do século XVI à segunda metade do século XVIII, a extensíssima produção de música litúrgica, quer católica, quer protestante, realçou a importância fundamental da Igreja como um domínio privilegiado da vida musical, a par das cortes, dos salões aristocráticos e dos teatros de ópera. A inexistência de limites claros entre obras sacras e obras profanas, que hoje nos assombra, nem sempre foi lida de um modo tão nítido pelos compositores e pelo público desses tempos. Ligariam os dois âmbitos sucessivas redes de vasos comunicantes, fenómeno que permitiu beneficiá-los a ambos, sob o peso de uma ingente criatividade, sem turvar, na aparência, as vivências espirituais dos contemporâneos. Sob o estro do Maneirismo e, em particular, do Barroso e do Rococó, o gosto dramático valorizou notavelmente a oratória, qual ópera sacra, destituída de encenação, apta a trazer à tona as manifestações da piedade. Um certo subjectivismo de escrita impôs-se à tradição mais objectiva da liturgia e da literatura inspirada pela salmística. O estilo barroco singulariza-se por traços perfeitamente reconhecíveis também na atmosfera do theatrum sacrum: a primazia do contraponto; o enriquecimento progressivo da harmonia; o vigor dos ornamentos; a divisão dos dispositivos orquestrais, com o protagonismo quer do baixo contínuo (ripieno ), quer de um grupo de solistas (con-

certino ); a técnica do baixo contínuo cifrado, sobretudo no acompanhamento de sonatas; o apreço pelos contrastes, nomeadamente as oposições entre as notas sustentadas e as notas curtas, as notas graves e as notas agudas, as sombras e as luzes; a afirmação da modalidade do concerto (do italiano concertar, “dialogar”), que confronta um ou mais solistas com o resto da orquestra (tutti ); a dialéctica entre peças de invenção (v.g., prelúdios, tocatas, fantasias) e peças construídas (fugas). Graças à Igreja, proporcionou-se a muitos a oportunidade de fruir de tal aura artística, ao contrário do que ocorreu com o seu equivalente na música cortesã e palaciana, a que só podiam aceder, na maior parte dos casos, os círculos de escol. Este foi um período que se revelou igualmente fecundo quanto à elaboração de novas teorias musicais. Pouco a pouco, ocorreu uma transição subtil das tonalidades da polifonia, fundamentada nos tons eclesiásticos do cantochão, para soluções de extraordinária riqueza sonora, deveras adequadas a uma sensibilidade em que preponderavam os valores comoventes e exuberantes, com a emergência de toda uma gama temperada e o pleno triunfo do sistema tonal (dos dois modos, o maior e o menor), de inspiração classicizante. Entretanto, inventaram-se, numa sequência de ousadas criações de assumido pendor experimental, mais temperamentos, ampliando as bases tradicionais da harmonia

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clássica, herdadas dos antigos, em cujo quadrivium ocupava usualmente o derradeiro lugar. Isto repercutiu-se, como não podia deixar de ser, na escolha dos próprios instrumentos – alguns apagaram-se, outros desabrocharam ou tomaram a sua forma definitiva. Ao cosmocentrismo do Barroco viria a suceder, também de maneira gradual, o esteticismo do Rococó, amiúde caracterizado, musicalmente falando, por fórmulas ins trumentais mais leves (concertos, sinfonias, sonatas) e por temas mais “fáceis”, pelo menos na aparência, revelando um contraponto trabalhado com argúcia e gracilidade, uma abundância de elementos decorativos e uma instrumentação variada. Dir-se-ia que, também no campo das composições sacras, se renunciou à “retórica da persuasão”, substituindo-a por uma espécie de sonho de felicidade, como se do antigo princípio do

delectando prodesse escapasse apenas o delectare, sob a inspiração da demanda do belo, do sentimental e do sensual, mesmo no campo religioso. As próprias modalidades tradicionais artificializaram-se e, ao tornarem-se “fáceis”, esvaziaram-se da sua substância intrínseca. Mais tarde, o retorno de um classicismo nunca desmentido corresponderia à ambição de “voltar à natureza”. Resultou daqui uma encruzilhada de correntes artísticas, com reflexos na vida espiritual das comunidades, a que as hierarquias das Igrejas não podiam ficar alheias. Dentro e fora dos sectores vinculados a Roma, afirmaram-se duas orientações artísticas. Uma linha, de carácter mais externo e mundano, não hesitou em recorrer aos mesmos artifícios – inclusivamente, aos mesmos castrati – que alcançaram a glória nos palcos operáticos; mas já antes se multiplicavam as situações de ordem eminentemente decorativa, que pareciam comprometer a dignidade da liturgia, ao passo que um exagerado alongamento na interpretação dos textos litúrgicos acabava por prejudicar o equilíbrio das funções. Opôs-se-lhe outra tendência, de pendor rigorista, que continuou as tradições gloriosas do passado, sem admitir excessivas cedências à voga; isto dava azo a um distanciamento em relação à sensibilidade da maioria e implicava acarretar o ónus do “isolacionismo”. Defensores estrénuos de uma ou de outra correntes viriam a agitar-se, cedo, nos meios eruditos, animando controvérsias e debates intensos, em que foram brandidos especiosos argumentos, o que chegaria até a mobilizar, embora sem reflexos de maior para o desfecho da polémica, o longo braço dos tribunais da Inquisição. Em 1749, por ocasião dos preparativos para o Ano Santo de 1750, o papa Bento XIV sentiu-se obrigado a sublinhar, com a encíclica Annus qui, a necessidade de distinguir a música litúrgica da profana. Todavia, nas etapas posteriores, com o ocaso do Ancien Régime, esta distinção far-se-ia quase sempre mais pelo conteúdo do que pela forma. Algumas das melhores

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obras não só de Mozart, mas também de Joseph Haydn ou de Ludwig van Beethoven, encarregar-se-iam de demonstrá-lo genialmente. 5. A Autonomia do Temporal: Ocaso da Música Sacra, Aurora da Música Religiosa (1789-1945)

Mutantur omnia nihil interit. As revoluções da segunda metade do século XVIII, com destaque para a francesa (1789), e as liberais da primeira metade do século XIX trouxeram grandes mudanças políticas, que seriam acompanhadas, no plano socioeconómico, pela emergência da Revolução Industrial e pela apoteose da civilização burguesa. Quase sempre visada, de maneira directa, por esses novos ventos, a Igreja Católica foi compelida a fechar-se nas trincheiras, uma forma de reagir – porventura, até de sobreviver – diante da implacável secularização da sociedade. Esta medida de autodefesa teve ecos no campo da actividade musical e das suas relações com a liturgia. Levou, nomeadamente, a repensar o papel da música sacra, enquanto manifestação própria da tradição cristã e, em consequência, parte intrínseca do culto. Tender-se-ia, pois, a diferenciá-la de uma livre interpretação do sentimento religioso, colectivo ou individual, como podem ser as oratórias, as cantatas, as sinfonias sacras, as paixões, etc. Chegou mesmo a conferir-se-lhes a categoria de música extralitúrgica (ou, inclusivamente, antilitúrgica) e a reiterar a proibição de serem ouvidas nas igrejas, por não corresponderem ao espírito e às exigências do culto, embora não deixasse de se lhes reconhecer a dignidade de poderem exprimir artisticamente verdadeiros sentimentos religiosos. O pano de fundo em que tal se produziu foi nimbado pela glória do Romantismo, que assumiu igualmente na música um carácter revolucionário, mesmo quando o peso do pretérito se mostrava ainda notório, ao ponto de muitos compositores – v.g., Franz Schubert, Robert Schumann ou Johannes Brahms, todos partidários da renovada sensibilidade – não se poderem separar dele, ao passo que outros se compraziam numa assumida releitura dos gloriosos mestres de outrora, com destaque para vultos da envergadura de um Thomas Tallis ou de um Giovanni Pierluigi da Palestrina, nunca postos em causa. Porém, era inevitável a afirmação dos valores do intimismo nas emoções musicais, que coincidiu, paradoxalmente, com o desenvolvimento de um processo instrumental chamado a enaltecer o virtuosismo e a evolução da matéria sonora, conforme testemunha o protagonismo crescente da orquestra e do piano. Estes avanços reflectiram-se no estatuto do artista, que dependia, anteriormente, da sua inserção numa estrutura organizativa (a Igreja era, sem dúvida, a de maior relevo) e passou a poder gozar de outra liberdade. Mais: dotada de uma riquíssima paleta,

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capaz de transmitir, em todos os matizes da expressão, as emoções, a música pôde ocupar um lugar absolutamente central no universo da arte. Preponderou a música instrumental, por assim dizer, “pura”; todavia, em virtude de outro paradoxo, aliás digno de reflexão, a actividade dos compositores acabou por ficar assaz dependente de uma inspiração literária, num quadro em que as belas-letras dominavam a esfera das artes, mas veneravam a ciência dos sons. “De la musique avant toute chose”, proclamará Paul Verlaine na abertura de Art Poétique. Triunfara a alma da Era Moderna. Recusando a contaminação dos tempos, boa parte da intelligentsia cristã, com os principais sectores da hierarquia do seu lado, tendeu a adoptar posições estritas para lhes minorar os efeitos na música sacra, sendo por isto entendida a que, através dos séculos, foi composta para o serviço da liturgia, essencialmente o Canto Gregoriano e a polifonia clássica. Embora sujeitos a uma ideologia ancorada no passado, tais esforços acabavam por reflectir, alfim, princípios caros ao Positivismo, ao admitirem, nas suas consequências, uma fronteira nítida entre a música de Deus e a música dos homens. Émile Durkheim, o pai da Sociologia Moderna, defendera, em As Formas Elementares

da Vida Religiosa, a oposição fundamental do Sagrado e do Profano, como se correspondesse a dois mundos radicalmente distintos. O primeiro manifestar-se-ia enquanto sede inequívoca de uma potência, de uma energia capaz de agir sobre o segundo, ao passo que o inverso não parecia viável. Um dos mais notáveis reflexos do desejo de separar peremptoriamente águas foi a vasta acção colectiva encarnada pelas Cäcilienverein, as Pias Associações de Santa Cecília – cuja denominação evoca a figura da jovem que sofreu o martírio pela fé, em Roma, no século V, e que um equívoco hagiográfico alcandorou a patrona dos músicos. Nascida de uma entente das Igrejas italiana e alemã, essa iniciativa pôde contar ainda com o beneplácito do catolicismo francês, maioritariamente conservador. Karl Proske, o seu insigne prócere, quis opor-se à generalização de um estilo concertista e, evidentemente, também do vocalismo operático; para tal, defendeu o regresso à monodia sacra medieval e à polifonia a capella, que considerou lídimos esteios da “vere musica ecclesiæ”, diante do neopaganismo atribuído a autores em voga, com ênfase para Richard Wagner, mestre ao qual amplos sectores do escol cultural e social votavam uma (quase) idolatria. Os postulados do movimento ceciliano colheram o entusiasmo do papa Pio X [reg. 1903-1914]. Este anunciou-os, pouco depois de iniciar o pontificado, num Motu proprio famoso: Tra le sollecitudini. Homem imbuído na vivência de uma espiritualidade esclarecida e profunda – Pio XII elevá-lo-ia aos altares (beatificação em 1951, canonização em 1954) –, mostrou-se um reformador da Liturgia. Reflectindo a sua experiência

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pastoral, como pároco e como bispo, desejou uma maior participação dos fiéis na vida litúrgica, nomeadamente através da música. Para tal, promoveu a reestruturação do Saltério Litúrgico e do Ofício Divino. Valorizou, outrossim, o intenso labor que se desenvolvia, à época, em torno do Canto Gregoriano, na sequência da obra pioneira de Dom Guéranger, abade de Solesmes (França), e da comunidade monástica aí existente. Cerca de 1910, eclodiu na Bélgica o Movimento Litúrgico, tendo por alma Dom Lambert Beauduin, que divulgou esse importante trabalho, cujo alcance só mais tarde seria apreciado em toda a extensão – quando a redescoberta de uma preterida herança musical desembocou na reforma da liturgia pelo II Concílio do Vaticano. Para a aclamação das correntes que pretendiam restaurar a “verdadeira música da Igreja”, alinhada com um certo gosto arcaico, de pendor tardo-romântico, marcante à luz da estética contemporânea, dariam contributos basilares, ainda no reinado de Pio X, dois excepcionais músicos e musicólogos da ilustrada corte vaticanista: Giuseppe Baini, maestro da Capela Sistina e autor de uma magnífica biografia de Palestrina; e Lorenzo Perosi, a quem se deve a composição de rica literatura de feição ora litúrgica (missas e motetes), ora devocional (oratórias). Este e outros gestos tiveram o mérito de chamar a atenção para a importância do regresso às fontes da tradição cristã, mas nem sempre acertaram na edificação de uma real alternativa ao “arqueologismo” – ou pseudo-“arqueologismo” – dominante; acabaram por vencer, além de uma certa nostalgia pelas glórias pretéritas, uma certa imobilidade, própria do espírito académico, qual turris eburnea. O cerco tecido em torno da música sacra revelar-se-ia tão apertado que quase a liquidou por asfixia, como o lento apagar de uma vela no interior de uma câmara cujo oxigénio se vai extinguindo. A actividade criativa e interpretativa de artistas de alta estirpe, entre os quais se impõe citar, além de Baini e Perosi, Franz Xaver Haberl, Luigi Bottazzo, Michael Haller, Paolo Amatucci, Giovanni Pagella, Nemesio Otaño, Raffaelle Casimiri, Licinio Refice e Luis Iruarrizaga, foi a excepção que confirmou a regra. Não obstante o ínclito esforço destas e de outras gerações de compositores que, em nome da gravitas tradicional, desenvolveram um amplíssimo repertório para o culto, nada podia evitar a torrente vinda de fora. Mas o progressivo coma da música sacra abriu as portas a um florescer da música religiosa, que alcançaria, ela sim, extraordinário florescimento. Vislumbram-se as raízes deste fenómeno em celebrados autores de épocas anteriores, mormente Haydn, que exaltou a glória incomparável de Deus, ou Mozart, que alternou a escrita de inúmeras e populares missas com um Aleluia concertístico; foi Beethoven, no entanto, quem culminou, de forma peremptória, com as suas missas dramáticas e os seus lieder espirituais, já tocados pelo estímulo do Sturm und Drang, o ingresso numa nova era.

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“A liberdade, o movimento, a paixão e a interminável busca do inatingível”, que pautaram, segundo a consagrada expressão de Donald Jay Grout, o Romantismo, trouxeram marcas profundas ao universo musical em apreço, não se furtando a colocar o acento, mais uma vez, no individualismo da fé, como em tantas outras dimensões da existência; mesmo quando tal fé reivindicava valores colectivos, deixava transparecer o génio do individuo. Este traço revolucionário une indelevelmente os maiores autores, sejam da fileira católica (cabe lembrar aqui, além dos mencionados Schubert e Verdi, Charles Gounod), reformada (Samuel Wesley, Johannes Brahms, Felix Mendelssohn) ou ortodoxa (Dmitry Bortiansky, Piotr Tchaikovsky, Sergei Rachmaninoff). Similarmente ao ocorrido noutras épocas, grassaram os exemplos de melodias que os grandes compositores pediam de empréstimo à tradição litúrgica e devocional – é o caso do poema sinfónico

Finlandia, de Johan Sibelius. Tornava-se clara, mais uma vez, a teoria dos vasos comunicantes. Desde Beethoven a Hector Berlioz que uma plêiade de mestres, abrangendo nomes indiscutíveis, como os de Franz Liszt, Vincent d’Indy, Gabriel Fauré ou Giacomo Puccini, highlights de uma multidão que seria impossível descrever neste contexto, levaram para o recinto das igrejas a expressão pessoal dos sentimentos próprios, nem sempre tendo em conta, já o salientou José Augusto Alegria, os da Igreja… É certo que, na época de São Pio X, a Santa Sé acabou por considerar, ao menos parcialmente, o que se afigurava uma realidade inelutável, ao assentir a que, dentro do selecto elenco da música sacra, se dispusesse, em posição idêntica à do Canto Cregoriano e à da polifonia, a “música moderna”, ou seja, posterior à reforma de 1903, desde que fiel ao seu espírito. Tratava-se de uma cedência tardia que só a custo lograria acompanhar a veloz cadência das metamorfoses do gosto. 6. Uma Descida aos Infernos? Dos Meados do Século XX aos Dias de Hoje Ao longo do trepidante período que mediou entre o ápice do século XIX e a II Guerra Mundial (1939-1945), a integração numa ordem globalizadora conduziu a uma harmonização das estruturas musicais – e a uma organização da própria vida artística – à escala internacional. O pluralismo estilístico passou a dar o mote, impondo o cruzamento de diversas correntes, dos ecos da escola wagneriana à avant-garde. Em termos musicais, foi um período definido pelo questionar dos cânones e das ideias feitas. Assistiu-se a um alargamento da tonalidade, primeiro, e, quase em simultâneo, ao seu progressivo declínio. Este complexo processo de avanços e recuos ajudaria a deflagrar teorias exploratórias: a adesão aos seis tons (Claude Débussy) ou aos doze meios-tons (dodecafonismo schonberguiano); a abolição das funções harmónicas (já esmaecidas

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por Wagner e César Franck); a afirmação de uma politonalidade harmónica ou do temperamento de doze sons (Alban Berg). Os efeitos de fenecimento do modo tonal permitiram engendrar uma inovadora concepção do tempo na arte. Mesmo se a intensa sucessão de teses e antíteses dificultou sínteses congruentes, tal não significou necessariamente um esquecimento do passado, pois o Canto Gregoriano e as polifonias do Renascimento voltariam a ocupar um lugar de honra, incitando, como em épocas anteriores, à modalidade. No entanto, tiveram de partilhar os palcos com a descoberta das músicas “étnicas”, que suscitavam o interesse pela assimilação de outras escalas musicais (v.g., a gama pentatónica chinesa), e com as experiências do Serialismo e dos restantes vanguardismos. Face à “explosão” da linguagem musical, o panorama criativo da fase entre guerras deixou-se seduzir pela politonalidade, pelo

Jazz e pelo Music-hall. Alguns visionários, nomeadamente Luigi Russolo, Edgar Varèse e os teóricos da Musique Bruitiste, procuraram trazer à superfície outros parâmetros, em especial os do timbre, do ritmo e, até, do som “bruto”. Perante tantas oscilações e rupturas, não surpreende que inúmeros criadores se revelassem sensíveis a um neoclassicismo emergente, apostando em quadros formais, ritmos e harmonias com provas dadas. Uma ruptura profunda com o passado caracterizou a etapa pós-guerra. Tudo devia ser reconstituído – idealmente, na totalidade. “Raras vezes uma geração pôde ter em mãos os desafios da nossa e nascer num momento tão favorável”, afirmou Karlheinz Stockhausen, acrescentando: “as cidades estão destruídas e é preciso recomeçar pelo princípio, sem olhar nem às ruínas, nem aos demónios que ficaram em pé de uma época sem gosto”. Uma vanguarda, a “geração de Darsmstadt”, reencontrou na estética um terreno de experimentação. Os seus contributos, a par do aprofundamento das músicas extra-europeias, do Serialismo Integral, do Pós-Serialismo, da Música Electrónica, da Música Aleatória e da Música Electroacústica, sem esquecer a difusão de gravações com o recurso a discos ou fitas, tornaram impossível qualquer tentativa de compartimentação, de tal modo as sucessivas investigações se encadeiam umas nas outras, desenhando um labirinto que une gerações de compositores. Com a generalização do uso da informática, ela própria alcandorada a sede de composição, desenhou-se uma nova estética, chamada a pugnar para que a música falasse, primordialmente, em nome da “verdade”. Que verdade, porém? Há muito que ao propósito de edificar se antepusera o de inquietar… A partir de agora, não importaria tanto a identificação com uma determinada forma ou temática, mas o minucioso, às vezes iconoclástico, conhecimento dos processos, das texturas, das maneiras de utilizar os timbres e as intensidades. Mercê disto, a arte musical reafirmou o estreitamento dos seus laços com a ciência, já pela técnica combinatória, já pelo recurso a “máquinas”,

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fenómenos que transparecem nas obras do Grupo de Música Concreta de Paris, com Pierre Schaeffer e Pierre Henry, do Estúdio de Música Electrónica de Colónia, com Herbert Eimert e Stockhausen, e das ferazes ramificações milanesas da “escola de Darmstadt”, com Luciano Berio, Bruno Maderna e Luigi Nono. A música religiosa acompanhou este devir. Quanto à música sacra, isto é, litúrgica ou paralitúrgica, mais confinada, de acordo com as ideias vigentes em Roma, ao seu suposto reduto, foi ponderando, também ela, uma evolução (de que o renascimento do Canto Gregoriano constitui notável capítulo). Ao longo das décadas seguintes, ganhariam espaço outras tendências, incluindo as que defendiam uma participação mais ampla e mais esclarecida dos fiéis na vida litúrgica, ideais que triunfaram com o II Concílio do Vaticano (1962-1965) e a promulgação, em 1963, da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. Sem abandonarem a solenidade formal, os Padres Conciliares mostraram-se deveras sensíveis a uma espiritualidade “estética” que pudesse servir de cimento a um moderno estilo sacro, lançando o repto para a criação de novas vias derivadas da tradição. Várias instruções da Santa Sé, culminando com Musicæ Sacræ

Ministerium, em 1967, apontaram o caminho a seguir. Este caminho vislumbrava-se, logo no começo, não só tortuoso, mas também colmatado de obstáculos e ladeado por precipícios; mesmo assim, não faltou quem ousasse aventurar-se nele. Entre os compositores mais próximos do espírito do Concílio, talvez tenha sido Maurice Duruflé o primeiro a compreender à perfeição o enorme alcance deste aggiornamento. Soube traduzi-lo, com génio profético, na missa Cum jubilo, op. 11, de 1966, em que brilha o potencial da rota apontada pela Sacrosanctum Concilium, evidenciando a compatibilidade e a relevância da associação do cantochão ao carácter plural da harmonia contemporânea. Porém, no universo do que se almejava como uma esplêndida renovação da musica divina, não abundariam as estrelas de comparável fulgor, e a cedência à rotina, com a sua habitual procissão de mediocridades, acabaria por ditar frequentemente a regra. Nem sempre bem interpretada, a reforma litúrgica conciliar deparou-se, ao ser passada à prática, com ingentes problemas. Um deles adveio, no imediato, da vulgarização do uso das línguas em vernáculo na liturgia, levando a um abandono quase generalizado de toda a música sacra tradicional. À míngua de outra solução, esta foi muitas vezes substituída por cânticos a nível popular, carecidos, maioritariamente, de mérito artístico, quer em textos mais ou menos poéticos, quer nas técnicas usadas, amiúde destituídas de formulações correctas. Tão pouco animador quadro acentuar-se-ia principalmente em países, como o Portugal desses tempos, ainda sem grandes tradições de música popular religiosa – não obstante a riqueza do seu filão popular – e sem escolas que as promovessem.

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Para muitos, revelou-se algo decepcionante que a Igreja, até aí sempre escrupulosa quanto à vigilância da presença da música no rito, se dispusesse agora a acolher, dentro do seu próprio seio, ao lado de um vago melodismo de sabor neogregoriano, linguagens mais recentes, como o Folk, o Pop, o Rock’n’roll ou a música “étnica”, sem escusar até o recurso a instrumentos electrónicos. É sabido que, tal como o uso da língua vernácula nas celebrações, isto correspondeu ao propósito de assegurar um maior envolvimento da assembleia na liturgia. No entanto, em termos propriamente artísticos, a lufada de ar fresco, destinada, supunha-se, a trazer novo alento a um enfermo preso ao leito, correu o risco de o levar a contrair uma pneumonia fatal... Com efeito, aos olhos de católicos e não-católicos esclarecidos, pareceu (continua a parecer) doloroso que a mesma instituição que fora, outrora, a excelsa mecenas da música acabasse uma e outra vez por sucumbir a um mau gosto sem precedentes. Quem ousaria (ousará) negá-lo? Por agudo que isso se mostrasse (mostre), não se podia (pode) escamotear a realidade – quem entrava (entra) nas igrejas, seja crente ou não, arriscava-se (arrisca), de facto, a enfrentar algumas das mais triviais, menos elaboradas e, talvez pior do que tudo, pouco inspiradoras manifestações musicais, uma situação que se prolongou (prolonga) mais do que o conveniente. Riccardo Muti disse-o com a autoridade de um grande músico e musicólogo que ama o património sacro: “A história da música deve muito à Igreja e não me refiro só ao período gregoriano, que é extraordinário, mas também aos nossos dias. Porém, não consigo entender as paróquias, uma atrás da outra, que, dispondo de excelentes órgãos, preferem agora fazer ouvir cançonetas. Provavelmente, isto foi considerado, no início, uma forma de atrair os jovens, mas é uma forma simplista e que demonstra pouco respeito pelo nível de inteligência das pessoas. Então, o que leva a pôr quatro ou cinco rapazes de boa vontade a dedilhar guitarras e outras cordas, com letras que não comento? No entanto, se se ouvir o Ave Verum, de Mozart, nas igrejas, certamente até o mais simples cidadão, o mais distante da música, pode ser transportado a uma dimensão espiritual. Todavia, se, ao invés disto, se escutam cançonetas, é como estar noutro lugar.”

Será que, como certas vozes apocalípticas proclamaram aos quatro ventos, a música sacra foi condenada a fenecer, pelos séculos dos séculos, no obscuro sótão dos tesouros litúrgicos? Não há que ver nisto, porém, um facto consumado ad æternum. Portugal, o Portugal a que fizemos menção, é, aliás, um caso a ter em conta quando se pondera a evolução da música destinada ao culto. Se, nos primeiros anos depois do

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Concílio, o país atravessou um período de pobreza musical na liturgia da Igreja, com a adaptação de cânticos oriundos daqui e dali, a introdução de espirituais negros ou a transformação de música ligeira de toda a espécie, “a necessidade aguçou o engenho” e surgiram, dentro das fileiras eclesiais, artistas que empreenderam a renovação exigida. Podemos citar, a este respeito, os nomes de Manuel Faria, Manuel Simões, Manuel Luís, Celestino Borges de Sousa, Carlos Silva, José Fernandes da Silva e Joaquim dos Santos, para só lembrar os que já não estão entre nós. Cada um a seu modo, deram um impor tante contributo para a criação de um repertório que veio começar a preencher o vazio sentido e ajudou a enriquecer as celebrações litúrgicas. A gigantesca tarefa de renovar e revitalizar a música litúrgica produziu, decorrido meio século, notáveis frutos, sendo justo referir, na sequência de várias iniciativas, a da Comissão de Música Sacra da Diocese de Beja para a recolha e a valorização do rico património do canto popular religioso do Baixo Alentejo, obedecendo às recomendações da Sacrosanctum Concilium, um dos mais notáveis documentos emanados do Concílio: “promova-se muito o canto popular religioso” e “em certas regiões, […] há povos com uma tradição musical própria, a qual tem excepcional importância na sua vida religiosa e social; estime-se como se deve e dê-se-lhe o lugar que lhe compete”. Tiveram, assim, continuidade a investigação etnomusicológica e a acção pedagógica de dois membros do presbitério pacense, António Marvão e José de Alcobia, que se debruçaram, em termos pioneiros, sobre o Cante alentejano, estudando-o, divulgando-o e promovendo-o. Por detrás de tal ressurgimento, vislumbra-se o esforço precursor de figuras de mérito, como Francisco de Freitas Gazul, Tomás Borba, Manuel Alaio ou Luís Rodrigues, cujas obras aguardam a libertação do pó dos arquivos. Sem cuidar de que banda do limes traçado à sombra da ortodoxia se deviam estabelecer, Luís de Freitas Branco, Ruy Coelho, Frederico de Freitas, Fernando Lopes-Graça, Joly Braga Santos, Maria de Lourdes Martins ou Constança Capdeville (em voo de pássaro e respeitando a cronologia, lembramos alguns dos compositores marcantes na vida cultural do país, ao longo de etapas decisivas do século XX) cultivaram de maneira indistinta, ou quase, a música sacra e a música religiosa, a música litúrgica e a música extralitúrgica. O seu legado foi prosseguido e ampliado, de maneira fecunda, por outras gerações, cujas obras revelam a que ponto o Sagrado mantém, para os artistas, uma iniludível actualidade, sem olhar a fronteiras. Não constituirá a tensão que advém dessa dialéctica do humano e do divino, aliás, o

Sitz im Leben da mais exigente, mas também da mais autêntica arte, capaz de tocar a profundidade do Ser? Foi à luz de uma reflexão mais funda sobre o papel da música no “contexto vital” de Cristianismo e da feliz multiplicação, no panorama internacional, de experiências como

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as que acabamos de enunciar que São João Paulo II e Bento XVI, recordando o exemplo de alguns dos seus predecessores, com destaque para São Pio X, inculcaram corajosamente, em sucessivas ocasiões, a necessidade de um regresso lúcido às fontes da música cristã, de forma a que nem a Letra mate o Espírito, nem a herança de uma iluminada

traditio se mortifique. Devemos congratular-nos por estas palavras sábias, em que não é difícil reconhecer o anelo de encurtar distâncias entre margens que nunca se deveriam ter separado. Mas, para que os espíritos sedentos possam saciar-se com a verdadeira linfa, há que chegar até ela e isso requer a existência de pontes: pontes estendidas sobre abismos; pontes livres de controlo alfandegário ou de portagens; pontes que, mesmo quando o vento sopra, a chuva fustiga ou a neve enregela, se possam franquear, numa translação pautada pela alegria, pela beleza e pela ciência, de olhos colocados no futuro. Similarmente ao que já fora esquadrinhado por vultos colossais do Modernismo e do Pós-Modernismo – Ottorino Respighi, Ildebrando Pizzetti, Igor Strawinsky, Gian Francesco Malipiero, Riccardo Zandonai, Alfredo Casella, Francis Poulenc, Eric Satie, Giorgio Federico Ghedini ou Olivier Messiaen –, os ensinamentos dos mestres da inspiração espiritual do nosso tempo (pense-se em figuras da magnitude de György Ligeti, Morton Feldman, Sofia Gubaidulina e Arvo Pärt) apontaram para um luminoso diálogo entre a agnição da História e a intrépida abertura ao desconhecido; e as novíssimas gerações parecem confirmar o mesmo caminho. Talvez o futuro da plurissecular herança da música sacra resida, cada vez mais, na diluição das fronteiras de contornos efectivamente imprecisos com que a ortodoxia a quis diferenciar da música religiosa. Talvez a música, a verdadeira música, a que imprime o selo da transcendência em toda a rerum universitas (o conjunto de todas as coisas possíveis, incluindo o homem), seja, afinal, só uma. Federico Revilla, historiador da arte a quem se deve uma estimulante análise dos mecanismos da comunicação na sociedade contemporânea, sublinhou que o generalizado desencanto dos nossos dias em relação à palavra – tida por fraudulenta, perniciosa, quase vil – está a determinar um auge da música, que não só ultrapassa fronteiras, distâncias e culturas, como também dá insistentes provas da sua formidável capacidade de aglutinar gentes de línguas e origens várias, ansiosas de se compreenderem umas às outras, mas que não poderiam fazê-lo de diferente modo. Findo o ciclo das síncrises e enantioses que dilaceraram o século XX, impõe-se agora traçar um novo arco para a

musica divina, um arco firmado nas origens e tocado pelo impulso do espírito, pela riqueza da pluralidade, pelo vigor das descobertas, independentemente de essa música ser religiosa ou sacra, litúrgica ou extralitúrgica, devocional ou espiritual, intimista ou festiva. Música de fontes e pontes.

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Todas as Músicas, a Música

JUAN ÁNGEL VELA DEL CAMPO Director Artístico do Festival Terras sem Sombra

Um dos traços essenciais do Festival Terras sem Sombra é a aspiração ao conhecimento fundado na pluralidade de olhares que se completam entre si. A trilogia PatrimónioMúsica-Natureza marca os paradigmas de uma experiência enriquecedora. Aprofundamse diferentes géneros musicais na sua pluralidade, reivindica-se a paisagem na sua dimensão mais pura, defende-se o património no seu valor histórico e artístico. As oito etapas que conformam a 12.ª edição do Terras sem Sombra permitem desenhar um mosaico cultural pletórico de sugestões. Quinzenalmente, variam os lugares de celebração, pois o Festival assume o território no seu conjunto. Ele constitui, digamo-lo assim, um hino ao Baixo Alentejo no seu todo: à beleza dos seus espaços naturais, à fraternidade das suas gentes, ao prazer da descoberta cultural ao alcance de quem o deseje. Julio Cortázar publicou, em 1966, um livro de oito contos de realismo fantástico sob o título Todos os Fogos o Fogo. Passado meio século, não será despropositado denominar o conteúdo das oito sessões musicais do Terras sem Sombra, em 2016, “Todas as Músicas, a Música”. Além do mais, o festival alentejano assume um toque permanente de realismo fantástico. O divino, o humano, o fogo, a música – por onde começar? “O som musical tem acesso directo à alma”, escrevia em 1911 Vasili Kandinsky, no seu ensaio estético

Do Espiritual na Arte, em que desenvolve a busca de uma nova percepção da realidade, com a pintura, a música, o pensamento reflexivo e a observação a abrirem janelas sobre o mundo. A filosofia do Terras sem Sombra parte de premissas de certo modo equivalentes. Património, Música e Natureza caminham aqui, de mão dada, num itinerário de horizontes humanistas. Há sempre uma cor de fundo, um sentido geográfico da organização, uma sensibilidade ante o decorrer do tempo, uma música que fascina a partir do sussurro. A harmonia impõe-se na sucessão de estímulos e na maneira de os viver. O Baixo Alentejo é uma região ideologicamente fértil e solidária. Não por acaso, o canto coral, exaltado pelo Cante, constitui uma das suas manifestações artísticas mais espontâneas e, até, mais naturais.

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Ninguém duvidará que a música representa um foco de atracção a que se torna difícil opor resistência. Toda a música? Não, claro que não, mas, isso sim, a grande música de todas as épocas, entendendo por tal a grande música que se centra preferencialmente na qualidade e não no volume ou no número dos executantes. As regras do jogo na programação do Festival Terras sem Sombra são claras, desde o início, a este respeito: abarcam um espectro vasto, da Idade Média ao século XXI. Todas as músicas, a música. A amplitude de registos não se limita ao âmbito temporal; pelo contrário, estende-se igualmente ao âmbito espacial. E assim, nesta edição, podemos apreciar música de vários continentes, num leque que vai da Europa à América ou à África, com uma paragem privilegiada num país tão vinculado a Portugal – e não apenas por razões linguísticas – como o Brasil, outrora destino de muitos alentejanos. Ao Brasil, consagram-se três sessões, três, e uma delas é uma ópera para crianças:

Onheama, de João Guilherme Ripper, inspirada numa espécie de conto de Max Carphentier, A Infância de Um Guerreiro. Esta obra emula, de certo modo, lendas nórdicas utilizadas por Wagner em algumas das suas óperas, mas situa-as no espaço amazónico, com uma dialéctica entre a luz e a obscuridade, que os protagonistas, também crianças, resolvem em favor da primeira, no seu combate contra a onça (Panthera onca ), o jaguar ou tigre americano, um félido perigoso que os havia privado de algo tão substancial para a existência como a claridade do Sol. Triunfa a luz numa perspectiva infantil, triunfa a vida. A ópera foi estreada, em 2014, no Festival Amazonas de Manaus, com grande êxito, e foi reposta no ano seguinte, no mesmo quadro – e atingindo, de novo, enorme sucesso. É, pois, uma ópera dos nossos dias, com um alcance sociológico notável, ao integrar o público infantil entre os possíveis espectadores. A colaboração na realização do espectáculo com o Teatro Nacional de São Carlos, a “casa da ópera” em Portugal, realça ainda mais, se é possível, o repto desta aventura artística. Serpa abre as portas do seu teatro – um teatro em risco de ser fechado que conseguiu, assim, o ânimo indispensável à sua sobrevivência como espaço dramático – para uma experiência, no mínimo, surpreendente. Os outros dois programas brasileiros são dedicados a notáveis repertórios dos períodos barroco e dos séculos XX-XXI. O primeiro está a cargo do ensemble francês Le Baroque Nomade, dirigido por Jean-Christophe Frisch, um conhecido musicólogo, flautista e director de orquestra que já escreveu um livro de referência sobre a música do Barroco em lugares tão diversos como as Índias Orientais, os Cárpatos ou a China, tendo consagrado gravações discográficas ao património musical desse tempo em países aparentemente tão afastados como a Etiópia, a corte otomana ou o Brasil. Quanto aos sons mais recentes, chegam-nos pela mão do sofisticado quarteto de guitarras

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Quaternaglia, de São Paulo. As suas brilhantes adaptações das Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, causaram sensação; mas o seu programa alentejano chega até ao presente, revelando ao público peninsular um verdadeiro mosaico de músicos brasileiros actuais, muitos deles ainda pouco conhecidos na Europa. Ferreira do Alentejo e Odemira serão, respectivamente, as anfitriãs destes dois sugestivos encontros musicais. O Festival principia e acaba com intercâmbios hispano-portugueses, desenvolvendo uma linha de acção iniciada na edição anterior. O concerto de abertura é realizado pela lusitaníssima orquestra barroca Divino Sospiro, sob o estro de Massimo Mazzeo; no encerramento, o protagonismo cabe a Albert Recasens e a La Grande Chapelle, um conjunto vocal e instrumental de música antiga, sediado em Espanha, com assumida vocação europeia. Estejamos atentos: lembrando a tradição italianizante de Charles Avison, mestre britânico pouco ouvido entre nós, Divino Sospiro não só vai recriar uma música portuguesa tão formosa como a do lisboeta Pedro António Avondano, como interpreta uma obra-chave da música espanhola, Las Siete Palabras de Cristo en la

Cruz, do riojano Francisco García Fajer. O grupo dirigido por Recasens, por seu turno, centra a actuação em três compositores portugueses que fixaram residência em Madrid ou em Sevilha, no século XVII – Manuel Machado, Fr. Manuel Correa e Fr. Filipe da Madre de Deus –, pondo em confronto a sua música com a do espanhol Juan Hidalgo, harpista, à época, da Capela Real (e colega, pois, de Machado), o qual se tornara célebre por ser o criador, com Calderón de la Barca, das duas primeiras óperas espanholas. No momento em que escrevo estas linhas, acaba de aparecer o disco Juan Hidalgo. Música

para el Rey Planeta, interpretado por Recasens e La Grande Chapelle. A organização do Festival não sugeriu aos músicos portugueses, nem aos espanhóis, que programassem repertórios dos países vizinhos – esta iniciativa resultou, em exclusivo, da vontade deles. É um duplo pormenor que reforça os laços de união e solidariedade entre Portugal e Espanha. Graças aos concertos em Almodôvar e Beja, dois séculos fundamentais para a compreensão da história da música, o XVII e o XVIII, ficam reforçados na programação geral do Terras sem Sombra Entra já em plenitude no âmago do século XIX a Petite Messe Solennelle, de Rossini. Dirige-a, aos 88 anos, Alberto Zedda, nas últimas décadas o grande maestro de tudo o que diz respeito à produção rossiniana. Prova disto mesmo é o facto de o carismático musicólogo e director de orquestra milanês se ver aclamado em todos os palcos que pisa. Mais: no Japão, em Moscovo, em Berlim ou na Flandres, a sua presença desperta um entusiasmo indescritível. Também muitíssimo estimado em Itália e em Espanha. Zedda vem ao Alentejo na companhia de quatro solistas formados na Accademia Rossiniana de Pesaro, a cidade natal de Rossini. São oriundos de Itália, de Espanha e

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da República da África do Sul, o que não deixa de ser sintomático. O Coro de El Molino tem igualmente a sua origem numa escola de Música e Artes. Zedda aprecia muito fazer música com jovens. O seu trabalho em Pesaro, tanto na qualidade de director artístico do Rossini Opera Festival como à frente da Accademia Rossiniana, foi, pura e simplesmente, exemplar. Estamos, pois, em Santiago do Cacém, face a um espectáculo tocado pela proximidade e pela magia. As correntes de permuta entre tradição e modernidade surgem bem patentes no concerto de Castro Verde. György Ligeti, um dos compositores fundamentais da música europeia do século XX, inspirou-se, para a concepção de algumas das suas obras, em aspectos marcantes da música popular africana. No concerto Polirritmias: Ligeti Africano, é possível observar os resultados dessas influências. Três músicos da República da Guiné-Conacri e da República dos Camarões interpretam as peças originais; Alberto Rosado mostrará, a seguir, no piano, o resultado das transformações levadas a cabo pelo compositor transilvano de origem húngara, conhecido, entre outras composições, pelo Requiem que Stanley Kubrick utilizou no filme 2001: Odisseia no Espaço. Percussionistas e pianista tocarão juntos em alguns momentos, demonstrando à saciedade que, em termos musicais, a colaboração é sempre possível. Todas as músicas, a música, como dissemos e repetimos. Três criadores que ostentam os prémios nacionais espanhóis de Design, Composição e Interpretação Musical coincidem no que será, talvez, o espectáculo mais insólito do Terras sem Sombra deste ano: uma “ópera sem vozes”, Siempre/Todavía (em português,

Sempre/Ainda), a partir de textos procedentes de Damasco Suite, de Alberto Corazón, com música composta por Alfredo Aracil e interpretação ao piano por Juan Carlos Garvayo. Na realização multimédia, inspirada por pinturas de Alberto Corazón, colabora também Simón Escudero. Com uma duração aproximada de pouco mais de uma hora, esta singular criação estreou-se, em Outubro de 2015, no Museo Universidad de Navarra, em Pamplona, desenhado por Rafael Moneo, e transitou seguidamente para o Centro Galego de Arte Contemporánea, de Santiago de Compostela, outro marco da arquitectura dos nossos dias, projectado por Álvaro Siza Vieira. A recepção do público e da crítica, em Espanha, foi muito positiva. Vai ser possível vê-la e ouvi-la, no Centro das Artes de Sines, ainda antes da sua apresentação em Madrid ou Sevilha, o que constitui também uma forma de realçar a contemporaneidade deste projecto cultural. O Festival averba, nesta edição, a novidade de três anteprimas: a primeira teve lugar em Beja, por ocasião das Jornadas Novas Perspectivas sobre o Caminho de Santiago

em Portugal e Espanha, com a actuação de Ismael Fernández de la Cuesta – o último galardoado com o Prémio Internacional Terras sem Sombra para a categoria de Música

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–, que dirigiu o Coro de Canto Gregoriano de España no concerto Ao longo do Caminho

de Santiago: De Beja a Compostela (Missa de Beata Maria Virgine); a outra realizou-se em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, coincidindo com a apresentação da programação de 2016; a violinista espanhola Lina Tur Bonet e o cravista estado-unidense Kenneth Weiss ofereceram uma belíssima sequência de sonatas de Élisabeth Jacquet de la Guerre e Antonio Vivaldi (inéditas, estas). Merece também especial referência a segunda apresentação do Terras sem Sombra, fora do Alentejo, desta feita em Madrid, com um concerto na Sala de Columnas do emblemático Círculo de Bellas Artes, em que intervêm dois grupos de Cante, oriundos de Castro Verde e Serpa, além de um ensemble de violas campaniças. Trata-se de uma ocasião de ouro para difundir estrategicamente, a partir da capital de Espanha, a cultura musical alentejana, na sua expressão mais popular, histórica e social.

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Evocação de Armando Sevinate Pinto

DIOGO FERNANDES

“[…] O justo, ainda que morra antes da idade, gozará de repouso. Uma velhice respeitável não consiste numa longa vida, nem se mede pelo número de anos. Para o homem, o valor dos cabelos brancos está na prudência, e a verdadeira longevidade é uma vida sem mancha. O justou agradou a Deus e foi por Ele amado e, porque vivia no meio dos pecadores, Deus levou-o deste mundo. Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse os sentimentos e a astúcia não lhe seduzisse a alma. Porque o fascínio do mal obscurece o bem, e a vertigem da paixão corrompe um espírito inocente. Chegado rapidamente à perfeição, completou uma longa vida. A sua alma era agradável ao Senhor, por isso Ele Se apressou em retirá-lo do meio da iniquidade. As gentes viram, mas não compreenderam, nem reflectiram sobre isto: a graça e a misericórdia de Deus são para os Seus eleitos, e Ele protegerá os Seus santos.” Livro da Sabedoria, 4,7-15

Armando José Cordeiro Sevinate Pinto nasceu em 1 de Janeiro de 1946, em Ferreira do Alentejo, e faleceu a 2 de Março de 2015, em Lisboa. Formado em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa, trabalhou como agrónomo em diversas instituições públicas e privadas, nacionais e europeias. Iniciou a vida profissional, aos 24 anos, no Centro de Estudos de Economia Agrária da Fundação Gulbenkian. Em 1972, transitou para o Ministério do Comércio, como técnico superior, seguindo-se o Ministério da Agricultura, onde desempenhou, sucessivamente, os cargos de técnico superior, director de serviços e director-geral. Neste período, que durou até 1986, foi ainda membro da Comissão Interministerial para a Integração Europeia e participou nas negociações de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. < No interior odemirense.

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Em 1987, já com Portugal na CEE, passou a director na Comissão Europeia, primeiro no Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola e na Investigação Agrícola e, depois, a partir de 1989, no Desenvolvimento Regional. Nesta época, foi um dos obreiros das medidas de acompanhamento da última reforma da “Política Agrícola Comum”, designadamente no que diz respeito a medidas agroambientais, florestação das terras agrícolas e reformas antecipadas. Esteve como director em Bruxelas até 1993, mas em Julho desse ano regressou a Portugal, a seu pedido. O trabalho que desenvolveu nas instâncias da União Europeia granjeou-lhe público reconhecimento, tendo sido considerado um dos seus mais prestigiados altos funcionários portugueses. De volta ao nosso país, passou a dedicar-se à consultoria agrícola nos domínios da economia agrária, da análise sectorial e do desenvolvimento rural. Esta actividade foi exercida numa prestigiada empresa do sector, a Agroges, da qual era sócio e coordenador técnico. Paralelamente, foi consultor da Confederação dos Agricultores de Portugal e professor universitário. Dirigiu ou colaborou em cerca de 150 publicações, entre livros, revistas, estudos e jornais, tendo também participado em inúmeros congressos, seminários e reuniões técnicas. De 2002 a 2004, exerceu o cargo de ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pesca, a convite do primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso. Chegou ao Governo na qualidade de independente, já que não tinha filiação partidária. Mas era como técnico que gostava de ser lembrado. Dizia, com o humor que tanto o caracterizou, que um trabalho como agrónomo durante mais de quatro décadas não se podia minimizar face a dois anos como governante. Considerava-se a si próprio um militante da agricultura, pois toda a sua vasta carreira, académica e profissional, esteve ligada a esta área, abarcando inúmeros projectos em âmbitos muito distintos do desenvolvimento rural e agrícola, e em diversos palcos, dando provas, em todos eles, de elevado sentido patriótico e profunda dedicação a Portugal. Boa parte do sucesso agrícola actual no nosso país resultou do seu labor, da transmissão dos seus profundos conhecimentos e do seu combate ao falso fatalismo de que os sectores da terra e do sector agroalimentar não tinham grande futuro em Portugal. A história deu-lhe razão. Sempre contrariou as teses mais negativistas para a agricultura e as repercussões atávicas desta na sociedade urbana, enaltecendo os aspectos positivos da fileira agrícola nacional. Em Junho de 2014, numa das suas apreciadas crónicas semanais no jornal Público, escreveu:

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EVOCAÇÃO DE ARMANDO SEVINATE PINTO


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“Ser agricultor […] é escolher uma profissão que dá sentido à vida, que dá prazer, liberdade e independência. Nem sempre independência financeira, mas, quase sempre, independência de carácter. Um carácter moldado com a ajuda da natureza, com a brisa fresca das manhãs com cheiro a terra, com os pôr-do-sol que suavizam a vida dura dos campos e dão gratuitamente o alento suficiente para enfrentar o difícil dia-a-dia dos agricultores.”

No quotidiano, relembrava com frequência o seu pensamento sobre os agricultores, afirmando que têm uma das “mais nobres, livres, úteis, gratificantes e independentes actividades humanas inseridas no processo produtivo e que tem o mérito de ser umas das poucas de que depende inteiramente a sobrevivência da nossa espécie”.

Como assinalou o “Voto de Pesar pelo Falecimento de Armando Sevinate Pinto”, aprovado na Assembleia da República, por unanimidade, em 2 de Abril de 2015, as suas qualidades humanas genuínas, entre as quais a sinceridade desarmante, a autenticidade total ou a calorosa afectividade, associadas à discrição, fizeram dele um português ilustre e um ser humano excepcional que, desde a família à profissão, estendia o seu saber com gratidão e amizade. Deu o melhor de si mesmo e deixou um imenso legado de ciência e de experiência, de saber pensar e de fazer agricultura, verdadeiramente único e que deve ser continuado. Deixou, ainda, um testemunho de empenho e lucidez, quando desempenhou elevadas funções, em Portugal ou a nível europeu, na defesa do mundo rural português, moderno e próspero, e num país agrícola competitivo. Fica a dever-se-lhe uma notável lição de amor ao Alentejo, que sempre respeitou, louvando qualidades ou procurando corrigir lacunas. Foi à luz de tais princípios que, em 2010, aceitou o convite de José António Falcão para ajudar a estabelecer o Conselho de Curadores do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra, a que presidiria de 2011 até à morte. Levou a cabo esta tarefa com a generosidade que sempre o caracterizou. Quando foi a sepultar, em Cascais, os seus amigos lembraram uma quadra do cancioneiro alentejano: “Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo. A terra paga-me em vida, eu pago à terra morrendo.”

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PROGRAMA MUSICAL

Terras sem Sombra 2016

Anteprima I 7 de Novembro 2015 [21H30]

BEJA Igreja Matriz de Santa Maria da Feira

Ao longo do Caminho de Santiago: De Beja a Compostela (Missa de Beata Maria Virgine) Coro de Canto Gregoriano de España Direcção Musical Ismael Fernández de la Cuesta

Anteprima II 18 de Novembro 2015 [21H30]

LISBOA Centro Cultural de Belém

La Petite Merveille e Il Prete Rosso: Versalhes e Veneza no Tempo do Barroco MUSIca AlcheMIca Violino Lino Tur Bonet Cravo Kenneth Weiss

Anteprima III 13 de Fevereiro [20H00]

MADRID Círculo de Bellas Artes

É tão Grande o Alentejo Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento Os Ganhões Moços d´Uma Cana

27 de Fevereiro [21H30]

ALMODÔVAR Igreja Matriz de Santo Ildefonso

Como as Árvores na Primavera: Avison, Avondano, García Fajer Divino Sospiro Sopranos Bárbara Barradas e Joana Seara Direcção musical Massimo Mazzeo

12 de Março [21H30]

SINES Centro das Artes

Sempre/Ainda: Ópera sem Vozes, de Alfredo Aracil Textos e imagens Alberto Corazón Realização multimédia Simón Escudero Piano Juan Carlos Garvayo

2 de Abril [21H30]

SANTIAGO DO CACÉM Igreja Matriz de Santiago Maior

Petite Messe Solennelle, de Gioachino Rossini Soprano Isabella Gaudí Meio-soprano Cecilia Molinari Tenor Sunnyboy Dladla Barítono Pablo Ruiz Coro de Cámara de El Molino Direcção Eugenia Durán Piano-harmónio Ruben Sánchez-Vieco, Josu Okiñena Direcção musical Alberto Zedda

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PROGRAMA MUSICAL


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16 de Abril [21H30]

FERREIRA DO ALENTEJO Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção

Pelo Mar, pelo Sertão: A Música do Brasil no Tempo do Reino e do Império XVIII-21/Le Baroque Nomade Soprano Cyrille Gerstenhaber Meio-soprano Sarah Breton Tenor Vincent Lièvre-Picard Barítono Emmanuel Vitorsky Órgão e piano Mathieu Dupouy Flautas, serpentão e direcção musical Jean-Christophe Frisch

7 de Maio [21H30]

ODEMIRA Igreja Matriz de São Salvador

Anjos ou Demónios? Novas Tendências da Música Brasileira Quarteto Quaternaglia Direcção musical Sidney Molina

21 de Maio [21H30]

SERPA Cineteatro de Serpa

Onheama, de João Guilherme Ripper Ópera para o público infanto-juvenil, baseada em A Infância de Um Guerreiro, de Max Carphentier Orquestra Sinfónica Portuguesa Coro Teatro Nacional de São Carlos Direcção Giovanni Andreoli Coro Juvenil do Instituto Gregoriano de Lisboa Direcção Filipa Palhares Cenografia e figurinos Miguel Costa Cabral Direcção musical Marcelo de Jesus

4 de Junho [21H30]

CASTRO VERDE Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição

Polirritmias: Ligeti Africano Piano Alberto Rosado Balafão, camani nguni, kalimba Shyla Aboubacar Tum laah, balafão, sanza Justin Tchatchoua Cabaça, nkul, sheker, ngogoma Bangura Husmani Apresentação e textos Polo Vallejo

18 de Junho

BEJA Catedral (Igreja de Santiago Maior)

[21H30]

Inesperado Resgate: Compositores Portugueses na Espanha do Siglo de Oro La Grande Chapelle Direcção musical Albert Recasens

2 de Julho [18H30]

SINES Centro das Artes

Entrega do Prémio Internacional Terras sem Sombra

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Concerto Anteprima I

BEJA

7 Novembro 2015, 21H30

AO LONGO DO CAMINHO DE SANTIAGO: DE BEJA A COMPOSTELA (Missa de Beata Maria Virgine)* Fundo Gregoriano tradicional Salve Sancta Parens Intróito. Modo II Códice do Mosteiro de Santa María de las Huelgas, Burgos (século XIII ex.) Kyrie. Fons bonitatis Tropo com descante. Modo III Livro de coro do Convento de Nossa Senhora da Conceição, Beja. Tradição local Gloria in excelsis Deo Modo V-VI (Tritus) Códice do Mosteiro de Santa María de las Huelgas, Burgos (século XIII ex.) Benedicta et venerabilis Responsório Gradual. Modo IV Recordare. Ab hac familia Ofertório com tropo e descante. Modo I Sanctus. Te laudant Tropo com descante. Modo VIII Agnus Dei. O Iesu Salvator Tropo com descante. Modo V Fundo Gregoriano tradicional Beata viscera Mariæ Antífona de comunhão e cântico. Modo I Códice Calixtino (século XII) Congaudeant catholici Tropo de Benedicamus Domino com descante duplo * Os discantos de todas as peças foram reconstruídos por Ismael Fernández de la Cuesta.

Coro de Canto Gregoriano de España Alberto Basterra Alberto Madinabeitia

< Igreja matriz de Santa Maria da Feira. Beja.

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Bernat Abajo Carlos Santos Fernando Idiáquez Fernando Trascasas Formerio Díaz de Otazu Gotzon Etxeberria Gurutz Larrañaga Joseba Pierola Luis Mari Iñurrategui Rafael Unzalu Ramón Pérez Raúl Guzman Raúl López de Munain Unai Ibáñez Berriozábal Concertador Julián Larrañaga Direcção musical Ismael Fernández de la Cuesta

Capitel. Século XV, segunda metade. Beja, igreja matriz de Santa Maria da Feira. >

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BEJA

Igreja Matriz de Santa Maria da Feira Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 42 255 (Diário do

Governo n.º 105, de 8 de Maio de 1959)

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

A igreja de Santa Maria da Feira, matriz de Beja, ocupa um sítio emblemático no centro histórico da cidade, sítio que antes pertencera – segundo a tradição, corroborada por explícitos achados arqueológicos – à primitiva catedral, cujas fundações devem ascender ao século VI. Outros relatos afirmam ter sido adaptada a mesquita na época do domínio islâmico, o que pressupõe a sua reconciliação com o culto cristão, após a Reconquista da cidade, só tornada definitiva em 1232 ou 1234 (e só verdadeiramente segura após a expugnação de Mértola, em 1238). Aliás, não falta quem veja na torre do solar que lhe fica fronteiro, a Casa da Torrinha, a reminiscência da antiga almádena, do alto da qual, nas horas costumeiras – manhã, meio-dia, tarde, crepúsculo, anoitecer –, um religioso muçulmano chamava os crentes à oração. Túlio Espanca datou esta torre já do século XIX, mas está ainda por averiguar, de modo definitivo, se não terá resultado da transformação de uma estrutura mais antiga. D. Afonso III autorizou, em 1259, a feitura de uma nova igreja, sob a invocação de Santa Maria, medida importante para o repovoamento de uma terra que, tomada e perdida várias vezes pelas hostes portuguesas, sofrera grandes prejuízos. Aquele título correspondia a uma escolha usual numa época de profunda devoção à Virgem, sendo também o mais preferido para a dedicação de antigas mesquitas. João Moniz, o seu primeiro prior, contribuiu decisivamente para o arranque da obra. No rossio vizinho, começou a realizar-se em 1261, com licença régia, a feira de Beja, que acabaria por ficar associada também ao nome do lugar de culto. Este foi entregue pelo mesmo monarca, em 1259, à Ordem militar dos freires de Évora (ou de Avis), que aí instalou uma colegiada. Seguidamente, tornar-se-ia outrossim a sede da sua comenda de Beja. Os limites da paróquia alargavam-se a uma vasta faixa rural, em que abundavam as terras férteis, incluindo Cuba e Selmes, hoje no concelho de Vidigueira. Quanto ao âmbito urbano, muitos fregueses estiveram tradicionalmente vinculados aos mesteres e ao comércio, mas não escasseavam as casas nobres.

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Um aspecto digno de referência na história da igreja matriz de Santa Maria da Feira é o facto de ter sido escolhida por D. João II, em 1495, para se efectuar a cerimónia do solene baptismo de Caçuta, o embaixador do Congo, e dos demais membros da sua comitiva. Garcia de Resende descreveu assim estes acontecimentos na Chronica [...]

do Christianissimo Dom Joam o Segundo (1545): “El-Rei do Congo mandou a El-Rei (D. João II) por seu embaixador Caçuta, homem muito importante que depois de ser cristão teve o nome de D. João da Silva, e alguns moços [...]. El-Rei D. João [...] estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia baptismal para o fazer cristão e assim aos moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-se ela e El-Rei de festa.”

