Livro Terras Sem Sombra 2017

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mais destacado do seu género em Portugal.

a É uma iniciativa da sociedade

civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, as igrejas da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra. a Resulta da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo e Ribatejo, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas

a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo. a

locais e as famílias.

Tem uma programação de qualidade internacional de que fazem parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística. a O diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras. a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.

a A valorização dos

recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre. a Da carta magna do Festival fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade. a Os concertos e demais actividades são de acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.

TERRAS SEM SOMBRA | 13.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2017

Fundado em 2003, o Festival Terras sem Sombra tem vindo a afirmar-se como o

terras sem sombra DO ESPIRITUAL NA ARTE IDENTIDADES E PRÁTICAS MUSICAIS NA EUROPA DOS SÉCULOS XVI-XX



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Sob o Alto Patrocínio de Sua Ex.ª o Presidente da República Portuguesa, Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa


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terras sem sombra 13.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO 2017

Do Espiritual na Arte Identidades e Práticas Musicais na Europa dos Séculos XVI-XXI

sob a direcção de

José António Falcão


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DIRECÇÃO-GERAL

TRADUÇÃO1

José António Falcão

Ángel Campos Pámpano Emese Rasztovich José António Falcão José Noronha de Valladares Manuel Gracia Rivas Maria das Dores Galante de Carvalho Maria de Fátima Egydo Nobre Pedro Lourenço Ferreira Ruy Ventura

DIRECÇÃO ARTÍSTICA

Juan Ángel Vela del Campo DIRECÇÃO EXECUTIVA

Sara Fonseca CONSELHO DE CURADORES

Miguel de Castro Neto (Presidente) António Lamas Carlos Moedas Carlos Zorrinho Gonçalo Reis Luísa Bastos de Almeida COMISSÃO ORGANIZADORA

António Gonçalves Francisco Lobo de Vasconcellos Joaquim José Galante de Carvalho José António Falcão Miguel de Pape Sara Fonseca CONSULTOR

Pedro Azenha Rocha (Conservação da Natureza) COMUNICAÇÃO

Ana Abrantes Liliana Soares TEXTOS

Antón Cardó António Martins Quaresma Bernardo Mariano Jacobo Cortines Jorge Monteiro José António Falcão José Bruto da Costa José Luis García del Busto Juan Ángel Vela del Campo Juan Ramón Lara Juan Vergillos Pedro Azenha Rocha Pilar del Río Ricardo Estevam Pereira

FOTOGRAFIA2

Álvaro Barriga Feeling Photography Francisco Borba Imagens de Luz Miguel Gaspar Nicola Di Nunzio Sara Fonseca Sofia Perestrello DESIGN

Beatriz Horta Correia/Linha de Letras REVISÃO

António José Massano IMPRESSÃO

Greca - Artes Gráficas, Lda. DEPÓSITO LEGAL 423600/17 © Departamento do Património Histórico e Artístico

da Diocese de Beja e Pedra Angular – Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja. 1

A fixação dos textos interpretados é da responsabilidade

dos intérpretes e grupos convidados. 2

As demais fotografias são da responsabilidade dos intér-

pretes e grupos convidados.

Ilustração da capa: Non scindamus eam, desenho de Giovanni Passari, gravado por Giacomo Freij (Canon

Missæ ad usum Episcoporum, ac Prælatorum Solemniter, vel Privatè Celebrantium, 3.ª ed., Roma, Apud Jo: Mariam Salvioni, Joachinum, et Jo: Josephum Filios, Tipographos Pontificos Vaticanos, 1745, p. 58) [Beja, Museu Episcopal, Inv.º n.º Art Gr 2].


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“A verdadeira obra de arte nasce do «artista» – criação misteriosa, enigmática, mística. Separada dele, ela adquire vida própria, converte-se numa personalidade, num sujeito independente, animado por um sopro espiritual, um sujeito vivo com existência real – um

ser. Ela não é um fenómeno fortuito que aparece, indiferentemente, algures no mundo espiritual. Como qualquer ser vivo, é dotada de poderes activos, e a sua força criadora não se esgota. Vive, age e participa na criação da atmosfera espiritual.” [WASSILY] KANDINSKY, Do Espiritual na Arte, versão portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, p. 113.


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A Mário Ruivo, in memoriam [1927-2017]

Mário Ruivo e a esposa, Maria Eduarda Gonçalves, na acção de salvaguarda da biodiversidade em torno da barragem de Odivelas (Ferreira do Alentejo). 17 de Abril de 2016.


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ÍNDICE 11 13 23 27 29 34 37

Pôr o Alentejo no Mapa Artístico de Portugal e do Mundo | Marcelo Rebelo de Sousa Tempus Colligendi: A Valorização e a Difusão do Património Cultural da Igreja | José António Falcão Proximidade e Cumplicidade | Juan Ángel Vela del Campo Terras Solares | Jacobo Cortines Evocação de Mário Ruivo | Diogo Fernandes

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PROGRAMA CONCERTO ANTEPRIMA | SEVILHA Imenso Sul/Inmenso Sur Consulado-Geral de Portugal, Sevilha | Jorge Monteiro O Nosso Cante | David Monge da Silva [AD LITTERAM]

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Rancho dos Cantadores de Aldeia Nova de São Bento Cantadores do Desassossego

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CONCERTO DE ABERTURA | ALMODÔVAR Da pacem, Domine: Música Espiritual nas Tradições do Barroco e do Flamenco Igreja Matriz de Santo Ildefonso, Almodôvar | José António Falcão Ir, Voltar, Ir de Novo | Juan Ramón Lara [AD LITTERAM]

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Accademia del Piacere Arcángel Dani de Morón Pedro Estevan Fahmi Alqhai

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CONCERTO II | ODEMIRA De Beata Virgine Maria: Obras Portuguesas de Invocação Mariana (Séculos XVI-XVIII) Igreja Matriz de São Salvador, Odemira | José António Falcão & António Martins Quaresma Do Stile Antico ao Stile Concertato Romano | José Bruto da Costa [AD LITTERAM]

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Polyphōnos Raquel Alão Carolina Figueiredo Manuel Gamito Tiago Mota José Bruto da Costa

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CONCERTO III | SANTIAGO DO CACÉM Perpétuo Movimento: Em torno d’A Arte da Fuga Igreja Matriz de Santiago Maior, Santiago do Cacém | José António Falcão Razão e Sentimento | José Luis García del Busto

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Brentano String Quartet

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CONCERTO IV | CASTRO VERDE O Castelo do de Barba Azul, de Béla Bartók Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde | José António Falcão Barba Azul – A Origem do Mito | Rui Pedro Pereira [AD LITTERAM]

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Apollónia Szolnoki Antal Cseh András Rákai

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CONCERTO V | SERPA A Minha Voz na Tua Palavra: Da Devoção Popular à Poesia de Saramago Praça da República, Serpa | António Martins Quaresma A Voz mais Profunda para os Poemas mais Suaves | Pilar del Río Na Terra de Saramago | Juan Vergillos [AD LITTERAM]

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Esperanza Fernández Miguel Ángel Cortés

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CONCERTO VI | FERREIRA DO ALENTEJO Um Espaço Comum: Aspectos da Tradição Lírica em Portugal e Espanha Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, Ferreira do Alentejo | José António Falcão Entre o Amor Divino e o Amor Humano | Antón Cardór [AD LITTERAM]

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Helena Gragera Antón Cardó

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CONCERTO VII | SINES As Afinidades Electivas: Mozart & Beethoven Igreja Matriz de São Salvador, Sines | José António Falcão & Ricardo Estevam Pereira Uma Obra Luminosa e Outra que Nasceu da sua Sombra | Bernardo Mariano

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]W[ Ensemble Enrique Bagaría

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CONCERTO DE ENCERRAMENTO | BEJA Caminho, Verdade e Vida: Motetes e Prelúdios Corais de J. S. Bach Catedral (Igreja de Santiago Maior), Beja | José António Falcão Soli Deo Gloria | José Bruto da Costa [AD LITTERAM]

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Coro Gulbenkian Fernando Miguel Jalôto Sofia Diniz Marta Vicente Michel Corboz

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Centros Históricos, Monumentos & Sítios

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Para a Salvaguarda da Biodiversidade no Alentejo Meridional | José António Falcão

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“E a Terra será Propícia ao Azeite” | Luís Mira Coroa

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Prémio Internacional Terras sem Sombra | Ana Santos

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Pôr o Alentejo no Mapa Artístico de Portugal e do Mundo

O Presidente da República associa-se, mais uma vez, ao Festival Terras sem Sombra de Música Sacra, agora na sua décima terceira edição. Já teria mérito suficiente um festival de música sacra fora das grandes cidades do litoral, um festival que valoriza o património tradicional, popular e erudito, sem esquecer a criação contemporânea, e que decorre em igrejas históricas do Alentejo; mas o Terras sem Sombra é ao mesmo tempo um projecto artístico, patrimonial e local. A dimensão artística está garantida pelos seus directores, pelo seu repertório, pelos seus intérpretes. E podemos citar, a título apenas de exemplo, Paolo Pinamonti, Olivier Messiaen ou Jordi Savall. O aspecto patrimonial é obviamente decisivo, e muito se deve ao obreiro do Festival, o director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, Prof. Doutor José António Falcão. Mas o enraizamento local não é um menor feito, com a itinerância, que envolve vários concelhos, a importância dada à descentralização e à internacionalização, aos produtos regionais, à gastronomia, à biodiversidade. Sabemos que não era uma aposta óbvia fazer um festival de música sacra numa região com uma densidade religiosa significativamente mais baixa do que a média nacional. Mas a música sacra, que também pode ser música devota, apareceu sobretudo associada à chamada música antiga, cujo panorama, em termos de oferta portuguesa, já foi mais pujante, e a que o Terras sem Sombra veio dar novos palcos e novos públicos. Depois de o cante alentejano ter sido declarado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é mais fácil, mas tão justo como sempre, darmos atenção a este festival que desde 2003 põe o Alentejo no mapa artístico de Portugal e do mundo. E uma palavra é devida ao país convidado deste ano, porque este festival internacional, mas muito europeu, muito mediterrânico, tem tido o benéfico e continuado empenho da Direcção Cultural da Embaixada de Espanha. MARCELO REBELO DE SOUSA Presidente da República Portuguesa

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Tempus Colligendi: A Valorização e a Difusão do Património Cultural da Igreja JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO Director-Geral do Festival Terras sem Sombra

“Há tempo para espalhar pedras e há tempo para as juntar.”

Eccle., 3,5

Os bens religiosos ocupam um lugar de relevo no universo do património português, mas são, ainda, um continente pouco explorado. Está por efectuar o levantamento sistemático, a nível nacional, deste amplíssimo conjunto de manifestações culturais, tanto materiais como imateriais. À míngua de dados objectivos, restam as estimativas (aliás, decalcadas da experiência espanhola): alguns peritos, quer da Igreja, quer do Estado, consideram que os valores culturais “eclesiásticos” – isto é, de origem religiosa, independentemente da tutela actual – rondam cerca de 70% de todo o património do país. Quem está no terreno, contudo, apresenta fundadas razões para pôr em causa a generalização desta proporcionalidade que, tendo o interesse de evidenciar uma ordem de grandeza, necessita de ser aferida com um critério estatístico actual. Porém, mais do que a esmagadora dimensão quantitativa, trata-se, fundamentalmente, de uma questão qualitativa. Existe, neste legado, algo de parecido com o sobreiro, a árvore nacional: o seu porte majestoso, a beleza da sua copa e a abundância dos seus frutos impressionam; no entanto, as suas ramificações estendem-se muito para além do que aparentam. Não há dúvida de que é impossível compreender a cultura e a identidade do país sem o conhecimento dos valores patrimoniais gerados pela plurissecular omnipresença cristã, de Norte a Sul, em todos os quadrantes da vida social. Quando se contemplam a diáspora lusa e a generalidade do mundo lusófono, isso surge também de modo assaz perceptível. Será necessário escrever-se, um dia, a história da acção da Igreja para a salvaguarda do património em Portugal, com as suas luzes e as suas sombras. Podemos reconhecê-

< Sol Invicto. Escola portuguesa. Século XVIII, meados. Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação, Serpa.

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-la já, ao longo da nossa geografia, nas mais diversas vertentes, desde o labor dos

scriptoria medievais até à proclamação das primeiras medidas legislativas em favor da herança cultural, dava o Estado moderno os primeiros passos. Lobrigamo-la em seguida, como um fio condutor, na vida das universidades, dos seminários, das academias e das sociedades científicas. Porém, ela depara-se-nos, acima de tudo, em mil e uma ocasiões do quotidiano de muitas comunidades: nas fábricas das catedrais e das paróquias; nas mesas das instituições confraternais; e nas vereações das câmaras. Mesmo quando o Liberalismo extinguiu “todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares” (1834) ou a República proclamou a “Lei de Separação da Igreja do Estado” (1911), essa indelével presença continuou a manifestar-se em sucessivas frentes. Basta ponderar as iniciativas de conservação de monumentos e obras de arte, de organização de arquivos, bibliotecas e museus ou de recolha e divulgação de bens culturais, assim como a bibliografia patrimonial, de feição nacional ou regional, para se vislumbrar o papel desenvolvido pelas instâncias eclesiásticas, tantas vezes de forma vanguardista, nestes domínios. Da Arte Sacra ao Património Cultural Examinando mais de perto a realidade contemporânea, vem a propósito lembrar algumas etapas dignas de nota, em termos de pensamento e de acção, na esfera patrimonial da Igreja. A reforma litúrgica emanada do II Concílio do Vaticano, mormente com a Constituição Sacrosanctum Concilium (1963), significou, devido à errónea interpretação de vários dos seus pressupostos – algo compreensível, de resto, no quadro da época –, um verdadeiro terramoto para inúmeros lugares de culto, “actualizados” com sacrifício de grande parte do respectivo legado histórico-artístico. Tal “renovação” teve, porém, o mérito de contribuir para uma progressiva aproximação aos valores da modernidade e, ao mesmo tempo, enalteceu o papel das comissões de arte sacra, que se formaram, ou ganharam vigor, em várias dioceses. Trouxe à superfície, deste modo, outro interesse pelas relações entre a criação artística e o património (quase em exclusivo, o património artístico, com destaque para o erudito). No quadro de tais comissões abundavam os clérigos, cabendo aos leigos um papel essencialmente supletivo. Destacou-se, entre todas, a Comissão de Arte Sacra do Patriarcado de Lisboa, que continuaria a ser uma referência até à sua extinção, por volta de 2000. Outras sobressaíram também, dentro de uma actividade pontual; quem escreve estas linhas teve a oportunidade de, já nas décadas de 1980 e 1990, acompanhar ou conhecer as das dioceses de Algarve, Aveiro, Braga, Coimbra, Évora, Funchal, Lamego, Leiria-Fátima, Porto, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo e Vila Real, observando de que modo evidenciavam as suas idiossin -

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crasias particulares e formavam um mosaico heterogéneo, mas precioso, de sensibilidades. Viveram-se, nessa época primordial, circunstâncias paradoxais: ao mesmo tempo que se demoliam ou retalhavam monumentos religiosos e um comércio mais ou menos ilícito, embora tolerado, de alfaias, quase sempre ao desbarato, nutria as lojas de antiguidades, dava-se início aos primeiros inventários diocesanos e acalentava-se a criação de arquivos, bibliotecas e, principalmente, museus. Com a preocupação de valorizar os edifícios e acervos em risco e, sobretudo, de responder ao impulso do crescimento da actividade turística, verdadeiro “balão de oxigénio” para as economias locais, surgiu uma espécie de avançada patrimonial que, graças precisamente à sua dimensão litúrgica, não podia ser ignorada. Se, do ponto de vista prático, esta evolução pouco influenciou o destino das campanhas de obras, tão caras a muitos párocos – e a alguns bispos – “empreiteiros”, amiúde cometidas em nome do aggiornamento pós-conciliar, ajudou a criar, em alguns sectores, uma mentalidade diferente. Revelou-se espinhoso, por outro lado, garantir uma formação patrimonial ao clero (a proporcionada nos cursos dos seminários ficava, em geral, pelo normativo da teoria humanística) e aos fiéis (quase inexistente). Nos anos que se sucederam à revolução de Abril de 1974, o movimento cultural ganhou foros de cidadania entre nós, multiplicando-se as associações de defesa do património, ao ponto de ser raro o concelho que não tinha a sua, em certos casos até mais do que uma. Confrontada, no fervor do tumulto social, com destruições e apropriações indevidas – mesmo assim, nada comparável ao ocorrido a partir de 1834 ou de 1911 –, a Igreja não ficou indiferente à pressão daí advinda. Em algumas dioceses, essa vaga traduziu-se no relançamento do modelo institucional das comissões de arte sacra, cuja acção incidia fundamentalmente, outra vez, em tarefas de inventariação, de emissão de pareceres, de organização de pouquíssimas exposições e, ainda, de menos publicações, beneficiando, na generalidade, o património considerado mais substantivo e, até, mais actual. Segundo impunham as circunstâncias, deu-se especial ênfase à construção das novas igrejas ou à remodelação das antigas. À míngua de meios de intervenção, estes órgãos, meramente consultivos, eram “tigres de papel”: estudavam os assuntos, propunham soluções, mas não tinham capacidade para introduzi-las e acompanhá-las no terreno. Continuaria a dominar nas fileiras eclesiásticas, até aos dias de hoje, uma imparável e repetida paixão, que ninguém parecia (parece) efectivamente lograr suster, pelos trabalhos de construção civil. Embora Jesus Cristo, nascido no seio da família de um carpinteiro, tenha, numa das Suas parábolas, recorrido à alegoria de um edifício firmado

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sobre a rocha, tão bela imagem parece ter sido bastante esquecida no nosso meio. Dir-se-ia que, em Portugal, onde o epíteto de “pato-bravo” se tornara sinónimo de ascensão social, ganhou raízes a ideia de que cada comunidade activa deveria reinventar periodicamente os seus monumentos religiosos, ao sabor das circunstâncias, como um sinal de vigor apostólico. Partindo o exemplo, muitas vezes, de “cima”, de quem governa, uma legião de responsáveis pastorais deixou-se apaixonar pelo ímpeto da renovação física dos imóveis: dir-se-ia que o paraíso na terra se assemelhava a um incessante, embora pícaro, e, às vezes, sacrílego estaleiro. Alvo de denúncias e lamentos, o ciclo de intervenções pouco qualificadas continuaria, por vezes com escândalo público, a assombrar, anos a fio, gerações e gerações. Será também oportuno redigir-se, um dia, este capítulo da história do património nacional, que bem poderia constituir um epílogo luso à famosa Histoire du Vandalisme, de Louis Réau. Ao longo da década de 1980, a situação sofreu uma transformação progressiva, o que se ficou a dever outra vez, em larga medida, mais à reacção face à crescente intervenção do Estado, das regiões autónomas e dos municípios no âmbito do património do que a uma orientação estudada no seio da própria Igreja. Face à crescente dificuldade desta para manter o seu património, multiplicavam-se os problemas, deixando a nu a fragilidade do país na defesa da herança cultural religiosa, frequentemente sujeita ao vilipêndio por quem tinha a obrigação de a proteger. Escandalizado ante a crónica predação da arte sacra, um grupo de cidadãos, sob o impulso de um artista plástico, o P.e João José Bentes Pimenta, constituiu, em 1988, a Associação Portuguesa dos Amigos dos Monumentos Religiosos. Outras iniciativas se sucederam, por acção das dioceses ou de instituições da sociedade civil, contribuindo para a formação da atmosfera mais proclive à salvaguarda dos valores em risco. Em 1990, uma esclarecedora nota da Conferência Episcopal Portuguesa sobre O Património Histórico-Cultural da Igreja veio pôr em destaque a importância pastoral do sector, apontando caminhos para a sua animação. Um dos primeiros responsáveis a entender os “sinais dos tempos” fora o bispo de Beja, D. Manuel Franco Falcão, que instaurou, em 1984, o Departamento do Património Histórico e Artístico da sua diocese, considerada “a mais pobre e descristianizada do Sul da Europa” – e onde nunca existira uma comissão que se encarregasse desta área. Se, até aí, a Ars Sacra representara o fulcro das preocupações, no âmbito nacional, em Beja procurou atender-se, de um modo algo pioneiro, a um conceito amplo do património cultural, tal como a UNESCO o definira. A esta inovação seguiram-se outras: a abertura do património à sociedade, lobrigando nele um instrumento ao serviço do desenvolvimento integral do território regional; o apoio às comunidades locais; a interacção

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com os municípios e os serviços do Estado; o acompanhamento técnico interdisciplinar, a cargo de uma equipa qualificada; a instituição de uma rede de museus; a organização de exposições adequadas à mundividência de um público esclarecido; a edição de publicações com o horizonte científico e gráfico que se espera de uma lídima “Pastoral da Cultura”; o diálogo entre o património e a criação contemporânea; e a valorização da música sacra através de um festival internacional. Olhado, de início, com suspeições, o exemplo de uma diocese periférica, tendo à frente um “bispo engenheiro”, acabou por tornar-se uma referência, ao ponto de o Regulamento aí em vigor (alvo de remodelação em 1993) ser copiado noutras regiões, inclusivamente fora do território nacional. Esse e outros exemplos demonstraram que, não obstante as dificuldades, aliás conhecidas, era possível implantar no terreno, sem grande alarde de meios, uma estrutura capaz de se ocupar da gestão dos seus valores culturais. O testemunho do dinamismo de territórios de baixa densidade, de que é paradigma o Alentejo meridional, mostrou-se um revulsivo eficaz e deu força a outros projectos. Após um período de quase letargia, o gigantesco património eclesial dava sinais de vitalidade. Com a expansão deste movimento, porém, cedo se verificou a desigualdade de situações in loco. Se algumas dioceses progrediam, outras vacilavam ou ficavam para trás. Face à necessidade de assegurar uma coordenação do processo, mas respeitando a autonomia de cada bispo diocesano, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) criou, em 1989, no âmbito do Secretariado Nacional de Liturgia e sob a moderação da respectiva Comissão Episcopal, a Comissão Nacional de Arte Sacra e do Património Cultural da Igreja. Esta prestou assinaláveis serviços à causa patrimonial, no diálogo com o Estado, nas acções de formação e no apoio estratégico às actividades diocesanas. De Roma sopravam, entretanto, ventos favoráveis ao património, que conduziram ao surgimento, em 1993, da Comissão Pontifícia para os Bens Culturais da Igreja, alcandorando o sector a outro patamar significativo dentro da estratégia pastoral e dotando-o com um corpus de documentos orientativos, alguns dos quais brilhantes. Inaugurou-se entre nós a era dos Bonia Culturalia, neologismo seguido pela gíria da Cúria, por influência da legislação italiana. Embora a sua introdução na língua portuguesa não seja consensual – e diga pouco à maioria dos nossos concidadãos –, o gosto pela novidade propagou-se. Várias dioceses apressaram-se a adoptar este figurino, talvez na convicção de que “o hábito faz o monge”. À luz das orientações da Santa Sé, a CEP, em 1996, estabeleceu a Comissão Episcopal do Património Cultural da Igreja e a Comissão Nacional dos Arquivos da Igreja (esta de vida efémera). Despontaria em 1998, como órgão executivo, o Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, que não retomou

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deliberadamente o trabalho da anterior comissão nacional, pelo que se perdeu, também aqui, o fio de continuidade. Somando-se às transformações em curso, a Universidade Católica Portuguesa fundara, naquele mesmo ano de 1996, a Escola das Artes, com o objectivo, entre outros, de formar peritos em arte sacra, um projecto vanguardista, mas que feneceu nos verdes anos. Instâncias de algumas dioceses junto da CEP levarão ao surgimento, em 2002, da Associação Portuguesa dos Museus da Igreja Católica, depois coberta por um manto gélido. A explosão dos Bonia Culturalia e o retorno ao essencial Se a década de 1980 constituíra um tempo de sementeiras quase heróicas, fruto de algumas vontades indómitas, a década de 1990 caracterizou-se pela emergência, no plano nacional, de uma orientação pluralista, capaz de acolher, dentro do seu seio, distintas correntes e opiniões, como distinto é o panorama cultural do país. De facto, gerou-se uma onda de entusiasmo que colocou este sector, alfim, na ordem do dia, mobilizando para ele a opinião pública. Sob o impulso dos tempos anteriores, o património eclesiástico passou a estar, literalmente, “em voga”; tal não se traduziu, contudo, na auto-regulação há muito exigida, única via para se granjear o respeito dos pares. Dir-se-ia que aquela que fora, outrora, uma das “pedras rejeitadas” da Igreja em Portugal estava, agora, prestes a tornar-se numa das “pedras angulares” da sua acção. É de inteira justiça lembrar que houve também espaço para, através de iniciativas da CEP ou com o apoio desta, se promoverem exposições nacionais, dirigidas por Natália Correia Guedes, cuja experiência no âmbito cultural, ao serviço do Estado, e cuja capacidade de organização, a partir da Mediateca Intercultural do Instituto de Coordenação de Investigação Científica da Universidade Católica Portuguesa, ajudaram a tornar o património eclesiástico mais conhecido, principiando pela própria hierarquia. Perto de 2000, contudo, essa singular ecologia modificou-se e os “bens culturais religiosos” passaram a estar em voga. Isto teve a vantagem de atrair interessados, mas carreou inesperadas dificuldades, até porque não se acautelou uma base de sustentabilidade que tornasse o sector imune a modas volúveis. O excesso de voluntarismo e alguns jogos de bastidores acabariam por transformar um domínio, até aí discreto e apaziguado, em palco de disputas, com um grupo de pressão a impor firmemente a sua heterotopia. Para surpresa de muitos, chegara uma fase em que, como lembra o ditado português, eram “mais as vozes do que as nozes”. A barca patrimonial, antes quase deserta, cedeu sob o peso dos adventícios, ficando quase à deriva. Houve até momentos de iminente perigo: nas delicadas negociações entre a Igreja e o Estado, os representantes de um e de outro lado quase coincidiam, arrogando-se o direito de

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tomar decisões à revelia das dioceses, mesmo que tal lhes ferisse a autonomia. Quem não se lembra, por exemplo, da feira das vaidades que, imitando com pouco rasgo uma iniciativa espanhola, crismaram de Rota das Catedrais, com milhões para uns e tostões para outros? Estavam em causa interesses agudos, que se digladiavam sem pudor, numa espécie de remake dos conflitos entre Guelfos e Gibelinos – no caso, entre os defensores de uma abertura total à intervenção do sector público e os fiéis à velha linha da autonomia, determinada pela Concordata de 1940, também ela rejuvenescida em 2004. Com o declínio, em 2011, do cobiçado financiamento público (afinal, o objecto das controvérsias que explodiu na década anterior), tudo se foi aquietando. Feneceu também o risco de um monolitismo estéril, imposto pela malha dos “centros de poder”. O tempo, esse admirável joeireiro, permitiu, nos anos seguintes, quando o apoio do Estado, das regiões autónomas e dos municípios caiu a pique e a poeira assentou, restabelecer alguma tranquilidade. Quem buscava a gloríola de um pódio ou, mais prosaicamente, a espórtula que caía da mesa dos bufarinheiros seguiu por outros caminhos, logo que as chamas adormeceram e os espelhos ficaram baços. Em contrapartida, os que permaneceram na sua frente de trabalho, longe dos holofotes da política doméstica, tiveram a oportunidade de, separado o trigo da cizânia, poderem volver ao fundamental na salvaguarda e valorização do património religioso. Destacou-se, nesta etapa, o trabalho levado a cabo, com certo equilíbrio, pelo Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja, oferecendo às dioceses – e a outros agentes culturais –, além de acções de formação e informação, as páginas da revista Invenire, um marco dentro das publicações editadas pela CEP. Ao mesmo tempo, geraram-se iniciativas sólidas, no âmbito civil, como a que deu origem ao Centro UNESCO para a Arquitectura e a Arte Religiosas, tornando bem patente o pendor ecuménico com que o património das três grandes religiões do mundo tem sido entendido entre nós. Esta lenta metamorfose na projecção da herança cultural da Igreja ao longo do último meio século, da arte como valor dominante à heterogeneidade dos patrimónios, evidencia uma caminhada merecedora de atenção. Dissiparam-se os fundados receios dos nossos antecessores acerca da conservação do património eclesiástico, mormente uma integração forçosa no sector público ou a delapidação de uma identidade própria. No entanto, permanecem vivas dificuldades bem conhecidas, algumas das quais se mostram particularmente dramáticas: a falta de recursos técnicos e financeiros; os furtos e o vandalismo (nos últimos anos, com laivos de práticas satânicas, pouco frequentes entre nós, mas já usuais em países da mesma “área cultural”); a desertificação quase generalizada do mundo rural; a terciarização dos centros históricos de inúmeras cidades

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e vilas… Mais do que nunca, impõe-se um compromisso da Igreja no sentido da autodisciplina de toda a sua actividade no campo patrimonial, condição sine qua non para a almejada – e indispensável – abertura à sociedade. E a estas aporias vieram juntar-se outras, cuja evolução também é difícil de prever, entre elas a crescente dificuldade de interpretação do legado religioso que, para muitos, à míngua de referências cristãs, constitui um enigma. Face ao esvaziamento ontológico do mundo presente, tudo indica que os principais adversários a enfrentar, nos anos que se avizinham, sejam o desconhecimento e a indiferença que ele inevitavelmente gera. José Marinho, um dos grandes pensadores portugueses do século XX, disse num dos seus aforismos: “O que eu amo nas igrejas é o adro.” Este atrium simboliza, na verdade, um espaço aberto, um local de encontro e partilha. De certo modo, ajusta-se a ele a anamnese do “Pátio dos Gentios” de que falou, eloquentemente, São Paulo. Mas os guardiães do património da Igreja sabem bem que tal períbolo constitui apenas um intróito em relação aos tesouros que vêm a seguir. Quem se satisfará com ficar à porta, sem entrar? Quem, alertado pela música que ressoa ao longe, vem e, escutando a conversa animada dos outros hóspedes ou pressentindo os eflúvios do ágape que se anuncia, se manterá aí especado, não ousando vencer o umbral? É preciso que os anfitriões estejam atentos e se apressem a vir acolhê-lo, de braços abertos, com um sorriso no rosto, e o convidem a entrar. Sem serem partilhados, sem que se fomente o seu conhecimento e a sua fruição, esses tesouros esgotam-se em si mesmos, perdem o brilho, como os talentos enterrados debaixo das glebas, e os que os guardam convertem-se em servos inúteis. Faz parte da missão dos conservadores do património religioso tornar bem presente o repto, dirigido a uma assembleia alargada, para que se atreva a transpor esse adro, por vasto ou intrincado que ele se possa afigurar. Não restem dúvidas a este propósito: chamar quem vem, motivá-lo a adentrar-se nos monumentos e nas outras instâncias culturais da Igreja, desvendar-lhe os tesouros aí preservados e, principalmente, o que estes tesouros significam para a Humanidade, convertendo cada visita numa experiência gratificante de partilha e numa aproximação fecunda à beleza criada, eis o que se espera de nós. A tarefa não é fácil, pois requer a capacidade de unir a uma preparação científica exigente, a uma competência técnica multifacetada e a um gosto esclarecido e actualizado o desejo de saber transmitir a mensagem de fundo, a essência ao mesmo tempo misteriosa e palpável de um património que, de outro modo, se permanecer de portas fechadas, corre o risco de ficar mudo (e, mais cedo ou mais tarde, ser “abatido” aos activos sociais). Para os que labutam ao serviço dos bens culturais religiosos, geralmente a partir da frente do voluntariado, devolver-lhes a voz constitui algo

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fundamental. Trata-se de um privilégio e de uma responsabilidade que não se devem escamotear, pelo que representam para a plenitude de todas as existências – e para que o Verbo toque o coração de cada ser.

BIBLIOGRAFIA

AFONSO, ANDRÉ DAS NEVES, Museus da Igreja. Missão Pastoral e Cultural, Lisboa, Paulus Editora, 2015. ATANÁSIO, MANUEL CARDOSO MENDES, Arte Moderna e Arte da Igreja. Critérios para Julgar e Normas de Construção, Coimbra, Centro de Estudos do Urbanismo, 1959. AZEVEDO, CARLOS A. MOREIRA, Dicionário de História Religiosa de Portugal, I-IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000-2001. COSTA, ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO PEREIRA DA, Museologia da Arte Sacra em Portugal (1820-2010). Espaços, Momentos, Museografia, Coimbra, [s.n.], 2011 (dissertação de Doutoramento em Letras, na área da História, especialidade de Museologia e Património Cultural, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). CRUZ, MANUEL BRAGA DA & GUEDES, NATÁLIA CORREIA (dir. de), A Igreja e a Cultura Contemporânea em Portugal, 1950-2000, Porto, Diocese do Porto, 2000. FALCÃO, JOSÉ ANTÓNIO, “Pressupostos e Desígnios de uma Exposição Jubilar”, em Brotéria, CLII, Lisboa, 2001. ID., “Igrejas Históricas e Turismo Cultural: Observações a partir da Experiência de Uma Diocese Periférica”, em Brotéria, CLIII, Lisboa, 2001. ID., “Breviário dos Museus da Diocese de Beja”, em Invenire, IV, Lisboa, 2012. ROQUE, MARIA ISABEL ROCHA, Musealização do Sagrado. Práticas Museológicas em torno de Objectos do Culto Católico, Lisboa, Universidade Lusíada de Lisboa, 2005.

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Proximidade e Cumplicidade JUAN ÁNGEL VELA DEL CAMPO Director Artístico do Festival Terras sem Sombra

Não é preciso dar muitas voltas a uma afirmação que, por atrevida, pode parecer um pouco pretensiosa. Digamo-lo assim, com clareza e sem rodeios: o Terras sem Sombra é uma iniciativa cultural e social única no mundo. Afirmamo-lo com orgulho e, também, com um sentimento de íntima satisfação. A convivência e, até, a complementaridade entre Património, Música e Biodiversidade dão a este projecto alentejano um toque de distinção, originalidade e responsabilidade que o diferencia de tudo o que está culturalmente “em funcionamento” em qualquer lugar do planeta. Além disso, aí está, também, o carácter territorial de uma manifestação cidadã. Cada concerto realiza-se numa povoação diferente. Encontramo-nos, pois, ante um festival viajante e, de certo modo, democrático. As músicas ajustam-se a um percurso temporal, abarcando séculos, países e estilos muito variados. Estamos orgulhosos disso – como não está-lo? –, mas, acima de tudo, estamos pletóricos de entusiasmo pela existência do Festival. Um Festival em que prevalece a paixão. Paixão pela arte, paixão pela espiritualidade, paixão pela vida. Orgulho e paixão, como no filme de Stanley Kramer (1957).

The Pride and the Passion (Orgulho e Paixão) foi, curiosamente, uma das primeiras superproduções fílmicas norte-americanas rodadas no território espanhol. Em Ávila, em Santiago de Compostela, em Segóvia, no Escorial… Nesta edição do Terras sem Sombra, estabelecemos uma série de olhares de cumplicidade com Espanha. Em 2016, o Brasil foi o país convidado, por razões prioritariamente culturais e geográficas. Agora, trata-se de Espanha, por considerações geográficas e culturais, além de afectivas. Na realidade, trata-se de estabelecer um diálogo, chamemos-lhe, ibérico. Este tem por pano de fundo um lirismo comum, como gosta de realçar o par formado pela meio-soprano extremenha Elena Gragera e o pianista catalão Antón Cardó, que encherão de textos e músicas familiares o seu recital hispano-português em Ferreira do Alentejo. E assim se gerarão associações entre Gil Vicente, Camões, Ernesto Halffter

< Polirritmias: Ligeti Africano. Alberto Rosado, Shyla Aboubacar, Justin Tchatchoua, Bangura Husmani e Polo Vallejo. Castro Verde, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição. Terras sem Sombra 2016.

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ou Joaquín Nin-Culmell, num itinerário histórico repleto de sugestões e testemunhos de proximidade. O Ministério da Educação, Cultura e Desporto de Espanha, através da Direcção-Geral de Promoção Exterior da Cultura da respectiva Secretaria de Estado, uniu-se à Pedra Angular e ao Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja neste concerto tão simbólico e tão representativo de uns laços culturais sólidos entre dois países irmãos. E Ruy Ventura teve a tarefa de verter para o idioma luso os textos de clássicos portugueses que escreveram em castelhano clássico, ao passo que Maria das Dores Galante de Carvalho, outra das nossas tradutoras de excepção, se ocupou de um belo poema do germânico Friedrich de La Motte-Fouqué. Simbólico e representativo é também, noutra dimensão espiritual, o concerto de inauguração, em Almodôvar, com a sevilhana Academia del Piaccere, dirigida por Fahmi Alqhai, e o cantaor Arcángel, numa fusão músico-espiritual de linhagens barrocas e flamencas, dessas que revolvem as entranhas e põem a sensibilidade à flor da pele. Uma semana antes deste encontro, apresenta-se a edição de 2017 do Festival no Consulado-Geral de Portugal em Sevilha: um acto de geminação entre o cante alentejano e o flamenco, duas manifestações artísticas distinguidas com o reconhecimento de Património Imaterial da Humanidade. Em Madrid, recorda-se ainda, em tom deslumbrado, a actuação, no selecto Círculo de Bellas Artes, dos coros alentejanos do Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento e d’Os Ganhões de Castro Verde, complementados por uma juvenil exibição de viola campaniça, como prelúdio à programação musical do Terras sem Sombra em 2016. A Mostra Espanha 2017, do Ministério da Cultura espanhol, também se associou ao patrocínio de tão singular concerto barroco-flamenco. O flamenco, o grande flamenco, na sua dimensão mais pura, chega-nos pela mão da

cantaora cigana Esperanza Fernández, acompanhada pelo guitarrista granadino Miguel Ángel Cortés. Temas profundamente religiosos como o Agnus Dei, o Kyrie ou o Cordero

de Dios, em ritmos de soleá, petenera ou siguriya, respectivamente, vão alternar com outros inspirados pelo escritor português José Saramago, a quem a cantaora sevilhana do bairro de Triana dedicou, em 2016, um disco intitulado Mi voz en tu palabra. Serpa, cidade onde o ano passado se representou, pela mão do Festival Terras sem Sombra, a primeira ópera encenada na história do Alentejo meridional, será o testemunho deste acontecimento. Serpa, lembremo-lo, que conserva, com evidente satisfação, numa das suas ruas, o nome de Portas de Sevilha – fisicamente desaparecidas no século XIX, mas guardadas no coração. A participação espanhola completa-se com a actuação, inédita em Portugal, do Ensemble ]W[, constituído por músicos de primeríssima linha da secção de sopros da Lucerne

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Festival Orchestra, reforçados, nesta ocasião, pelo acompanhamento de piano, para interpretar dois quintetos para oboé, clarinete, trompa, fagote e piano de Mozart e Beethoven. Tendo em conta os seus múltiplos compromissos, não é fácil contar com a presença, fora do respectivo habitat natural, em pleno coração da Suíça, deste grupo integrado por músicos (quatro espanhóis, um francês) tão conceituados como Lucas Macías Navarro, Vicent Alberola, José Vicente Castelló, Guilhaume Santana e Enrique Bagaría. Sines terá, assim, o privilégio de um concerto previsivelmente inesquecível, de fino, subtilíssimo recorte romântico. E não ficará atrás, no que à qualidade artística se refere, a apresentação, em Santiago do Cacém, do excelente Brentano String Quartet, de Nova Iorque. O grupo é actualmente o quarteto titular residente da mítica Yale School of Music, algo que dispensa mais comentários, e terminará no Baixo Alentejo uma itinerância por algumas das principais capitais europeias. Tendo admirado espectaculares imagens da igreja matriz de Santiago Maior, onde vão actuar, os estado-unidenses Misha Amory, Serena Canin, Nina Lee e Mark Steinberg mostraram-se sumamente agradados por poderem ter como palco este monumento gótico, já famoso pelas condições acústicas. No seu repertório figuram Gesualdo, Kurtag, Bach, Gubaidulina e Britten, uma panóplia de autores muito adequada à atmosfera mágica do local. Um “verdadeiro luxo”. No ano passado contámos, no Terras sem Sombra, precisamente em Santiago do Cacém, com solistas de uma das melhores escolas vocais do mundo, a Accademia Rossiniana de Pesaro, dirigida por Alberto Zedda, cuja versão da Petite Messe Solennelle, de Rossini, interpretada pelo Coro de Câmara da Escuela de Artes El Molino (Madrid), veio ocupar, para sempre, um lugar privilegiado da nossa memória musical selectiva. Na aposta de futuro do Festival, a escolha deste ano não pode ser mais acutilante, uma vez que, em Castro Verde, vão estar representados expoentes de um dos meios musicais mais cosmopolitas da velha Europa, graças à colaboração da Academia Franz Liszt, de Budapeste, viveiro de brilhantes solistas. Cabe realçar a interpretação, em versão de concerto, com acompanhamento pianístico, d’O Castelo do Barba Azul, ópera em um acto de Béla Bartók, com libreto de Béla Balázs, baseado livremente no conto de Charles Perrault. A lendária história desenvolve-se num castelo fantástico, com sete portas e nenhuma janela, e relata, em tom de mistério poético, o impossível amor entre Judite e Barba Azul. Obra-prima da ópera, estreou-se em Budapeste, em 1918. Quase a cumprir-se o seu centenário, há muito que se converteu num dos títulos imprescindíveis dos melhores teatros líricos do mundo. Esta sua antecipação no Terras sem Sombra, em parceria com a Embaixada da Hungria em Lisboa, representa uma brilhante sequência conceptual dos Estudos, de Ligeti, que escutámos,

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em anterior edição do Festival, também na Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, de Castro Verde. Dois agrupamentos de Lisboa protagonizam uma notável “embaixada” lusa neste festival internacional. O excelente ciclo da música nacional de invocação mariana, dos séculos XVI, XVII e XVIII, ofereceu o mote ao ensemble Polyphōnos para o concerto em Odemira, com um repertório assaz cuidado de autores da craveira de Estêvão de Brito – natural de Serpa –, Duarte Lobo, D. Pedro da Esperança, Diogo Dias Melgás – natural de outra alentejaníssima terra, Cuba –, João Rodrigues Esteves e Francisco António de Almeida. A direcção musical e artística está a cargo do barítono José Bruto da Costa, que agregou ao seu redor alguns dos melhores talentos de uma geração-chave da música em Portugal. Finalmente, o encerramento é consagrado a prelúdios e motetes corais de Johann Sebastian Bach, com o Coro da Fundação Calouste Gulbenkian, dirigido por um maestro de craveira mundial – e um ícone da música europeia –, Michel Corboz, e acompanhado ao órgão, ao violoncelo e ao contrabaixo por intérpretes de eleição, pertencentes ao outro corpo artístico da mesma instituição, a Orquestra Gulbenkian. Quando pensamos neste concerto dedicado ao grande mestre germânico, com um coro e solistas de indiscutível categoria, voltam a aflorar sentimentos de orgulho e paixão. Já o referimos no princípio destas linhas: Terras sem Sombra é um festival único. Pode dizer-se que o seu principal segredo talvez resida no facto de que não perdeu nem a curiosidade pelo conhecimento, nem a simplicidade original, nem o afã de promover a espiritualidade mais autêntica e mais profunda através da arte.

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Terras Solares JACOBO CORTINES Da Real Academia Sevillana de Buenas Letras

Uma das experiências mais íntimas e comoventes que posso recordar, nos meus longos anos de peregrinação musical, foi sem dúvida a audição da Pequena Missa Solene, de Gioachino Rossini, que, sob a direcção de Alberto Zedda, teve lugar na igreja matriz de Santiago do Cacém, a 2 de Abril de 2016. Com a sua característica generosidade, o maestro tinha aceitado, muito a gosto, o convite que lhe fizeram os organizadores de um dos festivais mais singulares e bem pensados de quantos existem, o Festival Terras sem Sombra, adstrito ao Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, capital do Baixo Alentejo. A versão escolhida da Missa não era a orquestrada e com grande coro, mas a original, mais voltada para o interior do acto de ser escrita para quatro solistas, coro de câmara e acompanhamento de dois pianos e harmónio, ainda que nesta ocasião, devido às características do recinto e à ampla sonoridade dos pianos modernos, só se utilizou, criteriosamente, um. Os solistas vinham da Accademia Rossiniana, de Pesaro, fundada e dirigida pelo próprio Zedda. Figuravam Isabella Gaudí, soprano, Cecilia Molinari, meio-soprano, Sunniboy Dladla, tenor, e Pablo Ruiz, barítono; ao harmónio, Rubén Sánchez-Vieco; ao piano, Josu Okiñena; e o madrileno Coro de Cámara de El Molino, que nunca tinha interpretado esta peça. Com tais intérpretes, todos jovens, “o mais velho maestro do mundo”, como o denominava um jornal português, urdiu um discurso musical de uma limpeza, uma frescura e uma emotividade como só se pode alcançar com uma vida longa, dedicada inteiramente ao serviço de decifrar o mistério rossiniano. Assim, a Pequena Missa Solene soou íntima e grandiosa, pequena e solene, séria e irónica, religiosa e laica, culminando no Agnus

Dei, cantado por essa voz tão profunda e tão lírica, tão dramaticamente expressiva, que se via enriquecida com as entradas sabiamente matizadas do coro e os acordes e ritmos dos teclados. Uma música que se elevava cada vez mais e que fazia que o ouvinte se recolhesse em si mesmo e ficasse como que em suspenso. Tornava-se, porém, difícil, após tanta suspensão, romper em aplausos e aclamações, mas foi isso que fez o numeroso público que enchia por completo a igreja. Vi algumas lágrimas no formoso rosto de uma jovem do coro. Tal era a emoção pelo seu merecido triunfo. Depois, terminado o

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evento já bem entrada a noite, uns foram para as suas casas, e outros – os intérpretes e os convidados pelos organizadores – fomos jantar a casa de uma das famílias patrocinadoras do festival. Uma comida excelente, uns vinhos da região de primeira qualidade e o desfrute da conversação e da cordialidade. Na manhã seguinte, longas caminhadas pelas amplas ruas que sobem pelas ladeiras de Santiago do Cacém, uma povoação de pouco mais de seis mil habitantes, pertencente ao distrito de Setúbal, e ponto importante do Sudoeste português no Caminho de Santiago de Compostela. A sua história e os seus monumentos foram sendo explicados num castelhano perfeito pelo director deste festival sacro, por José António Falcão, historiador da Arquitectura e da Arte, professor universitário, conservador de museus e descendente de algumas das famílias mais antigas e fidalgas do Alentejo: um verdadeiro sábio que, por outro lado, se mostrava de uma exemplar simplicidade aristocrática. E, após as suas lições magistrais, ele e a sua simpática mulher, Sara, levaram-nos a almoçar ao restaurante do Mercado, com as suas amplas janelas e a sua autêntica gastronomia alentejana. Um breve descanso no hotel e, pela tarde, mais História: a visita às ruínas romanas de Miróbriga. O fórum com os seus templos atribuíveis a Esculápio e a Vénus; restos de pintura ao ar livre protegidos por telheiros; mas o mais impressionante – as termas, das mais bem conservadas da antiga Lusitânia; dois conjuntos diferentes: um sumptuoso, com vestígios de mosaicos, revestimentos de mármore e colunas lavradas; e outro mais modesto, recoberto por estuques. E, à distância, o hipódromo, ainda por escavar. Umas belas ruínas que se engrandecerão com o tempo, mas que contam actualmente com um didáctico museu. E um novo convite para a casa, agora no campo, de outra das famílias colaboradoras do Terras sem Sombra, que rivalizava em hospitalidade e em delicadezas com a anterior. Como agradecer tantas atenções! A esperança é que o festival se estenda a Sevilha e que, aqui, possamos corresponder com o mesmo espírito de solidariedade e entusiasmo. Brilhará de novo o som da música; brilharão os azuis céus sevilhanos; brilharão os vinhos generosos; e brilhará a fraternidade ibérica. Tudo isto teria entusiasmado Rubén Darío, o grande poeta e o grande fruidor da vida, cujo centenário da morte ocorre este ano. E, como homenagem ao lírico nicaraguense, aproprio-me de um dos seus títulos e coloco-o à frente da evocação destas terras que não conhecem sombras: “Terras Solares”.

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Evocação de Mário Ruivo DIOGO FERNANDES

“Tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar, nas vossas mãos são entregues." Gen., 9,2

Nascido em Campo Maior, a 3 de Março de 1927, Mário João de Oliveira Ruivo evidenciou-se, desde cedo, pela vocação científica e pelos ideais democráticos. Após a formação primária em Borba, estudou no Liceu Nacional de Évora, onde integrou o Movimento da Unidade Democrática (MUD) Juvenil, uma vanguarda da oposição à ditadura do Estado Novo. Já como aluno da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, fez parte da Direcção de Lisboa daquela plataforma, o que lhe valeu ser preso, com outros dirigentes nacionais, em 1947. Uma vez terminada a licenciatura em Biologia, as informações negativas da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) impediram-no de seguir a carreira académica, mas não desistiu da investigação na área das pescas. Com a ajuda de amigos portugueses e franceses, nomeadamente os professores António Barros Machado e Louis Fage, obteve um lugar de “attaché de recherche” do Centre National de la Recherche Scientifique, no Laboratoire Arago, da Sorbonne, em Banyuls-sur-Mer, onde fez o estágio e se especializou em oceanografia biológica e gestão de recursos vivos. A participação em projectos que associavam o Instituto de Biologia Marítima, de Lisboa, e organizações francesas permitiu-lhe trabalhar em temas relacionados com o nosso país. De 1954 e 1960, foi nos lugres portugueses até à Terra Nova, a bordo do navio-hospital Gil Eanes, até à Gronelândia e, ainda nos bacalhoeiros, até ao Círculo Polar Ártico, em investigações sobre o bacalhau, ao serviço da International Commission for North-East Atlantic Fisheries. Em 1957, organizou uma notável campanha oceanográfica das Marinhas portuguesa e francesa e da Universidade de Marselha, com o navio Faial e o batiscafo FNRSIII, ao largo do canyon de Sesimbra. Paralelamente, manteve actividade política e, nos finais da década de 50, integrou o conselho editorial da Seara Nova, privando com diversos sectores oposicionistas. Em 1961, ao ser avisado, pelo director do Instituto de Biologia Marítima, de que podia ser preso a qualquer momento, fixou-se em Roma, onde permaneceria até à queda do

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regime. Aí, integrou a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), como técnico do Departamento de Pescas, ascendendo a director da Divisão de Recursos e Ambiente Aquático, o que lhe permitiu manter contactos, no plano internacional, ao mais alto nível. Do ponto de vista político, ingressou no Comité Italiano de Solidariedade com o Povo Português e, em 1962, participou na organização, em Roma, da 1.ª Conferência da Frente Patriótica de Libertação Nacional, em que se constituiu esta organização. Regressado a Portugal imediatamente após a Revolução de Abril de 1974, esteve na primeira linha daqueles que se disponibilizaram para servir o país em circunstâncias intrincadas, exercendo as funções de secretário de Estado das Pescas, nos II, III e IV Governos Provisórios (1974-1975), e de ministro dos Negócios Estrangeiros, no V Governo Provisório (1975). Entre 1974 e 1978, chefiou a Delegação Portuguesa à Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; e, entre 1975 e 1979, foi director-geral dos Recursos Aquáticos e Ambiente do Ministério da Agricultura e Pescas. Presidiu, em seguida, ao Comité Nacional para a Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO (1980-1988). Exerceu as funções de secretário e de vice-presidente desta Comissão, entre 1980-1988 e 2003-2004. Assumiria outros cargos de relevo, v.g., membro do Conselho Consultivo da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1986-1995); presidente da Comissão de Avaliação e Controle Independente do Projecto COMBO, do Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território (1996-1997); coordenador da Comissão Mundial Independente para os Oceanos, a que presidiu Mário Soares (1995-1998); membro da Comissão Estratégica dos Oceanos; conselheiro científico da Expo’98, que se subordinou ao tema Os Oceanos, Um Património para o Futuro; presidente da Comissão Oceanográfica Intersectorial do Ministério da Educação e Ciência. Presidiu ao Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional), desde a fundação do mesmo, em 1997. Desempenhou também funções de responsabilidade internacional, como as de presidente do European Centre for Information on Marine Science and Technology, consultor da Universidade das Nações Unidas, delegado de Portugal no Marine Board da European Science Foundation e conselheiro do director-geral da UNESCO. Vários organismos da sociedade civil beneficiaram da sua orientação ou da sua colaboração, com realce para o International Ocean Institute, a Associação Europeia da Ciência e Tecnologia do Mar, a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, a Sociedade de Geografia de Lisboa, a Fundação Francisco Pulido Valente, a Fundação Mário Soares,

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EVOCAÇÃO DE MÁRIO RUIVO


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o Fórum Permanente para os Assuntos do Mar, a Federação Portuguesa das Associações e Sociedades Científicas e o Centro Nacional de Cultura. Na qualidade de investigador, de gestor ou de orientador, tomou parte deveras activa em projectos nacionais e internacionais de investigação das pescas e conservação dos recursos pesqueiros. Foi professor catedrático convidado, até 1997, do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (Curso de Gestão e Política dos Oceanos). Cientista de perspectivas largas e cidadão profundamente empenhado nas questões cívicas, evidenciou-se, de forma pioneira, na defesa dos oceanos e no lançamento das temáticas ambientais em Portugal. Sobre estas matérias, defendeu uma visão holística que inspiraria gerações e esteve na origem de alguns dos mais importantes documentos relativos ao conhecimento e à governação global dos mares. Invariavelmente optimista, nada o vergava nas missões a que se propunha, enquanto “político dos oceanos”. Além de inúmeras publicações científicas no campo da oceanografia biológica e da gestão das pescas, foi autor de estudos, ensaios e artigos sobre política e gestão dos oceanos, ciência, sociedade e ética, aspectos institucionais da cooperação internacional em assuntos do mar e ambiente. Segundo ele próprio lembraria, em 2016, ao agradecer o doutoramento honoris causa que lhe foi conferido pela Universidade do Algarve, onde funciona um núcleo muito qualificado de ciências do mar, “o meu interesse pelo Mar foi, em grande parte, motivado pelo desejo de melhor entender o comportamento da nossa espécie face à Natureza, melhor seria dizer interessado em contribuir para uma gestão adequada deste «common». […] O Oceano, outrora designado Mar Oceano, tem sido seriamente afectado pela irreflectida atitude das sociedades humanas e, até certo ponto, alguma ingenuidade face às consequências, a médio e longo prazos, da política de gestão adotada e que começa a fazer-se sentir com altos riscos nos equilíbrios planetários e no nosso bem-estar.”

Entre as distinções que recebeu, contam-se as insígnias de oficial da Ordem do Infante D. Henrique, grande oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada, grã-cruz da Ordem do Mérito (Portugal), grã-cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (Brasil) e cavaleiro da Légion d’Honneur (França). A Foundation for International Studies atribuiu-lhe a medalha de Ouro, em 1996, e a Câmara Municipal de Campo Maior, a Medalha de Mérito Municipal, em 2010.

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Coroou este impressionante cursus honorum, testemunho de uma vida longa e fecunda, a atribuição pelo Parlamento Europeu, em 2015, do Prémio Cidadão Europeu, destinado a reconhecer pessoas ou organizações que promovem o entendimento e a integração dos cidadãos na União Europeia e a cooperação entre países. Foi homenageado pelo seu trajecto pessoal, académico e profissional, com relevância para o fortalecimento dos ideais europeus e das instituições, designadamente na candidatura de Lisboa a sede da Agência Europeia de Segurança Marítima, cuja equipa de missão orientou. Mário Ruivo fizera questão, alguns anos antes, de salientar a sua profunda ligação ao Alentejo quando, a 7 de Maio de 2011, na igreja matriz de Santiago do Cacém, recebeu, das mãos de S.A.R. o Príncipe Pavlos da Grécia, o Prémio Internacional Terras sem Sombra (categoria de Salvaguarda da Biodiversidade), outorgado nessa data pela primeira vez. Desde então, tornou-se uma presença assídua do Festival, apadrinhando, entre outras iniciativas, o projecto de criação de uma Reserva Ecológica Municipal na freguesia de Odivelas, do concelho de Ferreira do Alentejo, por ocasião da acção de salvaguarda da biodiversidade aí realizada em 17 de Abril de 2016. Faleceu em Lisboa, a 25 de Janeiro de 2017. No voto de pesar aprovado pela Assembleia da República, dois dias mais tarde, releva-se o seguinte: “A visão inovadora, o combate cidadão e o conhecimento profundo do Professor Mário Ruivo contribuíram para gerar compreensões e uniões em torno de matérias ambientais e, em particular, do mar, consensualmente considerado um activo estratégico nacional. […] A sua memória perdurará, pelo grande exemplo de cidadania democrática e pelo impressionante legado que nos deixa na área do ambiente.”

Onheama, de João Guilherme Ripper. Ópera baseada em A Infância de Um Guerreiro, de Max Carphentier. Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro Nacional de São Carlos e Coro do Instituto Gregoriano de Lisboa. Serpa, Cineteatro Municipal, Terras sem Sombra 2016. >

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EVOCAÇÃO DE MÁRIO RUIVO


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Programa Musical

Anteprima 4 de Fevereiro

SEVILHA Consulado-Geral de Portugal

[20H00]

Imenso Sul/Inmenso Sur Cantadores do Desassossego Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento

Cantaora Esperanza Fernández Guitarra Miguel Ángel Cortés Accademia del Piacere Percussão Agustín Diassera Viola da gamba Rami Alqhai Viola da gamba Johanna Rose Viola da gamba e direcção musical Fahmi Alqhai Soprano Raquel Alão

11 de Fevereiro

ALMODÔVAR Igreja Matriz de Santo Ildefonso

[21H30]

Da Pacem, Domine: Música Espiritual nas Tradições do Barroco e do Flamenco Accademia del Piacere

Cantaor Arcángel Guitarra flamenca Dani de Morón Viola da gamba Rami Alqhai, Johanna Rose Percussão Pedro Estevan Órgão positivo Javier Núñez Viola da gamba e direcção musical Fahmi Alqhai

4 de Março

ODEMIRA Igreja Matriz de São Salvador

[21H30]

De Beata Virgine Maria: Obras Portuguesas de Invocação Mariana (Séculos XVI-XVIII) Polyphōnos Soprano Raquel Alão Alto Carolina Figueiredo Tenor Manuel Gamito Baixo Tiago Mota Violoncelo barroco Ana Raquel Pinheiro Órgão Sérgio Silva Barítono e direcção musical José Bruto da Costa

25 de Março

SANTIAGO DO CACÉM Igreja Matriz de Santiago Maior

[21H30]

Perpétuo Movimento: Em torno d’A Arte da Fuga Brentano String Quartet

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PROGRAMA MUSICAL


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Viola Misha Amory Violino Serena Canin Violoncelo Nina Lee Violino Mark Steinberg

8 de Abril

CASTRO VERDE Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição

[21H30]

O Castelo do Barba Azul, de Béla Bartók Meio-soprano Apollónia Szolnoki Baixo-barítono Antal Cseh Piano András Rákai

6 de Maio

SERPA Praça da República

[21H30]

A Minha Voz na Tua Palavra: Da Devoção Popular à Poesia de Saramago Cantaora Esperanza Fernández Guitarra Miguel Ángel Cortés Palmas e percussão Jorge Pérez “El Cubano” Palmas e percussão Dani Bonilla

Palmas e percussão Miguel Júnior 27 de Maio

FERREIRA DO ALENTEJO Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção

[21H30]

Um Território Comum: Dimensões do Lirismo em Portugal e Espanha Meio-soprano Helena Gragera Piano Antón Cardó

3 de Junho

SINES Igreja Matriz de São Salvador

[21H30]

As Afinidades Electivas: Mozart & Beethoven ]W[ Ensemble & Enrique Bagaría Fagote Guilhaume Santana Oboé Lucas Macías Clarinete Vicent Alberola Trompa José Vicente Castelló Piano Enrique Bagaría

17 de Junho

BEJA Catedral

[21H30]

Caminho, Verdade e Vida: Motetes e Prelúdios Corais de J. S. Bach Coro Gulbenkian Órgão Fernando Miguel Jalôto Viola da gamba Sofia Diniz Contrabaixo barroco Marta Vicente Direcção musical Michel Corboz

1 de Julho

SINES Centro das Artes

[18H30]

Entrega do Prémio Internacional Terras sem Sombra

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Concerto Anteprima

SEVILHA

4 Fevereiro 20H00

IMENSO SUL/INMENSO SUR Fui dispor a salsa verde Uma mãe que um filho embala Quantas papoilas se avistam Quando o rouxinol padece Eu sou devedor à terra Se passares à minha aldeia Fui ao jardim passear Oh que linda pomba branca Não sei se é por serem A la puerta de mi amor Ó rama, ó que linda rama Cantadores do Desassossego Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento Cantaora Esperanza Fernández Guitarra Miguel Ángel Cortés Accademia del Piacere Percussão Agustín Diassera Viola da gamba Rami Alqhai Viola da gamba Johanna Rose Viola da gamba e direcção musical Fahmi Alqhai Soprano Raquel Alão

< Salão Nobre do Consulado-Geral de Portugal em Sevilha.