Favorecida pelos monarcas, pelos bispos de Évora e pelos prelados da Ordem de Avis, a igreja-mãe de Beja possuiu, desde cedo, uma fábrica abastada, a que se juntaram outros patrimónios. De entre os seus muitos rendimentos, sobressaíam os provenientes de capelas de missas. No tempo em que o cardeal infante D. Afonso deteve a cátedra eborense, eram cerca de 30 e estavam vinculadas a bens que, além de cobrirem boa parte do território alentejano, se estendiam até Sintra. Existiam mais de 20 propriedades foreiras, entre prédios urbanos e rústicos, além dos próprios do comendador, do prior e dos beneficiados. Um inventário realizado na segunda metade do século XVIII mostra que, apesar de sucessivas incorporações de capelas no erário régio, perdurava ainda um património impressionante. Entre os beneficiados que faziam parte do clero ao serviço de Santa Maria, contava-se, então, Luís António Verney, autor de O Verdadeiro

Método de Estudar (1746-1747); retirado em Roma, a colegiada fazia-lhe chegar os estipêndios correspondentes ao cargo. Grandes transformações alteraram a fisionomia do monumento ao longo dos tempos e deram-lhe o aspecto híbrido que hoje ostenta. Da estrutura medieva, com três naves, permanece a cabeceira de abside poligonal, rodeada por absidíolos. Os seus cinco panos, divididos por contrafortes escalonados, são rasgados por esguias janelas bífores, de verga em arco quebrado e lunetas quadrifoliadas. Embora se tenha perdido a cortina de ameias que fechava o conjunto, persiste quase íntegra a sequência de modilhões e gárgulas zooantropomórficas. Remontando à transição do século XIII para o XIV, este sector constitui um notável testemunho da delicada elegância então atingida pela arquitectura gótica no Sul. Em finais do século XV, procedeu-se à construção da galilé, o que permitiu uma articulação mais funcional com o terreiro envolvente, lídimo coração da urbe. Rasgado por

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arcos quebrados, separados por botaréus cilíndricos, sobrepujados por cones envoltos por merlões chanfrados, este nártex resolve-se internamente numa abóbada de cruzamento de ogivas, com três tramos, cujas nervuras arrancam de mísulas de ornamentação vegetalista. Trata-se de uma solução típica do Tardo-Gótico alentejano em que avulta a influência da arte mudéjar. O corpo central do edifício, por seu turno, foi reconstruído na segunda metade do século XVI, correspondendo à tipologia de “igreja-salão” (Hallenkirche ) largamente utilizada no Alentejo durante a época da Contra-Reforma. Apresenta três naves, de igual altura, formadas por quatro tramos de abóbadas nervuradas, assentes em colunas de fuste cilíndrico e capitéis toscanos. Seguiu-se nisto o austero modelo maneirista da igreja paroquial de Santo Antão, de Évora, construída sob a égide do cardeal infante D. Henrique [reg. 1540-1564 (cardeal em 1546); 1574-1578] – projecto do arquitecto Afonso Álvares, que o mestre pedreiro Manuel de Pires implantou sabiamente, entre 1557 e 1563, e foi a cabeça-de-série de uma ampla “família” de monumentos. Datam do mesmo período as duas sacristias, de planta em quadrilátero, cobertas por abóbadas de cúpulas assentes em trompas. Ciclos, de pinturas parietais, quinhentistas e seiscentistas, de que ainda persistem vestígios, remataram o espaço interior, dando outra vibração à sua harmoniosa austeridade. Uma associação estratégica entre a munificência da colegiada, o mecenato de famílias piedosas e a intervenção de irmandades (que gozavam de prestígio e recursos apreciáveis) tornaram Santa Maria uma das igrejas mais opulentas de Beja, centro de intensa vida litúrgica e devocional. É notável a sequência de retábulos dos séculos XVII, XVIII e XIX. Do lado do Evangelho, avulta a capela de Nossa Senhora do Rosário, cuja estrutura escultórica, característica da talha de “estilo nacional”, foi encomendada, em 1677, ao mestre lisboeta Manuel João da Fonseca. No seu vão central, ergue-se uma extraordinária

Árvore de Jessé, alusiva à genealogia de Cristo, enquanto os painéis das ilhargas e da predela são preenchidos por símbolos das Litanias da Virgem. Do lado da Epístola, o realce pertence à capela de Nossa Senhora da Coroa e das Almas, de grande devoção bejense. Avulta aqui a sumptuosa máquina retabular construída nos finais do reinado de D. Pedro II e que integra a imagem de São Miguel em glória, acolitado por teorias de anjos. Atribuiu-se ao terramoto de 1755, além de outros danos na igreja, o desequilíbrio das colunas dos primeiros tramos. Terá sido o intuito de corrigir os seus efeitos que levou a uma nova campanha de obras na década de 1790, com a remodelação da capela-mor e das capelas colaterais: a da parte do Evangelho, consagrada a São Crispim e São Crispiniano e pertencente à Confraria dos Sapateiros, foi demolida nesta ocasião; a do

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Santíssimo Sacramento, na banda oposta, ganhou maior amplitude, tendo a abóbada revestida por estuques e acolhendo um retábulo de mármore branco e róseo em que se inscreve o painel da Última Ceia, de Pedro Alexandrino de Carvalho, o mais conhecido pintor lisboeta da época. Sagrado em 1792, este altar recebeu os privilégios de indulgência plenária por concessões de Pio VII em 1800 e 1803. Os trabalhos no edifício prolongaram-se, todavia, até 1794. Embora grande parte do tesouro paroquial se tenha dispersado, a igreja conserva ainda espécimes artísticos de muito interesse. Merece particular atenção o painel a óleo sobre madeira que representa A Descida da Cruz, da autoria de um mestre do círculo do pintor eborense Francisco João, obra datada do último quartel de Quinhentos. Do faustoso aparato litúrgico da antiga colegiada, remanesceu um precioso núcleo de artes decorativas, incluindo espécimes de paramentaria, ourivesaria e mobiliário dos séculos XVI a XIX. A meio da fachada virada a poente, está adossado o campanário, edifício de raiz medieval que sofreu ampliações nos séculos XVII e XVIII. Tendo em conta a sua implantação e a sua estrutura, já se vislumbrou nele outra alternativa para a continuidade do minarete. Possui dois coroamentos diferentes, destinados aos sinos da paróquia e do concelho – o que evidencia a convergência, em ponto estratégico, perto das antigas casas da Câmara, dos poderes eclesiástico e civil, acabando este por adquirir, graças às obras realizadas em 1760-1763, maior destaque. A face orientada para o Largo de Santa Maria ostenta, entre outras peças escultóricas dignas de atenção, a cabeça de um touro da época romana, insígnia da antiga Pax Iulia, e as armas medievais de Beja. Uma inscrição liga a sua presença ao passado glorioso da cidade: COLONIA / PAZ JVLIA / FESCE NO

ANO DE 1763 / SENDO JVIZ DE FORA / O D.or ANT.o JORGE DE CARV.o Instituição confraternal datada de amplos recursos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário ergueu, em inícios do século XVIII, no espaço entre a igreja e a torre sineira, a respectiva casa consistorial, incluindo uma capela destinada aos irmãos. Poucos anos depois, juntou-se à frontaria do edifício uma das estações da Via-Sacra, pertencente à Irmandade do Senhor Jesus dos Passos. Retirado à posse da confraria durante a I República, o edifício do Consistório foi entregue à Caixa Geral de Depósitos para nele instalar o seu balcão em Beja. Em 1922-1923, construiu-se um novo imóvel de linhas eclécticas, a meio-termo entre o revivalismo e o modernismo, sob projecto do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro. A intervenção preservou a estrutura da capela e o ciclo de azulejaria nela existente, notável conjunto do terceiro quartel do século XVIII no qual são postos em diálogo momentos culminantes da vida de Maria e de Cristo.

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Menos sorte teve a pequena capela de Nossa Senhora da Luz, já existente em 1680, que ficava encaixada num dos contrafortes da cabeceira da igreja. De planta circular, à semelhança das coevas capelas do Calvário, foi demolida, por intervenção da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1970, com o pretexto de que prejudicava a leitura da estrutura medieval; quem acompanhou de perto o assunto, no entanto, lembra que a opinião pública a via como um estorvo ao trânsito de veículos.

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; J ACQUES M ARCADÉ , Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas – Évêque de Beja, Archevêque d’Evora (1770-1814), Paris, Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 1978; TÚLIO ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; LEONEL BORRELA, “A Igreja de Santa Maria. I-III”, em Diário do Alentejo, Beja, 25 de Agosto e 1 e 8 de Setembro de 1995; HERMÍNA VASCONCELOS VILAR , As Dimensões de Um Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999; [MANUEL LOURENÇO] CASTELEIRO DE GOES, Beja. XX Séculos de História de Uma Cidade, I-II, Beja, Câmara Municipal de Beja, 1998 [1999]; FLORIVAL BAIÔA MONTEIRO, Beja, 100 Anos de Imagens, Beja, Associação para a Defesa do Património Cultural de Beja, 2015.

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O Canto Gregoriano e a Tradição Litúrgica

ISMAEL FERNÁNDEZ DE LA CUESTA

O programa escolhido para este concerto procura reconstruir uma Missa, tal como poderia ser cantada, a partir do século XIII, em qualquer igreja relevante da cristandade latina. De facto, os cantos que aqui apresentamos pertencem à Missa de Santa Maria, segundo o repertório tradicional do Canto Gregoriano, mas adornados, na sua maioria, com tropos e descantes. Esta música ressoaria muito particularmente nos mosteiros mais emblemáticos da Península Ibérica, quando a Ordem de Cister obteve notável protecção dos reis de Portugal, de Castela e Leão e de Aragão. Os peregrinos que se dirigiam a Compostela, por todos os caminhos peninsulares, para honrar o Apóstolo Santiago Maior, ouviriam devotamente tal Missa nestes e noutros centros eclesiásticos peninsulares. São Bernardo de Claraval, o pai da reforma cisterciense, propiciara a devoção e o culto a Santa Maria, a Dama celestial, como sublimação do amor cortês cantado pelos trovadores. Em torno do Canto Gregoriano Nos finais do século XI, os cristãos da Península Ibérica tinham abraçado, por imposição do papa e não sem acaloradas disputas, o canto da Igreja de Roma, em substituição do tradicional canto visigótico-moçárabe. Muito tempo antes, enquanto em todas as igrejas peninsulares estava vigente a liturgia paleocristã visigótica – posteriormente dita moçárabe –, a Igreja de Braga abandonara a tradição litúrgica peninsular, desde o tempo do bispo Profuturus (meados do século VI), para adequar os seus ritos aos antigos usos romanos. Estes usos romanos, litúrgicos e musicais seriam adoptados pelos carolíngios, em finais do século VIII, após oportunas reformas, e difundiram-se em todo o Ocidente latino, com o selo de “gregorianos”, atribuindo-se a sua composição a um santo de prestígio, o papa Gregório Magno [✠ 604]. Aqui começou realmente o vertiginoso processo que fez do Canto Gregoriano um protagonista da nossa cultura. No longo percurso para se generalizar em toda a cristandade, mercê do apoio interessado dos imperadores e dos papas, produziram-se os

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acontecimentos que levaram a diferenciar a música ocidental face à de culturas tão elevadas como a árabe, a chinesa e tantas outras. O novo canto moldou-se à teoria da escala diatónica, ou seja, os seus sons, até então flutuantes na memória e na voz dos intérpretes, tornaram-se fixos, de acordo com a escala musical que hoje usamos, para o efeito inventada; experimentou-se com sucesso um código de escrita musical, o actual; nasceram dele novas formas e técnicas compositivas (tropo e canção do trovador –

tropator –, contraponto e polifonia, consonâncias e sistema harmónico), que se foram aperfeiçoando com a passagem do tempo e os contributos de inúmeros autores; e o próprio canto permaneceu como um referente inexcusável da composição, pelo menos até ao século XVIII. Os nossos arquétipos auditivos, os da cultura ocidental, formaram-se no diatonismo, ao passo que os nossos avoengos cantaram e escutaram, dia após dia, durante mais de dez séculos, a mesma música. Além disso, o Canto Gregoriano foi, ao longo de muitos séculos, o canto próprio da liturgia cristã, pelo que o próprio Johann Sebastian Bach, mesmo sendo um fervoroso luterano, recebeu a influência deste canto na sua gigantesca obra religiosa. Para um historiador e músico profissional, como o que subscreve as presentes linhas, o Gregoriano é, sem dúvida, o canto que melhor define a cultura ocidental da música: a de Guillaume de Machaut, Francisco Guerrero, Claudio Monteverdi, Wolfgang Amadeus Mozart, Felix Mendelsohn, Franz Liszt, Claude Debussy, Benjamin Britten e também, como referimos, a de Bach. Ele constitui a espinha dorsal que tornou sustentável, no Ocidente, a prodigiosa evolução da música durante o último milénio. Tendo herdado dos judeus e do mundo greco-latino grande parte das suas festas, os cristãos celebraram os seus próprios ritos mediante a salmodia, célula básica do canto litúrgico ocidental, incluindo o Gregoriano. Importa recordar que as festas mais solenes e universais se relacionavam com o ciclo anual. O Natal cristão substituiu a festa com que os romanos comemoravam o solstício do Inverno, Natalis solis invicti. A Quaresma, tempo de purificação, alcançada pela ascese corporal durante 40 dias (40 anos de peregrinação no deserto), e a Páscoa, tempo de vida, de ressurreição, graças ao eclodir da natureza na Primavera mediterrânica, deram origem a liturgias e cantos que perduraram até hoje. A imagem da Virgem Maria Mãe de Deus foi também um poderoso estímulo, desde a época anterior ao Concílio de Éfeso (ano 431), para a celebração litúrgica dos cristãos, mormente nos séculos XII e XIII. Na segunda metade do século XX, ao deixar de ter uma função real na liturgia da Igreja Católica, devido a uma infausta aplicação da doutrina do Concílio Vaticano II, o Canto Gregoriano acabou por ser apropriado pela sociedade civil, enquanto música que, por ter gerado a tecnologia utilizada na composição através dos séculos, é considerada o

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pilar que vertebra o gigantesco edifício histórico da música ocidental. Precisamente por este motivo, nos nossos dias produziu-se o seu trânsito do âmbito sonoro próprio, que eram as igrejas, para as salas do concerto. Missa com Tropos e Descantes O Canto Gregoriano do programa aqui patente realiza-se, em grande parte, com tropos e descantes. Cabe lembrar que os tropos são fragmentos melódicos intercalados, ao modo de glosas, no interior das peças cantadas tradicionais. A composição de tropos em língua latina alcançou um sucesso extraordinário nos séculos X-XII, ao ponto de se chamar, aos poetas que compunham versos em língua vulgar, tropatores, isto é, trovadores, à imitação dos que os faziam em latim para a liturgia. Quanto aos descantes, são ornamentações realizadas sobre a melodia do cantochão, o qual permanecia invariável. Para este concerto, extraí tais ornamentações do famoso códice polifónico do mosteiro feminino de Santa María la Real de Las Huelgas (Burgos), copiado em finais do século XIII, para uso do coro de monjas cistercienses nas suas celebrações mais solenes. Procuro recuperar, assim, um modo de cantar abandonado durante os dois últimos séculos, mas do qual ainda nos séculos XVIII e XIX se encontravam interessantes, embora muito ténues, vestígios na Europa – por exemplo, na catedral de Toledo e, tal como conta Felix Mendelssohn a propósito da sua viagem a Roma, em 1830, na própria Capela Sistina do Vaticano. Os códices que nos transmitem as peças que incluímos nesta Missa pertencem a uma época em que os músicos tinham imposto diversas teorias que permitiam a execução medida ou compassada destes cantos. A forma compassada de cantar ajudava a produzir as necessárias consonâncias na sobreposição de uma melodia inventada – o ornamento – relativamente à do cantochão. No entanto, a técnica de descante existia muito antes de os teóricos da música arbitrarem a superestrutura compassada com que tais cantos aparecem nos manuscritos dos séculos XIII e XIV, fundamentada na aplicação normalizada de determinados modos rítmicos. Por isso, na preparação do vertente repertório, procurei situar-me na pré-história da mensuração dos descantes, com o fim de surpreender o ritmo musical livre com que, indubitavelmente, eram cantados antes de os sábios músicos dos referidos séculos imporem o ritmo compassado. À lista de obras da Missa do fundo tradicional, juntei um Gloria in excelsis Deo. Em 2015, durante a minha última viagem ao Alentejo – quando tive o privilégio de ser honrado, em Sines, com o Prémio Internacional Terras sem Sombra –, pude, na companhia do Prof. José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e

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Artístico da Diocese de Beja, examinar atentamente os fundos musicais do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição, de Beja, hoje sob a alçada do Arquivo Distrital. A composição em apreço é retirada de um livro de coro pertencente a esse conspícuo acervo. Incorporei outrossim, no final do programa, um dos mais importantes cantos de toda a Idade Média Ocidental: o canto de acção de graças que se entoava nas liturgias mais solenes de Santiago de Compostela, especialmente quando havia maior influência de peregrinos: Congaudeant Catholici-Benedicamus Domino. É o canto escrito a três vozes mais antigo do mundo que chegou até nós. Tive a fortuna de poder gravá-lo, em 1972, com outros cantos do mesmo manuscrito, para um disco LP. Alcançou posteriormente o reconhecimento das mais altas instâncias discográficas internacionais e, em 1993, uma vez digitalizado e transferido para um suporte CD, alcançou um êxito sem precedentes no mercado mundial. Sobre o Modo de Cantar o Gregoriano As gravações discográficas que realizei, durante quase 30 anos, com o Coro de Monges Beneditinos de Santo Domingo de Silos contribuíram para difundir uma determinada formar de cantar o Gregoriano entre o grande público. Não renunciei a seguir o mesmo critério interpretativo e artístico com o meu novo Coro, formado mais tarde, agora por músicos seculares, ante a imposibilidade de obter um mínimo rendimento artístico com religiosos actuais. A sociedade do presente redescobriu, graças a esta maneira específica de trazer à luz do dia o Canto Gregoriano, não apenas o seu valor como testemunho, mas também, acima de tudo, a sua profundidade musical. Parece irrelevante, nestas circunstâncias, o natural desajuste histórico-religioso com que o aceita o homem dos nossos dias, cuja vida decorre de modo tão acelerado no início deste terceiro milénio. Também há mil anos – coincidência ou providência da história –, no trânsito do século X para o século XI, os escribas dos mais importantes centros eclesiásticos se dedicacavam febrilmente à cópia de tais músicas nos códices hoje guardados nos arquivos; faziam-no com o pressentimento de que um canto sagrado que tinha permanecido vivo na tradição oral e na memória do cristão poderia vir a ficar esquecido para sempre. Centrar, perfilar e ampliar a imagem sonora do Canto Gregoriano que a sociedade contemporânea pôde criar através das minhas gravações, eis a mensagem que gostaria de transmitir neste singular concerto. É com satisfação que assinalo que o facto de se cantar Gregoriano num espaço religioso de Beja significa devolver a este, de certo modo, a sua primigénia e tradicional função.

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[AD LITTERAM] Salve Sancta Parens

Deus Te salve, Mãe Santíssima

Salve, sancta Parens,

Deus Te salve, Mãe Santíssima,

enixa Puerpera Regem,

que deste à luz um rei

qui cælum terramque regit

que rege o céu e a terra,

in sæcula sæculorum.

pelos séculos dos séculos.

V/ Eructavit cor meum verbum bonum:

V/ Do meu coração brota um belo discurso:

dico ego opera mea Regi.

ao rei dedico o meu poema.

Salve, sancta Parens,

Deus Te salve, Mãe Santíssima,

enixa Puerpera Regem,

que resplandecestes ao dar à luz um rei

qui cælum terramque regit in sæcula

que rege o céu e a terra pelos séculos dos

sæculorum.

séculos.

V/ Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto.

V/ Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Sicut erat in principio

Como era no princípio,

et nunc et semper,

agora e sempre,

et in sæcula sæculorum Amen.

pelos séculos dos séculos. Ámen.

Salve, sancta Parens,

Deus Te salve, Mãe Santíssima,

enixa Puerpera Regem,

que deste à luz um Rei

qui cælum terramque regit

que rege o céu e a terra

in sæcula sæculorum.

pelos séculos dos séculos.

Kyrie. Fons bonitatis

Senhor, tem piedade de nós. Fonte de bondade

Kyrie eleyson.

Senhor, tem piedade de nós.

Kyrie fons bonitatis,

Senhor, fonte de bondade,

Pater ingenite, a quo bona cuncta procedunt,

Pai não concebido, de quem todo o bem procede,

eleyson.

tem piedade de nós.

Kyrie qui pati Natum mundi pro crimine,

Senhor, que enviaste o Teu Filho ao mundo para

ipsum ut salvaret misisti,

que com o Seu sofrimento o remisse do pecado,

eleyson.

tem piedade de nós.

Kyrie qui septiformis dans dona Pneumatis,

Senhor, que nos enviaste os sete dons do

a quo cælum terra replentur,

Teu Espírito e com eles encheste o céu e a terra,

eleyson.

tem piedade de nós.

Christe eleyson.

Cristo, tem piedade de nós.

Christe, unice, Dei Patris Genite,

Cristo, Filho unigénito de Deus Pai,

quem de Virgine nasciturum mundo mirifice,

que os Santos Profetas anunciaram que viria ao

sancti predixerunt prophetæ,

mundo e nasceria de uma virgem,

eleyson.

tem piedade de nós.

Christe hagie, caeli compos regie,

Cristo Santo, cuja morada é no céu e a quem

melos glorie, cui semper adstat pro numine,

os anjos rodeiam,

angelorum decantat apex,

cantando doces hinos de glória,

eleyson.

tem piedade de nós.

Christe, cælitus adsis nostris precibus, pronis

Cristo, do céu atende as nossas preces, pois

mentibus quem in terris devote colimus,

devotamente Te servimos, cheios de humildade,

ad te, pie Jesu, clamantes,

e a Ti, piedoso Jesus, bradamos,

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eleyson.

tem piedade de nós.

Kyrie eleyson.

Senhor, tem piedade de nós.

Kyrie, Spiritus alme,

Senhor, Espírito Santo,

cohaerens Patri Natoque, unius usiæ

que procedes do Pai e do Filho

consistendo, flans ab utroque,

e com eles partilhas a mesma natureza,

eleyson.

tem piedade de nós.

Kyrie, qui baptizato in Jordanis unda Christo,

Senhor, que no baptismo de Cristo no Jordão

effulgens specie columbina apparuiste,

apareceste refulgente, em forma de pomba,

eleyson.

tem piedade de nós.

Kyrie, ignis divine, pectora nostra succende,

Senhor, fogo divino, abrasa os nossos corações

ut digne partiter proclamare possimus semper,

para que, juntos, possamos proclamar sem cessar,

eleyson.

tem piedade de nós.

Gloria in excelsis Deo

Glória a Deus nas alturas

Gloria in excelsis Deo. Et in terra pax hominibus

Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos

bonae voluntatis.

homens de boa vontade.

Laudamus te.

Nós Te louvamos.

Benedicimus te.

Nós Te bendizemos.

Adoramus te.

Nós Te adoramos.

Glorificamus te. Gratias agimus tibi, propter

Nós Te glorificamos, nós Te damos graças por

magnam gloriam tuam.

Tua imensa glória.

Domine Deus, Rex cælestis, Deus Pater

Senhor Deus, Rei dos Céus, Deus Pai todo-

omnipotens.

-poderoso.

Domine Fili Unigenite, Jesu Christe. Spiritus et

Jesus Cristo, filho unigénito de Deus.

alme orphanorum Paraclyte.

Espirito Santo Paracleto, consolo dos órfãos.

Domine Deus, Agnus Dei, Filius Patris,

Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus

Primogenitus Mariæ Virginis Matris.

Pai, Primogénito de Maria Virgem Mãe.

Qui tollis peccata mundi,

Tu que tiras os pecados do mundo,

miserere nobis.

tem piedade de nós.

Qui tollis peccata mundi, suscipe

Tu que tiras os pecados do mundo, atende a

deprecationem nostram ad Mariæ gloriam.

nossa súplica, pela glória da Virgem Maria.

Qui sedes ad dexteram Patris,

Tu que estás sentado à direita do Pai,

miserere nobis.

tem piedade de nós.

Quoniam tu solus sanctus, Mariam sanctificans.

Porque só Tu és santo, que santificas Maria.

Tu solus Dominus, Mariam gubernans.

Só Tu, Senhor, que governas a Maria.

Tu solus altissimus, Mariam coronans,

Só Tu o altíssimo, que coroas a Maria,

Jesu Christe.

Jesus Cristo.

Cum Sancto Spiritu in gloria Dei Patris.

Com o Espírito Santo na Glória de Deus Pai.

Amen.

Ámen.

Benedicta et venerabilis

Bendita e venerável

Benedicta et venerabilis es, Virgo Maria,

Bendita e venerável és, Virgem Maria,

quae sine tactu pudoris inventa

pois sem perderes a virgindade

es Mater Salvatoris.

Te converteste na Mãe do Salvador.

V/ Virgo Dei Genitrix

V/ Virgem, Mãe de Deus,

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quen totus non capit orbis,

no Teu ventre encontrou abrigo, feito homem,

in tua se clausit viscera factus homo.

Aquele a quem o universo inteiro não abarca.

Recordare. Ab hac Familia

Recorda-Te. A esta Família

Recordare, Virgo Mater, dum steteris in

Recorda-Te, Virgem Maria, quando estás na

conspectu Dei, ut loqueris pro nobis bonum, et

presença de Deus, de interceder por nós,

ut avertas indignationem suam.

para que Ele esqueça a Sua ira.

Ab hac familia tu propitia,

A esta família sê propícia.

Mater eximia pelle vitia;

Mãe insigne, ajuda-nos

Fer remedia reis invia,

a combater os nossos vícios;

Dans in Patria vitæ gaudia,

concede o perdão aos pecadores e dá-lhes

Pro quibus dulcia tu præconia,

o gozo da vida eterna na sua Pátria.

Laudes cum gratia suscipe pia,

Aceita com benevolência as dádivas e louvores

Virgo Maria,

que Te oferecem, Virgem Maria,

nobis.

a nós.

Sanctus. Te laudant

Santo. Te louvam

Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus Deus

Santo, Santo, Santo,

Sabaoth.

Senhor Deus do Universo.

Pleni sunt caeli et terra gloria tua.

Os céus estão cheios da Tua glória.

Hosanna in excelsis.

Hosana nas alturas.

Benedictus qui venit in nomine Domini.

Bendito o que vem em nome do Senhor.

Hosanna.

Hosana.

Te laudant agmina jugiter celica

Todo o exército celestial Te louva:

Sol, luna, sidera, humus et maria.

Sol, lua, astros, terra e mar.

Supera et infima qui regis tua potentia,

Tu que governas as alturas e as profundezas

Nostra dilue contagia.

com o Teu poder, afugenta de nós a peste.

O Dei clementia,

Ó clemência de Deus,

refove nos tua gratia.

fortalece-nos com a Tua graça.

redimis morte

Tu que nos redimiste

quos propria.

com a Tua própria morte.

Pande superna,

Abre-nos o céu,

Rex nobis alme,

Rei poderoso,

spes qui es nostra

Tu que és a nossa esperança

salus aeterna

a nossa salvação eterna

paxque vera.

e a nossa verdadeira paz.

O quam beata

Oh! que ditosa

est cæli vita,

é a vida celestial,

quæ sine meta,

que se goza sem limite,

fruitur cuncta

por todos os séculos,

per sæcula in excelsis.

nas alturas.

Agnus Dei. O Iesu salvator

Cordeiro de Deus. Ó Jesus Salvador

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi,

Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo,

O Iesu Salvator, Dulcis Consolator,

Ó Jesus Salvador, Doce Consolo,

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tua nobis dona exspectata bona,

dá-nos os Teus bens tão desejados,

miserere nobis.

dá-nos a paz.

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi,

Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo,

De supernis vitæ, dona nobis mitte,

Envia-nos os dons que nos prometeste

sicut promissisti quando recessisti.

quando subiste ao céu,

miserere nobis.

Tem piedade de nós.

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi,

Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo,

O pacis amator, o bonorum dator,

Ó amante da paz, ó dador de bens!

tua nobis dona exspectata bona,

dá-nos os Teus bens tão desejados,

dona nobis pacem.

Dá-nos a paz.

Beata viscera

Bem-aventurado o ventre

Beata Viscera Mariæ Virginis quae portaverunt

Bem-aventurado o ventre da Virgem Maria

aeterni Patris Filium.

que albergou o Filho do Pai Eterno.

V/ Magnificat anima mea Dominum.

V/ A Minha alma glorifica o Senhor.

Beata Viscera Mariæ Virginis quæ portaverunt

Bem-aventurado o ventre da Virgem Maria

æterni Patris Filium.

que albergou o Filho do Pai Eterno.

V/ Et exsultavit Spiritus meus in Deo salutari

V/ E o Meu espírito exulta de alegria em Deus,

meo.

Meu salvador.

Beata Viscera Mariae Virginis quae portaverunt

Bem-aventurado o ventre da Virgem Maria

aeterni Patris Filium.

que albergou o Filho do Pai eterno.

V/ Quia respexit humilitatem ancillæ tuæ,

V/ Porque olhou para a humildade da Sua serva,

ecce enim ex hoc me dicent omnes

por isso todas as gerações lhe chamarão bem-

generationes.

-aventurada.

Beata Viscera Mariæ Virginis quæ portaverunt

Bem-aventurado o ventre da Virgem Maria que

aeterni Patris Filium.

albergou o Filho do Pai eterno.

V/ Sicut locutus est ad patres nostros, Abraham

V/ Como tinha prometido a nossos pais,

et semini eius in sæcula.

a Abraão e à sua descendência para sempre.

Beata Viscera Mariæ Virginis quæ portaverunt

Bem-aventurado o ventre da Virgem Maria

æterni Patris Filium.

que albergou o Filho do Pai Eterno.

Congaudeant catholici

Regozijem-se todos os católicos

V/ Congaudeant catholici,

V/ Regozijem-se todos os católicos,

laetentur cives caelici,

alegrem-se os habitantes do céu,

R/ Die ista.

R/ Neste dia.

V/ Clerus pulchris carminibus studeat atque

V/ Dedique-se o clero a entoar formosos

cantibus,

poemas e cânticos,

R/ Die ista.

R/ Neste dia.

V/ Hæc dies laudabilis divina luce nobilis,

V/ Este é um dia glorioso, nobre pela sua luz divina,

R/ Die ista.

R/ Neste dia.

V/ Qua Jacobo palacia ascendit ad celestia

V/ No qual Santiago ascendeu aos céus,

R/ Die ista.

R/ Neste dia.

V/ Vincens herodis gladium accepit vite

V/ Depois de vencer a espada de Herodes

bravium

recebeu o prémio da vida,

R/ Die ista.

R/ Neste dia.

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V/ Ergo carenti termino Benedicamus

V/ Por tudo isto bendigamos ao Senhor que não

Domino,

tem fim,

R/ Die ista.

R/ Neste dia.

V/Magno Patrifamilias Solvamus laudis

V/ Demos graças e louvores

gratias,

ao grande Pai,

R/ Die ista.

R/ Neste dia. Tradução: Ismael Fernández de la Cuesta, Maria das Dores Galante de Carvalho e José António Falcão

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Coro de Canto Gregoriano de España

Após os éxitos mundiais das suas gravações discográficas com os monges beneditinos de Santo Domingo de Silos, Ismael Fernández de la Cuesta fundou, em 1994, este coro, para dar a conhecer, mediante actuações em directo, que o Canto Gregoriano não é uma música pop, mas um repertório de cantos que, durante mais de um milénio, constituiu o substrato da música culta no Ocidente. Composto por músicos seculares, integra actualmente 17 vozes graves, além do director. Mais do que um “restauro arqueológico” de duvidosa fiabilidade, tem-se caracterizado pela excelência dos resultados artísticos, fundamentados no estudo das fontes orais e escritas antigas. Foi protagonista do programa televisivo Songs of the Spirit, emitido pela cadeia pública PBS nos Estados Unidos da América e pela TVE em Espanha, e nomeado para o EMMY da Academy of Television, Arts and Sciences, de Hollywood. Recebeu igualmente o Gabriel Award, atribuído ao melhor programa cultural de conteúdo humanístico e religioso. Diversos CD deste coro incluem de maneira sistemática, pela primeira vez, os descantes ornamentais com que se realizava o canto litúrgico na Idade Média. Entre as suas digressões, salientam-se o ciclo apresentado nas principais igrejas e salas de espectáculos dos Estados Unidos da América (Chicago, Washington, Filadélfia, Nova Iorque, Boston, Nova Orleães, etc.), e os concertos na Quincena Musical de San Sebastián, Sydney International Festival, Festival de Arte Sacro de Madrid, Festival Internacional Música del Pasado de América (Caracas), Cidade do México, Puebla, Oaxaca, Monterrey, León, Guanajuato, Tenerife, Santa Cruz de la Sierra, La Paz e Bruxelas.

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Ismael Fernández de la Cuesta Direcção musical

Nascido em Neila (Burgos), em 1939, é um musicólogo e intérprete reconhecido internacionalmente, com uma extensa bibliografia, em particular sobre o Canto Gregoriano e a música medieval. Director do Coro de Monges de Santo Domingo de Silos (1964-1973), difundiu o Canto Gregoriano em todos os continentes através dos seus registos discográficos, situados no topo da lista de vendas mundial. Entre outros galardões, obteve o Grand Prix Charles Cros (1972), por Las Mejores

Obras de Canto Gregoriano (Chant I), e o Great Award of the Festival of the Fines Arts of Tokyo (1974), pelo álbum Tomás Luis de Victoria, Hebdomada Sancta. Em 2007, foi alvo de uma notável homenagem científico-musical por parte de destacados musicólogos e professores especialistas, publicada em dois volumes, sob a direcção de Robert Stevenson, pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Estudou Humanidades no Mosteiro de Santo Domingo de Silos, onde foi niño cantor. Especializado em Canto Gregoriano na Abadia de Saint-Pierre de Solesmes, graduou-se em Teologia pela Université Catholique de Angers e fez a licenciatura em Filologia Românica na UNED, com o objectivo de publicar a música completa dos trovadores occitanos (Las Cançons dels Trobadors, Toulouse, 1980). Catedrático de Gregoriano no Real Conservatorio Superior de Música de Madrid (1978-2011), foi presidente da Sociedad Española de Musicología (1984-1995), de que é membro perpétuo. Membro fundador do Centre pour la Recherche et l’Interprétation des Musiques Médiévales, de Paris, é académico de número e vice-director da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando de España. Recebeu, em 2011, a Grã-Cruz da Orden Civil de Alfonso X el Sabio. Actualmente, realiza cursos e programas para a defesa do património musical ibero-americano. Em 2015, recebeu o Prémio de Castilla y León e o Prémio Internacional Terras sem Sombra (Música).

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Concerto Anteprima II

LISBOA Centro Cultural de Belém

12 Novembro 2015 21H30

LA PETITE MERVEILLE E IL PRETE ROSSO: VERSALHES E VENEZA NO TEMPO DO BARROCO Élisabeth Jacquet de la Guerre [1665-1729] Sonates pour le Violon et Basse Continue (1707) Sonata I en Ré menor (adagio 3/2) Presto Adagio Presto Adagio Presto Aria Presto

Sonata V en Lá menor (C) Presto Adagio Courante Aria

Antonio Vivaldi [1678-1741] “Sonatas Inéditas de Graz” Sonata 3 RV 11 en Ré maior Largo Allegro Largo Allegro

Sonata 4 RV 7 en Dó menor Preludio Largo Allemanda Allegro Aria Vivace MUSICA ALcheMIca Violino Lina Tur Bonet Cravo Kenneth Weiss

< Sala Luís de Freitas Branco. Centro Cultural de Belém, Lisboa.

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LISBOA

Centro Cultural de Belém

ANA SANTOS

Sito na parte ocidental de Lisboa, junto ao Tejo, em zona privilegiada da foz do rio, integrando-se harmoniosamente num conjunto arquitectónico dominado pela mole quinhentista do mosteiro de Santa Maria de Belém, vulgo dos Jerónimos, e com a Torre de Belém a dois passos, o Centro Cultural de Belém foi construído em 1988-1992. Foi inaugurado em 1993, após ter acolhido, naquele ano, a presidência portuguesa do Conselho das Comunidades Europeias. Da autoria dos arquitectos Vittorio Gregotti e Manuel Salgado, o seu projecto, muito discutido à época, reflecte o assumido propósito de constituir “uma pequena parte da cidade” de Lisboa, tanto na geografia como na relação com o curso fluvial. Abrindo-se em edifícios separados por ruas, praças e pontes, constitui um espaço vivo, onde se trabalha, se passeia, se fruem o ambiente paisagístico natural e a capacidade criativa dos artistas de todos os tempos. O CCB encontra-se organizado em três núcleos distintos, mas complementares: o Centro de Reuniões; o Centro de Espectáculos; e o Centro de Exposições, actualmente Museu Colecção Berardo, de arte moderna e contemporânea. Esta vertebração modular oferece condições excelentes para a realização de congressos, espectáculos de música, teatro, dança, cinema, ópera, exposições e uma multiplicidade de outras atividades dirigidas a diferentes públicos. Ocupa, por conseguinte, um lugar ímpar na vida cultural do país.

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Sonhos e Prodígios do Barroco

LINA TUR BONET

Élisabeth Jacquet de la Guerre: Sonatas para o Rei Sol Diz-se que pode ter sido um dos caprichos de M.me de Montespan, uma das favoritas de Luís XIV – que chegava a percorrer mais de 60 km a cavalo só para gozar dos favores das suas damas –, a razão que levou o monarca a tomar pessoalmente a seu cargo o patrocínio da jovem prodígio parisiense. Não há dúvida, porém, de que o Rei Sol, amante e patrocinador das artes e dos artistas, ficou surpreendido quando Claude Jacquet, um organista bem relacionado na corte, lhe apresentou a filha, Élisabeth, apenas com 5 anos, num dos serões de Versalhes, onde todos puderam admirar a beleza da voz e as outras maravilhas da menina ao cravo. Baptizada a 17 de Março de 1665, em Paris, Elisabeth Jacquet foi a herdeira de uma grande tradição musical: o avô e o tio eram construtores de órgãos; o pai, o organista titular da igreja parisiense de Saint-Louis-en-l’Île; e os irmãos alcançaram, todos eles, grande reputação como músicos. Luís XIV encorajou-a a “cultivar o maravilhoso talento que a natureza lhe tinha dado”, pelo que a jovem se mudou para Versalhes, onde M.me de Montespan a criaria com os seus filhos e onde receberia uma esmerada educação, passando a fazer parte da mais culta sociedade francesa e do universo da corte. Aí, apelidavam-na de “la petite merveille” ou “la merveille de notre siècle”, e todos os mestres da época se renderam ao seu talento. Élisabeth teve sempre consciência da imensa oportunidade e do privilégio que tudo isto significava para a sua formação e para a sua aprendizagem, pelo que nunca deixaria de agradecer os favores outorgados pelo rei, a quem dedicou as suas obras, com emoção e reconhecimento, até ao falecimento deste, em 1715. Assim se expressava ela: “Desde a minha mais tenra idade (e esta recordação será por mim eternamente reconhecida), após ter sido apresentada na vossa ilustre corte, onde tive a honra de permanecer durante largos anos, aprendi, Senhor, a dedicar-vos todas as minhas vigílias.

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Desde aquele momento em que vos dignastes acolher com agrado as primícias do meu génio, haveis ainda achado por bem receber algumas das minhas obras. Porém, esses sinais privados da minha devoção não são para mim suficientes e ansiava pela feliz ocasião de poder dela dar provas públicas.”

O próprio Titon du Tillet, no famoso Le Parnasse François (anedotário sobre poetas e músicos do reinado de Luís XIV), publicado em 1732, fala da sua “maravilhosa facilidade em tocar espontaneamente prelúdios e fantasias”, salientando: “às vezes improvisa sobre qualquer tonalidade ou tema solicitados durante meia hora ou uma hora completa, com melodias e harmonias muito variadas, de maneira impecável e encantando todos os seus ouvintes”. No entanto, as primeiras composições conhecidas de Elisabeth Jacquet não foram peças escritas para cravo, instrumento que tanta celebridade lhe dava, mas umas pequenas obras de execução dramática, destinadas a serem representadas na corte, como uma ópera cantada no palácio do Delfim e nos aposentos de M.me de Montespan, no mesmo mês, ou uma pastoral representada, em várias ocasiões, perante Luís XIV. Ela própria recordará, com humildade e surpresa, uma obra estreada na residência do Delfim, assim como “a fama e o renome que [me] trouxe aquela novidade, inclusive em países estrangeiros. Todas estas vantagens foram sinais incontestáveis do êxito inesperado daquele meu intento”. Em 1684, abandonou o eldorado de Versalhes, mudando-se para Paris, onde casou com o organista Marin de la Guerre, que acabaria por ser organista da Sainte-Chapelle. Na capital não lhe foi difícil prosseguir a carreira, dando aulas particulares e concertos cheios de êxito, quer como compositora, que como intérprete. Deste modo, o êxito e a fama de M.me de La Guerre foram sempre em crescendo. Os grandes músicos e conhecedores acudiam diligentemente para a ouvir tocar cravo. Mesmo fora da corte, continuou a gozar do mecenato do rei, enquanto este viveu, compondo amiúde para ele, por encomenda. Deste período feliz são obras como Jeux à l’Honneur de la Victoire, de 1691, e a ópera (tragédia lírica) Céphale et Procris, de 1694. O Mercure Galant, de Dezembro de 1690, dedicou-lhe nada menos que nove páginas da sua edição em verso, intitulando-a “sombra de Lully” ou, ainda, “a mais proeminente compositora e música”. Aquela que já era conhecida como M.elle de la Guerre contava então 26 anos. Esta época de esplendor e as suas gratas vivências seriam truncadas, porém, a breve trecho. Em poucos anos, Élisabeth viu morrer a maior parte das pessoas que lhe eram mais chegadas: a mãe, o pai, o irmão Nicolas, o marido e, até, o seu único filho, de dez anos de idade, também ele um prodigioso cravista.

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A compositora recolheu-se, então, à intimidade, e os amantes da música tiveram de esperar até 1707 pela sua próxima publicação, que incluiria a colecção de sonatas que hoje nos ocupa integralmente. Esta nova Jacquet de la Guerre reapareceu com maturidade, reflexão e sabedoria, oferecendo uma das mais delicadas e desconhecidas páginas que o reportório para o violino, já de si tão extenso e magnífico, possui. De facto, as Six Sonates pour le Viollon et pour le Clavecin, de 1707, são um exemplo precoce do novo género de obras de cravo com acompanhamento, onde este instrumento é tratado em forma de obbligato – como sucede, por exemplo, nas Pièces de Clavecin

en concerts, de Jean-Philippe Rameau. Uma das primeiras pessoas conhecidas por fomentar o novo estilo italiano da sonata seria Nicolas Mathieu, pároco de Saint-André-des-Arts. Pensa-se que terá sido na sua casa que se realizaram as estreias das trissonatas de Arcangelo Corelli, publicadas em Roma em 1685. O primeiro compositor a criar de acordo com este modelo inovador foi, em França, Marc-Antoine Charpentier. Com François Couperin e Jean-Féry Rebel, Élisabeth Jacquet de la Guerre faz parte da geração de pioneiros que explorou o potencial artístico da sonata no âmbito galo. O estilo italianizante das suas sonatas para violino evidencia bem a sua mestria e a sua sensibilidade excepcional, ao criar inteligentes sucessões harmónicas que dão forma aos diversos registos estilísticos, muito avançados para a época. Escalas ascendentes ou descendentes, imitações, repetições de notas, intervalos de quarta e progressões puramente italianas convivem, na mais perfeita simbiose, com a elegância ornamental e a delicadeza de melodias e árias inteiramente francesas. Alguns adágios são apenas pequenas pontes entre dois movimentos mais extensos, à maneira de quase recitativo, com função muitas vezes harmónica para passar de grau ou, até, de modo. Não hesitamos em salientar que as sonatas de Élisabeth representam uma contribuição fundamental para a evolução da sonata francesa. A publicação saída dos prelos em 1707 e avidamente disputa inclui, mais uma vez, uma dedicatória ao venerado Luís XIV, mostrando a gratidão e a devoção da autora pelo monarca que a ajudou nos anos de juventude. A profunda expressividade que impregna a sua música, o amor aos pormenores, o domínio do métier, a variedade de estados de alma e de formas, bem como o contraste entre a intimidade e a elegância mais francesas e o temperamento arrebatado, tão caracteristicamente italiano, que as suas obras revelam, convertem-na numa compositora que representa à perfeição o sentido mais universal do espírito barroco. Ao falecer, em Paris, a 27 de Junho de 1729, Élisabeth Jacquet de la Guerre deixou, como legado, uma obra fantástica que lhe garante, por direito próprio, o seu lugar no parnaso dos criadores do Barroco, um lugar de absoluto mérito entre os compositores mais

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célebres e não apenas devido ao mero – embora interessantíssimo – facto de ser uma mulher compositora num meio dominado pelos homens. Antonio Vivaldi: Redescobrir o Ciclo das “Sonatas de Graz” Se as sonatas de Antonio Vivaldi são pouco conhecidas, isto deve-se ao facto de os seus concertos serem tão célebres que “invadiram a metade do Universo” de então, como afirma um panegírico. No entanto, com mais de 60 sonatas para violino, o mestre veneziano demonstrou um interesse inequívoco por este formato e, imprimindo-lhe o virtuosismo concertante e outras tradições violinísticas populares, chegou a construir um terreno de jogo próprio para ele. Poder-se-á dizer que estamos a assistir, durante os últimos anos, a um Vivaldi Revival que permite redescobrir a sua maravilhosa obra vocal; mas a sua produção instrumental, embora tenha sido objecto de uma gravação quase exaustiva, ainda nos pode reservar uns quantos segredos, como prova esta revelação. As cinco Sonatas de Graz, inéditas até hoje, foram compostas entre 1718 e 1720 na corte de Mântua, tal como as célebres As Quatro Estações. Reflectem muito bem a característica fantasia vivaldiana, tanto a nível instrumental como expressivo. Nestas peças – de que alguns movimentos foram utilizados em outras obras de Vivaldi, por exemplo as Sonatas de Manchester – pode ouvir-se a variedade de registos e afectos que, dentro de uma linguagem e estilo próprios e inconfundíveis, dominava o Prete

Rosso (“Padre Ruivo”), como lhe chamavam os contemporâneos. O seu absoluto conhecimento do instrumento-rei, das suas possibilidades técnicas e expressivas, o virtuosismo dos seus últimos movimentos ou o lirismo dos seus cantabiles (evocando constantemente a serenidade das ondas venezianas) tornam estas obras dignas de ser reescutadas, como um ciclo, após tantos anos de silêncio. A reconstrução do baixo em alguns movimentos, nos quais este se tinha perdido, deve-se ao conhecimento profundo da obra de Vivaldi por parte do musicólogo francês Olivier Fourès e está realizada com tal mestria que se torna difícil distinguir aqueles movimentos dos que são integralmente do autor. Quanto à parte de violino, de uma beleza e de um interesse assombrosos, é a prova mais convincente da necessidade de voltar a ouvir tal partitura; foi isso que me apaixonou, desde o início, e me levou a embarcar nesta iniciativa. Há já algum tempo que, felizmente, os preconceitos relativos à repetitividade de Antonio Vivaldi, bem como à associação do seu nome a três ou quatro peças conhecidas, deixaram de representar um lugar-comum. Deve-se-lhe a exploração de formas musicais e de sonoridades instrumentais peculiares. Talvez que, com este projecto, se possa ver em breve o fundo do cofre, algo pelo qual nos devemos felicitar.

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MUSIca ALcheMIca

Fundado por Lina Tur Bonet, em 2004, na Alemanha, este grupo flexível consagrou-se principalmente a projectos de câmara e gravações. Após a estreia em Villa Musica, Koblenz, actuou no Festival de Postdam com a ópera Alessandro, de Handel, sob a direcção de Alan Curtis. Cabe destacar a sua execução do ciclo completo das Sonatas del Rosario, de Biber, em Viena e em Espanha; a gravação das cantatas e das sonatas em trio, de Giovanni Guadagnini, e das sonatas para violino e clave de Bach e Handel, para a ORF de Viena; e os programas d’ As Quatro Estações, de Vivaldi e Piazzolla, assim como os concertos para violino de Bach, no Festival de Brecize (Eslovénia) e em Espanha. Entre os músicos que têm colaborado com MUSIca ALcheMIca, sobressaem Keneth Weiss, Hiro Kurosaki e Simone Karmes. A realização de cursos em que a música se associa a outras disciplinas criativas e corporais representa a parte pedagógica de uma ideia que pretende juntar o melhor das artes num objectivo comum. Procurando ser fiel ao lema de Paracelso – “Quem nada conhece nada ama” –, MUSIca ALcheMIca reporta-se à inspiração alquímica de que a soma dos elementos e disciplinas, a omnisciência, a sua interacção, a procura e a curiosidade transformam e conseguem uma sublimação final através da música.

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Lina Tur Bonet Violino

Intérprete versátil, é uma das violinistas mais solicitadas da sua geração. Tem um reportório extensíssimo, que abrange mais de 400 anos de música. Sente especial predilecção pela música de câmara, por J. S. Bach, pelo resgate de músicas esquecidas de compositores célebres, pelo repertório escrito para violino solo sem acompanhamento, pela direcção de orquestras de câmara e por projectos multidisciplinares. Executou todas as Mysterien Sonaten, de Biber. numa só jornada em Viena, interpretou o Quatuor pour la Fin des Temps, de Messiaen, na Fundació Antoni Tàpies, de Barcelona, foi concertino da Matthäus-Passion, de Bach, no Konsertgebouw, de Amesterdão, com o Concerto Köln, e interpretou, como solista, os concertos de Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven, Mendelsohn e Piazolla, com inúmeras orquestras, dentro e fora de Espanha. Como solista, actuou na Musikverein, Viena; Palau de la Música, Barcelona; Auditorio Nacional, Madrid; Residenzwoche, Munique; Teatro Solis, Montevideu; Coliseo, Buenos Aires; Teatro Municipal, Rio de Janeiro; Teatro de Santiago do Chile; Festival de Música e Danza de Granada; Lufthansa Festival, Londres; Styriarte, etc. A incansável curiosidade e a pesquisa das diferentes formas de expressão artística levaram-na a colaborar também com o Kabinettheater de Viena, descontextualizando a música para uni-la ao teatro, às marionetas e à fabulação. Colabora com o poeta Antonio Colinas em recitais de música e poesia e desenvolve alguns trabalhos nas áreas de vídeo e de representação. Estudou nas universidades de Friburgo e Viena com Chumachenko, Pichler e Kurosaki e aperfeiçoou os conhecimentos sob a orientação de Tibor Varga, Franco Gulli, Shmuel Askenasi, Augustin Dumay, Joseph Silverstein, Maria João Pires, Erich Höbanth e Rainer Kussmaul. Foram-lhe concedidas bolsas e prémios internacionais (Alexander von Humboldt-Stiftung, Bonporti e Juventudes Musicales de España, entre outros). Exerce intensa actividade, mormente na Universidade de Mainz, e é professora catedrática de Violino no Conservatorio Superior de Música de Aragón.

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Kenneth Weiss Cravo

Nasceu em Nova Iorque, cidade onde frequentou a High School of Performing Arts. Após estudar com Lisa Goode Crawford no Oberlin College, prosseguiu a formação com Gustav Leonhardt no Sweelinck Conservatorium, de Amesterdão. De 1990 a 1993, foi assistente de William Christie em Les Arts Florissants. As suas últimas actuações incluem Nuremberga, Montpellier, Barcelona, Dijon, Genebra, Anvers, Cité de la Musique (Paris), Madrid, La Roque d’Anthéron, Santander, Lisboa, San Sebastián, Innsbruck, Santiago de Compostela e os festivais de Le Périgord Noir e La Chaise Dieu. Em 2011, realizou uma

tournée pelo Japão com As Variações Galdberg. Desde 2005, tem actuado regularmente em recitais com o violinista Fabio Biondi, incluindo o Festival de Aix-en-Provence e o Théâtre de la Ville de Paris. Dirigiu The English Concert, Concerto Copenhagen, Orquestra de Salamanca, Orchestre de Rouen, Ensemble Orchestral de Basse-Normandie, Orchestre National des Pays de la Loire e Orchestre des Pays de Savoie. Em 2010, actuou com o violinista Daniel Hope no Alice Tully Hall, numa série de concertos apresentados pela Chamber Music Society do Lincoln Center. Dirigiu Le Nozze di

Figaro numa co-produção do Conservatório de Paris e de La Cité de la Musique, além de L’Incoronazione di Poppea nas Óperas de Bilbau e Oviedo. Em 2001, a Satirino Records lançou a primeira de uma série de gravações para cravo, que incluem as Partitas, de Bach, as Sonatas, de Scarlatti, transcrições das óperas e ballets de Rameau (executadas em instrumentos históricos do Musée de la Musique, de Paris), o Concerto Italiano, a Obertura Fran-

cesa e a Fantasia Cromática e Fuga, de Bach, e os Essercizi per Gravicembalo, de Scarlatti. Recentemente, apareceu A Cleare Day, gravação ao vivo de uma selecção do Fitzwilliam Virginal Book. É professor catedrático no Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse, de Paris, e na Julliard School.

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Concerto

MADRID Círculo de Bellas Artes

Anteprima III 13 Fevereiro 20H00

É TÃO GRANDE O ALENTEJO Cante ao Menino O varejo Quinta-Feira d’Ascensão Pomba branca O meu chapéu Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento

Uma flor que abriu em Maio Estava dormindo acordei Emigrante As nuvens que andam no ar É tão grande o Alentejo Os Ganhões

Nos bancos da minha escola Foste, foste As mulatinhas Ilha dos vidros Mariana Campaniça Moços d´Uma Cana

< Círculo de Bellas Artes, em Madrid.

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MADRID

Círculo de Bellas Artes

LIDIJA ŠIRCELJ

Nasceu em 1880, como associação independente, com o objectivo de permitir que pintores e outros artistas expusessem as suas obras. Em 1919, promoveu um concurso de anteprojectos para o edifício da sua sede, no terreno que tinha sido ocupado pelos jardins do palacete do marquês de Casa Riera. O concurso ficou deserto, mas com três projectos finalistas, da responsabilidade de eminentes arquitectos: o de Secundino de Zuazo e Eugenio Fernández Quintanilla; o de Baltasar Hernández Briz e Ramiro Saiz Martínez; e o de Gustavo Fernández Balbuena. Antonio Palacios, um dos outros concorrentes, recorreu da decisão que havia afastado o seu anteprojecto, por superar a altura máxima permitida. Devido a isto, fez-se uma votação entre os sócios, que escolheram a proposta de Palacios. O edifício foi inaugurado pelo rei Afonso XIII, em 1926, com uma exposição do pintor Zuloaga. Iniciou-se nesta época uma etapa mais consolidada da existência do Círculo, aberto tanto aos artistas como a um público mais alargado, sendo requisito indispensável pertencer à associação. Desde os primórdios, o Círculo de Bellas Artes teve uma importante dimensão social e lúdica. Embora o seu desígnio fundamental fosse a irradiação das artes, os sócios também organizavam múltiplas actividades de lazer. O eco das tertúlias, dos jogos, dos concertos ou das festas contribuiu para que a entidade ocupasse um lugar proeminente no imaginário comum madrileno, convertendo-se num dos pontos mais emblemáticos da vida cultural da capital. Em consonância com isto, o projecto original do edifício previa diversos espaços e serviços também consagrados aos tempos livres: piscina, bilhares, barbearia, salão de estudo, sala de música, sala de esgrima… O elevado custo deste monumental palácio superou as previsões e obrigou a contrair uma hipoteca que assolou a história financeira da instituição ao longo de todo o século, contribuindo para agudizar as contradições já existentes entre a vida artística e a assimilação a um clube social. Em 1936, devido à eclosão da Guerra Civil, o Círculo viu-se forçado a suspender praticamente todas as actividades. A partir de 1939, uma vez reabertas as portas aos

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sócios, logrou subsistir à sombra da ditadura, sob uma vigilância muito directa do poder, o que o privaria de grande parte da capacidade de iniciativa cultural. Viveu, então, tensões, mas nunca se afastou da sua tradição liberal, aberta, laica e civil. No período entre 1960 e 1979, durante a presidência do jornalista e dramaturgo Joaquín Calvo Sotelo, a dimensão social deixou em segundo plano qualquer actividade artística. Um pacto com o Governo permitiu que este transigisse com os jogos de azar, proibidos na época, a troco de um controlo sobre a direcção. O jogo proporcionou rendimentos extraordinários que amortizaram a dívida histórica, mas converteu o Círculo numa espécie de casino clandestino, embora tolerado, à margem das correntes intelectuais e das vanguardas plásticas que começavam a surgir em Espanha. Nos finais dos anos 70, era uma entidade dedicada à prática recreativa e quase totalmente alheada do âmbito artístico e cultural. Por este motivo, ao legalizar-se o jogo, passaria por momentos delicados. Em 1980, com uma direcção presidida pelo escultor Martín Chirino, converteu-se numa instituição privada de utilidade pública, administrada no âmbito de um consórcio. Actualmente, é um espaço vanguardista e uma referência da vida cultural, cujo afã primordial consiste na difusão cultural e artística através de iniciativas muito diversas, fiéis à herança dos seus fundadores, mas com sinais de identidade adaptados aos novos tempos. O repertório de actividades que desenvolve, amplo e heterogéneo, reflecte o sentido de cosmopolitismo característico do seu espírito mais do que secular.

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Dois Resgates: O Cante Alentejano e a Viola Campaniça

DIOGO FERNANDES

O Cante Alentejano é um canto colectivo, sem recurso a instrumentos musicais, considerado como originário da sub-região histórica do Baixo Alentejo, que coincide, aproximadamente, com o território da Diocese de Beja e a sua franja setentrional, já no âmbito da Arquidiocese de Évora. Esta designação afigura-se, hoje, tanto émica como ética. No passado designava-se como Canto às ou a Vozes, expressão agora quase perdida, ou apenas como Cante, forma dialectal para canto. Pode dizer-se que representa um fenómeno ético que, depois, foi assumido emicamente. A sua origem está por estudar, mas os repertórios – e as formas de os interpretar – sugerem uma pluralidade de fontes: cânticos litúrgicos, teatro religioso, cantos lúdicos, cantos de trabalho, etc. Sói admitir-se a data de 1907 como aquela que deu origem ao movimento orfeónico no Alentejo, o qual terá estado, de um maneira mais directa, na origem desta peculiaríssima modalidade de música vocal de tipo responsorial, exercida fundamentalmente por assalariados rurais, mineiros e operários, e documentada a partir do último quartel do século XIX. Enquanto prática musical formal, o Cante está associado aos grupos corais alentejanos, cuja cronologia mais antiga remonta à década de 1910, embora haja referência, segundo ficou dito, a um orfeão popular em 1907. Parece ter-se estruturado, nos seus primórdios, enquanto movimento organizado, a partir de uma oposição ao Fado. Como lembrou Jorge Mangorrinha, o Cante enriqueceu-se no “confronto” entre o Alto e o Baixo Alentejo, entre as terras de interior e as beijadas pelo mar, entre as gentes que ficaram e as que partiram em diáspora, mas que ainda cantam, porque é pertença comum. Trata-se de um canto colectivo e polifónico, repetitivo e pausado, em que alternam um ponto a sós e um coro, havendo um alto preenchendo as pausas e rematando as estrofes; começa invariavelmente com o ponto, que dá a deixa e cede o lugar ao alto, seguindo-se o coro, em que participam também o ponto e o alto. A sua evolução histórica atesta uma estabilidade das características melódicas e do sotaque, mas os temas foram-se ampliando: natureza, amor, maternidade, religião, trabalho, política, contemplação e nostalgia.