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Consulado-Geral de Portugal Sevilha

JORGE MONTEIRO

A Exposição Ibero-americana de Sevilha, em 1929, foi um dos maiores eventos acolhidos por esta cidade no século XX – e um dos que lhe marcaram, de forma indelével, a arquitectura e o traçado urbano. O pavilhão nacional naquele certame, cuja instalação permanente passou a albergar a sede do Consulado-Geral de Portugal após o seu encerramento, foi um dos edifícios que mais se destacou por ocasião da Exposição, tanto pela qualidade estética, como pela riqueza ornamental. Possuidor de uma rica história, que começa ainda antes da erecção, o Pavilhão de Portugal acabaria por se converter, com o passar dos anos, num símbolo das relações de especial proximidade e afecto que unem o nosso país e a Andaluzia. Portugal só anunciaria a sua participação oficial na Exposição de Sevilha a 13 de Junho de 1926. Para essa decisão, contribuíram diversos factores: as intensas campanhas de propaganda do comité organizador, os bons ofícios dos governos de Espanha e da Argentina e a intervenção de numerosos organismos, entre os quais a Câmara de Comércio de Espanha em Lisboa, a Sociedade Nacional de Belas-Artes e a Sociedade de Geografia. Mas a decisão sobre a participação portuguesa foi também objecto de uma exigente negociação com Espanha, no decurso da qual Portugal procurou salvaguardar um tratamento equiparado ao do próprio país anfitrião, o que se viria a traduzir na concessão de um amplo espaço de construção para o pavilhão nacional no Prado de San Sebastián, separado da imponente Praça de Espanha pela Avenida de Portugal. Os três anos posteriores seriam dedicados a “preparar-se bem para ir a Sevilha e fazer melhor do que outros países”, como salientou Sousa Costa em 1928. O projecto vencedor do concurso realizado para a construção do Pavilhão de Portugal na Exposição Ibero-americana de 1929 foi pensado de forma a difundir a imagem internacional do país, exaltando a riqueza da história, da arte, da cultura e do folclore portugueses, bem como a pujança económica, agrícola, industrial e turística de um Estado que ainda mantinha o império ultramarino. Desenhado pelos arquitectos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade – parceria que dominou o movimento artístico português do segundo quartel do século XX –, o Pavilhão é um expoente do estilo neojoanino, recuperando elementos da sumptuosa arquitectura

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SEVILHA . CONSULADO-GERAL DE PORTUGAL EM SEVILHA


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do reinado de D. João V. Dos planos iniciais, constava a edificação de uma instalação permanente, pensada para albergar a sede do Consulado-Geral de Portugal, uma vez terminada a Exposição, e de outra provisória, composta por cinco edifícios, cuja duração estava confinada à duração do certame. Ocupando uma área de cerca de 5000 m2, o projecto acabaria por ser executado sob a direcção do engenheiro Jácome de Castro, com o recurso a materiais portugueses (granito de Viana, pedra calcária de Pêro Pinheiro e mármores de Estremoz) e madeiras exóticas provenientes das antigas colónias. Participaram na decoração do pavilhão nacional perto de 30 artistas nacionais, entre os quais alguns dos mais reputados escultores, pintores, estucadores e ceramistas do segundo quartel do século XX. Da instalação permanente sobressai a cúpula, de 26 m de altura, rematada por um telhado em telha vidrada, a fazer lembrar os antigos solares do Norte de Portugal. A planta baixa conta com um amplo vestíbulo (com um friso decorado com pinturas da Cruz de Cristo e os escudos das principais cidades de Portugal e dos seus antigos territórios ultramarinos) e duas salas de exposição. No primeiro andar – a que se acede através de um par de sumptuosas escadas em espiral, decoradas por Benvindo Ceia com as alegorias do Comércio, da Indústria, da Ciência e das Artes e Letras –, dispõem-se duas salas e, sobre o vestíbulo, o Salão Nobre, ainda hoje a peça principal do conjunto. O tecto está decorado com o escudo nacional, no centro, e quatro painéis alegóricos dos continentes colonizados por Portugal, da autoria de Varela Aldemira e Martinho Gomes da Fonseca. O Pavilhão de Portugal, nome que o tempo haveria por cunhar para se referir à sede do Consulado-Geral de Portugal em Sevilha, tem assumido um papel destacado na promoção das relações diplomáticas e consulares entre Portugal e a Andaluzia. A riqueza arquitectónica, a dignidade do conjunto e a localização privilegiada que ocupa num dos eixos nevrálgicos da cidade de Sevilha – a intersecção entre a antiga Fábrica de Tabacos, o Casino da Exposição e a Praça de Espanha – fazem dele um espaço privilegiado para a apresentação do melhor da arte e da cultura portuguesas contemporâneas nesta importante comunidade autónoma espanhola.

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O Nosso Cante DAVID MONGE DA SILVA

O cante nasce no ventre da terra. É gerado no interior do chão alentejano, entre pedras fracturadas pela inclemência do clima e por poderosas forças telúricas. Solta-se, ainda débil e frágil, e emerge com dificuldade do solo que começava a ser rasgado pelos braços e pelo suor dos homens. É transportado maternalmente, junto a esse mesmo solo, pela aragem vagarosa dos longos dias de Verão, ganhando, desde então, o andamento lento e a ondulação suave das belas planícies alentejanas. Vai assimilando e incorporando na sua essência os sons e os cheiros que, ao acaso, cruzam o seu caminho: o balir dos rebanhos nos campos verdes sem fim; o trinar melodioso do pintassilgo no cimo de um velho sobreiro; o bater de asas de uma perdiz fugidia; o uivo, poderoso e contínuo, de um lobo, vindo não se sabe de onde; o rumor relaxante das folhas de um olival milenar; o fragor da água a cair num pego sequioso; e, até, o cheiro do poejo nas margens sombrias de um barranco. Incorpora ainda o silêncio dos montados quando as águias os sobrevoam. Um silêncio austero, profundo e dominador, sempre presente no cante, dando entrada às vozes que o preenchem e lhe dão identidade. Chega finalmente à casa dos homens. Ganha força, coesão e sonoridade ao reflectir-se, repetidamente, na brancura imaculada das paredes das aldeias. Começa então a identificar-se com a vida dos seus habitantes: incorpora o riso e a alegria das crianças que brincam; a dor e o grito dos homens que não têm trabalho; o choro e a oração das mulheres, sempre de luto; e, sobretudo, a memória e a sabedoria dos mais velhos, que souberam transmitir-nos uma herança que, pacientemente, foram construindo dentro dos seus corações. As suas múltiplas experiências e vivências foram por eles, por nós, por todos os alentejanos, transformadas em arte, em sons musicais, que brotam melodiosamente das gargantas poderosas e afinadas dos nossos cantadores. Eis o cante. O nosso cante majestoso e belo, que nos orgulha e representa. É, desde 2014, Património Cultural Imaterial da Humanidade. Este cante ancestral, polifónico e de grupo sempre acompanhou a vida dos homens em todas as suas manifestações: do nascimento à morte; da vida na aldeia às actividades agrícolas; do trabalho aos tempos livres e à festa; da crítica mordaz ao elogio sem lisonjas; da aceitação passiva à luta reivindicativa; do quotidiano à transcendência; do profano ao sagrado. O cante é a voz do Alentejo. É a nossa voz. É a voz dos nossos Cantadores.

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[AD LITTERAM] Fui dispor a salsa verde

Quantas papoilas se avistam

Fui dispor a salsa verde

Quantas papoilas se avistam

Lá fora nos olivais

Lá naqueles trigais

Para ver se me esquecia

Tantas como beijos deram

Cada vez me lembras mais

Mondadeiras e zagais

Alecrim, salsa verde aos molhos

As mondadeiras cantando

ó tirana

Suas penas, seus amores

Por amor de ti choram os meus olhos

Não cantam, estão rezando

tricana

Num altar cheio de flores

Pus-me a chorar saudades

Num altar cheiro de flores

Ao pé d’uma fonte um dia

Cada uma é um desejo

Mais choravam os meus olhos

Os anjinhos são pastores

Que a própria fonte corria

A capela o Alentejo Seara, verde seara

Uma mãe que um filho embala

Mondada com tanto gosto

Uma mãe que um filho embala

És verde na Primavera

Ó meu lindo amor

E loira no mês de Agosto

Às vezes pões-me a chorar Ó meu lindo amor Ó meu lindo bem

Quando o rouxinol padece Quando o rouxinol padece

Só por não saber a sorte

Uma ave tão pequena

Ó meu lindo amor

Que fará meu coração

Que Deus tem para dar

Tão coberto de tanta pena

Ó meu lindo amor Ó meu lindo bem

Já lá vem rompendo a aurora Os campos são um jardim

Aurora tem um menino

Os passarinhos cantando

Mas tão pequenino

Na rama do alecrim

O pai, quem será? É o Zé da Daroeira

Na rama do alecrim

Que vai prà Figueira

Ouvi eu há meia hora

Mais tarde virá

Os passarinhos dizendo Já lá vem rompendo a aurora

No adro de São Vicente Onde há tanta gente Aurora não está

Eu sou devedor à terra

Cala-te, Aurora, não chores

Eu sou devedor à terra

Que o pai da criança

A terra me está devendo

Mais tarde virá

A terra paga-me em vida Eu pago à terra em morrendo

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Alentejo, Alentejo

Oh que linda pomba branca

Terra sagrada do pão

Oh que linda pomba branca

Hei-de ir ao Alentejo

Que estás naquele pombal

Mesmo que seja no Verão

Ai quem me dera ser o pombo Para lhe poder falar

Ver o doirado do trigo Na imensa solidão

Para lhe poder falar

Alentejo, Alentejo

Falar-lhe muito a preceito

Terra sagrada do pão

Oh que linda pomba branca Tão delicada como a flor no peito

Se passares à minha aldeia Se passares à minha aldeia

Não sei se é por serem1

Não vás de cabeça ao léu

Não sei se é por serem

Quando o sol mais almareia

Voltas do Entrudo

Podes pôr o meu chapéu

Tenho o meu amor Demudado em tudo

Podes pôr o meu chapéu A mais valiosa herança

Demudado em tudo

Já foi de quem está no céu

Demudado em nada

E não me sai da lembrança

Não sei se é por serem Voltas de entrudada

Quando nos faltar a voz Há-de haver uma mão-cheia A cantar por todos nós

A la puerta de mi amor

Tenho cá na minha ideia

A la puerta de mi amor Hay un lazo de algodón

Tenho cá na minha ideia

Todos pasan y no se quedan

Que o cante se ouve no céu

Solo yo me quedo en prisión

Se passares à minha aldeia Não vás de cabeça ao léu

Tú que duermes en la ribera Acaso me podrás decir Cuantas horas duerme el agua

Fui ao jardim passear

Antes de amañecer

Fui ao jardim passear Trouxe um ramo de alecrim

Tenho no quintal um limoeiro

Para dar ao meu amor

Junto ao canteiro da hortelã

Que se não esqueça de mim

Ele dá limões o ano inteiro Eu em troca rego todas as manhãs

Que se não esqueça de mim Para sempre se lembrar

Eu em troca rego todas as manhãs

Trouxe um ramo de alecrim

Isto é se não chover primeiro

Fui ao jardim passear

Junto ao canteiro da hortelã Tenho no quintal um limoeiro

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Moda do Entrudo.


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La nostalgia hace sufrir Aún así la quiero bien Una nostalgia en la vida Pobre de quien no la quiere

Ó rama, ó que linda rama Ó rama, ó que linda rama Ó rama da oliveira O meu par é o mais lindo Que anda aqui na roda inteira Que anda aqui na roda inteira Aqui e em qualquer lugar Ó rama, ó que linda rama Ó rama do olival Eu gosto muito de ouvir Cantar a quem aprendeu Se houvera quem me ensinara Quem aprendia era eu Não m’invejo de quem tem Parelhas, éguas e montes Só m’invejo de quem bebe A água em todas as fontes Fui à fonte beber água Encontrei um ramo verde Quem o perdeu tinha amores Quem o achou tinha sede Debaixo da oliveira Não se pode namorar A folha é miudinha Deixa passar o luar.

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Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento

Um dia, alguns elementos juntaram-se ocasionalmente numa taberna a beber uns copos. Cantaram, como era tradição, gostaram de ouvir-se, vibraram de entusiasmo e, sob a euforia, um deles terá sugerido que deviam formar um rancho. A ideia instalou-se nos espíritos, fervilhou, avolumou-se, galvanizou-os, a ponto de convidarem alguns amigos. Fizeram-se a primeira reunião e o primeiro ensaio em Abril de 1986; cantou-se bem e todos concordaram que deviam organizar-se. Estava constituído o agrupamento que, logo nessa reunião, decidiu fazer uma recolha das modas antigas cantadas, principalmente, em Aldeia (depois de 1988, Vila) Nova de São Bento. Alvo, igualmente ele, de grande atenção, o traje é o domingueiro ou de casamento, usado nos primórdios do século XX: calça, colete, jaqueta, cinta preta, camisa branca arrendada, lenço de seda com nó direito, bota caneleira e chapéu de copa alta e afunilada. Como adereço, um relógio com corrente de ouro ou de prata, pendente do bolso do colete. Tem obtido, desde a sua fundação, brilhantes classificações nos concursos de cantares alentejanos realizados em Beja: 1.º Prémio de Cante (1986); 3.º Prémio de Cante e 3.º Prémio de Trajes Regionais (1987); 1.º Prémio de Cante e 2.º Prémio de Trajes Regionais (1989). Editou vários registos, com destaque para Rancho de Cantadores, com a participação de António Zambujo, Miguel Araújo, Luísa Sobral, Jorge Benvinda e Pedro Mestre (Disco de Ouro 2016). Possui, actualmente, 30 elementos, todos amadores, com as mais diversas profissões.

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Cantadores do Desassossego

Formado em 2015, este grupo é constituído por 26 vozes masculinas, tendo como principal objectivo contribuir para a preservação e a sustentabilidade do cante alentejano no concelho de Beja. O seu reportório baseia-se fundamentalmente no património musical da tradição, profana e religiosa, não deixando, porém, de interpretar algumas modas mais recentes. Apresenta-se com o traje domingueiro, outrora usado pelas gentes ligadas ao campo e dotadas de um pouco mais “posses”. Tem realizado inúmeras actuações por todo o país, sob a orientação de Francisco Torrão.

Esperanza Fernández (v. p. 133) Miguel Ángel Cortés (v. p. 134) Raquel Alão (v. p. 80)

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Concerto de Abertura

ALMODÔVAR

11 Fevereiro 21H30

DA PACEM, DOMINE: MÚSICA ESPIRITUAL NAS TRADIÇÕES DO BARROCO E DO FLAMENCO Antífona, glosa e improvisação sobre o Gregoriano Da Pacem, Domine Popular En el Alma te Llevaré & Jaleos Popular (atr. São João de Ávila) No me Mueve, mi Dios Cristóbal de Morales [ca. 1500-1553] Improvisación y Glosa sobre el Kyrie y el Christe (Missa Mille Regretz) Popular Siguiriya Improvisação Pasacalle Fahmi Alqhai [1976-] & Arcángel [1977-] El Canto de los Pájaros (Manuel García) Gaspar Sanz [1640-1710] Canarios & Bulería Popular-Juan García de Zespedes [1619-1678] Guaracha y Guajira (Ay que me Abraso)

Accademia del Piacere Cantaor Arcángel Guitarra Dani de Morón Viola da gamba Rami Alqhai Viola da gamba Johanna Rose Percussão Pedro Estevan Órgão positivo Javier Núñez Viola da gamba e direcção musical Fahmi Alqhai

< Átrio da igreja [pormenor]. Escola portuguesa. Século XVII (finais). Convento de Nossa Senhora da Conceição, Almodôvar.

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Igreja Matriz de Santo Ildefonso Almodôvar Classificada como Monumento de Interesse Público pela Portaria n.º 450/2012 (Diário da

República, 2.ª Série, n.º 181, de 18 de Setembro de 2012)

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo e, depois, bispo da mesma cidade, onde faleceu em 667) como orago da paróquia de Almodôvar é um interessante reflexo da presença, no Baixo Alentejo, que seguia a regra de São Bento. Tratando-se de um santo hispânico, alvo de intensa veneração durante o período visigótico, o seu culto terá sido recuperado para facilitar a integração das populações no quadro territorial ulterior à Reconquista. A primitiva igreja da vila, pertencente ao padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Em 1320-1321, quando o papa João XXII concedeu ao monarca, excepcionalmente, as “décimas” das igrejas, a título de auxílio para a guerra contra os Mouros, foi-lhe imposta, “pela parte que toca ao mestre dela” [Ordem], a taxa de 500 libras, a que acresciam outras 90, correspondentes à vigairaria da mesma igreja. A milícia santiaguista teve aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três beneficiados. Embora seguindo outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários valorizaram a devoção ao santo toledano. Talvez por se mostrar já exígua e carecer de obras profundas, a velha matriz, de feição gótica, foi substituída, nos finais do século XVI, pela actual, que lhe terá ocupado, aproximadamente, o lugar. “Pela sua monumentalidade, valor arquitectónico e interesse decorativo, esta igreja apresenta-se como uma das mais importantes do Baixo Alentejo”, refere a portaria que a classificou em 2012. Traçada em 1592 por Nicolau de Frias, o arquitecto régio, e construída sob a orientação do mestre pedreiro Domingos Moreira, é um exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (Hallenkirche ), com três naves de quatro tramos cobertas por abóbadas, evidenciando grande sentido de unidade espacial. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo compositivo dos alçados e a enfâse outorgada ao tratamento dos pormenores, como as seis colunas toscanas em que se apoiam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do depurado sentido classicizante atingido, em

Igreja matriz de Santo Ildefonso, Almodôvar. >

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finais do século XVI, pelo presente modelo, fiel à austeridade preconizada pela ContraReforma. D. João V, como grão-mestre da Ordem de Santiago, mandou proceder à remodelação parcial do monumento, descrita pelo P.e Luís Cardoso no Diccionario Geografico (1747): “porque a capela-mor se achava arruinada, e por sua pequenhez fica imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo desta comarca, foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência, e Ordens, se derrubasse, e fizesse regular ao restante da igreja, e se acrescentasse tribuna, que de presente se anda fazendo”. Esta ampliação da abside, a remodelação das duas torres sineiras e outras obras complementares vieram a ser rematadas, ca. 1769, com a encomenda, à oficina do mestre entalhador eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das confrarias e irmandades sediadas na matriz. Por finais do século XVIII, um raio destruiria o campanário do lado do Evangelho. Nos séculos XIX e XX, realizaram-se outras intervenções de vulto que modificaram substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de 1950. Data de então a campanha de pintura mural do baptistério renovado, da autoria de Severo Portela [S Coimbra, 1898 – X Lisboa, 1985], em que sobressai a figuração do Baptismo de

Cristo no Rio Jordão (1954-1955). Formado em Escultura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, este artista destacou-se como um dos mais notáveis pintores do período do Estado Novo. Devido à ligação a Almodôvar por laços de casamento, fez do Baixo Alentejo um epicentro da sua fecunda obra, bem representativa da época em que triunfou. A paróquia de Santo Ildefonso conserva um importante acervo de alfaias litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição, da mesma vila, fundado em 1680 pela Ordem Terceira Regular de São Francisco.

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

LUÍS CARDOSO, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de Todas as Cidades, Villas, Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com Todas as Cousas Raras, que Nelles se Encontraõ, assim Antigas, como Modernas, I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Depar tamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; JOSÉ MARIA AFONSO COELHO, Foral de Almodôvar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de Almodôvar, 2004; VÍTOR SERRÃO, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620), Lisboa, Editorial Presença, 2002; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.

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Ir, Voltar, Ir de Novo

JUAN RAMÓN LARA

Houve um tempo, hoje esquecido pelo mundo académico, mas ainda bem presente na vida do povo, em que as músicas espirituais e as músicas festivas partilharam terrenos comuns; em que a alma, a academia e o deleite não pertenciam a conjuntos separados; em que a música popular invadia a liturgia da Igreja com os seus vilancicos, ao passo que o Canto Gregoriano se infiltrava nas próprias raízes do flamenco para inspirar as suas saetas. Chegam-nos testemunhos deste extinto mundo a partir da Hispanoamérica do século XVII, em constante intercâmbio de ritmos, com África, de fórmulas musicais, com Espanha, e de inspiração, com as tradições americanas. De tal cadinho sairão a peculiar música barroca espanhola e a sua contraparte popular, o primeiro flamenco. Nesse território comum – historicamente bem documentado –, pleno tanto de espiritualidade como de alegria de viver, tanto de harmonias refinadas como de ritmos cruzados, coabitavam em paz os vilancicos litúrgicos de García de Zéspedes e as guarachas cubanas, as improvisações sobre antífonas gregorianas (Da Pacem, Domine) e a solenidade da

siguiriya flamenca ou a poesia de São João da Cruz, os canarios e as bulerías. Se a mestiçagem e o intercâmbio de ideias foram o motor que pôs em movimento a inovação musical, a colonização espanhola e a colonização portuguesa da América – com o “encontro”, que daí brotou, entre as civilizações europeias, americanas e africanas – revolucionaram notavelmente essa máquina de criação, evolução e génese de novos estilos musicais: a permuta de ritmos, melodias e cadências, que mais tarde daria lugar ao jazz, foi, séculos antes, a origem primordial do flamenco. Estudos recentes têm vindo a valorizar a importância histórica da herança africana na Península Ibérica de uma época, o século XVII, verdadeiramente fundamental para se entender as origens tanto do flamenco como da música culta ocidental, essa música que denominamos, em termos genéricos, “clássica”. A presença maciça, em cidades como Sevilha e Lisboa, de escravos destinados à América difundiu nos seus bas-fonds um vasto repertório de danças, mormente as sarabandas, os canarios, as xácaras e os

pasacalles, todos eles perseguidos em nome da moral, a par as chaconas, dos guriguirigais e de “outra grande legião deste género”, os “lascivos bailes”, acerca dos quais uma

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testemunha sevilhana tão credenciada como Rodrigo Caro dizia, em 1622, que “parece que o Demónio os sacou do Inferno”. Pelas cidades andaluzas, portuguesas e americanas circulavam, numa atmosfera de fusão e confusão, cantes e danças de ida, volta e outra vez ida, do golfo da Guiné ao Caribe e daí a Triana e ao golfo de Cádis. Um verdadeiro, deslocalizado, incessante

melting pot em que essas tradições se tornaram um património comum da música popular, mas também da erudita. Guarachas que nos recordam tanguillos de Cádis, romances medievais transmitidos de boca-a-boca, fandangos de então e de agora,

siguiriyas com acordes de passacaglia... Uma vez refreados a sua sensualidade e os seus tempos exuberantes, essas formas musicais, ao infiltarem-se na música culta e, inclusive, na religiosa, conservaram dois traços importantíssimos da genética africana: os ritmos cruzados, entre o binário e o terciário, que continuamos a escutar, hoje em dia, nos canarios , na siguiriya e na

guaracha, e que ficariam também indelevelmente marcados no repertório do llamenco, com o singular compasso de doze tempos; e os acompanhamentos em ostinato, fonte de séries infinitas de acordes na música europeia, desde as solenes chaconas, que fechavam as óperas francesas, até ao famoso tetracordo descendente dos lamentos barrocos, que persiste na siguiriya flamenca sob o nome de “cadência andaluza”. Estes acompanhamentos insistentes gravariam no ouvido europeu as sequências de acordes fundacionais da tonalidade, ainda hoje o nosso sistema harmónico básico. Mas deixemos o aprofundamente das questões históricas e técnicas para o escrutínio rigorosíssimo dos académicos e abandonemo-nos ao sortilégio das músicas que submergiram, muito transversalmente, quase todos os géneros e ambientes artísticos do momento, desde a mais humilde igreja rural até ao mais requintado palácio das grandes capitais ou à mais espiritual liturgia catedralícia: músicas que foram fixadas, há séculos, por escrito e às quais podemos hoje voltar a insuflar vida, com a intuição espontânea que os bons intérpretes nos trazem. Especialistas de primeira ordem nos mundos da música barroca e do flamenco, Arcángel e Fahmi Alqhai recolhem os frutos de anos de trabalho em comum – já reconhecidos com o Premio a la Mejor Música 2012 no mais importante festival de flamenco do mundo, a Bienal de Sevilha – para unir intimamente a espiritualidade da academia à do povo, a América à Europa, o Barroco à contemporaneidade: em suma, para devolver a vida à alma e aos ares da Andaluzia de há trezentos anos. Dois espíritos criativos procuram essas sendas, hoje inexploradas, através da mútua fecundação do flamenco e da música barroca, dois dos estilos musicais mais férteis. Arcángel e Alqhai dialogam em busca de um passado e de um presente comuns para

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a Música, com maiúscula, a via universal de irmandade entre povos e culturas. Ambos artistas de personalidade quase inclassificável, de formação exigente e rigorosa, primeiro, nos seus campos, embora revelando sempre um espírito experimental, deixaram-se em seguida conduzir, num exercício de liberdade, pelo puro instinto musical. Quem sabe se – inesperada, natural, intuitivamente – não nos trarão, assim, os primordiais aromas do paraíso perdido que nenhum musicólogo logrou, até agora, encontrar: o flamenco primitivo.

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[AD LITTERAM] Da pacem, Domine

Dá-nos a paz, Senhor

Da pacem, Domine, in diebus nostris

Dá-nos a paz, Senhor,

Quia non est alius

Nos nossos dias, que ninguém

Qui pugnet pro nobis

Luta por nós a não ser

Nisi tu Deus noster.

Tu, nosso Deus.

Jaleos

Jaleos1

Yo sembré un tomillo

Semeei tomilho

y yo lo vi crecer.

e vi-o crescer.

El que quiera honra

Quem deseje a honra

que se porte bien.

que se porte bem.

Cuando tú llames a la puerta

Quando bateres à porta

no lo hagas con el puño:

não o faças c’o punho,

hazlo con la mano abierta.

mas com a mão aberta.

En tiempos era yo

Em tempos, estava em mim

la alegría de mi casa,

a alegria da minha casa,

y ahora no me quién ni ver

agora nem me querem ver

porque he caído en desgracia.

porque caí em desgraça.

A la verde verde,

Vamos à verde, verde,

a la verde oliva

vamos à verde oliva,

donde cautivaron

onde cativaram

a las tres cautivas.

todas três cativas.

No me mueve, mi Dios

Não me move, meu Deus

No me mueve, mi Dios, para quererte

Não me move, meu Deus, para querer-Te

el cielo que me tienes prometido,

o Céu que me tendes prometido,

ni me mueve el infierno tan temido

nem me move o inferno tão temido

para dejar por eso de ofenderte.

para deixar, por ele, de ofender-Te.

Tú me mueves, Señor, muéveme el verte

Moves-me Tu, Senhor, move-me ver-Te

clavado en una cruz y escarnecido,

cravado numa cruz e escarnecido,

muéveme ver tu cuerpo tan herido,

move-me ver Teu corpo tão ferido,

muévenme tus afrentas y tu muerte.

move-me Teu corpo, ultrajado, a morrer.

Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera,

Move-me enfim de tal maneira Teu amor

que aunque no hubiera cielo, yo te amara,

que Te amaria, se Paraíso não houvesse

y aunque no hubiera infierno, te temiera.

e mesmo sem Inferno, sentiria temor. 1

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Nome de uma dança popular andaluza.

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No me tienes que dar porque te quiera,

Nada tendes que me dar por meu amor,

pues aunque lo que espero no esperara,

tudo o que desejo é como se o não quisesse,

lo mismo que te quiero te quisiera.

o mesmo sucedendo a todo o meu louvor.

Kyrie eleison

Senhor, tende piedade

Kyrie eleison

Senhor, tende piedade!

Christe eleison

Cristo, tende piedade!

Kyrie eleison

Senhor, tende piedade!

Siguiriya

Siguiriya2

Yo no tengo otra puerta más

Já não tenho outra porta

a donde llamar.

onde possa bater.

Sólo tenía na más que la tuya,

Só a tua eu tinha,

la encuentro cerrá.

cerrada a venho ver.

Mi hermana Alejandra

Mi’ mana Alexandra

a la calle me echó

à rua me atirou.

Dios se lo pague a mi primo el gallego

Deus pague ao galego, meu primo,

que me arrecogió.

que me recolheu.

El canto de los pájaros

O canto dos pássaros

Tu risa es un jazmín

O teu riso é um jasmim

que acaba de brotar

que acaba de brotar

de la noche más bella.

na mais bela noite.

Si ríes, niño mío,

Se tu ris, meu menino,

te traerán los pájaros

os pássaros te trarão

toda la luna lunera.

a mais esplêndida lua.

Tu cara es un panal

A tua face é um favo

de miel donde no habrá

de mel onde nunca haverá

ni sal ni niebla.

nem sal nem névoa.

Si duermes, niño mío,

Se dormes, meu menino,

te mecerán los pájaros

te embalarão os pássaros

en una luna de estrellas.

numa lua de estrelas.

Tu sueño es un gorrión

Teu sonho é um pardal

que acaba de saciar

que acaba de saciar

su sed con agua fresca.

sua sede com água fresca.

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Forma da música flamenca, integrada no cante jondo.

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Si sueñas, niño mío,

Se sonhas, meu menino,

no te dirán los pájaros

nunca os pássaros te dirão

todo lo que ocurre afuera.

o que acontece lá fora.

Guaracha & Guajira

Guaracha3 & Guajira4

¡Ay, que me abraso, ay! divino dueño, ¡ay!

Ai, que me abraso, ai! sonho divino, ai!

en la hermosura, ¡ay! de tus ojuelos, ¡ay!

na formosura, ai!, dos teus olhos gaios, ai!

¡En la guaracha, ay! le festinemos, ¡ay!

Bailando, ai!, o festejemos, ai!

mientras el niño, ¡ay! se rinde al sueño, ¡ay!

enquanto o menino, ai!, se rende ao sonho, ai!

¡Toquen y bailen, ay! porque tenemos, ¡ay!

Toquem e dancem, ai!, porque temos, ai!

fuego en la nieve, ¡ay! nieve en el fuego, ¡ay!

fogo na neve, ai!, e neve no fogo, ai!

Cuando alumbra el firmamento

Quando brilha o firmamento

al despuntar la mañana

ao romper da aurora

se oye en el campamento

ouve-se no acampamento

alegre toque diana.

o gaio toque d’alvorada.

Y sale la tropa cubana

E sai a tropa cubana

formando por compañías.

formada por companhias.

El sargento se revira,

Revira-se o sargento,

pasa lista diligente,

passa revista diligente

y yo respondo “presente”

e eu respondo “presente”

pensando en ti, vida mía.

pensando em ti, vida minha. Tradução: Ruy Ventura

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Baile parecido com o sapateado. Canto popular cubano.

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Accademia del Piacere

A valentia dos seus inovadores projectos e a forte personalidade artística do seu director fizeram de Accademia del Piacere um grupo de vanguarda (e um dos mais destacados da Europa) na esfera da música antiga, devido à concepção deste património imaterial como algo vivo, cheio de emoções que os seus músicos interiorizam como próprias e transmitem ao espectador. De acordo com isto, vem fazendo destacar novos matizes em repertórios fundamentais do Seicento italiano, do Renascimento espanhol (Rediscovering Spain) e do Barroco hispano (Cantar de Amor, dedicado a Juan Hidalgo), o que lhe granjeou diversos prémios, entre eles o Prix Choc de Classica (França), o Prelude Award (Países Baixos) e o Premio GEMA al Mejor Grupo Barroco Español de 2016. Tem igualmente surpreendido com inesperadas visitas a territórios artísticos alheios ao historicismo, como em Las Idas y las Vueltas, com Arcángel, projecto que venceu o Premio Giraldillo a la Mejor Música, da Bienal de Flamenco de Sevilha, em 2012. Já actuou nos palcos mais prestigiados da música clássica, v.g., a Konzerthaus, de Berlim, e a de Viena, a Philharmonie, de Colónia, a Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, ou o Auditorio Nacional, de Madrid. Participou igualmente em festivais de referência nos Países Baixos, México, Colômbia, França, Estados Unidos da América, Japão, Bélgica, Alemanha e Suíça. Os seus concertos são emitidos regularmente, em directo, pela União Europeia de Radiodifusão.

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Arcángel Cantaor

Francisco José Arcángel Ramos (Huelva, 1977) tornou-se um nome de referência no flamenco praticamente desde que principiou a carreira como cantaor profissional, por volta dos 15 anos. O seu eco e o seu modo de entender o cante flamenco convivem naturalmente com um profundo conhecimento das raízes do

jondo e com um interesse nunca interrompido pela busca de novos caminhos para a tradição, mas respeitando a identidade que os maiores lhe imprimiram. É nessa bela e delicada linha de separação entre a tradição e a vanguarda que reside o conceito da arte do mestre onubense. Compositor e dinamizador do género, além de notável cantaor, recebeu em várias ocasiões distinções da crítica e do público, mormente na Bienal de Flamenco de Sevilla, o mais importante festival de flamenco do mundo. A sua carreira internacional abrange teatros e certames tão prestigiados como o Carnegie Hall, de Nova Iorque, o Teatro Real e o Auditorio Nacional de Música, de Madrid, as bienais de Flamenco de Roma e dos Países Baixos ou os festivais franceses de Aix-en-Provence, Mont de Marsan e Les Sud (Arles). No disco de estreia, Arcángel (2001), e no trabalho seguinte, La Calle Perdía (2004), trabalhou com o guitarrista e produtor Juan Carlos Romero. Assinou Ropa Vieja (2006) com as colaborações de Isidro Muñoz (produção) e Dani de Morón e Miguel Ángel Cortés (guitarras), que também o acompanhariam em El Quijote de los Sueños (2011), no qual contou ainda com Dorantes ao piano e com os poemas, transfigurados em coplas, de José Luis Ortiz Nuevo e Juan Cobos Wilkins. A lista das suas colaborações em projectos corais torna evidente uma grande versatilidade como cantaor: Israel Galván, Cristina Hoyos, Eva Yerbabuena, Vicente Amigo ou Estrella Morente no baile, no toque e no cante flamenco; Mauricio Sotelo, na música contemporânea; Fahmi Alqhai, na viola da gamba e na música barroca; ou as Novas Vozes Búlgaras, na música folclórica, são algumas mostras da amplitude de interesses deste excepcional intérprete.

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Dani de Morón Guitarra flamenca

Sevilhano (1981), sempre viveu em Morón de la Frontera. Aos 12 anos, matriculou-se no Conservatorio Municipal de Música desta cidade, com a intenção de estudar piano, mas optou pela guitarra. Sendo Morón uma terra em que a guitarra flamenca tem grande tradição (e, até, a “denominação de origem”), vibrou com o apelo do flamenco. Discípulo de Manolo Morilla e Alfonso Clavijo, frequentou também a academia de Matilde Coral, onde recebeu os ensinamentos do bailaor Manuel Corrales, El Mimbre, e do

cantaor Curro Fernández, compaginando o toque para o baile com a composição e o toque de concerto. Participou em destacados concursos de guitarra flamenca e obteve prémios tão importantes como os de Hospitalet, Calasparra ou da Federación de Peñas Flamencas de Sevilla. Estas experiências abriram-lhe o circuito das grandes companhias de baile. A sua primeira encomenda, Inmigración, para Ángeles Gabaldón, arrecadou os elogios da crítica nacional. Tornou-se então um colaborador assíduo dos principais

bailaores e bailaoras do momento: entre outros, Manuela Carrasco, Javier Barón, Joaquín Grilo ou Rosario Toledo. Decidiu consagrar-se, porém, ao acompanhamento do cante, secundando vozes como as de Tomasa la Macanita, Guadiana, Montse Cortés, José Mercé ou Arcángel. Com o disco Ropavieja, venceu o Premio Flamenco Hoy. Inaugurou assim uma nova etapa profissional, mais ecléctica, colaborando com artistas da craveira de Concha Buika, Victoria Abril e Ojos de Brujo. Paco de Lucía convidou-o a acompanhá-lo, como segunda guitarra, na itinerância de Cositas Buenas. Imerso na gravação do primeiro disco a solo, Cambio de

Sentido, decidiu unir o seu talento ao do guitarrista jerezano Alfredo Lagos para montar 12 Cuerdas, espectáculo aclamado unanimemente pela crítica como o melhor concerto de guitarra flamenca (2011). Foi um passo decisivo para alcandorar a sua sonanta, enquanto criador e intérprete, a uma etapa cimeira, na qual a técnica, a harmonia e as afinações ocupam um papel tão relevante como o tradicional toque a cuerda pelá e o abundante uso do polegar sobre as graves em que se formou sendo ainda menino.

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Pedro Estevan Percussão

Estudou Percussão no Real Conservatorio Superior de Música de Madrid, onde se especializou, com Martín Porrás, em música contemporânea. Aperfeiçoou os conhecimentos sob a orientação de Sylvio Gualda e frequentou, em Aix-en-Provence, o Curso de Percussão Contemporânea e Africana com Doudou N’diaye Rose, o “tambour-majeur” da música senegalesa. Estudou também a técnica de hand drums com Glen Velez. Foi membro fundador da Orquesta de las Nubes, de Elenfante e do Grupo de Percusión de Madrid. Colaborou com orquestras de renome internacional, v.g., Radio Televisión Española, Nacional de España, Gulbenkian, Siglo XVIII, além de grupos instrumentais de vanguarda, como Glotis e Koan. Intérprete ecléctico, dedica-se principalmente à música antiga (Hespèrion XXI, La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, Laberintos Ingeniosos) e contemporânea (Rarafonía). Participou em inúmeros festivais e ciclos de música actual com programas de percussão e em diversos projectos teatrais de Lluís Pasqual e de Nuria Espert. Gravou para muitas estações de rádio e de televisão e participou em mais de uma centena de discos, alguns dos quais de sua produção, como Nocturnos y Aleivosias ou

El Aroma del Tiempo. Participou num famoso CD de Paul Winter, Spanish Angel, que obteve um Grammy em 1993, e na banda sonora do filme Jeanne La Pucelle, de Jacques Rivette (1994). Compôs para Alesio, de Ignacio García May, e La Gran Sultana, de Cervantes, encenadas por Adolfo Marsillach. Fez a direcção musical de El Caballero de Olmedo, de Félix Lope de Vega, na encenação parisiense de Pasqual (Odéon-Théâtre de l’Éurope). Escreveu igualmente obras com outros autores – Miguel Herrero, Suso Sáiz, Glen Vélez e Maria Villa –, para guitarras eléctricas, sintetizadores, vozes e percussão (Combustión interna, I Forgot the Shirts, Meciendo el engaño, Música esporádica, El reflejo

de un soplo ou Me paro cuando suena). A solo, compôs Slok, para vibrafone e clarinete, Lluvia de Perseidas, Para engañar a la muerte, Kit para romper tiempos pequeños e Carolan’s Cup. Lecciona Percussão Histórica na Escola Superior de Música de Catalunya, em Barcelona.

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Fahmi Alqhai Viola da gamba e direcção musical

Nascido em Sevilha, em 1976, de pai sírio e mãe palestiniana, formou-se nesta cidade e na Suíça (Schola Cantorum Basiliensis e Conservatorio de Lugano), tendo como mestres, entre outros, Ventura Rico, Paolo Pandolfo e Vittorio Ghielmi. Trabalhou desde cedo com agrupamentos e directores de referência, v.g., Jordi Savall, Ton Koopman, Pedro Memelsdorff e Uri Caine. Graças à sua concepção arriscada e muito comunicativa da aproximação aos repertórios históricos, bem patente na orientação que imprimiu a Accademia del Piacere, tem vindo a ser considerado um dos mais audazes executantes de viola da gamba da actualidade, em termos mundiais, e também um dos maiores renovadores da interpretação da música antiga,. Apresentou, em 2014, a primeira gravação a solo, intitulada A Piacere, que teve notável acolhimento em toda a Europa. A Gramophone classificou-a como algo de “extraordinário” e que “leva a viola da gamba a um novo terreno de gozoso potencial”, classificando-o como “um feliz tributo a tudo o que a viola pode haver sido, e ainda pode ser”. Dois anos depois, estreou o seu trabalho mais pessoal, The Bach

Album. Desde 2009 é director artístico do FeMÀS, o Festival de Música Antigua de Sevilla, um projecto que se salienta pela feição inovadora.

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Concerto II

ODEMIRA

4 de Março 21H30

DE BEATA VIRGINE MARIA: OBRAS PORTUGUESAS DE INVOCAÇÃO MARIANA (SÉCULOS XVI-XVIII) Estêvão de Brito [ca. 1570-1641] Ave Maris Stella [Hino de Vésperas] Sancta Maria [Antífona do Magnificat] Duarte Lobo [ca. 1565-1646] Magnificat D. Pedro da Esperança [ca. 1598-1660] [Três Responsórios das Matinas de Natal] O Magnum Misterium Beata Dei Genitrix Beata Viscera Mariæ Virginis

Diogo Dias Melgás [1638-1700] Recordare Virgo Mater [Antífona] Salve Regina [Antífona] João Rodrigues Esteves [ca. 1700-ca. 1751] Stabat Mater Stabat Mater [Tutti ] Qui est homo [Soprano e Alto] Quis non posset [Tenor] Pro peccatis [Tutti ] Eia Mater [Soprano] Fac, ut ardeat [Baixo] Sancta Mater [Trio] Fac me vere [Tenor] Juxta crucem [Soprano e Baixo] Virgo virginum [Alto] Fac ut portem [Tutti ]

Francisco António de Almeida [ca. 1702-ca. 1755] Magnificat < Nossa Senhora da Visitação. Escola portuguesa. Ca. 1575. Odemira, igreja da Misericórdia.

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Polyphōnos Soprano Raquel Alão Alto Carolina Figueiredo Tenor Manuel Gamito Baixo Tiago Mota Violoncelo barroco Ana Raquel Pinheiro Órgão Sérgio Silva Mónica Antunes Rosa Caldeira Manon Marques Patrícia Mendes Rui Miranda Barítono e direcção musical José Bruto da Costa

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Igreja Matriz de São Salvador Odemira

ANTÓNIO MARTINS QUARESMA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Concluído o movimento da Reconquista, a estrutura paroquial apresentava, no território de Odemira, uma rede pouco densa, existindo apenas as freguesias de São Salvador1 e Santa Maria. A referência documental mais antiga que se conhece às suas igrejas data de 1320-1321. Viriam a disputar ambas o título de matriz da vila, mas a primazia terá pertencido à primeira. Na segunda metade do século XVI, as duas freguesias foram desmembradas, com a criação de novas paróquias; da que ponderamos, saíram a de São Luís e, talvez, parte das de Relíquias e São Teotónio. Perderam-se todos os vestígios da primitiva igreja de São Salvador, que ascenderá à época gótica, ocupando, com muita probabilidade, o sítio da actual, uma área de expansão tardo-medieval da vila, conhecida – na época moderna – pelo nome de Palhais, não muito distante do espaço urbano intramuros. Sucessivas campanhas de obras, em particular durante os séculos XVII e XVIII, fizeram desaparecer os vestígios mais antigos; talvez a arqueologia possa, um dia, iluminar este hiato da memória local. Em 1693, a Arquidiocese de Évora procedeu à remodelação das duas igrejas, de acordo com a linha programática estabelecida pelo Concílio de Trento. Os trabalhos foram arrematados pelos mestres alvanéus Domingos Gonçalves, de Odemira, e Manuel Francisco Painço, de Beja, a que se juntou um oficial do mesmo ramo, Pedro de Araújo, de Évora. Demolida a igreja de Santa Maria, em 1836, resta a de São Salvador para avaliarmos a envergadura da obra, feita praticamente de raiz. Hoje, chamam a atenção neste edifício, entre outros elementos de tal período, os cunhais e os ornatos piramidais da sacristia, da fachada cega da abside e da empena do mesmo lado, assim como a cobertura em abóbada no campanário e o lavabo da sacristia. D. João V uniu os dízimos de Odemira, em 1710, à sé patriarcal de Lisboa, acrescendo-lhe uma significativa fonte de receita, mas impondo-lhe as responsabilidades correspondentes, em particular quanto à conservação das suas igrejas e à manutenção do clero ao seu

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O título oficial da paróquia, na cúria diocesana de Beja, é Santíssimo Salvador, mas atemo-nos à fórmula histórica; vulgarmente, diz-se apenas Salvador.

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serviço. O terremoto de 1755 não afectou muito, aparentemente, a igreja de São Salvador; todavia, breves semanas decorridas, já um mestre pintor local, José Rodrigues Lima, se ocupava da ornamentação das tribunas do altar-mor e dos altares laterais, fissurados pelo sismo. Outras sequelas viriam a manifestar-se posteriormente, dando origem a sucessivas obras, ao longo da segunda metade do século XVIII. Numa primeira etapa dos trabalhos, a fachada principal recebeu novo frontão, ao gosto dito “pombalino”, característico da época posterior ao sismo. Datam da mesma etapa as pilastras dos ângulos, alternando faixas lisas e bujardadas, que lhes imprimem peculiar animação; e os elementos piramidais de base quadrangular, outrora dispostos como remates dos cunhais, cederam o lugar a imponentes fogaréus, cujas bases reaproveitaram parte das antigas estruturas geométricas. Por 1782, a igreja encontrava-se em mau estado, por certo devido ao agravamento dos problemas causados pelo megassismo (e nunca totalmente resolvidos), pelo que foi necessário proceder-se a uma empreitada importante para a consertar, de que fez parte, entre outras obras, a instalação de telhados “amouriscados”, a cargo de um mestre pedreiro de Messejana, José António. Quanto à janela de cantaria, gradeada de ferro, sobre a porta principal, é também de uma fase final do século XVIII. Deste ciclo de empreitadas, repartido por várias décadas, dimanou a modificação da frontaria e da torre sineira do edifício, redundando numa elegante síntese do Barroco Tardio e do Rococó, que suavizou o anterior modelo, fiel ao “Estilo Chão”. Assim, o vetusto e o adventício integraram-se coerentemente, sem se anularem entre si, numa lógica de justaposição pragmática. Em 1969, realizou-se outra transformação de fundo, inspirada pela reforma litúrgica do II Concílio do Vaticano (1963), a cargo do arquitecto Castro e Solla e do escultor João Charters de Almeida. Estes puderam trabalhar o monumento como um “contentor”, pois a paróquia fez desmantelar os retábulos de talha dourada e policroma e vendeu-os em fracções, para obter fundos destinados à obra. O resultado consistiu numa solução arrojada, em harmonia com o estilizado despojamento do tempo. Mais interessantes se revelaram o sacrário e, principalmente, a Árvore da Vida, que Charters de Almeida concebeu para a capela-mor, obra ágil e cheia de vigor, a que não foi alheia a súbtil evocação da Árvore de Jessé. Na ousia permanece a grandiosa pintura, a óleo sobre tela, figurando Cristo Salvador

do Mundo, alusiva ao orago da igreja, outrora parte integrante do antigo retábulo do

Igreja matriz de São Salvador, Odemira.>

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altar principal. Da autoria do Pedro Alexandrino de Carvalho, remonta a data incerta do terceiro quartel do século XVIII. Terá sido encomendada pelo Colégio da Sé Patriarcal de Lisboa, no âmbito da remodelação que visou corrigir os estragos causados pelo terremoto de 1755.

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; A NTÓNIO MARTINS QUARESMA, Odemira Histórica. Estudos e Documentos, Odemira, Município de Odemira, 2006; id. & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Igrejas Históricas de Odemira, Beja-Odemira, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Município de Odemira, 2017.

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Do Stile Antico ao Stile Concertato Romano JOSÉ BRUTO DA COSTA

Desde os primórdios da nacionalidade que a expressão Terra de Santa Maria povoa o imaginário dos grandes cronistas, em sintonia com o crescente implemento do culto mariano em território português, a par do estabelecimento e da expansão das ordens monásticas, no quadro da Reconquista. Não é de estranhar, pois, que algumas das mais significativas composições da música portuguesa sejam de invocação mariana. O concerto De Beata Virgine Maria pretende revisitar algumas destas obras, com particular enfoque em dois núcleos: os compositores que fizeram a sua aprendizagem na Claustra da Sé de Évora, durante os séculos XVI-XVII (Estêvão de Brito, Duarte Lobo e Diogo Dias Melgás); e os bolseiros régios enviados para Roma, em meados do século XVIII, no contexto da elevação da Capela Real a Patriarcal (Francisco António de Almeida e João Rodrigues Esteves, entre outros). Ao reunir, numa mesma ocasião, referências de tão longo quão opulento período, podemos, ainda, vislumbrar as alterações de linguagem que ocorreram, então, na escrita musical portuguesa. Por um lado, a permanência do stile antico, seguindo as prescrições do Concílio de Trento (1545-1563), no quadro da Contra-Reforma, que tanto impacto tiveram na vida peninsular do século XVII – o qual se manteve em Portugal muito para além do seu tempo. Por outro, o stile concertato romano, que entrou de rompante em Lisboa, com a importação massiva, por iniciativa régia, de músicos maioritariamente italianos nas primeiras décadas do século XVIII, e que produzirá a maior revolução de linguagem musical alguma vez operada no país. Notemos que a excelência do ensino musical da Claustra eborense, ao longo dos séculos XVI-XVII, dimanou de uma feliz conjugação de factores que importa enumerar. Se o empenho pessoal dos cardeais-infantes D. Afonso [pont. 1523-1540] e D. Henrique [pont. 1540-1564 e 1575-1578], continuado por D. Teodósio de Bragança [pont. 1578-1602], o quarto arcebispo, garantiu a alocação de meios financeiros necessários à boa prossecução dos objectivos de dotar a sé de um efectivo musical de exímia qualidade, as qualidades pedagógicas inequívocas dos sucessivos mestres de capela permitiram a formação de gerações sucessivas de eminentes músicos e compositores: a Escola de Évora.

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O pioneiro foi Mateus de Aranda [S Aranda de Duero, ca. 1495 – X Coimbra?, 1548], autor dos primeiros livros que se imprimiram em Portugal com caracteres musicais, na oficina lisboeta de Germain Gaillard, tipógrafo da Casa Real desde 1530, o Tractado

de Canto Llano (1533) e o Tractado de Canto Mensurable (1535), seguido por mestres da craveira, entre eles Cosme Delgado [S Cartaxo, ca. 1530 – X Évora, 1596], Manuel Mendes [S Lisboa, ca. 1547 – X Évora, 1605], Filipe de Magalhães [S Azeitão, ca. 1571 – X Lisboa, 1652], Manuel Rebelo [S ca. 1575 – X 1647] e Diogo Dias Melgás [S Cuba, 1638 – X Évora, 1700]. Traço distintivo desta Escola, enumerado repetidamente por diversos investigadores, é o gosto por uma textura contrapontística de grande clareza formal, dir-se-ia, luminosa, numa sequência de efeitos expressivos da linguagem mais por razões de natureza textual do que por considerações de ordem puramente musical. Natural de Serpa, Estêvão de Brito [S ca. 1570 – X 1641] estudou na Claustra de Évora, tendo como professor Filipe de Magalhães. Em 1597, foi nomeado mestre de capela da catedral de Badajoz, onde permaneceu até 1613, ano em que ascendeu a mestre de capela da catedral de Málaga, cargo que manteria até à morte. A antífona do Magnificat, Sancta Maria, com texto escrito pelo bispo Fulbert de Chartres [S ca. 952 – X 1028], constitui um dos exemplos mais significativos do estilo de Brito. O elegante contraponto desenvolve-se sobre um motivo perpétuo, que percorre as seis vozes, recorrendo a motivos descendentes ornamentados para criar um contraste musical de grande impacto. Já o hino mariano das Vésperas de Festas de Nossa Senhora, Ave Maris Stella, texto do século VIII de autor anónimo, é uma obra de pequenas dimensões, fazendo uso apenas dos primeiro e quinto versículos deste hino, o último dos quais em trio. Nome maior da música portuguesa, Duarte Lobo [S ca. 1565 – X 1646] estudou na Claustra de Évora, tendo como professor Manuel Mendes. Regressado a Lisboa, sua cidade natal, em finais de 1591, viria a ocupar o prestigiado cargo de mestre de capela da sé de Lisboa, onde assumiria, igualmente, o ensino musical da Claustra. O Magnificat Octavi Toni faz parte do livro Cantica Beatæ Virginis, uma compilação de 16 Magnificat, dois para cada um dos oito tons eclesiásticos, publicado pela Oficina Plantiniana de Antuérpia, em 1605. A estrutura da composição assenta no oitavo tom, o hipomixolídio, sendo os versos ímpares em cantochão e os pares em polifonia. Cumpre assinalar o requinte do último verso, a dois coros dialogantes, em nítido contraste com os versos anteriores, de contraponto muito contido e eminentemente silábico. Figura peculiar, D. Pedro da Esperança [S ca. 1598 – X 1660] foi compositor e organista ao serviço dos mosteiros de São Vicente de Fora, em Lisboa, e de Santa Cruz, em Coimbra. Apesar do reduzido número de composições da sua autoria que chegaram

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até aos nossos dias, distingue-se no contexto da música portuguesa do século XVII pelo facto de as obras que escreveu se encontrarem entre os raros exemplos de peças vocais com partes instrumentais obrigadas com a discriminação dos respectivos instrumentos. Notemos que os escassos dados biográficos conhecidos revelam uma personalidade adversa às restrições da vida religiosa, procurando fugir de Lisboa e Coimbra diversas vezes, mas sem sucesso. Quanto aos Três Responsórios das Matinas de Natal, O Magnum Misterium, Beata Dei

Genitrix e Beata Viscera Mariæ Virginis (n. os IV, V e VII da habitual série de oito responsórios), apresentam um discurso musical e uma estrutura formal em tudo semelhantes. Duas secções homofónicas, contrastantes entre si apenas pelo ritmo binário e ternário, seguido de um verso para voz solista, em valores longos, e instrumentos, em estilo imitativo livre muito ornamentado. Nascido no coração do Alentejo, Diogo Dias Melgás é um digno representante do primeiro Barroco, de raiz autóctone, contendo a sua literatura musical os princípios compositivos que nortearam a generalidade da produção musical portuguesa da segunda metade do século XVII. Tendo sido admitido na Claustra da Sé de Évora, em 1647, onde estudou com Bento Nunes Pegado e António Rodrigues Vilalva, teve uma carreira fulgurante nesta instituição. Nomeado reitor em 1662, tornou-se mestre da Claustra em 1664 e ascendeu ao lugar de mestre de capela em 1680, cargo que ocupou durante 19 anos. A antífona Recordare Virgo Mater está escrita para duplo coro, dialogando entre si os sucessivos versos. Sempre atento aos matizes do texto, Melgás cria secções musicais contrastantes, onde o colorido tonal moderno se vai sobrepondo ao modelo modal, característica essa muito própria do discurso melódico-harmónico da música do compositor. O mesmo poderá aplicar-se à antífona Salve Regina, cujo texto tem origem na abadia de Cluny, no século XII, unanimemente considerada a obra-prima de Diogo Melgás e uma das peças mais fascinantes da música portuguesa do seu tempo. A uma primeira secção de grande simplicidade e rigidez contrapontística, sucede uma gradação constante, rica em cromatismos das linhas melódicas e de paleta variada de harmonias expressivas, profundamente barroca na forma como retrata o pathos contido no texto. Não é inocente a escolha desta obra como final da primeira parte do concerto. Ela representa o virar de uma página da História da Música em Portugal, no dealbar do século XVIII, momento em que os modelos eminentemente ibéricos, devedores do stilo

pieno, que obedecia ao idioma contrapontístico de Palestrina, vão ser, em grande parte, adaptados aos modelos italianos pela produção e execução musicais portuguesas, com

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a introdução do stile concertato, devedor do virtuosismo vocal da música dramática, num processo de italianização da música portuguesa. Principiando na segunda metade do século XVII, como reacção à anterior dominação espanhola, muito absorvente em termos culturais, impulso que procurou aproximar Portugal dos vizinhos de além-Pirenéus, França e Itália, a italianização torna- se predominante como consequência directa das reformas introduzidas por D. João V [reg. 1707-1750], num esforço régio de modernização estruturalizante, consumado em três medidas que iriam influenciar a vida musical do país durante várias décadas: a criação do Real Seminário de Música da Patriarcal, fundado por Alvará de 1713, para a competente formação de artistas; o envio de bolseiros régios para Roma, a fim de se aperfeiçoarem na arte; e a importação maciça de instrumentistas e cantores (inteiros ou mutilados, segundo dizia, com sabor, Ernesto Vieira), formando autênticas dinastias em actividade até ao início do século XIX, o que permitiu uma continuidade da qualidade musical, bem como a possibilidade de estes ensinarem e contribuírem para a criação de efectivos instrumentais de nacionalidade portuguesa. O interesse do seu sucessor, D. José I [reg. 1750-1777], pela opera seria, emblemática da cultura barroca italiana, mas cuja expressão em Portugal fora diminuta até 1750, viria sedimentar este processo de italianização. O Magnânimo revelou-se ainda sensível à utilização da linguagem do Sagrado como afirmação do poder régio na construção da imagem do príncipe e dos fundamentos do seu poder, característica que não lhe é exclusiva, podendo encontrar-se esta mesma atitude em diversos outros soberanos europeus, a começar por Luís XIV, o Rei-Sol. A música sacra foi igualmente importante neste contexto, visto a dimensão religiosa de um acontecimento se confundir com a vertente política, ou seja, a música aí interpretada devia constituir o espelho fiel dos fins pretendidos. Esta monumental representação simbólica através das artes e, muito concretamente, da música tornou-se condição essencial da própria eficácia da implantação do novo modelo de Estado, o Absolutismo Régio. Eis uma das razões que presidiu à subida da Capela Real – espaço ordenador das hierarquias e das precedências no interior da corte – a Patriarcal. Processo moroso, iniciado em 1710, também ele entendido como motivo de prestígio e dignificação da monarquia lusa além-fronteiras, e que culminaria com a elevação do patriarca de Lisboa à dignidade de cardeal, em 1737, por bula de Clemente XII. Isto representou a transformação de Lisboa e, em particular, da própria Capela Real na sede do universo católico português continental e ultramarino. Foi neste contexto que emergiu a obra de dois bolseiros do Magnânimo, João Rodrigues Esteves e Francisco António de Almeida, dignos ilustradores do universo musical joanino. São escassos os dados biográficos de João Rodrigues Esteves [S ca. 1700 – X ca. 1751]

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e, na circunstância actual da musicologia portuguesa, têm sido cuidadosamente revistos, pondo em causa grande parte da informação até à data avançada como correcta. Sabe-se que foi enviado para Roma, como bolseiro da Patriarcal, ca. 1719, e aí permaneceu até 1726, admitindo-se que tenha estudado com Ottavio Pitoni, mestre da Capela Pontifícia desde 1719 e o mais afamado compositor de música sacra daquele tempo em Roma, dadas as semelhanças estilísticas entre as obras dos dois. Em 1729, foi nomeado mestre de capela da basílica de Santa Maria Maior, vulgo sé de Lisboa, sucedendo a Domingos Nunes Pereira. Contudo, estudos recentes encontraram-no mencionado na qualidade de “compozitor de muzica na Santa Igreja Patriarchal”, bem como mestre do Real Seminário, o que necessariamente leva a equacionar a sua relação com estas instituições. Certa é a presença assídua das obras de Rodrigues Esteves na liturgia da Patriarcal, em particular a Missa a Oito Vozes, escrita em Roma em 1721. Não se conhece a data de composição do Stabat Mater mas, dadas as características de composição, aponta-se como sendo uma obra de final de vida, ca. 1745-50. Os vinte versos do hino mariano, cujo texto é atribuído ao franciscano Jacopone da Todi [S Todi,

ca. 1236 – X Collazzone, 1306], estão divididos em onze andamentos altamente contrastantes. Rodrigues Esteves demonstra um notável domínio do stile concertato, em particular nas árias, de pendor eminentemente dramático. Devido à fluidez, à consistência e ao requinte do discurso musical, Francisco António de Almeida é considerado o melhor compositor português da primeira metade do século XVIII. Nascido ca. 1702, em Lisboa, foi enviado para Roma em 1716-1717, onde permaneceu alguns anos. Na Quaresma de 1722, executou-se uma oratória de sua autoria, com libreto de Andrea Trabucco, na igreja de San Girolamo della Carità, intitulada

Il Pentimento di Davide. Anos mais tarde, em 1726, estreou nova oratória, a brilhante La Giuditta. Deduz-se que regressasse a Lisboa em Abril de 1728, pois a 22 do dito mês foi executada no palácio do cardeal D. João da Mota, secretário de Estado do Reino, a serenata Il Trionfo della Virtù, com libreto de Luca Giovine e música de Almeida. Seguiu-se um scherzo pastorale, dito Il Trionfo d’Amore, a 27 de Dezembro de 1729, no Paço da Ribeira. Nos anos seguintes, compôs Gl’Incanti d’Alcina, cantada a 27 de Dezembro de 1730 (a festa onomástica de D. João V), no Paço da Ribeira, La Spinalba Ovvero il

Vecchio Mato, no Carnaval de 1739, e L’Ippolito, uma serenata, apresentada no Teatro do Forte do Paço da Ribeira, a 4 de Dezembro de 1752. Viria a atingir a posição máxima do aparato áulico da corte ao ser nomeado, em 1751, mestre de música da Real Câmara. Presume-se que tenha morrido no terramoto de 1755. O Magnificat, a oito vozes, é, per se, testemunho do alto valor de Almeida, bem como da já referida necessidade de os compositores portugueses manterem presente o stilo

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pieno, mesmo que o espírito da obra fosse concertato. O diálogo elegante entre os dois coros, os pequenos solos, a duo, criando contraste de textura musical, o galante verso

Et Misericordia, profunda reminiscência dos trios seiscentistas, culmina numa monumental fuga a oito vozes reais, em que a harmonia do contraponto, bem como a beleza das linhas vocais apontam, em certa medida, para além do Barroco, desenvolvendo um exercício de genialidade musical raro entre nós.