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Um extenso trabalho de valorização do Cante Alentejano – actualmente, estão identificados mais de centena e meia de grupos a cantar em Portugal, embora se cante onde quer que haja alentejanos (e amigos do Alentejo) espalhados pelo mundo – permitiu que, a 27 de Novembro de 2014, a UNESCO o inscrevesse na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Quanto à Viola Campaniça, até ao final da década de 1950 era a rainha dos bailes da região do Campo Branco e das serranias do sul do Baixo Alentejo. Na memória das gentes mais velhas, perduram noites de dança e cantorias animadas por brilhantes tocadores. Mas o seu habitat não se limitava ao espaço do baile: havia inúmeras tabernas onde marcava presença e acompanhava o Cante, com destaque para os cantares ao desafio, o Cante ao Despique, e, mais tarde, o Cante ao Baldão, marcando a toada dos improvisos horas a fio. Também em feiras e romarias constituía presença obrigatória. A Feira de Castro Verde terá sido uma das catedrais desses encontros de cantadores e tocadores. Nomes como o de Zefinha, de Portel, ou o de Castro, de Cuba, estão intimamente ligados a tais momentos. Com o passar dos anos, este instrumento de eleição da tradição musical regional foi perdendo importância. Pelo início da década de 1980, o seu uso era dado praticamente como extinto pelos especialistas, restando poucos exemplares. As últimas gravações de tocadores tinham sido efectuadas por Ernesto Veiga de Oliveira e Michel Giacometti, durante as décadas de 1960-1970. Os homens da planície e da serra souberam, no entanto, guardar o toque e os cantares ao desafio, que preservaram, continuando a praticar esta manifestação ancestral em encontros perfumados de medronho, longe do olhar e do ouvido de entendidos em matéria de musicologia. O trabalho de investigação e recolha de José Alberto Sardinha, coligido em Viola

Campaniça: O Outro Alentejo, de 1986, retirou do esquecimento os derradeiros tocadores, contribuindo para o renascer do interesse pelo instrumento e afirmando que ainda havia quem dominasse esta tradição musical. No entanto, após tão notável labor, as violas pareciam voltar a ganhar pó em cima dos armários. Decisiva foi a entrada em cena da Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura, de Castro Verde, que trouxe de volta os cantadores e tocadores de Aldeia Nova, uma povoação que ficou submersa pela criação da Barragem da Rocha, os quais, na altura, residiam na Funcheira (Manuel Bento e Perpétua Maria) e na Estação de Ourique (Francisco António). O surgimento deste trio e a riqueza, a beleza e a autenticidade das suas interpretações causaram grande surpresa. Uma pérola resgatada ao esquecimento que iria marcar para sempre a sonoridade da Viola Campaniça.

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[AD LITTERAM]

No cabelo um laço branco Com um raminho na mão

Cante ao Menino

Saem as moças p’rò campo

O Menino está na neve

Quinta-Feira d’Ascensão

A neve o faz tremer Menino Deus da minh’alma

Pomba branca

Quem te pudesse valer

Oh que linda pomba branca Que estás naquele pombal

Entrai pastorinhos entrai

Quem me dera ser o pombo

Por esse portal sagrado

Para lhe poder falar

Vinde ver o Deus Menino Entre as palhinhas deitado

Para lhe poder falar Falar-lhe muito a preceito

Namorou-se o Deus Menino

Oh que linda pomba branca

Duma cigana em Belém

Tão delicada como a flor no peito

Olha a dita da cigana O lindo amor que tem

O meu chapéu Se passares à minha aldeia

O varejo

Não vás de cabeça ao léu

Oliveiras, oliveiras

Quando o sol mais almareia

Ao longe parecem rendas

Podes pôr o meu chapéu

Enlevem-se nas pessoas Não se enlevem nas fazendas

Quando nos faltar a voz Há-de haver uma mão-cheia

Azeitona miudinha

A cantar por todos nós

Também vai para o lagar

Tenho cá na minha ideia

Também eu sou pequenino Mas sou firme no amar

Podes pôr o meu chapéu A mais valiosa herança

Entrudo

Já foi de quem está no céu

Não sei se é por ser

E não me sai da lembrança

Voltas do Entrudo Acho o meu amor

Tenho cá na minha ideia

Demudado em tudo

Que o cante se ouve no céu Se passares à minha aldeia

Demudado em tudo

Não vás de cabeça ao léu

Demudado em nada Não sei se é por serem

Uma flor que abriu em Maio

Voltas de entrudada

Das flores que há no campo Qual é a mais estimada?

Quinta-Feira d’Ascensão

É a flor do rosmaninho

Quinta-Feira d’Ascensão

Que entra em casa sagrada

Saem as moças p’rò campo De vestidos cor-de-rosa

Uma flor que abriu em Maio

No cabelo um laço branco

Se bem abriu, bem fechou

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Um amor que eu tanto amava

Vou p’rà França trabalhar

Gabou-se que me deixou

Para um país distante Não vale a penha chorar

Gabou-se que me deixou

Sou português emigrante

Abram-se as portas que eu saio Se bem abriu, bem fechou

Toma lá meu coração

Uma flor que abriu em Maio

Se o quiseres matar, podes Olha que estás dentro dele

Ó Castro, não sei se ouves

Se o matares, também morres

Os teus filhos a cantar Enquanto os teus filhos cantam

As nuvens que andam no ar

Ó Castro, põe-te a chorar

Já chove, já está chovendo Já correm os barranquinhos

Estava dormindo, acordei

Já o campo está alegre

No quarto onde eu me deito

Já cantam os passarinhos

Tudo são penas voando As penas trago eu comigo

As nuvens que andam no ar

Só as disfarço cantando

Arrastadas pelo vento Vão buscar a água ao mar

Estava dormindo, acordei

P’ra regar em qualquer tempo

Ao cantar de uma andorinha Poisada no meu beiral

P’ra regar em qualquer tempo

Dava pena, coitadinha

Em qualquer tempo regar Arrastadas pelo vento

Por ela estar lá sozinha

As nuvens que andam no ar

Ouvi-a e não me zanguei Ao cantar de uma andorinha

Ó água que vais correndo

Estava dormindo, acordei

Mansamente vagarosa Passa lá ao meu jardim

Despedida, despedida

Rega-me lá uma rosa

Como fez um passarinho Bateu as asas, voou

É tão grande o Alentejo

Sem deixar penas no ninho

No Alentejo eu trabalho Cultivando a dura terra

Emigrante

Vou fumando o meu cigarro

Sou pobre, não tenho nada

Vou cumprindo o meu horário

Só tenho meu coração

Lançando a semente à terra

A minha riqueza é A boa comportação

É tão grande o Alentejo Tanta terra abandonada

Adeus, ó meu lindo amor

A terra é que dá o pão

Não vale a pena chorar

Para bem desta nação

Sou português emigrante

Devia ser cultivada

Vou p’rà França trabalhar

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Tem sido sempre esquecido

Viram-te a saia bordada

À margem ao sul do Tejo

Mas que bordado tão lindo

Há gente desempregada

Foste, foste, qu’eu bem sei que foste

Tanta terra abandonada

À tourada no domingo

É tão grande o Alentejo As mulatinhas Trabalha homem, trabalha

Peguei no capote e fui atrás delas

Mostra bem o teu valor

Fazendo meiguices, chamando por elas

Os calos são os anéis

Ora venha cá, que eu não vou lá

Os calos são os anéis

Já fui à Baía, meu bem, ao Pará

Do homem trabalhador E desde esse dia nunca mais deixei Nos bancos da minha escola

De cantar a moda de que tanto gostei

Eu não pensei andar tanto

As moças bonitas de cabelo ao vento

Com a viola na mão

Trago todas elas no meu pensamento

Dou graças a Manuel Bento E ao tio Francisco Bailão

Estando eu à porta sentado Gozando do fresco, sem ser namorado

Nos bancos da minha escola

Passam certas mulatinhas

Eu aprendi a tocar

Cabelo à janota, todas catitinhas

A viola campaniça Que me há-de acompanhar

Senhor, que me diz? Senhor, que me quer? Serei seu benzinho, se você quiser

Oiço o toque, vivo o cante

Ora venha cá, que eu não vou lá

Esta paixão que eu senti

Já fui à Baía, meu bem, ao Pará

Nos bancos da minha escola A tocar eu aprendi

Ilha dos vidros O Sol é que alegra o dia

Foste, foste

Pela manhã quando nasce

Passaste à minha rua

Ai de nós o que seria

Já lá ias p’rà tourada

Se o Sol um dia faltasse

Levavas a saia verde E a camisa encarnada

Se eu soubesse cantar bem Nunca estaria calado

Eu passei à tua rua

Mesmo assim, cantando mal,

Estavas à porta sentada

Não vivo desmaginado

Anda daí, vem comigo Vamos lá ver a tourada

Venho da ilha dos vidros Da praia dos diamantes

Foste, foste, qu’eu bem sei que foste

Ando no mundo perdido

No domingo à tourada

Pelos teus olhos brilhantes

Ao subires o camarote Viram-te a saia bordada

Pelos teus olhos brilhantes Pelo teu rosto de prata

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Ter amores não me custa Deixá-los é que me mata Mariana Campaniça É tão longe do Céu a Terra Como é da morte a vida Do meu coração ao teu É uma estrada seguida A Mariana Campaniça Que lindos olhos que tem Do monte da Légua às Pias À missa não vai ninguém À missa não vai ninguém À missa já ninguém vai A Mariana Campaniça Coitadinha, não tem pai Coitadinha, não tem pai Coitadinha, mãe não tem A Mariana Campaniça Amor do meu lindo bem

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Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento

Um dia, alguns elementos juntaram-se ocasionalmente numa taberna a beber uns copos. Cantaram, como era tradição, gostaram de ouvir-se, vibraram de entusiasmo e, sob a euforia, um deles terá sugerido que deviam formar um rancho. A ideia instalou-se nos espíritos, fervilhou, avolumou-se, galvanizou-os, a ponto de convidarem alguns amigos. Fizeram-se a primeira reunião e o primeiro ensaio em Abril de 1986; cantou-se logo bem e todos concordaram que deviam organizar-se. Estava constituído o agrupamento que, logo nessa reunião, decidiu fazer uma recolha das modas antigas cantadas, principalmente, em Aldeia (depois de 1988, Vila) Nova de São Bento. Alvo, também ele, de grande atenção, o traje do Rancho é o domingueiro ou de casamento, usado nas primeiras décadas do século XX: calça, colete, jaqueta, cinta preta, camisa branca arrendada, lenço de seda com nó direito, bota caneleira e chapéu de copa alta e afunilada. Como adereço, um relógio com corrente de ouro ou de prata, pendente do bolso do colete. O agrupamento é constituído actualmente por 30 elementos, todos amadores, com as mais diversas profissões. Tem obtido, desde a sua fundação, brilhantes classificações nos concursos de cantares alentejanos realizados em Beja: 1.º Prémio de Cante (1986); 3.º Prémio de Cante e 3.º Prémio de Trajes Regionais (1987); 1.º Prémio de Cante e 2.º Prémio de Trajes Regionais (1989).

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Os Ganhões

Formado em 1972, este agrupamento tem levado o Cante a todo o país e a alguns festivais internacionais. Conferindo particular importância ao aspecto etnográfico e à recolha do cancioneiro popular, integra no seu reportório algumas das mais genuínas modas do Baixo Alentejo, numa polifonia rica em tradição mediterrânica. Gravou os LP Castro Verde és Nossa Terra (1975) e Ganhões de Castro Verde (1980). Neste ano, ganhou o 1.º Prémio do concurso de coros alentejanos realizado em Lisboa, na Casa do Alentejo. Registou igualmente em CD Modas Alentejanas (1994), É tão Grande o Alentejo (1997), O Círculo

que Leva a Lua (2003), Terra (2006) e As Nuvens que Andam no Ar (2015). Para além dos habituais encontros de corais e oficinas de Cante, colabora em projectos ligados a outras áreas artísticas e musicais, como a dança contemporânea, o Jazz e a World Music, experiências e fusões que contribuem para afirmar o Cante junto de públicos diferenciados. São disto exemplo as participações no Festival Internacional de Música Folk de Vancouver (Canadá), no Festival Internacional de Música de Krems (Áustria), no álbum Primeiro Canto, de Dulce Pontes, no projecto Olhares, da Companhia de Dança de Almada, e na homenagem a José Saramago (Festival Sete Sóis Sete Luas).

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Moços d´Uma Cana

É o resultado de um projecto do Agrupamento de Escolas de Castro Verde, em parceria com o Município, a Junta de Freguesia e a Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura. O projecto incide no ensino, em âmbito escolar, da arte de construir e de tocar a viola campaniça. Concluído o percurso escolar, os alunos envolvidos decidiram formar uma associação em prol da salvaguarda deste instrumento tradicional, bem como do Cante alentejano, que muito a utiliza como acompanhamento, realizando workshops oficinais e espectáculos em torno da tradição.

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MADRID . CÍRCULO DE BELLAS ARTES


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Concerto de Abertura

ALMODÔVAR

27 Fevereiro 21H30

COMO AS ÁRVORES NA PRIMAVERA: AVISON, AVONDANO, GARCÍA FAJER Charles Avison [1709-1770] Concerto n.3 in D major after Domenico Scarlatti Largo Andante Allegro Spiritoso Vivace Allegro

Pedro Antonio Avondano [1714-1782] Arie dall’Oratorio Morte d’Abel Aria di Caino: Alimento il mio proprio tormento Arie dall’Oratorio Gioas Re di Giuda Aria de Gioas: Ah, se ho da vivere Francisco Javier García Fajer [1730-1809] Siete Palabras de Cristo en la Cruz, para 2 sopranos, cordas e contínuo

Divino Sospiro Soprano Bárbara Barradas Soprano Joana Seara Direcção Musical Massimo Mazzeo

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ALMODÔVAR

Igreja Matriz de Santo Ildefonso

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo e, depois, bispo da mesma cidade, que faleceu em 667) como orago da paróquia de Almodôvar constitui um interessante reflexo da presença, no Baixo Alentejo, da espiritualidade monástico-militar, difundida pelos freires da Ordem de Avis, que seguia a regra de São Bento. Porém, a primitiva igreja matriz da vila, pertencente em tempos ao padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Em 1320-1321, quando o papa João XXII concedeu ao monarca, excepcionalmente, as “décimas” das igrejas portuguesas, para auxiliar a guerra contra os mouros, foi taxada, “pela parte que toca ao Mestre dela” (Ordem de Santiago), em 500 libras, a que acresciam 90 libras, correspondentes à vigairaria da mesma igreja. A milícia santiaguista teve aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três beneficiados. Embora seguindo outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários valorizaram a devoção ao santo toledano. O edifício actual, traçado em 1592 pelo arquitecto Nicolau de Frias, é um exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (Hallenkirche ), com três naves de quatro tramos cobertas por abóbadas, evidenciando grande sentido de unidade espacial e notável acústica. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo compositivo dos alçados e o destaque outorgado ao tratamento dos pormenores, tal como as seis colunas toscanas em que descansam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do depurado sentido classicizante atingido, em finais do século XVI, por este modelo, fiel à austeridade preconizada pela Contra-Reforma. D. João V, na qualidade de grão-mestre da Ordem de Santiago, mandou proceder à remodelação parcial do monumento, intervenção descrita pelo P.e Luís Cardoso no

Diccionario Geografico (1747): “porque a capela-mor se achava arruinada, e por sua pequenhez fica imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo desta comarca,

O Baptismo de Cristo no Rio Jordão [pormenor]. Severo Portela. 1954-1955. Almodôvar, igreja matriz de Santo Ildefonso. >

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foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência, e Ordens, se derrubasse, e fizesse regular ao restante da igreja, e se acrescentasse tribuna, que de presente se anda fazendo”. Estas obras vieram a ser rematadas, ca. 1769, com a encomenda, à oficina do mestre entalhador eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das diversas confrarias e irmandades existentes na matriz. Nos séculos XIX e XX, realizaram-se outras intervenções de vulto que modificaram substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de 1950. Data de então a campanha de pintura mural do baptistério renovado, da autoria de Severo Portela [S Coimbra, 1898 – X Lisboa, 1985], em que sobressai a figuração d’O Baptismo de Cristo no Rio Jordão (1954-1955). Formado em Escultura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, este artista destacou-se como um dos mais notáveis pintores do período do Estado Novo. Devido à ligação a Almodôvar por laços de casamento, fez do Baixo Alentejo um epicentro da sua fecunda obra, bem representativa da época em que triunfou. A paróquia de Santo Ildefonso conserva um importante acervo de alfaias litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição da mesma vila, fundado em 1680 pela Ordem Terceira Regular de São Francisco.

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

LUÍS CARDOSO, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de Todas as Cidades, Villas, Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com Todas as Cousas Raras, que Nelles se Encontraõ, assim Antigas, como Modernas, I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Depar tamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; JOSÉ MARIA AFONSO COELHO, Foral de Almodôvar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de Almodôvar, 2004; VÍTOR SERRÃO, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620), Lisboa, Editorial Presença, 2002; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.

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Entre o Oficio das Sete Palavras e a Oratória: Um Caminho de Espiritualidade

MASSIMO MAZZEO, ISKRENA YORDANOVA & JOSÉ VICENTE GONZÁLEZ VALLE

Charles Avison: Ressonâncias da Sonata Scarlattiana O Concerto n.º 3, em Ré menor, de Charles Avison [S Newcastle upon Tyne, 1709 – X id., 1770], inspirado pelas sonatas de Domenico Scarlatti [S Nápoles, 1685 – X Madrid, 1757], é um dos vários testemunhos da enorme popularidade que as obras deste compositor italiano, activo na Península Ibérica – e objecto de verdadeiro culto em vários países de Europa –, tiveram em Inglaterra, através de promotores como o próprio Avison ou Thomas Roseingrave [S Winchester, 1690 – X Dun Laoghaire (Irlanda), 1766]. Em 1738, veio à luz do dia, na capital britânica, a famosa colecção de Essercizi per Gravicembalo, dedicada ao rei português D. João V: “Alla Sacra Reale Maestà di Giovanni V. Il Giusto Re di Portogallo, d’Algarve, del Brasile […] l’umilissimo servo Domenico Scarlatti”. Compositor, organista e musicógrafo, Avison foi o mais prolífico autor inglês de concertos do século XVIII. Numa conjuntura em que os concertos de Corelli, Geminiani ou Handel fizeram furor, escreveu mais de 60 obras do género, obtendo grandes êxitos editoriais, por vezes com tiragens de cerca de 500 exemplares. Em 1744, publicou Doze Concertos concebidos a partir de sonatas de Scarlatti; não se limitou a fazer uma orquestração das sonatas, recorrendo antes a elas como matéria-prima de Concerti Grossi, na linha de Geminiani (de quem fora aluno) e operando as transformações necessárias em função do tecido concertante ou do novo veículo instrumental. No Concerto n.º 3, usou material das Sonatas K. 89b, 37, 38 e 1, respectivamente no 1.º, 2.º, 3.º e 4.º andamentos. Na realização das suas transcrições, o músico inglês teve em conta não só o interesse despertado pelo trabalho de Scarlatti, mas também a enorme popularidade do paradigma de “concerto grosso”, que na Inglaterra havia alcançado uma enorme popularidade após a divulgação do Concerto Op. 6, de Arcangelo Corelli, publicado em Londres pelo editor J. Walsh, em 1715. Os concertos de Corelli tornaram-se, assim, um material de grande fascínio que muitos compositores, incluindo Avison, tentaram imitar ao longo dos cinco anos seguintes.

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Pouco escutado durante a época contemporânea entre nós, o concerto que vamos ouvir integra um volume manuscrito dos Doze Concertos, conservado na Biblioteca Marciana de Veneza, que foi propriedade de D. Maria Bárbara de Bragança [S Lisboa, 1711 – X Aranjuez, 1758], infanta de Portugal e rainha consorte de Espanha (casou, em 1729, com o futuro rei Filipe IV), até à sua morte. A esta infanta, apaixonada pela música, notável compositora e intérprete, dedicou Domenico Scarlatti a maioria das sonatas, das quais foram tirados os excertos que estão na base do Concerto n.º 3 de Charles Avison. MASSIMO MAZZEO Pedro António Avondano: No Auge da Dramaturgia Metastasiana A figura de Pedro António Avondano [S Lisboa, 1714 – X Lisboa, 1782] situa-se num dos períodos mais importantes da produção musical em Portugal. Como compositor, foi um dos primeiros portugueses a ganhar reputação entre os músicos da corte de D. José I. Por inícios de 1760, destacava-se já como uma das figuras mais influentes da vida musical da capital, tendo, a seguir ao terramoto de 1755, desempenhado um papel importantíssimo na reorganização da Irmandade de Santa Cecília, associação a que todos os músicos profissionais da época eram obrigados a pertencer por lei. Eleito secretário desta instituição aquando da sessão inaugural, que teve lugar em sua casa, a 27 de Junho de 1765, organizou, também no seu domicílio, um clube de elite, denominado Assembleia das Nações Estrangeiras, onde as várias comunidades estrangeiras se encontravam; aqui tiveram lugar os primeiros concertos públicos de que há memória em Lisboa, nos meados da década de 1760. Avondano escreveu óperas, oratórias e música instrumental. Uma parte significativa da sua actividade, que foi pouco estudada, está relacionada com a popularidade internacional de que gozou, ainda em vida. Conhecem-se pelo menos cinco oratórias da sua autoria, de que sobreviveram três, todas com textos de um dos maiores poetas do século XVIII, Pietro Metastasio [S Roma, 1698 – X Viena, 1782]: La Morte d’Abel, Gioas, Re di

Giuda e Isacco. As únicas partituras conhecidas destas composições guardam-se em bibliotecas de Alemanha, as duas primeiras em Berlim (Staatsbibliothek, Preußischer Kulturbesitz) e a terceira em Schwerin (Landesbibliothek Mecklenburg-Vorpommern) e Rostock (Universitätsbibliothek). No âmbito da minha investigação sobre a vida do compositor e da edição crítica das partituras das suas oratórias, pude reconstruir as etapas do percurso que estas obras fizeram até solo germânico. Os veículos da divulgação da música de Avondano, no caso em apreço, foram dois ilustres cidadãos de Hamburgo: os irmãos Johannes e Jacob

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Schuback. Graças ao apoio destes notáveis, tais peças chegaram a essa cidade do Norte, sendo aí executadas várias vezes, com grande sucesso, durante a década de 1760. Nos finais do século, o acervo musical dos Schuback foi adquirido por Georg Daniel Poelchau [S Kremon, perto de Riga, 1773 – X Berlim, 1836], um dos maiores coleccionadores de música manuscrita em Alemanha, cujo espólio doou, em 1832, à Biblioteca Real da Prússia. As oratórias Morte d’Abel e Goias Re di Giuda tomam por base, como vimos, os textos dos homónimos drammi sacri de Metastasio, utilizados ao longo de todo o século XVIII por vários compositores: Reutter, Caldara, Leo e Piccinni, entre outros. Avondano seguiu o modelo italiano com recitativos secco e arias da capo e coros para os finais da cada parte, recorrendo a um estilo compositivo que evidencia uma linguagem musical “moderna”, aproximando-se do estilo galante. Infelizmente, os manuscritos não possuem uma data concreta, mas, possivelmente, as obras terão sido compostas nos anos 60 (antes de 1763, o primeiro ano de execução em Hamburgo). Destinar-se-iam, provavelmente, a serem representadas na corte portuguesa (Real Teatro da Ajuda); no entanto, talvez tenham sido executadas igualmente, em ocasiões mais informais, na sede da Assembleia das Nações Estrangeiras. ISKRENA YORDANOVA Francisco Javier García Fajer: Devoções Peninsulares da Semana Santa Ao compor musicalmente as Siete Palabras de Cristo en la Cruz, Francisco Javier García Fajer [S Logroño, 1730 – X Saragoça, 1809]1 situa-se numa antiga tradição espanhola e europeia que, segundo as fontes documentais, remonta aos princípios do século XVI, continuando vigente até hoje. Ainda a conhecemos directamente, nós que vivemos na época anterior à reforma litúrgica da Semana Santa levada a cabo pelo Concílio Vaticano II. Devido a esta reforma, em meados dos anos cinquenta do século XX, a celebração da acção litúrgica de Sexta-Feira Santa foi transferida da manhã para a primeira hora da tarde. Isto teve como consequência o desaparecimento do popular Sermão das Sete

Palavras (como então se chamava), que tinha lugar precisamente a essa hora, entre as duas e as quatro da tarde, e com ele a interpretação musical das Sete Palavras. No entanto, hoje em dia, há confrarias da Semana Santa que procuram recuperar e fomentar esta antiquíssima tradição. É de salientar que a composição de García Fajer não tem uma finalidade litúrgica, mas devocional. Destinava-se a ser interpretada dentro do Sermão das Sete Palavras e, já

1 Infantico da catedral de La Seo de Saragoça, chegou a ser, mais tarde, maestro de capilla da mesma instituição, de 1754 a 1808. Veio para Saragoça oriundo da catedral de Terni, em Itália, após ter estudado em Nápoles.

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então, provavelmente patrocinada por uma confraria ou irmandade de Saragoça, como o prova a inscrição na capa de uma das cópias que servem de base a esta edição da partitura: “Ahora pertenece à la Hermandad de la Oración mental de la ultima hora del dia, fundada en la Jglesia Parroquial de S. Andres Apostol *Zaragoza 29. Abril de 1851* [com rubrica]”. Neste sentido, insere-se num contexto semelhante ao das Sieven letzten Worte unseres

Enlösers am Kreuze, de Joseph Haydn, compostas por encomenda da Hermandad de Nuestra Señora de la Cueva de Cádiz, em cuja ermida foram interpretadas, pela primeira vez, na Sexta-Feira Santa de 1787. A versão de Haydn é puramente orquestral, ainda que registe, no início de cada uma das sete partes, uma das Sete Palavras de Cristo na Cruz, segundo o texto latino da Vulgata. Cada uma das Sete Palavras (partes) tem a denominação de sonata. A esta versão orquestral gaditana, acrescentou Haydn uma outra para quarteto de cordas. Dez anos mais tarde, decidiria acrescentar à primeira versão orquestral um texto em alemão e transformá-la numa Oratória para Coro, Solistas e Orquestra. García Fajer, por sua vez, compôs as suas Siete Palabras para Tiple I/II, Violin I/II, Viola y

Bajo e, em vez do texto latino dos Evangelhos, apresenta umas meditações singelas, em verso e em castelhano, relacionadas com o conteúdo de cada uma das Sete Palavras. Estas são precedidas por uma “introdução” que prepara o ouvinte para a meditação sobre cada sucesso ocorrido. Os textos encontram-se articulados em estrofes duplas de quatro versos octossilábicos com rima assonante (ABBA), à excepção da “introdução”, que consta de quatro, a primeira palavra de nove e a sétima de dez versos, o que também revela o seu carácter devocional, popular e extralitúrgico. É difícil pensar que esta obra foi composta para ser interpretada como um acto capitular, devocional ou paralitúrgico, na catedral de La Seo, onde o autor ocupava o cargo de

maestro de capilla. Apesar da grande devoção que existia na época ao Santo Cristo de La Seo, a solenidade de que se revestiam os ofícios litúrgicos da Semana Santa na catedral não deixava espaço de tempo suficiente para um acto que, além do longo

Sermão (com sete partes), incluía a interpretação musical das Sete Palavras. A manhã estava praticamente ocupada com a celebração solene de Laudes, Horas Menores e, em seguida, com a Acção Litúrgica de Sexta-Feira Santa. Ao meio-dia, celebrava-se o ofício de Nona, na primeira hora o Ofício Solene de Vésperas e, ao entardecer, o Ofício das Trevas, ou seja, as Matinas Solenes. Tendo isto em conta, julgamos provável que Francisco García Fajer as escrevesse por encomenda de uma confraria sediada numa igreja onde não existisse a obrigação de celebrar solenemente os ofícios litúrgicos de Nona e Vésperas. JOSÉ VICENTE GONZÁLEZ VALLE

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[AD LITTERAM] Io del minor germano

Do meu irmão mais novo

Io del minor germano il merito e la mercede

Aguentarei eu estultamente o valor e as

stupido soffrirò?

recompensas do meu irmão mais novo?

La gloria altrui un oltraggio è per me.

A glória alheia é um ultraje para mim.

Mille ragioni medito onde scemarla,

Penso em mil razões para a diminuir,

e mille sempre d’accrescerla ne incontro.

e encontro sempre outras mil para a magnificar.

Il mio rivale malignando ingrandisco.

Engrandeço o meu rival difamando-o.

Ei più sublime mi sembra allor che più lo bramo

Quanto mais o desejo oprimido,

oppresso,

mais sublime ele me parece,

e son del mio dolor fabbro a me stesso.

e fabrico eu próprio a minha dor.

Alimento il mio proprio tormento

Alimento o meu próprio tormento

Alimento il mio proprio tormento

Alimento o meu próprio tormento

ripensando, che Abelle è felice;

ao pensar continuamente que Abel é feliz;

smanio, fremo, trafigger mi sento;

inquieto-me, tremo, sinto-me trespassado;

l’abborisco, nè intendo perchè.

odeio-o e não entendo porquê.

Vo cercando d’odiarlo cagione,

Procuro razões para o odiar,

e cagione d’odiarlo non trovo;

e não encontro razões para o odiar;

ma lo sdegno, ma l’odio rinnovo,

mas renovo o desdém e o ódio,

perchè degno dell’odio non è.

porque ele não é digno de ódio.

Ah, se ho da vivere

Ah, se tenho de viver

Ah, se ho da vivere

Ah, se tenho de viver

mal fido a te,

sem a Tua confiança,

su l’alba estinguimi

mata-me ao nascer do dia,

gran Re dei Re:

grande Rei dos Reis:

prima che offenderti

antes de Te ofender

vorrei morir.

preferiria morrer.

Tu del tuo spirito

Inunda o meu coração

m’inonda il cor;

com o Teu espírito;

tu saggio rendimi

torna-me sábio

col tuo timor;

por temor a Ti;

tu l’alma accendimi

acende-me a alma

d’un santo ardir.

com um santo ardor. Tradução: Massimo Mazzeo e José António Falcão

[Introdução]

[Introdução]

Al calvario almas llegad,

Ao Calvário almas chegai,

que nuestro dulce Jesús,

que o nosso doce Jesus,

desde el ara de la cruz,

do altar da Sua cruz

hoy a todos quiere hablar.

hoje a todos quer falar.

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1ª Palabra

1.ª Palavra

[Pater dimitte illis, quia nesciunt, quid faciunt.

[Perdoa-lhes, pai, pois não sabem o que fazem

(Lc., 23,34)]

(Lc., 23,34)]

Pues que fui vuestro enemigo,

Já que fui vosso inimigo,

mi Jesús, como confieso,

meu Jesus, como admito,

rogad por mi, pues con eso,

rogai por mim, pois, assim,

seguro el perdón consigo,

decerto alcanço o perdão,

seguro el perdón os pido.

decerto perdão Vos peço.

Cuando loco te ofendí,

Quando louco Vos ofendi,

no supe lo que me hacía,

sem disso ter bem noção,

ay Jesús del alma mía,

ai, Jesus do meu coração,

rogad al padre por mí.

rogai ao Vosso Pai por mim.

2ª Palabra

2.ª Palavra

[Hodie mecum eris in Paradiso. (Lc., 23,43)]

[Hoje estarás comigo no Paraíso. (Lc., 23,43)]

Reverente el buen ladrón,

Reverente o bom ladrão,

imploró vuestras piedades,

implorou a Vossa piedade,

yo también de mis maldades

tal como eu pela minha maldade

os pido, Señor, perdón.

Vos rogo, Senhor, perdão.

Si al ladrón arrepentido

Se ao ladrão arrependido

dais lugar allá en el cielo,

lá no Céu dais um lugar,

ya yo también sin recelo

eu, também, sem recear,

la gloria, mi Dueño, os pido.

a glória, Senhor, Vos peço.

3ª Palabra

3.ª Palavra

[Mulier, ecce filius tuus. (Ioa., 19,26]

[Mulher, eis o Teu filho. (Ioa., 19,26]

Jesús en su testamento

Jesus, no Seu testamento,

a la Virgen hoy nos da.

a Virgem hoje nos dá.

Oh María, quién podrá

Ó Maria, quem poderá

explicar tu sentimiento.

explicar o Teu sentimento.

Hijo vuestro quiero ser,

Filho Vosso anseio ser,

sed vos mi madre, Señora,

sede minha mãe, Senhora,

que os prometo desde ahora

que a partir de agora prometo

finamente obedecer.

em tudo obedecer.

4ª Palabra

4.ª Palavra

[Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti

[Meu Deus, Meu Deus, porque Me abandonaste?

me? (Ps., 22,2; Mt., 27,46; Mc., 15,34)]

(Ps., 22,2; Mt., 27,46; Mc., 15,34)]

Desemparado se ve

Desamparado se vê

de su padre el hijo amado.

de seu pai o filho amado.

Ah, maldito mi pecado,

Oh, meu maldito pecado,

que de esto la causa fue.

que disto fui eu culpado.

Quien quisiere consolar

Quem quiser consolar

a Jesús en su tormento,

Jesus no Seu tormento,

diga de veras, Señor,

Diga com sentimento,

me pesa, no mas pecar.

Senhor, não volto a pecar.

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5ª Palabra

5.ª Palavra

[Sitio. (Ioa., 19,30)]

[Tenho sede. (Ioa., 19,30)]

Sed dice Cristo que tiene.

Sede, diz Jesus que sente.

Mas se quieres mitigar

Mas se queres mitigar

la sed que le llega a ahogar,

A sede que O está a angustiar,

darle lágrimas conviene.

dá-Lhe lágrimas de presente.

La hiel que brinda el ministro,

O fel que oferece o ministro

si la gusta no la bebe.

não lhe agrada, nem o bebe.

¿Cómo quieres tu que pruebe

Como queres tu oferecer

La hiel de tu culpa Cristo?

o fel da tua culpa a Cristo?

6ª Palabra

6.ª Palavra

[Consummatum est. (Ioa., 19,30)]

[Tudo está consumado. (Ioa., 19,30)]

Con voz quebrada mi Dios

Meu Deus, com voz quebrada,

habla ya muy desmayado,

fala já meio desmaiado,

y dice que del pecado

e diz que do pecado

la redención consumó.

a redenção foi alcançada.

Ya Jesús se ve expirar,

Já se vê Jesus expirar,

ya Jesús se ve morir.

já se vê Jesus morrer.

¿Quién, pues, no llega a rendir

Quem, pois, não irá perder

la vida con el pesar?

a vida com tal pesar?

7ª Palavra

7.ª Palavra

[In manus tuas, Domine, commendo spiritum

[Nas Tuas mãos, Senhor, entrego o Meu espírito

meum. (Lc., 23,46)]

(Lc., 23,46)]

A su Eterno Padre ya

A Seu Eterno Pai já

su espíritu recomienda.

O Seu espírito encomenda.

Si tu vida no se enmienda,

Se a tua vida não se emenda,

¿en que manos parará?

em que mãos ficará?

En las tuyas, desde ahora,

Nas Tuas, a partir de agora,

mi alma entrego, Jesús mío.

Jesus, a minha alma entrego.

No me mires con desvío

Não me olhes com desprezo

en aquella hora fatal.

naquela hora fatal.

Si tu vida no se enmienda,

Se a tua vida não se emenda,

¿en que manos parará?

Em que mãos ficará? Tradução: Maria das Dores Galante de Carvalho e José António Falcão

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Bárbara Barradas Soprano

Natural de Lisboa, estudou canto na Escola de Música do Conservatório Nacional com José Carlos Xavier. Concluiu a formação, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, na Guildhall School of Music and Drama, de Londres, onde estudou com Susan Waters. Fez parte do Flandres Opera Studio e da Wales International Academy of Voice, dirigidos, respectivamente, por Dennis O’Neill e Dame Kiri Te Kanawa. Participou em masterclasses com Mara Zampiere, Ann Murray, Graham Johnson, Yvonne Minton, Sarah Walker, Dennis O’Neill, Dame Kiri Te Kanawa, Nelly Miricioui, Tom Krause (ENOA), Andrzej Dobber (ENOA), Aldona Farrugia (ENOA) e Claudio Desideri, entre outros. Ganhou vários concursos nacionais e internacionais, mormente o Prémio Bocage (Concurso de Canto Lírico Luísa Todi, 2005); o 2.º Prémio da Guildhall Aria Award Competition (2009); o Prémio do Público no Concurso Lírico da Fundação Rotária Portuguesa (2010); o 3.º Prémio no International Rotary Opera Contest, o Prémio Melhor Interpretação de Canção e o Prémio do Público no Concurso Lírico da FRP (2012); o 1.º Prémio e o Prémio do Público no Concurso Lírico da FRP (2013); o Donizetti Prize (2014); e o 1.º Prémio do Concurso Jovens Clássicos, Forum Luísa Todi (2015). Dos papéis que tem interpretado, salientam-se Barbarina e Susanna (Le Nozze di Figaro), na Fundação Gulbenkian; Dama di Lady Macbeth, no Teatro Nacional de São Carlos (2015); Lucia (Lucia di Lammermoor), De Nederlandse Opera, de Amesterdão; Branca (Tição Negro), Teatro Aberto, de Lisboa; Delia (Il Viaggio a Reims), TNSC (2014); Frasquita (Carmen), Woodhouse Festival; Princesa (O Gato das Botas), TNSC; Donna Anna (Don Giovanni), Zêzere Arts Festival; Gilda (Rigoletto), Óbidos Opera Festival; Gilda (Victor Hugo Project), Flandres Operastudio. Fez recentemente o seu début em Salzburgo, com Lucia, no Oper im Berg Festival, onde foi acarinhada pela crítica e pelo público.

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Joana Seara Soprano

Estudou na Academia de Música de Santa Cecília e no Conservatório Nacional de Lisboa, concluindo a formação na Guildhall School of Music and Drama, de Londres. Foi bolseira da Fundação Gulbenkian e da Wingate Foundation. Tem-se apresentado em concerto nas grandes salas do país, ao lado das mais importantes orquestras nacionais, como a Orquestra Metropolitana (Nicholas Kraemer e Augustin Dumay), a Orquestra Gulbenkian (Simone Young, Lawrence Foster, Jorge Matta e Ton Koopman), a Orquestra do Norte (Jorge Matta) e a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música (Christoph König). Paralelamente ao repertório mainstream, dedica-se à interpretação de repertório barroco português menos conhecido. Salientam-se os concertos com o Divino Sospiro (Massimo Mazzeo e Enrico Onofri), nos festivais de Île-de-France, Ambronay, Mafra e Varna; com os Músicos do Tejo (Marcos Magalhães), no Festival de Nossa Senhora do Monte, Goa, Índia; com o Ludovice Ensemble (Miguel Jalôto), no Teatro Coliseo Carlos III, San Lorenzo del Escorial. Trabalha regularmente nas produções de ópera dos Músicos do Tejo (Marcos Magalhães e Luca Aprea), com quem lançou projectos discográficos: Il Trionfo d’Amore (Naxos); La Spinalba (Naxos); e As Árias de Luísa Todi. Outra discografia inclui 18th-Century Portuguese Love Songs (Hyperion), com L’Avventura London, dirigido por Zak Ozmo. Em ópera, estreou-se com a personagem Zerlina (Don Giovanni ), nos Países Baixos, em 2004. Destacam-se as suas interpretações de Despina (Così

Fan Tutte), também nos Países Baixos, Reino Unido e Irlanda; Galatea (Acis and Galatea) em França; e Margery (The Dragon of Wantley ), com a Akademie für Alte Musik Berlin, no Festival de Potsdam. Cantou Despina e Gretel (Hänsel und Gretel ) para a Opera Holland Park e Damigella (Coronation of

Poppea) para a English National Opera. No Teatro Nacional de São Carlos, foi Susanna (Le Nozze di Figaro), Frasquita (Carmen), Tebaldo/Voce dal Cielo (Don Carlo), Flora (La Traviata) e Ines (Il Trovatore).

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Divino Sospiro

Ao longo de dez anos de actividade, percorreu um caminho de sucesso, com apresentações nos principais palcos portugueses e em alguns dos mais prestigiados festivais internacionais, v.g., Île-de-France, Folle Journée de Nantes, Folle Journée au Japon, Folle Journée de Bilbau, Varna, Mozartiana Festival (Gdansk), Auditório Nacional de Espanha (Madrid), Suomenlinna e Ambronay. Destaque também para as gravações realizadas para a Radio France, a Antena 2, a RTP e o Mezzo, bem como para as etiquetas Nichion e Dynamic. “Os Divino”, como simpaticamente são apelidados, ocupam um lugar incontornável na vida musical portuguesa, sendo reconhecidos pela entrega, pela curiosidade e pela forma viva e intensa como abordam o desafio da interpretação musical historicamente informada. Com a passagem dos anos, estes factores tornam-se a “imagem de marca” do grupo. Actualmente, o seu repertório não se restringe ao período barroco, tendo-se abarcando os períodos clássico e romântico, com algumas incursões pela música contemporânea. Sob a direcção artística de Massimo Mazzeo, e em colaboração com artistas como Enrico Onofri, Chiara Banchini, Christina Pluhar, Rinaldo Alessandrini, Maria Cristina Kiehr, Alexandrina Pendatchanska, Gemma Bertagnolli, Alfredo Bernardini, Katia e Marielle Labèque, Christophe Coin, Emma Kirby e Debora York, além dos melhores intérpretes portugueses da actualidade, este agrupamento apresenta-se em diversas formações, desde o ensemble de câmara até à dimensão de uma orquestra de ópera. Em 2013, fundou o Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, que tem realizado temporadas de música nos palácios de Queluz, Pena e Sintra, colóquios internacionais, exposições e projectos de formação e sensibilização para a música e as artes.

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Massimo Mazzeo Direcção musical

Diplomado pelo Conservatório de Veneza, aperfeiçoou a formação, em viola de arco, com Bruno Giuranna e Wolfram Christ, e, em música de câmara e quarteto de cordas, com o Quarteto Italiano e o Quarteto Amadeus. Fez parte, seguidamente, de algumas das orquestras mais representativas de Itália e foi primeiro viola da Orchestra Internazionale d’Italia. Colaborou com prestigiadas orquestras de câmara, entre as quais I Virtuosi di Roma, I Virtuosi di Santa Cecilia, Ensemble Nuove Sincronie, Musica Vitæ Chamber Orchestra, Caput Ensemble e Europeam Solists Chamber Ensemble. Nesse período, dedicou-se ao estudo da interpretação historicamente informada e, após ter actuado com diversas formações instrumentais, v.g. o Ensemble Aurora e a Accademia Strumentale Italiana, e com mestres de renome, entre eles Rinaldo Alessandrini, formou, em 2004, a orquestra barroca Divino Sospiro. Como director, tem estado presente em inúmeros festivais e salas, com destaque para o Festival Geistlicher Musik de Bozen, o Auditorio Nacional de España, em Madrid, e o Centro Cultural de Belém. Foi director artístico do Festival Roncegno Musica, onde se estrearam grandes personalidades da cena artística actual, entre eles Boris Berezowsky. Já gravou para as editoras BMG, Erato, Harmonia Mundi France, Deutsche Harmonia Mundi, Nuova Era, Movieplay, Nichion e Dynamic. Exerceu a docência no curso internacional PSA Spettacolo Aperto e na Universidade de Évora, leccionando disciplinas ligadas à música historicamente informada.

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Concerto II

SINES

12 de Março 21H30

SEMPRE/AINDA – ÓPERA SEM VOZES, de Alfredo Aracil

Textos e imagens Alberto Corazón Música Alfredo Aracil Realização multimédia Simón Escudero Piano Juan Carlos Garvayo

Espectáculo antecedido pela realização, a 11 de Março, às 21h30, de uma mesa-redonda, intitulada Memória e Criação, com a participação de Alberto Corazón, Alfredo Aracil, Simón Escudero, Juan Carlos Garvayo, Ruy Ventura e José António Falcão, sob orientação de José Carlos Seabra Pereira. Produção do Museo Universidad de Navarra (MUN), em parceria com o Centro Nacional de Difusión Musical (Instituto Nacional de las Artes Escénicas y de la Música, Ministerio de Educación, Cultura y Deportes, de Espanha) e Meta/cción.

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SINES

Centro das Artes

FRANCISCO TORRÃO

Este equipamento resulta de um projecto do Atelier Aires Mateus & Associados, sob a direcção dos arquitectos Francisco e Manuel Mateus (1999-2000), para o município local, cuja ideia estruturante foi a criação de um edifício de excepção que agregasse várias funções, servisse todas as camadas da população e funcionasse, ao mesmo tempo, como uma referência da cidade e uma porta do centro histórico, a braços com graves problemas de degradação. As obras começaram em Março de 2001 e enfrentaram dificuldades técnicas de monta, pelo que a inauguração só ocorreu a 26 de Novembro de 2005. O CAS localiza-se no espaço antes ocupado pelo Cineteatro Vasco da Gama e pelo Teatro do Mar, entre outras estruturas. Ponto central, de grande acessibilidade e cruzamento entre os residentes e os visitantes, coincide também com o início do caminho medievo que abre a cidade à baía (Rua Cândido dos Reis) e a via de delimitação entre a zona antiga e a urbe moderna (Rua Marquês de Pombal). Essa circunstância foi deliberadamente integrada pela Câmara Municipal no programa do equipamento, acrescentando-lhe o papel de dinamizador e modelo de qualidade para o centro histórico. Ao ocupar, de uma forma deliberadamente algo excessiva, toda a área disponível do lote, a arquitectura do edifício alcançou uma dimensão monumental (na óptica dos autores do projecto, os novos monumentos das cidades são os seus centros culturais). De acordo com tal perspectiva, a escala adoptada foi – pelo menos à partida – a do centro histórico, não deixando de lado algumas “citações”: por exemplo, o estratégico jogo de transparências e opacidades sugere a combinação de aberturas e seteiras das muralhas do castelo quatrocentista, erguido sobre a falésia. Para quem atravessa a Rua Marquês de Pombal, a mole do Centro das Artes apresenta-se como uma fachada de pedra (lioz) deveras robusta, mas, ao iniciar-se o percurso pela Rua Cândido dos Reis, o volume ilumina-se pelas fachadas envidraçadas. Com estas fachadas, procurou-se facultar uma certa permeabilidade entre as actividades

Santo António. Jorge Vieira. 1950. Sines, Tesouro da Igreja de Nossa Senhora das Salas. >

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culturais do interior e a vida quotidiana do exterior. No interior, a luz natural reflecte-se no mármore branco liso dos tectos e paredes, envolvendo quem entra num mundo de espacialidade pura, em algumas circunstâncias quase embaraçosa. Fiel a uma assumida estratégia de contemporaneidade, a integração da biblioteca, do auditório, do centro de exposições e do arquivo municipal num único conjunto visou um objectivo muito concreto: o de que estes diferentes espaços podem, pelo menos em termos teóricos, ser utilizados para várias funções, o que simplifica a sua utilização. Mas a real vantagem, hoje bem perceptível, é o facto de tornar o edifício mais vivido, porque congrega um maior número de pessoas, de interesses e de gerações diferentes, e reforça a presença de umas actividades mediante o recurso a outras. O projecto cultural e artístico para o edifício dimana de um compromisso entre as dinâmicas colocadas pelo seu traçado arquitectónico e o desenvolvimento de linhas de programação centradas na intervenção e experimentação artística do mundo contemporâneo. Pontuada de descontinuidades formais e geradora de tensões, esta arquitectura visa o utilizador como o principal beneficiado: no apelo sensorial dos materiais e da volumetria, na experiência única do espaço (ora lúdica, ora reflexiva), na experiência contemporânea de um edifício de excepção, na incorporação de várias dimensões do conhecimento e da criação humanas.

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A Memória, o Tempo e a Consciência

ALBERTO CORAZÓN & ALFREDO ARACIL

A “ópera sem vozes” Sempre/Ainda (em castelhano, Siempre/Todavía) é um espectáculo singular em que a música para piano solo e as imagens projectadas num ecrã nos vão revelando, pouco a pouco, um texto; a sua matéria-prima resulta de umas anotações, tiradas dos cadernos de viagem, pelo autor do texto, durante uma transcendental estadia em Damasco antes da tragédia que a assola. Pode falar-se de um certo relato, o de um personagem indefinido (um artista, um espectador, qualquer um de nós), que vemos a partir da intimidade, cujas observações, vivências, emoções e estados de sonolência vigilante lhe vão – nos vão – dando a impressão de que o tempo, para algumas coisas essenciais, não é essa corrente que arrasta quase tudo sem possibilidade de retorno, mas é, pelo contrário, um lugar onde convivem passado, presente e futuro: um tempo-memória, cultura, que, em vez de afastar os homens de épocas diferentes, os une. Hoje, não sabemos o que permanece, o que vai permanecer de Damasco, Alepo, Palmira, dos seus museus e do património cultural que até agora se havia conservado nessa antiga região entre a antiga Mesopotâmia e o Mediterrâneo; não podemos deixar de nos questionar e de descobrir que uma parte da resposta está implícita nesta peça, desde o primeiro bosquejo: nós fazemos parte dessa memória; permanecemos, ao menos, todos nós. O projecto teve o ponto de partida nos cadernos de trabalho que o autor foi enchendo de anotações e desenhos durante a estadia em Damasco, devido a uma exposição retrospectiva que o Museu Nacional dessa cidade consagrou, em 2012, à sua obra, enquanto pintor e escultor. Um problema alfandegário atrasou vários dias a montagem, dias que ele dedicou a conhecer Damasco (a cidade mais antiga do mundo, dizem); a percorrer o Museu Nacional por dentro – já não como visitante –, observando minuciosamente cada recanto, cada peça, cada ruína dos seus caóticos e, então, riquíssimos acervos; a visitar Alepo, os seus museus; e a submergir-se definitivamente nas raízes da nossa cultura, nessa zona que se estende do Eufrates ao Mediterrâneo.

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Surpreende que a origem de coisas tão essenciais e complexas como a medida das distâncias e dos volumes, o fabrico de cores para fundir com o barro, a escrita... se encontre, toda ela, num pequeno vale próximo, escreveu nesses dias, reconhecendo a sua própria arte como mais uma representação dos signos, técnicas, sistemas, paradigmas, anelos e arquétipos daqueles que nos procederam, tantos séculos atrás. Não se torna difícil a identificação com as ideias e emoções das notas então redigidas. Inspirado por todo este manancial, o autor da música planeou, há muito tempo, uma extensa partitura piano solo, que foi adquirindo vigor em ambição e recursos até se converter na obra actual: um espectáculo com duração aproximada de 70 minutos, com imagens e texto projectados num ecrã, um personagem visto a partir do seu universo interior, um relato – e a música do piano. Só piano, importa explicá-lo de maneira clara, porque as suas possibilidades são muito amplas, a carga da sua tradição é enorme e as suas limitações face a uma combinação instrumental mais completa constituem um desafio, um convite a enfrentá-las, a procurar o sinal em vez de mostrar a imagem, a refinar os traços, a esboçar os sons e as ideias com a maior precisão. O relato de Sempre/Ainda é o de um personagem indefinido (um artista, um espectador, qualquer de nós), cujas dúvidas e certezas, sonhos e fantasias, emoções e estados de sonolência vigilante o vão – nos vão – aproximando da sensação de que, no tocante a algumas coisas essenciais, o tempo não é uma corrente que arrasta quase tudo sem possibilidade de retorno, mas um lugar onde convivem passado, presente e futuro: um tempo transitável (tempo-memória, tempo-cultura), um tempo que une homens que vivem ou viveram em épocas distintas, em vez de os distanciar. Devemos salientar que o protagonista não é um actor no palco, nem se dirige a nós: somos nós, os seus espectadores, que vamos ser conduzidos até ele, que entraremos nele e, a partir do seu interior, assistiremos às suas sensações, emoções, revelações – não as escutando, mas lendo-as num ecrã que também recolhe o que vê, não o que olha mas antes o que percebe, o que reflecte e esboça na sua cabeça, ante os nossos olhos.

Sempre/Ainda transporta-nos muito para além de Damasco ou Alepo e das culturas que se desenvolveram na região. Contudo, foi aí que começou a nascer e não podemos deixar de pensar, agora, nas coisas terríveis que acontecem nas suas ruas, nas suas gentes, no seu património e nos seus museus, e que nós estamos vivendo também. Não sabemos o que resta hoje, o que vai permanecer, e não podemos deixar de nos interrogarmos... e descobrimos que uma parte da resposta estava, desde os primeiros esboços, implícita nesta peça: nós fazemos parte dessa memória; permanecemos, ao menos, todos nós.

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[AD LITTERAM] Preludio

Prelúdio

he tenido un sueño

tive um sonho

un árbol extiende sus ramas sin hojas

uma árvore estende seus ramos sem folhas

ramas de las que cuelgan

ramos de onde caem

pequeños trozos de telas

farrapos de tecido

blancas, rojas y negras

branco, vermelho e negro

y también chapas de estaño

e ainda folhas de estanho

en las que está escrita,

onde se regista,

en cada una, una sola sílaba

em cada uma, uma única sílaba

sé que tengo que leer esas sílabas

sei que tenho de ler essas sílabas

en un cierto orden

por uma certa ordem

la- tie-rra- ve-la-da- de- tier-na- li-ge-re-za

a- te-rra- ve-la-da- de- ter-na- le-ve-za

y entreveradas

e misturadas

siem-pre- to-da-ví-a

sem-pre- a-in-da

Los ojos

Os olhos

un oscuro sótano

uma obscura cave

hay que esperar a que la vista

esperemos que a vista

se acostumbre a la penumbra

se habitue à penumbra

innumerables ojos de piedra negra

inúmeros olhos de pedra negra

nos miran

fitam-nos

desde las cabezas de mármol

a partir das cabeças de mármore

que franquean cada nicho

que abrem cada nicho

retratos sin alegría ni tristeza

retratos sem alegria nem tristeza

serenidad

ou serenidade

sólo a los ojos fulgurantes

apenas nos olhos fulgurantes

con incrustaciones se les ha reservado

com embutidos se reservou

la presencia de la vida

a presença da vida

El escultor

O escultor

declaración del escultor…

declaração do escultor…

yo que sé cómo reflejar el miedo

sabendo eu como reflectir o medo

en el rostro de nuestros enemigos

no rosto dos nossos inimigos,

yo que entiendo las escrituras y los jeroglíficos

compreendendo eu as escrituras e os hieróglifos

nunca he traicionado esos conocimientos

nunca traí esses conhecimentos

hasta que se me permitió enseñarlos

até que me permitiram ensiná-los

Los vientos

Os ventos

leo el nombre de los vientos en una

leio o nome dos ventos

inscripción…

numa inscrição…

el viento que todo lo arrasa

o vento que tudo arrasa

el viento que viene del sur

o vento que vem do sul

el viento caliente

o vento quente

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el viento de tormenta

o vento de tempestade

el viento de los tornados

o vento dos tornados

el viento que viene del oeste

o vento que vem de oeste

el viento que viene de la profundidad

o vento que vem das profundezas

el viento frío

o vento frio

el viento de las nubes...

o vento das nuvens…

Locus amœnus (Lugar sereno I)

Locus amœnus (Lugar sereno I)

el aire mueve lentamente las hojas

a aragem move devagar as folhas

de este pequeño bosque de alerces

deste pequeno bosque de coníferas

y, al moverlas, rayos de sol se filtran en el techo

e, ao movê-las, raios de sol filtram-se pelo tecto

vegetal

vegetal

una inmensa red de hojas entrelazadas

a imensa rede de folhas entrelaçadas

para atrapar viento y sol y el tiempo

para apanhar vento e sol e o tempo

atrapar el tiempo

apanhar o tempo

no recuerdo cuánto duran momentos

não me recordo de quanto duram momentos

así

assim

Eco (I)

Eco (I)

somos parte

fazemos parte

de tanta memoria

de tanta memória

Arca de la memoria

Arca da memória

ruinas

ruínas

fragmentos de frisos con batallas

fragmentos de frisos com batalhas

hornacinas de basalto

nichos de basalto

es como un arca de Noé

parece uma arca de Noé

a la que hubieran arrojado

para onde lançaram

las especies de nuestra cultura

as espécies da nossa cultura

cabezas sin pupilas, leones, camellos, ángeles y

cabeças sem pupilas, leões, camelos, anjos

pavos, serpientes

e pavões, serpentes

prisioneros, guerreros, elefantes, palomas

prisioneiros, guerreiros, elefantes, pombas

un pie rodeado por un círculo

um pedestal rodeado por um círculo

piedras erguidas

pedras erguidas

rodeadas de inscripciones erosionadas

tendo, à volta, inscrições gastas

tritones, caballos, ninfas de rizados

tritões, cavalos, ninfas

cabellos

de ondeados cabelos

y monstruos marinos con cabezas humanas

e monstros marinhos com cabeças humanas

entre sus fauces

entre as gargantas

fragmentos

fragmentos

siempre fragmentos

sempre fragmentos

relieves, esculturas

relevos, esculturas

trazos rojos y negros

traços vermelhos e negros

todo lo que nos rodea nos concierne

tudo o que nos rodeia nos pertence

todo

tudo

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somos aquéllos que tallaron las piedras

somos aqueles que talharam as pedras

pintaron los frisos

pintaram os frisos

también nosotros pertenecemos

também nós fazemos parte

a este arca

desta arca

Los sonidos

Os sons

el sonido

o som

origen de tanto, de tantos cálculos y emociones

origem de tanto, de tantos cálculos e emoções

quedó olvidado en el relato de la Creación

foi esquecido no relato da Criação

la Tierra era un caos informe en la tiniebla

a Terra era um caos informe nas trevas

y Dios ordena ‘que exista la luz’

e Deus ordenou que existisse luz

oscuridad y luz

escuridão e luz

nada dice del sonido

nada diz do som

y el silencio

nem do silêncio

Eco (II)

Eco (II)

relatos sin respuesta

narrações sem resposta

preguntas

perguntas

El escriba

O escriba

sonidos…

sons…

la primera tarea del escriba era escuchar

a primeira tarefa do escriba era escutar

el primero que conocemos mira al frente

o primeiro que conhecemos olha em frente

manos abiertas hacia arriba

mãos abertas ao alto

con un ambiguo gesto de recibir u ofrecer

com um gesto ambíguo de receber ou dar

Escribir y dibujar

Escrever e desenhar

escribir y dibujar es el mismo gesto

escrever e desenhar são o mesmo gesto

una secuencia, el relato

uma sequência, a narrativa

la hoja de papel es el mundo

a folha de papel é o mundo

haces algo, tu mano traza

algo fazes, a tua mão traça

y en ese aparente caos de veladuras

e nesse caos aparente de velaturas

y líneas

e linhas

escribes ‘oscurece ya’

escreves “vai escurecendo”

y ese papel que era un mundo silencioso

e esse papel que era um mundo silencioso

se abre a un relato sin límites

abre-se a uma narrativa sem limites

Mardik

Mardik

en el pecho de la estatua sin cabeza

no peito da estátua sem cabeça

de un rey de hace tres mil años

de um rei de há três mil anos

se menciona a Mardik

fala-se de Mardik

como la más antigua ciudad

como a mais antiga cidade

entre el Eúfrates y el Mediterráneo

entre o Eufrates e o Mediterrâneo

hoy Mardik es una suave colina perdida

hoje Mardik é uma suave colina perdida

y la ciudad sólo existe

e a cidade só existe

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en la escritura tallada en el pecho

na escrita gravada no peito

de un descabezado busto de piedra

de um decapitado busto de pedra

al fondo de una sala en penumbra de un

no fundo de uma sala na penumbra de um

museo

museu

Eco (III)

Eco (III)

relatos sin respuesta

narrativas sem resposta

tiempo suspendido

tempo suspenso

Locus amœnus (Lugar sereno II)

Locus amœnus (Lugar sereno II)

estar ajeno a todo

alhear-se de tudo

mirar y escuchar entonces otros sonidos

fitar e escutar então outros sons

el limpio murmullo de las fuentes

o límpido murmúrio das fontes

allí donde nunca llueve

ali onde nunca chove

una acacia que cruje suavemente

uma acácia que crepita com suavidade

ráfagas de aire que mueven las hojas

rajadas de vento que movem as folhas

como si lloviera

como se chovesse

un aleteo de palomas

um esvoaçar de pombas

ahogado por el ruido del tráfico

consumido pelo ruído do tráfego

Eco (IV)

Eco (IV)

tu calma

a tua calma

no es la calma del mundo

não é a calma do mundo

Cortejo

Sedução

estruendo parece la única palabra posible

estrondo parece a única palavra possível

todos, casi todos, hacen ruido

todos, quase todos, fazem barulho

una pareja mirándose a los ojos

um casal olhando-se nos olhos

para inmediatamente bajarlos

e de imediato os baixa

las manos muy próximas pero sin tocarse

as mãos chegadas mas sem contacto

todos sus gestos tienen el aire

todos os seus gestos têm ar

de un tímido y profundo cortejo

de uma tímida e profunda sedução

siempre en silencio en medio

sempre em silêncio no meio

de esta descomunal barahúnda

desta descomunal barafunda

siempre en silencio

sempre em silêncio

La luz

A luz

el polvo asciende del suelo

a poeira ascende do chão

y la luz de la tarde lo convierte

e a luz da tarde transforma-o

en una cortina dorada

numa cortina dourada

Los colores

As cores

colores

cores

fueron apareciendo poco a poco

a pouco e pouco foram aparecendo

había que ir en su busca

era preciso buscá-las

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el negro era el tronco que el fuego ha quemado

o negro era o tronco que o fogo tinha queimado

el rojo, la sangre de la caza

o vermelho, o sangue da caça

ocre rojo, el óxido de hierro

ocre vermelho, o óxido de ferro

blanco albayalde, virutas de plomo

branco alvaiade, aparas de chumbo

en vinagre

em vinagre

colores

cores

señal y signo

sinal e signo

betún oleoso del Mar Muerto

betume oleoso do Mar Morto

para un pardo reluciente

para um pardo reluzente

bermellón, pasta de mercurio y azufre

vermelhão, pasta de mercúrio e enxofre

amarillo de azafrán del Yemen

amarelo de açafrão do Iémen

azul de piedras de cobalto

azul das pedras de cobalto

verdes de arsénico claro y oscuro de malaquita

verdes de arsénico claro e escuro de malaquite

egipcia

egípcia

como el naranja del alazor

como o laranja da açafroa

el violeta, conchas de múrice trituradas

o violeta, conchas de múrex trituradas

la púrpura de los fenicios de Levante

a púrpura dos fenícios do Levante

colores escritos en tablillas de barro

cores escritas em tabuinhas de barro

con recetas de tintes babilónicos

com receitas de tintas babilónicas

Alfabeto

Alfabeto

llevamos milenios hablando

há milénios que falamos

pero hubo un momento y un lugar en el que los

mas houve um momento e um lugar em que os

sonidos

sons

las cosas y las imágenes de las cosas

as coisas e as imagens das coisas

y los pensamientos

e os pensamentos

y los sueños y lo que pensamos

e os sonhos e o que pensamos

de los sueños

dos sonhos

y lo que sentimos

e o que sentimos

y cómo nos engañamos

e como nos enganamos

con lo que creemos sentir

com o que pensamos sentir

todo, todo eso

tudo, tudo isso

pudo ser fijado a través de la escritura

se pôde fixar através da escrita

de modo que cualquier hombre

de modo que qualquer homem

en cualquier otro lugar

em qualquer outro lugar

lo leerá y comenzará

o poderá ler, iniciando

una conversación sin tiempo

uma conversa sem tempo

prolongando una memoria compartida

prolongando uma memória partilhada

La escala de Jacob

A escada de Jacob

en una estela de piedra, la visión de Jacob

numa estela de pedra, a visão de Jacob

la escala que llega al cielo

a escada que chega ao céu

una visión, no un sueño

uma visão, não um sonho

dibujo la escala en mi cuaderno

desenho a escada no meu caderno

dos largos trazos tortuosamente paralelos

dois largos traços tortuosamente paralelos

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un apoyo, irregulares travesaños

um corrimão, traves irregulares

veo esa escala por primera vez en el

vejo essa escada pela primeira vez num

bajorrelieve

baixo-relevo

y me parece idéntica a la que he dibujado

e parece-me idêntica àquela que desenhei

ya decenas de veces en el pasado

dezenas de vezes no passado

nunca he sabido qué podía significar

nunca pude saber do seu significado

en cada momento

em cada momento

en cada diferente momento

em cada momento diferente

que necesité pintar la misma escala

em que necessitei de pintar a mesma escada

Eco (V)

Eco (V)

lo que intuimos puede ser más sólido

o que intuímos pode ser mais sólido

que lo que entendemos

do que aquilo que entendemos

Duermevela

Sono agitado

estoy tratando de llegar a algún sitio

vou tratando de chegar a um certo sítio

pero un laberíntico recorrido por escaleras y

mas um labiríntico percurso por escadas e

habitaciones vacías

quartos vazios

me ha desorientado

desorientou-me

camino en sueños

caminho em sonhos

se escucha el mar

escuta-se o mar

escucho

escuto

hay gente que parece hablar entre sí

há gente que parece falar entre si,

pero nada oigo ni me prestan atención

mas nada oiço nem me prestam atenção

lentamente

lentamente

el mar ruge ahora con fuerza

o mar ruge agora com força

todo transcurre lentamente

tudo decorre lentamente

tranquilo, sereno

tranquila, serena

lentamente

lentamente

Epílogo

Epílogo

he visto ya tanto

tenho visto tanto

he vivido ya tanto, leído y escuchado

tenho vivido tanto, lido e escutado

siempre

sempre

aquí ya he estado, hemos estado, en otro

já aqui estive, estivemos, noutro

tiempo

tempo

en otros tiempos

noutros tempos

todavía

ainda

somos parte de tanta memoria

fazemos parte de uma imensa memória

la fecha y el lugar nada importan

a data e o lugar nada importam

siempre

sempre

todavía

ainda Tradução: Ruy Ventura

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Alberto Corazón Textos e imagens

Pintor, escultor e designer (Madrid, 1942). Ocupa, como criador e investigador, um lugar destacado no design gráfico espanhol (recebeu o Prémio Nacional, bem como importantes homenagens em Nova Iorque e Londres). Posteriormente, estendeu a sua actividade ao design industrial, alcançando, nos dois campos, extraordinário prestígio. Em 1976, foi convidado pelo Comité Internacional a expor na Bienal de Veneza com Tàpies e El Equipo Crónica; em 1978, a Bienal de Paris convidou-o, também a título pessoal, a expor no Petit Palais, com Antonio Saura. Durante a década de 90, expôs regularmente nas galerias Gamarra y Garrigues e Elvira González. Na Alemanha, o Wenth Museum adquiriu um vasto conjunto das suas pinturas e esculturas. Em 1996, realizou a cenografia da Opera de Luis de Pablo, La Madre Invita a Comer, estreada no Teatro de la Zarzuela, de Madrid, sob a direcção musical de José Ramón Encinar. Colaborou com Alfredo Aracil na cenografia de Dos Delirios sobre Shakespeare, estreada nos Teatros del Canal, em 2009. Publicou diversos livros relacionados com o design e a criação plástica, assim como ensaios, dos quais 30 Años de Diseño (1999), Escudos, Medallas, Vapor y Electricidad: La Iconografía Industrial

Madrilena en el Siglo XIX (1997), La Evolución de un Pictograma Alfabético (1985), El Hombre que Hace Letras (1985) e Un Ensayo de Ecología de la Imagen Impresa (1980).

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Alfredo Aracil Música

Compositor (Madrid, 1954). Estudou música com Cristóbal Halffter, Tomás Marco, Carmelo Bernaola, Luis de Pablo e Arturo Tamayo, em Madrid, e com Karlheins Stockhousen, Iannis Xenakis, Christian Wolf e Mauricio Kagel, em Darnstadt, entre outros. Doutor em História da Arte pela Universidad Complutense de Madrid, tem leccionado nesta instituição, na Universidad Autónoma de Madrid, no Instituto de Estética y Teoría de las Artes da Universidad Carlos III, na Universitat Politècnica de Valencia, na Escola Superior de Música de Catalunya, nos Cursos Internacionais de Composição de Villafranca del Bierzo e noutros estabelecimentos de Espanha, Itália, França, Reino Unido, Brasil e México. Trabalhou na Radio Nacional de España, onde chefiou o Departamento de Produções Musicais de Radio 2, e exerceu as funções de delegado no Grupo de Peritos de Música Clássica de Euroradio (EBULVER); foi co-fundador e programador da série Los Conciertos de Radio 2 e director e guionista de relevantes programas de difusão musical. Organizou e dirigiu ciclos de concertos e actividades culturais para o Festival de Otoño de la Comunidad de Madrid, a União Europeia de Radiodifusão, o Instituto Cervantes de Paris, a Fundación Albéniz, o Museo del Prado, o Archivo Manuel de Falla, a Fundación Loewe e a Orquesta y Coros Nacionales de España. Foi director, entre 1994 e 2001, do Festival Internacional de Música y Danza de Granada. As suas composições têm sido apresentadas em ciclos e festivais internacionais dos Países Baixos, Áustria, Portugal, Bélgica, Porto Rico, Itália, Suíça, França, Jugoslávia-Croácia, Reino Unido, Austrália, Rússia, Estados Unidos da América, Alemanha, Brasil, México e Espanha. Recebeu igualmente encomendas de instituições culturais espanholas e europeias.

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Juan Carlos Garvayo Piano

Nasceu em Motril (Granada), em 1969. Iniciou os estudos musicais na sua cidade natal e no Conservatório de Granada. Aperfeiçoou os conhecimentos na Rutgers University, em New Brunswick, onde obteve os prémios Dorothy Mallery e H. Trutenberg, e na State University of New York, de Binghamton, onde estudou com Walter Ponce e Diane Richardson. Com o Trío Arbós, tem actuado nas principais salas e festivais: Konzerthaus (Viena), Conservatório de Moscovo, Academia Sibelius (Helsínquia), Bienal de Veneza, Teatro Colón (Buenos Aires), Auditorio Nacional (Madrid), Kuhmo Chamber Music Festival, Time of Music (Viitasaari), Wittener Tage für Neue Kammermusik, Darmstadt INMM, Ultima (Noruega), Klangspuren Festival, Nuova Consonanza (Roma), Festival de Camagüey, Festival Numus (Toronto), Festival de Santorini, Festival de El Salvador, Festival de Ryedale, Quincena Musical Donostiarra, Festival de Música Contemporánea de Alicante, Festival de Santander, Ensems de Valencia e Teatro Central (Sevilha), etc. Actuou como solista com a Orquesta Nacional de España, Deutsches Symphonie-Orchester Berlin, JONDE, New American Chamber Orchestra, Orquesta Sinfónica Provincial de Santa Fe, Orquesta de la Comunidad de Madrid, Orquestra Nacional da Lituânia, Orquesta Sinfónica de Castilla y León, Orquesta Filarmónica de Gran Canaria, Real Orquesta Sinfónica de Sevilla, etc. O interesse pela música dos nossos dias levou-o a estrear mais de uma centena de obras, muitas delas dedicadas a ele, e a trabalhar com Hans Werner Henze, Pascal Dusapin, Jonathan Harvey, George Benjamin, Toshio Hosokawa, Salvatore Sciarrino, Cristóbal Halffter, Luis de Pablo ou Beat Furrer. Como director, estreou a ópera de José Manuel López, com libreto de Gonzalo Suárez,

La Noche y la Palabra, e Angelus Novus, de Jorge Fernández Guerra. Enquanto membro do Trío Arbós, recebeu o Premio Nacional de Música (Espanha) 2013, na modalidade de Interpretação. É professor do Real Conservatorio Superior de Música, de Madrid.

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Concerto III

SANTIAGO DO CACÉM

2 de Abril 21H30

PETITE MESSE SOLENNELLE, de Gioachino Rossini Kyrie eleison-Christe eleison Gloria in excelsis Deo Gratias agimus tibi Domine Deus Qui tollis peccata mundi Quoniam tu solus sanctus Cum Sancto Spiritu Credo in unum Deum Crucifixus etiam pro nobis Et resurrexit Prélude religieux (ofertório) Agnus Dei

Soprano Isabel Gaudí Meio-soprano Cecilia Molinari Tenor Sunnyboy Dladla Barítono Pablo Ruiz Coro de Cámara de El Molino Alberto Bosco, Alea Esteban, Arturo Mazón, Buenaventura Ibáñez, Carmen Vela, Cristina Cabello, Daniel Jerez, Ernesto Ramiro, Etor Pérez, Grycelys Rosario, Irene López, Juan Carlos Montero, Lourdes Carrasco, Miguel Gorrón, Paula Maeso, Pilar Galán, Rafael Curbelo, Ruth Sánchez, Victor Albarrán Direcção Eugenia Durán Piano-harmónio Ruben Sánchez-Vieco, Josu Okiñena Direcção musical Alberto Zedda

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SANTIAGO DO CACÉM

Igreja Matriz de Santiago Maior Classificada como Monumento Nacional por Decreto de 16 de Junho de 1910 e pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a “Reconquista” ficava no interior do castelo, onde já existia uma mesquita, partilhando da posição altaneira da fortaleza, que impera, do alto de um monte – o Cerromaior do romance de Manuel da Fonseca –, sobre a planície costeira. Ao tomarem a terra, em torno de 1217, os religiosos-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe o antropónimo árabe Qasim (da tribo dos Banu Qasim), elevado a topónimo. O antigo edifício viria a tornar-se pequeno quando a vila extravasou os limites da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV, sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça, neta do imperador Teodoro II Lascaris, parente e aia da rainha D. Isabel, a esposa de D. Dinis. Na posse de Santiago do Cacém e Panóias, mercê de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre senhora dotou os principais lugares de culto destes domínios com relíquias insignes – provavelmente oriundas do pecúlio familiar dos Lascaris, trazido de Niceia. À matriz de Santiago couberam, entre outros vestígios sagrados, vários fragmentos da Cruz de Cristo, ou Lignum Crucis, a que se dá, localmente, o nome de Santo Lenho. Para o altar-mor do mesmo edifício, encomendou o retábulo de

Santiago Combatendo os Mouros, obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um dos mestres da catedral de Lisboa. Em 1320-1321, as “décimas” taxaram a igreja no montante de 1000 libras, devendo pagar a vigairaria mais 90 libras, o que totaliza uma soma avultada, sinal da importância da terra. Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (nomeadamente em 1530, em 1704 e, sobretudo, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terremoto de 1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três Marca de oleiro num ladrilho da sacristia. Século XVIII, finais. Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior. >

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naves separadas por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas perdurou um dos laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo dos capitéis e das impostas, alinha-se densa carga ornamental vegetalista e zoomórfica. Corresponde-lhe, no interior da igreja, um complexo ciclo decorativo que guarnece os capitéis e anima o perfil das arcadas em ogiva, com a introdução de figuras humanas, reflectindo a dominância naturalista da arte da época. O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por frestas esguias, define uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcossólio. Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em finais do reinado dionisíaco, quando se transfiguraram quase totalmente, sob o impulso de correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda metade da era ducentista, em que ainda preponderavam arcaísmos do período “experimental” do mesmo estilo. A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, constituída por um prior dotado de poderes quase-episcopais, o qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem, seis (oito no século XVII) beneficiados e um prioste, todos freires espatários, assumiu decisiva influência na vida da povoação. Sucedeu o mesmo com as importantes confrarias, irmandades e ordens terceiras agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversificado património artístico, boa parte do qual está patente ao público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi instalado, em 2002, na sala capitular e outras dependências do próprio monumento. Aqui se conserva, com o merecido destaque, o relicário do Santo Lenho. BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

BERNARDO FALCÃO, Memorias sobre a Antiga Mirobriga (Lisboa, Biblioteca dos Herdeiros do Prof. Doutor Eng.º Manuel António Falcão Beja da Costa, ms. s.n.); ANTÓNIO DE MACEDO E SILVA, Annaes do Municipio de Sanct-Yago de Cassem desde Remotas Eras até ao Anno de 1853, Beja, Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id., Annaes do Municipio de Sant’Iago de Cacem, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1869; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, O Alto-Relevo de Santiago Combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja-Santiago do Cacém, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), No Caminho sob as Estrelas. Santiago e a Peregrinação a Compostela [Catálogo da Exposição, Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior, 2007-2008], I-II, Santiago do Cacém-Beja, Câmara Municipal de Santiago do Cacém-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2012; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.

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Um Pouco de Ciência, Um Pouco de Coração

ALBERTO ZEDDA

O homem latino é pouco amante da meditação, da reflexão introspectiva e paciente. A sua forma de comunicar com o transcendente exige, amiúde, uma participação activa, um debate inflamado, uma confrontação directa. Alegrias e penas não se consomem em silencioso recolhimento, mas exprimem-se com gestos externos, ditados pela necessidade de obter uma implicação colectiva. Os sinais de luto, o pranto das carpideiras, os ritos que acompanham as cerimónias religiosas e as festas populares são a sua manifestação por excelência. Não é muito diferente a atitude do músico latino, quando aborda a temática religiosa. Das representações sacras ao madrigal, dos livros litúrgicos às missas, a tentação de misturar o profano com o sagrado, o protesto com a súplica, a revolta com a submissão, o escárnio com a devoção aparecem constantemente na música sacra dos compositores italianos. O modo de entender a sacralidade tem respondido, constantemente, a uma relação Homem-Deus alimentada pelo amor, mas também pela soberba luciferina; pela adoração, mas também pela contestação. O diálogo com a divindade assume, por conseguinte, perspectivas terrenas, humanamente sentidas; o interlocutor é sincero no seu afã de devoção, mas não está disposto a anular-se perante a luz deslumbrante de um pantocrator inatingível. Foi precisamente a temática religiosa, a difícil confrontação com o incognoscível, que levou os compositores a procurarem uma sinceridade de linguagem, que se traduziu numa agitação de sentimentos não previsíveis. Também assim sucedeu com Gioachino Rossini [S Pesaro, 1792 – X Passy (Paris), 1868]. O compositor marchigiano acumulou, na sua produção, várias composições de género sacro que remontam às suas origens (as Messe de Bolonha e Ravena, as peças sacras de Lugo). Em plena experiência napolitana, apogeu da sua maturidade artística, ámen da poderosa expressão poético-popular da ópera-oratória Mosè in Egitto, compôs igualmente uma Messa di Gloria de gélida beleza. Nos intermináveis anos do seu exílio criativo, Rossini quebrou a ordem de silêncio justamente com duas obras sacras de grande exigência, o Stabat Mater e a

Petite Messe Solennelle, a que se acrescentaram algumas páginas corais, como La Foi,

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l’Espérance et la Charité, o Tantum ergo e O Salutaris Hostia, de modesta relevância. Tanto no Stabat Mater como na Petite Messe, verifica-se um fenómeno interessante: sob o signo da inspiração religiosa, Rossini rompe a reserva e o pudor que sempre refrearam a manifestação dos seus sentimentos, para se abandonar, por fim, a um canto de grande tensão emotiva, de uma efervescência terrena. Este facto não surpreende quem conhece a música sacra dos compositores italianos. Sem percorrer o longo caminho que conduzirá ao humaníssimo e profano Requiem de Verdi, basta pensar no Stabat

Mater de Pergolesi, o modelo que Rossini considerava insuperável. Com esta obra-prima, Pergolesi não só alcança uma cúspide expressiva, enredando profundamente o ouvinte no vibrante relato atribuído a Jacopone da Todi, como consegue um perfeito equilíbrio entre as passagens dedicadas ao sofrimento da mãe de Cristo e as reservadas a um comentário sereno e transfigurante, cheias de alegre ligeireza. Julgaram reprovável tal mistura os defensores integralistas da fé, despertando a mesma oposição que levou os Padres da Igreja a apartar a música dos lugares de culto, com as resoluções promulgadas no Concílio de Trento. Para lá da atitude das gentes latinas, uma grande responsabilidade na dessacralização da música religiosa dimana também das condenações conciliares que criaram uma nociva desigualdade entre o músico da fé protestante, livre de tais restrições, e o músico católico. Itália, que até Palestrina e Monteverdi tinha produzido música de elevada qualidade destinada ao culto, passou rapidamente para um dos últimos lugares da classificação. Mas os músicos não foram os únicos prejudicados: ao afastar a música das igrejas, as bulas tridentinas privaram o povo, todo ele, da primeira e mais imediata fonte de educação musical. Enquanto as crianças da Alemanha, da Áustria, da Holanda e da Inglaterra se familiarizavam, na igreja, com a música de Schütz, Bach, Händel, Haydn, Mozart e tantos outros comunicadores do espírito, inclusive participando activamente, ao entoarem os corais da liturgia, os italianos tinham de se conformar com subprodutos deseducativos, pobres substitutos desse poderoso meio de oração e meditação que os bispos do Concílio consideravam elemento de distracção mundana. Expulsa das igrejas, é natural que a música fosse ignorada na formação educativa, durante séculos privilégio exclusivo dos clérigos, completando, assim, o ciclo negativo que levou à enorme ignorância musical actual, mesmo entre categorias sociais que se costumavam definir como cultas. Mercê de tudo isto, pode compreender-se por que é que a produção da música religiosa nos países afectados pela Contra-Reforma, privada da sublime elevação que a deveria caracterizar, tem umas características anómalas e lamentáveis. Rossini, tão laicamente racional, tão enamorado da vida, tão ironicamente desencantado, não podia ser uma excepção. Contudo, no seu caso específico, a inspiração religiosa

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permitiu que a poética musical captasse a essência da verdade dramática sem recorrer ao óbvio da descrição realista. Para cultivar a utopia da beleza absoluta, o compositor congelou em formas idealizadas as lágrimas do sofrimento e os abandonos da paixão, com o intuito de não envilecer os sentimentos com a contaminação dos afãs quotidianos. A dor da Mãe, o mistério do “sacrifício” tiveram que lhe parecer tão grandes e tão distantes ao ponto de se verem libertados por si mesmos do perigo do sentimentalismo. De facto, nunca como no Stabat e na Petite Messe seguiu Rossini o caminho da verosimilhança percorrido pelos românticos, nem nunca pareceu tão próximo da linguagem retrógrada dos contemporâneos que o tinham constrangido ao silêncio. Também Rossini, como todos os grandes compositores, operísticos ou não (Mozart, Beethoven, Verdi…), sentiu necessidade, no final da sua trajectória como compositor, de se comparar com a leitura da antiga polifonia, expressão máxima da sabedoria técnica de um músico: veja-se a fuga coral conclusiva “In sempiterna saecula” do Stabat

Mater e o final do “Gloria” e do “Credo” da Petite Messe, páginas que conjugam com resultado feliz a severidade do estilo imitativo com a emergência de alcançar a meta da beatitude. O coro desenvolve um ininterrupto bordado de melismas que recordam o Canto Gregoriano, mas sem ignorar o legado dos madrigalistas barrocos. Chegado ao final de uma existência no decurso da qual tinha podido observar como as maiores satisfações andavam a par com a desilusão da interpretação errada e o drama da renúncia ao teatro, Rossini regressou à temática religiosa. Nasceu assim, em 1863, poucos anos antes da sua morte, uma surpreendente Petite Messe Solennelle concebida para dois pianos, um harmónio e um coro de doze cantores: quatro vozes solistas, dobradas por outras oito. O harmónio tem a função de suavizar as descarnadas escansões do piano, além de proporcionar uma cor sagrada a páginas que, pela sua essência austera, tendem a roçar o profano, pelo menos quanto às suas opções rítmicas e de timbre, que lembram ritmos populares. Com efeito, o acompanhamento da parte vocal prevê um apoio de colorido inédito, com prevalecente escritura pontilhista e seca dos teclados, tratados modernamente como instrumentos de percussão. Dele brota um equilíbrio sonoro que tem exemplos próximos – e muito pertinentes – nas experiências do século XX. O contraste entre uma concepção de timbre tão futurista e um tratamento vocal muito calculado, mas sempre de pendor tradicional, gera sensações desconhecidas. O dispositivo dos cantores foi determinado, sem dúvida, pelo destino da Missa: uma execução para um grupo de poucos e selectos amigos, que teve lugar, a 14 de Março de 1864, em casa do banqueiro Alexis Pillet-Will, amigo de Rossini e comitente da obra; mas, acima das razões contingentes, pode pensar-se num assumido propósito de dar

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corpo original a um encontro com a fé de um leigo pouco disposto a renunciar, até ao âmago, ao seu cepticismo independente. Uma deliciosa dedicatória: “Petite Messe Solennelle / à quatre Parties / avec accompagnement de 2 Pianos et Harmonium / Composée pour ma villégiature de Passy. / Douze Chanteurs de trois sexes Hommes, Femmes, et Castrats seront suffisants / pour son exécution, savoir Huit pour les Chœurs, quatre pour les Solos, total douze Chérubins. / Bon Dieu pardonne moi le rapprochement suivant ; Douze aussi sont les Apôtres dans le celebre / coup de Mâchoire peint à Fresque par Léonard dit la Cene, que le croîrait ! / il y a parmi tes disciples de ceux qui prennent de fausses notes !! / Seigneur, / Rassure Toi, j’affirme qu’il n’y aura pas de Judas à mon Dejeuné et que / Les miens chanteront juste et Con Amore tes Louanges et cette petite / Composition que est Hélas le dernier Péché mortel de / ma vieillesse. / G. Rossini / Passy, 1863”,1

assim completada “Bon Dieu / la voilà terminée cette pauvre petite Messe. Est-ce bien / de la musique Sacrée que je viens de faire ou bien / de la Sacrée musique? J’étais né pour L’Opera Buffa, / tu le sais bien ! Peu de Science un peu de cœur, / tout est là. Sois donc Beni, et accorde moi / le Paradis.”2

torna ainda mais confusos os contornos desta emblemática composição e dificulta a compreensão dos motivos que lhe deram origem. Surpreende uma afirmação: porque fala Rossini de três sexos? Porque menciona os castrados, quando a castração era uma prática abolida há mais de meio século? Acaso tinha Rossini pensado neles ao compor a sua Missa, mas só podia confessá-lo a Deus?

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“Pequena Missa Solene / em quatro partes / com acompanhamento de dois pianos e harmónio / Composta para a minha vilegiatura de Passy / Doze cantores de três sexos, Homens, Mulheres e Castrados, serão suficientes / para a sua execução, a saber Oito para os Coros, quatro para os Solos, no total doze Querubins. / Bom Deus, perdoa-me a comparação seguinte; Doze são também os Apóstolos no célebre / golpe certeiro pintado a fresco por Leonardo chamado A Ceia, quem o diria? / Entre os Teus discípulos há alguns que dão falsas notas. / Senhor, / fica tranquilo, asseguro-Te que não haverá um Judas à minha mesa e que / Os meus cantarão bem e Con Amore os Teus Louvores e esta pequena / Composição que é, ai de mim!, o último pecado mortal da / minha velhice. / G. Rossini / Passy, 1863” 2 “Bom Deus / eis terminada esta pobre pequena Missa. O que acabo de fazer é / música Sagrada ou é música blasfema? Nasci para a Ópera Bufa, Tu sabes bem! Um pouco de conhecimento, um pouco de coração, / e é tudo. Sejas para sempre louvado e concede-me o Paraíso.”

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Na referida primeira execução parisiense, as indicações especificadas na dedicatória não foram cumpridas à letra, pois o coro não era formado por oito vozes, mas sim por quinze estudantes do Conservatoire, entre os quais, por certo, não havia nenhum castrado. Os solistas foram o tenor Italo Gardoni, o baixo Luigi Agnesi e as irmãs Carlotta e Barbara Marchisio, respectivamente soprano e contralto; George Mathias como primeiro pianista e Andrea Peruzzi como segundo; ao harmónio, o jovem Albert Lavignac; todos sob a direcção de Jules Cohen. Entre o selecto público convidado: Auber, Meyerbeer, Ambroise Thomas, o barão Taylor e outros aristocratas, banqueiros, embaixadores e o núncio do papa. O compositor não estava presente e só interveio no ensaio geral, para não receber as previsíveis aclamações do público. Rossini funde na Petite Messe, como é habitual nele, estilemas diferentes, unindo reminiscências da escrita contrapontística com incursões melódicas de densa emotividade, mesmo quando não se afasta do maneirismo do canto virtuosista. A fórmula litúrgica resulta esbatida, pelo que, mais do que uma Missa, a composição revela-se como uma sequência tradicional de páginas solistas e de sábias intervenções corais. Nas suas composições para o teatro, e devido, em parte, a razões práticas, Rossini nunca tratou o coro de forma complexa: alternava uma escrita substancialmente homorrítmica e homofónica com algum raro trecho em estilo imitativo, mais citado na exposição temática do que insistido nos desenvolvimentos subsequentes. Pelo contrário, na Petite Messe o compositor brilha com processos multiformes que vão dos andamentos homorrítmicos (“Kyrie”, “Gloria”, grande parte do “Credo”, “Sanctus”, “Dona nobis pacem”) a um estilo polifónico elaborado e severo (“Christe”, “Et in Spiritum Sanctum Dominum”, “Confiteor unum baptisma”, “Benedictus”, “Qui tollis peccata mundi”), até chegar ao rigoroso fugato de ascendência bacahiana (“Cum Sancto Spiritu “, “Et vitam venturi saeculi”). Quando os solistas cantam juntos nos números concertantes, a grafia vocal, ainda que florida e livre, imita as tipologias da escrita coral. Assim, encontramos nos quartetos andamentos homorrítmicos (“Laudamus Te, Benedicimus Te”, “Dominus Deus Sabaoth”, “Hossanna in Excelsis”, “Qui venit in nomine Domini”) ou polifónicos (“Glorificamus Te”, “Propter magnam gloriam tuam”, “Filium Dei Unigenitum”, “Et incarnatus est”), mais do que imitativos (“Gratias agimos tibi”). Contudo, é nas partes solistas que se registam evoluções expressivas surpreendentes, proféticas antecipações estilísticas. O duo soprano-contralto, “Qui tollis peccata mundi”, introduzido pela mesma nota melódica que precede a oração de Desdémona em Otello, inicia de modo submisso e distanciado, acompanhado pelo suave arpejo do piano, e não desdenha as instâncias de uma progressão convencional alinhada com as dissonâncias dos adiamentos. Uma modulação brusca de dominante tónica encaminha-

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-o numa direcção vagamente salonnière que não teria desagradado ao próprio Liszt, secreto inspirador também de um final em Maggiore que faz ostentação de modulações desconhecidas ao Rossini operista, mas não ao infatigável experimentador dos Péchés

de Vieillesse. O trio “Gratias agimos tibi”, para contralto, tenor e baixo, esconde, sob uma forma arcaica imitativa, uma graça terna e uma encantadora serenidade, valorizadas pelo acompanhamento simples, embora fortemente expressivo, do piano solo. As harmonias adornadas de cromatismos inesperados revelam um Rossini muito atento à captação das actualizações de uma linguagem musical em profunda transformação. Quando o canto das três vozes floresce em rápidas quartinas de dezasseis avos, não é o espírito belcantístico que o move, mas o propósito de elevar às alturas um voo de almas liber tas. A ária do tenor “Domine Deus” (que recorda a outra, celebérrima, do Stabat Mater, “cujus animam gementem”) adscreve-se a um género particular da religiosidade laica, impropriamente definida como teatral. O seu ímpeto único, rico em impulsos apaixonados, constitui, sem dúvida, um modo não usual de invocar a divindade; contudo, a sinceridade da homenagem e a corporalidade terrena da profissão de fé não podem deixar-nos indiferentes. Considerações análogas são válidas para a imponente ária do baixo “Quoniam tu solus sanctus”, de tais proporções que fazem duvidar da coerência do adjectivo Petite aplicado à presente Missa. Esta ária também pode ser relacionada com a sua equivalente “Pro peccatis suæ gentis”, de Stabat Mater: a nobre declamação inicial expande-se com fervor, animada por expressões que sublinham onomatopaicamente a gloriosa ascensão do Salvador (“Tu solus Sanctus, tu solus Dominus, tu solus Altissimus”) até à explosão do nome bendito, “Jesu Christe”. As altera ções contínuas de cor das modulações harmónicas e enarmónicas são mais um testemunho da imaturidade estilística alcançada pelo mestre nos seus últimos anos de vida. O andantino da soprano, “Crucifixus etiam pro nobis”, não conserva traços do canto belcantístico e recorda a morfologia do canto verdiano de Otello, saltando com facilidade o processo evolutivo que o conduziu até ali: modulações inquietas, ajudadas por progressões originais que reafirmam o carácter extraordinário deste compromisso e uma aura de romantismo, uma frescura de inspiração, uma tensão lírica, uma comovida participação, que deslocam para diante os limites da estética de Rossini. A longa intervenção da soprano, “O salutaris hostia”, acrescida de um segundo momento, inspira-se em antigas reminiscências de Cantus firmus para alcançar puríssimos êxitos líricos, onde traça emoções recorrendo a preciosos acordes, modulações enarmónicas

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e progressões elaboradas que, sem a sua intrínseca eloquência expressiva, poderiam parecer rebuscadas. O “Agnus Dei” que conclui a Missa, confiado à voz predilecta da contralto, oferece a Rossini a ocasião para uma página de impacto emocionante, decerto uma das melhores. Um canto angustiado que se integra magnificamente no acompanhamento imposto na dramática sucessão de acordes rebatidos. Entrega-se à contralto, de forma cada vez mais veemente, a tripla oração do “Miserere nobis” e ao coro a dócil súplica do “Dona nobis pacem”. Seguidamente, solista e coro juntam as suas vozes para renovar uma invocação de paz que omite o respeito próprio de uma súplica e a transforma em desesperada imploração, em obstinada e sincera reinvidicação de um direito irresignável.

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[AD LITTERAM] Kyrie

Kyrie

Kyrie eleison.

Senhor, tem piedade de nós.

Christe eleison.

Cristo, tem piedade de nós.

Kyrie eleison.

Senhor, tem piedade de nós.

Gloria

Glória

Gloria in excelsis Deo

Glória a Deus nas alturas

et in terra pax hominibus bonæ voluntatis.

e paz na terra aos homens de boa vontade.

Laudamus te, benedicimus te,

Louvamos-Te, bendizemos-Te,

adoramus te, glorificamus te.

adoramos-Te, glorificamos-Te.

Gratias agimus tibi propter magnam gloriam

Damos-Te graças pela grandeza da Tua glória.

tuam.

Senhor Deus, Rei do céu,

Domine Deus, Rex cœlestis,

Deus Pai omnipotente.

Deus Pater omnipotens.

Senhor Jesus Cristo,

Domine Jesu Christe,

Filho Unigénito.

Fili unigenite.

Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho do Pai,

Domine Deus, Agnus Dei, Filius Patris,

Tu que tiras os pecados do mundo,

qui tollis peccata mundi, miserere nobis;

tem piedade de nós;

Quoniam tu solus Sanctus,

Porque só Tu és Santo

tu solus Altissimus,

só Tu és o Altíssimo,

tu solus Dominus.

só Tu és o Senhor.

Cum Sancto Spiritu in gloria Dei Patris.

Com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai.

Amen.

Ámen.

Credo

Credo

Credo in unum Deum,

Creio num só Deus.

factorem cæli et terræ,

criador do céu e da terra,

visibilium omnium et invisibilium.

de todas as coisas visíveis e invisíveis.

Et in unum Dominum Jesum Christum,

E num só Senhor, Jesus Cristo,

Filium Dei unigenitum,

Filho unigénito de Deus,

et ex Patre natum

nascido do Pai

ante omnia sæcula.

antes de todos os séculos.

Deum de Deo, lumen de lumine,

Deus de Deus, luz de luz,

Deum verum de Deo vero,

Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,

per quem omnia facta sunt.

por quem todas as coisas foram feitas.

Qui propter nos homines et propter

O qual, por nós homens

nostram salutem

e pela nossa salvação,

descendit de cœlis.

desceu dos céus.

Et incarnatus est de Spiritu Sancto

E encarnou, pelo Espírito Santo,

ex Maria Virgine,

na Virgem Maria,

et homo factus est.

e tornou-se homem.

Crucifixus etiam pro nobis,

E, por nós também, foi crucificado,

sub Pontio Pilato,

sob Pôncio Pilatos,

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passus et sepultus est,

sofreu e foi sepultado.

et resurrexit tertia die,

E ressuscitou no terceiro dia,

secundum Scripturas,

conforme as Escrituras.

et ascendit in coelum,

Subiu ao céu

sedet ad dexteram Patris.

e está sentado à direita do Pai.

Et iterum venturus est cum gloria,

E voltará novamente, cheio de glória,

iudicare vivos et mortuos,

para julgar os vivos e os mortos

cujus regni non erit finis.

e o Seu reino não terá fim.

Et in Spiritum Sanctum,

E no Espírito Santo,

Dominum et vivificantem

Senhor e fonte de vida,

qui ex Patre Filioque procedit.

que procede do Pai e do Filho,

Qui cum Patre et Filio

que, com o Pai e o Filho,

simul adoratur et conglorificatur,

é adorado e glorificado,

qui locutus est per Prophetas.

e que falou através dos Profetas.

Confiteor unum baptisma

Reconheço um só baptismo

in remissionem peccatorum.

para remissão dos pecados.

Et expecto resurrectionem mortuorum.

E espero a ressurreição dos mortos.

Et vitam venturi sæculi.

E a vida eterna.

Amen.

Ámen.

Sanctus

Santo

Sanctus

Santo,

Dominus Deus Sabaoth.

é o Senhor Deus dos exércitos.

Pleni sunt caeli et terra gloria tua.

O céu e a terra estão cheios da Tua glória.

Hosanna in excelsis.

Hossana no mais alto dos céus.

Benedictus

Bendito

Benedictus qui venit in nomine Domini.

Bendito o que vem em nome do Senhor.

Hosanna in excelsis.

Hossana no mais alto dos céus.

Salutaris

Ó Vítima Salvadora

O salutaris Hostia,

Ó Vítima Salvadora,

quae caeli pandis ostium:

que dos céus nos abres as portas,

bella premunt hostilia,

duros combates nos atormentam,

da robur, fer auxilium.

dá-nos a força, traz-nos o auxílio.

Agnus Dei

Cordeiro de Deus

Agnus Dei,

Cordeiro de Deus,

qui tollis peccata mundi,

que tiras os pecados do mundo,

miserere nobis.

tem piedade de nós.

Dona nobis pacem.

Dá-nos a paz. Tradução: Padre Lourenço Ferreira e José António Falcão

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Isabella Gaudí Soprano

Nascida em Barcelona, iniciou os estudos musicais em 2003, quando frequentava a Universitat Pompeu Fabra, formando-se sob a orientação de Raquel Pierotti, Raúl Giménez, Francesca Roig, Luciana Serra, Mariella Devia e Jaume Aragall. Tem actuado em Espanha, Itália, França, Alemanha, Bélgica, Colômbia, Estados Unidos e Japão, em teatros como o Real de Madrid, o Gran Teatre del Liceu de Barcelona, o Palau de la Música, Teatro Campoamor, Teatro de la Zarzuela, L’Auditori, Théâtre Roger Barat, Vlaamse Opera, Teatro Rossini (Pesaro), Teatro Olimpico (Vicenza) e no Caramoor Festival, entre outros, sob a batuta de directores como Alberto Zedda, Michael Boder, Pablo Heras-Casado, Will Crutchfield, Guillermo García Calvo, Antonio Fogliani, Jean-Luc Tingaud, Guerassim Voronkov e Giovanni Battista Rigon, ou com directores cénicos como Guy Joosten, Olivier Py, Nicola Berloffa, Rafael de Castro, Michal Znaniecki e Rafel Duran. Ganhou os primeiros prémios no Concurso Internacional de Logroño e no Concurso Lírico Premià de Mar. A versatilidade da sua voz permite-lhe abordar diversos papéis de diferentes compositores com muita facilidade. Entre as interpretações que realizou, destacam-se La Contessa di Folleville (Il Viaggio a Reims ), Julieta (El Público ), Frasquita (Carmen ) e Gerhilde (Die Walkure ).

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Cecilia Molinari Meio-soprano

Nascida em 1990, estreou-se na ópera como Zaida (Il Turco in Italia) no Teatro Comunale de Treviso, em Janeiro de 2015. Já fizera o début no Teatro La Fenice, de Veneza, com o concerto do Spirit of Music of Venice Festival, em honra de Lorenzo Regazzo. Integrou, em 2015, a Accademia Rossiniana, interpretando Marchesa Melibea (Il Viaggio a Reims), no Rossini Opera Festival. Em 2013, obteve o International Bel Canto Prize “Rossini in Wildbad”; e, no ano seguinte, o Luciano Pavarotti Prize e o Grande Prémio da Gian Battista Voitti International Music Competition.

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Sunnyboy Dladl Tenor

Nasceu em Piet Retief, na província de Kwazulu-Natal (República da África do Sul). Estudou música na University of Cape Town e canto com Sidwell Hartmann no South Africa College of Music. Durante as temporadas de 2012-2013 e 2013-2014, foi membro do International Opera Studio, da Ópera de Zurique; entre os papéis que interpretou, na sala principal dessa instituição, salientam-se Arturo (Lucia di Lammermoor ), Dorvil (La Scala di Seta ), Nick (La Fanciulla del West ), Junger Offizier (Die Soldaten and Kutscher ) e Vorarbeiter (Lady Macbeth of Mtsensk ). Durante este período, completou a formação na Universidade de Zurique e estudou canto sob a orientação de Scot Weir. Posteriormente, foi Paolino (Il Matrimonio Segreto ), na Ópera de Zurique; Belfiore (Il Viaggio a

Reims ), na Accademia Rossiniana no Rossini Festival, de Pesaro; Count Almaviva e Basilio e Curzio (Le Nozze di Figaro ), respectivamente nas Óperas de Estugarda e Wiesbaden Opera e no Theater an der Wien, sob a direcção de Marc Minkowski. Em 2012, estreou-se nos Estados Unidos da América com Messiah, de Handel (National Symphony Orchestra, Washington, sob a direcção de Rolf Beck), sendo convidado a cantar o Requiem, de Mozart, no ano seguinte, com Christoph Eschenbach. Foi muito apreciada a sua interpretação da

Missa Sacra in C Min, de Schumann, no Schleswig-Holstein Festival, sob a direcção de Christopher Hogwood.

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Pablo Ruiz Barítono

Nascido em Huelva, em 1985, iniciou os estudos musicais no Teatro Lírico de Huelva e no Conservatorio Profesional de Sevilla. Ingressou seguidamente na Escuela Superior de Canto de Madrid, licenciando-se na especialidade de Teatro Lírico (Ópera). Aperfeiçoou os conhecimentos com Alberto Zedda, no Rossini Opera Festival, de Pesaro; com Renato Bruson, na Accademia Chigiana, de Siena; e com Giulio Zappa, no Opera Estudio, de Tenerife. Foi galardoado no Concurso da Associazione Lirica e Concertistica Italiana de 2015. Obteve o 3.º e o 2.º Prémios no Concurso Internacional de Canto Ciudad de Logroño, respectivamente em 2012 e 2013. Recebeu o Prémio à Melhor Interpretação de Zarzuela no Concurso Internacional de Canto de Colmenar Viejo, em 2013. Interveio em óperas como Andrea Chénier (Teatro Real, Madrid); Il Viaggio a Reims (Rossini Opera Festival); Don Pasquale (Teatro Donizetti, Bérgamo, etc.); Werther, La Cenerentola e La Bohème (Auditorio de la Ópera de Tenerife); Rigoletto e Madama Butterfly (Auditorio Baluarte, Navarra);

Il Barbiere di Siviglia e Un Ballo in Maschera de Verdi (Teatre Principal, Maó); Lohengrin (Auditorio Príncipe Felipe, Oviedo); Dido and Aeneas e The Fairy Queen (Teatro de la RESAD, Madrid). Cantou Eljah, de Mendelssohn, Nona Sinfonia, de Beethoven, Missa da Coroção e Requiem, de Mozart, e Ein Deutsches Requiem, de Brahms, com o Orfeón Donostiarra (Auditorio Nacional de Madrid); Petite Messe Solennelle, de Rossini, e A Criação, de Haydn (Théâtre Wolubilis, Bruxelas). Tem actuado no International Festival of Spanish and Latin American Music (Kansas City).

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Coro de Cámara de El Molino

O Coro de Cámara de El Molino, dirigido por María Eugenia Durán, é um dos projectos que emergem de uma inovadora escola de música e dança do centro de Madrid: El Molino Escuela de Artes. Conta com o apoio de cantores de renome, como Ariel Hernández ou Amaro González, que ensinam técnica vocal, tanto a nível individual como a nível de grupo. El Molino nasceu com a certeza de que amar a música, a dança ou o teatro e ter a oportunidade de praticá-los, sem que para isso importem o grau de experiência, a idade ou o talento, contribui, em primeiro lugar, para melhorar a auto-estima e a felicidade das pessoas; em seguida, dos pequenos grupos; e, por fim, das próprias comunidades. Destas fontes bebe o Coro de Cámara de El Molino: da capacidade de desfrutar, da alegria, do labor meticuloso, do esforço colectivo, do gosto pelo estudo, da vontade de ensinar e aprender. Isto não é visto como um sacrifício, mas como um investimento, quando um meticuloso trabalho de técnica vocal e análise das partituras produz tanto prazer. Formado por 20 cantores de várias nacionalidades, alguns dos quais se dedicam profissionalmente à música, outros estudam um instrumento ou canto em conservatórios, outros ainda descobriram uma tal paixão por estes agrupamentos vocais que aprimoraram a sua formação ao ponto de poderem partilhar estas vivências musicais em partes iguais.

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Alberto Zedda Direcção musical

Nascido em Milão, em 1928, é uma das grandes figuras da música internacional dos nossos dias. Realizou estudos humanísticos e musicais na cidade natal, complementados pela formação na Escola de Paleografia Musical de Cremona. Em 1957, a vitória no Concurso Internacional de la RAI para directores de orquestra abriu-lhe as portas de importantes instituições, tanto em Itália como no estrangeiro. Desenvolveu uma intensa actividade operística: La Scala, San Carlo, La Fenice, Massimo de Palermo, Comunale di Bologna, Regio de Torino, Covent Garden, Marinski, Viena, San Francisco, Los Angeles, Paris, Helsínquia, Bergen, Moscovo, Berlim, Munique, Hamburgo, Amesterdão, Praga, Varsóvia, Telavive, Lisboa, Barcelona, Madrid, Sevilha, Oviedo, Bilbau, Corunha, etc. Gravou um vasto conjunto de discos de música sinfónica, de câmara e ópera. Foi professor de Prática Orquestral no Conservatório de Piacenza, de Filologia Musical Aplicada na Academia de Osimo e de História da Música na Universidade de Urbino. Realizou edições críticas de óperas, oratórias e cantatas, com particular incidência em Rossini, a primeira metade do século XIX e o repertório protobarroco. Da sua obra escrita, salienta-se o livro

Divagazioni Rossiniane (2012). Membro do Comité Editorial da Fondazione Rossini, foi director do repertório italiano na New York City Opera; director musical do Festival della Valle D’Itria, de Martina Franca; assessor artístico do Rossini Opera Festival, de Pesaro, e do Festival Mozart, da Corunha; director artístico do Festival Barocco, de Fano, do Teatro Carlo Felice, de Génova, e do Teatro alla Scala, de Milão. Actualmente, dirige o Rossini Opera Festival e a Academia Rossiniana, de Pesaro.

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Concerto IV

FERREIRA DO ALENTEJO

16 de Abril 21H30

PELO MAR, PELO SERTÃO: MÚSICA DO BRASIL NAS ÉPOCAS DO REINO UNIDO E DO IMPÉRIO Sigismund von Neukomm [1778-1858] L’Amoureux. Fantaisie pour Pianoforte et Flûte sur un Thème Brésilien José Maurício Nunes Garcia [1767-1830] Duas Modinhas Sigismund von Neukomm O Amor Brasileiro Anónimo (1817) Lundum Modinhas Luís Álvares Pinto [1719-1789] Te Deum

XVIII-21/Le Baroque Nomade Soprano Cyrille Gerstenhaber Meio-soprano Sarah Breton Tenor Vincent Lièvre-Picard Barítono Emmanuel Vitorsky Órgão e piano Mathieu Dupouy Flautas, serpentão e direcção musical Jean-Christophe Frisch

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FERREIRA DO

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção

ALENTEJO

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

À memória de Armando Sevinate Pinto

Tudo indica que as origens da igreja de Santa Maria, matriz de Ferreira do Alentejo, ascendem à época da Reconquista. Terá sido erguida sob a égide da Ordem de Santiago, à qual a vila foi doada, por D. Sancho II, em 1233. Porém, a primeira referência a seu propósito surge no rol dos contributos, as “décimas”, das igrejas portuguesas, em 1320-1321; devia pagar 800 libras, “pela parte que nela tem o Mestre de S. Tiago”, mais 90 libras pela vigairaria da dita igreja e 80 libras pelo temporal do dito lugar de Ferreira”. A soma de tudo era considerável, o que evidencia a importância da terra – no âmbito do Campo de Ourique, só as matrizes de Santa Maria, de Alcácer do Sal, e de Santiago do Cacém pagavam mais. Posteriormente, foi sede de uma das mais ricas comendas da milícia espatária. Esta igreja encontrar-se-ia implantada, decerto, no sítio ocupado pela actual, à ilharga de um velho caminho (depois, a estrada real, cujo traçado sofreu grandes ajustes durante a segunda metade do século XIX) que cruza a vila no sentido nascente-poente, ligando Beja e o âmago do Alentejo à orla litoral. Com o incremento da população, em particular na segunda metade do século XV, acabou por tornar-se exígua, o que levaria à sua ampliação, perto de 1500 – ou pouco depois. Já então tinha, como filiais, três lugares de culto: a capela curada de São Sebastião de Figueira (dos Cavaleiros), distante cerca de 9 km; e as ermidas de São Sebastião e de São Vicente, nas imediações da localidade. Sucessivas visitações da milícia santiaguista ao longo do século XVI, transcritas por Júlio Marques de Vilhena, permitem perspectivar a evolução do edifício e do acervo que consideramos. Revela-se particularmente elucidativa a visita levada a cabo, em 1510, por D. Jorge, duque de Coimbra e mestre das Ordens de Santiago e Avis. O seu meticuloso texto descreve uma igreja de planta escalonada, com capela-mor, nave,

Monumento funerário de João de Sousa e de Branca de Ataíde [pormenor]. Século XVI, inícios. Ferreira do Alentejo, igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção. >

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sacristia e alpendre; era “cuberta de telha cõ suas cimtas de caal”, estava “toda ameada d arredor e cayada” e tinha “amtre as ameas em rroda […] seis cubelletes ameados e cayados”. Isto corresponde a uma tipologia característica do Gótico Final, que se prolongou, entre nós, nas décadas iniciais do século XVI. No que diz respeito a dimensões, a mole construída não se afastava da média das igrejas matrizes existentes em povoações de similar categoria da nossa região: a capela-mor media 7,5 varas (ca. 8,3 m) de comprimento por 5 varas e dois terços (ca. 6 m) de largura; a nave, 13 varas (ca. 14,3 m) por 7 varas e um terço (ca. 8 m); e a sacristia, quadrada, 2,5 varas (ca. 2,8 m) por outro tanto. Porém, a riqueza ornamental, particularmente no que concernia ao interior, mostrava-se notável, denotando um esplendor pouco vulgar em tais lugares de culto. A capela-mor estava coberta por uma “abobada mujto bem lavrada”, com os “pegões (pilares) e arcos que fecham em cima (arcos torais) todos de pedraria”, sendo as “junturas de todallas pedras delles […] douradas e os arcos […] todos pimtados de pintura de jaspe”. Em contrapartida, o “arco gramde da emtrada della”, o arco cruzeiro, possuía “esteos de marmore cõ seus capitees muyto bem lavrados e dourados”; era “todo de pedraria[,] pintado de collores de jaspe e todas as jumturas das pedras douradas asy em fundo como em cima”. Muito forte em termos visuais, a complementaridade entre as superfícies revestidas a ouro e as que imitavam os efeitos da pedra (algo ainda visível, quanto ao segundo aspecto, em Ferreira, na igreja da Misericórdia) originaria um ambiente cheio de vibração. Quer o frontal, quer as ilhargas do altar-mor encontravam-se revestidos por “azulejos boons e finos”; seriam importados de Sevilha, como indicam os fragmentos que apareceram durante as obras efectuadas na igreja, em 2013. Sobre a mesa do sacrifício, “hum retavollo muyto rico e muyto boom”, tendo ao centro a imagem, em madeira, de “nossa Senhora […] com o menino Jhesu no collo[,] pintada com sua coroa dourada na cabeça[,] muyta devota”; o Infante ostentava uma coroa idêntica. À direita, uma pintura “de matiz” (combinação de várias cores num todo, criando delicados efeitos) figurava “nossa Senhora com o menino Jhesuu ante sy como quando o ella pario”, isto é, a Adoração da

Virgem; à esquerda, “nossa Senhora do pranto”, a Lamentação sobre Cristo Morto; no meio, sotaposta à imagem principal, “huma charola ou capitel que chega atee cima do retavollo todo dourado e mujto rica”; tinha à dextra e à sinistra, respectivamente, o “amjo gabriell” e “nossa Senhora da saudação”. Rematava o conjunto “huu guarda poo de madeira pimtado d azull e com estrelas d ouro”. Além disso, “a bordadura do dito retavollo” era “toda dourada e mujto rica”, dispondo de “duas corrediças de canal delegado com que se cobre”, ou seja, cortinas que, em determinadas ocasiões do ano

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litúrgico, podiam deslizar e ocultar a parte superior do altar. Em suma, um políptico ao gosto proto-renascentista, integrado numa estrutura de talha ainda concebida à maneira do Gótico Final. O sacrário, talhado em pedra e aplicado na parede do lado do Evangelho, obedecia a uma linguagem análoga. Tinha “portas de tavoado pimtadas d ouro e d azull e seu ferrolho com sua fechadura e chave e […] d arredor todo lavrado de maçonarya de pedra toda dourada e quebrada com sua bordadura de rrayos de soll d ouro e d azull”, o que tornava “muyto rico e muyto bem obrado”; por dentro, era “pintado d azull e d estrelas douradas”. No interior, sobre uma pedra de ara, guarnecida por corporais, guardava-se a custódia, em prata, com o Santíssimo Sacramento; era de “pee […] coadrado e lavrado de folhagem e o moete [?] do meyo isso mesmo lavrado de folhagem e a aste quadrada e a copa de cima rredonda de feição d espelho com duas vidraças de lavores dourados e em cima de todo huua cruzeta dourada”. Atribuiu-se-lhe origem remota: “he muyto antiga na dita jgreija e nom ha hijj memoria de quem a deu”. De acordo com os elementos tipológicos e decorativos mencionados, seria um ostensório característico do ocaso da arte gótica. Perto do sacrário, “huma alampada acesa muito booa”. Quanto ao “corpo” (nave) do edifício, apresentava “tres arcos fechados em cima (arcos torais) de pedra e cal e d alvenaria”, sendo “madeirada […] e […] toda cuberta do lintel de tavoado de pinho bem lavrado”, isto é, com um forro. Havia “dous altares emcostados ao arco da ousia” – portanto, colaterais. No “da parte direita” (Evangelho), estava “hum retavollo de tavoado com seu guarda poo todo pintado e no meyo a jmajem de samtiago a cavallo”, ou seja, Santiago Matamouros, tema clássico nas igrejas da Ordem de que era patrono; no “da parte esquerda” (Epístola), “outro retavolo de pao (madeira) com seu guarda poo bem pintado da emvocaçam do espiritu santo sobre os apostolos”, segundo correspondia à capela do Espírito Santo – uma devoção generalizada em finais da Idade Média –, cuja confraria acabara por autonomizar-se, fundando ermida própria, pouco afastada da matriz. Junto à “porta travessa (lateral) da parte do sull”, erguia-se “huu pulpetto de pedraria muyto bem lavrado cõ sua escada d aluenarias”. “Acerqua (junto) da porta prmcipall”, ficava “ha pia de bautiçar[,] a quall he toda de huua so pedra muyto bem lavrada”. Tanto a porta da frontaria como as laterais eram “de pedraria bem lavradas”. Diante da portal existia “huu alpendre alto e ladrilhado com cimquo arcos d alvenaria e seus peitoris e degraus”, o qual era “olivellado (dotado de forro, como no interior) e bem cuberto de telha”. Outrossim “acerca da porta primcipall”, “da parte dereita[,] comtra o norte”, havia “huu campanario grande e boo, de pedra e caal[,] cõ dous sinos meaãos e de boa gramdura”. Circundava a igreja um adro espaçoso, descrito pelo visitador com precisão.

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“Fez e mandou fazer” todas estas obras João de Sousa, comendador de Ferreira, “aa sua propria custa e despesa[,] no que mostrou teer lembrança de sua allma e temer a deus pollas fimtas e rendas da dita jgreija que sempre levou”. Como se podia já intuir de reiteradas menções elogiosas aos trabalhos que constam da visitação, D. Jorge salientou tratar-se de um caso verdadeiramente modelar de cumprimento dos deveres associados à posse da comenda, algo que nem sempre ocorria em situações análogas: “cujo exempro os outros comendadores deviam seguyr e correjer as igreijas como este fez e nom as leixar jazer destroidas[,] comendo os fruytos e remdas dellas em grande dano e perigo de suas allmas[.] E pollo elle tambem fazer alem do merecimento que amte Deus terá para remissam de seus pecados he dino de muyto louvor amtre os presentes e de honrada e louvada memoria amtre os que depois vierem”.