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[AD LITTERAM] Ave Maris Stella

Ave, Estrela do mar

Ave Maris Stella,

Ave, Estrela do mar,

Dei mater alma,

Santa Mãe de Deus

Atque semper Virgo,

Sempre Virgem Maria,

Felix cæli porta

Porta feliz do céu.

Virgo singularis,

Virgem singular,

Inter omnes mitis,

Humilde entre todas,

Mites fac et castos.

Fazei-nos mansos e puros.

Sancta Maria

Santa Maria

Sancta Maria, succurre miseris

Santa Maria, socorrei os desamparados,

iuva pusilanimes

sede a força para os temerosos,

refove flebiles

conforto para os aflitos,

ora pro populo, interveni pro clero

orai pelo povo, ajudai o clero,

intercedi pro devoto fœmineo sexo

intercedei pelas mulheres consagradas

sentiant omnes tuum iuvamen

que todos os que guardam

quicum celebrant tuam

a vossa sagrada comemoração

anctam commemorationem.

possam sentir a vossa ajuda.

Magnificat

Magnificat

Magnificat anima mea Dominum

Engrandece a minha alma ao Senhor

Et exultavit spiritus meus

E o meu espírito se alegra

in Deo salutari meo.

em Deus, meu Salvador.

Quia respexit humilitatem ancillæ suæ:

Porque atentou na humildade da sua serva:

ecce enim ex hoc beatam

de hoje em diante todas as gerações

me dicent omnes generationes.

me chamarão de bem-aventurada.

Quia fecit mihi magna qui potens est,

Porque o todo-poderoso fez em mim maravilhas,

et sanctum nomen eius.

Santo é o Seu nome.

Et misericordia eius a progenie

A Sua misericórdia estende-se de geração

in progenies timentibus eum.

em geração sobre os que O temem.

Fecit potentiam in brachio suo,

Manifestou o poder do Seu braço, dispersou

dispersit superbos mente cordis sui.

do Seu coração os que têm pensamentos soberbos.

Deposuit potentes

Derrubou os poderosos do seu trono

de sede et exaltavit humiles.

e exaltou os humildes.

Esurientes implevit bonis

Encheu de bens os famintos,

et divites dimisit inanes.

e despediu de mãos vazias os ricos.

Suscepit Israel puerum suum

Amparou a Israel, Seu servo,

recordatus misericordiæ suæ,

Recordando-se da sua misericórdia.

Sicut locutus est ad patres nostros,

Como havia prometido a nossos pais,

Abraham et semini eius in sæcula.

a Abraão e à sua descendência, para sempre.

Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo

Sicut erat in principio, et nunc, et semper,

Como era no princípio, agora e para sempre

et in sæcula sæculorum.

pelos séculos dos séculos

Amen.

Ámen.

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O Magnum Mysterium

Ó Magno Mistério

O Magnum Mysterium,

Ó Magno Mistério,

et admirabile sacramentum.

e admirável sacramento.

Ut animalia viderent Dominum natum,

Os animais viram o Senhor nascido,

Iacentem in præsepio.

deitado num presépio.

Beata Virgo, cujus viscera

Bendita Virgem, cujo ventre

meruerunt portare Dominum Christum

mereceu trazer Cristo, nosso Senhor.

Ave Maria, gratia plena,

Ave Maria, cheia de Graça,

Dominus tecum.

o Senhor está contigo.

Beata Dei Genitrix Maria

Bendita Maria, mãe de Deus

Beata Dei Genitrix Maria,

Bendita Maria, Mãe de Deus,

cujus viscera intacta permanent,

cujo ventre permaneceu intacto,

Hodie genuit Salvatorem sæculi.

Hoje deu à luz o Salvador do mundo.

Beata, quæ credidit: quoniam

Bendita aquela que acreditou

perfecta sunt omnia, quæ dicta

em tudo o que o Senhor lhe disse,

sunt ei a Domino.

porque hoje se tornou verdade.

Hodie genuit Salvatorem sæculi.

Hoje deu à luz o Salvador do mundo

Beata viscera Mariæ Virginis

Bendito o ventre da Virgem Maria

Beata viscera Mariæ Virginis,

Bendito o ventre da Virgem Maria,

quæ portaverunt æterni Patris filium

que carregou o Filho eterno do Pai

et beata ubera, quæ lactaverunt

e bendito o peito que amamentou

Christum Dominum:

o Cristo Senhor:

Quia hodie pro salute mundi

Que hoje nasceu da Virgem

de Virgine nasci dignatus est.

para salvação do Mundo.

Dies sanctificatus illuxit nobis:

Este dia santo ilumina-nos:

venite, gentes, et adorate Dominum.

Vinde, povos, e adorai o Senhor.

Recordare, Virgo Mater

Recordai-vos, Virgem Mãe

Recordare, Virgo Mater,

Recordai-vos, Virgem Mãe,

dum steteris in conspectu Dei,

quando estiverdes diante de Deus,

ut loquaris pro nobis bona

de falar com carinho de nós

et avertas indignationem eius a nobis

e de afastar a Sua indignação por nós.

O Maria Virgo Clementissima

Ó Clementíssima Virgem Maria,

Intercede pro nobis

intercedei por nós

ad Dominum Jesum Christum.

junto de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Salve Regina

Salve, Rainha

Salve, Regina, Mater misericordia,

Salve, Rainha, Mãe de misericórdia,

Vita, dulcedo, Spes nostra, salve.

Vida, doçura, esperança nossa, salve.

Ad Te clamamus, exules filii Hevae

A Ti clamamos, degredados, filhos de Eva

Ad Te suspiramus, Gementes et flentes,

A Ti suspiramos, gemendo e chorando,

In hac lacrimarum valle.

Neste vale de lágrimas.

Eia, ergo, advocata nostra,

Eia, pois, advogada nossa,

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Illos tuos misericordes

Os teus olhos misericordiosos,

Oculos ad nos converte,

a nós volve,

Et Jesum

E depois deste desterro,

Benedictum fructum ventris Tui

Mostra-nos Jesus,

Nobis post hoc exilium ostende.

bendito fruto do teu ventre.

O clemens, O pia,

Ó clemente, Ó piedosa,

O dulcis Virgo Maria.

Ó doce Virgem Maria.

Stabat Mater

Estava a Mãe

I.

I.

Stabat Mater dolorosa

Estava a Mãe, dolorosa,

Juxta crucem lacrimosa,

junto à Cruz, chorosa,

Dum pendebat filius.

de onde pendia o Seu Filho.

Cujus animam gementem,

A Sua alma afligia-se,

Contristatam et dolentem,

triste e dorida, como que

Pertransivit gladius.

ferida por uma espada.

O quam tristis et afflicta

Oh! quão triste e aflita

Fuit illa benedicta

se sentia, a Mãe abençoada

Mater Unigeniti.

do Filho Unigénito.

Quae moerebat et dolebat,

A piedosa Mãe chorava

Pia Mater, dum videbat

e gemia, vendo o sofrimento

Nati poenas incliti.

do Seu Divino Filho

II.

II.

Quis est homo, qui non fleret,

Quem não choraria,

Matrem Christi si videret

ao ver a Mãe de Cristo

in tanto supplicio?

em tamanho suplício?

III.

III.

Quis non posset contristari,

Quem poderia, sem tristeza,

Christi Matrem contemplari

contemplar a Mãe de Cristo,

Dolentem cum filio?

chorando o Seu Filho?

IV.

IV.

Pro peccatis suae gentis

Viu Jesus sofrer,

Vidit Jesum in tormentis

pelos pecados do Seu povo,

Et flagelis subditum.

o tormento do chicote.

Vidit Jesum dulcem Natum

Viu o Seu doce Filho Jesus,

Moriendo desolatum,

moribundo, desolado,

Dum emisit spiritum.

entregar a Sua alma.

V.

V.

Eja, Mater, fons amoris,

Ó Mãe, fonte de amor,

Me sentire vim doloris

fazei-me sentir a veemência das dores

Fac, ut tecum lugeam.

para que chore convosco.

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VI.

VI.

Fac, ut ardeat cor meum

Fazei com que o meu coração,

In amando Christum Deum,

seja ardente em amar Cristo,

Ut sibi complaceam.

para assim Lhe agradar.

VII.

VII.

Sancta Mater, istud agas,

Mãe Santíssima, grava

Crucifixi fige plagas,

no meu coração,

Cordi meo valide.

as chagas do Crucificado.

Tui Nati vulnerati,

Reparti comigo as dores do

Tam dignati pro me pati,

Vosso Filho, que se dignou

Poenas mecum divide.

sofrer por mim.

VIII.

VIII.

Fac me vere tecum flere,

Fazei-me chorar convosco e,

Crucifixo condolere,

enquanto viver, compadecer-me

Donec ego vixero.

do sofrimento do Crucificado.

IX.

IX.

Juxta crucem tecum stare,

Quero ficar convosco, junto da Cruz,

Te libenter sociare

e unir-me

In planctu desidero.

ao Vosso pranto.

X.

X.

Virgo virginum praeclara,

Virgem, ilustre entre as virgens

Mihi jam non sis amara,

não rejeiteis a minha prece,

Fac me tecum plangere.

deixai-me chorar convosco.

XI.

XI.

Fac, ut portem Christi mortem,

Fazei-me sentir a morte de Cristo,

Passionis fac consortem

para que partilhe as Suas

Et plagas recolere.

dores e venere as Suas chagas.

Fac me plagis vulnerari,

Fazei que, ferido com as Suas

Cruce hac inebriari

feridas, fique inebriado de amor

Ob amorem Filii

à Cruz e ao Vosso Filho.

Inflammatus et accensus,

No dia do Juízo, defendei-me,

Per te, Virgo, sim defensus

ó Virgem, de ser consumido

In die judicii.

pelas chamas.

Fac me cruce custodiri,

Fazei com que seja protegido

Morte Christi præmuniri,

pela Cruz, fortalecido com a Sua

Confoveri gratia.

morte, sublimado pela graça.

Quando corpus morietur,

Quando o meu corpo morrer,

Fac, ut animæ donetur

concedei à minha alma

Paradisi gloria.

a glória do Paraíso.

Amen.

Ámen. Tradução: José Bruto da Costa

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Polyphōnos

Polyphōnos, termo grego que designa a coexistência de muitos sons ou vozes, é um ensemble vocal e instrumental sediado em Lisboa. Criado pela soprano Raquel Alão, a direcção artística encontra-se a cargo do barítono e musicólogo José Bruto da Costa. O reportório fundamental deste agrupamento centra-se na música portuguesa e ibérica dos séculos XV a XVIII, sendo complementado por composições contemporâneas de autores portugueses. A formação vocal e instrumental é variável e depende dos programas apresentados.

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Raquel Alão Soprano

Estudou Canto na Escola de Música do Conservatório Nacional, formando-se sob a orientação de Filomena Amaro. Participou, em 2007, no Concurso Nacional de Canto Luísa Todi, sendo galardoada com o 3.º Prémio. Coralista no Coro do Teatro Nacional de São Carlos desde 2007. Foi solista na Missa em Sol, de Caldara; Missa Brevis em Fá M, Missa Brevis em Sol M, Spatzen-Messe e

Benedictus Sit Deus, Exultate, Jubilate, de Mozart; In Nativitatem Canticum, de Charpentier; Christus Natus Est, de Du Mont; Lauda Sion, de Mendelssohn; Nulla in Mundo Pax Sincera, de Vivaldi; A Sea Symphony, de Williams; e Carmina Burana, de Orff. Em 2005, interpretou os Notturni a três vozes e três corni di bassetto, de Mozart. Gravou, em 2008, Gloria, de Vivaldi, e a cantata BWV 63, Christen, ätztet diesen Tag. Em 2012, iniciou as suas participações no Festival Terras sem Sombra, tendo sido Giuditta na estreia moderna da oratória Betulia Liberata, de Gaetano Pugnani (direcção de Donato Renzetti); cantou outrossim Stabat Mater, de Pergolesi, em 2013 (César Viana); e, em 2014, Ein Deutches Requiem, de Brahms (Giovanni Andreoli). Na ópera, interpretou Amor, em Orfeo ed Euridice, de Glück; Flaminia, em Il Mondo della Luna, de Avondano; Euridice, em La Descente d’Orphée aux Enfers, de Charpentier. Em 2008, foi a Königin der Nacht em Die

Zauberflöte, no Teatro Nacional de São Carlos. Durante a temporada de 2009-2010, encarnou Belinda (Dido and Æneas, de Purcell); Berenice (L’Occasione Fa il Ladro, de Rossini); Fada Azul (La Bella Addormentata nel Bosco, de Respighi); e Jovem Suicida/Ofélia (Os Mortos Viajam de Metro, de Ribeiro), no Teatro Municipal de São Luiz. Em 2011, foi Königin der Nacht, agora no Seefestspiele Berlin, numa encenação de Katharina Talbach, sob a direcção de Judith Kubitz, com a Kammerakademie Potsdam e o Neuer Kammerchor Potsdam. Dedica-se, paralelamente, à música antiga. Em 2004, realizou concertos no território nacional e esteve também no Rio de Janeiro, em Juiz de Fora e em Tiradentes, por ocasião do Festival de Música Colonial e Música Antiga. Em 2006, participou no Festival de Musique du Haut-Jura e, em 2012, apresentou-se com o organista Daniel Oliveira no Festival Internacional de Música de Ourense.

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Carolina Figueiredo Meio-soprano

Formou-se em Canto, na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa, em 2005. Trabalha assiduamente com Manuela de Sá e, em masterclasses, com Susan Waters e Lucia Mazzaria. Das apresentações concertísticas, destacam-se Messiah, de Haendel; Te Deum, de Charpentier; Johannes-

-Passion, de Bach; Magnificat, de Vivaldi; Missa em Dó Maior, de Beethoven; Manfred, de Schumann; Les Béatitudes, de Franck; Il Tramonto, de Respighi; Ein Sommernachtstraum, de Mendelssohn. Quanto a obras de compositores portugueses, participou nas estreias modernas e em gravações, entre outras, de Te Deum, de Lima; Missa 1842, de Bomtempo; Te Deum, de Sousa Carvalho. Trabalhou sob a direcção de Michael Corboz, Cesário Costa, João Paulo Santos, Massimo Mazzeo, Pedro Neves, Pedro Carneiro e Paulo Lourenço. Apresenta-se regularmente a solo, acompanhada por Olga Prats, João Paulo Santos, José Manuel Brandão, Anna Tomasik e João Vaz, com destaque para a Casa de Portugal em Paris (2016); a Temporada de Música de Câmara da Orquestra Metropolitana (igualmente em 2016); o Festival de Sintra (2015); os Serões Musicais do Palácio da Pena (2015); e os Dias da Música do Centro Cultural de Belém (2014). É protagonista, desde 2013, em produções de música contemporânea, com obras de Carlos Marecos (Dor e Amor) e Jorge Salgueiro (Vida de um Vinho, Eros), tendo estreado e gravado versões das suas obras. Na área da ópera, integrou o elenco de Dialogues des Carmelites, de Poulenc (Mère Jeanne); Madama

Butterfly, de Puccini (Kate Pinkerton); Ester, de Leal Moreira (Assuero); El Gato Montés, de Penella (Loliya/Pastorcillo); Il Viaggio a Reims, de Rossini (Modestina); L’Orfeo, de Monteverdi (Ninfa); Lindane e

Dalmiro, de Cordeiro da Silva (Baronesa); Bastien et Bastienne, de Mozart (Bastien); Turandot, de Busoni (Vorsangerinnen); Peer Gynt, de Grieg (Terceira Pastora); e Faust, de Gounod (Marthe). Sob a direcção de João Paulo Santos, Domenico Longo, Laurence Foster, Martin André, Cristóbal Soler, Yi-Chen Lin, Enrico Onofri, Jan Wierzba e Jorge Matta, teve a oportunidade de trabalhar com encenadores como Luís Miguel Cintra, Maxine Braham, Emilio Sagi, Luca Aprea, José Carlos Plaza e Marie Mignot.

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Manuel Gamito Tenor

Natural de Viseu (1989), iniciou os estudos de Flauta de Bisel aos dez anos de idade no Instituto Gregoriano de Lisboa e, aos dezasseis, começou a estudar Canto, na mesma escola, com Elsa Cortês. Prosseguiu a formação no Royal Northern College of Music, da Universidade em Manchester, na classe de David Maxwell Andersen. Em 2015, ingressou na Escola Superior de Música de Lisboa, integrando a classe de Luiz Madureira. Já participou em masterclasses com Elsa Cortês, Armando Possante, Ana Paula Russo, Isabel Alcobia, Lieve Jensen, Jeffrey Lawton e Lynne Dawson. Trabalhou como solista e coralista sob a direcção de regentes como Paulo Lourenço, Michell Corboz, Jean-Marc Burfin, Vasco Azevedo, Fernando Eldoro, Christopher Bochman, Hannu Lintu, Ludwig Wicki, Simone Young, Pedro Teixeira, Jonathan Lo, Justin Doyle, Jorge Matta, Armando Possante, Peter Phillips, Clark Rundell, Mark Elder e Leonardo García Alarcón. Desde o começo da sua carreira musical, tem participado em diversos coros tanto juvenis como profissionais, v.g., Coro de Câmara de Manchester, Coro de Câmara da Escola Superior de Música de Lisboa, Coro de Câmara do Royal Northern College of Music e, actualmente, Coro Gulbenkian, onde também se apresenta como solista.

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Tiago Mota Baixo

Estudou no Conservatório Nacional de Lisboa, formando-se em Canto (2007). Neste mesmo ano, iniciou o aperfeiçoamento dos conhecimentos de música antiga na Schola Cantorum Basiliensis, com Dominique Vellard, obteendo, em 2012, os mestrados em Canto e em Ensemble Vocal (AVES). Teve igualmente a oportunidade de trabalhar com Gerd Türk, Evelyn Tubb e Anthony Rooley, incluindo, na gravação em CD de The Passions, uma oratória de William Hayes. Possui vasta experiência nas áreas de música antiga e contemporânea, tendo actuado, entre outros, com o Coro Gulbenkian e o Ensemble Officium. Colabora actualmente com o Huelgas Ensemble; o Choeur de Chambre de Namur, com o qual gravou, v.g., Requiem, de Mozart, e Vespro della B. M. Vergine, de Monteverdi, sob a direcção de Leonardo Alarcón; o Coro della Radiosvizzera, sob a direcção de Diego Fasolis; e Basler Madrigalisten. É membro fundador de Armonia degli Affetti (Jeunes Ensembles de Ambronay em 2014), não apenas como cantor solista e de ensemble, mas também pesquisando e editando peças dos séculos XVII e XVIII. Nos anos de 2006 e 2007, desempenhou o papel principal de Anão em A Floresta, de Carrapatoso. Em 2012, participou como solista na ópera The Fairy Queen, de Purcell, no Theater Basel, e, em 2014, foi solista na ópera Shiva for Anne, a terceira parte de uma trilogia composta por Mela Meierhans e apresentada no MaerzMusik, de Berlim, e no Luzern Festival.

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José Bruto da Costa Direcção musical

Concluiu o curso geral de Canto na classe de Filomena Amaro, na Escola de Música do Conservatório Nacional, tendo ainda estudado Composição com Eurico Carrapatoso e Música de Câmara com Armando Vidal, Gabriela Canavilhas, José Manuel Brandão e Rui Pinheiro. Participou em masterclasses de Elisabete Matos, Jill Feldman, Liliane Bizinech, Peter Harrison e Tom Krause. Licenciou-se no Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa. Exerceu funções de docência no Instituto Superior de Educação e Ciências, na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa e na Academia de Música de Santa Cecília. Colabora regularmente com o Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Fundou, em 1998, Opus 21, de que é director artístico, bem como de Lisbon Consort Players. Apresentou com estes, em primeira audição moderna em Portugal, Magnificat, de Durante, Responsórios Fúnebres, de Castro Lobo, e a Missa em Ré maior Hofkapellmesse, de Albrechstsberger. Com os mesmos agrupamentos, dirigiu diversas obras, v.g., Motetes, de Bach, Missa a Oito Vozes, de Rodrigues Esteves, Messe

Basse e Requiem, de Fauré, Matinas de Natal, de Nunes Garcia, Gloria, de Händel, Litaniæ Lauretanæ e Requiem, de Mozart, Stabat Mater, de Scarlatti, Responsórios de São Vicente, de António Teixeira, e

Gloria, de Vivaldi, bem como diversa polifonia portuguesa dos séculos XVI-XVIII. Integra o Coro Gulbenkian desde 1998. Foi elemento fundador do Vocal Officium e cantor residente de Banchetto Musicale. Colabora, regularmente, com Voces Cælestes.

O rio Mira, nas imediações da vila de Odemira. >

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Concerto III

SANTIAGO DO CACÉM

25 de Março 21H30

PERPÉTUO MOVIMENTO: EM TORNO D’ A ARTE DA FUGA Carlo Gesualdo [1566-1613] Cinco Madrigais Deh, come invan sospiro Belta, poi che t’assenti Resta di darmi noia Gia piansi nel dolore Moro, lasso

György Kurtag [1926-] Six Moments Musicaux (2008) I. Invocatio II. Footfalls III. Capriccio IV. In memoriam Sebok György V. …Rappel des oiseaux… VI. Les adieux

Johann Sebastian Bach [1685-1750] Contrapunctus XVIII de Die Kunst der Fuge Sofia Gubaidulina [1931-] Reflections on the Theme B-A-C-H Benjamin Britten [1913-1976] String Quartet No. 3 1. Duets: With moderate movement 2. Ostinato: Very fast 3. Solo: Very calm 4. Burlesque: Fast-con fuoco 5. Recitative and Passacaglia (La Serenissima): Slow Brentano String Quartet Viola Misha Amory Violino Serena Canin Violoncelo Nina Lee Violino Mark Steinberg

< Porta do Sol [pormenor]. Escola portuguesa. Século XIV, inícios. Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.

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Igreja Matriz de Santiago Maior Santiago do Cacém

Classificada como Monumento Nacional por Decreto de 16 de Junho de 1910 e pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a

Reconquista ficava no interior do castelo, onde já existia uma mesquita, partilhando da posição altaneira da fortaleza, que impera, do alto de um monte – o Cerromaior do romance de Manuel da Fonseca (1943) –, sobre a planície costeira. Ao tomarem a terra, em torno de 1217, os religiosos-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe o antropónimo árabe Qasim (da tribo dos Banu Qasim), elevado a topónimo. O antigo edifício viria a tornar-se pequeno quando a vila extravasou os limites da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV, sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça [S Ventimiglia ?, ca. 1268 – X Coimbra, 1336], neta do imperador Teodoro II Lascaris, parente e aia da rainha D. Isabel, esposa de D. Dinis. Na posse de Santiago do Cacém e Panóias, mercê de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre senhora dotou os principais lugares de culto destes domínios com relíquias insignes – provavelmente oriundas do pecúlio familiar dos Lascaris, trazido de Niceia. À matriz de Santiago couberam, entre outros vestígios sagrados, vários fragmentos da Cruz de Cristo, ou Lignum Crucis, a que se dá, localmente, o nome de Santo Lenho. Para o altar-mor do mesmo edifício, encomendou o retábulo de Santiago Combatendo os Mouros, obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um dos mestres da catedral de Lisboa. Em 1320-1321, as “décimas” taxaram a igreja no montante de 1000 libras, devendo pagar a vigairaria mais 90 libras, o que totaliza uma soma avultada, sinal da importância da terra. Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (nomeadamente em 1530, em 1704 e, sobretudo, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terremoto de 1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três Igreja matriz de Santiago Maior, Santiago do Cacém. >

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naves separadas por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas perdurou um dos laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo dos capitéis e das impostas, alinha-se densa carga ornamental vegetalista e zoomórfica. Corresponde-lhe, no interior da igreja, um eloquente ciclo decorativo que guarnece os capitéis e anima o perfil das arcadas em ogiva, com a introdução de figuras humanas, reflectindo a dominância naturalista da arte da época. O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por frestas esguias, define uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcossólio. Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em finais do reinado dionisíaco, quando se transfiguraram quase totalmente, sob o impulso de correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda metade da era ducentista, em que ainda preponderavam arcaísmos do período “experimental” do mesmo estilo. A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, constituída por um prior dotado de poderes quase-episcopais, o qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem, seis (oito no século XVII) beneficiados e um prioste, todos freires espatários, assumiu decisiva influência na vida da povoação. Sucedeu o mesmo com as importantes confrarias, irmandades e ordens terceiras agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversificado património artístico, boa parte do qual está patente ao público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi instalado, em 2002, na sala capitular e outras dependências do próprio monumento. Aqui se conserva, com o merecido destaque, o relicário do Santo Lenho. BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

BERNARDO FALCÃO, Memorias sobre a Antiga Mirobriga (Lisboa, Biblioteca dos Herdeiros do Prof. Doutor Manuel António Falcão Beja da Costa, ms. s.n.); A NTÓNIO DE MACEDO E SILVA, Annaes do Municipio de Sanct-Yago de Cassem desde Remotas Eras até ao Anno de 1853, Beja, Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id., Annaes do Municipio de Sant’Iago de Cacem, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1869; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, O Alto-Relevo de Santiago Combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja-Santiago do Cacém, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), No Caminho sob as Estrelas. Santiago e a Peregrinação a Compostela [Catálogo da Exposição, Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior, 2007-2008], I-II, Santiago do Cacém-Beja, Câmara Municipal de Santiago do Cacém-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2012; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.

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Razão e Sentimento JOSÉ LUIS GARCÍA DEL BUSTO

O genial compositor Carlo Gesulado, príncipe de Venosa [S Venosa, 1566 – X 1613], foi uma personalidade complexa. Não hesitou em lavar a honra assassinando a esposa e o amante desta – surpreendidos em flagrante adultério, numa situação cuidadosamente propiciada pelo próprio compositor para justificar a sua vingança –, mas, por outro lado, escreveu belíssimos madrigais de carácter amoroso e, inclusive, religioso, elevados na inspiração e na espiritualidade. A modernidade harmónica e a profundidade da expressividade da sua música fazem dele (a par do contemporâneo Monteverdi) um dos mestres europeus mais representativos da transição do Renascimento para o Barroco. Desprovidos do conteúdo textual, os cinco Madrigali que aqui se interpretam, em versão meramente instrumental, põem a nu os singulares caracteres da linguagem do compositor italiano. Terminados em 2005, por encomenda do Concurso Internacional de Quartetos de Corda que se ia celebrar nesse ano em Bordéus, os Six Moments Musicaux, do húngaro György Kurtág [S Lugos (hoje Lugoj, na Roménia), 1926-], constituem um compêndio da requintada e subtil musicalidade do seu autor. Foram estreados, em concerto público, na mesma cidade, pelo Keller Quartet, em Fevereiro de 2006, por ocasião de um concerto justamente dedicado à celebração do 80.º aniversário do maestro. O primeiro Momento Musical (intitulado Invocação) e o terceiro (Capricho) são as propostas de carácter mais abstracto da série. Entre eles, aparece uma peça magnífica, de intrigante expressividade, denominada Pegadas. O quarto é dedicado à memória do grande pianista György Sebok, seguindo um inveterado costume de Kurtág: o de recordar e homenagear criadores, artistas e amigos coetâneos. O quinto, com a sua alusão, no título, ao mundo ornitológico tão caro a Messiaen, é uma virtuosística e atraente página concebida como um estudo para os harmónicos. Finalmente, o sexto, intitulado

Os Adeuses (como a célebre Sonata de Beethoven) é um tributo de admiração, por parte de Kurtag, à maniera de um mestre do passado imediato: o checo Leos Janacek. De acordo com a sua opção de colocar em diálogo a música histórica e a do presente, o Brentano String Quartet pediu a vários criadores do momento que completassem as peças inacabadas de criadores do passado. À excelente compositora russa Sofia Gubaidulina [S Chistopol (Tartaristão), 1931-], continuadora de Shostakovich e uma

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das personalidades musicais mais respeitadas e admiradas da actualidade, atribuíram-lhe o enigmático Contrapunctus XVIII d’A Arte da Fuga, a monumental obra de Bach, e a sua participação, muito singular, consistiu nestas Reflections on the Theme B-A-

-C-H, ou seja, sobre o tema que resulta de traduzir para notas musicais (de acordo com o sistema de notação anglo-saxónico) as letras do apelido do grande mestre do Barroco: Si bemol-La-Dó-Si natural. Gubaidulina aprofundou a linguagem contrapontística bachiana, assim como as possibilidades de produção sonora e de execução do quarteto de cordas, construindo uma obra de grande significado musical e expressivo. Dedicou-a ao próprio Quarteto Brentano, e este agrupamento estreou-a em Dartmouth, a 2 de Outubro de 2002. Após trinta anos sem praticar o género quartetístico, o maestro inglês Benjamin Britten [S Lowestoft, 1913 – X Aldeburgh, 1976] abordou, em 1975, a composição de um String

Quartet No. 3, o último da série e, também, uma das suas derradeiras obras. Escreveu-o durante o Outono, entre Aldeburgh e Veneza, e dedicou-o ao musicólogo Hans Keller. Foi estreado pelo Amadeus Quartet em Snape, a 19 de Dezembro de 1976, num concerto carregado de emotividade, pois Britten tinha falecido havia apenas duas semanas. Talvez por se tratar de uma obra terminal, a originalidade da sua estrutura tem vindo a ser entendida, em certas circunstâncias, como aspectos enigmáticos de um adeus, de uma obra-testamento. Seja como for, trata-se de grande música. O primeiro andamento é protagonizado pelo segundo violino e pela viola, a que alude o título de

Duets. O segundo, Ostinato, tem carácter essencialmente rítmico. Segue-se o Solo, referência ao protagonismo do primeiro violino. O quarto andamento constitui uma

Burlesque ou Scherzo que remete para Mahler, uma das devoções de Britten, e a obra termina com um emocionado (e emocionante) Recitativo e Passacaglia, subintitulado

La Serenissima, numa referência à cidade de Veneza – e em cujo desenvolvimento se relembra um ou outro tema da última ópera de Britten, precisamente denominada

Morte em Veneza.

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Brentano String Quartet

Antoine Brentano, a “Amada Imortal” de Beethoven, destinatária da sua famosa Confissão de Amor, foi a musa deste agrupamento que, logo a partir dos primórdios, em 1992, se distinguiu, no panorama internacional, pelo brilhantismo técnico, pelo conhecimento musical e pela elegância estilística. O eclectismo e o desejo de ultrapassar as fronteiras dos repertórios clássicos para quartetos de cordas levou-o a interpretar tanto peças musicais medievais ou renascentistas como madrigais de Claudio Monteverdi e Carlo Gesualdo, fantasias de Henry Purcell e obras seculares de Josquin des Prés. Por ocasião da estreia no Wigmore Hall, foi galardoado com o Royal Philharmonic Society Music Award pelo

début mais espectacular de 1997. Em 1995, tornou-se o quarteto residente da New York University, vindo a estrear a mesma função, em 1999, na Princeton University. Neste mesmo ano, foi escolhido pela Chamber Music Society do Lincoln Center para actuar na temporada inaugural da Chamber Music Society Two. Mantém presença assídua em inúmeros palcos tanto da América do Norte, da Europa, do Japão como da Austrália, sendo míticas as suas intervenções nos festivais de Edimburgo, Bath, Divonne, Kuhmo e Mozartwoche (Salzburgo). Desenvolve uma colaboração regular com Mitsuko Uchida, Jessye Norman, Barbara Sukowa e Richard Goode. Colabora assiduamente com diversos compositores, entre eles Elliot Carter e György Kurtag, tendo sido também convidado a estrear obras encomendadas a Milton Babbitt, Chou Wen-Chung, Charles Wuorinen, Bruce Adolphe, Steven Mackey e Jonathan Dawe. Para celebrar o décimo aniversário, solicitou a dez autores uma peça inspirada n’Arte da Fuga, para ser entrelaçada com fragmentos desta obra-prima. No projecto

Fragments, combinou trabalhos incompletos de Mozart, Schubert, Bach e Schostakowitsch com peças de Sofia Gubaidulina e Bruce Adolphe, entre outros. Trabalhou igualmente com Mark Strand, vencedor do Prémio Pulitzer, cujos poemas acompanham obras de Haydn e Webern. Desde 2014, é o quarteto de cordas residente da Yale School of Music, sucedendo neste posto ao mítico Tokyo String Quartet. Entre os seus acompanhantes, contam-se Joyce di Donato, Vijay Iyer e Jonathan Biss.

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Concerto IV CASTRO VERDE 8 de Abril 21H30

O CASTELO DO BARBA AZUL, DE BÉLA BARTÓK Ópera em Um Acto Meio-soprano Apollónia Szolnoki Baixo-barítono Antal Cseh Piano András Rákai

< D. Afonso Henriques conquista Santarém. Mestre P.M.P. Ca. 1730. Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde.

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Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição Castro Verde Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro (Diário da República, 1.ª Série-B, n.º 280, de 30 de Novembro de 1993)

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Terminada a Reconquista definitiva do Sul de Portugal, na primeira metade do século XIII, Castro Verde foi entregue à Ordem de Santiago, que aqui estabeleceu uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, sita numa colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores da vila. No rol das “décimas” de 1320-1321, encontra-se taxada, “pela parte que nela tem o Mestre de S. Tiago”, em 200 libras, além de pagar outras 60 libras, correspondentes à vigairaria da mesma igreja; o comendador pagava também 200 libras, a que acresciam, do temporal do mesmo, 30 libras. Até à extinção das ordens religiosas, em 1834, dispôs de uma colegiada, presidida por um prior com as funções de pároco. Em 1573, após ter visitado a localidade, D. Sebastião, o monarca visionário, fez reerguer esse edifício, com o intuito de assinalar um facto decisivo para que Portugal se tornasse uma nação independente: a batalha de Ourique. De acordo com velha tradição, esta foi travada nas elevações de São Pedro das Cabeças, pouco distantes de Castro Verde, a 25 de Julho de 1139 (festa litúrgica do apóstolo Santiago Maior), correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus Cristo, na véspera da peleja, ao nosso primeiro soberano, de que não só lhe daria o triunfo no lance – arriscado por causa da desigualdade numérica das forças cristãs e das hostes mouras que as afrontavam –, como protegeria a nação portuguesa e os seus reis ad æternum. A igreja actual ficou a dever-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível ao significado patriótico e escatológico do “Milagre de Ourique”. Ocupa aproximadamente o mesmo local das que a precederam, embora em posição mais elevada, sendo outrora antecedida por uma notável escadaria (o alteamento do adro, remodelado quando se ergueu o

Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde. >

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actual edifício dos paços do concelho, entre 1898 e 1913 – mas só terminado em 1942 – comprometeu tal destaque). Tendo arrancado ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram sem delonga. Obedeceram a um modelo derivado da arquitectura chã da época da Restauração e que o mestre régio João Antunes [X 1712] aplicou na concepção de várias igrejas para a milícia espatária, como a paroquial de Santiago, de Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a matriz de São Salvador, de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou uma planta que se desenvolve longitudinalmente, composta pela ampla nave rectangular em que estão inscritas duas torres sineiras, de secção quadrangular, e a capela-mor, também rectangular, embora mais estreita, flanqueada por dependências simétricas, a sacristia e outro aposento. Na sóbria frontaria, com três registos definidos pelas pilastras e pela empena direita, avulta o portal, enquadrado por pilastras jónicas e sobrepujado por um frontão curvo quebrado, tendo a insígnia da Ordem de Santiago ao centro. As torres sineiras, que se evidenciam pela poderosa volumetria, são rematadas por coruchéus campaniformes e pináculos. Se a estrutura arquitectónica acompanha a tradição seiscentista, o interior revela, como acentuou João Miguel dos Santos Simões, excepcional imponência. Corresponde já, assim, à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo toda uma visão integradora das artes na época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a Aparição de Cristo a D. Afonso

Henriques. Este conjunto foi levado a cabo, em 1728-1731, mediante uma parceria entre os pintores lisboetas António Pimenta Rolim e Manuel Pinto e os bejenses Manuel e José Pereira Gavião – parceria que também se terá ocupado do revestimento mural de outros sectores. Tanto as paredes da nave como as da capela-mor estão integralmente guarnecidas por vastas superfícies azulejares, com dois registos. No corpo da igreja, ressaltam, cercados por elegantes moldurações de folhagens, os painéis alusivos ao ciclo da batalha de Ourique e aos reflexos na história nacional. Lida da banda da Epístola para a do Evangelho, esta série começa por um episódio bélico que, embora cronologicamente posterior àquele prélio, confirma a protecção divina ao reino português: D. Afonso Henriques

conquista Santarém; D. Afonso Henriques Anima os Companheiros Receosos ante o Poder do Inimigo; D. Afonso Henriques Recebe a Visita do Ermitão na Véspera da Batalha; Aparição de Cristo Crucificado a D. Afonso Henriques; O Ermitão a Rezar; O Ermitão a Tocar o Sino; D. Afonso Henriques Recebe o Pedido dos Vassalos para Aceitar o Título de Rei; D. Afonso Henriques Combate os Mouros na Batalha de Ourique; D. Afonso Henriques Recebe a Homenagem dos Vassalos no Final da Batalha; D. Afonso

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Henriques Jura sobre os Evangelhos que Viu Cristo na Cruz. Dois anjos com escudos heráldicos acompanham o arco triunfal. Os vãos das janelas são igualmente azulejados, ostentando composições de albarradas, sustidas por anjos, e, na parte do tecto, sobressai a cruz-espada da Ordem de Santiago. No registo inferior perfilam-se teorias de estrelas, túlipas, albarradas e golfinhos, características, tal como os motivos que acabámos de elencar, da produção das oficinas lisboetas, em torno a 1730. Ao longo dos paramentos da capela-mor, prepondera uma série evocativa da vida, paixão e milagres do apóstolo Santiago Maior, integrada numa poderosa amálgama de mísulas, caixilhos e outros elementos de arquitectura “fingida”, em obediência ao gosto de trompe-l’œil vigente na época. Distinguem-se aí momentos fundamentais da história e da lenda jacobeias: Chamamento de Santiago e São João

por Cristo; Pregação de Santiago; Baptismo de Josias; Martírio de Santiago; Encontro dos discípulos de Santiago com a rainha Lupa e recolha dos touros para o transporte do corpo de Santiago; e Santiago Mata-Mouros. O átrio sob o coro ostenta sequências de albarradas e golfinhos, encimadas por azulejos de figura avulsa. De figura avulsa são também os azulejos que forram o baptistério, em cuja parede fundeira se salienta um painel com a cena do Baptismo de Cristo. José Meco atribuiu o essencial da feitura do conjunto ao pintor P.M.P., uma das principais figuras do período dos “Grandes Mestres” da nossa azulejaria. O recurso a alguns dos artistas mais qualificados da época, como já observámos a propósito da campanha pictórica do forro da nave, evidencia-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas referentes à Monarquia e à própria Ordem de Santiago, distribuídos ao longo das abóbadas e das paredes do átrio e do coro alto. No centro da abóbada da capela-mor, destaca-se uma gloriosa Exaltação do Santíssimo Sacramento, que obedece a uma estratégia análoga, em termos plásticos e simbólicos, à da Aparição

de Cristo a D. Afonso Henriques, figurada no tecto da nave. Proclive ao enobrecimento da matriz de Castro Verde, D. João V terá obtido para ela, da Santa Sé, a dignidade de basílica menor, depois completada, vox populi, pelo título de “real”. Mas o soberano empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as quais avulta a custódia de aparato executada, em Lisboa, ao redor de 1715. O Tesouro instalado, em 2004, na antiga sacristia, por iniciativa do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, dá a conhecer este acervo, além de outras obras provenientes de várias igrejas do concelho. Cabe aqui um lugar especial à cabeça-relicário de São Fabião, escrínio de origem aragonesa, oferecido pela princesa

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D. Vataça a Panóias (e transferido, no século XVI, para Casével, de cuja paróquia é propriedade).

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

VÍTOR SERRÃO, História da Arte em Portugal. O Barroco, Lisboa, Editorial Presença, 2003; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004; L OURDES CIDRAES, A Tradição Lendária de Afonso Henriques e as Memórias do Rei Fundador em Castro Verde, Castro Verde, Câmara Municipal de Castro Verde, 2008; J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.

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Barba Azul – A Origem do Mito

RUI PEDRO PEREIRA

“A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o SENHOR Deus fizera; e disse à mulher: «É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?» A mulher respondeu-lhe: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis.’»”

Gen., 3,1-4

A lenda do Duque Barba Azul, cuja origem temporal se desconhece, explora esses atributos psicológicos que dominam o comportamento humano desde tempos imemoriais e que jogam um papel determinante em qualquer relação: a confiança e a capacidade de resistir à tentação. Um homem rico e poderoso, o Duque Barba Azul, procura uma jovem para desposar, mas uma aura de mistério em torno do desaparecimento das suas anteriores mulheres leva a que busque uma noiva longe dos seus domínios. Homem culto, de boas maneiras, conquista uma jovem inocente e de grande beleza. Logo após o casamento, o Duque tem de se ausentar em negócios e deixa as chaves do castelo à noiva para ela explorar a casa, mas impõe uma condição: a jovem não poderá abrir uma das portas da fortaleza. Se o fizer, algo de terrível acontecerá. Estão lançados os dados para um drama psicológico. O que encontrará a jovem em cada uma das portas fechadas à chave? E que segredo esconde a porta que não pode abrir? A partir deste ponto, a lenda tem diferentes desfechos. A primeira versão escrita que se conhece data de 1697 e é da lavra do escritor francês Charles Perrault, autor de contos tão célebres quanto O Capuchinho Vermelho, A Bela Adormecida, O Pequeno

Polegar, O Gato das Botas ou Cinderela, muitos dos quais deram origem aos mais célebres bailados da história da música. Na versão original de Perrault, quando a noiva

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abre a sétima porta, vê os cadáveres das três mulheres que haviam casado com o seu marido numa sala a transbordar de sangue. Horrorizada, fecha a porta mas o sangue fica agarrado à chave, denunciando-a quando o marido regressa. É precisamente este o ponto culminante da história e aquele que representa um maior simbolismo, abrindo diferentes leituras sobre o significado da chave, do sangue e do que representa a abertura da porta para a jovem. Na versão de Perrault, um sentido de justiça divina faz com que a noiva sobreviva, salva pela chegada dos irmãos que matam o Barba Azul. Foi em 1789 que, pela vez primeira, a lenda surgiu no teatro lírico, numa versão de Michel-Jean Sedaine para o compositor belga André Grétry, Raoul Barbe-Bleue. Outras óperas abordam o tema de forma distinta, como a célebre Lohengrin, de Richard Wagner, onde a noiva é proibida de questionar o amado sobre a sua origem. Geralmente, a lenda do Barba Azul era tratada com um desfecho de alguma forma positivo. A excepção surgiu com um final verdadeiramente trágico no libreto de Maeterlinck para a ópera de Paul Dukas, Ariane et Barbe-Bleue. Nesta versão de 1907, o amor de Ariane, que guia Teseu no labirinto do Minotauro, não consegue vencer a lenda. O texto que deu origem à ópera de Béla Bartók resultou de um libreto da autoria de Béla Balázs (pseudónimo do húngaro Herbert Bauer). Amigo do compositor e companheiro das muitas recolhas que Bartók e Kodaly fizeram do folclore nos campos da Hungria, publicou A kékszakállú herceg vára (O Castelo do Barba Azul, sendo vulgar omitir o título nobiliárquico) em 1910. Do ponto de vista literário, a obra recorre ao simbolismo das cores e a elementos decorativos da Arte Nova alemã (Jugendstill ) como forma de retratar ambientes psicológicos intensos, factos que a situam dentro da corrente do Expressionismo. Comentando a peça, Balázs proferiu a curiosa afirmação: “A minha balada é sobre a vida interior. O Castelo do Barba Azul não é um castelo de pedras. O castelo é a sua alma. É solitário, escuro e secreto: o castelo de portas fechadas.” Está, pois, exclusivamente interessado no drama psicológico. Nesse castelo há apenas uma grande sala onde estão as sete portas, e a acção que coloca a noiva perante o teste começa imediatamente. Curiosamente, dá o nome de Judite, a sedutora e assassina de Holofernes no Antigo Testamento e que permanecerá para sempre solitária na viuvez, à inocente noiva; e, na sua versão, o casal faz a viagem pelo mistério que cada porta encerra em conjunto. Enquanto noutras versões o abrir de cada porta é o caminho para a luz, aqui a viagem decorre no sentido da escuridão, do alcance do que de mais sombrio encerra a condição humana. Bartók escreveu O Castelo do Duque Barba Azul entre Março e Setembro de 1911, tendo feito revisões da obra no ano seguinte, antecedendo a estreia em 1918, e novamente

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em 1924. Em termos musicais, esta ópera presta tributo à herança romântica dos compositores germânicos, mas revela, simultaneamente, sinais de modernismo que viriam a marcar a linguagem futura do autor. Os acordes paralelos que assinalam a abertura da quinta porta são considerados uma referência ao prelúdio para piano La

Cathédrale Engloutie (A Catedral Submersa) que Debussy compôs em 1909. Vários investigadores são unânimes ao considerarem o motivo do sangue um eco do poema sinfónico de Strauss, Ein Heldenleben (Uma Vida de Herói), que o próprio Bartók havia transcrito para piano, alguns anos antes. Mas O Castelo do Duque Barba Azul é uma obra de grande individualidade artística pela forma como as pesquisas sobre o folclore húngaro que o compositor vinha a realizar se espelham na sua linguagem melódica e harmónica, a qual tem um forte pendor modal. A sobreposição de harmonias como forma de representar as diferentes personalidades dos dois personagens é utilizada com um rigor criterioso para com o libreto, criando frequentemente atmosferas perturbadoras. Nesse aspecto, mostra-se particularmente importante a densa orquestração, que recorre a um efectivo sinfónico superior a oitenta músicos. Uma outra característica muito significativa da partitura consiste no respeito demonstrado pela acentuação natural das palavras, o que torna a música e a sua estrutura rítmica diferentes da maior parte das óperas de outros compositores europeus desse tempo.

Sinopse O Duque Barba Azul trouxe a sua nova mulher para o castelo. Apaixonada por ele, Judite renunciou a qualquer contacto com a família. Quando chega ao castelo, fica intrigada com sete portas fechadas à chave, e a curiosidade sobre que segredo esconde cada uma delas domina-lhe o pensamento. Exige que o marido lhe dê as chaves. Judite começa por descobrir a câmara de tortura, a armadura do Duque, o seu tesouro e um jardim secreto. Atrás da quinta porta, vê o seu reino, e a sexta esconde um lago de lágrimas. Quando o Duque recusa dar-lhe a sétima chave, Judite teme vir a encontrar as mulheres com que o marido casou anteriormente. Quando finalmente a abre, deparam-se-lhe três mulheres: as noivas da manhã, do meio-dia e do entardecer da vida do Duque. Judite acaba por juntar-se a elas como a noiva da noite, deixando Barba Azul na solidão.

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[AD LITTERAM] KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Megérkeztünk.

Chegámos.

Íme lássad:

Olhai à volta:

Ez a Kékszakállú vára.

O castelo do Barba Azul.

Nem tündököl,

A casa do vosso pai

mint atyádé.

Brilha – esta não.

Judit, jössz-e még utánam?

Judite, seguis-me?

JUDIT

JUDITE

Megyek, megyek, Kékszakállú.

Seguir-vos-ei, Barba Azul.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nem hallod a vészharangot?

Ouvis o dobrar do sino?

Anyád gyászba öltözködött,

Vossa mãe vestiu-se de luto,

atyád éles

vosso pai

kardot szíjaz,

cinge já a espada,

testvérbátyád

vosso irmão

lovat nyergel.

sela o seu cavalo.

Judit, jössz-e még utánam?

Judite, seguis-me?

JUDIT

JUDITE

Megyek, megyek Kékszakállú.

Seguir-vos-ei, Barba Azul.

KÉKSZAKÁLLÚ Megállsz Judit? Mennél vissza? JUDIT Nem. A szoknyám akadt csak fel, felakadt szép selyem szoknyám. KÉKSZAKÁLLÚ Nyitva van még fent az ajtó. JUDIT Kékszakállú! Elhagytam az apám, anyám, elhagytam szép testvérbátyám, elhagytam a vőlegényem, hogy váradba eljöhessek Kékszakállú! Ha kiüznél,

BARBA AZUL Parastes, Judite? Quereis voltar? JUDITE Não. Foi só a minha saia que ficou presa, minha linda saia de seda. BARBA AZUL A porta ainda continua aberta. JUDITE Barba Azul! Deixei o meu pai, a minha mãe, abandonei o meu belo irmão, o meu noivo deixei-o, para no teu castelo poder entrar!

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küszöbödné1 megállanék,

Se me rejeitardes, aqui ficarei,

küszöbödre lefeküdnék.

estendida no teu umbral.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Most csukódjon be az ajtó.

Que se feche a porta!

JUDIT

JUDITE

Ez a Kékszakállú vára!

É este o castelo do Barba Azul!

Nincsen ablak?

No há janelas?

Nincsen erkély?

Não há varandas?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nincsen.

Não, não há.

JUDIT

JUDITE

Hiába is süt kint a nap?

Em vão brilha o sol fora?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Hiába.

Em vão.

JUDIT

JUDITE

Hideg marad? Sötét marad?

Sempre frio? Sempre escuro?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Hideg Sötét.

Frio. Escuro.

JUDIT

JUDITE

Ki ezt látná, jaj, nem szólna.

Quem aqui entrar emudece.

Suttogó hír elhalkulna.

Os rumores silenciam-se.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Hírt hallottál?

Ouvistes rumores?

JUDIT

JUDITE

Milyen sötét a te várad!

Que escuridão, o teu castelo!

Vizes a fal!

Paredes molhadas!

Kékszakállú!

Barba Azul!

Milyen víz hull a kezemre?

Que água molha os meus dedos?

Sir a várad! Sir a várad!

O teu castelo está a chorar!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Ugye, Judit, jobb volna most

Judite, estaríeis mais feliz

Vőlegényed kastélyában:

no castelo do vosso noivo:

Fehér falon fut a rózsa,

rosas a trepar paredes caiadas,

cseréptetőn táncol a nap.

o sol a dançar no telhado…

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JUDIT

JUDITE

Ne bánts ne bánts Kékszakállú!

Não me magoeis, Barba Azul!

Nem kell rózsa, nem kell napfény!

Não quero rosas, nem luz do sol!

Nem kell rózsa, nem kell napfény!

Não quero rosas, nem luz do sol!

Nem kell... Nem kell...

Não me são nada…

Nem kell...

Não os quero…

Milyen sötét a te várad!

Que escuridão, o teu castelo!

Milyen sötét a te várad!

Que escuridão, o teu castelo!

Milyen sötét...

Como é escuro…

Szegény,

Pobre,

szegény Kékszakállú!

pobre Barba Azul!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Miért jöttél hozzám, Judit?

Porque viestes aqui, Judite?

JUDIT

JUDITE

Nedves falát felszárítom,

Enxugarei as paredes molhadas,

ajakammal szárítom fel!

com os meus lábios as secarei!

Hideg kövét melegítem,

Aquecerei as pedras geladas,

a testemmel melegítem.

com o meu corpo as aquecerei.

Ugye szabad, ugye szabad,

Deixar-me-eis?

Kékszakállú!

Dizei que sim, Barba Azul!

Nem lesz sötét a te várad,

O teu castelo não será escuro,

megnyitjuk a falat ketten,

juntos rasgaremos paredes,

szél bejárjon, nap besüssön,

ventos a soprar, sol a irradiar

nap besüssön.

sol a irradiar!

Tündököljön a te várad!

Deixai o teu castelo brilhar!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nem tündököl az én váram.

Nada brilha no meu castelo.

JUDIT

JUDITE

Gyere vezess Kékszakállú,

Conduzi-me, Barba Azul,

mindenhová vezess engem.

mostrai-me todos os cantos.

Nagy csukott ajtókat látok,

Vejo portas trancadas

hét fekete csukott ajtót!

sete sombrias portas!

Miért vannak az ajtók csukva?

Por que estão elas fechadas?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Hogy ne lásson bele senki.

Para ninguém ver o que escondem.

JUDIT

JUDITE

Nyisd ki, nyisd ki!

Abri-as, abri-as!

Nekem nyisd ki!

Abri-as para mim!

Minden ajtó legyen nyitva!

Quero-as todas abertas,

Szél bejárjon, nap besüssön!

Vento a soprar, o sol a entrar!

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Emlékezz rá, milyen hír jár.

Lembrai-vos dos rumores.

JUDIT

JUDITE

A te várad derüljön fel,

Deixai que a luz do dia

A te várad derüljön fel!

ilumine o teu triste castelo!

Szegény, sötét, hideg várad!

Teu sombrio, gelado castelo!

Nyisd ki! Nyisd ki! Nyisd ki!

Abri, abri, abri!

Jaj!

Ai!

Jaj! Mi volt ez?

Ai, o que foi aquilo?

Mi sóhajtott?

O que suspirou?

Ki sóhajtott?

Quem suspirou?

Kékszakállú!

Barba Azul!

A te várad! A te várad!

O teu castelo! O teu castelo!

A te várad!

Foi o teu castelo!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Félsz-e?

Assustada?

JUDIT

JUDITE

Oh, a várad

Oh, o vosso castelo

felsóhajtott!

suspirou!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Félsz?

Assustada?

JUDIT

JUDITE

Oh, a várad felsóhajtott!

Oh, o vosso castelo suspirou!

Gyere nyissuk,

Abramo-lo,

velem gyere.

vinde comigo.

Én akarom kinyitni, én!

Serei eu a abri-lo, eu!

Szépen, halkan fogom nyitni,

Suavemente, sem barulho,

Halkan, puhán, halkan!

com ternura abri-lo-ei.

Kékszakállú,

Barba Azul,

add a kulcsot,

dai-me a chave,

Add a kulcsot, mert szeretlek!

a chave, pelo amor que vos tenho!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Áldott a te kezed,

Abençoadas sejam as vossas mãos,

Judit.

Judite.

JUDIT

JUDITE

Köszönöm, köszönöm!

Obrigada, obrigada!

É akarom kinyitni, én.

Serei eu a abri-la, eu.

Hallod? Hallod?

Ouvis, ouvis?

Jaj!

Ai!

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Mit látsz? Mit látsz?

O que vedes?

JUDIT

JUDITE

Láncok, kések, szöges karók,

Grilhões, adagas, estacas,

izzó nyársak...

ferros incandescentes…

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Ez a kínzókamra, Judit.

É a câmara de tortura, Judite.

JUDIT

JUDITE

Szörnyű a te kínzókamrád,

Como é hedionda

Kékszakállú!

a vossa câmara de tortura!

Szörnyű, szörnyű!

Hedionda, Barba Azul!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Félsz-e?

Assustada?

JUDIT

JUDITE

A te várad fala véres!

Paredes manchadas de sangue!

A te várad vérzik!

Vosso castelo sangra!

Véres...

Ensanguentado...

vérzik.

a sangrar!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Félsz-e?

Assustada?

JUDIT

JUDITE

Nem! Nem félek.

Não! Nada temo.

Nézd, derül már.

Vede a luz a entrar!

Ugye derül? Nézd ezt a fényt.

Tudo se ilumina, olhai a luz!

Látod?

Vedes?

Szép fénypatak.

Belo jorro de luz!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Piros patak,

Jorro carmesim,

véres patak!

jorro ensanguentado!

JUDIT

JUDITE

Nézd csak,

Vede,

nézd csak!

vede!

Hogy dereng már!

Vede o alvoroço!

Nézd csak, nézd csak!

Vede, vede!

Minden ajtót ki kell nyitni!

Abram-se as portas todas!

Szél bejárjon, nap besüssön,

Ventos a soprar, sol a brilhar,

Minden ajtók ki kell nyitni!

Abram-se as portas todas!

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nem tudod mi van mögöttük.

Não sabeis o que escondem!