João de Sousa [S ca. 1425 – X 1515], 4.º senhor de Gouveia, figura grada das cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, celebrizou-se pelos serviços prestados à Coroa, mormente em Castela e África. Moço de câmara do infante D. Fernando, 1.º duque de Beja, lutou, como capitão de ginetes, numa frustrada tentativa, a terceira empreendida pelos portugueses, de capturar Tânger (1464); na batalha de Toro, entre as hostes de D. Afonso V e as dos Reis Católicos, durante a luta pela sucessão ao trono castelhano (1476); na conquista de Granada, engrossando as forças ao serviço do rei Fernando de Aragão (1482); e em nada menos do que 18 pelejas em Marrocos, mormente algumas famigeradas operações de Anafé, Alcácer Ceguer, Ceuta e Arzila. Conselheiro de D. Afonso V e cavaleiro da Ordem de Santiago, teve nesta, além da comenda de Ferreira, as de Santa Maria da Represa e de Alvalade, com as rendas de Colos. D. Manuel outorgar-lhe-ia, em 1496, uma tença de 200 000 réis, como “pago e galardão” pelos serviços prestados à Coroa. Possuidor de cabedais em abundância, o longevo comendador, ao abeirar-se o fim de uma aventurosa vida, dispôs os meios necessários para erguer uma obra de vulto que, como referiu o mestre de Santiago, lembrando conceitos gratos à mentalidade coeva, lhe garantisse o serviço da alma e lhe perpetuasse a memória. Aquando da visitação, andaria pelos 85 anos. Não faltam, na história das ordens militares, outros exemplos de empresas artístico-devocionais similares, praticadas pelos comendadores; um caso a ter em conta, mais tardio, foi o de outro chefe militar, igualmente activo no teatro bélico africano, D. João de Mascarenhas [S 1470 – X 1555], comendador da vila santiaguista de Mértola, que iniciou em 1532 a ambiciosa reedificação da igreja de Nossa Senhora de Entre-Ambas-as-Águas, matriz desta localidade, juntando-lhe a

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encomenda de retábulos e outras alfaias – obras só terminadas, após a sua morte, pelo filho, D. Fernão Martins de Mascarenhas [S ca. 1520], no terceiro quartel do século. O acervo móvel da igreja de Ferreira não destoava da pujança arquitectónica e ficava a dever-se também, em larga medida, ao comendador e respectiva família. Sobressaíam as alfaias de ourivesaria, maioritariamente oferecidas ora por João de Sousa, ora pelo concelho, sendo a mais destacada, a cruz paroquial, uma peça emblemática da comunidade, sufragada por ambos. Havia também um razoável pecúlio de “vestimentas e ornamentos”, entre os quais exemplares de alto preço, com tecidos da Flandres e do Oriente. Alguns foram doados pelo comendador; outros, pela filha mais nova deste, Joana de Ataíde [S ca. 1470], esposa de Luís de Brito Nogueira [S ca. 1550]; outros ainda, por populares. Completavam tal património utensílios de metais não-nobres; João de Sousa ofertou vários de arame – uma liga de latão, ferro ou cobre –, incluindo as bacias colocadas sob as lâmpadas. Era também ele quem fornecia o azeite de alumiar o Santíssimo. “Dentro na dita igreija” estava sediada a Confraria de Nossa Senhora, “a qual ordenaram alguus bõos homees por devoção”, com a obrigação de celebrar “cada sábado huua misa de Nosa senhora a qual se disse sempre e diz”. Servia como mordomo, à data, Fernão Ledo. Este informou que a instituição não possuía quaisquer alfaias e vivia em exclusivo das esmolas dos confrades, registadas em livro próprio. Porém, administrava alguns bens, deixados a troco de ser perpetuamente rezado, na capela da irmandade, um certo número de missas por alma dos doadores, em dias de sua particular devoção. As visitações seguintes permitem acompanhar com pormenor a evolução da matriz e dos bens a ela pertencentes. Em 1534, os visitadores Álvaro Mendez, cavaleiro, e Afonso Rodrigues, prior da igreja de São Pedro, de Palmela, acharam o edifício em bom estado, com excepção do telhado, que, “mal corregido”, permitia que a chuva entrasse “per alguas partes”. Registavam-se inovações dignas de nota. Uma foi a capela baptismal, “feita d abobeda fechada com huas grades […] e nella esta huu altar metido na parede da parte do levante homde esta pimtado ho bautismo de Christo de matiz; achava-se “ladrilhada e acafelada e apincelada de fora e de dentro e toda ameada ao redor”. Outra, a capela da “Resurreiçã de Nosso Senhor”, que ficava “jumto com ho altar do cruzeiro da parte do evangelho”; era “fechada d abobeda” e tinha “as chaves e represas de pedraria e ho arco […] armado sobre huus marmores de pedra com suas varas e capitees”; o altar, guarnecido de azulejos, possuía “huu retavollo da resurreiçam quando Nosso senhor pareçeo a Madalena muito bem pimtado d olio”. Esta capela tinha sido instituída por um morador de Ferreira, Álvaro Fernandes, já falecido, que a deixou bem patrimoniada, com a modesta obrigação anual de uma missa em benefício da sua alma, “aa homra do Sallvador”. Por alvará do mestre D. Jorge, dois

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outros moradores, os irmãos Pedro Eanes Pixeiro e João Pixeiro, foram autorizados a levantar uma capela própria, no espaço fronteiro a esta e de traça análoga. Para tal, assumiram uma série de obrigações, como a de mudarem a porta lateral aí existente e a escada do púlpito, o que ficou assente num instrumento de obrigação, datado do mesmo ano de 1534. O espólio de alfaias litúrgicas registava também novas aquisições – uma constante ao longo do século. Prosseguiam, mesmo após o desaparecimento de João de Sousa, as ofertas de Joana de Ataíde, certamente grande devota da Virgem: “huu calez de prata dourada per partes e lavrado de ffeguras pello vaso muito bem obrado”, peça de feição renascentista; “dous fromtais […] huu do alltar moor e outro pera huu dos altares de cetim carmesim de Bruges afogueados de cetim bramco fforrado de pano d estopa branco”; particular sumptuosidade assumia “hua vestimenta cortejada de brocado de pello e de cetim carmesim com savastro de borcado caso (raso?) e franjado de retros verde forada de bocaxim preto de todo comprida”, tendo “detras no sovastro […] as armas de seu pay Joam de Sousa” – assinalando os visitadores que, por “ser boa e riqua mandamos que se não diga misa com ella somente aas festas de Jhes u Christ o [e] de Nossa Senhora”. Também um prior da igreja, Afonso Limão, oferecera “hua vestimenta de pano da Judea azull com huũs passarinhos de fio com savastro de borcado […] de todo comprida”; o estatuto do doador era bem distinto do daquela figura de alta estirpe, pois a peça, sem dúvida preciosa, encontrava-se “ja usada”. Das várias determinações que os visitadores impuseram ao recebedor da fábrica da matriz que cumprisse, sob pesadas multas, no prazo de três meses, algumas dizem respeito a obras. Verificando que “na dita ygreja chovia asy na capella como por outras partes” e que “ho forro do corpo da ygreja […] estava muito daneficado por partes pella agua que chovia por elle”, ordenou-se que “mande telhar a dita ygreja muyto bem toda emsopada em cal e asy a samcristia e a capella da pia de bautizar em maneira que todo fique muyto bem comçertado” e “forrar a dita ygreja pellas partes que mais neçesario for de maneira que seja corregida de forro e telhado”, para o que compraria seis dúzias de “tavoado de castanho”. Como “pella escada do campanario os moços sobiam […] e danavam o telhado da ygreja”, ordenou-se que “mande fazer hua porta na dita escada […] a altura que for necesario”, a qual começaria “do pee da parede da escada sobre o qual botareo se ha d armar ho portall fechado com ha capella da pya de bautizar […]”, e teria “huu cano por homde lamçe agoa fora”; a porta seria de “boom tavoado de castanho com huu ferrolho[,] fechadura e chave para sempre estar fechada e desta maneira ficara o telhado sem lhe ser feito dano”. Junto do campanário, a água “fazia hua cova na parede”; ordenou-se que a mandasse entulhar “d argamasa de maneira

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que fique muito bem corregido e se dee saida a agoa que não faça dano”. Finalmente, visto que “a porta primçipall não tinha abito da ordem de Samtiago”, segundo determinava a regra da milícia, ordenou-se que a mandasse colocar, mas no prazo de um mês, o que mostra ser lacuna ainda mais grave. Túlio Espanca aludiu a uma visitação de 1544, que não consta do conjunto de documentos analisado por Marques de Vilhena, segundo a qual o edifício aguardava a finalização de obras, cujo desfecho se ia arrastando: sem cobertura e com o pavimento mal ladrilhado, não reunia condições para o culto. Breves anos decorridos, ainda segundo o mesmo investigador, houve novas mudanças: fora instalado um lavabo na sacristia e erguera-se o baptistério, como determinavam as orientações do Concílio de Trento, mas continuava a não existir alpendre, demolido por ordem do comendador (para remodelação?), e faltavam as grades dos altares do cruzeiro. Isto motivava críticas do povo, e o visitador deu-lhes sequência, ordenando que fosse tudo posto de novo, a expensas do prior, talvez por este não ter sido tão zeloso como lhe competia. Algumas pedras do lavabo e do púlpito, muito partidas, foram achadas, em 2012, servindo de entulho, sob os degraus da escadaria do lado do sul. Por ocasião da visitação de 1554, a igreja já se denominava “Santa maria da Assumpsão”, título que reflecte a especialização do culto mariano. É, mais uma vez, descrita com minúcia, inclusive no tocante aos sinais de degradação entretanto acentuados. O retábulo-mor tinha sido modificado e ostentava “cinquo painéis”, surgindo o “emcoroamento ja velho e mal dourado”; além das figurações mencionadas, aparece agora referida, no banco, “a cea do senhor”, a Última Ceia. Quanto ao baptistério, salientou-se que tinha planta quadrada e era “d abobeda d alvenaria de sinquo chaves e represas (mísulas) de pedra d alvito”. A nave encontrava-se “mal aladrilhada […] por causa das sepulturas”. Do lado da Epístola, fronteira à capela da Ressurreição, ficava outra capela, com “hum altar d alvenaria forrado d azulleiios” e “sobre elle hum painel com a pintura da purificação”. Ocorriam vários problemas de degradação: as portas do portal principal, de castanho, estavam “muito veelhas”; o alpendre, com quatro arcos, não tinha a cobertura, notando o visitador que devia ser consertado “porque a igreia he pequena e a gemte muita”. Em dias de grande afluência, os fiéis que não cabiam na nave assistiam da galilé aos ofícios. A visitação de 1565, a cargo de D. Rodrigo de Meneses, fidalgo da casa d’el-rei, comendador de Cacela e da igreja de São Salvador, em Santarém, um “dos treze”, os conselheiros da mesa mestral da Ordem, e João Fernandes Barregão, prior da igreja de Nossa Senhora do Castelo, de Alcácer do Sal, reitera a impressão de que, à míngua de trabalhos especializados, o edifício se degradava inexoravelmente. Com efeito, o madeiramento da nave estava “per muytas partes […] quebrado”; a imagem de Santiago pintada no

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painel do retábulo da sua capela apresentava-se “muyto velha e guastada do tempo por muytas partes”; o altar da capela do Espírito Santo tinha “a pintura ia muyto vella e gustada do tempo por muytas partes”; as grades do cruzeiro encontravam-se “muyto velhas”, e os altares colaterais, “quebrados por muytas partes”; o campanário mostrava-se “muyto danificado”, tal como o baptistério contíguo; nesta capela e em outros pontos, havia telhas partidas, por causa dos moços que subiam pela escada da torre ou mesmo pelas paredes, a fim de tocar os sinos e fazer outras tropelias, não hesitando em pisar as coberturas, um problema reiterado, consoante vimos; a pia baptismal, de “pedra redonda muito mal obrada e velha”, disposta “sobre uma vasa da mesma pedra”, encontrava-se “muyto suja e desconsertada por na ygreja naõ aver tisoureiro e o prior estar muyto doente”. Em melhor situação, a sacristia tinha o inconveniente de ser “muyto pequena”, pois “não cabem os padres pera se revestirem”. Desta fonte colhem-se também valiosas achegas para a história do imóvel e da própria paróquia. A capela instituída por Pedro Eanes Pixeiro e João Pixeiro, sob a invocação de Nossa Senhora das Candeias, era administrada, à data, por Pêro Nunez e Manuel Pixeiro, aos quais cabia a obrigação de mandar celebrar anualmente 30 e 20 missas, respectivamente. Confrarias, existiam três: a do Santíssimo Sacramento; a de Nossa Senhora, anexada à Santa Misericórdia, “por provizão de Sua Alteza” (o cardeal D. Henrique, na menoridade de D. Sebastião); e a de Nossa Senhora do Rosário. Outras referências permitem vislumbrar interessantes aspectos do espólio móvel, como o facto de o políptico da capela-mor ser constituído por “quatro paineis pequenos em que estão as histórias da saudação” – certamente explanando o ciclo iconográfico associado à

Annunciatio Beatæ Mariæ Virginis –, ou o de estar “huma jmagem de são estevão de vulto” no altar de Santiago. Mas reveste-se de particular importância a descrição da sepultura do comendador João de Sousa (ficou omitido, mais uma vez, o nome da esposa): “Achamos dentro na capela moor da banda do evangelho peguada com a parede huma sepultura de pedra marmore chãa erguida do chão tres palmos em a qual esta sepultado João de sousa comendador que foi desta villa o qual fez esta ygreia matriz e a mandou fazer [a] sua propria custa e despesa no que mostrou Ter lembramça de sua alma E da obrigação que lhe tinha pois comia a renda delas e deu exemplo aos outros comendadores[.]”

D. Diogo de Janeiro – ou de Gouveia, segundo Espanca –, prior-mor do convento da Ordem de Santiago, cónego da sé de Lisboa e membro do Conselho Real, fez a sua visitação em 1571. A vida litúrgica decorria na ermida do Espírito Santo, por a matriz “estar descuberta e se fazer obra nella”. Fazia-se o respectivo “madeyramento”,

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seguramente a construção de um novo forro; a empreitada deve ter sido vasta, como atesta o facto de que “entre a sacristia que se ora fez e a capella que esta da mesma parte da samcristia ficou hum vaão que se fez em casinha de despejos”, dando o visitador instruções sobre o modo como devia ser paga esta intervenção. Considerou também que os portais recém-instalados ficavam demasiado perto do arco cruzeiro, “onde se assentaõ as mulheres” – durante as celebrações, exigia-se uma estrita repartição da localização dos fiéis no espaço litúrgico, de acordo com o sexo, a idade e o estatuto –, o que trazia inconvenientes, “pella grande devassidão que na serventia dos ditos Portaes vay por ser onde se as ditas molheres assentão”; ponderada a situação, determinou que os mudassem “mais a baxo duas ou tres varas de medir, avendo opporttunidade e comunodidade [sic ] para iisto”. A igreja tinha então ao seu serviço, além do prior, dois beneficiados, que formariam uma pequena colegiada; e existiam nada menos de seis confrarias: Nossa Senhora da Assunção, titular, de acordo com a especialização dos oragos marianos que se produziu ao longo do século XVI; Santíssimo Sacramento; Santo Nome de Jesus; São Sebastião; São Pedro; e Nossa Senhora do Rosário. Beatriz Filipe, “mulher que foi” de Jerónimo Luís, mandou erguer, em 1576, a capela desta última invocação, como atesta uma inscrição cujo desenho Júlio de Vilhena recolheu. No que concerne à localização, o edifício actual não diferirá muito, como referimos, daquele que o precedeu, embora ocupe um perímetro bastante superior. Uma leitura atenta permite identificar nele duas amplas campanhas de reconstrução. A primeira, em inícios do século XVIII, consistiu numa obra ab fundamentis, que aumentou substancialmente a envergadura do imóvel, de maneira a corresponder ao crescimento do número de fregueses; o cronograma no fecho do portal principal, sob a pedra de armas da Ordem,

1714 A[nno] (ou A[nnos]) –, indica que terá sido concluída por esta data. O segundo grande ciclo de trabalhos, com projecto de um jovem arquitecto da capital, José Gabriel Pinto Coelho [S Lisboa, 1936 – X id., 1996], estendeu-se de 1960 a 1965, quando estava à frente da paróquia o P.e José Mendes de Alcobia [S Pias, Ferreira do Zêzere, 1914 – X Ferreira do Alentejo, 2003]. Esta intervenção, custeada pelo povo de Ferreira e realizada numa época em que ainda se permitiam extensas liberdades quanto à adaptação de monumentos históricos; teve o mérito de salvar o conjunto da ruína e preservar, em linhas gerais, a sua traça, mas introduziu amplas modificações e levou à perda de importantes valores patrimoniais. A reabertura ao culto deu-se a 31 de Maio de 1965, numa cerimónia presidida pelo bispo de Beja, D. José do Patrocínio Dias. Entre uma e outra empreitadas, houve algumas intervenções dignas de registo. Várias fotografias da primeira metade do século XX mostram o alçado principal encimado por

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um frontão mistilíneo, característico da segunda metade do século XVIII, ao gosto rococó. Nelas se distingue igualmente a torre do relógio, propriedade do concelho, que foi adicionada ao campanário, em 1828-1830. Meado o século XIX, surgiriam outras mudanças. As mais destacadas prenderam-se com a construção da nova estrada de Beja a Sines, cuja passagem pelo interior da vila causou uma evolução substancial da estrutura urbana. Marques de Vilhena deixaria um comovedor testemunho a este respeito: “A praça formava um quadrilatero formado pelo lado do poente pelas costas da Igreja Matriz com os terrenos adjacentes, que eram do lado do sul das mesmas costas, um quintal com porta para a Praça e do lado do norte pelo adro da Igreja[,] que era separado da Praça por uma parede que não teria mais de 1 metro e 50 centimetros de altura, à qual parede chamavam os pedreirinhos. A parede que do lado da Praça formava os Pedreirinhos seguia, depois de fazer canto, até defronte da Rua Longa e ali, fazendo canto também, dirigia-se até à torre do relógio. O espaço compreendido nestas trez paredes e em todo o lado norte da Igreja era o Adro […]. Este […] comunicava com a Rua que vinha da Praça e seguia pela Rua dos Frades, por uma ponte de ferro, em frente da parede sul do Espirito Santo, e em frente dessa porta [sic] de ferro, ao fundo[,] atravessado o Adro, estava a porta lateral da Matriz[,] que também servia para entrada e saida dos fieis, assim como servia a outra porta lateral que dava para a Rua de João Lopes e de que era separada pelo lageado. O Adro estava plantado e chegou a servir de passeio. Ali se fez iluminação e festa quando casou o rei D. Pedro V [1858].”

Foi assinalável o impacto da construção da infra-estrutura viária: “A estrada […] demoliu as paredes do Adro e[,] nivelando este com a Praça[,] foi abrir cortando em diagonal alguns prédios que haviam sido alinhados com a Rua de frades, a nova rua de Sines. Desde então a matriz perdeu toda a sua originalidade primitiva, ficando um edifício desgracioso e ainda mais depois que lhe arrancaram o belo lageado em frente da porta principal e que seguia por todo o lado do Sul.”

Lembremos que a Praça é a actual Praça do Comendador Infante Passanha; a Rua Longa, a Rua Capitão Mouzinho; a Rua dos Frades, a Rua de Miguel Bombarda; a Rua de João Lopes, a Rua do Visconde de Ferreira do Alentejo; e a Rua de Sines, a Rua 5 de Outubro. Também o âmago do monumento recebeu “beneficiações”. Em 1858, procedeu-se à pintura da capela-mor e ao douramento das colunas do retábulo do seu altar. Em 1881

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ou 1882, quando Vilhena integrava um dos Governos fontistas, obteve de Ernesto Hintze Ribeiro, ministro das Obras Públicas, um subsídio para o conserto dos telhados, muito deteriorados; ter-se-lhes-á dado, então, a pouco usual elevação que é perceptível nas referidas fotografias. Em 1898, a Junta de Paróquia encomendou ao pintor João Eloy Amaral, de Setúbal, uma tela a óleo, representando A Assunção de Nossa Senhora, cópia de célebre composição de Nicolas Poussin (que transitou das colecções reais para o Museu do Louvre), destinada ao retábulo-mor; custou 150 000 réis, 50 000 dos quais foram pagos pelo visconde de Ferreira do Alentejo, José Joaquim Gomes Nobre de Vilhena. O artista setubalense decorou com composições parietais outros sectores do edifício – destruídos aquando das obras do tempo do P. e Alcobia. Em 1904, deram entrada na matriz as imagens da igreja de Nossa Senhora da Luz (ou da Natividade), paroquial de Vilas Boas, cuja freguesia fora extinta; e, em 1906, veio a “capela de madeira”, ou seja, a máquina retabular do seu altar principal, que ficou na antiga capela de São João Baptista. Em 1908, a capela-mor recebeu um pavimento de mosaicos e uma grade de ferro, executada por José da Rocha Moreira, mestre ferreiro da localidade. Talvez tenha sido também ele o autor da grade que protegia o resquício da plataforma elevada do velho “eirado”, patente em fotografias antigas. Ante tantas modificações, Júlio Marques de Vilhena não pôde deixar de registar a sua consternação: “Visitei a Igreja Matriz em Maio de 1919 e em nada se parece com a Matriz descrita nas Visitações do século 16º. As muitas reconstruções, o desaparecimento completo das antigas riquezas, e outras causas, converteram o templo numa casa pobríssima que[,] exceptuada a lapide de João de Sousa, nada tem de apreciavel sob o ponto de vista arqueológico e artistico. Do antigo templo creio restarem somente a pequena Capela, onde está a Pia de Baptismo[,] e uma outra, tapada e que dá, pela Sacristia, comunicação interna para o pulpito. O altar de S. João Batista, que era do lado do norte, está convertido noutro em que puzeram a ornamentação que estava no altar mór de Vilas-Boas. O pobre João Batista[,] espulso do seu lugar[,] está na Sacristia da Igreja. Do lado oposto, onde, na minha infância, conheci S. Luiz e S. Bráz[,] fes-se, por intenção e à custa do Padre José Benedito Moreira, em 1884, uma Capela dedicada ao Santissimo Sacramento. Os santos também foram desterrados para a Sacristia. […] A Capela das Almas foi demolida recentemente, depois do advento da Republica.”

Esta capela ficava do lado da Epístola, confinando com a actual Rua do Visconde de Ferreira do Alentejo. Ao prolongar-se na direcção desta artéria, formava um recanto.

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Desde 1896 que certo cidadão, de seu nome António Avelino Soares de Sousa, à data vogal da Junta da Paróquia, insistia na necessidade de a cortar, mas a obra foi sendo sucessivamente adiada – na aparência por escassez de orçamento, na prática porque não faltava, decerto, quem se opusesse à mutilação (os Maldonado, da Quinta de São Vicente, que tinham um familiar aí sepultado?). Em reunião de 3 de Junho de 1909, a Junta insistiu em levar a cabo tal intento; na respectiva acta diz-se que o recanto da capela “até há pouco tempo, apenas servia de ourinol, mas […] ultimamente serve de deposito de todas as immundicies e porcarias e até de retrete, havendo ocasiões em que ali sae um fetido insuportavel”, e prejudicava o trânsito numa rua “que é da maior circulação nesta villa”, pelo que foi assente demolir o pequeno edifício “antes de virem os calores”, decisão aprovada por unanimidade. Mas só a 3 de Junho de 1911, já após a instauração da República, a facção do “bota-abaixo” ganhou força para impor, finalmente, o projecto. Quando se fez a escavação, descobriram-se muitas ossadas, entre elas as do licenciado Diogo Galvam, identificadas pela respectiva lápide sepulcral, depois vendida a um particular, que a aplicou numa soleira de uma casa sua. Em 1912, a Junta construiu uma casa no terreno que ficou devoluto (seria demolida nas obras de meados do século XX, tal como a torre do relógio). Nos anos seguintes, realizaram-se pequenos trabalhos em vários sectores da igreja. Um deles consistiu no revestimento da frontaria com uma decoração rusticada, visível em fotografias das décadas de 1920-1940, mas que não se aprecia, ainda, numa imagem apensa ao texto de Marques de Vilhena. Tratava-se de uma fórmula de pendor antiquarizante, que estivera em voga muito antes; podiam encontrar-se soluções parecidas, por exemplo, em Beja, na igreja de São Salvador ou nas duas torres, a da paróquia e a da Câmara, contíguas à igreja de Santa Maria da Feira. Em 15 de Fevereiro de 1941, um ciclone varreu Ferreira, danificando com gravidade as coberturas da matriz. Seria preciso esperar mais de uma década, porém, como vimos, para que se procedesse à sua reconstrução. De certo modo, as palavras menos abonatórias de Vilhena acerca do interesse histórico e artístico do monumento serviriam para caucionar uma intervenção que fez tabula rasa de muitos valores patrimoniais. O edifício, de planta orientada – segundo determina a tradição –, longitudinal e escalonada, é composto, hoje, por nave e capela-mor, a que se adossam, do lado do Evangelho, a torre sineira e anexos e, do lado oposto, a antiga capela do Santíssimo Sacramento, a sacristia e um outro núcleo de dependências, cuja construção implicou o sacrifício de três capelas laterais e do baptistério, que correspondia a uma quarta. Na frontaria, enquadrada por pilastras e rematada pela empena triangular, abre-se um portal de pilastras duplas, tendo o entablamento sotopostas, nas extremidades, duas avantajadas volutas em

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forma de vieira, que glorificam a cartela central, com as armas da Ordem de Santiago. O campanário, de alçado definido por pilastras de cantaria e coroado nos ângulos por pináculos piramidais, termina numa cúpula (com as obras dos meados do século XX, encastrou-se-lhe um relógio). Sobre a cúpula da ex-capela do Santíssimo ergue-se um lanternim, de invulgar solução arquitectónica, porventura já de finais do século XIX. Reconhecemos, no essencial dos traços expostos, uma tipologia barroca de marcada austeridade, ainda vinculada ao “estilo chão”, que João Antunes, arquitecto das Ordens Militares, e os seus epígonos replicaram, de modo sistemático, ao serviço da Mesa da Consciência e Ordens, em igrejas das milícias de Santiago e de Avis. No desenho dos alçados e da torre sineira, vislumbram-se os ecos de fórmulas tardo-seiscentistas que aquele mestre – ou quem lhe sucedeu – fixou numa espécie de “planta-modelo”, depois adaptada às circunstâncias em diversos pontos da geografia dos domínios santiaguistas. O espectacular portal principal, elemento de sabor quase experimentalista, talvez desenhado pelo próprio Antunes, tirando partido do potencial da escultura arquitectónica, representa praticamente a única nota sumptuária de um conjunto que prima pelo despojamento. Mais discreto, o portal lateral virado ao meio-dia merece também atenção. É no interior, porém, que se tornam mais perceptíveis as marcas de tal metamorfose. A cobertura da nave, em abóbada de canhão, dividida em cinco tramos por arcos-diafragma, insinua um padrão setecentista, mas a sua modernidade não deixa margem para dúvidas (substituiu um tecto de madeira, em três planos). Desapareceram os retábulos de talha dourada e policromada. O da capela-mor, a avaliar pela iconografia que chegou até nós, constituía um apreciável exemplar de feição rococó, ao gosto da época de D. Maria I. Foi substituído por um novo, de cantaria, em forma de livro aberto, folie característica dos anos 50, em cujo centro se colocou o painel alusivo ao orago. Foi também removida a teia, feita de boa madeira e com balaústres em pedra. Data da mesma transformação o coro alto. Este acolheu, já em 2003, um órgão de tubos, construído em 1962 para uma igreja reformada da Noruega, onde, mais tarde, se deixara de praticar o culto, dispersando-se as suas alfaias (o instrumento foi adquirido na Alemanha). Retomou-se, deste modo, uma antiga tradição, pois a matriz possuiu, até ao século XIX, um órgão. Há notícia de uma provisão outorgada a Pedro Luís, em 1609, para exercer o cargo de organista, “com o ordenado anual de 6.000 réis pagos à custa da comenda e com obrigação de ajudar aos ofícios divinos” (Júlio Marques de Vilhena). Apesar das grandes alterações, o arco e os muros da capela-mor e os arcos das capelas laterais remanescentes conservam as notáveis cantarias de lavor classicista, dos inícios de Setecentos, e não, como ponderara Túlio Espanca, ainda do tempo do reinado de

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D. Sebastião. Na parede do lado do Evangelho da capela-mor, sobressai, aparentemente em lugar idêntico ao que tivera na igreja quinhentista, o monumento funerário de João de Sousa e de sua esposa, Branca de Ataíde [X ca. 1430] – um dos mais belos testemunhos, pela epigrafia e pela escultura, da arte aplicada da época manuelina que subsistem no Alentejo. Espanca descreveu-o assim: “O túmulo, com longa inscrição de caracteres góticos, está sotaposto aos brasões de armas dos donatários, esculpidos graciosamente na heráldica da tradição inglesa, em pedra rosada da região de Lisboa, metidos em quadros emoldurados por cordame e rosetões, sendo o de D. João Sousa em escudo esquartelado das quinas de Portugal e de leão rompante, assente sobre um manto da Ordem de Santiago, e sobrepujado de capuz, em forma de laço, e o de D. Branca de Ataíde em escudo de lisonja partido das armas do marido e das dela, as cinco barras de Ataídes.”

Lavrada em elegantes caracteres de tradição gótica, a inscrição, com carácter panegírico, revela-se igualmente notável na sua extensa prosopografia, evocando os aspectos cimeiros da actividade guerreira de João de Sousa (sobre a mulher, nem uma linha além do nome): 1Aqui:

jaz: o muito: honrado: s[e]n[h]or: ioha[m]: de sousa: e a muito: honrada: sen[h]ora:

bra[n]qua: de taide: sua: molher: fi/2lha: do muito: onrado: io[ham]: de: taide: sen[h]or: de pena:coua: o cual: yo[h]a[m]: de sousa: e filho: de martim afom[so]: de sousa: / 3e: neto: d outro: m[ar]t[i]m: afom[so]: de: sousa: q[ue]: era: p[ri]mo: co[m]: irmaõ: d el rei: dom: ferna[n]do: de: purtugall: ho: qual: io[h]am: de / 4sousa: nu[n]ca: fez ero: ne[m]: vileza: ao: se[nh]or: ne[m]: amiguo: criado: d el rei: dom: afom[so]: ho: qui[n]to: e do: s[e]n[h]or imfa[n]te: se/5u: irmaõ: seus: s[e]n[h]or[es]: e por: seruico: de d[eo]s: e delles: anbos: seus: s[enho]res: e por: onra: do reino: foi: e[m] dozoito: pell[e]ias: / 6de: mouros: nas: p[ar]tes: d alem: mar: e nas: peleias: foi ferido: de sete feridas: e foi: cercado: tres vezes: hua: em / 7cepta: e duas: e[m]: alcacere: ho[n]de: foi: ferido: duas: vezes: de feridas: mortaes: ho[n]de: se oue: ta[m]: be[m]: e ta[m]: es/8forcada:me[n]te: nos: ditos: cercos: q[ue] n[e]m [h]o[m]: q[ue]: nelles: fose: se: na[m]: ouue: milhor: e foi: na guera: co[m]: el: rei: do[m] anrique / 9de: castela: em gra[na]da: onde: se: ouue: mui: bem: desafia[n]do: se: co[m]: hu[m] mouro: sobre: a fee: onde: se: ouve ta[m] be[m]: e ta/10m: esforcada: me[n]te: q[ue]: ho desbaratou: e foi: moito: louuado: de todos: os: castellanos: q[ue]: ai: era[m]: p[re]sentes: foi: na to/ma11da: d alcacere: ee d arzilla: e de taniere: e na destruiça[m]: d anafe: foi: e[m]: duas batalhas: ca[m]paes: com / 12el rei: dom: afom[so]: ho quinto: rei: de castella: e de purtugall: seu: senhor: e servio: ta[m]: be[m] q[ue]: ne[m]: hu[m]: q[ue]:

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c[om]: elle: fose: ho ser/13uio: milhor: asi: na guera: co[n]tinoa: como: na batalha: q[ue]: houue: c[om] el rei: dom: ferna[n]do: ho aguardou: e seruio /

14tam

bem q[ue]: n[em]

hu[m]: o aguardo[u]: ne[m]: seruio: millor: q[ue] elle: e ta[m]: be[m]: foi: co[m]: o infante: seu: s[e]n[h]or: na e[n]trada: de taniere: onde foi: fe/15rido de morte:*

Tanto as sugestões de cordames que delimitam os campos em que estão inseridos os escudos heráldicos e a própria lisonja como as rosetas dispostas nos cantos superiores são características do Manuelino, cuja feição se aprecia, outrossim, no elemento mais imponente do conjunto – o estilizado hábito, aberto e suspenso, com uma borla a coroar o seu ápice, da Ordem de Santiago. É uma referência fundamental, mas ainda não suficientemente divulgada, do corpus documental desta milícia. Na igreja guarda-se um estimável núcleo de obras de arte, que inclui duas pinturas a óleo sobre madeira, figurando São Francisco de Assis e São Luís, Bispo de Tolosa, peças do ciclo maneirista eborense, de primórdios do século XVII, talvez oriundas da arruinada igreja de Vilas Boas. Outra tábua, já dos alvores do Barroco – datará de meados do século XVII –, representa a Natividade de São João Baptista e terá pertencido a um retábulo lateral da própria matriz. No que toca à escultura, destacam-se as imagens, em madeira policroma, de São João Baptista e de Nossa Senhora da Piedade, dos séculos XVI e XVII, respectivamente, assim como um Cristo Crucificado, do século XVIII, também proveniente de Vilas Boas. Entre os espécimes de ourivesaria, sobressaem a custódia-cálice e a cruz processional da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, trabalhos seiscentistas, e o relicário do Santo Lenho e uma lâmpada de alumiar, setecentistas. A antiga capela da Ressurreição foi enriquecida, em 2012, por ocasião da abertura do Ano da Fé, com a pintura, a óleo sobre tela, que figura A Descida de Cristo à Mansão

dos Mortos, obra de António Paizana [S Mação, 1941].

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

TÚLIO ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; [JÚLIO MARQUES DE VILHENA], Ferreira do Alentejo: Documentos para a sua História, ed. org. por MARIA JOÃO PINA, I e III, Ferreira do Alentejo, Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, 2004 e 2008; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, A a Z. Arte Sacra da Diocese de Beja, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2006; ÁLVARO DUARTE DE ALMEIDA & DUARTE BELO (dir. de), Portugal – Património. Guia-Inventário, IX, Beja-Faro, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006.

* Na transcrição substituímos os três pontos originais por dois pontos.

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Emergências Musicais do Brasil Colonial

JEAN-CHRISTOPHE FRISCH

Devoradas pelos parasitas, consumidas pela humidade: teria sido este o destino das partituras guardadas nos arquivos brasileiros, à semelhança de tantos outros arquivos latino-americanos, se não fosse o dinamismo da musicologia desse país que, desde o tempo de Francisco Curt Lange [S Eilenburg (Alemanha), 1903 – X Montevideu, (Uruguai), 1997] até aos dias de hoje, vem coleccionando partituras nas cidades barrocas, com a firme preocupação de salvar este património inestimável. Sabe-se da existência de óperas, de missas com diversos coros, de peças para órgão, mas falta ainda inventariar milhares de títulos; além disso, muitas vezes, só a presença de cópias afins permite reconstituir obras completas, tal o desastroso estado de conservação de muitos manuscritos. Se deixarmos de lado os ténues traços que datam dos séculos XVI e XVII, podem distinguir-se, no actual estado dos conhecimentos, três períodos principais da actividade musical no Brasil colonial. Estão relacionados, todos eles, com o sucessivo desenvolvimento das diferentes regiões do seu imenso território. No início do século XVIII, as primeiras composições aparecem nas cidades costeiras, em especial nas do Nordeste, em torno de Recife e de Salvador da Bahia, então a capital da colónia. Cinquenta anos mais tarde, a música conheceu um importante progresso na região interior de Minas Gerais, durante a época em que as minas de ouro e de pedras preciosas deram à província o seu nome – e uma fabulosa prosperidade. Finalmente, na viragem para o século XIX, quando D. João VI e a respectiva corte se instalaram no Rio de Janeiro, escapando aos exércitos de Napoleão, a personalidade do P. e José Maurício Nunes Garcia, um compositor singularmente dotado, deu origem a um extraordinário repertório musical que nada tem a invejar aos das grandes capitais europeias. O primeiro período foi marcado, no Nordeste, pelo compositor e regente Luís Álvares Pinto [S Recife, ca. 1719 – X id., ca. 1789]. Este constitui o único elo directo da música colonial brasileira com a do velho continente, pois sabe-se que estudou em Portugal com o organista da catedral de Lisboa, Henrique da Silva Esteves Negrão. Desempenhou também as funções de violoncelista na Capela Real. De volta ao Recife, à volta de 1761,

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publicou um tratado de solfejo. À semelhança de muitos músicos activos no Brasil, era militar, como prova a patente régia que o confirmou no posto de capitão do regimento das milícias, em 1766. Pertencia igualmente a uma importante confraria, a Irmandade de Nossa Senhora do Livramento. De 1778 até à morte, exerceu o cargo de mestre-de-capela da igreja de São Pedro dos Clérigos. Da sua produção, conhece-se muito pouco: um Te Deum e um Salve Regina, a três vozes, que se perdeu recentemente. Constando de antigos catálogos, sonatas, um Ofício de Páscoa e outras obras religiosas não foram ainda encontrados. Aliás, o próprio Te Deum está incompleto: só restam fragmentos vocais e uma interessante partitura para trompa, mas pouco apropriada para este instrumento. De facto, a trompa não possuía, à data, qualquer mecanismo, e as notas que podia tocar eram determinadas pelo comprimento do tubo escolhido. Sendo possível modificar o comprimento deste tubo através de reajustamentos, tornavam-se necessários alguns minutos para fazer a alteração, algo impossível durante a execução de uma peça. Supomos, assim, que o instrumento indicado para a partitura não seja uma trompa. A reconstituição que aqui propomos foi efectuada por Jacques Frisch, seguindo o modelo de compositores europeus e brasileiros, em particular de António dos Santos Cunha. O texto do Te Deum servia em celebrações oficiais e solenes, tais como vitórias militares, a coroação de um rei ou a entronização de um bispo. Era muito apreciado em Portugal e nas suas colónias, pelo que a encomenda de uma obra desta natureza constituía uma grande distinção para o seu autor. No caso que consideramos, os versículos gregorianos e figurados encontram-se dispostos alternadamente, algo usual na música brasileira e portuguesa. Não existe nenhuma prova de filiação entre a música da região do Nordeste e a que aparece na província de Minas Gerais durante o segundo ciclo da actividade musical do Brasil. Devido a um peculiar sistema de organização social, quase todos os compositores e músicos eram escravos ou forros, geralmente negros ou mulatos; os brancos, pouco numerosos, amiúde gente da aristocracia ou da burguesia em ascensão, desempenhavam funções consideradas mais dignas do que as relacionadas com a música, embora alguns deles possuíssem, sem dúvida, uma educação musical, por vezes até adquirida na Metrópole. Os músicos profissionais eram, por conseguinte, frequentemente escravos ao serviço de um patrão. Estes servos músicos, de certo modo favorecidos pelos seus talentos, tinham, de resto, assinalável valor comercial. Colocavam-se anúncios nas gazetas do Rio de Janeiro, destinados aos proprietários ricos que pretendessem ter uma orquestra ao seu serviço. Por vezes, os filhos de um branco e de uma escrava, ou um escravo liberto, encontravam um estatuto social decente na

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profissão musical, tal como nas de pintor ou escultor. O genial António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, autor de um vasto conjunto de obras-primas, também pertencia a esta categoria. Os negros de Minas não podiam, em princípio, beneficiar do ensino das instituições reservadas aos brancos. Geralmente, tiveram como modelo as partituras oriundas da Europa, sempre manuscritas, pois a importação de livros impressos era interdita na região, tal como as ordens religiosas e os visitantes estrangeiros. Beneficiariam, certamente, de alguns conselhos de membros do clero, que não eram, porém, verdadeiros mestres de música. Há, por isso, uma ruptura efectiva com a tradição do ensino musical clássico. Esta ruptura acabou por constituir o principal interesse do património musical de Minas Gerais, na medida em que determinou a sua originalidade, a sua língua própria. Pelas cartas dos bispos que encomendavam partituras para as respectivas dioceses, conhece-se bem o repertório importado nesta época. Existiam partituras mais antigas,

v.g. de obras de Palestrina ou Lassus, a par de composições recentes de Pergolesi, Haydn ou Mozart, isto é, no estilo clássico. Após algumas décadas necessárias para a formação de uma escola musical, os compositores mineiros tentaram a impossível síntese entre a polifonia do Renascimento e a melodia clássica. Tão inédito encontro deu origem a um universo muito particular, geralmente escrito para quatro vozes solistas que cantam, no essencial, em quatuor, à maneira antiga, herdada dos mestres do Renascimento. Por vezes, aparecem breves solos ou pequenos duetos e trios, mas o quarteto rapidamente volta a surgir e a impor-se, ao invés das partituras da mesma época na Europa, onde os solos ocupam o lugar cimeiro. Os instrumentos, em contrapartida, utilizam amiúde as novas possibilidades técnicas descobertas pelo estilo clássico europeu, como as baterias de notas repetidas velozmente, os harpejos e os acompanhamentos de duas ou três notas alternadas. Do ponto de vista estilístico, a música de Minas Gerais é relativamente homogénea e bastante próxima da de Luís Álvares Pinto. As vozes, quase sempre reunidas em quatro, estão escritas de forma mais compacta, com escassos solos e um contraponto simples, deixando aos violinos o essencial da diversidade do estilo. Por outro lado, a tessitura das vozes indica que só podia ser cantada por homens – estudos musicológicos recentes demonstraram que os cantores das capelas não eram, geralmente, mais do que quatro, acompanhados por um rapaz que dobrava as partes mais agudas. O conjunto exprime um fervor popular, quase ingénuo, matizado por um certo “paganismo” que, na época, preocupou algumas vezes os bispos: várias cartas determinam que haja o cuidado de obras inconvenientes, “tanto no texto, como na música, porque os músicos são quase todos homens negros, geralmente perversos”.

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As inúmeras composições desse período que chegaram até nós reflectem esta conjuntura social em que não se outorgavam aos músicos as condições mais adequadas de aprendizagem, porque não eram brancos. Muitas delas são de qualidade medíocre e nem sempre os compositores mais produtivos eram os mais inspirados. Porém, cabe admitir que algumas das partituras que se afiguram pouco elaboradas e que nos dias de hoje são rejeitadas para uma interpretação em concerto possam corresponder a um estilo interpretativo muito especial, de que perdemos o rasto. Se conhecêssemos apenas algumas partituras das polifonias corsas ou dos espirituais negros, ficaríamos indubitavelmente confundidos pela sua aparente simplicidade. Os cantores das igrejas de Ouro Preto ou de Congonhas cantavam talvez com uma voz, um timbre, uns melismas não reduzidos a escrito, inflexões pungentes que transformavam completamente a música que consta das partituras. Para nossa infelicidade, não possuímos praticamente informações sobre esse peculiar estilo, mas vale a pena contar uma pequena história. No manuscrito da antífona Salve

Regina, de Inácio Parreiras Neves [S Ouro Preto, ca. 1730 – X id., 1794], falta a parte vocal do contralto. O título ostenta, aliás, uma indicação deveras interessante: “A parte de contralto sempre foi de D. Mariquinha, quem pode pode”, o que quer dizer que “a parte de contralto tem sido sempre de D. Mariquinha, só ela a pode cantar”. É provável que D. Mariquinha cantasse de memória e nem soubesse ler música. Por um acaso extraordinário, o musicólogo José Maria Neves encontrou fortuitamente uma cantora de idade que, na década de 1970, interpretou para ele esta parte que falta e que tinha sido transmitida, de geração em geração, desde o ocaso do século XVIII. Fontes literárias testemunham, frequentemente, a existência de música instrumental em todo o Brasil, não só para órgão, mas também para conjuntos instrumentais; no entanto, nenhuma partitura parece ter subsistido antes do século XIX. Com a chegada do rei de Portugal e da sua corte ao Rio de Janeiro, em 1808, tudo mudou nesta cidade, que passou de pequeno burgo a capital internacional. A música acompanhou, evidentemente, essa viagem: da Europa, chegaram os maiores cantores de ópera italianos e as partituras das obras-primas de Haydn e Beethoven, entre muitos outros, cujas obras se popularizaram a partir dos salões da corte. O fervor musical dos escravos negros e dos mestiços tornou-se mais vigoroso do que nunca; eles continuaram a dar corpo ao essencial dos compositores, instrumentistas e cantores das igrejas brasileiras. Mulato, filho de pardos forros, o P.e José Maurício Nunes Garcia [S Rio de Janeiro, 1767 – X id., 1830], brilhante compositor e director de orquestra, interpretou o Requiem de Mozart numa versão completada por Sigismund von Neukomm. José Maurício deixou

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obras magistrais, como a monumental Missa de Santa Cecília (1826), de uma tal dificuldade para a orquestra, solistas e coro que se deduz facilmente a qualidade dos intérpretes de que dispunha. Os solistas cantam partes dignas das óperas de Bellini, o coro faria frente sem receio à Missa Solemnis, de Beethoven, e alguns instrumentos solistas da orquestra – o clarinete, a flauta e a trompa – poderiam transpor certos trechos para o repertório dos estudantes de todos os conservatórios do mundo. O extraordinário brio exigido por esta missa é um testemunho do nível dos músicos então activos no Rio. Face a esta abundância de música sacra, floresceu também a música de diversão no âmbito da corte. Dir-se-ia que o clima tropical favoreceu um comportamento descontraído, mesmo na solenidade dos salões do Paço, e quem lograria resistir a dançar e namoriscar? À semelhança do que Schubert fez com o lied e Jean-Paul-Égide Martini com a romance française, o P.e Nunes Garcia e outros compositores brasileiros escreviam modinhas, uma espécie de romances ou baladas em português. Ao longo do século XIX, foram compostas inúmeras modinhas um pouco por todo o Brasil; boa parte chegaram até nós sem o nome do autor. Muitas circulariam entre os músicos populares, que as divulgavam, transformando-as. Os temas abordados centram-se, claro está, no amor, como Uma Mulata Bonita, de um anónimo de Minas Gerais, mas também focam aspectos naturalistas ou da vida quotidiana, como o divertido Perdi o Rafeiro, de um anónimo paulista. É interessante estabelecer um paralelo entre as modinhas brasileiras, que darão origem ao choro ou chorinho (do qual brotará, mais tarde, a Bossa Nova), e as melodias norte-americanas que conduzirão ao Jazz, por intermédio do Ragtime. A alma africana do Brasil, mestiça e sincopada, começava a afirmar-se. Nesta paisagem de múltiplas cores, salienta-se a figura do compositor e pianista Sigismund von Neukomm [S Salzburgo, 1778 – X Paris, 1858]. Após ter vivido em pontos tão diversos como São Petersburgo, Estocolmo ou Paris, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, em 1816, onde permaneceria até 1821. Aí escreveu a sua versão final do Requiem de Mozart (deixado inacabado pelo mestre, cujo filho estudou música com Neukomm, amigo da família), que Nunes Garcia veio a dirigir. Durante a sua permanência no Rio, compôs também cerca de uma centena de peças sobre temas brasileiros bem conhecidos, de que se destaca a fantasia para piano, intitulada O Amor Brazileiro / L’amour Brésilien / CAPRICE / pour le Pianoforte / sur un Londu Brésilien / dédié / à Mademoiselle / Donna

Maria Joanna de Almeida / par / le Chevalier / Sigismond Neukomm, ou, ainda, o dueto L’Amoureux, para piano e flauta, datado de 1819, que contém, à maneira de segundo andamento, uma modinha. Muitas das suas composições, conservadas em bibliotecas espalhadas pelo mundo, continuam totalmente desconhecidas nos nossos dias.

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O conjunto das obras brasileiras dos finais do século XIX permite desenhar um panorama musical extremamente original, enraizado no seu tempo, em ligação com o resto do mundo, mas também pautado pelo multiculturalismo característico do continente sul-americano. À luz disto, é inteiramente legítimo falar de um estilo brasileiro autónomo, numa época em que as músicas nacionais começavam a despontar, da Espanha à Rússia. O Brasil foi, porventura, o primeiro país da América do Sul que criou uma música romântica com identidade afirmada.

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[AD LITTERAM]

Qual será o feliz dia Qual será o feliz dia,

Beijo a mão que me condena

em que veja satisfeitas

Beijo a mão que me condena

doces, amantes promessas

a ser sempre desgraçado.

pela minha Tonia?

Obedeço ao meu destino,

Foi-se Josino e deixou-me

respeito o poder do fado.

Foi-se Josino e deixou-me, foi-se com ele o prazer.

Que eu ame tanto sem ser amado,

Eu que cantava ao lado,

sou infeliz, sou desgraçado.

hoje me sinto morrer.

No momento da partida

Amor que pode

No momento da partida

Amor que pode

meu coração te entreguei.

não quer valer.

Sem ele, sem ti, sem ver-te,

Não há remédio

como não morro, não sei.

senão morrer.

Aquela noite saudosa

Perdi o rafeiro na enchente afogado

em que dele me apartei,

Perdi o rafeiro na enchente afogado,

quando me vem à lembrança,

perdi esta guarda do meu manso gado.

como não morro, não sei.

O lobo esfomeado atrás dele corre, gado sem pastor por toda parte corre.

Uma mulata bonita Uma mulata bonita não carece de rezar; Abasta o mimo que tem, para sua alma salvar. Mulata, se eu pudera, no mundo formar altar, Nele te colocaria, para o povo te adorar.

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Te Deum

Nós Vos louvamos

Te Deum laudamus:

Nós Vos louvamos, ó Deus,

te Dominum confitemur.

nós Vos bendizemos, Senhor.

Te æternum Patrem omnis terra veneratur.

Toda a terra Vos adora,

Tibi omnes Angeli, tibi Cæli,

Pai eterno e omnipotente.

et universæ Potestates:

Os Anjos, os Céus e todas as Potestades,

Tibi Cherubim et Seraphim incessabili voce

os Querubins e os Serafins Vos aclamam sem

proclamant:

cessar:

Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus Deus

Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo,

Sabaoth.

o céu e a terra proclamam a vossa glória.

Pleni sun cæli et terra majestatis gloriæ tuæ.

O coro glorioso dos Apóstolos,

Te glotiosus Apostolorum chorus,

a falange venerável dos Profetas,

Te Prophetarum laudabilis numerus,

o exército resplandecente dos Mártires

Te Martyrum candidatus laudat exercitus.

cantam os vossos louvores.

Te per orbem terrarum sancta confitetur Ecclesia,

A santa Igreja anuncia por toda a terra

Patrem immensæ majestatis;

a glória do vosso nome:

Venerandum tuum verum et unicum Filium;

Deus de infinita majestade,

Sanctum quoque Paraclitum Spiritum.

Pai, Filho e Espírito Santo.

Tu Rex gloriæ, Christe.

Senhor Jesus Cristo, Rei da glória,

Tu Patris sempiternus es Filius.

Filho do Eterno Pai,

Tu, ad liberandum suscepturus hominem,

para salvar o homem, tomastes a condição

non horruisti Virginis uterum

humana no seio da Virgem Maria.

Tu, devicto mortis aculeo,

Vós despedaçastes as cadeias da morte

aperuisti credentibus regna cælorum.

e abristes as portas do Céu.

Tu ad dexteram Dei sedes, in gloria Patris.

Vós estais sentado à direita de Deus, na glória

Judex crederis esse venturus.

do Pai, e de novo haveis de vir para julgar os

Te ergo quæ sumus,

vivos e os mortos.

tuis famulis subveni,

Socorrei os vossos servos, Senhor, que remistes

quos pretioso sanguine redemisti.

com o vosso Sangue precioso;

Æterna fac cum Sanctis tuis

e recebei-os na luz da glória, na assembleia dos

in gloria numerari.

vossos Santos.

Salvum fac populum tuum, Domine,

Salvai o vosso povo, Senhor,

et benedic hereditati tuæ.

e abençoai a vossa herança;

Et rege eos, et extolle illos

sede o seu pastor e guia através dos tempos

usque in æternum.

e conduzi-os às fontes da vida eterna.

Per singulos dies benedicimus te;

Nós Vos bendiremos todos os dias da nossa vida;

Et laudamus nomen tuum in sæculum et in

e louvaremos para sempre

sæculum sæculi.

o Vosso nome.

Dignare, Domine, die isto sine peccato nos

Dignai-Vos, Senhor, neste dia, livrar-nos do

custodire.

pecado.

Miserere nostri, Domine,

Tende piedade de nós, Senhor,

miserere nostri.

tende piedade de nós.

Fiat misericordia tua, Domine, super nos,

Desça sobre nós a Vossa misericórdia,

quemadmodum speravimus in te.

porque em Vós esperamos.

In te, Domine, speravi:

Em Vós espero, meu Deus,

non confundar in æternum.

não serei confundido eternamente. Tradução: Pedro Lourenço Ferreira

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XVIII-21/Le Baroque Nomade

Há mais de duas décadas que, pela sua abordagem pioneira, tem vindo a destacar-se no panorama musical do Barroco. Com o propósito de revelar partituras votadas ao esquecimento, Jean-Christophe Frisch criou, em 1995, XVIII-21/Musique des Lumières, mais tarde Le Baroque Nomade, um nome cheio de significado e que convida a conhecer o extenso período que medeia entre o século XVIII e a actualidade. Este ensemble recria laços culturais e históricos entre o repertório europeu e as tradições musicais de outros tempos (China, Índia, Etiópia, Turquia, América Latina), na senda dos globetrotters musicais que viajavam pelo mundo, numa época em que tais viagens davam origem ao cruzamento de culturas e civilizações. Um concerto realizado em Cabul, com músicos afegãos, logo após o levantamento da interdição da música pelos talibãs, permanecerá uma recordação inesquecível. A colaboração duradoura com artistas chineses tem permitido que culturas diferentes se observem e compreendam antes de tentarem experiências comuns. Já actuou em mais de 35 países e publicou cerca de 20 CD, muito valorizados pela crítica.

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Cyrille Gerstenhaber Soprano

Após ter estudado Literatura e Música, consagrou-se à interpretação de um repertório ecléctico, que se estende da Idade Média até à actualidade, graças ao seu conhecimento dos estilos e à flexibilidade da sua voz. Do Orfeo de Monteverdi ao Orfeo de Milhaud, canta Rameau, Handel, Scarlatti, Mozart, Puccini, Prokofiev, criações contemporâneas e oratórias (Mozart, Pergolesi, Vivaldi…). O seu repertório abarca óperas, concertos e recitais, sob a direcção prestigiada de Brüggen, Malgoire, Florio, Curtis e Frisch, entre outros. Amiúde convidada a actuar na Bibliothèque nationale de France, de Paris, especializou-se em recitais que têm como foco a estilística da chanson française (Kosma, Poulenc). Tem cantado em toda a França, em algumas das principais salas da Europa (Amesterdão, Varsóvia, Bergen, Bilbau, Berlim, Istambul, Veneza, etc.) e dos Estados Unidos da América, recebendo entusiásticos aplausos do público e da crítica. Gravou mais de duas dezenas de discos, com realce para Même dans le Sommeil, cantatas para soprano solo de Domenico Scarlatti (Prémio Melhor Gravação Barroca de 2002 em Espanha) e

Les Leçons de Ténèbres, de François Couperin (um dos Records of the Year 2003 do Sunday Times).

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Sarah Breton Meio-soprano

Após uma sólida formação na École Maîtrisienne de la Perverie, em Nantes, obteve um primeiro prémio de órgão no Conservatoire Francis Poulenc, de Tours. Completou a formação no Conser vatoire National Supérieur de Musique et de Danse, de Paris. Obteve vários prémios nacionais e internacionais, mormente em Mâcon, Béziers, Toulouse e Clermont-Ferrand. Apaixonada pela música de câmara, colabora regularmente com Solistes de Lyon, Les Arts Florissants, Ensemble Pierre Robert, Les Musiciens du Louvre, Stradivaria, Folies Françaises, Arsys Bourgogne, Macadam Ensemble, Ensemble Jacques Moderne e Les Éléments. Consagra especial atenção à oratória, tendo sido solista em Messiah, de Handel (Orquestra de Câmara de São Petersburgo), Missa da Coroação, de Mozart (Orchestre Lamoureux), Oratorio

de Noël, de Saint-Sanes (Orchestre d’Auvergne, Orchestre Philharmonique du Luxembourg), Les Noces, de Stravinsky (Orchestre National de Lyon), Les Motets, de Charpentier (Ensemble Jacques Moderne), Stabat Mater, de Pergolesi (Stradivaria), Gloria, de Vivaldi (Orchestre National de Lyon) e Les Grands Motets, de Rameau (La Fenice). No âmbito operático, tem interpretado Discorde e Roxane, de L’Europe Galante (Versalhes); Zulma, de L’Italiana in Algeri (Massy); Caim, de Cain ou le Premier Homicide; Miss Baggott, de Le Petit

Ramoneur (Lyon); Orphée, da obra homónima de Gluck (Clermont-Ferrand); La Marquise, de La Fille du Régiment (Barcelona); Madalena, de Rigoletto (Opéras d’Été en Plein Air); Mère, Pâtre e Libellule, de L’Enfant et les Sortilèges (Salle Pleyel, Paris); Messagiera e Speranza, de Orphée, de Monteverdi (Thonon-les-Bains e Salle Gaveau, Paris): Testemunha, de La Digitale (Marseille). Participou na estreia internacional de Terre et Cendres, de Jérôme Combier (Lyon).

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Vincent Lièvre-Picard Tenor

Estudou nos conservatórios de Tours e de Paris e, posteriormente, no Conservatoire National Supérieur desta capital, onde obteve as mais altas classificações, sendo aluno de Noémi Rime, Howard Crook, Ana Maria Miranda, Anne-Marie Rodde, Udo Reinemann, François-Nicolas Geslot e Alain Buet. Foi Actéon, na ópera homónima de Charpentier (Opéra de Bordeaux), Zoroastro, na de Rameau (Marselha), Cecco, em Il Mondo della Luna (Angers), e Erzähler, em Der Mond (Opéra Bastille, Paris). Cantou em 2012 o seu primeiro Tamino, em Die Zauberflöte (Toulon). Um amplo repertório de oratória permite-lhe valorizar, especialmente, os Evangelistas das Paixões de Bach (foram muito aplaudidas as suas interpretações sob a direcção de Michel Corboz, com o Ensemble Vocal de Lausanne ou a Orquestra e o Coro Gulbenkian), as obras do repertório barroco francês, em que brilha pelo “aigu aisé” e pela ciência estilística nas partes de “haute-contre à la française”, e as oratórias de Mozart, Haydn, Berlioz, Dvořák, Rachmaninoff e Britten. Tem trabalhado com Benjamin Alard, Jean-Marc Andrieu, Christophe Coin, Michel Corboz, Jean-Christophe Frisch, Sébastien d’Hérin, Jean-Claude Malgoire e Guy van Waas, e, em recitais, com Aline Zylberajch e Emmanuel Olivier, com o qual gravou recentemente obras de Lou Koster. Possui vasta discografia, que lhe granjeou importantes distinções (Diapason d’Or, Choc do Monde

de la Musique, Prix Massenet para a melhor integral de ópera francesa, disco do mês da revista Goldberg, etc.).

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Emmanuel Vistorky Barítono

Começou os estudos de canto, aos 15 anos, no Conservatoire Gautier-d’Épinal, em Épinal. Após ter obtido o primeiro prémio, integrou a Maîtrise de Notre-Dame de Paris e especializou-se na interpretação de repertórios de música antiga. Concluiu a formação em Canto Lírico no Conser vatoire National Supérieur de Musique et de Danse, de Paris, sob a orientação de Fosako Kondo. Colabora com ensembles consagrados à música medieval, entre eles o agrupamento de Gilles Binchois, Alla Francesca e Diabolus in Musica. No âmbito do repertório barroco, tem trabalhado com Concert Spirituel em inúmeras produções dramáticas, com Akademia e com Doulce Mémoire, Jacques Moderne e La Fenice, em iniciativas focadas, respectivamente, nos universos musicais germânico e inglês. Interpreta regularmente papéis de basso buffo em óperas italianas, com Poème Harmonique (The

Baroque Carnaval ), assim como Ebro em La Morte d’Orfeo, de Landi, e Orfeo, na ópera homónima de Monteverdi. Da sua discografia, salientam-se as gravações de Arias à la bastarda, de Negri, com o ensemble Faenza, e de obras da escola de Notre Dame School, com o ensemble Diabolus in Musica.

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Mathieu Dupouy Órgão e piano

Estudou no Conservatoire National Supérieur de Paris, sob a orientação de Christophe Rousset, sendo distinguido com os primeiros prémios de cravo e baixo contínuo. Aperfeiçoou em seguida os conhecimentos com Pierre Hantaï, Olivier Baumont e Christophe Coin. Em paralelo, estudou piano com Patrick Cohen e órgão com Georges Guillard no Conservatoire Supérieur de Paris. Actualmente, dedica-se ao clavicórdio, ao piano e ao cravo. O seu repertório estende-se à música contemporânea, abrangendo obras de François-Bernard Mâche, Bruno Mantovani, Ivan Fedele, Brice Pauset e Richard Dubugnon, entre outros. Já interpretou, em diversas ocasiões, Citations, de Henri Dutilleux, na presença do autor. Colabora habitualmente com orquestras e ensembles de referência, com destaque para XVIII-21/ /Le Baroque Nomade, Elyma, Les Musiciens du Louvre, Les Talens Lyriques, Les Paladins, Le Concert d’Astrée, Opéra de Paris e Opéra d’Amsterdam. Publicou vários discos, consagrados às Sonatas e Fantasias para Clavicórdio, de Carl Philipp Emanuel Bach, Sonatas para Cravo, de Domenico Scarlatti, Sonatas para Piano, de Joseph Haydn, Lições

das Trevas, de François Couperin, Concertos, de Frédéric Chopin, na versão de câmara para piano e pianino, etc. Inspirado pela tradição dos intérpretes gravados desde o início do século XX, tem vindo a investigar os testemunhos vivos de uma autenticidade musical. Nutre igualmente grande interesse pelas músicas tradicionais, pelo jazz e pela literatura – na qual encontra uma fonte de inspiração e de liberdade.

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Jean-Christophe Frisch Flautas, serpentão e direcção musical

Flautista reconhecido desde o início da carreira – dos estudos de Biologia guardou a precisão e o rigor –, a sua versão integral das Sonatas para Flauta, de Antonio Vivaldi (Universal), permanece uma referência. Consagrou-se em seguida à direcção. Uma visão inovadora da música levou-o a criar Le Baroque Nomade como espaço de experimentação de concepções artísticas muito próprias, abrindo um novo caminho para a leitura do repertório barroco internacional. Nas suas interpretações, sobressaem o sentido do contraste dos tempos, o equilíbrio do grave e do agudo na orquestração e a criatividade expressiva das frases. A pesquisa que leva a cabo é orientada por uma atitude que põe em causa o que está adquirido, apoia-se nas descobertas da mais avançada musicologia, na autenticidade dos músicos e na relação pessoal com a orquestra, baseada na confiança, na serenidade e na diferença. Conhecido no meio artístico como o “Indiana Jones da música barroca”, tem dirigido em locais tão prestigiados como a Cité de la Musique (Paris), Philarmonie (Colónia), os festivais do Southbank Center (Londres), de Jerusalém, de Utreque, de Granada, os teatros de ópera de Roma, de Damasco ou de Veneza…

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Concerto V

ODEMIRA

7 de Maio 21H30

ANJOS OU DEMÓNIOS? NOVAS TENDÊNCIAS DA MÚSICA BRASILEIRA Heitor Villa-Lobos [1887-1959] Choros n.º 5: “Alma Brasileira” (1925) Arranjo: João Luiz Bachianas Brasileiras, n.º 9 (1945) Arranjo: Thiago Tavares Prelúdio Fuga

A Lenda do Caboclo (1920) Arranjo: Eduardo Fleury Ronaldo Miranda [1948-] Suíte n.º 3 (1973) Arranjo: Chrystian Dozza Allegro Allegretto Lento Allegro gracioso

Almeida Prado [1943-2010] XIV Variações sobre o Tema de Xangô (1961-2003)* Marco Pereira [1950-] Dança dos Quatro Ventos (2006) Egberto Gismonti [1947-] Um Anjo (1999) Arranjo: Paulo Porto Alegre Chrystian Dozza [1983-] Sobre um Tema de Gismonti (2012)* Paulo Bellinati [1950-] Frevo e Fuga (2010)* * Estreias nacionais.

Quaternaglia Guitar Quartet Chrystian Dozza Fabio Ramazzina Thiago Abdalla Sidney Molina Direcção musical Sidney Molina

< Padrão da antiga barca de passagem do rio Mira. 1672. Odemira.

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ODEMIRA

Igreja Matriz de São Salvador

ANTÓNIO MARTINS QUARESMA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Concluído o movimento da Reconquista, a estrutura paroquial apresentava, no território de Odemira, uma rede pouco densa, existindo apenas as freguesias de São Salvador1 e Santa Maria. A referência documental mais antiga que se conhece às suas igrejas data de 1320-1321. Viriam a disputar ambas o título de matriz da vila, mas a primazia terá pertencido à primeira. Na segunda metade do século XVI, as duas freguesias foram desmembradas, com a criação de novas paróquias; da que ponderamos, saíram a de São Luís e, talvez, parte das de Relíquias e São Teotónio. Perderam-se todos os vestígios da primitiva igreja de São Salvador, que ascenderá à época gótica, ocupando, com muita probabilidade, o sítio da actual, uma área de expansão tardo-medieval da vila, conhecida – na época moderna – pelo nome de Palhais, não muito distante do espaço urbano intramuros. Sucessivas campanhas de obras, em particular durante os séculos XVII e XVIII, fizeram desaparecer os vestígios mais antigos; talvez a arqueologia possa, um dia, iluminar este hiato da memória local. Em 1693, a Arquidiocese de Évora procedeu à remodelação das duas igrejas, de acordo com a linha programática estabelecida pelo Concílio de Trento. Os trabalhos foram arrematados pelos mestres alvanéus Domingos Gonçalves, de Odemira, e Manuel Francisco Painço, de Beja, a que se juntou um oficial do mesmo ramo, Pedro de Araújo, de Évora. Demolida a igreja de Santa Maria, em 1836, resta a de São Salvador para avaliarmos a envergadura da obra, feita praticamente de raiz. Hoje, chamam a atenção neste edifício, entre outros elementos de tal período, os cunhais e os ornatos piramidais da sacristia, da fachada cega da abside e da empena do mesmo lado, assim como a cobertura em abóbada no campanário e o lavabo da sacristia.

1

O título oficial da paróquia, na cúria diocesana de Beja, é Santíssimo Salvador, mas atemo-nos à fórmula histórica; vulgarmente, diz-se apenas Salvador.

Cristo Salvador do Mundo (pormenor). Pedro Alexandrino de Carvalho. Século XVIII, terceiro quartel. Odemira, igreja matriz de São Salvador. >

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D. João V uniu os dízimos de Odemira, em 1710, à sé patriarcal de Lisboa, acrescendo a esta instituição uma significativa fonte de receita, mas impondo-lhe as responsabilidades correspondentes, em particular quanto à conservação das suas igrejas e à manutenção do clero ao seu serviço. O terremoto de 1755 não afectou muito, aparentemente, a igreja de São Salvador; todavia, breves semanas decorridas, já um mestre pintor local, José Rodrigues Lima, se ocupava da ornamentação das tribunas do altar-mor e dos altares laterais, fissurados pelo sismo. Outras sequelas viriam a manifestar-se posteriormente, dando origem a sucessivas obras, ao longo da segunda metade do século XVIII. Numa primeira etapa dos trabalhos, a fachada principal recebeu novo frontão, ao gosto dito “pombalino”, característico da época posterior ao sismo. Datam da mesma etapa as pilastras dos ângulos, alternando faixas lisas e bujardadas, que lhes imprimem peculiar animação; e os elementos piramidais de base quadrangular, outrora dispostos como remates dos cunhais, cederam o lugar a imponentes fogaréus, cujas bases reaproveitaram parte das antigas estruturas geométricas. Por 1782, a igreja encontrava-se em mau estado, por certo devido ao agravamento dos problemas causados pelo megassismo (e nunca totalmente resolvidos), pelo que foi necessário proceder-se a uma empreitada importante para a consertar, de que fez parte, entre outras obras, a instalação de telhados “amouriscados”, a cargo de um mestre pedreiro de Messejana, José António. Quanto à janela de cantaria, gradeada de ferro, sobre a porta principal, é também de uma fase final do século XVIII. Deste ciclo de empreitadas, repartido por várias décadas, dimanou a modificação da frontaria e da torre sineira do edifício, redundando numa elegante síntese do Barroco Tardio e do Rococó, que suavizou o anterior modelo, fiel ao “Estilo Chão”. Assim, o vetusto e o adventício integraram-se coerentemente, sem se anularem entre si, numa lógica de justaposição pragmática. Em 1969, realizou-se outra transformação de fundo, inspirada pela reforma litúrgica do II Concílio do Vaticano (1963), a cargo do arquitecto Castro e Solla e do escultor João Charters de Almeida. Estes puderam trabalhar o monumento como um “contentor”, pois a paróquia fez desmantelar os retábulos de talha dourada e policroma e vendeu-os em fracções, para obter fundos destinados à obra. O resultado consistiu numa solução arrojada, em harmonia com o estilizado despojamento do tempo. Mais interessantes se revelaram o sacrário e, principalmente, a Árvore da Vida, que Charters de Almeida concebeu para a capela-mor, obra ágil e cheia de vigor, a que não foi alheia a súbtil evocação da Árvore de Jessé. Na ousia permanece a grandiosa pintura, a óleo sobre tela, figurando Cristo Salvador

do Mundo, alusiva ao orago da igreja, outrora parte integrante do antigo retábulo do

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altar principal. Da autoria do Pedro Alexandrino de Carvalho, remonta a data incerta do terceiro quartel do século XVIII. Terá sido encomendada pelo Colégio da Sé Patriarcal de Lisboa, no âmbito da remodelação que visou corrigir os estragos causados pelo terremoto de 1755.

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; ANTÓNIO MARTINS QUARESMA, Odemira Histórica. Estudos e Documentos, Odemira, Município de Odemira, 2006; id. & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Igrejas Históricas de Odemira, Beja-Odemira, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Município de Odemira, 2016.

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Uma Conversa entre a Força e a Delicadeza

SIDNEY MOLINA

Presença de Villa-Lobos A força da música de Heitor Villa-Lobos [1887-1959] fez dela uma imagem sonora do próprio Brasil, tornou-a uma espécie de vector originário que passou a ser reconhecido como marca da afectividade brasileira. Isso se dá por um traço particular de sua recepção que a desloca do nível pobre e pretensioso dos manifestos nacionalistas – aos quais, afinal, o compositor carioca sempre terá de prestar contas. Villa-Lobos alimenta-se das tradições populares, é um facto. Mas não apenas daquilo que, em seu tempo, se denominava “o folclore”, pois, desde cedo, incorporou igualmente elementos da música popular urbana que nascia, aliada ao desenvolvimento do rádio e do disco. Obras para guitarra solo como a Suíte Popular Brasileira (1908-1912)1 e o

Choros n.º 1 (1920)2 são bons exemplos: choro não é folclore, é uma prática instrumental popular-urbana, em constante desenvolvimento, sem paralelo com a estaticidade das músicas de raízes. Ainda que incomum às idealizações do popular típicas dos compositores nacionalistas, esse uso dos géneros urbanos não deixa de estar presente também em outros compositores de sua época (como em Gershwin, por exemplo). O que caracteriza o traço particular do “caso Villa-Lobos” é, entretanto, a absorção de seu legado pelas gerações seguintes da música popular brasileira. É importante insistir nesse ponto: ao lado do nacionalismo mais programático que sucedeu a Villa-Lobos, sob a liderança do escritor e musicólogo Mário de Andrade (e que inclui músicos como Lorenzo Fernández, Mignone e Guarnieri),3 de sua contestação

1 O “Chorinho”, publicado como parte da Suíte Popular Brasileira, é posterior às outras quatro peças que integram a suíte (“Mazurka-Choro”, “Schottish-Choro”, “Valsa-Choro” e “Gavota-Choro”), tendo sido composto em 1923 (quando Villa-Lobos já vivia em Paris). 2 Choros n.º 1 para guitarra inaugura a série dos Doze Choros para diferentes formações instrumentais escrita ao longo da década de 1920. 3 Oscar Lorenzo Fernández [1897-1948] nasceu no Rio de Janeiro; Francisco Mignone [1897-1986) e Mozart Camargo Guarnieri [1907-1993] nasceram, respectivamente, na capital e no interior do estado de São Paulo.

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pelas vanguardas nascentes (de Koellreutter e seus primeiros alunos, Guerra-Peixe e Santoro),4 do engajamento nos experimentalismos de Darmstadt nos anos 1960 (por Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira)5 e, enfim, das fusões e práticas heterogêneas pós-modernas, há um caminho paralelo da MPB – e também do cinema brasileiro – que presta tributo subtil ao músico carioca. Herdeiro-transfigurador do choro instrumental de Pixinguinha [1897-1973], Egberto Gismonti [1947-] – cuja prolífica obra atinge mais de 70 álbuns, alguns gravados ao lado de nomes proeminentes do chamado jazz europeu – carrega com aura villa-lobiana sua inspiração popular. Da mesma forma, a bossa nova de Tom Jobim [1927-1994] parece ter no som de Villa-Lobos uma matriz cultural a ser deslida,6 juntamente com o samba carioca e outras formas da canção popular. Em alguns momentos, a presença de Villa-Lobos na MPB torna-se explícita, como na relação entre o Samba em Prelúdio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes,7 e o “Prelúdio” de Bachianas Brasileiras n.º 4 ; ou no arranjo que integra a gravação da “Cantiga” (também de Bachianas n.º 4) pelo cantor popular Milton Nascimento;8 ou, ainda, em

Trem Caipira, álbum em que Gismonti recompõe Villa-Lobos com teclados e violoncelo.9 No cinema de Glauber Rocha [1939-1981], Villa-Lobos surge como arquétipo sonoro, como o som que sobrevoa a paisagem árida nordestina, mas também como trilha da retirada para a interioridade do íntimo humano: o Villa-Lobos de Glauber assume função mítica, tem força originária e originadora. Assim, se Villa-Lobos retira do popular os elementos para a composição de sua música clássica, essa mesma música clássica serve de inspiração para a música popular das gerações seguintes, o que fecha um ciclo raro de diversidade e conversa. Villa-Lobos está imediatamente à mão como poucos músicos clássicos do século XX e é sobretudo nesse sentido que pode, ainda hoje, apontar caminhos. Há de se ressaltar a importância do ciclo das Nove Bachianas Brasileiras para a constituição desse papel fundante, quase sacro, de sua música. Escritas entre 1930 e 1945, 4 O professor e compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter [1915-2005] é considerado o introdutor do dodecafonismo no Brasil na década de 1940. César Guerra-Peixe [1914-1993] nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, e Cláudio Santoro [1919-1989], em Manaus (Amazonas). 5 Gilberto Mendes nasceu, em 1922, em Santos (São Paulo), e Willy Corrêa de Oliveira, em 1938, em Recife (Pernambuco). 6 O termo evoca a desleitura (misreading ) tal como é utilizado na teoria da influência do crítico literário norte-americano Harold Bloom. 7 Referência a Baden Powell [1937-2000], guitarrista e compositor, e ao poeta e cancionista Vinicius de Moraes [1913-1980], ambos cariocas. O Samba em Prelúdio é de 1963. 8 Milton Nascimento nasceu no Rio de Janeiro em 1942, mas foi criado em Minas Gerais. A sua gravação da “Cantiga” está no álbum Sentinela, de 1980. 9 O disco Trem Caipira, de Gismonti, é de 1985.

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após a fase inicial e o experimentalismo dos Choros, as Bachianas são um autoconfiante e controverso projecto de construção das junções possíveis entre Bach e Brasil. Parte expressiva da crítica vê oposição entre essa fase – acusada pelo historicismo vanguardista de ter sido vítima de uma “regressão neoclássica” – e o período modernista anterior. O influente musicólogo José Maria Neves, por exemplo, escreveu que “fica, de todo modo, a impressão de um retrocesso dos Choros para as Bachianas, de abandono de terreno conquistado a duras penas para voltar a uma posição mais cômoda e tranquila”.10 Cabe, hoje, relativizar esse diagnóstico, não apenas para buscar uma crítica mais imanente às obras, mas também para dar conta de uma visão conjunta de Choros e

Bachianas junto a uma reavaliação do período final de Villa-Lobos, os ainda pouco estudados anos 1950, fase que recentemente recebeu do músico e pesquisador José Ivo da Silva a alcunha de “vigor criativo”.11 A gravação (ainda em curso) da integral das

Onze Sinfonias de Villa-Lobos pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), precedida por minucioso trabalho musicológico de revisão das partituras, lança igualmente nova luz sobre o conjunto da obra do carioca.12 De todo o modo, não há qualquer comodidade ou tranquilidade nas Bachianas. Nelas, Bach é o tempo, e Brasil o espaço, são as coordenadas para Villa-Lobos tecer gráficos sonoros de improváveis conexões, conquistadas gradualmente, a cada movimento de cada obra. E, conforme apontou Paulo de Tarso Salles, há técnicas composicionais – como o uso de estruturas simétricas – comuns aos outros períodos de sua carreira.13 Um exemplo proeminente da utilização de simetrias está na obra original para guitarra solo, que goza de amplo reconhecimento internacional e percorre todas as suas fases. Além das já citadas Suíte Popular Brasileira e Choros n.º 1, obras ligadas às suas origens poéticas, há o conjunto dos Doze Estudos (1929), da época dos últimos Choros, os Cinco

Prelúdios (1940), da época das Bachianas Brasileiras, e o Concerto para Guitarra e Pequena Orquestra, de sua fase final.14 Uma obra pequena, mas que marca de modo indelével a história do instrumento.

JOSÉ MARIA NEVES, Música Contemporânea Brasileira, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2008, p. 83. V. J OSÉ I VO S ILVA , Vigor Criativo: Villa-Lobos em seu Último Período , São Paulo, Editora da Unesp, 2011. 12 Quatro CD da integral (prevista para seis) já foram lançados pelo selo Naxos com as sinfonias n.os 3, 4, 6, 7, 10 e 12. A direcção é do maestro Isaac Karabtchevsky. 13 V. PAULO DE TARSO S ALLES , Villa-Lobos: Processos Composicionais , Campinas, Editora da Unicamp, 2009. 14 O Concerto para Guitarra foi estreado em 6 de fevereiro de 1956 em Houston (Estados Unidos da América), tendo Andrés Segovia [1893-1987) como solista; regência do compositor. 10 11

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O Sentimento do Nada que Gera o Amor A investigação das possibilidades de expansão do repertório para quarteto de guitarras através de novas obras e arranjos tem sido a proposta central do Quaternaglia Guitar Quartet desde a formação do grupo.15 No que tange a Villa-Lobos – uma escolha óbvia para um ensemble motivado em aprofundar as complexidades da cultura brasileira –, interessou especialmente o desafio de explorar composições escritas para diferentes formações, nas quais o imaginário do autor evocasse a escrita de instrumentos de cordas dedilhadas, como cavaquinho, bandolim, viola caipira e, é claro, o violão – a denominação usual tipicamente brasileira para a guitarra. Um passo importante para o amadurecimento das alternativas técnico-poéticas desse projecto foi dado através do contacto com uma ousada transcrição para quatro guitarras da Bachianas Brasileiras n.º 1 (peça original para orquestra de violoncelos) realizada pelo guitarrista e luthier Sérgio Abreu.16 A primeira versão dessa rigorosa e criativa recriação foi gravada em 1995, no primeiro álbum do grupo. Quinze anos depois – após Abreu revisar o arranjo –, um novo registro foi realizado para o CD Estampas (2010). Foi através de uma obra de Villa-Lobos, portanto – ao lado do mergulho na interpretação das peças originais do cubano Leo Brouwer –, que o Quaternaglia começou a trilhar um caminho próprio de expansão do repertório.17 O programa preparado pelo Quaternaglia para a edição de 2016 do Festival Terras sem Sombra inclui três obras de Villa-Lobos, cada uma delas proveniente de uma fase diferente de sua produção.

A Lenda do Caboclo foi escrita para piano solo em 1920 e carrega em suas melodias a sacralidade simples das histórias caipiras, as lendas do interior do Brasil. Ademais, como a maior parte das obras das fases iniciais de Villa-Lobos, traz também elos harmónicos com a música francesa do início do século XX. Em seu sentido mais amplo, caboclo é a designação que se dá ao homem do interior e, na região norte do país, o termo caracteriza muitas vezes a mestiçagem entre índios e brancos. Traços do toque típico

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Em 1992, na cidade de São Paulo (Brasil). Antes de se dedicar à construção de guitarras, Sérgio Abreu integrou (com Eduardo, seu irmão) o histórico Duo Abreu, reconhecido como um dos mais importantes conjuntos de câmara do mundo nas décadas de 1960 e 1970. Os quatro instrumentos utilizados pelos membros do Quaternaglia foram construídos por ele. 17 Se essa versão da Bachianas n.º 1 de Villa-Lobos se tornou um modelo para novas possibilidades de arranjos, a obra de Brouwer (1939) foi um parâmetro importante para a interacção com compositores, visando a criação de novas peças para quarteto de guitarras. Cabe destacar que o Quaternaglia gravou a obra original de Brouwer no seu primeiro CD e estreou no Brasil os seus dois concertos para quatro guitarras e orquestra, tendo também actuado como solista em concertos orquestrais sob a sua direcção em diversas oportunidades, tanto no Brasil como em Cuba. 16

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da viola caipira – guitarra de cinco pares de cordas de aço, que descende da antiga viola de arame portuguesa – são destacados pela singela e eficaz transcrição de Eduardo Fleury.18 Já o Choros n.º 5, “Alma brasileira” (igualmente original para piano), é da fase modernista do compositor, posterior à sua participação na Semana de Arte Moderna (no Theatro Municipal de São Paulo, em 1922). Foi composto em 1925, entre a primeira e a segunda estadias do compositor em Paris. A versão para quatro guitarras, dedicada ao Quaternaglia pelo guitarrista e compositor João Luiz, procura ressaltar as ousadias rítmicas stravinskianas da segunda seção da peça, nem sempre evidenciadas nas interpretações pianísticas. Tal como em um desenvolvimento de sonata, a agitada segunda parte sucede a exposição lenta de dois temas, o primeiro em mi menor (repetido com variação) e o segundo em mi maior. Villa-Lobos, no entanto, interrompe a forma clássica bruscamente ao recapitular apenas o primeiro tema, recusar a repetição variada e não dar o espaço esperado à coda. A “alma brasileira” pede uma forma abrupta e fica apertada nela. Sua conexão com o choro popular é repleta de mediações: é um choro irreal, implícito, onírico, que certamente não seria reconhecido como tal por um chorão profissional. Escrita para orquestra de cordas ou coro a cappella, a derradeira Bachianas Brasileiras

n.º 9, de 1945, compõe-se de um breve prelúdio lento (“Vagaroso e místico”) e de uma fuga em compasso 11/8 (“Poco apressado”). A corajosa versão, dedicada ao Quaternaglia pelo jovem maestro Thiago Tavares, faz caber nas quatro guitarras o incabível orquestral. Ao longo do ciclo das nove Bachianas, Villa-Lobos concebeu quatro “fugas brasileiras”, todas utilizadas como movimentos finais de suas respectivas obras: o terceiro movimento da Bachianas n.º 1 (para orquestra de violoncelos), o quarto movimento das Bachianas

n.º 7 e n.º 8 (ambas para orquestra) e, enfim, o segundo e último movimento da n.º 9. Em duas delas (n.º 1 e n.º 8 ), ao termo “fuga” o compositor acrescenta a expressão “conversa”, como que em referência a uma roda de choro, a conversa polifônico-instrumental dos músicos populares do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Na Nona de Bachianas, a exposição do tema principal (o sujeito da fuga) dura quatro longos e hesitantes compassos na métrica incerta de 5+6 (ou 2+3+2+2+2) tempos. Porém, no original para cordas, sucedem sete entradas: violoncelos com resposta nas violas; contrabaixos com resposta nos segundos violinos; primeiros violinos com resposta dobrada por eles mesmos em oitava; e contrabaixos oitavados com cellos. Os episódios são muito especulativos, e a resolução – como muitas vezes em Bach – passa pelo sofrido encontro do círculo de quartas no “Grandioso” final.

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Fleury foi um dos fundadores do Quaternaglia e integrou o quarteto durante dez anos.

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Villa-Lobos não teve nenhum problema para superar a marca beethoveniana limite da “nona” obra nem no ciclo dos Choros (12 obras), nem no das sinfonias (11 obras no total, mas com numeração igualmente até 12, já que não se tem notícia nenhuma da

Sinfonia n.º 5 ). Nas Bachianas, entretanto, detém-se precisamente no número nove. Assim, a última obra parece ter um caráter de consumação, que não passou despercebido ao cineasta Glauber Rocha. Em uma cena central do filme Terra em Transe (1967), no meio de uma ruidosa manifestação popular-populista, a personagem Paulo Martins (vivida pelo ator Jardel Filho) mergulha subitamente em seu mundo interior a partir da irrupção da “Fuga” das Bachianas n.º 9: “Qual é o sentido da coerência? [...] Este povo alquebrado sem nenhum vigor. Este povo precisa de morte mais do que se possa supor. O sangue que estimula no irmão a dor. O sentimento do nada que gera o amor. A morte como fé, não como temor.”

Ouvimos sua voz interna, como se o poema e a música de Villa-Lobos pudessem suspender, por instantes, o caos sem nexo da vida lá fora. Tudo isso está, de algum modo, presente na escuta dessa obra hoje, e a sonoridade resultante da adaptação para quatro guitarras se, por um lado, faz perder em grandeza, por outro limpa Villa-Lobos de sua própria grandiloquência. A aposta na personalidade frágil e homogênea da linha melódica de cada guitarra gera uma fuga-conversa entre a força e a delicadeza. Compressão dos Afectos A compressão – tanto formal como afectiva – é uma figura que não se esgota na desleitura de Villa-Lobos; além disso, é um traço que tempera a exaltação dos exotismos (clássicos e populares) e evita sobrevalorizar a festa: afinal, o Brasil não tem só alegrias a oferecer ao mundo. Esse encurtamento formal-afectivo está em Almeida Prado e Ronaldo Miranda, em Gismonti, Marco Pereira e Paulo Bellinati – compositores que também integram o programa do Quaternaglia nesta edição do Festival Terras sem Sombra.

19 O Conservatório foi criado ainda durante o período imperial por Francisco Manuel da Silva [1795-1865] e começou a funcionar em 1848, exactamente cem anos antes do nascimento de Miranda. Silva fora aluno directo do afro-brasileiro P.e José Maurício Nunes Garcia [1767-1830] – um dos mais importantes nomes da música sacra nas Américas –, que ocupava o cargo de mestre-de-capela da catedral do Rio de Janeiro em 1808, quando da transferência da corte portuguesa para o Brasil.

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Professor de composição da Universidade de São Paulo desde 2004, Ronaldo Miranda, nascido em 1948 no Rio de Janeiro, é, na verdade, um dos principais seguidores de uma tradição musical carioca que antecede o próprio brilho idiossincrático de Villa-Lobos. Miranda estudou na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, herdeira do Instituto Nacional de Música que, por sua vez, originou-se directamente do Conser vatório de Música do Rio de Janeiro.19 Há algo em Miranda que vem de Alberto Nepomuceno, 20 de Henrique Oswald 21 e, ainda mais, da conciliação amena entre cromatismo wagneriano e música francesa empreendida por Francisco Braga [1868-1945], compositor que estudou em Paris com Jules Massenet.22 Miranda cita a melodia do Hino à Bandeira, de Braga, em sua

Sinfonia 2000 , encomenda do Ministério da Cultura para celebrar os 500 anos do Brasil. Ele utiliza com o mesmo lirismo o atonalismo livre, como em Oriens III (1978), para trio de flautas, e o romantismo tonal brahmsiano, como nas Variações Sérias para Quinteto

de Sopros (1991). A Suíte n.º 3 para Piano, adaptada para quarteto de guitarras por Chrystian Dozza (integrante do Quaternaglia), foi escrita em 1973, quando o compositor ainda estudava com Henrique Morelenbaum na UFRJ. Em 1979, a obra foi selecionada pelo compositor Guerra-Peixe para fazer parte de uma coleção de música brasileira editada pela casa Irmãos Vitale. Seus movimentos são: I-Allegro; II-Allegretto; III-Lento; e IV-Allegro gracioso. Tudo se dá com extraordinária elegância, energia e concisão.23 Cinco anos mais velho do que Miranda, José Antônio Rezende de Almeida Prado [1943-2010] é um dos mais interessantes nomes da música clássica brasileira em qualquer tempo. Nascido em Santos, no litoral paulista, conecta-se diretamente com o modernismo de São Paulo, tendo estudado tanto com o nacionalista Guarnieri, como com o vanguardista Koellreutter. Almeida Prado foi discípulo de Nadia Boulanger [1887-1979] e Olivier Messiaen [1908-1992] em Paris, o que refinou sua maestria no caminho de uma espécie de espectralismo intuitivo, cujo exemplo modelar é a série das Cartas Celestes (1974-2001).24 Natureza, misticismo e religiosidade são as suas principais motivações, bem como um uso virtuosístico das ressonâncias dos harmônicos superiores e inferiores. 20

Alberto Nepomuceno [1864-1920] nasceu em Fortaleza (Ceará). Na Europa, foi muito próximo do compositor norueguês Edvard Grieg [1843-1907]. 21 Henrique Oswald [1852-1931] nasceu no Rio de Janeiro e estudou em Florença. 22 Jules Massenet [1842-1912] foi professor de composição no Conservatório de Paris. 23 A versão para quatro guitarras está no CD Xangô, lançado em 2015 pelo Quaternaglia. 24 O pós-serialismo de Almeida Prado – que ele preferia denominar “transtonalismo” – assemelha-se à música espectral de Tristan Murail [1947-] e Gérard Grisey [1946-1998], mas Prado jamais abandona o controle totalmente auditivo e empírico.

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As XIV Variações sobre o Tema de Xangô foram escritas originalmente, em 1961, para piano solo – época em que o músico de apenas 18 anos estudava com Guarnieri –, mas essa primeira versão não foi editada. Para uma gravação feita em 1998, o autor acrescentou à partitura pianística uma linha de fagote e, finalmente, em 2003, para uma comemoração de seus 60 anos de idade, Almeida Prado retrabalhou-a juntamente com o Quaternaglia, visando uma versão definitiva para quatro guitarras, que foi estreada no dia 27 de outubro daquele ano na cidade de Curitiba.25 O Canto de Xangô aparece grafado na segunda parte do Ensaio sobre a Música Brasileira, de Mário de Andrade [1893-1945], na secção sobre canto religioso.26 O Ensaio foi publicado em 1928, no mesmo ano em que o escritor e musicólogo lançou o romance modernista

Macunaíma. São apenas duas frases musicais curtas, contendo as notas de um pentacorde menor, lá-si-dó-ré-mi. Abaixo da partitura recolhida e anotada, Andrade comenta: “Esta encantação de origem africana provém das macumbas do Rio de Janeiro. Xangô, diz na revista musical inglesa Fanfarre n.º 4 o escritor Watson Lyle, é o deus do trovão entre os negros iorubas. De iorubas o Brasil se encheu na época de sua escravatura. No Nordeste, por informação que me deu Asencio Ferreira, poeta, Xangô é uma dança especial. Esses deuses africanos aliás não só entraram a se identificar com os santos, anjos e Deus católicos, como ainda se espalharam pra dar nomes de danças e até de ajuntamentos humanos [...]. A indicação rítmica que grafei é exata na medida do possível. Tem também um rubato eminentemente oratório nessas encantações que escapa a qualquer grafia métrica. Mesmo porque varia no mesmo cantor cada vez que ele entoa o canto.” 27

Pensado como um tema variado típico, na linha dos exercícios de contraponto livre propostos pelo ensino nacionalista de Guarnieri e Osvaldo Lacerda [1927-2011] – cujo mentor havia sido o próprio Mário de Andrade –, é transfigurado de maneira premonitória por Almeida Prado, antecipando a futura influência que receberia de Messiaen. A primeira variação já distorce radicalmente a harmonia quase pentatônica do tema, como que tomando conta do território para poder navegar. A terceira duplica o tamanho

25

O guitarrista João Luiz – que integrou o Quaternaglia durante sete anos – assinou a versão final referendada pelo compositor e que incorpora também a linha de fagote que havia sido acrescentada ao piano original no final dos anos 1990. A versão para quatro guitarras das XIV Variações sobre o Tema de Xangô foi gravada pelo Quaternaglia para o CD Xangô, lançado em 2015. 26 MÁRIO DE ANDRADE, Ensaio sobre a Música Brasileira, Belo Horizonte, Itatiaia, 2006, p. 83. 27 Id., op. cit., pp. 83-84. Obviamente, as informações sobre os cultos afro-brasileiros são muito mais completas hoje do que no início do século XX, mas, de toda a forma, vale a pena salientar o pioneirismo etnomusicológico de Mário de Andrade.

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original e, pela primeira vez, enuncia o compasso ternário, e a quinta prescreve pela primeira vez fórmulas de compasso diferentes simultâneas para dar conta da divisão binária ou ternária de cada voz, o que é levado ao limite na densa oitava variação. A nona surge em 5/8, e a décima propõe uma engenhosa polirritmia entre melodia (sempre em 4/8) e acompanhamento (variando constantemente: 5/8, 7/8, 5/8, 6/8, 7/8, 5/8). Enfim, a complexidade segue pelas variações doze (uma cantiga de ninar modal em 5/8) e treze (que desdobra o tema num louco duelo stravinskiano de contratempos), para desaguar em final apoteótico. Toda essa densidade dá-se sobre um canto religioso curto, estático, que ganha sentidos internos graças a um processo de compressão sonora. Mas não é só: nas Variações

Xangô, Almeida Prado parece apertar igualmente a afetividade brasileira – no mínimo, luso-afro-brasileira – em cada epigrama sonoro. Assim, a indicação expressiva de cada variação parece gerar o molde para um Affektenlehre (teoria dos afectos) brasileiro: tema: lento; I-calmo; II-distante; III-apaixonado; IV-alegre; V-saudoso, VI-nostálgico; VIIcom humor; VIII-choroso; IX-saltitante; X-sereno; XI-gracioso; XII-com ternura; XIIIagitado; XIV-festivo. É a capacidade artesanal-musical somada a uma compreensão cultural profunda, sem ingenuidades. Música de Sobrevivência Tal como Almeida Prado, Egberto Gismonti28 estudou com Nadia Boulanger em Paris, onde teve também contato com o compositor serialista Jean Barraqué [1928-1973]. Mas passou um tempo no Xingu com o pajé Sapaim antes de começar, de fato, a encantar o mundo com extraordinárias performances – ao piano e à guitarra de dez cordas – de suas próprias composições. A sua música é herdeira do virtuosismo de Pixinguinha, do piano de Nazareth29 e da guitarra de Baden Powell, e nela é possível detetar igualmente as presenças de Villa-Lobos e Stravinski traduzidos para o sertão do Nordeste brasileiro. É possível agrupar as suas obras em duas categorias principais: as “músicas de sobrevivência”, peças polirrítmicas de caráter urbano, que jamais barganham com o tempo (como se o tempo musical, invariavelmente alucinante, pudesse aplacar a fome, distrair o estômago sem perder a alegria da festa), e a simplicidade das “canções instrumentais”. São exemplos do primeiro grupo os quatro temas autorais que Egberto escolheu trabalhar composicionalmente para quatro guitarras, e que foram dedicados por ele ao Quater-

28 29

Nascido em 1947 na cidade de Carmo, no interior do Rio de Janeiro. O pianista popular Ernesto Nazareth [1863-1934) nasceu e morreu no Rio de Janeiro.

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naglia: Forró, Karatê, Quartetinho e Forrobodó;30 do segundo grupo, as “canções sem palavras”, Água e Vinho, A Fala da Paixão e Um Anjo – esta última escolhida para o recital do quarteto no Festival Terras sem Sombra.31 A silenciosa versão de Um Anjo, gravada pelo Quaternaglia para o CD Forrobodó (2000) e também para o DVD ao vivo

Quaternaglia (2006), tem arranjo do guitarrista brasileiro Paulo Porto Alegre. Gismonti escreveu Um Anjo como parte da trilha sonora da adaptação cinematográfica do romance Quarup (1967), de Antonio Callado [1917-1997], dirigida pelo cineasta Ruy Guerra em 1989.32 O quarup é um ritual de reverência aos mortos dos índios do Xingu que só acontece eventualmente, em momentos muito especiais. Um tronco de madeira – o quarup – é decorado para representar o antepassado que morreu, sendo ajudado por cantos e danças a encontrar o caminho da bem-aventurança. Danças em torno do quarup duram a noite toda; seguem-se-lhes, na manhã seguinte, lutas rituais. Os índios que participarão das lutas não devem adormecer, pois os seus sonhos poderiam influenciar o resultado.

Sete Anéis, tema de Gismonti no qual a referência ao choro pianístico de Ernesto Nazareth surge de forma bastante explícita, foi a inspiração para Chrystian Dozza compor Sobre

um Tema de Gismonti.33 Juntamente com Dança dos Quatro Ventos (2006), de Marco Pereira, e Frevo e Fuga (2010), de Paulo Bellinati, são peças virtuosísticas que se equilibram criativamente nos ritmos populares tratados no idioma particular do violão brasileiro.34

Dança dos Quatro Ventos oferece um galope brasileiro com sabor jazzístico, e Frevo e Fuga apresenta o ritmo do carnaval de Olinda (no litoral de Pernambuco, Nordeste do Brasil) na forma de um fugato barroco. Assim, na segunda década do século XXI, Brasil e Barroco continuam a conversar; na leveza das guitarras, seguem as pistas bachianasbrasileiras inventadas por Villa-Lobos.

30

Gismonti buscou uma aproximação com o Quaternaglia após escutar as obras de Stravinski, Villa-Lobos e Leo Brouwer gravadas no primeiro CD do grupo (Quaternaglia, 1995). Daí adveio o início de uma colaboração que culminou com o lançamento, no ano 2000, do CD Forrobodó, do Quaternaglia, produzido pelo músico para o seu próprio selo, Carmo, e distribuído pela gravadora alemã ECM. Gismonti também preparou uma versão de Forrobodó para quatro violões e orquestra, destinada a ser estreada no I International Guitar Festival at Round Top (Estados Unidos da América) em 2005. 31 SIDNEY MOLINA, Música Clássica Brasileira Hoje, São Paulo, Publifolha, 2010, pp. 50-53; id., “Egberto Gismonti”, em ARTHUR NESTROVSKI (dir. de), Música Popular Brasileira Hoje, São Paulo, Publifolha, 2002, pp. 80-81. 32 Ruy Guerra nasceu em Moçambique em 1931 e radicou-se no Brasil em 1958. 33 Nascido em Machado (MG) em 1983, Dozza preparou quase simultaneamente duas versões de Sobre um Tema de Gismonti: a versão solo, registrada por ele mesmo no CD Despertar, e a versão para quarteto, gravada pelo Quaternaglia no CD Xangô. 34 Marco Pereira e Paulo Bellinati nasceram em São Paulo, em 1950. Ambos têm dedicado obras ao Quaternaglia, como Açaí com Tapioca, de Pereira (gravada em 2012 no CD Jequibau, a par de outras duas peças de Pereira, Sambadalu e a própria Dança dos Quatro Ventos) e, de Bellinati, A Furiosa (gravada no CD Forrobodó, 2000, e no DVD ao vivo Quaternaglia, 2006); Baião de Gude (nos CD Forrobodó e Jequibau); Lun-Duos (CD Forrobodó); Carlo’s Dance (CD Jequibau); o próprio Frevo e Fuga (CD Jequibau) e Maracatu da Pipa (CD Xangô, 2015).

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Quaternaglia Guitar Quartet

É aclamado como um dos mais importantes quartetos de violões (guitarras) da actualidade, tanto pelo alto nível de seu trabalho camerístico, como pela sua importante contribuição para a ampliação do repertório. Ao longo de mais de vinte anos de actuação, vem estabelecendo um cânone de obras originais e arranjos audaciosos, o que inclui a colaboração com compositores da craveira de Leo Brouwer, Almeida Prado, Egberto Gismonti e Paulo Bellinati. A sua actuação começou a despertar o interesse da crítica internacional após a obtenção do Ensemble Prize no Concurso Internacional de Guitarra de Havana (Cuba) e da participação em importantes séries de guitarra e música de câmara nos Estados Unidos da América. Entre a sua discografia, salientam-se os CD Quaternaglia, Antique, Forrobodó, Presença, Estampas Jequibau e Xangô, e o DVD Quaternaglia (gravado ao vivo). Tem-se apresentado em Nova Iorque, Chicago, Los Angeles, Dallas, Lisboa, Porto, Buenos Aires e em mais de 15 estados brasileiros, além de ministrar masterclasses e palestras na Universidade de Yale e no Conservatório de Coimbra, entre outras instituições. Em 2012, por ocasião das celebrações de seu 20.º aniversário, actuou como solista convidado da Sinfónica Heliópolis, regida por Isaac Karabtchevsky, na Sala São Paulo desta capital. No ano seguinte, apresentou o Concerto Itálico, de Leo Brouwer, sob a regência do compositor, no Teatro Nacional de Havana. Em 2014, realizou uma digressão na Austrália e, em 2015, apresentou-se em Minneapolis e na Jacobs School da Universidade de Indiana, em Bloomington. Os músicos do Quaternaglia utilizam três violões de seis cordas e um violão de sete cordas especialmente construídos pelo luthier brasileiro Sérgio Abreu.

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Sidney Molina Viola e direcção musical

Natural de São Paulo. Os seus estudos regulares de música, iniciados aos 7 anos, realizaram-se no Conservatório Musical Paulistano, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e nos grupos de estudo do músico e filósofo Ricardo Rizek. Fez o bacharelato em Filosofia na Universidade de São Paulo e especializou-se em Musicologia na Faculdade Carlos Gomes. Obteve o doutoramento em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Estudou guitarra com Manuel Fonseca, Armando Vidigal e Edelton Gloeden, e desenvolveu, desde cedo, uma intensa actividade relativa à didáctica deste instrumento e da música em geral, o que o levou a fundar – juntamente com a esposa, a especialista em educação musical Olga Molina – o Conservatório Mozart, de São Paulo. Como guitarrista fundador do Quarteto Quaternaglia, participou em todas as formações, gravações e concertos do grupo, no Brasil e no exterior. Enquanto solista, apresentou-se em 2008 no Suntory Hall de Tóquio, em programa dedicado à música brasileira. Idealizador e apresentador de séries de programas radiofónicos veiculados pela Rádio Cultura FM de São Paulo, tem actuado como concertista, docente e palestrante, e participado em júris de concursos de eventos guitarrísticos e camerísticos, dentro e fora do Brasil. É professor de Guitarra, Música Brasileira e Estética Musical do Curso de Música do UNI FIAM/FAAM, de São Paulo, e do Instituto Estadual Carlos Gomes, de Belém do Pará. Exerce regularmente a crítica de música clássica no jornal Folha de S. Paulo e escreveu vasta bibliografia, da qual se destacam os livros Mahler em Schoenberg: Angústia da Influência na Sinfonia de Câmara n. 1 (2003) e Música Clássica Brasileira Hoje (2010).

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Concerto VI

SERPA

21 de Maio 21H30

ONHEAMA, de João Guilherme Ripper Ópera para o público infanto-juvenil, baseada no poema A Infância de Um Guerreiro, de Max Carphentier

Orquestra Sinfónica Portuguesa Coro Teatro Nacional de São Carlos Direcção Giovanni Andreoli Coro Juvenil do Instituto Gregoriano de Lisboa Direcção Filipa Palhares Cenografia e figurinos Miguel Costa Cabral Direcção musical Marcelo de Jesus

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SERPA

Cineteatro Municipal de Serpa

MARIA JOÃO VIEIRA

Situa-se na Rua Dr. Eduardo Fernandes de Oliveira, a pouca distância do perímetro amuralhado da cidade de Serpa, junto do denominado “Bairro Operário”, projectado pelo arquitecto António Lino e construído nos anos 50 do século XX. Foi inaugurado em Dezembro de 1993 com o objectivo de dotar o concelho de uma infra-estrutura qualificada, polivalente e dinâmica, potenciadora do aumento e da diversidade da oferta cultural, não apenas ao nível da divulgação, mas também da criação e da produção artísticas. Nesse sentido, a par de uma programação que abrangesse todas as artes do espectáculo (música, dança e teatro) e o cinema, pretendeu-se que o Cineteatro se afirmasse como um importante recurso da comunidade, particularmente da comunidade educativa, dos artistas, dos criadores e das iniciativas culturais locais. O projecto de arquitectura foi assinado pelo atelier T5 – Planeamento, Arquitectura, Engenharia e Construção, e coordenado pelo arquitecto Rui Moreira Braga. A obra foi executada por administração directa da Câmara Municipal. A área de construção do edifício é de aproximadamente 4200 m2, e os diferentes espaços funcionais distribuem-se por cinco pisos. O auditório, com lotação máxima de 388 lugares sentados, constitui o elemento central do imóvel. Está equipado com cabines de tradução que permitem criar condições para acolher seminários, colóquios, conferências, a par da vertente de sala de espectáculos e de cinema. Outra das suas especificidades é o facto de possuir um fosso de orquestra, possibilitando, assim, a realização de espectáculos de ópera e concertos. Para além dos espaços afectados ao funcionamento do auditório (camarins, foyer, oficina, arrecadações, gabinetes, etc.), o edifício tem ainda uma área para exposições e uma sala polivalente com capacidade para 75 lugares sentados.

Sol (atributo de imagem). Século XVIII, primeira metade. Serpa, Igreja do Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação. >

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Fiat Lux

JOÃO GUILHERME RIPPER

A mitologia amazónica é rica em imagens poéticas e personagens que povoam o imaginário dos habitantes da floresta: a onça Xivi que caminha no céu com seus olhos brilhantes e apetite imenso; Tupã, o deus supremo; Guaraci, o deus-sol; Jaci, a deusa-lua; Iara, a rainha das águas; as vitórias-régias, mulheres que morreram de paixão transformadas em flores banhadas pelo luar no remanso dos rios; o boto cor-de-rosa que, à noite, se transforma em um belo rapaz para seduzir as moças incautas. Quando o Festival Amazonas de Ópera me encomendou uma ópera inédita para celebrar a sua 18.ª edição, em 2014, foi sugerido como ponto de partida o poema épico A Infância

de Um Guerreiro, do escritor amazonense Max Carpenthier. Os versos narram as aventuras de um menino-guerreiro e a sua relação íntima com os habitantes reais ou mitológicos da Amazónia. A partir do poema, embrenhei-me numa verdadeira floresta de símbolos, crenças e rituais para construir o libreto de Onheama, que significa eclipse em língua tupi, fenómeno tão fascinante quanto aterrorizante, pois cobre o mundo com o véu da escuridão. A mitologia indígena interpreta o eclipse como a acção maléfica de Xivi, a terrível onça celeste, que devora Guaraci, o sol, e depois sai à caça das estrelas e de Jaci, a lua. O dia em que Xivi conseguir engolir tudo o que reluz no céu e saciar a sua fome tremenda, o mundo acabará. Somente um guerreiro corajoso e de coração puro poderá salvar a Amazónia e a Terra do terrível monstro. Nosso herói chama-se Iporangaba, uma espécie de “Siegfried amazónico”, como bem notou Juan Ángel Vela del Campo, director artístico do Festival Terras sem Sombra, que esteve presente na estreia, em Maio de 2014, no Teatro Amazonas. A música é inspirada em ritmos e melodias indígenas, mas não recorri a nenhuma fonte etnomusicológica específica. Preferi basear-me na memória auditiva e na adequação dramática da música ao texto para construir as cenas. Os ballets têm forte presença de instrumentos de percussão, sobretudo quando Tuxaua, o líder da tribo, convoca os guerreiros para “dançar uma dança tremenda e espantar Xivi, animal traiçoeiro”. A coreografia da montagem original reproduzia a realidade das tribos amazónicas, que simulam a caça e captura da onça para espantar Xivi e salvar o Guaraci, o sol.

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Sempre sublinhando a linha dramática do enredo, a linguagem musical passeia livre entre o tonal e o atonal. Preocupei-me também em definir musicalmente o perfil psicológico de cada personagem através das linhas vocais e da instrumentação. Por fim, empreguei “motivos condutores” para remeter a situações anteriores ou a personagens específicos, mas sem a preocupação de fazê-lo sistematicamente, como Wagner em suas óperas. Com a sua mensagem ecológica, Onheama destina-se originalmente ao público infanto-juvenil. Através da presença de um menino-cantor no papel principal e do coro de curumins (crianças), procurei colocar nas mãos dos futuros guerreiros a responsabilidade de preservar o planeta contra todos os tipos de ameaça à nossa luz.

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Sinopse

Acto 1 A ópera tem como palco a Amazónia mítica, atemporal, onde habitam para sempre os valentes Manaós. O dia é luminoso. Guerreiros, jovens, mulheres e curumins povoam a mata com seus cantos, afazeres, jogos, caçadas e brincadeiras. De repente, ouve-se o rugido de Xivi, que devora Guaraci e mergulha a Amazónia na escuridão. A floresta cala. Tuxaua, chefe dos Manaós, desafia Xivi e convoca a tribo para uma dança tremenda que afugente a terrível onça celeste. A dança não surte o efeito desejado, a escuridão persiste e, pouco a pouco, os Manaós dispersam-se, desanimados, revelando Nhandeci, a sábia mãe-de-todos, que canta a visão que teve: Guaraci ainda vive na barriga da onça e apenas um guerreiro dentre todos poderá salvá-lo antes que o sol se apague para sempre. Tuxaua pergunta quem é o bravo que resgatará Guaraci, e os curumins mostram-lhe Iporangaba, filho da floresta, menino predestinado a ser o maior de todos os Manaós. Tuxaua espanta-se ao ver uma criança, mas Nhandeci assegura-lhe que Iporangaba é o único da tribo capaz de salvar Guaraci. Os Manaós saúdam Iporangaba, e Tuxaua sagra-o com o colar de Tupã, enviando-o à difícil missão de salvar Guaraci e a vida de seus irmãos. Acto 2 Iporangaba prepara sozinho as flechas e outros apetrechos que levará na sua longa jornada à caça de Xivi. Toda a floresta canta a sua origem e o seu destemor, mas ele vive um momento de dúvida: conseguirá derrotar o monstro? As águas do rio agitam-se e surge um cortejo de Vitórias-Régias à frente da jovem Iara, que reafirma a Iporangaba a sua têmpera de herói, oferecendo-se para acompanhá-lo. Iporangaba, agora confiante, aceita a ajuda. Subitamente, aparece Boto, transformado em rapaz bonito e vaidoso, que sai do rio, à noite, em busca de lindas cunhãs (“meninas bonitas”, em tupi) para namorar. Apressado para tentar as suas conquistas amorosas, Boto pergunta a Iporangaba se gostaria de aprender as “artes do bem-querer”. Iara interrompe e relata a difícil missão que os aguarda, acrescentando que, caso o dia não volte, nunca mais Boto ele será, acabando triste e velho, longe das águas do rio. Boto, abalado com a notícia, canta uma pungente canção de despedida a todas as cunhãs e decide juntar-se aos dois na busca de Xivi.

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Acto 3 Xivi caminha de um lado a outro na sua toca, com Guaraci preso no ventre. Em sua fome eterna, promete devorar ainda Jaci e as estrelas, acabar com o mundo e dormir tranquila para sempre no vazio infinito. Iporangaba, Iara e Boto, muito amedrontado, aproximam-se do igarapé onde está a onça, mas nada enxergam por causa do escuro. O trio entoa, então, uma oração a Jaci, que envia um raio de luar para iluminar e guiá-los pelo caminho. De repente, Boto pisa num ouriço e grita de dor, acordando Xivi. A onça celeste pergunta quem ousa desafiá-la, ignorando que ela é imortal. Iporangaba responde que jamais permitirá que os seus irmãos e a Amazónia desapareçam. A onça ataca e os três tentam escapar, mas Iara cai ferida. Boto, vencendo o medo, coloca-se à sua frente da Iara, defendendo-a do golpe fatal da onça com um grande grito. Aproveitando o momento de hesitação, Iara joga para Iporangaba um saco de sementes de Paricá (árvore amazónica) que provocam espirros sem fim, a única maneira de derrotar a fera. Os Manaós surgem pouco a pouco entre as árvores e acompanham, apreensivos, a grande cena. Iporangaba só terá uma oportunidade para acertar em Xivi, que continua a atacar, ameaçando devorar todos ali. O menino envolve a sua flecha nas sementes de Paricá, mira cuidadosamente o focinho da onça e dispara, acertando em cheio. Xivi começa a espirrar sem parar até que, completamente zonza, vomita Guaraci enquanto foge. “Coema porã”, linda manhã, volta à Amazónia! Boto retorna às águas, os pássaros voltam a cantar. Tuxaua, Nhandeci, curumins e todos os Manaós em júbilo profetizam o grande futuro do jovem guerreiro Iporangaba.

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[AD LITTERAM]

Xivi levou-nos o dia, a caça e a festa Calou bem-te-vi, pousou Açanã

ACTO 1

A floresta adormeceu Terrível onça celeste

Manhã na floresta amazónica. Índios da tribo dos

Devorou Guaraci

Manaós realizam atividades diversas, enquanto

Assustou cunha porã

um grupo de crianças brinca ao redor.

Xivi! Xivi! Tuxaua te chama! Xivi devorou o sol! Trouxe Yamí, a noite

CORO DE CURUMINS:

Guaraci onheama! Guaraci onheama!

Ah, ah, ah, ah, ah Nhamandu Jogueru tenonde omãnhê.

Vamos, irmãos, dançar uma dança tremenda

Pãvê jajeroji tekoa py javiá.

para espantar Xivi, animal traiçoeiro

Epuá jevi xonaroi, jajeroi nhanderu oxa aguá

antes que ela devore lua e estrelas

Nhamandu Jogweru tenonde omãnhê

Jaci-Tatá! E acabe com o mundo inteiro

Nhanderu!1

A escuridão persiste. Aos poucos, os índios comeCanto da tribo e jogos dos jovens guerreiros.

çam a dispersar desanimados, revelando em um canto da cena Nhandeci, a mãe da aldeia, sentada,

CORO DOS ÍNDIOS

desenhando no chão com uma vareta.

Ê, ê, ê, ê, Nhanderu, ê, ê, ê, ê, javiá Ê, ê, ê, ê, Nhanderu, ê, ê, ê, ê, javiá

NHANDECI

Ê, ê, ê, ê, Nhanderu, tenonde omanhê

Escute, Tuxaua, o que agora te digo:

Ê, ê, ê, ê, jageroi tecoa pi javiá

Xivi devorou Guaraci, mas Guaraci ainda vive

Ê, ê, ê, ê, Nhanderu, ê, ê, ê, ê, javiá2

no fundo da barriga imensa, a três palmos do umbigo

Começa a escurecer no meio da manhã. Os índios

Foi a visão que tive, foi a visão, Tuxaua

olham assustados para o céu. Tuxaua, chefe da

A luz da manhã jamais voltará

tribo, vai para o centro da cena.

Sem a luz, Guaraci vai morrer! Paba! Somente um irmão corajoso e guerreiro

TUXAUA

Conseguirá a Onça Celeste vencer!

Xivi! Xivi! Tuxaua te chama! Xivi devorou o sol! Trouxe Yamí, a noite

Entre os Manaós só há um bravo

Guaraci onheama! Guaraci onheama!

que pode nossas vidas salvar

Xivi! Xivi!

Livrar Guaraci dessa teia. Nhanduti! Trazer de volta os sons e a alegria

Fogem os bichos, cala a floresta Tudo é escuro, acabou-se a manhã

TUXAUA

Onde está a manhã, Xivi?

Então, Nhanceci, diga quem é esse bravo Para que eu o chame logo aqui

1

“O sol nasce com seus raios e sua sabedoria / Todos nós reverenciamos a Deus na aldeia / Levantem-se guerreiros para agradecer e dançar / Nosso pai supremo / O sol nasce com seus raios e sua sabedoria / Grande deus!” 2 “Ê, ê, ê, ê, grande deus, ê, ê, ê, ê, todos nós / Ê, ê, ê, ê, grande deus, ê, ê, ê, ê, todos nós / Ê, ê, ê, ê, deus verdadeiro, nós reverenciamos / Ê, ê, ê, ê, levantem-se guerreiros para agradecer e dançar / Ê, ê, ê, ê, grande deus, ê, ê, ê, ê, todos nós”.

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Diga quem é esse grande guerreiro

TUXAUA

que enfrentará a Onça e salvará Guaraci

Aproxime-se, Iporangaba

CORO DE CURUMINS

Tuxaua coloca o colar de Tupã em Iporangaba.

Ei-lo feliz, correndo pela mata pés mais ligeiros do que os da cutia

Com este colar de pedras sagradas

tintas no rosto, os braços levantados

Eu te envio à mais difícil missão

numa algazarra de quem ganha o mundo

De salvar Guaraci e a vida de teus irmãos

Iporangaba Curumim! Iporangaba! CORO DOS ÍNDIOS IPORANGABA

A sábia selva salva

Ouçam pássaros, ouçam todos:

preserva e cria sem cessar a vida

Minha esta terra, as árvores são minhas,

TODOS

ventos e aromas e animais e roças,

Parte, Iporangaba!

fontes que andam e que chamam rios

Um Gênesis repete a cada dia, dota de eternidade o indispensável,

Ao lume das fogueiras me contaram

seja semente, água, vocação, raiz

que Tupã deu-me ao céu os meus padrinhos

Iporangaba!

IPORANGABA E CORO DE CORUMINS

Iporangaba parte.

Ao céu os meus padrinhos: Jaci, a Lua, a de colar de estrelas Guaraci, pajé da aurora.

ACTO 2

TUXAUA (PARA NHANDECI)

Beira de rio. Iporangaba sozinho fabrica flechas

Um menino? Um Curumim?

e prepara sua expedição.

Ele não terá forças para o combate será presa fácil da onça malvada

CORO DE ÍNDIOS

Guaraci apagará e a noite será eterna

Sou menino índio que sonha glórias Inspiro-me nas asas da andorinha

NHANDECI

Para alcançar cantando os cumes belos.

Acredite naquilo que eu digo por tudo que eu já vivi

IPORANGABA

Iporangaba é o único da tribo

Jamais me fez tremer o urro da onça

capaz de salvar Guaraci

Nem as histórias de Mapinguari Nunca a coruja amedrontou meu sono

CORO DOS ÍNDIOS E CORO DE CURUMINS

Guerreiro desde o berço já fiz flechas

Olhos da selva, olhem pelos meus olhos

Dos talos mais certeiros das palmeiras.

para no espaço-tempo contemplar

Mas não sei onde devo encontrar

Iporangaba quando era menino.

A grande Onça Celeste que devorou Guaraci

Saber que forças, vegetais e humanas, que sonhos ancestrais, lendas e dores

O rio começa a agitar-se e torna-se encantado.

deram à criança a têmpera do herói

De dentro dele surgem as Vitórias-Régias e Iara.

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VITÓRIAS-RÉGIAS

IARA

Jaci, nossa mãe nos contou

Quando a luz voltar, o povo crescerá

Jaci, nossa mãe nos contou

Livre e forte no amor por estas águas

Saibam, lendas, que a Iara

Forte e livre no amor por este chão

também criança foi. Eis a parceira De Iporangaba na feliz infância.

IPORANGABA

Jaci, nossa mãe nos contou

Eu sei, vou conseguir, a Terra vou salvar

Jaci, nossa mãe nos contou

Tupã protegerá a luz de Guaraci

Ele brinca de amar dando pra ela Colares de sementes e de flores.

Iporangaba junta as suas flechas num alforje e segue beirando o rio junto com Iara, em busca da

IARA

morada de Xivi. De repente, Boto pula das águas,

Venha navegar comigo, Maninho

em forma de gente. Personagem cómico e vaidoso,

Sobre o casco veloz das tartarugas

vive penteando os seus cabelos e ajeitando a sua

Venha que te mostro o caminho

roupa.

Que leva ao grande Igarapé BOTO Onde mora Xivi, a Onça malvada

Ah! Iporangaba curumim,

Rondando o céu para sempre

Que faz pelas bandas daqui?

Devorou Guaraci, o deus sol

Veio aprender com o boto

Devorou Guaraci e a luz

As artes do bem querer?

Prendeu em seu ventre

Iporangaba curumim Quer saber como o boto

IPORANGABA

Enreda as lindas mulheres

Serei eu capaz de vencer

Em perfumes e conversas?

Xivi e sua fúria tremenda?

Com sua licença, é hora de o boto sair

Será que sobreviverei

Até que chegue a manhã

E trarei de volta a manhã?