JUDIT

JUDITE

Add ide a többi kulcsot!

Dai-me as chaves todas!

Add ide a többi kulcsot!

Dai-me as chaves todas!

Minden ajtót

Todas as portas

ki kell nyitni!

devem ser abertas!

Minden ajtót

Todas as portas.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit, Judit mért akarod?

Judite, por que insistis?

JUDIT

JUDITE

Mert szeretlek!

Porque vos amo.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Váram sötét töve reszket,

Tremores sacodem o meu castelo

nyithatsz, csukhatsz minden ajtót.

Podeis abrir, fechar as portas.

Vigyázz,

Tende cuidado,

vigyázz a váramra,

cuidai do meu castelo.

Vigyázz, vigyázz miránk, Judit!

Cuidai de nós, Judite.

JUDIT

JUDITE

Szépen, halkan fogom nyitni.

Suavemente, abri-lo-ei,

Szépen, halkan.

calma e suavemente.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Mit látsz?

O que vedes?

JUDIT

JUDITE

Száz kegyetlen szörnyű fegyver,

Armas horrendas e bárbaras,

sok rettentő hadi szerszám.

um medonho arsenal de guerra.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Ez a fegyveresház, Judit.

É a armaria, Judite.

JUDIT

JUDITE

Milyen nagyon erős vagy te,

Como vós sois imenso e forte,

milyen nagy kegyetlen vagy te!

impiedoso e cruel também!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Félsz-e?

Assustada?

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JUDIT

JUDITE

Vér szárad a fegyvereken,

Sangue manchou estas armas,

véres a sok hadi szerszám.

um arsenal banhado em sangue.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Félsz-e?

Assustada?

JUDIT

JUDITE

Add ide a többi kulcsot!

Dai-me as chaves todas!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit, Judit!

Judite, Judite!

JUDIT

JUDITE

Itt a másik patak,

Eis aqui mais um jorro,

Szép fénypatak.

Belo jorro de luz.

Látod? Látod?

Vedes? Vedes?

Add ide a többi kulcsot!

Dai-me as outras chaves!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Vigyázz, vigyázz miránk, Judit!

Cuidado, cuida de nós, Judite!

JUDIT

JUDITE

Add ide a többi kulcsot!

Dai-me as chaves todas!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nem tudod,

Não sabeis

mi rejt az ajtó.

o que esconde essa porta.

JUDIT

JUDITE

Idejöttem, mert szeretlek.

Vim porque vos amo.

Itt vagyok, a tied vagyok.

Aqui estou, toda vossa.

Most már vezess mindenhová,

Mostrai-me os cantos todos,

most már nyiss ki minden ajtót!

Abri as portas todas!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Váram sötét töve reszket,

Tremores sacodem o meu castelo,

bús sziklából gyönyör borzong.

Rochas tristes gemem de prazer

Judit, Judit!

Judite, Judite!

Hűs és édes,

Corre fresco e suave

nyitott sebből vér ha ömlik.

o sangue da ferida aberta.

JUDIT

JUDITE

Idejöttem mert szeretlek,

Vim porque vos amo,

most már nyiss ki minden ajtót!

abri as portas todas!

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Adok neked három kulcsot.

Mais três chaves vos dou.

Látni fogsz, de sohse kérdezz.

Vereis, mas não pergunteis.

Akármit látsz, sohse kérdezz!

Olhai tudo, sem perguntas!

JUDIT

JUDITE

Add ide a három kulcsot!

Dai-me as três chaves!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Mért álltál meg?

Porque parastes?

Mért nem nyitod?

Porque não abris?

JUDIT

JUDITE

Kezem a zárt nem találja.

Não achei a fechadura.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit, ne félj, most már mindegy.

Nada temais, já avançámos demais.

JUDIT

JUDITE

Oh, be sok kincs!

Ah, tamanho tesouro!

Oh, be sok kincs!

Ah, tanto tesouro!

Aranypénz és drága gyémánt,

Ouro e preciosos diamantes,

bélagyönggyel fényes ékszer,

jóias que cintilam de pérolas,

koronák és dús palástok!

coroas e mantos exuberantes!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Ez a váram kincsesháza.

Eis a minha câmara de tesouro.

JUDIT

JUDITE

Mily gazdag vagy Kékszakállú!

Como sois rico, Barba Azul!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Tiéd most már mind ez a kincs,

Toda a riqueza é vossa já,

tiéd arany, gyöngy és gyémánt.

tudo – ouro, pérolas e diamantes.

JUDIT

JUDITE

Vérfolt van az ékszereken!

Sangue manchou estas jóias!

Legszebbik koronád véres!

Sangue cobre a formosa coroa!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nyisd ki a negyedik ajtót.

Abri a quarta porta.

Legyen napfény, nyissad, nyissad.

Deixai entrar a luz, abri!

festival terras sem sombra

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JUDIT

JUDITE

Oh! Virágok!

Oh! Flores!

Oh! Illatos kert!

Oh! Um jardim perfumado!

Kemény sziklák alatt rejtve.

Escondido sob rochas ásperas.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Ez a váram rejtett kertje.

Eis o meu jardim secreto.

JUDIT

JUDITE

Oh! Virágok!

Ah, flores!

Embernyi nagy liljomok,

Lírios enormes e esplendorosos.

Hüs-fehér patyolat rózsák,

Rosas de fresca brancura,

piros székfűk szórják a fényt.

cravos de carmim reluzente.

Sose láttam ilyen kertet.

Nunca vi jardim assim.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Minden virág neked bókol,

As flores vos reverenciam,

minden virág neked bókol,

todas se curvam perante vós,

te fakasztod, te hervasztod,

por vós desabrocham, murcham,

szebben újra te sarjasztod.

renascendo esplendorosas!

JUDIT

JUDITE

Fehér rózsád töve véres,

Rosas brancas de raiz encarnada,

virágaid földje véres!

Brotam de terra ensanguentada!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Szemed nyitja kelyheiket,

Cálices que o vosso olhar abre,

s neked csengettyüznek reggel.

Brindam-vos com o seu tilintar.

JUDIT

JUDITE

Ki öntözte kerted földjét?

Quem regou o vosso jardim?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit, szeress,

Judite, amai-me,

sohse kérdezz.

sem perguntas.

Nézd, hogy derül már a váram.

Vede o meu castelo a iluminar-se.

Nyisd ki az ötödik ajtót!

Abri a quinta porta!

JUDIT

JUDITE

Ah!

Ah!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Lásd ez az én birodalmam,

Eis o meu império

messze néző szép könyöklöm.

a perder-se no horizonte.

Ugye, hogy szép nagy,

Não é belo, majestoso

nagy ország?

o meu vasto reino?

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JUDIT

JUDITE

Szép és nagy a te országod.

É belo e vasto o vosso reino.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Selyemrétek,

Prados sedosos,

bársonyerdők,

bosques de veludo,

hosszú ezüst folyók folynak,

correntes fluviais em prata

és kék hegyek nagy messze.

e picos azulados ao longe.

JUDIT

JUDITE

Szép és nagy a te országod.

É belo e vasto o vosso reino.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Most már Judit mind a tied.

Tudo isto é vosso, Judite.

Itt lakik a hajnal,

Aqui raia a manhã,

alkony,

cai o crepúsculo.

itt lakik nap,

Aqui moram sol,

hold és csillag,

lua e estrelas,

s leszen neked játszótársad.

para vos fazerem companhia.

JUDIT

JUDITE

Véres árnyat vet a felhő!

Nuvens com sombras sangrentas!

Milyen felhők szállnak ottan?

Que nuvens são aquelas?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Nézd, tündököl az én váram,

Vede como brilha o meu castelo,

áldott kezed ezt műv elte,

obra de vossas abençoadas mãos,

áldott a te kezed, áldott

são mãos abençoadas, vinde,

gyere, gyere tedd szivemre.

pousai-as no meu coração.

JUDIT

JUDITE

De két ajtó csukva van még.

Duas portas continuam fechadas.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Legyen csukva a két ajtó.

Deixai essas duas fechadas.

Téljen dallal az én váram.

Enchamos o meu castelo de música.

Gyere, gyere, csókra várlak!

Vinde, anseio o teu beijo!

JUDIT

JUDITE

Nyissad ki még a két ajtót.

Abri essas duas portas.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit, Judit, csókra várlak.

Judite, beijai-me.

Gyere, várlak. Judit várlak!

Aguardo-vos, Judite, vinde!

festival terras sem sombra

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JUDIT

JUDITE

Nyissad ki még a két ajtót.

Abri essas duas portas.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Azt akartad, felderüljön;

Quisestes claridade,

nézd, tündököl már a váram.

vede, reluz já o meu castelo.

JUDIT

JUDITE

Nem akarom, hogy előttem

Não quero que tenhais

csukott ajtóid legyenek!

portas a mim vedadas!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Vigyázz,

Tende cuidado,

vigyázz a váramra,

cuidai do meu castelo,

vigyázz,

cuidai do seu brilho,

nem lesz fényesebb már.

mais luzente já não será.

JUDIT

JUDITE

Életemet, halálomat,

Vida, morte, nada temo,

Kékszakállú!

Barba Azul!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit, Judit!

Judite, Judite!

JUDIT

JUDITE

Nyissad ki még a két ajtót,

Abri essas duas portas,

Kékszakállú, Kékszakállú!

Barba Azul, Barba Azul!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Mért akarod, mért akarod?

Porque insistis?

Judit! Judit!

Judite! Judite!

JUDIT

JUDITE

Nyissad, nyissad!

Abri, abri!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Adok neked még egy kulcsot.

Dou-vos mais uma chave.

Judit, Judit ne nyissad ki!

Judite, Judite, abri!

JUDIT

JUDITE

Csendes fehér tavat látok,

Um lago de serena brancura,

mozdulatlan fehér tavat.

águas brancas e paradas.

Milyen víz ez Kékszakállú?

Que águas são estas, Barba Azul?

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Könnyek, Judit, könnyek, könnyek.

Lágrimas, Judite, são lágrimas.

JUDIT

JUDITE

Milyen néma, mozdulatlan.

Que silenciosas, imóveis.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Könnyek, Judit, könnyek, könnyek.

Lágrimas, Judite, são lágrimas.

JUDIT

JUDITE

Sima fehér, tiszta fehér.

De brancura etérea e límpida.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Könnyek, Judit, könnyek, könnyek.

Lágrimas, Judite, são lágrimas.

Gyere, Judit, gyere Judit,

Vinde, Judite, vinde

csókra várlak.

anseio o vosso beijo.

Gyere várlak, Judit várlak.

Vinde, Judite, aguardo-vos.

Az utolsót nem nyitom ki.

A última porta não abrirei.

Nem nyitom ki.

Não abrirei.

JUDIT

JUDITE

Kékszakállú... Szeress engem.

Barba Azul… amai-me.

Nagyon szeretsz, Kékszakállú?

Amais-me de verdade, Barba Azul?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Te vagy váram fényessége,

Sois a luz do meu castelo,

csókolj, csókolj,

beijai-me, beijai-me,

sohse kérdezz.

sem perguntas.

JUDIT

JUDITE

Mondd meg nekem Kékszakállú,

Dizei-me, Barba Azul,

kit szerettél én előttem?

quem amastes antes de mim?

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Te vagy váram fényessége,

Sois a luz do meu castelo,

csókolj, csókolj,

beijai-me, beijai-me,

sohse kérdezz.

sem perguntas.

JUDIT

JUDITE

Mondd meg nekem, hogy szeretted?

Contai-me, como a amastes?

Szebb volt mint én?

Era mais linda que eu?

Más volt mint én?

Era diferente?

Mondd el nekem Kékszakállú.

Contai-me, Barba Azul!

festival terras sem sombra

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit szeress, sohse kérdezz.

Judite, amai-me, não pergunteis.

JUDIT

JUDITE

Mondd el nekem Kékszakállú.

Contai-me, Barba Azul.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit szeress, sohse kérdezz.

Judite, amai-me, não pergunteis.

JUDIT

JUDITE

Nyisd ki a hetedik ajtót!

Abri a sétima porta!

Tudom, tudom, Kékszakállú.

Bem sei, Barba Azul,

Mit rejt a hetedik ajtó.

o que esconde essa porta.

Vér szárad a fegyvereken,

Armas manchadas de sangue,

legszebbik koronád véres,

sangue na preciosa coroa,

virágaid földje véres,

terra ensanguentada no jardim,

véres árnyat vet a felhő!

nuvens de sombra carmim!

Tudom, tudom, Kékszakállú,

Sei bem, Barba Azul,

Fehér könnytó kinek könnye.

quem verteu o lago de lágrimas,

Ott van mind a régi asszony

Ali estão – as antigas mulheres

legyilkolva, vérbefagyva.

supliciadas, destruídas.

Jaj, igaz hír; suttogó hír.

Os rumores sussurravam verdades.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Judit!

Judite!

JUDIT

JUDITE

Igaz, igaz!

Eram verdades!

Most én tudni akarom már.

Quero saber, não posso parar.

Nyisd ki a hetedik ajtót!

Abri a sétima porta!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Fogjad, fogjad itt a hetedik kulcs.

Tomai, tomai... a sétima chave.

Nyisd ki, Judit. Lássad őket.

Abri a porta e vê-las-eis.

Ott van mind a régi asszony.

Todas as antigas mulheres.

Lásd a régi asszonyokat

Olhai para elas, paixões antigas,

Lásd akiket én szerettem.

Olhai aquelas que eu amei.

JUDIT

JUDITE

Élnek, élnek, itten élnek!

Estão vivas! Vivem aqui!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Szépek, szépek, százszor szépek.

Belas, de perfeita formosura.

Mindig voltak, mindig élnek.

Viverão imortais.

Sok kincsemet ők gyűjtötték,

Elas juntaram todo o tesouro,

Virágaim ők öntözték,

Elas regaram as minhas flores,

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birodalmam növesztették,

engrandeceram o meu reino,

övék minden, minden, minden.

tudo aqui lhes pertence.

JUDIT

JUDITE

Milyen szépek, milyen dúsak,

Que formosas, que ricas,

én, jaj, koldus, kopott vagyok.

e eu – pobre e quebrada.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Hajnalban az elsőt leltem,

Madrugada, achei a primeira,

piros szagos szép hajnalban.

perfume rubro do dia a romper.

Övé most már minden hajnal,

É dela o nascer do sol agora,

övé piros, hűs palástja,

seu manto fresco, rosado,

övé ezüst koronája,

sua grinalda de prata;

övé most már minden hajnal.

o nascer do sol lhe pertence.

JUDIT

JUDITE

Jaj; szebb nálam, dúsabb nálam.

Oh, mais bela, mais rica que eu.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Másodikat délben leltem,

Meio-dia, achei a segunda,

néma égő arany délben.

dia ardente de silêncio dourado.

Minden dél az övé most már,

São dela já os meios-dias,

övé nehéz tűzpalástja,

seu denso manto em chamas,

övé arany koronája,

sua grinalda de ouro,

minden dél az övé most már.

o meio-dia já lhe pertence.

JUDIT

JUDITE

Jaj; szebb nálam, dúsabb nálam.

Oh, mais bela, mais rica que eu.

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Harmadikat este leltem,

Anoitecer – achei a terceira,

békés bágyadt barna este.

sereno, lânguido pôr-do-sol.

Övé most már minden este,

É dela o crepúsculo agora,

övé barna búpalástja,

seu pesaroso manto moreno,

övé most már minden este.

o anoitecer lhe pertence.

JUDIT

JUDITE

Jaj; szebb nálam, dúsabb nálam.

Oh, mais bela, mais rica que eu!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Negyediket éjjel leltem.

Meia-noite – achei a quarta.

JUDIT

JUDITE

Kékszakállú, megállj, megállj!

Barba Azul, chega, chega!

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KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Csillagos,

Estrelada noite

fekete éjjel.

de ébano.

JUDIT

JUDITE

Hallgass, hallgass, itt vagyok még!

Calai, calai, ainda estou aqui!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Fehér arcod sütött fénnyel

Vosso rosto de brilho luar,

barna hajad felhőt hajtott,

Cabelo moreno sob céu límpido.

tied lesz már minden éjjel.

É vossa já a meia-noite,

Tied csillagos palástja.

seu manto estrelado.

JUDIT

JUDITE

Kékszakállú nem kell, nem kell!

Barba Azul, não o quero!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Tied gyémánt koronája.

Vossa é a grinalda de diamantes.

JUDIT

JUDITE

Jaj, jaj Kékszakállú,

Ai, Barba Azul,

vedd le.

tirai-ma!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Tied a legdrágább kincsem.

Vossa a minha mais preciosa jóia.

JUDIT

JUDITE

Jaj, jaj Kékszakállú, vedd le.

Ai, Barba Azul, tirai-ma!

KÉKSZAKÁLLÚ

BARBA AZUL

Szép vagy, szép vagy,

Sois bela, formosa,

százszor szép vagy,

beleza esplendorosa

te voltál a legszebb asszony,

fostes a mulher mais bela,

a legszebb asszony!

a mulher mais formosa!

Es mindég is éjjel lesz már...

E doravante será a noite eterna,

éjjel... éjjel...

a noite eterna… a noite eterna… Tradução: Emese Rasztovich

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Apollónia Szolnoki Meio-soprano

Tendo concluído a especialidade de Canto Lírico, em 2001, na Liszt Ferenc Zeneművészeti Egyetem, a célebre Academia de Música Liszt, de Budapeste, fez carreira no teatro lírico, com forte tradição em palcos da Hungria. Além da capital, várias cidades deste país recebem produções operáticas ou festivais dedicados à música erudita. Foi num festival, em Szeged, que interpretou Evita. Foi igualmente aí que cantou Carmen, pela primeira vez, no Teatro Nacional daquela cidade. A par disso, integrou o grupo de solistas da Magyar Állami Operaház, a Ópera Nacional de Budapeste. Encarnou o mais famoso papel feminino do repertório operático húngaro, Judite, em A Kékszakállú Herceg

Vára (O Castelo do Barba Azul ) – a única ópera de Béla Bartók –, no festival de Miskolc, um dos muitos personagens que figuram no seu já extenso currículo. Também foi Rosina, em Il Barbiere di Siviglia; Maddalena, em Rigoletto; Zweite Dame, em Die Zauberflöte; Fenena, em Nabucco; Lola, em Cavalleria Rusticana; Magdalena, em Die Meistersinger von Nürnberg; Sonietka, em Леди Макбет Мценского Yезда (Lady Macbeth do

Distrito de Mtsensk); Flora, em La Traviata; Tisbe, em La Cenerentola; Fidalma, em Il Matrimonio Segreto; e Marcellina, em Le Nozze di Figaro. Inúmeros cantores líricos mudam de registo vocal ao longo da carreira, e a voz desta notável artista não foi excepção: subiu de tom e ficou mais dramática. Papéis como o de Donna Elvira, em Don Giovanni – que chegou a interpretar no Miskolci Nemzeti Színház, o Teatro Nacional de Miskolc, no Csokonai Színház, Teatro Csokonai, de Debrecen –, o Compositor, em Ariadne aux Naxos, e Sieglinde, em Die Walküre, estão entre as suas dramatis personæ de eleição. Colaborou com o compositor Péter Eötvös na produção operática Le Balcon, no novo Palácio da Música em Budapeste, MüPA.

festival terras sem sombra

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Antal Cseh Baixo-barítono

Natural de Makó (1978), graduou-se na Faculdade de Música da Szegedi Tudományegyetem, a Universidade de Szeged, e completou a formação no Departamento de Canto Lírico da Liszt Ferenc Zenemű vészati Egyetem, de Budapeste, onde sobressaiu como aluno de Eva Andor e Balázs Kovalik. Participou em

masterclasses com Julia Hamari, Katalin Halmai, László Polgár, Renato Bruson, Yevgeny Nesterenko, Thomas Vásáry e Eva Marton. Presença regular no Szegedi Nemzeti Színház, o Teatro Nacional de Szeged, actua também com assiduidade na Magyar Állami Operaház, no Pécsi Nemzeti Színház – o Teatro Nacional de Pécs –, no Csokonai Színház, de Debrecen, e no Miskolci Nemzeti Színház – o Teatro Nacional de Miskolc –, entre outras salas de referência, dentro e fora da Hungria. Interpretou, nomeadamente, os papéis de Háry János (da ópera homónima de Zoltán Kodály), Figaro (Il Barbiere di Siviglia e Le Nozze di Figaro, de Mozart), Leporello/Masetto (Don Giovanni, de Mozart), Yevgeny Onegin (da ópera homónima de Tchaikovsky), o Holandês (Der Fliegende Holländer, de Wagner), Herr Reich (Die lustigen Weiber von Windsor, de Nicolai), Don Magnifico (La Cenerentola, de Rossini), Scarpia (Tosca, de Puccini), Dulcamara (L’Elisir d’Amore, de Donizetti) e Escamillo/Morales (Carmen, de Bizet). Foi distinguido com o Prémio Vaszy Viktor, o Prémio Szeged e o Prémio Dömötör ao melhor cantor de Ópera, tendo-se, outrossim, salientado em vários concursos internacionais e nacionais (Nikola Cvejics, Simándy József, Erkel Ferenc, etc.).

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András Rákai Piano

Formou-se em Piano no Conservatório de Szeged da Liszt Ferenc Zeneművészeti Egyetem, aperfeiçoando seguidamente os conhecimentos em Musicologia nesta mesma instituição, onde foi discípulo de Ilona Lucz, László Dobszay, György Kroó, László Somfai, András Batta e József Újfalussy. Pianista correpetidor e acompanhante, tem actuado em teatros, concursos e festivais internacionais, em particular na Hungria, com destaque para o Teatro Nacional de Szeged, o Teatro Nacional de Miskolc, o Teatro Bartók, de Dunaújváros, o Szeged Open-air Festival e a Armel Opera Competition. Trabalhou, entre outros, com os maestros e encenadores Anger Ferenc, Alföldi Róbert, Kovalik Balázs, Kerényi Miklós Gábor, Juronics Tamás, Kesselyák Gergely, Cser Ádám, Angyal Mária, Galgóczy Judit, Bodolay Géza, Pál Tamás, Silló István, Selmeczi György, Tornykői Attila, Novák Eszter, Béres Attila, Michael Sturm, Molnár László, Oberfrank Péter, Vincent Monteil Jan Bouws e Lukas Beikircher.

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Concerto V

SERPA

6 de Maio 21H30

A MINHA VOZ NA TUA PALAVRA: DA DEVOÇÃO POPULAR À POESIA DE SARAMAGO Kyrie – Petenera (Popular) Agnus Dei – Soleá (Popular) Cordero de Dios – Seguriya (Popular) Alegrías A ti regreso, mar – Garrotín (José Saramago) En esta esquina del tiempo – Tanguillos (José Saramago) Balada – Malagueña y Abandolaos (José Saramago) Dijeron que había sol – Soleá (José Saramago) Bulerías Cantaora Esperanza Fernández Guitarra Miguel Ángel Cortés Palmas e percussão Jorge Pérez “El Cubano” Palmas e percussão Dani Bonilla Palmas e percussão Miguel Junior

< Igreja matriz de Santa Maria [pormenor], Serpa. Escola portuguesa. Século XIV. Serpa.

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Praça da República Serpa

ANTÓNIO MARTINS QUARESMA

Assim denominada na sequência da instauração do regime republicano em Portugal, é um antigo e importante espaço da cidade de Serpa. Localiza-se intramuros da cerca fortificada medieval, mandada edificar pelo rei D. Dinis, e faz parte da rede, de traçado regular, que preenche a “vila nova” dionisina, acrescentada então à “vila velha”, o núcleo mais antigo. Na mancha urbana, a Praça era geometricamente central, mas ao longo da Idade Média não tinha características funcionais e simbólicas de centralidade. Datarão da fase tardia do período medieval algumas funções relacionadas com o poder concelhio; no entanto, a Praça revelava-se então, sobretudo, um espaço de comércio e de alguma habitação, ainda sem a componente política daquele poder, nas suas vertentes administrativa e judicial, nem a presença de outros lugares de escrivania, com os seus escrivães e tabeliães. Efectivamente, até à segunda metade do século XVII, a “casa da câmara e audiência” esteve no Adro de Santa Maria (hoje, Largo dos Santos Próculo e Hilarião), espaço nobre, onde se erguia a igreja de Santa Maria, edifício de grande prestígio, também perto da alcáçova, símbolo do poder régio, e em convívio com a própria memória da “vila velha”, núcleo fundacional de Serpa. A população assumia o carácter distinto deste espaço: questões importantes da vida local, que exigiam decisão em assembleia popular, eram discutidas no adro, como mostra a reunião do povo de Serpa, em 1368, destinada a regulamentar a exploração das “malhadas” dos apicultores, existentes na Serra de Serpa. À semelhança de outras cidades de Portugal, a Praça só tardiamente adquiriu o carácter de lugar central no tecido urbano, com valorização social incomparável, um pouco à maneira da plaza mayor espanhola. Por princípios do século XVII, um tombo dos bens concelhios faculta uma “imagem” da Praça. A ela afluíam directamente algumas das principais artérias – nomeadamente a Rua dos Fidalgos, a Rua Quente, a Rua dos Cavalos, a Rua do Governador (então dita Rua de Jerónimo Vaz Gago), a Rua da Porta de Beja e a “Rua da Porta de Moura, que passa pela cadeia” – e ligava-se às principais portas da vila – a Porta de Sevilha, a de Praça da República, Serpa. >

124 SERPA. PRAÇA DA REPÚBLICA


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Beja, a da Corredoura e a de Moura. A Praça articulava, portanto, os principais eixos de circulação e as portas da localidade. Continuava, no entanto, a possuir sobretudo função residencial e comercial. Ao fundo, entre a Rua dos Fidalgos e a Rua Quente, onde hoje está o edifício da Câmara, existiam uns “alpendres”, lugar de venda de hortaliças e fruta, e contíguos, do lado da Rua Quente, os “açougues de peixe e de carne”, ambos para abastecimento público e ambos pertencentes ao concelho. A mesma fonte histórica informa que na Praça, além de várias casas de habitação, se encontrava também um celeiro, no lado norte, e uma “casa da távola das sisas”, no lado sul, adquirida pouco tempo antes pela Câmara. Nesta, acomodava-se a repartição que tratava da sisa, imposto indirecto sobre transacções de móveis e imóveis, cuja arrecadação corria a cargo do concelho. Em inícios de Seiscentos, a Praça continha, pois, vários edifícios e “serviços” municipais, mas a “casa da câmara e das audiências” ainda ficava no Adro de Santa Maria. Décadas mais tarde, decerto num contexto em que a área de expansão dionisina se consolidava e ganhava prestígio social, concomitantemente com certa desqualificação da “vila velha”, a “casa da câmara” foi transferida para a Praça e instalada sobre a antiga estrutura porticada que abrigava os serviços de abastecimento público de alimentos. Seguramente, os “homens nobres da governança” tiveram nessa transposição um papel decisivo, pois a Praça usufruía daquilo que a “vila velha” não podia oferecer: dispunha de espaço para instalações municipais com amplitude e dignidade, condizentes com a nobreza da vila, até com a representação que esta tinha de si própria, e de um mais amplo cenário urbano e social, metáfora de um país restaurado e barroco. Levadas as obras a cabo, às custas do povo e sob a resolução da fidalguia, segundo reza a inscrição epigráfica anexa à pedra de armas aí colocada, as instalações concelhias terão sido transferidas para a Praça em 1675, aqui passando a realizar-se as “vereações” e as “audiências”. A citada pedra de armas marcou esse momento; embutida na parede, à entrada da Câmara, dá-lhe legitimidade e gravidade e lembra o empenho dos habitantes. A prisão, outra das atribuições municipais relacionadas com a componente judicial do poder concelhio, foi também, na primeira metade do século XIX, transferida da Rua da Cadeia para a Praça, onde esteve até ao século XX. Por meados do século XVIII, já a Praça granjeara a posição de centro da vida urbana. O edifício municipal, em que servia “a primeira nobreza da vila”, era considerado, na

Memória Paroquial (1758), de “boa magnificência e vistoso aspecto”. Ocupava toda a frente do lado nascente da Praça e apresentava uma extensa varanda corrida com grades de ferro, avançada à galeria; por baixo, a arcada de cinco grandes e fortes arcos, obra mais antiga, plausivelmente tardo-medieval, onde se encontravam os açougues,

126 SERPA. PRAÇA DA REPÚBLICA


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as pescadarias e um corpo da guarda. Em fotografias do século XIX, distinguem-se os arcos, já tapados, no edifício municipal, que foram mimetizados no pórtico que sustenta a varanda, aquando das obras efectuadas durante o Estado Novo. Ao crescente papel político da Praça, às suas funções e simbolismo civis, adicionava-se ainda o facto de fazer parte do percurso processional na festa de Nossa Senhora de Guadalupe, a grande devoção popular serpense, com especial passagem em frente da cadeia (resquício da tradicional cerimónia do bodo aos presos), que lhe emprestava uma certa dimensão religiosa. Não longe, ficava uma das igrejas medievais – a igreja de Santa Maria, matriz da terra –, de cujo adro herdou, de alguma forma, o papel e a atmosfera de “centro cívico”.

BIBLIOGRAFIA

Serpa, Arquivo Municipal de Serpa, Inv.º n.º A/E O, Tombo dos propios e direitos do conc.º desta Villa de Serpa (1625); Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Memórias Paroquiais, XXXIV, n.º 137 (1758); JOSÉ MARIA DA GRAÇA AFFREIXO, Memoria Historico-Económica do Concelho de Serpa, Coimbra, Casa Minerva, 1884 [ed. fac-simil., Serpa, Câmara Municipal de Serpa, 1984]; JOÃO CABRAL, Arquivos de Serpa (Câmara Municipal), Serpa, [s.n.], 1971; LUÍSA TRINDADE, Urbanismo na Composição de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013.