Serei um moço encantado

Tupã me deu pés alados

Para namorar linda cunhã

Corpo firme e braço forte Não temo Mapinguari

IARA

Não sei o que é má sorte

Escute, Boto, pois direi o que penso:

Tupã me deu pés alados

A Onça Celeste engoliu Guaraci

Corpo firme e braço forte

prendendo a luz em seu ventre imenso

Não temo a onça Xivi

escureceu a floresta, calou juriti

Nem sei o que é medo de morte

Se Guaraci não voltar ao mundo sombrio Trazendo de volta Coema, o dia

IARA E IPORANGABA

Nunca mais um boto você há de ser

Maninho, eu já sonhei com teu destino

Ficará velho e feio, longe do rio

De tuxaua maior das tribos todas

longe das águas, sem alegria

Habita em ti o espírito invencível

Nunca mais rio, boto jamais!

Desta selva que é síntese de vida Você cumprirá o sonho de Tupã

BOTO

E salvará o mundo da fome de Xivi

Ah! Que triste notícia

que trouxe à Terra a eterna escuridão

Logo hoje que todo enfeitado

festival terras sem sombra

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chapéu novo e bem perfumado

ATO 3

Busco uma rede para namorar (recitativo) Adeus, cunhã, vou embora

O Igarapé onde mora Xivi fica do lado esquerdo

para onde o rio levar

do palco. A Onça caminha ameaçadoramente.

Levarei comigo teus beijos para onde quer que eu vá

XIVI

Saio enquanto é noite

Sou Xivi, a terrível Onça Celeste

antes de o sol levantar

Que vive no céu, dia e noite, a caçar

enredado em teus cabelos

Guaraci, Jaci, Araci, mãe do dia

feitiço do teu olhar

a minha agonia é saciar minha fome

Eu parto contrariado

Sou Xivi, o monstro noturno e insone

deixo contigo a canção

que passa o tempo no céu a vagar

levarei teu rosto amado

O gosto da luz é enfim recompensa

gravado em minhas mãos

Seja o calor do sol ou o frio luar

Adeus, cunhã, vou embora

Seja o sol! Seja a lua! E as estrelas!

para onde o rio quiser

Já devorei Guaraci, que aos poucos se apaga

O boto não pode voltar

A bela Jaci seguirá. Não hesito!

Enquanto manhã não houver

Depois, as estrelas e o mundo se acaba Dormirei para sempre no vazio infinito

IARA

Não hesito!

Ah! Pobre do moço tão triste que boto não tornará

Xivi deita-se e dorme. A cena escurece. Do outro

Ah! Pobre moço

lado do palco, Iporangaba, Iara e Boto, sempre

Ah! Pobre boto tão triste

medroso, caminham pela noite da floresta, com

Não voltará ao rio

seus sons noturnos e mistérios, tacteando e tropeçando sem encontrar o caminho.

IPORANGABA Vamos, boto camarada

IPORANGABA

vamos à caça de Xivi

Xivi deve dormir a sono solto

esqueça sua tristeza

com Guaraci em sua barriga pesada

Deixe seu Kiririm melhor que ficar aqui

BOTO

melhor que ficar assim

Ai, ai, ai, tremo todo, não enxergo

Venha e se torne guerreiro

o boto não está acostumado

saiba o que eu aprendi

com essas caçadas noturnas

Siga sempre lutando

que trazem um medo danado

sem jamais desistir IPORANGABA E IARA BOTO

Shhh! Vamos devagar, pisando de leve

Guerreiro não sou, tenho medo

para a onça não acordar

De verdade, um boto cor de rosa Só quer mesmo uma rede, sossego

BOTO

e chamego de uma índia formosa

Tenho medo

Não desistirei! IARA

Iporangaba, Iara e Boto partem apreensivos.

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Pode ser que a feroz criatura


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esteja mesmo perto daqui

Pisei no ouriço enrolado

Mas como achar na Amazônia escura

estava escondido e eu não adivinho

a toca da onça chamada Xivi?

agora meu pé, que é emprestado ficou todo furado de espinhos

IPORANGABA

Ai! Ai! Ai!

Está muito escuro, pouco vejo

IPORANGABA E IARA Quieto senão a onça vai acordar

IARA ... e não podemos o fogo acender

Iporangaba e Iara pedem silêncio, mas é tarde demais: Xivi acorda.

IPORANGABA, IARA E BOTO Devemos seguir por esse brejo

XIVI

para o bicho surpreender

Ah! Quem está aqui e ousa meu sono perturbar?

BOTO

Quem veio à toca de Xivi pensando que vivo irá

Não enxergo!

voltar?

IPORANGABA E IARA

IPORANGABA

Não enxergo!

Jamais permitirei que a floresta assim feneça Meus irmãos índios, a mata e aves

IPORANGABA, IARA E BOTO

Jamais deixarei que a Amazônia desapareça

Jaci, lua cheia, vem nos mostrar onde se esconde a Onça Celeste

XIVI

não sei se no norte, não sei se no leste

Por que me desafia? Não sabe que a Onça

mas sei que a morte nos pode chegar

Celeste não pode morrer? São inúteis seus gritos, menino imprudente

Jaci, lua cheia, que vive no azul

Será o primeiro valente a desaparecer

diga qual o rumo devemos seguir não sei se oeste, não sei se ao sul

Ataque de Xivi aos três. Tuxaua, Nhandeci, índios

está a malvada ainda a dormir

e curumins aparecem ao fundo e ao lado do palco, escondidos atrás de árvores, assistindo a cena

Vem com sua luz de claro luar

assustados. Iara cai ferida e Xivi se aproxima amea-

alumiar o caminho, as pedras, cipós

çadora. Boto, vencendo o seu medo, coloca-se

Seguimos tão sós por este enredo

entre Xivi e a Iara, evitando o golpe fatal.

que mesmo o medo esquece de nós Vem com sua luz eterna e brilhante

BOTO

alumiar nesses instante meu Iporangaba

Não!

amor que floresce no meio da mata é potira porã que nunca se acaba

Iara, ferida, vira-se para Iporangaba que corre para socorrê-la. Boto foge.

Pouco a pouco, um facho de luar ilumina o caminho diante deles. Iporangaba mostra o

IARA

caminho. Boto pisa num ouriço cheio de espinhos.

Maninho, maninho, escuta a Iara Eu conheço a floresta e tudo o que nela há

BOTO

Trago o feitiço das ervas e da semente de Paricá

Ai! Ai! Ai! Ai!

festival terras sem sombra

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Maninho, maninho, escuta a Iara

Xivi, zonza, vomita Guaraci. Guaraci é personi-

só há um jeito no mundo da onça Xivi derrotar

ficado pela luz que aos poucos invade o palco. Xivi,

Acertar em seu focinho uma flechada certeira

ofuscada pelo sol, foge ziguezagueando pelo palco

com muitas sementes de Paricá

até sair de cena. Iporangaba levanta Iara, abra-

A onça primeiro dará um espirro

çando-a.

depois outros tantos, assim, sem parar de tantos espirros chegará a tonteira

IPORANGABA, TUXAUA, IARA, BOTO,

virão mais espirros até vomitar

CURUMINS E ÍNDIOS Coema Porã, manhã linda

Iara entrega a Iporangaba um saco com sementes

Vem meus olhos clarear

de Paricá. Iporangaba prepara a flecha envolvendo-

O meu sono, durmo ainda

-a com sementes de Paricá. Tuxaua, Nhandeci,

Mas eu quero acordar

índios e Curumins aproximam-se, cercando a cena.

Tuxaua ouviu Nhandeci Quando o dia escureceu

IARA, IPORANGABA E CORO

Caiu na floresta o manto negro

E quando soltar Guaraci de seu ventre

mais profundo que já vi

Xivi, aturdida, não vai combater

Guaraci prò céu voltou

Porém, a flecha não poderá ser perdida

Acordou Coema, o dia

Não há outra chance, ou vamos morrer

Para nossa alegria A floresta iluminou

XIVI Eu vou devorar! Eu vou apagar Guaraci!

Boto reaparece, transformado em peixe.

Não há mais saída: eu vou devorar! Guaraci apagará! A floresta sumirá!

Voltou o boto às águas

Não há mais saída: vocês vão morrer!

Voou de novo Açanã A tribo retorna à caça

Iporangaba coloca a flecha com sementes de Pari-

Manhã tão linda, Coema Porã

cá no seu arco, mira o focinho de Xivi e dispara, acertando em cheio.

Coema Porã, manhã linda Vem meus olhos clarear

XIVI

O meu sono, durmo ainda

Ai, meu focinho! Atchim! Dói como um espinho!

Mas eu quero acordar

Atchim! Coça e traz espirro! Atchim! Parar eu não

TUXAUA

consigo! Ai, de mim!

Iporangaba! Iporangaba!

Atchim! Atchim! Atchim! Não paro de espirrar

Eu o vejo na frota de canoas

Atchim! Atchim! Atchim! Minha barriga vai

ensinando vitória aos nossos remos

pular

Não a vitória que passa

Atchim! Atchim! Atchim! Está tudo a rodar

mas a bravura que sustenta e fica.

Estou zonza, tonta, boba! Totalmente embriagada!

TODOS

Acho que vou vomitar...

Fortaleza, Verdade, Coragem sem fim

Aaaaaaaaaaaaaatchim!

Tudo em nome da vida, alma do espaço Tudo em nome do amor, alma do tempo Iporangaba! Iporangaba Curumim!

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João Guilherme Ripper

Formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorou-se na Catholic University of America (Washington, D.C.), estudou Economia e Financiamento na Université Paris-Dauphine e especializou-se em Regência Orquestral no Teatro Colón, de Buenos Aires. Foi professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição que dirigiu entre 1999 e 2003. Criou e dirigiu a Orquestra de Câmara do Pantanal, em Mato Grosso do Sul, e actuou como regente convidado de diversas orquestras brasileiras. Recebeu o Prémio Associação Paulista dos Críticos de Arte, em 2000, pela ópera Domitila. Escreveu

Desenredo para a Orquestra Sinfónica de São Paulo, em 2008, e Cinco Poemas de Vinicius de Moraes, em 2013. Piedade, ópera encomendada pela Orquestra Petrobras Sinfónica, foi encenada em 2012, o mesmo ano em que estreou a nova versão da ópera Anjo Negro, sobre uma peça teatral homónima de Nelson Rodrigues. Em 2014, criou duas óperas: Onheama, encomenda do Festival Amazonas de Ópera, e O Diletante, encomenda da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A Orquestra Filarmónica de Minas Gerais estreou, em 2015, a obra Jogos Sinfónicos, encomendada para a inauguração da Sala Minas Gerais, e Onheama voltou ao Teatro Amazonas para uma nova temporada. Dirigiu a Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, entre 2004 e 2015. Neste ano, foi nomeado presidente da Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cargo que ocupa actualmente. É membro da Academia Brasileira de Música.

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Orquestra Sinfónica Portuguesa

Criada em 1993, a Orquestra Sinfónica Portuguesa é um dos corpos artísticos do Teatro Nacional de São Carlos e tem vindo a desenvolver uma actividade sinfónica própria, incluindo uma programação regular de concertos, participações em festivais de música nacionais e internacionais. Colabora regularmente com a RTP através da transmissão dos seus concertos e da participação em iniciativas como o Prémio Jovens Músicos. No âmbito de outras colaborações, destaque-se também a sua presença nos seguintes acontecimentos: 8.º Torneio Eurovisão de Jovens Músicos, transmitido pela Eurovisão para cerca de quinze países (1996); concerto de encerramento do 47.º Festival Internacional de Música y Danza de Granada (1997); concerto de Gala de Abertura da Feira do Livro de Frankfurt; concerto de encerramento da Expo ’98; Festival de Música Contemporánea de Alicante (2000); e Festival de Teatro Clásico de Mérida (2003). No âmbito das temporadas líricas e sinfónicas, tem-se apresentado sob a direcção de notáveis maestros, como Rafael Frühbeck de Burgos, Alain Lombard, Nello Santi, Alberto Zedda, Harry Christophers, George Pehlivanian, Michel Plasson, Krzysztof Penderecki, Djansug Kakhidze, Milán Horvat, Jeffrey Tate e Iuri Ahronovitch, entre outros. A discografia da OSP conta com dois CD para a etiqueta Marco Polo, com as Sinfonias n.º 1 e n.º 5 e

n.º 3 e n.º 6, de Joly Braga Santos, que gravou sob a direcção do seu primeiro maestro titular, Álvaro Cassuto, e Crossing Borders (obras de Wagner, Gershwin, Mendelssohn), sob a direcção de Julia Jones, numa gravação ao vivo pela Antena 2. No cargo de maestro titular, seguiram-se José Ramón Encinar (1999-2001), Zoltán Peskó (2001-2004), Julia Jones (2008-2011) e Joana Carneiro (2014-); Donato Renzetti desempenhou funções de primeiro maestro convidado entre 2005 e 2007.

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Coro do Teatro Nacional de São Carlos

Criado em condições de efectividade em 1943, sob a direcção de Mario Pellegrini, entre 1962 e 1975 colaborou com a Companhia Portuguesa de Ópera (Teatro da Trindade), com a qual se deslocou à Madeira, Açores, Angola e Oviedo (1965), e obteve o Prémio de Música Clássica, conferido pela Casa da Imprensa. Participou em estreias mundiais de Lopes-Graça (D. Duardos e Flérida ) e Victorino d’Almeida (Canto da Ocidental Praia ). A profissionalização do Coro foi consumada em 1983, sob a direcção de Antonio Brainovitch. A plena afirmação artística do conjunto será creditada a Gianni Beltrami, em 1985. Nesta fase, assinalam-se Oedipus Rex (Stravinski); Ascensão e Queda da Cidade

de Mahagonny (Weill); Kiú (De Pablo); L’Enfant et les Sortilèges (Ravel); e Dido and Aeneas (Purcell). Depois da morte de Gianni Beltrami, João Paulo Santos assumiu a direcção, constituindo-se como o primeiro português no cargo em toda a história do Teatro Nacional de São Carlos. Sob a sua responsabilidade, registaram-se êxitos, tais como Mefistofele (Boito); Blimunda e Divara (Corghi);

Sinfonia n.º 2 (Mahler); Die Schöpfung (Haydn); Faust e Requiem (Schnittke); Perséphone e Le Rossignol (Stravinski); Evgueni Oneguin (Tchaikovski); Les Troyens (Berlioz); Missa Glagolítica (Janáãek); Tannhäuser e Die Meistersinger von Nürnberg (Wagner); e Le Grand Macabre (Ligeti). No âmbito da Expo’98, actuou no concerto de encerramento. O Coro tem sido dirigido por prestigiados maestros estrangeiros, nomeadamente Antonino Votto, Tullio Serafin, Vittorio Gui, Carlo Maria Giulini, Oliviero de Fabritiis, Otto Klemperer, Molinari-Pradelli, Franco Ghione, Alberto Erede, Alberto Zedda, Georg Solti, Nello Santi, Nicola Rescigno, Bruno Bartoletti, Heinrich Hollreiser, Richard Bonynge, García Navarro, Rafael Frühbeck de Burgos, Franco Ferraris, James Conlon, Harry Christophers, Michel Plasson e Marc Minkowski, entre outros. Também foi dirigido pelos mais importantes maestros portugueses, com relevo especial para Pedro de Freitas Branco.

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Giovanni Andreoli Direcção

Estudou composição, piano, música coral, direcção de coro, flauta e percussão. Iniciou, muito jovem, a actividade no âmbito teatral, primeiro como co-repetidor, depois como director dos estudos musicais, finalmente como responsável pela preparação musical das companhias de canto. Foi maestro substituto em teatros e festivais líricos italianos (Rossini Opera Festival, Torre del Lago, Maggio Musicale Fiorentino, etc.). Tem desempenhado as funções de maestro de coro em instituições como a RAI, de Milão, o Teatro La Fenice, de Veneza, o Teatro Carlo Felice, de Génova, e a Arena de Verona. De 2004 a 2008, foi maestro titular do Coro do Teatro Nacional de São Carlos de Lisboa, cargo ao qual regressou na temporada de 2010-2011, nele permanecendo. Colaborou com a Biennale Musica di Venezia, onde assegurou a estreia de obras de Guarnieri, De Pablo, Clementi, Manzoni ou Nono. Em 1996, principiou um intenso labor como director de orquestra em concertos sinfónico-corais, interpretando, nomeadamente, Carmina Burana e Petite

Messe Solennelle (Teatro La Fenice). Com o Coro desta instituição, realizou L’Esperienza Corale del 900 Italiano (obras de Dallapiccola, Rota e Petrassi). Dirigiu L’Elisir d’Amore, em Reiquiavique; e a Missa da Coroação e a Nelson Messe, em São Paulo. Dirigiu igualmente a Via Crucis, no Festival di Orvieto, e obras de Remacha, Falla, Fellegara e Stravinsky no Festival de Granada. A convite do Festival Klangbogen, dirigiu Otello, no Theater an der Wien, com a Orquestra Sinfónica de Varsóvia; e com o Coro e a Orquestra do Teatro La Fenice, a primeira execução, em tempos modernos, da

Missa Amabilis e da Missa Dolorosa, de Caldara. Como maestro titular do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, dirigiu programas dos autores portugueses mais significativos, assegurando uma presença regular no Festival Terras sem Sombra. Possui vasta discografia, com destaque para Orfeo Cantando... Tolse e Carmina Burana.

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Coro Juvenil do Instituto Gregoriano de Lisboa

Criado com o objectivo de facultar aos alunos do Instituto Gregoriano de Lisboa (IGL) uma prática avançada do repertório coral para vozes iguais, apresenta-se regularmente em concertos. Entre muitas outras ocasiões, fê-lo, em 2008, na Terceira Sinfonia, de Gustav Mahler, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, sob a direcção de Michael Zilm; em 2011, na Missa Brevis, de Marcello Panni, com a Banda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana, sob a direcção de Panni (7.ª edição do Festival Terras sem Sombra, Beja); em 2013, participou no concerto de abertura do 2.º Festival Coral de Verão de Lisboa, com Carmina Burana, de Carl Orff. Em Novembro de 2014, foi um dos coros convidados no concerto de aniversário do Coro Gulbenkian e, em Fevereiro deste ano, participou num concerto dedicado aos Três Pastorinhos de Fátima. Em Abril de 2015, ganhou o 1.º Prémio no Certamen Juvenil Internacional de Habaneras, em Espanha, tendo sido alvo das melhores críticas por parte do júri internacional; e, em Junho, obteve uma medalha de ouro no 4.º Festival Coral de Verão de Lisboa, conquistando também a melhor pontuação de todo o festival. Tem executado obras de compositores portugueses contemporâneos, como Fernando Lopes-Graça, Sérgio Azevedo, Nuno da Rocha, Alfredo Teixeira e Eurico Carrapatoso.

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Filipa Palhares Direcção coral

Iniciou a formação musical, aos nove anos, no Instituto Gregoriano de Lisboa, no qual estudou até 1990, ingressando seguidamente na Escola Superior de Música de Lisboa, onde obteve a licenciatura em Direcção Coral. Nesta escola, estudou com Christopher Bochmann, Sibertin-Blanc, Roberto Pérez, Luís Madureira, Gerhard Doderer, Cremilde Rosado Fernandes e Vasco Azevedo, entre outros. Frequentou cursos de Direcção Coral com Bernard Tétu (Lyon), Herbert Breuer (Hamburgo) e José António Sainz Alfaro (San Sebastián). Em 1995-1997, estudou com Max von Egmond, Marius Altena (Canto) e Jacques Ogg (Cravo) nos cursos de Música Barroca da Casa de Mateus. Em 1998-1999, frequentou o curso de aperfeiçoamento artístico em Direcção Coral no Real Conservatório Superior de Música de Madrid. Iniciou a actividade docente, em 1990, com as disciplinas de Coro e Formação Musical, assim como Música para Bailarinos. Foi professora na Academia de Amadores de Música, na Academia de Música de Santa Cecília e na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal; de 1994 a 2010, leccionou no Conservatório Regional de Setúbal, onde exerceu o cargo de directora pedagógica, e, a partir de 2006, no Instituto Gregoriano de Lisboa, onde tem a seu cargo o coro infantil, com o qual regularmente faz concertos, tendo obtido a Medalha de Ouro no Festival Coral de Verão de Lisboa em 2012 e 2013. Integrou a Camerata Vocal de Lisboa e o Coro Feminino Cantata. Dirigiu o Orfeão da Covilhã, o Conductus Ensemble, o Grupo Coral de Lagos, com o qual gravou Terra Morena, e o Grupo Coral Encontro. Fundou e dirigiu o Coro do Tejo. Dirige presentemente o Grupo Coral da Sociedade Filarmónica Palmelense Loureiros, em Palmela. Na área da ópera, tem colaborado em diversas produções, como coralista e maestrina de coros.

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Miguel Costa Cabral Cenografia e figurinos

Frequentou o curso de Design no Instituto Superior de Arte e Design, em Lisboa, mas a sua formação concretizou-se fundamentalmente no Centro de Formação de Industria Têxtil (Citex), do Porto, onde concluiu o curso de Design de Moda. Mais tarde, tornando-se elemento do corpo docente deste Centro, onde chegou a desempenhar as funções de vice-coordenador do Departamento de Design de Moda e Design Têxtil. Consultor consagrado em design de moda, especializou-se também em design de interiores. Presentemente, é designer e director criativo na Miguel Costa Cabral & Associados – Design e Arquitectura. O gosto pela cenografia de cena e pelos figurinos foi acompanhando o seu percurso profissional. Colabora regularmente com o Teatro Nacional de São Carlos na qualidade de cenógrafo e figurinista, tendo participado, entre outros projectos artísticos, na ópera Cendrillon, de Pauline Viardot, um espectáculo onde, pela primeira vez, se juntarão entre nós a ópera e as artes circenses.

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Marcelo de Jesus Direcção musical

Graduou-se em piano, composição e regência pela Universidade Estadual Paulista. Estudou regência com Juan Serrano, Lutero Rodrigues, Ronaldo Bologna e, posteriormente, com Karl Martin; composição, com H.J. Kollrëuter e Edmundo Villani; piano, com Pietro Maranca e Homero Magalhães. Aperfeiçoou os conhecimentos na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, em Roma, com Carmella Pistillo. É director dos Corpos Artísticos do Amazonas, maestro titular da Orquestra de Câmara do Amazonas (OCA), maestro adjunto da Amazonas Filarmônica, maestro adjunto da Orquestra Experimental da Amazonas Filarmônica e director artístico adjunto do Festival Amazonas de Ópera (FAO). Actuou como pianista na série Vesperais Líricas e como maestro interno nas produções do Theatro Municipal de São Paulo. No SESC Ipiranga-SP, desenvolveu vários trabalhos da série Pocket-Ópera, como pianista, maestro assistente e director musical. Em 2002, a Bravo! elegeu-o maestro-revelação pela direcção musical de Don Giovanni. Fez a estreia, com a OCA, em 2003, no VII Festival Amazonas de Ópera (La Cenerentola). No FAO, regeu

La Cenerentola, Norma, Stabat Mater, Pierrot Lunaire, Gianni Schicchi, Otello, Zap, Pedro Malazarte, O Barbeiro de Sevilha, A Noite Transfigurada, Canto de Amor e Paz, O Diálogo das Carmelitas, Otello Poranduba e Yerma. Foi premiado pela APCA 2010 pelo CD Velhas e Novas Cirandas. Participações recentes como regente convidado incluem concertos com a Orquestra Milano Clássica, Sinfônica de Rosário, Sinfônica de Sergipe, Orquestra Sinfônica Brasileira (programação de reabertura da Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro), Orquestra do Teatro Nacional Claudio Santoro, Orquestra Filarmônica do Espírito Santo, Ópera de Colômbia e Amazonas Filarmônica (integral dos Choros, de Villa-Lobos).

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Concerto VII CASTRO VERDE 4 de Junho 21H30

POLIRRITMIAS: LIGETI AFRICANO Tradição da África Subsariana Babashibaba György Ligeti [1923-2006] Études pour Piano, VIII: Fém Tradição da África Subsariana Ndé (Bangangté, Camarões, língua medumba) Ben Sikin (Bangangté, Camarões, língua medumba) György Ligeti Études pour Piano, II: Fanfares Études pour Piano, II: Cordes Vides Études pour Piano, I: Désordre Tradição da África Subsariana Ntanú Khó (República da Guiné [Conacri]) Improviso pentatónico György Ligeti Études pour Piano, V: Arc-en-ciel Études pour Piano, XI: En Suspens Tradição da África Subsariana Africa Danse (República da Guiné [Conacri]) György Ligeti Études pour Piano, XVI: Pour Irina Tradição da África Subsariana Africa 2 (República da Guiné [Conacri]) Ndanzi (Bangangté, Camarões) Kounga 2 (Bangangté, Camarões, língua medumba) György Ligeti Études pour Piano, X: Der Zauberlehrling Tradição da África Subsariana e Alberto Rosado Improviso em 2+2+3+2+2+2+3… György Ligeti Études pour Piano, XIII: L’Escalier du Diable Tradição da África Subsariana Babashibaba Piano Alberto Rosado Balafão, camani nguni, kalimba Shyla Aboubacar Tum laah, balafão, sanza Justin Tchatchoua Cabaça, nkul, sheker, ngogoma Bangura Husmani Apresentação e textos Polo Vallejo

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CASTRO VERDE

Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro (Diário da República, n.º 280, de 30 de Novembro de 1993)

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Terminada a Reconquista definitiva do Sul de Portugal, na primeira metade do século XIII, Castro Verde foi entregue à Ordem de Santiago, que aqui estabeleceu uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, situada numa colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores da vila. Podemos encontrar a mais antiga referência a seu propósito no rol das “décimas” de 1320-1321, sendo aí taxada, “pela parte que nela tem o Mestre de S. Tiago”, em 200 libras, além de pagar outras 60 libras, correspondentes à vigairaria da mesma igreja; o comendador pagava também 200 libras, a que acresciam, do temporal do mesmo, 30 libras. Talvez já do século XV em diante, teve ao seu serviço uma colegiada, presidida por um prior com as funções de pároco. Em 1573, após visitar a terra, D. Sebastião, o monarca visionário, mandou reerguer essa igreja, em lembrança de um facto decisivo para que Portugal se tornasse nação independente: a batalha de Ourique, desferida – segundo uma velha tradição – nas elevações de São Pedro das Cabeças, a pouca distância de Castro Verde, em 25 de Julho de 1139 (festa litúrgica do apóstolo Santiago Maior), correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus Cristo, na véspera da peleja, ao nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques. O edifício actual, que ocupa aproximadamente o mesmo local dos anteriores, ficou a dever-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível ao significado patriótico e escatológico do “Milagre de Ourique”. Principiados ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram sem delonga. A sua traça segue um modelo derivado da arquitectura “chã” da época da Restauração e que o mestre régio João Antunes [X 1712] aplicou na concepção de vários imóveis para a milícia espatária, como a igreja de Santiago, de

Cabeça-relicário de São Fabião. Século XIII, finais. Castro Verde, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição. >

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Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a igreja matriz de São Salvador, de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou a planta longitudinal composta, formada por uma nave rectangular em que se inscrevem duas torres sineiras quadradas e a capela-mor, mais estreita, ladeada por dependências. Na frontaria, com três corpos delimitados por pilastras e empena rectilínea, avulta o portal, sobrepujado por um frontão curvo quebrado, com a insígnia da Ordem. Se a estrutura arquitectónica do monumento acompanha a tradição seiscentista, a decoração interior corresponde já à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo uma notável visão integradora das artes da época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a

Aparição de Cristo a D. Afonso Henriques. Este conjunto foi levado a cabo, em 1728-1731, mediante uma parceria entre os pintores lisboetas António Pimenta Rolim e Manuel Pinto e os pintores bejenses Manuel e José Pereira Gavião – que também se terão ocupado do revestimento mural de outros sectores. As paredes estão guarnecidas por painéis azulejares. No corpo da igreja, sobressaem os alusivos ao ciclo da batalha de Ourique e aos seus reflexos na história nacional, enquadrados por composições características das oficinas lisboetas de ca. 1730. Ao longo dos paramentos da capela-mor, destaca-se uma série evocativa da vida, paixão e milagres de Santiago, integrada numa amálgama de mísulas, molduras e outros elementos de arquitectura “fingida”, em obediência ao gosto de trompe-l’œil vigente na época. José Meco atribuiu com justeza a feitura do conjunto ao pintor P.M.P., uma das principais figuras do ciclo dos “Grandes Mestres”. Este recurso aos artistas mais conceituados de Lisboa evidencia-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas referentes à Monarquia e à própria Ordem de Santiago, distribuídos ao longo dos recintos do átrio e do coro alto. No centro da abóboda da capela-mor, destaca-se uma gloriosa Exaltação do Santíssimo

Sacramento. Proclive ao enobrecimento da matriz de Castro Verde, D. João V conseguiu que a Santa Sé lhe outorgasse a dignidade de basílica menor, depois completada, vox populi, pelo título de real. Mas o soberano empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as quais sobressai a custódia de aparato executada, em Lisboa, ao redor de 1715. O Tesouro instalado em 2004 na antiga sacristia, por iniciativa do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, dá a conhecer este acervo, além de outras obras provenientes de várias igrejas do concelho. Cabe aqui um lugar especial à cabeça-relicário de São Fabião, peça de origem aragonesa, oferecida

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pela princesa D. Vataça à igreja de São Pedro, matriz de Panóias (e transferida, no século XVI, para a igreja de São João Baptista, matriz de Casével).

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004; LOURDES CIDRAES, A Tradição Lendária de Afonso Henriques e as Memórias do Rei Fundador em Castro Verde, Castro Verde, Câmara Municipal de Castro Verde, 2008; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.

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África Inspira o Ocidente

POLO VALLEJO

Introdução África é um continente prenhe de tesouros musicais, universos sonoros que reflectem a extraordinária diversidade cultural, etnológica, linguística e religiosa dos povos que a habitam. Transmitidos oralmente desde a noite dos tempos e cristalizados através das gerações, não deixa de ser surpreendente verificar que muitos destes tesouros imateriais se encontram ainda vigentes hoje em dia, unidos à vida diária. Mais funcionais do que ornamentais e mais vocacionados para o uso próprio do que para o deleite alheio, correspondem a repertórios de natureza colectiva, praticados por toda a comunidade, desde as crianças aos anciãos, como se se tratasse de um verdadeiro “serviço público”, ao alcance de qualquer um: não se ensina música seja a quem for e todos a aprendem. A originalidade e a variedade de géneros, linguagens e estilos musicais existentes em África servem-se fundamentalmente da voz e dos instrumentos que a acompanham, constituindo ambos um veículo para a transmissão da palavra, da história e dos valores morais que regem a vida tradicional. Neste contexto, a dança ocupa o zénite das expressões vernáculas africanas: nexo de ligação entre a vida material e a vida espiritual, o baile representa e sublima a figura dos antepassados, verdadeiros protectores da comunidade e reguladores das forças às quais a natureza obedece, de acordo com as crenças animistas. É para a dança que convergem o pensamento e o sentimento africanos; a música é o seu vínculo. Os Sistemas Musicais Na maioria das línguas africanas não existem palavras que signifiquem “música” e menos ainda conceitos como “ritmo”, “melodia”, harmonia”, “polifonia”, etc. O facto de não possuírem esses termos não significa, em absoluto, que ignorem a concepção dos mesmos; porém, não necessitam de expressá-los verbalmente, nem de representá-los de forma gráfica ou escrita. A memória, único suporte musical, é a responsável pela preservação de tudo o que concerne à sistemática musical, ou seja, retém – um

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pouco como o ADN – a informação indispensável sobre como deve ser executada a música durante a praxis. O que é surpreendente nisto é que, à luz da análise levada a cabo por etnomusicólogos no terreno, se verifica a presença de uma teoria musical implícita, a qual reflecte não só uma ordem clara, mas também princípios arquitectónicos que servem de sustentáculo à música. Esta “liberdade no rigor” assombra os músicos forâneos, pois nada sucede de forma arbitrária e tudo se encontra estritamente regulado. Um dos aspectos mais significativos do que dizemos relaciona-se com a concepção e a materialização do ritmo, parâmetro por excelência, que toma por fundamentos a pulsação, a periodicidade, a articulação, a sobreposição de ostinati e os processos polirrítmicos, evidenciando um refinamento e uma complexidade excepcionais. Há que destacar também a originalidade e a enorme diversidade de tipologias de escala, estruturas formais, técnicas de desenvolvimento e processos de variação, usos não convencionais da voz, texturas polifónicas e tímbricas, etc. Trata-se de todo um universo sonoro que constitui uma atracção irresistível para compositores, entre eles György Ligeti ou o autor destas linhas, que entraram em contacto, directo ou indirecto, com o património musical africano, descobrindo as suas belezas e as suas amplas possibilidades criativas. Percepção-aplicação do Elemento Africano na Linguagem Ocidental A presença do elemento africano na obra do húngaro György Ligeti [S Dicsőszentmárton, (Târnăveni), 1923 – X Viena, 2006] torna-se patente em várias composições, mormente

Concerto para Piano, San Francisco Polyphony ou Études pour Piano, alguns dos quais ocupam parte deste programa. Neles podem apreciar-se também influências das Caraíbas, articulações rítmicas típicas dos Balcãs ou as próprias raízes transilvanas do compositor. Saliente-se que a forte intuição e concepção do ritmo que manifesta na sua linguagem musical se deve, em larga medida, a uma constante inquietude intelectual, mas também à descoberta da música polifónica dos pigmeus da África Central, aspecto que supôs um antes e um depois na sua produção musical, especialmente num período em que parecia ter esgotado os recursos da primeira época compositiva, dedicada ao desenvolvimento da micropolifonia. Em geral, os estudos ligetianos propõem um novo conceito de articulação rítmica. Desde a sua reflexão acerca da densidade gerada pela sobreposição de vários tempi (Poème Symphonique para 100 metrónomos, Continuum para clavicórdio) até à percepção de “ritmos ilusórios” que emergem a partir de sequências de notas tocadas rapidamente, criando o efeito de velocidades diferentes, a ideia de outra dimensão técnica perseguia o compositor de modo obsessivo. Foi justamente a partir da audição da polirritmia africana e das músicas para piano mecânico de Colon Nancarrow [S Texarkana, Arkansas, 1912 – X Las Águilas, Cidade

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do México, 1997] que Ligeti descobriu como criar ritmos complexos baseados em princípios construtivos simples. O interesse dos estudos que escutaremos centra-se na possibilidade de que um único intérprete seja capaz de produzir a impressão de que diferentes estratos rítmicos funcionam de maneira simultânea e com diferentes velocidades, o que requer a independência não só de cada mão, mas também de cada um dos dedos que a conformam, dotando a obra de uma grande mobilidade rítmica e métrica, com a sensação de um campo harmónico em movimento constante. O seu interesse complementar pelos paradoxos visuais, a transformação e o crescimento das formas musicais ou a abstracção da própria linguagem escrita levaram-no a escalpelizar os trabalhos de Lewis Carrol, Maurits Escher, Steinberg, Jorge Luis Borges e Douglas R. Hofstadter, entre outros; ideias, pessoas e elementos que acabaram por configurar um peculiar universo criativo. Um Olhar Poliédrico O concerto de hoje, além do interesse que suscita pela temática e pelas músicas, procura aproximar o ouvinte do núcleo central do argumento: África inspira o Ocidente. Mas como? Articulada numa introdução e em quatro blocos temáticos, propomos uma aproximação a esse argumento a partir de vários ângulos e com uma certa intenção pedagógica, mostrando a singularidade de cada tema e dos elementos mais significativos das obras que o conformam, revelando, assim, os parentescos que existem entre ambas as linguagens, a africana e a ocidental. Ao destacarmos os aspectos que tanto chamaram a atenção de Ligeti e o uso que ele fez dos mesmos, intuiremos como concebeu e construiu as suas obras. Para tal, elencam-se exemplos concisos, práticos e esclarecedores que permitem aprofundar o contexto e as estruturas de cada música, de modo a que possa ser fruída a partir de uma compreensão mais “poliédrica”. Em certos momentos, poder-se-á comprovar de que forma a improvisação, longe de parecer um exercício arbitrário, corresponde a critérios de selecção e variação de um material musical que parte de princípios assaz regulados; isto permitirá que os intérpretes, por seu turno, encontrem espaços comuns onde, numa atmosfera de diálogo, se torna possível experimentar e partilhar músicas diferentes, mas dispostas sobre “esqueletos” similares.

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Alberto Rosado Piano

Nasceu em Salamanca, em 1970. Iniciou os estudos musicais nessa cidade e prosseguiu-os em Budapeste, com Peter Nagy, e em Amesterdão, com Jan Wijn. A partir de 1994, trabalhou regularmente com Josep Colom, em Alcalá de Henares, onde também estudou música de câmara com Ferenc Rados. Em 1997, principiou uma estreita colaboração com Luca Chiantore, que muito influenciará a sua relação com o piano e a interpretação. O interesse pela música contemporânea está presente ao longo da sua carreira, mas, em 1999, dirigiu a atenção para a música dos nossos dias, ao integrar o Plural Ensemble e o Projecto Gerhard. Estas iniciativas levam-no a entrar em contacto com os directores Fabian Panisello, José Ramón Encinar, Zsolt Nagy, Jean-Paul Dessy e Peter Rundel, e a começar uma estreita relação com muitos compositores de Espanha e de outros países da Europa. Desde então, marca presença em festivais como Aspekte, Présences, Ars Musica, A Tempo, Musica (Estrasburgo) e Quincena Donostiarra, além de concertos nas principais cidades da Europa, da América e do Japão. Tem actuado como solista com algumas das melhores orquestras europeias, dirigidas por Josep Pons, Rafael Frübeck de Burgos, Arturo Tamayo, Philip Greenberg, Alejandro Posadas, José Luis Temes e Dorel Murgu. Realizou gravações para as etiquetas Naxos, Col Legno e Verso, com obras de Ligeti, Messiaen, Takemitsu, Cage, Camarero, Panisello, Del Puerto, além das obras completas para piano de José Manuel López López e Cristóbal Halffter. Dedica-se à música de câmara e piano contemporânea e coordena o Estúdio de Música Contemporânea do Conservatorio Superior de Música de Salamanca.

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Shyla Aboubacar Balafão, camani nguni, kalimba

Nasceu em 1982 na localidade de Kindia, da etnia sousou (República da Guiné-Conacri). Apaixonou-se pela percussão e pelo canto aos 5 anos, apesar da oposição da família, que nunca viu com bons olhos que se dedicasse à música. Aos 7 anos, começou a tocar bongoma, por iniciativa própria, depurando a sua técnica, ao mesmo tempo que aprendeu inúmeros cantos tradicionais. Aos 13, integrou um grupo de folclore, como cantor e executante de bongoma, aperfeiçoando simultaneamente os conhecimentos de bolom, instrumento muito utilizado pelos ballets de Conacri. Aos 17, começou a estudar com o mestre Kakissi, antigo percussionista do Ballet Joliba, instruindo-se nos segredos do djembe e do dumdum e passando a pertencer ao grupo de dança Bassikolo. Pela mesma altura, trabalhou numa oficina de instrumentos, aprendendo com o mestre artesão Zbrahimah Soumah, conhecido em Conacri como Sorel, a construí-los; tornou-se um perito na feitura do bolon e do bongoma. Em 2001, após realizar inúmeras actuações em hotéis e de ser professor de estrangeiros, conheceu o cantor Seidou, da República da Serra Leoa, que ficou fascinado com a sua voz e a sua destreza para as percussões africanas, contratando-o para colaborar num disco; com ele, fez digressões por vários países. Nos finais desse ano, estabeleceu-se em Espanha, como músico da banda de Seidou e da companhia Nube Negra, realizando concertos em todo o país. Leccionou em Pamplona e Madrid e participou no Africa Festival de Würzburg. Em 2002, fundou a sua própria banda, a Obibase. É uma das vozes mais destacadas e um dos músicos africanos com maior conhecimento da cultura da Guiné-Conacri.

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Justin Tchatchoua Tum laah, balafão, sanza

Natural da República dos Camarões, descende de uma família de músicos: o pai era um grande virtuoso do balafão e inculcou-lhe o amor pela música tradicional, introduzindo-o nos segredos dos ritmos africanos e de uma ampla gama de cadências musicais. Revelou, cedo, um talento inato para a arte, colaborando em projectos educativos, promovendo o uso dos instrumentos étnicos entre os mais jovens e actuando como contador de histórias tradicionais. Tem escrito obras teatrais de cariz pedagógico, como Baah Mambala. O seu single Love

me the way I do, produzido por Rogers All Stars, em 1982, vendeu quase um milhão de exemplares na Nigéria. Culminando o seu sonho africano, chegou a Espanha em 1983, onde deu provas de um estilo musical inconfundível e único. Tem vindo a realizar um esforço sistemático para o desenvolvimento e a integração da convivência intercultural, através do seu trabalho de promoção, salvaguarda e valorização dos instrumentos tradicionais, o que lhe granjeou o reconhecimento de diversas instituições e o tornou um dos artistas africanos mais apreciados.

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Bangura Husmani Cabaça, nkul, sheker, ngogoma

Também conhecido por Anstel, entrou aos 15 anos na escola do Ballet Fareta, de Conacri, onde fez a formação em música tradicional e se especializou em percussão. Colaborou com esta instituição até 2003, chegando a alcançar o grau de cheff batteur (primeiro percussionista). Entre 1998 e 2003, integrou o Ballet Merveilles de Guinée, como dundunfola (intérprete de dundun), e o Ballet AJK Danse, como percussionista. Durante este período, participou activamente em celebrações e festividades típicas da vida tradicional da Guiné. Paralelamente, leccionou e acompanhou aulas de dança de grandes mestres, em inúmeros pontos da Guiné-Conacri e do Senegal, frequentadas por alunos oriundos dos Estados Unidos, Japão, Holanda, França, Noruega, Espanha, Suécia, Bélgica, Canadá, México, Argentina, Alemanha e Austrália. Tem continuado a dedicar-se, até hoje, ao ensino. Como membro de diversas companhias, tem feito inúmeras apresentações artísticas em teatros, festivais e concertos, com realce para o Festival Intercontinental de West-Africa, no Palais du Peuple (Conacri). Em Espanha, onde passou a viver em 2003, fundou e dirigiu eventos como Bembe Gbeli (Alicante), Mbari Bore (Barcelona), Wontanara (Ibiza), todos em 2004, ou Kenkeliba (Barcelona, 2008). Na qualidade de percussionista, trabalhou com Axe Malinke, Allatantou, Shakatribe, Tumbata, Bogui jui e Nakany Kanté.

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Polo Vallejo Apresentação e textos

Doutorado em Ciências da Música, etnomusicólogo, pedagogo e compositor, é membro do Laboratoire de Musicologie Comparée et Anthropologie de la Musique da Université de Montréal (Canadá) e assessor da Carl Orff-Stiftung, em Dießen (Alemanha). Referência internacional no campo da pedagogia e da musicologia experimental, efectua, desde 1987, trabalhos sistemáticos de campo em África, com destaque para um estudo pioneiro sobre a sistemática musical dos wagogo da Tanzânia. Desenvolve actualmente duas linhas de investigação experimental: uma sobre as polifonais vocais profanas e religiosas da Geórgia (Cáucaso) e outra acerca de repertórios infantis na região de Kedougou (Senegal). Autor de vasta bibliografia e do documentário Africa: The Beat, premiado em importantes festivais de cinema, tem vasta experiência como criador e apresentador de concertos didácticos e cursos de formação e investigação musical nos cinco continentes.

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Concerto de Encerramento 18 de Junho 21H30

BEJA

INESPERADO RESGATE: COMPOSITORES PORTUGUESES NA ESPANHA DO SIGLO DE ORO Manuel Machado [ca. 1590-1646] Afuera que sale con ejércitos de flores, a 4, tono humano Juan Hidalgo [1614-1685] Al dichoso nacer de mi Niño, a 4, tono para o Natal [só estr.] Manuel Machado Abejuela que al jazmín, a 4, tono humano* Juan Hidalgo Mariposa incauta, duo ao Santíssimo Sacramento Fr. Manuel Correa [ca. 1600-1653] Ojos míos, ¿qué tenéis…? a 3, tono humano* Juan Hidalgo Anarda divina, duo [a lo humano] Fr. Manuel Correa Ya las sombras de la noche, a 4, tono humano* Ay, Jesús y qué mar de bravatas, a 4, vilancico ao Santíssimo Sacramento* Juan Hidalgo ¡Venid, querubines alados!, a 4, vilancico a Nossa Senhora Fr. Manuel Correa “Venganza, griegos” repite, a 4, tono humano* Juan Hidalgo Antorcha brillante, a solo e a 4, vilancico ao Santíssimo Sacramento Fr. Filipe da Madre de Deus [ca. 1630-ca. 1687] Cantad llorando este día, a 4, vilancico à Ascensão Fr. Manuel Correa Con las mozas de Vallecas, a 4, tono humano* Manuel Machado En tus brazos una noche, a 4, tono humano Juan Hidalgo ¡Ay, corazón amante! tonada humana a solo Luceros y flores, arded y lucid, solo a Nossa Senhora [versión a lo humano] Aunque en el pan del cielo, a 3, [tono], ao Santíssimo Sacramento Ay, cómo gime, a 4, tono de Los celos hacen estrellas (1672) * Recuperação musicológica.

La Grande Chapelle Direcção musical Albert Recasens

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BEJA

Igreja de Santiago Maior (Catedral)

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Tanto a origem como a localização da primitiva igreja de Santiago constituem um enigma por resolver, ainda que diversas fontes enfatizem a importância da sua colegiada (secular), uma das mais antigas de Beja. Ombreava, assim, com as das outras paróquias da urbe: a matriz, Santa Maria da Feira, sob a jurisdição da Ordem militar de São Bento de Avis; e São João Baptista e São Salvador, igualmente seculares. Alguns autores defendem que esse lugar de culto coincidiria com a vizinha igreja de Santa Maria – a partir do século XVI, Nossa Senhora – da Graça, depois mais conhecida pela invocação popular de Santo Amaro, cuja mole fundamental poderá remontar à transição do século VI para o século VII. Outros, pelo contrário, ligaram-no a um espaço de culto independente, também extramuros, mas não esclarecendo onde. No século XIV, a sede da freguesia de Santiago Maior ter-se-á fixado no actual sítio, dentro do circuito das muralhas e perto de uma das suas principais portas. Já seria, à data, um marco no Caminho de peregrinação a Compostela. Dos poucos traços que dele sobreviveram (essencialmente, alguns fragmentos de escultura arquitectónica, com destaque para os reaproveitados em casa de habitação da Rua Dr. Aresta Branco, antes Rua das Ferrarias), pode deduzir-se a existência de um imóvel de traça gótica, fiel à linhagem artística do tempo de D. Dinis. Este monarca, a quem Beja ficou a dever notável impulso, ampliou o sistema fortificado e favoreceu a expansão da malha urbana; datará de então a fundação da nova paróquia, dedicada a um apóstolo cuja veneração conhecia, à época, um ápice, sob o estro do movimento neocruzadístico. Nas “décimas” de 1320-1321, a igreja foi taxada em 500 libras, e o comum dos raçoeiros da mesma em 420, pagando substancialmente mais do que as de São Salvador e São João. O edifício que chegou aos nossos dias sucedeu ao medievo, arrasado para lhe dar lugar – hoje, visível, só dele permanece, no actual, uma pequena janela, reaplicada no arranque do arco da última capela lateral da banda do Evangelho, onde está o túmulo de

São Pedro [pormenor]. Ca. 1930. Beja, Igreja de Santiago Maior (catedral). >

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D. José do Patrocínio Dias. Tratou-se de uma obra de raiz, erguida a instâncias de D. Teotónio de Bragança, arcebispo de Évora entre 1578 e 1602. Prelado renovador das estruturas pastorais do vasto território sob a sua jurisdição, de acordo com as instruções emanadas do Concílio de Trento (1545-1563), e mecenas das artes, D. Teotónio interessou-se pela dinamização da vida religiosa de Beja, a segunda cidade da Arquidiocese, assento de uma importante vigairaria, cujo epicentro foi precisamente a igreja de Santiago. Levados a cabo sob a direcção do arquitecto Jorge Rodrigues, os trabalhos do novo lugar de culto estariam concluídos, no essencial, à data da sagração: 14 de Julho de 1590. De planta rectangular, formando três naves divididas em cinco tramos, a igreja é coberta por abóbadas de arcos cruzados com nervuras de aresta estucadas, ainda de tradição gótica. Porém, a organização espacial, ampla e unitária, obedece já, nitidamente, a um modelo característico da “arquitectura chã” do Alentejo, correspondendo à tipologia das “igrejas-salão”. Datará do mesmo período finiquinhentista a imagem do orago, que se venerava no altar-mor. Um acidente com velas, em época indeterminada, levou a que se queimasse parcialmente; esquecida numa dependência, foi alvo de resgate pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, em 1997 . Ao longo do século XVII, efectuaram-se grandes beneficiações, incluindo a construção, nos finais da centúria, de vários retábulos de talha dourada e policroma, com os respectivos painéis pictóricos. D. Fr. Luís da Silva Telles [reg. 1691-1703], outro arcebispo de Évora que se distinguiu como generoso promotor de empreitadas artísticas, financiou, em 1692, o retábulo da capela de São Francisco Xavier. O retábulo da capela-mor foi concebido e levantado por um mestre lisboeta, o entalhador régio Manuel João da Fonseca, em 1696-1697, a expensas da fábrica da igreja, com o auxílio das confrarias e de esmolas. Este profissional ocupou-se igualmente da feitura da estante do coro, além de outras peças de menor relevo. Sabe-se menos acerca dos trabalhos efectuados ao longo dos séculos XVIII e XIX, mas não há dúvida de que o terramoto de 1 de Novembro de 1755 provocou alguns estragos, prontamente reparados, mas cujos vestígios chegaram aos nossos dias. A presença do escudo real, da época de D. José I, no remate do arco cruzeiro, é um sinal do amparo da Coroa. O bispo D. José do Patrocínio Dias [reg. 1920-1965], fautor da “reconstrução” física e moral da Diocese, considerou uma prioridade pastoral o enobrecimento da função catedralícia, que tinha lugar, mas sem todas as condições requeridas, na igreja paroquial de São Salvador, desde a refundação da Diocese de Beja, em 1770. Para isso, escolheu a igreja de Santiago, a mais ampla da cidade, localizada em sítio nobre do centro histórico. Esta, não perdendo o estatuto de cabeça da paróquia e o título original, foi

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elevada a catedral, a pedido de D. José, por rescrito da Sagrada Congregação Consistorial, de 14 de Novembro de 1925, sob a invocação – única em Portugal – do Sagrado Coração de Jesus, que correspondia à devoção pessoal do “bispo-soldado”, mas não deixava de reflectir uma corrente da espiritualidade arreigada na época. Nessa mesma ocasião, por decreto episcopal, instituiu o Cabido. Patrocínio Dias, falecido em 1965, viria a jazer na “sua” sé, em arca tumular, como vimos. Entre 1932 e 1934, efectuou-se uma profunda remodelação no interior e no exterior do imóvel, orientada, não por um arquitecto, mas por um perito de arte, o Dr. Diogo de Castro e Brito, dentro do gosto neomaneirista e neobarroco, cujo revivalismo transparece à saciedade no novo desenho da frontaria e da capela-mor. A sagração ocorreu em 31 de Maio de 1946. Ciente do peso simbólico que importava conferir a uma catedral, D. José do Patrocínio trabalhou com afinco para juntar ao modesto acervo da paróquia de Santiago Maior notáveis fundos sumptuários, maioritariamente oriundos de conventos e mosteiros extintos de Lisboa, de depósitos do Ministério da Guerra, do Palácio Real das Necessidades e do Paço Ducal de Vila Viçosa. São também significativas as obras de arte provenientes de outros monumentos religiosos da cidade de Beja que haviam sucumbido à sanha vandálica, como o convento de Nossa Senhora da Conceição (extinto em 1892 e parcialmente demolido nos anos seguintes), a igreja paroquial de São João Baptista (demolida em 1919) ou a igreja de São Sisenando (secularizada em 1845). O património da sé incorporou, assim, relevantes colecções de pintura, escultura e artes decorativas – com ênfase para o mobiliário, a ourivesaria, a joalharia, a paramentaria e a azulejaria. Neste último âmbito, salientam-se os painéis da primeira metade do século XVIII, retirados da igreja do convento lisboeta de Santa Mónica (vulgo, Mónicas), à Graça; fazem parte de um vasto programa iconográfico, característico do “ciclo dos Mestres”, que abarca, além de episódios bíblicos – sobressaindo os alusivos à Paixão e Morte de Cristo –, cenas alegóricas, entre as quais se destacam as de uma série inspirada em gravuras do livro do erudito sacerdote jesuíta Hermann Hugo, Pia

Desideria (1624), um clássico da literatura emblemática pós-tridentina. Também notável, a pinacoteca inclui peças da autoria de pintores activos em Lisboa, Évora e Beja nos séculos XVI-XVIII. Pela iconografia, tornou-se célebre, apesar da discreta qualidade plástica, a tela seiscentista que figura o Milagre do Urso, evocação de uma montaria, ocorrida em 1294, nos “matos do Guadiana”, durante a qual o rei D. Dinis foi salvo da morte, às mãos de um temível urso, graças à intervenção do franciscano São Luís, bispo de Tolosa, do qual era devoto. Da transição do Barroco Final para o Rococó, data a conspícua Visita das Santas Mulheres ao Sepulcro Vazio (segundo quartel

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do século XVIII), obra de um mestre familiarizado com a arte veneziana. A criação contemporânea está representada pel’A Ceia de Emaús, de Severo Portela (1936), na capela do Santíssimo Sacramento. É uma das mais interessantes composições de temática religiosa deste artista, natural de Coimbra e formado pela Escola-Superior de Belas-Artes de Lisboa, que viveu e produziu grande parte da sua obra em Almodôvar. No campo da escultura, sobressaem as imagens, em mármore branco, de quatro santos jesuítas: Santo Inácio de Loiola, São Francisco Xavier, São Luís de Gonzaga e Santo Esta-

nislau Kostka, atribuídas a um escultor italiano radicado em Portugal, Giovanni Antonio Bellini, dito Pádua, por ser natural desta cidade (ou do seu alfoz), que se evidenciou, como estatuário, na remodelação da capela-mor da sé de Évora. Vindas do depósito militar da Cova da Moura, na capital, terão pertencido a uma instituição da Companhia de Jesus, provavelmente a igreja do Colégio de Nossa Senhora da Nazaré, em Arroios, onde funcionou um noviciado dessa ordem. Isto leva a aproximá-las de 1733, data inscrita num dos dois retábulos de mármore branco e róseo, também da autoria do mesmo mestre, existentes na catedral e provenientes do referido colégio. Digno de particular atenção, o núcleo de “prataria” – assim mencionado em inventários da antiga casa-forte da sé – inclui algumas das obras-primas do património diocesano, com realce para o lampadário da capela do Santíssimo Sacramento; da autoria de um dos melhores ourives lisboetas do segundo quartel do século XVIII, pertenceu à igreja de Santa Luzia e de São Brás, em Lisboa, da Ordem militar de São João do Hospital, e foi classificado como Tesouro Nacional. Quanto ao acervo têxtil, cumpre salientar a presença, entre outras alfaias de valor, dos sumptuosos estofos, importados de Itália por ocasião do baptismo do futuro rei D. Pedro V (1837); ornaram a capela do Palácio Real das Necessidades. Tudo contribuiu para dar sumptuosidade a uma “igreja-museu”, tal como a desejara D. José do Patrocínio. A remodelação da paroquial de Santiago por Castro e Brito imprimiu-lhe um assumido carácter cenográfico, mas deixou em aberto diversos problemas de conservação, em especial das coberturas e dos terraços, exigindo cuidados assíduos. Como esta rotina de manutenção nem sempre teve os cuidados devidos – uma mácula crónica ao longo das últimas décadas –, o edifício acabou por degradar-se muito. Em 1990-1991, a instâncias do bispo D. Manuel Franco Falcão [reg. 1980-1999], procedeu-se a obras, que visaram especialmente a remodelação do espaço litúrgico e dos anexos, sob a direcção do arquitecto Aldomiro da Silva Carvalho; foram então cometidos diversos atropelos, por vezes à revelia do autor do projecto. Outros trabalhos vieram a ter lugar, ad hoc, em anos seguintes, mas, falhos de acompanhamento técnico adequado, não resolveram as debilidades estruturais, que constituíam o grande dilema de fundo, antes contribuindo

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para exacerbá-las. Disto foi sendo dado conta, às instâncias do estilo, pelo Departamento do Património Histórico e Artístico. Chamado a intervir, por dever do cargo, como Dombaumeister, numa fase já de pré-colapso de vários sectores do monumento, coube ao autor das presentes linhas, alfim, guiado pelos contributos de muitos, estabelecer sem demora o diagnóstico e o programa de requalificação que serviram de base ao trabalho posteriormente desenvolvido. As obras de requalificação, orientadas pelos arquitectos Augusto Costa e Miguel Malheiro, com a colaboração da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, decorreram em 2015-2016, sob a coordenação da Associação de Desenvolvimento Regional Terras do Património, permitindo apetrechar a catedral para os novos desafios pastorais que se colocam, à porta do terceiro milénio. No decurso de tais obras, foram descobertos elementos de grande interesse patrimonial, com realce para um desenho a tinta, esboçado num pé-direito do arco da capela-mor, do lado sul; figura um balaústre que poderá ter sido traçado por Manuel João da Fonseca, aquando da sua presença na igreja, em finais do século XVII.

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA

[JOSÉ] GONÇALVES SERPA, D. José Patrocínio Dias, Bispo Soldado – Beja, Lisboa, União Gráfica, 1958; id., A Sé de Beja – Sua História em Três Épocas, [Beja], [edição do autor], 1984; TÚLIO ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja [Catálogo da Exposição, Beja, Pousada de São Francisco, 1998-1999 – Lisboa, Panteão Nacional, 2000-2001], I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; id., As Formas do Espírito. Arte Sacra da Diocese de Beja [Catálogo da Exposição, Roma-Lisboa, Istituto Portoghese di Sant’Antonio-Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio Nacional da Ajuda, 2003-2004], I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004: id., No Caminho sob as Estrelas. Santiago e a Peregrinação a Compostela [Catálogo da Exposição, Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior, 2007-2008], I-II, Santiago do Cacém-Beja, Município de Santiago do Cacém-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2012; FRANCISCO LAMEIRA, O Retábulo da Companhia de Jesus em Portugal: 1619-1759, Faro, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2006; id. & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2011; TERESA LEONOR M. VALE, Um Português em Roma – Um Italiano em Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008.

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No Tempo da “Monarquia Dual”

ALBERT RECASENS

A união de Portugal e Espanha na denominada “Monarquia Hispânica” ou “Monarquia Católica” (1580-1640), com a consequente perda da autonomia lusa, assim como a crise económica, provocaram o êxodo de artistas e músicos portugueses para o reino vizinho. Entre estes, destaca-se Fr. Manuel Correa, discípulo de Filipe de Magalhães (membro da capela do 8.º duque de Bragança, D. João II [rei de Portugal em 1640], de 1603 a 1652), e, ainda, do religioso carmelita Fr. Manuel Cardoso. Nascido em Lisboa, ca. 1600, era filho de um instrumentista dessa capela, principiando aí a sua carreira, na qualidade de cantor, em 1616. Professou, como carmelita calçado, em Madrid, cidade onde exerceu o cargo de prefeito de música, até ser nomeado mestre-de-capela da catedral de Sigüenza, em 1648. Dois anos mais tarde, ganhou, em concurso, o magistério em Saragoça, sucedendo a Diego de Pontac; desempenhou este cargo até à morte, ocorrida em 1653. Correa notabilizou-se pela composição de vilancicos, tonos humanos (profanos) ou divinos e romances em língua castelhana, mas foi igualmente muito apreciada a sua obra em latim. No Libro de Tonos Humanos, da Biblioteca Nacional de Espanha, em Madrid, procedente da Ordem do Carmo e compilado ca. 1655, figuram 29 peças de Fr. Manuel Correa. Igualmente vinculado à Ordem do Carmo, o vihuelista e compositor Fr. Filipe da Madre de Deus (Felipe de la Madre de Dios, nas fontes espanholas) nasceu em Lisboa, ca. 1630, e esteve activo em Sevilha, antes de ser chamado por D. João IV (1654) e servir na Câmara Real do seu sucessor, D. Afonso VI (1656). Em 1668, restabelecida a paz com Espanha, pôde voltar a Sevilha, onde exerceu o cargo de mestre-de-capela, na igreja dos Carmelitas, até à morte (ca. 1688 ou 1690). As suas obras, principalmente vilancicos e tonos, conservam-se em instituições tão diversas como a catedral da Cidade da Guatemala ou a Bayerische Staatsbibliothek, de Munique. Porém, o mestre português que mais altas responsabilidades teve, em Espanha, no período em apreço, foi Manuel Machado, que nasceu em Lisboa, ca. 1590. Formado na catedral desta cidade, sob a direcção do célebre Duarte Lobo, ganhou fama como instrumentista de harpa. Fixou depois residência em Madrid, com o pai, também harpista, para trabalhar na Capela Real. Em Agosto de 1639, foi nomeado músico de câmara por

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Felipe IV. Faleceu em Madrid, em 1646. A sua produção, tal como a de Fr. Manuel Correa, é maioritariamente profana e conserva-se em diversos cancioneiros polifónicos da época, como o de Sablonara (Munique), Casanatense (Roma), Libro de Tonos Humanos (Madrid), Onteniente e Lisboeta. Na pujante biblioteca de D. João IV existiam obras destes autores, tanto em latim como em romance, que se perderam com o terramoto de 1755. As composições de autores portugueses activos em Espanha confrontam-se com as de Juan Hidalgo, harpista da Capela Real – colega, pois, de Machado – e mestre da Câmara Real, ao serviço de Felipe IV e de Carlos II, uma referência indiscutível da história da música espanhola. Hidalgo notabilizou-se por ter sido o criador, com Pedro Calderón de la Barca, das duas primeiras óperas deste país, La Púrpura de la Rosa e Celos, aun

del Aire Matan, representadas, em 1660, para festejar a Paz dos Pirenéus (1659) – mediante a qual, lembremos, Luís XIV renunciou a prosseguir com a sua ajuda à causa portuguesa na Guerra da Independência – e o casamento da infanta Maria Teresa, filha de Filipe IV, com o rei francês. Do estro hidalguiano, perdurou uma extensa produção religiosa, principalmente tonos “a lo divino” e vilancicos, vários deles adaptações (contrafacta) de obras escritas, na origem, para o teatro. Este programa deleita-nos com uma selecção do magnífico repertório de alguns dos principais músicos ibéricos do século XVII, já alvo de registos discográficos por parte de La Grande Chapelle, que revelam características estilísticas comuns, como o uso dos géneros em voga – tonos, vilancicos e romances –, a ousadia harmónica ou a ênfase na retórica e na expressão do texto. Trata-se, sem dúvida, de um acervo comum que merece ser resgatado.

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[AD LITTERAM] Afuera que sale con ejércitos de flores

Sai, sai, que já sai

Afuera, afuera que sale

Sai, sai, que já sai

con ejércitos de flores

com exércitos de flores

la arrogancia del abril

a soberba de um Abril

a la campaña de un bosque.

p’rà campina de um bosque.

¡Con qué donaire que llega!

E que formoso ele chega!

parece que en ella pone

parece que nela põe

todo su primor el cielo,

o céu todo o seu primor

sus gracias y perfecciones.

com graça e perfeição.

Aves parleras y hermosas,

Aves canoras, formosas,

aquí con picos veloces,

aqui, com bicos ligeiros

celebrad esta hermosura

celebrai esta formosura,

por diosa de aquestos montes.

a deusa destas alturas.

Flores, hacedle guirnaldas

Grinaldas fazei-lhe, flores,

con que su frente corone,

coroai-lhe sua fronte.

por reina que bien merece,

rainha, bem o merece,

tan repetidos favores.

tantos são os seus favores.

A sus fuerzas la nieve

Que nunca se oponha

no se le oponga;

à sua força a neve;

mire que no quede

cuidai, que não quede

sin la victoria.

desprovida de vitória.

Al dichoso nacer de mi Niño

Ao ditoso nascer de meu Menino

Al dichoso nacer de mi Niño

Ao ditoso nascer de meu Menino

los cielos, la tierra,

os céus, a terra,

las aguas, el aire,

as águas, o ar,

en feliz armonía,

em feliz harmonia,

repitan ecos suaves

repitam ecos suaves

los ángeles, los hombres,

os anjos, os homens,

los brutos y las aves.

os animais e as aves.

Canten como que lloran,

Como se chorassem, cantem,

lloren como que cantan

como se cantassem, chorem,

pues mi Niño se ríe

pois meu Menino se está rindo

cuando llorando nace.

enquanto chorando nasce.

Abejuela que al jazmín

Abelhinha que ao jasmim

Abejuela que al jazmín

Abelhinha que ao jasmim

hurtas el líquido aljófar,

roubas a pérola de orvalho

y en campo bebes de plata

e no campo bebes de prata

los néctares de la aurora.

os néctares da madrugada.

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Respeta una blanca mano

Respeita ma branca mão

que, si los jazmines toca,

que, se toca nos jasmins,

es a la flor desengaño,

é desengano p’rà flor

veneración a las hojas.

e veneração p’ràs folhas.

No la blancura te engañe

Que a brancura não te engane,

si no es de jazmín la forma,

se a forma não é de jasmim,

que, por no verse pisado,

que, para não se ver pisado,

perdonará la lisonja.

até a lisonja dispensa.

Huye tu propia desdicha

Foge da tua desdita

y teme tu muerte propia,

e teme tua própria morte,

que, si perdonas la herida,

que, se perdoas a f’rida,

tu misma vida perdonas.

tua própria vida perdoas.

Tente, abejuela,

Queda, abelhinha,

no piques celosa;

com ciúme não piques;

cese el rigor:

que cesse o rigor:

coge el rocío

logra do rocio

y deja la flor.

e abandona a flor.

Ojos míos, ¿qué tenéis…?

Olhos meus, que tendes...?

Ojos míos, ¿qué tenéis

Olhos meus, que tendes,

que no dormís y lloráis?

que não dormis e chorais?

Sin duda que mucho amáis,

É certo que muito amais

y lloráis porque no veis.

e chorais porque não vedes.

Si os preciáis de recatados,

Se os desejais recatados,

mal encubrís los enojos,

mal encobris os abrolhos,

que dicen mucho unos ojos

que muito dizem os olhos

llorosos y desvelados.

chorosos e desvelados.

Mas, ¿qué importa que lloréis,

Mas, que importa que choreis,

si disculpados quedáis

se com desculpa quedais

en no dormir, porque amáis,

em não dormir, porque amais,

y en llorar, porque no veis?

e em chorar, porque não vedes?

Vuestros diluvios no igualan

Vossos dilúvios desigualam

en incendios los suspiros1,

em incêndios os suspiros,

que revientan como tiros

que rebentam como tiros

del alma donde se igualan2.

da alma, à qual se igualam.

Incendios: hipérbole com função igual à dos “dilúvios”. Os suspiros exalam incêndios por apaixonados. Após a original e violenta imagem, dos incendiados suspiros ao modo de pólvora da alma que explode, sobrevém o recolhimento dessa paixão desmedida na própria alma, onde “dilúvios” e “incêndios” se encontram e compensam (se igualan).

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Anarda divina

Anarda divina

Anarda divina,

Anarda divina,

si quieres saber

se tu queres saber

lo que en mí es amor

o que em mim é amor

y en ti aborrecer,

e em ti aborrecer,

óyeme y sabrás lo que es.

escuta-me e saberás.

En mí es amor un volcán

Em mim, amor é vulcão

que, alevemente cruel,

que, levemente cruel,

no me acaba de abrasar

nunca me abrasa de todo

porque no cese de arder.

p’ra qu’ eu não cesse de arder.

Y en ti el aborrecimiento

E em ti, aborrecimento

es otro volcán también,

é outro vulcão também,

pues es fuego lo que oculta

pois é fogo o que oculta

y yelo lo que se ve.

e gelo o que deixa ver.

Esto en mí es amor

Em mim isto é o amor

y en ti aborrecer.

e em ti o aborrecer.

Es en mí amor un desvelo

Em mim, amor é desvelo

tan finamente cortés

tão finamente cortês

que, ocupado en el servir,

que, ocupado no serviço,

se olvida del pretender.

se esquece de pretender.

Y en ti el aborrecimiento

E em ti, aborrecimento

es una hermosa altivez

é ‘ma formosa altivez

que desprecia el sacrificio

que afasta o sacrifício

de las aras de la fe.

de todas as aras da fé.

Esto en mí es amor

Em mim isto é o amor

y en ti aborrecer.

e em ti o aborrecer.

Ya las sombras de la noche

Já as sombras da noite

Ya las sombras de la noche

Já as sombras da noite

huyen medrosas y tristes

fogem medrosas e tristes

del alegre luz del día

d’ alegre luz deste dia

que risueña las despide.

que risonha as despede.

Yo, solo y triste,

E eu, só e triste,

en soledad amarga,

em soledade amarga

–mediendo mi dolor,

– medindo minha dor

la noche larga–,

pela noite larga –,

a ver el día espero;

espero o dia vendo;

veniendo el día,

e o dia já vindo,

por la noche muero.

noite, vou morrendo.

Ya en armonía, las aves

As aves, em harmonia,

dulces cantares le dicen,

lhe entoam doces cantares

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y el cielo, sereno y claro,

e o céu, claro e sereno,

de mil colores se viste.

veste mil cores pelos ares.

Ay, Jesús y qué mar de bravatas

Ai, Jesus, mar de arrogância

Ay, Jesús y qué mar de bravatas,

Ai, Jesus, mar de arrogância,

qué nombre, qué hombre,

que nome, que home’,

qué asombro, qué fama,

que espanto, que fama,

cierto que esgrima

a esgrima, é certo,

la blanca se ofrece,

branca se oferece,

se apresta, se arma,

se dispõe, se arma,

muestra la forma

mostra sua forma

y esconde la cara

e esconde a sua cara,

y con destreza y valor

com destreza e valor

solamente su cuerpo

somente o seu corpo

no guarda que en darlo

não guarda, que dá-lo

consiste su juego de armas.

é seu jogo d’ armas.

¡Afuera todo valiente!

Saia todo o valente!

¡Todos envainen la espada

Ponde a espada na bainha

porque ese diestro que miran

porque esse sagaz que vêem

es el que cayó a carranza!

caiu um dia p’los ferros!

Este es el mayor maestro

Não haverá mestre maior,

que en todo el orbe se halla,

neste mundo não se acha,

sólo enseña a defenderse

ensina tão só a defesa

y es su doctrina cristiana.

e é cristã sua doutrina.

Sus tretas son primorosas

Seus ardis são de primor

y también proporcionadas,

e de grande competência

que en un círculo muy breve

que num espaço tão curto

a todos da vida y mata.

a todos dá vida e mata.

Este es el que firmó el tajo

Foi ele que o Tejo assinou

de cuya famosa mancha

e a sua famosa mancha

no se labrara Toledo

nunca a esquecerá Toledo,

después que la puso en aguas.

que lhe tingiu suas águas.

No tiene su espada aceros

Não tem aço a sua espada

porque los yerros deshaga

mesmo que os ferros desfaça

y porque tres clavos solos

porque três cravos lhe bastam

la guarnición le taladran.

para lhe furar a armadura.

Por eso a Pedro una noche

Por isso a Pedro uma noite

que envaine luego le manda

mandou espada embainhar;

porque aquestos yerros traen

esses ferros são navalhas

la conciencia a cuchillada.

perfurando a consciência.

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¡Venid, querubines alados!

Vinde, querubins alados

¡Venid, querubines alados,

Vinde, querubins alados,

corred, moradores del cielo,

correi, moradores do céu,

que hoy a la tierra

que hoje pela Terra

sus luces reparte

suas luzes reparte

un sol que sin sombras

um sol que, sem sombras,

sabe amanecer!

bem sabe amanhecer!

¡Venid a la mística fiesta,

Vinde à festa de mistério,

corred, cortesanos del cielo,

correi, cortesãos do céu,

que hoy de María

que hoje a Maria

el albor reverencia

o alvor faz reverência

la cándida aurora

na cândida aurora

en su amanecer!

do seu amanhecer!

¡Escuchad, atended,

Escutai, tende ‘sp’rança,

que el clarín de su aurora

que o clarim d’ aurora

mi voz ha de ser!

minha voz há-de ser!

Tan lleno de luz asoma

Assoma, cheio de luz,

el sol de gracia feliz

sol de fortunada graça

que desde el nadir ostenta

que desde o nadir ostenta

claridades del cenit.

toda a clareza do zénite.

Sus fecundos rayos hacen

Seus raios fecundos fazem

florecer y producir,

florescer e produzir,

como en su aurora publica

como n’ aurora manifesta

la más estéril raíz.

a mais estéril raiz.

Las lágrimas de la noche

As lágrimas da noite

enjuga su ardor sutil

enxugam seu fogo subtil

dando al áspid que llorar

pondo a serpente a chorar

y a las flores que reír.

às flores dando que sorrir.

Ya desterrada la culpa

Desterrada foi a culpa

huye a su oscuro confín

para um obscuro confim

y, muerta la noche, hace

que o sol, a noite finada,

el sol al día vivir.

vive já em pleno dia.

“¡Venganza, griegos!” repite

“Vingança, gregos!”, repete

¡Venganza, griegos!” repite

“Vingança, gregos!”, repete

Aquiles, blasón de todos,

Aquiles, de todos brasão,

blandiendo un rayo por asta

brandindo por hasta um raio,

y desbocando un escollo.

o freio ao risco tirando.

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En tus rayos y en mis ondas

Em teus raios, em minhas flamas

ardo, Jacinta, y zozobro,

ardo, Jacinta, e soçobro,

fiel mariposa de un sol,

fiel mariposa de um sol,

perdido leño de un golfo.

de um golfo perdido lenho.

Si de las llamas me libro,

Se das chamas eu me livro,

a las tormentas me sobro,

logo excedo na tormenta,

pues, si de tus ojos huyo,

pois, se fujo dos teus olhos,

me voy a pique en mis ojos.

nos meus a pique mergulho.

En mi llanto y en mi fuego

No meu pranto e no meu fogo

no acierto a morir de todo,

de todo não posso morrer,

ni ceniza me consumo

nem em cinza me consumo,

ni naufragio me derroto.

náufrago não vou fenecer.

¡Piedad, favor, socorro!,

Tende piedade, socorro!

y es pedir puerto al golfo que están

À baía peço um porto,

porque se anegue en llamas todo,

não se afogue todo em chamas,

sin lágrimas los ojos,

sem lágrimas nos olhos,

los ecos mudos

só ecos mudos

y los cielos sordos.

e firmamentos surdos!

Antorcha brillante

Facho brilhante

Antorcha brillante,

Facho brilhante,

imagen flamante

imagem flamante

del Ser que respiro,

do Ser que respiro.

pues, si tu luz miro

Se a tua luz miro

tan siempre encendida,

sempre acendida,

siempre te está costando la vida.

sempre te custa a vida.

Tu símbolo advierte

Teu símbolo recorda

la vida y la muerte

a vida e a morte

de un Dios que me alienta

de um Deus que m’ alenta

cuando me alimenta,

quando m’ alimenta

y amante presumo

e amante presumo

que sólo le halago cuando le consumo.

que só o encontro quando o consumo.

Cuidado, desvelos;

Cuidado, desvelos;

cuidado, ansias

cuidado, aflição.

tened temor,

Tende vós temor,

que anda el Amor

pois anda o Amor

disfrazado en nieve y llamas.

mudado em neve e chamas.

Con tan secreto impulso

Num secreto impulso

hieren sus armas

suas armas ferem:

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que al volar de la flecha

quando a seta esvoaça

ya siente la herida el alma.

a alma sente a ferida.

¡Oh, qué feliz mi pecho

Que feliz meu peito

será, si alcanza

será se alcançar

ser el blanco dichoso

ser alvo mui ditoso

que acierte puntas su aljaba!

das pontas da sua aljava!

Cantad llorando este día

Cantai chorando este dia

Cantad llorando este día

Cantai chorando este dia,

que se ausenta nuestro bien

o nosso bem já se ausenta

y al verle volar al cielo,

que, ao vê-lo subir ao céu,

el llanto fue de placer.

nosso pranto foi de alegria.

Por eso de admiraciones,

De admirações já se enche

el cielo se llena al ver

o firmamento ao ver

que, triunfante de la muerte,

que, da morte triunfante,

sube coronado rey.

sobe coroado o rei.

Sus cortesanos alegres

Seus alegres cortesãos

abren las puertas porque

abrem as portas porque

a todo el género humano

a todo o género humano

las ha abierto su poder.

já as abriu seu poder.

Que sentir su partida,

Sofrer sua partida,

al verle ascender

ao vê-lo ascender,

es la fineza que ostentó

é fineza que mostrou

el amor fiel; la fineza,

o fiel amor; a fineza

que tiernos le pueden hacer

que os mansos lhe podem fazer

es sentir su partida,

é sentir sua partida

al verlo ascender.

quando o vêem ascender.

Con las mozas de Vallecas

Com as moças de Vallecas

Con las mozas de Vallecas

Com as moças de Vallecas

al corro salió Pascual,

ao curro saiu Pascual,

menos fino que lo menos,

menos fino do que o menos,

más preciado que lo más.

apreciado, menos mal.

Como traje fresco y nuevo

Fresco e novo é o traje

algunos le guardan ya

dos que o ’stão a ’sperar.

para sus fiestas en ricos

Cristal3 rico e algodão

algodones de cristal.

vestem para o festejar.

3

Cristal: tecido fino de lã, lustroso.

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Más le sacan unas y otras

Umas e outras o ganham

a mudarse que a bailar

p’rà mudança, não p’ra bailar,

a estar firme con ninguna

que ‘star firme com alguma

que bien sabe hacerlo mal.

é coisa que sempre faz mal.

Muchas bailan y bailarán,

Muitas bailam, bailarão,

con el son del recién venido,

co’ a música do aparecido,

al pandero del marido

ao pandeiro do marido

y al cascabél del galán.

com os guizos de tal galã.

¡Ay, corazón amante!

Ai, coração amante!

¡Ay, corazón amante!

Ai, coração amante!

¡Ay, dulce pena,

ai, doce pena,

cómo halagas

como afagas

al paso que atormentas!

enquanto me atormentas!

¡Piedad, divinos cielos!,

Piedade, divinos céus!

que alborotado el mar

Com o alvoroço do mar

en olas de tormentos,

em ondas de tormenta,

llegó hasta las estrellas

pôde chegar às estrelas

con la proa y el ruego,

com a proa e a petição

la mísera barquilla del afecto,

a mísera barca do afecto.

y bajó rayo el que subió deseo.

Baixou raio o que subiu desejo.

¡Piedad, divinos cielos,

Piedade, divinos céus,

redimid a un amante prisionero!

soltai um amante preso!

Cautivo de una ausencia,

Cativo duma ausência,

y en su memoria preso,

preso na sua lembrança,

en la cadena amable

numa amável cadeia

de eslabonados, dulces, pensamientos,

d’ encadeados, doces, pensamentos,

aquel pescadorcillo

aquele pescadorzinho,

que arrojó en mar sin puerto,

que se lançou ao mar sem porto,

la red de su cuidado

com redes do seu cuidado

a las inciertas olas del silencio,

nas incertas ondas do silêncio,

vive tan sin descanso

vive tão atormentado

que sin duda aprendieron

que sem dúvida aprenderam

de sus continuas penas

das suas penas tão largas

a enlazarse las horas de momentos.

as horas a ligarem-se aos momentos.

De sus lágrimas tristes

Com lágrimas tristes,

al agua entrega el pecho

seu peito entrega às águas

para que le compitan

para que ao imenso pranto

inmenso llanto con inmenso fuego.

faça frente um fogo imenso.

230 BEJA . IGREJA DE SANTIAGO MAIOR (CATEDRAL)


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Luceros y flores, arded y lucid

Luzeiros e flores, ardei e luzi

Luceros y flores,

Luzeiros e flores,

arded y lucid,

ardei e luzi

al ver una aurora,

ao ver que uma aurora

que ilustra el zafir.

ilumina a safira.

Las flores del cielo ardan,

Ardam as flores do céu,

los astros del campo brillen,

os astros do campo brilhem

y exhalando sus alientos

e exalando seus valores

en esferas y pensiles,

em esferas e paraísos,

las flores ardan,

as flores ardam,

los astros brillen.

os astros brilhem.

La estrella a sus ojos muere,

Nos seus olhos morre a estrela,

el alba al valiente vive,

a alva vive em valentia,

que a la luz de sus candores,

que à luz de suas canduras,

en encuentros tan felices,

em encontros tão ditosos,

la estrella muere,

a estrela morre,

el alba vive.

a aurora vive.

Luceros su planta huella,

Luzeiros marca a figura,

claveles su vista tiñe,

sua vista tinge cravos,

pues con puras influencias

pois com graças puras

en milagros de matices,

em milagres de matizes,

luceros huella,

os luzeiros marca

claveles tiñe.

e os cravos tinge.

Aunque en el pan del cielo

Ainda que no pão do céu

–No llores, alma noble,

– Não chores, nobr’ alma,

que en tu empresa feliz

que na tua feliz empresa

serás viva enseñanza de fineza.

serás vivo ensino de fineza.

–Al oír el nombre de fineza,

– Ouvindo falar de fineza,

¿quién pudo discurrir

quem pôde caminhar

sin júbilo lo que ostente la ventura?

sem júbilo pelo que mostre a ventura?

–Yo fui tan vencido del gozo

– Tão vencido fui da alegria

que en risa prorrumpí,

que rindo irrompi,

consagrando, decente, el contento.

sagrando, decente, o contentamento.

–¡Ay de mí, que yo sin llanto

– Ai de mim, que sem pranto

temo que el mérito perdí!,

temo o mérito perder,

porque amor sin ventura

porque amor sem ventura

vale poco... ¡Pues di!

pouco vale… queiram crer!

–Que al adorar las luces

– Que ao adorar as luzes

que Amor hace encubrir

que o Amor faz encobrir,

es una, en tres finezas,

vê-se uma em três finezas,

llorar, cantar, reír.

em chorar, cantar e rir.

–No quieras, cuerdo amante,

– Não queiras, sisudo amante,

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del alborozo huir,

do alvoroço fugir,

que el alma enamorada ya es del cielo.

que a alma se enamora do céu.

–Ya vi que el amor decoroso

– Já vi que o amor em decoro

le da alegre matiz,

fica com alegria matiz,

que es como nuevo esmalte de su vida,

como novo esmalte em sua vida,

y así la risa en el semblante

e assim o riso na face

tropieza por salir

tropeça ao sair

de finezas gozosas impelida.

por fino gozo impelido.

–¡Ay de ti, amante, que no lloras,

– Ai de ti, amante, que não choras,

que aún llegará infeliz,

que ainda ficarás infeliz,

y aún sin lágrimas dudo

que mesmo sem lágrimas duvido

que me haga decir

que me faça dizer

que al adorar las luces

que ao adorar as luzes

que Amor hace encubrir

que o Amor faz encobrir,

es una, en tres finezas,

vê-se uma em três finezas,

llorar, cantar, reír.

em chorar, cantar e rir.

–Aunque en el pan del cielo

– Ainda que no pão do céu,

mi ventura advertí,

minha ventura descobri,

yo lloré, yo canté,

eu chorei e eu cantei,

yo reí, tú... ¡sí!

eu fui rindo e tu… sim.

–Que al adorar las luces

– Que ao adorar as luzes

que Amor hace encubrir

que o Amor faz encobrir,

es una, en tres finezas,

vê-se uma em três finezas,

llorar, cantar, reír.

em chorar, cantar e rir.

¡Ay, cómo gime!

Ai, como geme!

¡Ay, cómo gime,

Ai, como geme,

mas, ay, cómo suena

mas, ai, como soa

la piedra en el aire

a pedra no ar

y el aire en la hiedra!

e o ar pela hera!

Al aire que por las ramas

Ao ar que pela rama

alguna cara se lleva

alguma aparência retém

por frialdad, de buen gusto

da frialdade, facilmente

el alborozo calienta.

o alvoroço acalenta.

Si la hiedra a quien se arrima

Se a hera a quem se arrima

derribar ingrata intenta,

tenta derrubar, ingrata,

la hiedra derriba ahora

a hera derruba então

a quien se ha arrimado a ella.

quem se encostou a ela.

El pajarillo que al lazo

O passarito que ao laço

todas las alas entrega,

todas as asas entrega,

si se queja de la cárcel,

se se queixa da cadeia,

¡Oh, qué en vano que se queja!

muito em vão ele se queixa!

Revisão filológica: Lola Josa

Tradução: Ruy Ventura

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La Grande Chapelle

Este conjunto vocal e instrumental de música antiga assume uma decidida vocação europeia, tendo como principal objectivo a proposta de novas leituras das grandes obras vocais espanholas dos séculos XVI e XVIII, privilegiando a produção policoral barroca. Pretende igualmente contribuir para a urgente tarefa de resgatar e fazer irradiar junto de um público alargado o repertório latino-americano hispano. Já se apresentou nos principais ciclos espanhóis e em festivais de referência, como os de Picardie, Haut-Jura, Musica Sacra Maastricht, Laus Polyphoniae (Antuérpia), Rencontres musicales de Noirlac, OsterKlang-Festival (Theater an der Wien), Cervantino (Guanajuato), Radio France, Ribeauvillé, Saint-Michel en Thiérache, Saintes, Île-de-France, Van Vlaanderen (Malines), Lyon, além das temporadas de Cité de la Musique, de Paris, e UNAM de México (Sala Nezahualcóyotl), entre outros. Desde a fundação, em 2005, que, impulsionado pelo desejo de difundir a herança musical hispânica, criou a etiqueta Lauda, a qual edita, de forma independente, registos de elevado interesse musical. Tem valorizado, neste âmbito, duas linhas: a relação entre a música e a literatura do Siglo d’Oro; e a recuperação do repertório dos principais compositores espanhóis do Renascimento e do Barroco, sempre com primeiras gravações mundiais, especialmente através de recriações musicológicas que situem, no seu contexto, um determinado autor ou uma determinada obra. Em 2010, recebeu o I Premio FestClásica (Asociación Española de Festivales de Música Clásica), pelo seu contributo para a interpretação e a recuperação de música inédita espanhola.

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Albert Recasens Direcção musical

Natural de Cambrils (Tarragona), principiou cedo os estudos musicais sob a orientação do pai, o pedagogo e director musical Ángel Recasens, no Conservatorio Profesional de Vilaseca i Salou. Aperfeiçoou os conhecimentos na Escola de Música de Barcelona, no Stedelijk Conservatorium Brugge, de Bruges, e no Koninklijk Conservatorium, de Gand. Especializou-se em pedagogia musical, canto coral e direcção, sob a orientação de Jorma Panula e Roland Börger. Paralelamente, estudou musicologia na Universidade Católica de Lovaina, obtendo o doutoramento com uma dissertação sobre a música cénica madrilena do século XVIII. Desde os primórdios da carreira profissional, associa a prática musical, a gestão e a investigação musicológica, ciente de que é necessário um esforço interdisciplinar e um compromisso total para a divulgação do património musical esquecido. É autor de vasta bibliografia e organizou a edição crítica das Canciones Instrumentales, de Antonio Rodríguez de Hita, e do Liber primus missarum, de Alonso Lobo. Integrou também projectos de investigação sobre a tonadilha cénica, a rede Sólo

Madrid es Corte e a Aula Música Poética. Foi professor das universidades de Valência e Autónoma de Madrid. Ensina nas universidades Carlos III (Madrid) e de Valladolid. Em 2005, iniciou um projecto de recuperação do património musical espanhol com a fundação de La Grande Chapelle e da etiqueta Lauda. Tem dado a conhecer obras inéditas dos grandes mestres dos séculos XVI a XVIII (A. Lobo, J.P. Pujol, C. Patiño, J. Hidalgo, C. Galán, J. García de Salazar, F. Valls, J. de Nebra, A. Rodríguez de Hita, F.J. García Fajer, J. Lidón, etc.), com estreias ou primeiras gravações mundiais.

São Luís Gonzaga [pormenor]. João António Bellini (atr.). Ca. 1733. Beja, igreja de Santiago Maior (catedral). >

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Ao Serviço de Uma “Casa Comum”

PEDRO ROCHA Director do Departamento de Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo

“Que tipo de mundo queremos deixar a quem nos vai suceder, às crianças que estão a crescer? Somos os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isso interpela o sentido da nossa passagem por esta Terra.” PAPA FRANCISCO, Laudato Si’ – Sobre o Cuidado da Casa Comum, 160.

Nos dias de hoje, dominados pela azáfama da sociedade materialista e individualista, pouco tempo resta para a contemplação da natureza ou, se assim o entendermos, da criação divina. O programa de biodiversidade do Festival Terras sem Sombra insurge-se contra esta ideia, dando a conhecer a biodiversidade do Portugal meridional e intervindo na sua salvaguarda. Dentro de um contexto mundial global de perda acelerada de biodiversidade, nunca a frase “Pensar global, agir local”, de René Dubos (frase que se tornou célebre na 1.ª Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, de Estocolmo, em 1972) foi tão pertinente. Hoje em dia, a humanidade utiliza 50% dos recursos naturais a mais do que o planeta pode sustentar. Como resultado disto, as espécies, os habitats e as comunidades locais estão sob pressão ou ameaças directas – por exemplo, de perda de acesso à água potável. As questões de salvaguarda da biodiversidade reduzem-se, com frequência, a pontos mais ou menos subliminares dos programas de governo dos países democraticamente eleitos. No combate entre a ecologia e a economia, é geralmente a última que ganha. Não obstante, existem pontos de contacto entre a “administração da casa” e o “estudo da casa”. De acordo com a IUCN, a União Mundial de Conservação da Natureza, o valor monetário dos bens e serviços prestados pelos ecossistemas encontra-se estimado em cerca de 33 trilhões de dólares americanos por ano (o produto interno bruto dos Estados Unidos da América para 2014 foi estimado em 17,35 trilhões de dólares). Mesmo assim, não se verifica uma alteração evidente do paradigma global de utilização de recursos.

< Ramo de espigas, colhido no “dia da espiga” (Quinta-Feira de Ascensão). Odemira, 2015.

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Em parte, esta impossibilidade estará intrinsecamente enraizada na ontogenia humana – a utilização da natureza e dos recursos em função das necessidades humanas –; afinal, é isso que justifica o extremo sucesso do ser humano enquanto espécie. No entanto, este conceito antropogénico da natureza, a noção de que a mesma só existe para o serviço das necessidades humanas, interfere com a sustentabilidade dos sistemas e, em última instância, com a própria existência da humanidade. Presentemente, o ritmo de consumo de recursos naturais excede em mais de 50% a capacidade de auto-regeneração dos sistemas naturais da Terra, ou seja, o planeta em que vivemos necessita de um ano e seis meses para regenerar aquilo que a humanidade utiliza nesse mesmo ano. Continuando o padrão verificado actualmente, em 2030 serão necessárias duas Terras para satisfazer as necessidades de uma população humana em contínuo crescimento. Não parece provável que a humanidade tenha a capacidade, num prazo curto, de encontrar, na imensidão do cosmos, novos planetas para colonizar e que, simultaneamente, possuam recursos naturais (ao serviço da espécie), sejam eles terras para cultivo, campos de pastagem, florestas, rios, oceanos ou recursos geológicos subterrâneos. Importa salientar que, na disparidade do ritmo de consumo das diferentes regiões do Globo, encontramos as diferenças entre os países pobres, em vias de desenvolvimento e desenvolvidos. Hoje, a pegada ecológica (PE)1 de um habitante de África cifra-se em 1,4 gha, valor muito abaixo do registo de um cidadão dos Estados Unidos ou do Canadá, cujo valor ronda os 7,9 gha. Traduzindo para o número de seres humanos que a Terra pode suportar, com a PE de um africano este valor é de 9,6 mil milhões, enquanto para um norte-americano é de 1,7 mil milhões… Olhando para Portugal, se consultarmos os mapas do site http://www.footprin tnetwork.org/, é um dos países que se encontra em situação de insustentabilidade mais crítica, com um défice de biocapacidade2 de 1.8 gha relativamente à sua PE, estimada em 3,3 gha. A noção de sustentabilidade deve estar presente em cada família, em cada casa, em cada indivíduo – seja ele agricultor, pescador ou governante. Só assim, contribuindo cada um neste processo, se consegue inverter o consumismo desenfreado, o qual, entre

1

Definida como a área necessária para suportar o consumo de recursos naturais de determinada população. Traduz-se em gha (hectares globais), inclui a área necessária para produzir os recursos consumidos e a área necessária para absorver as emissões de dióxido de carbono. 2 Capacidade dos ecossistemas na produção de recursos naturais e absorção de materiais como o dióxido de carbono.

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outras dramáticas consequências, leva à perda de biodiversidade. Uma forma de iniciar essa reflexão pode passar pelo cálculo da nossa PE individual (disponível em vários sites da internet). Entender-se-á, assim, que é nas actividades quotidianas (o que comemos, como nos vestimos, onde vivemos, como nos deslocamos) que reside a pressão que exercemos sobre o planeta, permitindo novas e melhores escolhas e, consequentemente, contribuindo para a acção colectiva de protecção da humanidade. Na encíclica Laudato Si’ – Sobre o Cuidado da Casa Comum,3 o papa Francisco reflectiu sobre os temas mais relevantes da ecologia contemporânea e desenvolveu um novo paradigma de relação da humanidade com a natureza – uma ecologia integral. Inevitavelmente, enquanto Francisco, invocando o nome do seu modelo, abandona a visão dominante antropocêntrica da natureza (11): “Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza da nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos.”

Este texto é um marco do pensamento ecológico. Baseando-se nos mais recentes dados e avanços do pensamento científico, caracteriza o estado da Terra (“O que está a acontecer na nossa casa”, 17-61), em particular a “perda da biodiversidade” (34-42). O egoísmo é associado pelo sumo pontífice ao lucro rápido e à negligência pela biodiversidade (36): “O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho económico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício económico que se possa obter. No caso da perda ou dano grave de algumas espécies, fala-se de valores que excedem todo e qualquer cálculo.”

Além de analisar a situação do planeta, a encíclica estabelece a ligação entre a ciência e a tradição religiosa (“O Evangelho da Criação”, 62-100), identifica a raiz dos problemas

3

Laudato Si’ – Sobre o Cuidado da Casa Comum, versão portuguesa, Lisboa, Paulus Editora, 2015.

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(“A Raiz Humana da Crise Ecológica”, 101-136) e estabelece um novo paradigma (“Uma Ecologia Integral”, 137-163), a partir do qual define perspectivas de intervenção (“Algumas Linhas de Orientação e Acção”, 163-201) e o seu contexto pedagógico e espiritual (“Educação e Espiritualidade Ecológicas”, 202-246). Tendo em conta o vertente excerto e percorrendo as actividades de biodiversidade desenvolvidas pelo Festival Terras sem Sombra desde 2011,4 verificam-se com satisfação a pertinência das temáticas abordadas e o seu alinhamento com a mensagem difundida pelo Santo Padre. No programa de 2016, vamos invocar este texto a vários títulos magistral. O carácter do Festival Terras sem Sombra pode ser encontrado nos pressupostos de uma “ecologia integral”, mas queremos ir mais longe e associar a cada actividade temática um ponto de Laudato Si’.

4

PEDRO ROCHA, “No Âmago da Conservação da Natureza”, em JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), O Magnum Mysterium. Diálogos Musicais no Sul da Europa (Séculos X-XXI), Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2015, pp. 169-177.

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Para a Salvaguarda da Biodiversidade no Alentejo Meridional

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Funcionando, ao mesmo tempo, como causa e como efeito de um novo capítulo na vida artística, cultural e religiosa do Alentejo, o Festival Terras sem Sombra de Música Sacra tem, na sua génese, uma reunião de sinergias, pouco vulgar entre nós, que permite muitas formas de ver e, principalmente, de sentir o seu território. Um espaço onde marcam presença idiossincrasias e patrimónios diversos, mas complementares. Tanto a multiplicidade como a pluralidade de perspectivas são, de resto, esteios fundamentais de uma proposta que, independentemente de se haver tornado já um dos rostos mais conhecidos da região, não existe só por si, nem se centra apenas no universo da Ars

Sacra. Pelo contrário, abre-se a causas relevantes para a sociedade actual, onde o voluntariado possa despertar pequenos gestos que ajudem a “marcar a diferença”. Detendo um formidável conjunto de recursos biodiversos, Portugal enfrenta grandes responsabilidades, a nível global, para os conservar e valorizar adequadamente. Esta tarefa – nunca é demais lembrá-lo – assume a maior relevância no Alentejo, um dos terrtórios com mais altos índices de preservação do Sul da Europa, mas onde a desertificação do interior rural e a concentração de habitantes e actividades na orla costeira levantam desafios muito significativos. Ao abrigo de protocolos de cooperação com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Ministérios da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, do Mar e do Ambiente), associações, empresas, municípios, institutos politécnicos, universidades e outras entidades presentes in situ, o FTSS promove, no dia seguinte a cada concerto, acções-piloto de salvaguarda da biodiversidade. Estas iniciativas permitem que voluntários de origens ou perfis muito diversos – músicos, espectadores, staff, membros das comunidades locais, etc. – colaborem, ombro com ombro, em iniciativas úteis à conservação da natureza. Actividades simples, mas que encerram toda uma mensagem dirigida aos decisores e à opinião pública. O Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e o Festival Terras sem Sombra são parceiros do Ano Internacional das Leguminosas, uma iniciativa da ONU, e do Ano Internacional do Entendimento Global, uma iniciativa da UNESCO.

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28 de Fevereiro 2016 10H00 ALMODÔVAR COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Departamento de Conservação

da Natureza e Florestas do Alentejo) APOIO:

Câmara Municipal de Almodôvar

NO FIO DA NAVALHA: CONCILIAR O MONTADO COM A AGRICULTURA E A PASTORÍCIA “É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros.” (Laudato Si’, 42)

A sustentabilidade do montado está relacionada com a aplicação de boas práticas de gestão, quer da componente arbórea, quer do respectivo sobcoberto. O seu declínio temse manifestado desde o século XX, e as causas disto são de árduo diagnóstico, mercê da sua grande complexidade, uma vez que estão, na maior parte das vezes, fortemente interligadas. Pode dizer-se que tal resulta da interacção de múltiplos factores de desequilíbrio (bióticos e abióticos), o que dificulta a adopção de soluções tendentes à resolução dos problemas e ao restabelecimento da vitalidade dos ecossistemas – como é o caso das alterações climáticas e das pressões relacionadas com a economia da exploração. Face à importância que estes espaços florestais assumem para o país e, em especial, para o Alentejo, tem existido, ao longo dos anos, um conjunto de políticas de incentivo à criação de novas áreas a eles dedicadas e à reabilitação dos povoamentos de sobreiro e azinheira, visando o seu rejuvenescimento e o aproveitamento da sua capacidade potencial de produção, ao mesmo tempo que se promove a protecção do solo e o combate à aridez. Os novos povoamentos, sobretudo de sobreiro, necessitam de ser devidamente encaminhados. Não surpreende, pois, que as podas de formação se revelem essenciais para a condução das jovens árvores e a posterior extracção de cortiça. Não menos importantes são as podas das árvores adultas, tantas vezes realizadas de forma incorrecta, obrigando as árvores a um esforço vegetativo anormal, enfraquecendo-as e conduzindo a uma maior debilidade do arvoredo. Sessão prática de demonstração do método que se deve seguir na poda de quercíneas, esta actividade visa a intervenção num projecto de arborização jovem, permitindo compreender a essência da engenharia florestal, avaliar densidades de povoamento, medir

242 PARA A SALVAGUARDA DA BIODIVERSIDADE NO ALENTEJO MERIDIONAL


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árvores e executar podas de formação. O objectivo final é contribuir para a valorização do montado português.

13 de Março 2016 10H00 SINES COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Reserva Natural das Lagoas de

Santo André e Sancha); GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente APOIO:

Câmara Municipal de Sines; Capitania do Porto de Sines

MÃOS À OBRA EM SINES: O PROJECTO COASTWATCH E A MONITORIZAÇÃO VOLUNTÁRIA DO LITORAL “Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não-biodegradáveis […]. A Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.” (Laudato Si’, 21)

Coastwatch é um projecto inovador, de âmbito europeu, que permite obter uma caracterização geral da faixa costeira, envolvendo inúmeros voluntários, a título individual ou em grupo. O seu grande objectivo prende-se com a caracterização, ao longo do litoral, de fenómenos-chave, relacionados com os seguintes aspectos: salvaguarda da biodiversidade; zonamento costeiro (zona entre marés, zona supratidal e zona interior contígua); erosão costeira; resíduos; contaminação; e pressões antrópicas. Em Portugal, este ambicioso programa encontra-se activo há 26 anos e é coordenado pelo GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente. O Festival Terras sem Sombra associa-se à iniciativa com a realização de várias unidades de monitorização na orla costeira de Sines. Paralelamente, será recolhido o lixo marinho encontrado ao longo dos percursos litorais.

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3 de Abril 2016 10H00 SANTIAGO DO CACÉM COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Reserva Natural das Lagoas de

Santo André e Sancha) APOIO: Associação

Rota Vicentina; Câmara Municipal de Santiago do Cacém; Corpo Nacional de Escutas

(Agrupamento 722)

DE SANTIAGO DO CACÉM A SANTIAGO DE COMPOSTELA: CONHECER, PRESERVAR E VALORIZAR O CAMINHO PORTUGUÊS NO SUDOESTE “A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus objectivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus.” (Laudato Si’, 210)

É na emblemática igreja de Santiago Maior, matriz de Santiago do Cacém, uma cidade com fortes ligações à peregrinação a Santiago de Compostela, que se inicia este percurso. Serão percorridos cerca de 5 km até às ruínas do convento franciscano de Nossa Senhora do Loreto, estudado pela Real Sociedade Arqueológica Lusitana, traçando uma etapa da Rota Vicentina que acompanha o Caminho histórico de Santiago. Esse cenóbio, cuja construção data de meados do século XV, foi extinto em 1834; conheceu assinalável projecção na zona ao seu redor e faz parte do imaginário local. No presente troço, domina o sobreiro, emblemático do Alentejo e do país (foi declarado a Árvore Nacional de Portugal). Trata-se de uma árvore indispensável para a economia local, para a formação do solo, para a composição da paisagem, constituindo um elemento fundamental de todo um ecossistema com extraordinária biodiversidade. O montado de sobro suporta um conjunto de espécies únicas e com estatuto de protecção. Só em termos de avifauna, existem nele mais de 50 espécies nidificantes. Outras espécies, como o gato-bravo, a geneta ou a doninha, estão associadas aos montados e sobreirais. Aves de rapina, entre as quais a águia-cobreira, a águia-calçada ou a águiade-bonelli nidificam em montados.

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17 de Abril 2016 10H00 FERREIRA DO ALENTEJO COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Reserva Natural das Lagoas de

Santo André e Sancha) APOIO:

Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo

HOSPEDARIA DE PEREGRINOS: A LAGOA DOS PATOS, ILHA DE BIODIVERSIDADE NO OCEANO OLIVÍCOLA “As estradas, os novos cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo que algumas espécies correm o risco de extinção.” (Laudato Si’, 35)

Embora conhecida como Lagoa dos Patos, esta zona húmida, na fronteira dos concelhos de Ferreira do Alentejo e Alvito, é composta, de facto, por duas albufeiras, resultantes de dois açudes, destinados a acumular água para abastecer os arrozais situados a sul e oeste destas. Não são albufeiras de grandes dimensões, mas podem aqui ser observadas, durante o Inverno, notáveis concentrações de aves aquáticas, sobretudo patos (em alguns anos, das maiores concentrações do Baixo Alentejo). Para além das lagoas, os arrozais adjacentes atraem também outras aves aquáticas, por exemplo limícolas – as que preferem viver em zonas húmidas. O elenco mostra-se extenso e inclui espécies aquáticas como a marrequinha, o pato-real, o pato-trombeteiro, o pato-de-bico-vermelho, o mergulhão-pequeno, o mergulhão-de-crista, o corvo-marinho-de-faces-brancas, a garça-branca-pequena, a garça-real, o colhereiro, o flamingo, o frango-d’água, o galeirão-comum, o pernilongo, a perdiz-do-mar, a narceja-maçarico-das-rochas, o guincho-comum, a gaivota-d’asa-escura e o guarda-rios. Esta actividade visa caracterizar a diversidade primaveril de aves da Lagoa dos Patos, relacionando-a com as características muito próprias de um local tão singular. Procurar-se-á ainda identificar práticas de gestão favoráveis à biodiversidade num contexto de agricultura intensiva dos blocos de rega beneficiados pela albufeira de Alqueva.

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8 de Maio 2016 10H00 ODEMIRA COLABORAÇÃO:

Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa; Instituto de Conservação da Natureza

e das Florestas (Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina) APOIO:

Câmara Municipal de Odemira

UM HOTSPOT DA BIODIVERSIDADE VEGETAL NO OCIDENTE EUROPEU: O PARQUE NATURAL DO SUDOESTE ALENTEJANO E COSTA VICENTINA “Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio de um lugar.” (Laudato Si’, 34)

Ao longo de um percurso de cerca de 5 km, partindo de um porto de pesca – o Portinho do Canal –, realiza-se um transecto de reconhecimento das comunidades vegetais do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Este foi criado em 1988 e abrange territórios nos concelhos de Aljezur, Odemira, Sines e Vila do Bispo, desde São Torpes, a sul de Sines, até ao Burgau, já na costa meridional algarvia, incidindo numa faixa marítima de 2 km de largura que acompanha a área protegida em toda a sua extensão. O percurso será guiado por investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que o conhecem à perfeição e focará as principais cambiantes de habitat que caracterizam o Parque Natural: arribas, dunas, charnecas litorais e charcos temporários. Nesta oportunidade soberana de conhecer um dos principais repositórios de biodiversidade do Portugal atlântico, proceder-se-á à sinalização e ao controlo de núcleos pioneiros de espécies vegetais invasoras. Ter-se-á igualmente em conta a riqueza do interface património natural/património cultural.

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22 de Maio 2016 10H00 SERPA COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do

Guadiana) APOIO:

Câmara Municipal de Serpa; Comité Nacional para o Programa Internacional de Geociências,

UNESCO; Laboratório Nacional de Energia e Geologia

TESOUROS DO PARQUE NATURAL DO VALE DO GUADIANA: A SERRA DE SERPA, O MICROCLIMA DE LIMAS E O ACIDENTE GEOLÓGICO DO PULO DO LOBO “Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz de certos lugares e áreas – na terra e nos oceanos –, proibindo aí a intervenção humana que possa modificar a sua fisionomia ou alterar a sua constituição original.” (Laudato Si’, 37)

O Guadiana ganha outro vigor ao atingir o Pulo do Lobo. Aqui, inicia a escavação do seu leito primitivo e forma uma garganta escarpada de 20 m de altura que acompanha o curso fluvial até à proximidade de Mértola. Precipitando-se num turbilhão de cerca de 16 m de altura sobre o pego do Sável, molda os quartzitos, formando as marmitas de gigante. Depois, avança ao longo de 4 km pelo vale encaixado da corredora. Ao constituir um obstáculo natural à progressão para montante dos peixes migradores que sobem o rio para desovar, o pego torna-se uma armadilha natural para a ictiofauna (sável, lampreia). Aliada à interpretação geomorfológica do local, esta acção procura, num percurso interpretativo, encontrar vestígios milenares da presença humana gravados na rocha e crustáceos contemporâneos dos dinossauros. Nas margens do vale antigo do rio, encontramos os segmentos de habitat menos tocados do Parque Natural do Vale do Guadiana: o matagal mediterrânico. Percorrendo uma paisagem de certo modo única, vão ser observados vestígios de cheias antigas (o Guadiana é célebre pelas suas cheias apocalípticas) e, no céu, as espécies de aves emblemáticas da área protegida: cegonha-preta, águia-real e águia-de-bonelli.

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5 de Junho 2016 10H00 CASTRO VERDE COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do

Guadiana) APOIO:

Associação de Agricultores do Campo Branco; Câmara Municipal de Castro Verde

CONSTRUTORES DE PAISAGEM: ACOMPANHANDO A JORNADA DE TRABALHO DE UM PASTOR DO CAMPO BRANCO “O desaparecimento de uma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento de uma espécie animal ou vegetal. A imposição de um estilo hegemónico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.” (Laudato Si’, 145)

Descobrir os segredos dos antigos moirais (“maiorais” ou pastores seniores) de ovelhas da zona de Castro Verde, eis o mote desta acção. Os grandes rebanhos da zona da Serra da Estrela e de outros pontos da Meseta Central Ibérica vinham, desde épocas remotas, invernar no Campo de Ourique. Mesmo quando deixaram de ser realizados os movimentos longos de transumância, perduraram, até há breves décadas, as dinâmicas de deslocação dos gados – transumância de curta duração ou trasterminância – entre o Campo Branco e os terrenos mais férteis de pastagem da charneca (Odemira, Santiago do Cacém, Sines), no Inverno, e para os “barros” (Beja, Ferreira), no Verão. Nesses tempos, os caminhos eram de terra, não existiam as aramadas – vedações – e os rebanhos circulavam quase livremente, muitas vezes em conflito com os donos das herdades vizinhas. A vida era dura, tal como descreveu Carlos Júlio (Campaniço, n.º 78, Castro Verde, 2008): “Levavam a copa em cima de um burro, dormiam ao relento enrolados apenas numa manta ou, mais tarde, tapados por plásticos. Comiam sopas de toucinho e de poejo, no Inverno. Vinagradas, no Verão.” Hoje são muito raros os pastores que ainda passam largas temporadas no campo, a actividade adaptou-se à evolução social, mas não deixa de integrar os ensinamentos do passado, ainda bem presentes na singular paisagem do Campo Branco. Aos participantes nesta iniciativa, será dada a oportunidade de acompanhar uma jornada de trabalho de um moiral.

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19 de Junho 2016 10H00 BEJA COLABORAÇÃO: Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do Guadiana) APOIO:

Câmara Municipal de Beja; Comité Nacional para o Programa Internacional de Geociências,

UNESCO; Laboratório Nacional de Energia e Geologia

ENTRE RIBEIRAS: NA CONFLUÊNCIA DAS RIBEIRAS DE TERGES E COBRES – TURISMO DE NATUREZA E SUSTENTABILIDADE “A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.” (Laudato Si’, 111)

As bacias hidrográficas das ribeiras de Terges e de Cobres cobrem uma parte significativa do Campo Branco. O relevo homogéneo e monótono da peneplanície baixo-alentejana altera-se apenas na presença destes cursos de água que, pelas suas características, guardam muita da biodiversidade original do território, ao contrário das áreas envolventes, já moldadas pela ocupação humana de centenas de gerações de pastores e agricultores. São os “nossos oásis”. Esta actividade decorre num percurso entre as duas ribeiras e um barranco afluente, cuja vegetação foi sabiamente salvaguarda, ao longo de muitos anos, pelos proprietários da herdade. No final, em torno de uma unidade-modelo de agroturismo, na Herdade do Monte da Ponte, vulgo Xistos (freguesia de Trindade, concelho de Beja), espera-nos um conjunto de descobertas: o potencial natural e o saber fazer. Realiza-se aqui, no coração do distrito de Beja, uma evocação, pelos amigos, de Armando Sevinate Pinto [1946-2015]. Descendente de uma família de lavradores e engenheiro agrónomo, desempenhou, entre outros cargos públicos, o de ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas (2002-2004). Grande apaixonado pelo mundo rural e pelo Alentejo, foi o primeiro presidente do Conselho de Curadores do Festival Terras sem Sombra.

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A Casta Antão Vaz e os Vinhos de Vidigueira

JOSÉ MIGUEL ALMEIDA

Descer a encosta sul da Serra do Mendro é entrar no solar do famoso Antão Vaz, um Alentejo muito particular, onde vegetam vinhas e olivais num manto de retalhos de colorido ímpar. Francisco Colaço do Rosário [1935-2008], célebre professor de Enologia na Universidade de Évora, não conseguiu encontrar, em 1980, vinha velha desta casta fora da região de Vidigueira, zona na qual tem ganho grande expressão com a vinificação moderna. Seja nos solos derivados de xisto ou de granito, esta casta autóctone, que existe na zona há muitas centenas ou mesmo milhares de anos, comporta-se de forma exemplar, razão pela qual é, hoje, a principal casta branca aqui cultivada. A produtividade média que naturalmente origina no entorno de Vidigueira permite obter vinhos frutados inconfundíveis que atestam o magnífico desempenho da casta neste terroir. Amplamente conhecida pelos viticultores da região, a casta Antão Vaz vegeta de forma exuberante e tem, mesmo nos anos mais quentes, manifestado boa resistência ao escaldão, embora com desfoliação na base. Reconhece-se facilmente devido às folhas bastante distintas das das outras castas, lisas e glabras, de aspecto quase suculento. Os vinhos de Antão Vaz possuem uma cor citrina, de intensidade média, mas de uma grande finura e complexidade, onde sobressaem notas de frutos tropicais maduros. Na boca, tais vinhos são macios, ligeiramente acídulos e estruturados, mantendo a fineza e o frutado referidos no aroma; o final revela-se persistente e harmonioso. Esta é uma casta de elevado potencial qualitativo.

No alfoz de Vila de Frades. >

250 PRODUTO DO TSS 2016


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2 de Julho 18H30

Prémio Internacional Terras sem Sombra Sines, Auditório do Centro das Artes

ANA SANTOS

Na sequência de uma decisão tomada, na sua primeira reunião, pelo Conselho de Curadores, a organização do Festival Terras sem Sombra criou, em 2011, o Prémio Internacional com o mesmo nome, destinado a homenagear uma personalidade ou uma instituição que se tenham salientado, ao nível global, em cada uma das seguintes categorias: a promoção da Música; a valorização do Património Cultural; e a salvaguarda da Biodiversidade. A escolha dos recipiendários é da responsabilidade de um júri internacional, designado pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, como entidade promotora do Festival, uma vez ouvido o parecer das diversas instâncias deste, assim como de outros peritos. O Prémio consta de um diploma e de uma obra de arte encomendada a um artista contemporâneo, sendo entregue num momento culminante da temporada musical no Alentejo. Com periodicidade anual, esta distinção foi entregue pela primeira vez por S.A.R. o Príncipe Pavlos da Grécia, a 7 de Maio de 2011, em sessão solene realizada na igreja matriz de Santiago do Cacém. Por decisão unânime, a escolha do júri contemplou a soprano norte-americana Cheryl Studer (Música), a Pontificia Accademia Romana di Archeologia, com sede na Cidade do Vaticano (Património Cultural), e o oceanólogo português Mário Ruivo (Biodiversidade). Em 2012, o Prémio distinguiu a soprano grega Dimitra Theodossiou (Música), a museóloga e historiadora de arte portuguesa Maria Helena Mendes Pinto (Património Cultural) e o biólogo espanhol Miguel Ángel Simón (Biodiversidade). A cerimónia da sua entrega realizou-se no Auditório Municipal de Grândola, em 7 de Julho, e foi presidida pelo Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Carlos Moedas, em representação do Primeiro-Ministro. A Casa da Cultura da Comporta, no concelho de Alcácer do Sal, acolheu a celebração do Prémio Internacional Terras sem Sombra em 2013, a que presidiu S.A.R. a Infanta D. Pilar de Borbón, duquesa de Badajoz. Foram premiados o baixo italiano Enzo Dara

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Prémio Internacional Terras sem Sombra 2015, na categoria de Música – Ismael Fernández de la Cuesta, músico e musicólogo espanhol.

Prémio Internacional Terras sem Sombra 2015, na categoria de Património Cultural – Centro Nacional de Cultura, representado por D. Lourenço de Almeida.

Prémio Internacional Terras sem Sombra 2015, na categoria de Biodiversidade – Programa para o Mediterrâneo do WWF – World Wide Fund For Nature, representado por Ângela Silva.

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(Música), a Associação dos Arqueólogos Portugueses (Património Cultural), que celebrou naquele ano o 150.º aniversário da sua fundação, e o investigador angolano Pedro Vaz Pinto (Biodiversidade). O ano de 2014 foi o primeiro em que o acto de entrega decorreu no Auditório do Centro das Artes de Sines. Em sessão solene presidida pelo Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, o Prémio contemplou a soprano espanhola Teresa Berganza (Música), o estadista e homem de letras brasileiro Angelo Oswaldo de Araújo Santos (Património Cultural) e o ambientalista português Serafim Augusto de Freitas Riem (Biodiversidade). Sines acolheu igualmente, no Auditório do Centro das Artes, a celebração de 2015, presidida por S.A.R. o Príncipe D. Pedro de Borbón-Duas Sicílias, duque de Noto. Receberam o Prémio o músico e musicólogo espanhol Ismael Fernández de la Cuesta (Música), o Centro Nacional de Cultura, com sede em Lisboa (Património Cultural), e o Programa para o Mediterrâneo do WWF – World Wide Fund For Nature, que irradia a sua acção internacional a partir de Roma (Biodiversidade). Os premiados serão oportunamente anunciados em www.festivalterrassemsombra.org

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Agradecimentos

António Domingos Pereira António Novais Pereira Concha Gallego Luís Fernandes Luís Pedro Ramos Manuel Abreu Manuel Gracia Rivas Manuel Pato Maria das Dores Galante de Carvalho Maria de Fátima Egydo Nobre Pedro Guimarães Pedro Lourenço Ferreira Rui Mendes Carriço Para a redacção dos textos das pp. 68, 80-81 e 104-105, contou-se, respectivamente, com a colaboração da Fundação Centro Cultural de Belém, do Município de Sines e dos Municípios de Serpa e Castro Verde.


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CO-FINANCIAMENTO UNIÃO EUROPEIA Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional

APOIO INSTITUCIONAL

MECENAS

MECENAS para o Programa de Biodiversidade

COLABORAÇÃO

APOIOS

MEDIA PARTNER

APOIO À DIVULGAÇÃO

O Festival Terras sem Sombra é membro de

EUROPE FOR FESTIVALS FESTIVALS FOR EUROPE

EFFE LABEL 2015-2016


Fundado em 2003, o Fe stiv al Te rras se m So mbra tem vindo a afirmar-se como o mais destacado do seu género em Portugal.

a É uma iniciativa da sociedade

civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, as igrejas da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra. a Resulta da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo e Ribatejo, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas locais e as famílias, sem esqueçer as instituições nacionais e internacionais aqui radicadas. a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo.

a Tem uma programação de qualidade internacional de que fazem

parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística. a O diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras. a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.

a A valorização

dos recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre. a Da carta mag na do Festival, fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade.

a Os concertos e demais actividades são de

acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.

TERRAS SEM SOMBRA | 12.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2016

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FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO

terras sem sombra Torna-Viagem O Brasil, a África e a Europa (Da Idade Média ao Século XXI)


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