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A Voz mais Profunda para os Poemas mais Suaves

PILAR DEL RÍO

Costuma suceder que a poesia nasça para ser lida em silêncio, porventura com pausas não marcadas no poema, mas exigidas pela sensibilidade do leitor, impelido a fechar os olhos ou a contemplar o infinito de uma parede ou a paisagem que se abre sob as pinceladas de um quadro. A poesia é caprichosa, umas vezes fortalece a alma, outras insiste em medir a humana dimensão ou a consciência dos sonhos. Mais raramente, e é este o caso, requer uma voz que a ponha no ar. Esperanza Fernández aceitou o repto lançado por José Saramago ao escrever e, junto a grandes criadores, gravou com a voz mais funda do flamenco os poemas suaves do escritor português Mas a harmonia tornou-se possível e sabemos agora que Saramago sonha em flamenco com tanto duende e compasso como Esperanza cresce enquanto poeta ao cantar. Um concerto feliz para se ouvir como se lê poesia: fechando os olhos, contemplando o infinito de uma parede ou a paisagem que se abre sob as pinceladas de um quadro. Esperanza Fernández e José Saramago: um dueto inesperado que desterra sombras e põe beleza na terra de todos, a nossa íntima terra.

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Na Terra de Saramago

JUAN VERGILLOS

Uma Lisboa húmida e sombria é a terra de Saramago. Chove pertinazmente sobre as casas apinhadas, sobre as praças obscuras, sobre os negros corações dos viandantes. Parece o antípoda de Triana ou de La Caleta. E, no entanto, a malagueña de La Trini é contemporânea de Ricardo Reis. Também revelou negra alma essa malagueña quando pedia ao seu amor que lhe escrevesse “alguma vez, ao menos por compaixão”. Assim, uma melodia de La Trini serve a Esperanza Fernández, num dos momentos mais lúcidos deste recital, como veículo para a Balada em que Saramago pede, àquela que ama, que volte. Porventura, será este poema o mais flamenco de todos os do Nobel português, pela concisão e pelo carácter directo. E pela estrofe utilizada: a quintilha é, naturalmente, o poema dos fandangos de Málaga. O projecto de cantar, na “forma” flamenca, os poemas de José Saramago surgiu em Esperanza Fernández ao escutar o disco Nesta Esquina do Tempo/En Esta Esquina del

Tiempo, do cantautor valhecano Luis Pastor, do qual tomou a canção homónima, que a cantaora diz em ritmo de tanguillos. A ti regresso, mar/A ti regresso, mar é outro soneto, um garrotín muito contemporâneo, lírico e brincalhão, com algo de pregão cubano. Peça de inspiração hernandiana, Disseram que havia sol/Dijeron que había sol é uma soleá composta por José Miguel Évora em que assomam ecos de Morente, o grande cantaor de Miguel Hernández. Aqui, as faculdades melismáticas de Fernández brilham em todo o seu esplendor. Balada é uma malagueña de La Trini, segundo dizíamos, com um admirabilíssimo arranjo de Miguel Ángel Cortés. O número inclui também as melodias da jabera e os fandangos granadinos de Frasquito Yerbabuena. Traduzidos por Ángel Campos Pámpano, estes textos procedem d’Os Poemas Possíveis (1966), o primeiro livro de poemas de Saramago, excepto Disseram que havia sol, extraído de Provavelmente Alegria (1970). É de realçar, ainda, em consonância com o que ficou dito, que a primeira parte deste concerto, numa justa homenagem à tradição religiosa meridional, inclui alguns fragmentos da Missa flamenca: o Kyrie com a melodia da petenera de Niña de los Peines e o Agnus Dei por soleá e seguiriyas.

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[AD LITTERAM] A ti regresso, mar, ao gosto forte

A ti regreso, mar, al sabor fuerte

A ti regresso, mar, ao gosto forte

A ti regreso, mar, al sabor fuerte

Do sal que o vento traz à minha boca,

De la sal que el viento trae hasta mi boca,

À tua claridade, a esta sorte

A tu claridad, a esta suerte

Que me foi dada de esquecer a morte

Que me fue dada de olvidar la muerte

Sabendo embora como a vida é pouca

Aun sabiendo que la vida es poca

A ti regresso, mar, corpo deitado,

A ti regreso, mar, cuerpo tendido,

Ao teu poder de paz e tempestade,

A tu poder de paz y tempestad,

Ao teu clamor de deus acorrentado,

A tu clamor de dios encadenado,

De terra feminina rodeado,

De tierra femenina rodeado,

Prisioneiro da própria liberdade

Cautivo de la propia libertad

A ti regresso, mar, como quem sabe

A ti regreso, mar, como quien sabe

Dessa tua lição tirar proveito.

De esa tu lección sacar provecho.

E antes que esta vida se me acabe,

Y antes de que la vida se me acabe,

De toda a água que na terra cabe

De toda el agua que en la tierra cabe,

Em vontade tornada, armado o peito

En voluntad tornada, armaré el pecho

Nesta esquina do tempo é que te encontro

En esta esquina del tiempo es donde te encuentro

Nesta esquina do tempo é que te encontro,

En esta esquina del tiempo es donde te encuentro,

Ó nocturna ribeira de águas vivas

Oh nocturna ribera de aguas vivas

Onde os lírios abertos adormecem

Donde los lirios abiertos adormecen

A mordência das horas corrosivas

El dolor de las horas corrosivas

Entre as margens dos braços navegando

Bogando entre las márgenes de tus brazos,

Os olhos nas estrelas do teu peito,

Los ojos en las estrellas de tu pecho,

Dobro a esquina do tempo que ressurge

Doblo la esquina del tiempo que resurge

Da corrente do corpo em que me deito

Del móvil cuerpo de agua en que me echo

Na secreta matriz que te modela,

En la secreta matriz que te modela,

Um peixe de cristal solta delírios

Un pez de cristal suelta delirios,

E como um outro sol paira, brilhando,

Y como otro sol se cierne, brillando,

Sobre as águas, as margens e os lírios

Sobre el agua, las márgenes y los lirios

Disseram que havia sol

Dijeron que había sol

Disseram que havia sol

Dijeron que había sol

Que todo o céu descobria

Que el cielo se descubría

Que nas ramagens pousavam

Que en las ramas se posaba

Os cantos das aves loucas

El canto de las aves locas

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Disseram que havia risos

Dijeron que había risas

Que as rosas se desdobravam

Que las rosas se desdoblaban

Que no silêncio dos campos

Que en el silencio de los campos

Se davam corpos e bocas

Cuerpos y bocas se daban

Mais disseram que era tarde

Más dijeron que era tarde

Que a tarde já descaía

Que la tarde ya caía

Que ao amor não lhe bastavam

Que al amor no le bastaban

Estas nossas vidas poucas

Estas nuestras vidas pocas

E disseram que ao acento

Y dijeron que al acento

De tão geral harmonia

De tan general armonía

Faltava a simples canção

Le faltaba el simple canto

Das nossas gargantas roucas

De nuestras gargantas roncas

Ó meu amor estas vozes

Oh amor mío estas voces

São os avisos do tempo

Son los avisos del tiempo

Balada

Balada

Dei a volta ao continente

Di la vuelta al continente

Sem sair deste lugar

Sin salir de este lugar

Interroguei toda a gente

Interrogué a toda la gente

Como o cego ou o demente

Como el ciego o el demente

Cuja sina é perguntar

Cuyo sino es preguntar

Ninguém me soube dizer

Nadie me supo decir

Onde estavas e vivias

Dónde estabas o vivías

(Já cansados de esquecer

(Ya cansados de olvidar

Só vivos para morrer

Para morir sólo vivos

Perdiam a conta aos dias)

Perdían la cuenta a los días)

Puxei da minha viola

Tomé mi guitarra

Na soleira me sentei

En el umbral me senté

Com a gamela da esmola

Con el cuenco de limosna

Com pão duro na sacola

Con pan duro en la alforja

Desiludido cantei

Desengañado canté

Talvez dissesse romanças

Quizá dijeses romanzas

Ou cantigas de encantar

O cantigas de encantar

Aprendidas nas andanças

Aprendidas en las andanzas

Das poucas aventuranças

De las escasas venturas

De quem não soube esperar

De quien no supo esperar

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Andavam longe os teus passos

Andaban lejos tus pasos

Nem as cantigas ouviste

Ni las cantigas oíste

Vivias presa nos laços

Vivías presa en los lazos

Que faziam outros braços

Que hacían otros brazos

No teu corpo que despiste

En tu cuerpo que desvestiste

Quanto tempo ali fiquei

Cuanto tiempo me quedé

Sangrando os dedos nas cordas

Sangrándome allí los dedos

Quantos arrancos soltei

Cuántos ayes yo solté

Nesta fome que criei

De esta hambre que crié

Nem eu sei nem tu recordas

Ni yo sé si tu recuerdas

Porque nunca tos contei

Pues nunca te los conté

Até que um dia cansaste

Hasta que un día te cansaste

(Era pó não era monte)

(Era polvo no era monte)

Outra lembrança deixaste

Otro recuerdo dejaste

E nas águas desta fonte

Y en las aguas de esta fuente

A tua sede mataste

Tu sed viniste a matar

– Ó arco da minha ponte

–Oh arcada de mi puente Tradução: Ángel Campos Pámpano

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Esperanza Fernández Cantaora

Esperanza Fernández Vargas (Sevilha, 1966) representa a maturidade do cante trianeiro e sevilhano actual. A sua voz alcançou um nível magnífico, já que aos brilhantes agudos da juventude une, desde há alguns anos, uns graves líricos, comovedores. Uma voz fresca e profunda. Obscura e luminosa. Um timbre de coloridos harmónicos, tão característicos do jondo, absolutamente pessoal. Uma voz de ampla tessitura e intensos melismas. Além disso, a artista conhece à saciedade, como poucos, os segredos do

compás e as formas tradicionais de dizer o cante. Iniciou-se dentro do repertório do flamenco, ainda menina, no seio familiar: é filha do cantaor Curro Fernández e irmã do guitarrista Paco Fernández e do bailaor Joselito Fernández. Também assume, pelo lado materno, o compasso repousado de Lebrija. Com a família, formou o grupo Los Fernández, que actuou em inúmeros festivais flamencos andaluzes. Aos 16 anos de idade, apresentou-se, a solo, no espectáculo Amargo, de Mario Maya. Interpretou, a par de Enrique Morente, A Oscuras em 1994, o espectáculo com que se consagrou. Editou, igualmente a solo, os discos Esperanza Fernández (2001), Recuerdos (2007) e Mi Voz en Tu Palabra (2013). Da sua versatilidade dão boa conta as colaborações com músicos académicos, nomeadamente em versões de obras de Manuel de Falla, El Amor Brujo, La Vida Breve, ambas registadas em disco, e Siete Canciones

Populares Españolas. Participou na recuperação da ópera Margot, de Joaquín Turina. Fez, outrossim, a estreia de Epitafio e Nadie, de Mauricio Sotelo.

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Miguel Ángel Cortés Guitarra

Miguel Ángel Cortés Urbano (Granada, 1972), com a sua peculiar mescla de contundência e lirismo, ambas características do jondo, é o acompanhante ideal de Esperanza Fernández. O guitarrista situa-se no pólo oposto aos exibicionismos agora tão em uso. No toque que o caracteriza, não há espaço para o sensacionalismo, nem sequer para o engenho. A mensagem assume, na escolhida arte cortesiana, o que vemos, nem mais nem menos, acessível a todo o tipo de espectadores. Trata-se de um tocaor de pulsação segura e com uma variedade de recursos assombrosa. Mas todos eles estão ao serviço da mensagem. Trata-se de um intérprete versátil, capaz de acompanhar o cante, o baile, sendo igualmente um notável solista. Nesta última faceta, publicou três discos memo ráveis: Patriarca (1999), Bordón de Trapo (2006) e

El Calvario de un Genio (2013), dedicado à memória de Lorca. É um guitarrista humilde, no melhor sentido da palavra, um trabalhador, um artesão. Por isso é o guitarrista habitual de primeiras figuras do jondo, como Arcángel ou a própria Fernández, como no passado o foi do saudoso Enrique Morente.

Capela de Nossa Senhora da Conceição [pormenor]. Escola portuguesa. 1702. Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação, Serpa. >

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Concerto VI

FERREIRA DO ALENTEJO

27 de Maio 21H30

UM ESPAÇO COMUM: ASPECTOS DA TRADIÇÃO LÍRICA EM PORTUGAL E ESPANHA Antón García Abril [1933-] Cantiga de amigo (D. Sancho I) Antonio José Martínez Palacios [1903-1936] Maravillosos et piadosos (Afonso X, o Sábio) Joaquín Rodrigo [1901-1999] Serranilla (Marquês de Santillana) Salvador Bacarisse [1898-1963] Mira gentil dama (Garcia de Resende) Robert Gerhard [1896-1970] Por dó pasaré la sierra (Gil Vicente) Joaquín Nin-Culmell [1908-2004] ¿Por do pasaré la sierra? (Gil Vicente) Ro, ro, ro... nuestro Dios y redemptor (Gil Vicente) ¿Cuál es la niña que coge las flores? (Gil Vicente) Charles Gounod [1818-1893] Viens, les gazons sont verts (Y si dormís, doncella, Gil Vicente/Jules Barbier) Franz Schubert [1797-1828] Nächtens klang die süsse Laute (Cerca resuena el dulce laúd, Friedrich de la Motte Fouqué) Robert Schumann [1810-1856] Melancholie, op. 74/6 (Quién viese aquel día, Francisco Sá de Miranda/Emanuel Geibel) Hoch, hoch sind die Berge, op. 138/8 (La sierra es alta, Pedro de Padilla/Emanuel Geibel)

< Monumento funerário de João de Sousa e de Branca de Ataíde. Século XVI, inícios. Ferreira do Alentejo, igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção.

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Tief im Herzen trag’ ich Pein, op 138/2 (De dentro tengo mi mal, Luís de Camões/Emanuel Geibel) O wie lieblich ist das Mädchen, op. 138/3 (Muy graciosa es la doncella, Gil Vicente/Emanuel Geibel) Hugo Wolf [1860-1903] Klinge, klinge mein Pandero (Tengo vos el mi pandero, Álvaro Fernandes de Almeida/Emanuel Geibel) Bedeckt mich mit Blumen (Cubridme de flores, Soror Maria do Céu) Ernesto Halffter [1905-1989] Canção do berço (Branca de Gonta Colaço) Gerinaldo (popular) Ai que linda moça (popular)

Meio-soprano Helena Gragera Piano Antón Cardó

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Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção Ferreira do Alentejo

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

À memória de Armando Sevinate Pinto

Tudo indica que as origens da igreja de Santa Maria, matriz de Ferreira do Alentejo, ascendem à época da Reconquista. Terá sido erguida sob a égide da Ordem de Santiago, à qual a vila foi doada, por D. Sancho II, em 1233. Porém, a primeira referência a seu propósito surge no rol dos contributos, as “décimas”, das igrejas portuguesas, em 1320-1321; devia pagar 800 libras, “pela parte que nela tem o Mestre de S. Tiago”, mais 90 libras “pela vigairaria da dita igreja” e 80 libras “pelo temporal do dito lugar de Ferreira”. A soma de tudo era considerável, o que evidencia a importância da terra – no âmbito do Campo de Ourique, só as matrizes de Santa Maria, de Alcácer do Sal, e de Santiago do Cacém pagavam mais. Posteriormente, foi sede de uma das mais ricas comendas da milícia espatária. Esta igreja encontrar-se-ia implantada, decerto, no sítio ocupado pela actual, à ilharga de um velho caminho (depois, a estrada real, cujo traçado sofreu grandes ajustes durante a segunda metade do século XIX) que cruza Ferreira no sentido nascente-poente, ligando Beja e o âmago do Alentejo à orla litoral. Com o incremento da população, em particular na segunda metade do século XV, acabou por tornar-se exígua, o que levaria à sua ampliação, perto de 1500 – ou pouco depois. Já então tinha, como filiais, três lugares de culto: a capela curada de São Sebastião de Figueira (dos Cavaleiros), distante cerca de 9 km; e as ermidas de São Sebastião e de São Vicente, nas imediações da localidade. Sucessivas visitações da milícia santiaguista ao longo do século XVI, transcritas por Júlio Marques de Vilhena, permitem perspectivar a evolução do edifício e do acervo que consideramos. Revela-se particularmente elucidativa a visita levada a cabo, em 1510, por D. Jorge, duque de Coimbra e mestre das Ordens de Santiago e Avis. O seu meticuloso texto descreve uma igreja de planta escalonada, com capela-mor, nave, sacristia e alpendre; era “cuberta de telha cõ suas cimtas de caal”, estava “toda ameada d arredor e cayada” e tinha “amtre as ameas em rroda […] seis cubelletes ameados e cayados”. Isto corresponde a uma tipologia característica do Gótico Final, que se prolongou, entre nós, pelas décadas iniciais do século XVI.

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No que diz respeito a dimensões, a mole construída não se afastava da média das igrejas matrizes existentes em povoações de similar categoria da nossa região: a capela-mor media 7,5 varas (ca. 8,3 m) de comprimento por 5 varas e dois terços (ca. 6 m) de largura; a nave, 13 varas (ca. 14,3 m) por 7 varas e um terço (ca. 8 m); e a sacristia, quadrada, 2,5 varas (ca. 2,8 m) por outro tanto. Contudo, a riqueza ornamental, particularmente quanto ao interior, mostrava-se notável, denotando um esplendor pouco vulgar em tais lugares de culto. A capela-mor estava coberta por uma “abobada mujto bem lavrada”, com os “pegões (pilares) e arcos que fecham em cima (arcos torais) todos de pedraria”, sendo as “junturas de todallas pedras delles […] douradas e os arcos […] todos pimtados de pintura de jaspe”. Em contrapartida, o “arco gramde da emtrada della”, o arco cruzeiro, possuía “esteos de marmore cõ seus capitees muyto bem lavrados e dourados”; era “todo de pedraria[,] pintado de collores de jaspe e todas as jumturas das pedras douradas asy em fundo como em cima”. Muito forte em termos visuais, a complementaridade entre as superfícies guarnecidas a ouro e as que imitavam os efeitos da pedra (algo ainda visível, relativamente ao segundo aspecto, em Ferreira, na igreja da Misericórdia) originaria um ambiente cheio de vibração. Quer o frontal, quer as ilhargas do altar-mor encontravam-se revestidos por “azulejos boons e finos”; seriam importados de Sevilha, como indicam os fragmentos que apareceram durante as obras efectuadas na igreja, em 2013. Sobre a mesa do sacrifício, “hum retavollo muyto rico e muyto boom”, tendo ao centro a imagem, em madeira, de “nossa Senhora […] com o menino Jhesu no collo[,] pintada com sua coroa dourada na cabeça[,] muyta devota”; o Infante ostentava uma coroa idêntica. À direita, uma pintura “de matiz” (combinação de várias cores num todo, criando delicados efeitos) figurava “nossa Senhora com o menino Jhesuu ante sy como quando o ella pario”, isto é, a Adoração da

Virgem; à esquerda, “nossa Senhora do pranto”, a Lamentação sobre Cristo Morto; no meio, sotaposta à imagem principal, “huma charola ou capitel que chega atee cima do retavollo todo dourado e mujto rica”; tinha à dextra e à sinistra, respectivamente, o “amjo gabriell” e “nossa Senhora da saudação”. Rematava o conjunto “huu guarda poo de madeira pimtado d azull e com estrelas d ouro”. Além disso, “a bordadura do dito retavollo” era “toda dourada e mujto rica”, dispondo de “duas corrediças de canal delegado com que se cobre”, ou seja, cortinas que, na Semana Santa, do ano litúrgico, podiam deslizar e ocultar a parte superior do altar. Em suma, um políptico ao gosto

Igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção, Ferreira do Alentejo. >

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proto-renascentista, integrado numa estrutura de talha ainda concebida à maneira do Gótico Final. O sacrário, talhado em pedra e aplicado na parede do lado do Evangelho, obedecia a uma linguagem análoga. Tinha “portas de tavoado pimtadas d ouro e d azull e seu ferrolho com sua fechadura e chave e […] d arredor todo lavrado de maçonarya de pedra toda dourada e quebrada com sua bordadura de rrayos de soll d ouro e d azull”, o que tornava “muyto rico e muyto bem obrado”; por dentro, era “pintado d azull e d estrelas douradas”. No interior, sobre uma pedra de ara, guarnecida por corporais, guardava-se a custódia, em prata, com o Santíssimo Sacramento; era de “pee […] coadrado e lavrado de folhagem e o moete [?] do meyo isso mesmo lavrado de folhagem e a aste quadrada e a copa de cima rredonda de feição d espelho com duas vidraças de lavores dourados e em cima de todo huua cruzeta dourada”. Atribuiu-se-lhe origem remota: “he muyto antiga na dita jgreija e nom ha hijj memoria de quem a deu”. De acordo com os elementos tipológicos e decorativos mencionados, seria um ostensório característico do ocaso da arte gótica. Perto do sacrário, “huma alampada acesa muito booa”. Quanto ao “corpo” (nave) do edifício, apresentava “tres arcos fechados em cima (arcos torais) de pedra e cal e d alvenaria”, sendo “madeirada […] e […] toda cuberta do lintel de tavoado de pinho bem lavrado”, isto é, com um forro. Havia “dous altares emcostados ao arco da ousia” – portanto, colaterais. No “da parte direita” (Evangelho), estava “hum retavollo de tavoado com seu guarda poo todo pintado e no meyo a jmajem de samtiago a cavallo”, ou seja, Santiago Matamouros, tema clássico nas igrejas da Ordem de que era patrono; no “da parte esquerda” (Epístola), “outro retavolo de pao (madeira) com seu guarda poo bem pintado da emvocaçam do espiritu santo sobre os apostolos”, segundo correspondia à capela do Espírito Santo – uma devoção generalizada em finais da Idade Média –, cuja confraria se autonomizara, fundando ermida própria, pouco afastada da matriz. Junto à “porta travessa (lateral) da parte do sull”, erguia-se “huu pulpetto de pedraria muyto bem lavrado cõ sua escada d aluenarias”. “Acerqua (junto) da porta prmcipall”, ficava “ha pia de bautiçar[,] a quall he toda de huua so pedra muyto bem lavrada”. Tanto a porta da frontaria como as laterais eram “de pedraria bem lavradas”. Diante da portal existia “huu alpendre alto e ladrilhado com cimquo arcos d alvenaria e seus peitoris e degraus”, o qual era “olivellado (dotado de forro, como no interior) e bem cuberto de telha”. Outrossim “acerca da porta primcipall”, “da parte dereita[,] comtra o norte”, havia “huu campanario grande e boo, de pedra e caal[,] cõ dous sinos meaãos e de boa gramdura”. Circundava a igreja um adro espaçoso, descrito pelo visitador com precisão.

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“Fez e mandou fazer” todas estas obras João de Sousa, comendador de Ferreira, “aa sua propria custa e despesa[,] no que mostrou teer lembrança de sua allma e temer a deus pollas fimtas e rendas da dita jgreija que sempre levou”. Como se podia já intuir de reiteradas menções elogiosas aos trabalhos que constam da visitação, D. Jorge salientou tratar-se de um caso verdadeiramente modelar de cumprimento dos deveres associados à posse da comenda, algo que nem sempre ocorria em situações análogas: “cujo exempro os outros comendadores deviam seguyr e correjer as igreijas como este fez e nom as leixar jazer destroidas[,] comendo os fruytos e remdas dellas em grande dano e perigo de suas allmas[.] E pollo elle tambem fazer alem do merecimento que amte Deus tera para remissam de seus pecados he dino de muyto louvor amtre os presentes e de honrada e louvada memoria amtre os que depois vierem”.

João de Sousa [S ca. 1425 – X 1515], 4.º senhor de Gouveia, figura grada das cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, celebrizou-se pelos serviços prestados à Coroa, mormente em Castela e África. Moço de câmara do infante D. Fernando, 1.º duque de Beja, lutou, como capitão de ginetes, numa frustrada tentativa – a terceira empreendida pelos portugueses – de capturar Tânger (1464); na batalha de Toro, entre as hostes de D. Afonso V e as dos Reis Católicos, durante a luta pela sucessão ao trono castelhano (1476); na conquista de Granada, engrossando as forças ao serviço do rei Fernando de Aragão (1482); e em nada menos do que 18 pelejas em Marrocos, mormente algumas famigeradas operações de Anafé, Alcácer Ceguer, Ceuta e Arzila. Conselheiro de D. Afonso V e cavaleiro da Ordem de Santiago, teve nesta, além da comenda de Ferreira, as de Santa Maria da Represa e de Alvalade, com as rendas de Colos. D. Manuel outorgar-lhe-ia, em 1496, uma tença de 200 000 réis, como “pago e galardão” pelos serviços prestados à Coroa. Possuidor de cabedais em abundância, o longevo comendador, ao abeirar-se o fim de uma aventurosa vida, dispôs os meios necessários para erguer uma obra de vulto que, como referiu o mestre de Santiago, lembrando conceitos gratos à mentalidade coeva, lhe garantisse o serviço da alma e lhe perpetuasse a memória. Aquando da visitação, andaria pelos 85 anos. Não faltam, na história das ordens militares, outros exemplos de empresas artístico-devocionais similares, praticadas pelos comendadores; um caso a ter em conta, mais tardio, foi o de outro chefe militar, igualmente activo no teatro bélico africano, D. João de Mascarenhas [S 1470 – X 1555], comendador da vila santiaguista de Mértola, que iniciou em 1532 a ambiciosa reedificação da igreja de Nossa Senhora de Entre-Ambas-as-Águas, matriz desta localidade, juntando-lhe a

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encomenda de retábulos e outras alfaias – obras só terminadas, após a sua morte, pelo filho, D. Fernão Martins de Mascarenhas [S ca. 1520], no terceiro quartel do século. O acervo móvel da igreja de Ferreira não destoava da pujança arquitectónica e ficava a dever-se também, em larga medida, ao comendador e respectiva família. Sobressaíam as alfaias de ourivesaria, maioritariamente oferecidas ora por João de Sousa, ora pelo concelho, sendo a mais destacada a cruz paroquial, uma peça emblemática da comunidade, sufragada por ambos. Havia também um razoável pecúlio de “vestimentas e ornamentos”, entre os quais exemplares de alto preço, com tecidos da Flandres e do Oriente. Alguns foram doados pelo comendador; outros, pela filha mais nova deste, Joana de Sousa e Ataíde [S ca. 1470], esposa de Luís de Brito Nogueira [S ca. 1420]; outros ainda, por populares. Completavam tal património utensílios de metais não-nobres; João de Sousa ofertou vários de arame – uma liga de latão, ferro ou cobre –, incluindo as bacias colocadas sob as lâmpadas. Era também ele quem fornecia o azeite de alumiar o Santíssimo. “Dentro na dita igreija” estava sediada a Confraria de Nossa Senhora, “a qual ordenaram alguus bõos homees por devoção”, com a obrigação de celebrar “cada sabado huua misa de Nosa senhora a qual se disse sempre e diz”. Servia como mordomo, à data, Fernão Ledo. Este informou que a instituição não possuía quaisquer alfaias e vivia em exclusivo das esmolas dos confrades, registadas em livro próprio. Porém, administrava alguns bens, deixados a troco de ser perpetuamente rezado, na capela da irmandade, um certo número de missas por alma dos doadores, em dias de sua particular devoção. As visitações seguintes permitem acompanhar com pormenor a evolução da matriz e dos bens a ela pertencentes. Em 1534, os visitadores Álvaro Mendez, cavaleiro, e Afonso Rodrigues, prior da igreja de São Pedro, de Palmela, acharam o edifício em bom estado, com excepção do telhado, que, “mal corregido”, permitia que a chuva entrasse “per alguas partes”. Registavam-se inovações dignas de nota. Uma foi a capela baptismal, “feita d abobeda fechada com huas grades […] e nella esta huu altar metido na parede da parte do levante homde esta pimtado ho bautismo de Christo de matiz”; achava-se “ladrilhada e acafelada e apincelada de fora e de dentro e toda ameada ao redor”. Outra, a capela da “Resurreiçã de Nosso Senhor”, que ficava “jumto com ho altar do cruzeiro da parte do evangelho”; era “fechada d abobeda” e tinha “as chaves e represas de pedraria e ho arco […] armado sobre huus marmores de pedra com suas varas e capitees”; o altar, guarnecido de azulejos, possuía “huu retavollo da resurreiçam quando Nosso senhor pareçeo a Madalena muito bem pimtado d olio”. Esta capela tinha sido instituída por um morador de Ferreira, Álvaro Fernandes, já falecido, que a deixou bem patrimoniada, com a modesta obrigação anual de uma missa

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em benefício da sua alma, “aa homra do Sallvador”. Por alvará do mestre D. Jorge, dois outros moradores, os irmãos Pedro Eanes Pixeiro e João Pixeiro, foram autorizados a levantar uma capela própria, no espaço fronteiro a esta e de traça análoga. Para tal, assumiram uma série de obrigações, como a de mudarem a porta lateral aí existente e a escada do púlpito, o que ficou assente num instrumento de obrigação, datado do mesmo ano de 1534. O espólio de alfaias litúrgicas registava também novas aquisições – uma constante ao longo do século. Prosseguiam, mesmo após o desaparecimento de João de Sousa, as ofertas de Joana de Sousa e Ataíde, certamente grande devota da Virgem: “huu calez de prata dourada per partes e lavrado de ffeguras pello vaso muito bem obrado”, peça de feição renascentista; “dous fromtais […] huu do alltar moor e outro pera huu dos altares de cetim carmesim de Bruges afogueados de cetim bramco fforrado de pano d estopa branco”; particular sumptuosidade assumia “hua vestimenta cortejada de brocado de pello e de cetim carmesim com savastro de borcado caso (raso?) e franjado de retros verde forada de bocaxim preto de todo comprida”, tendo “detras no sovastro […] as armas de seu pay Joam de Sousa” – assinalando os visitadores que por “ser boa e riqua mandamos que se não diga misa com ella somente aas festas de Jhes u Christ o [e] de Nossa Senhora”. Também um prior da igreja, Afonso Limão, oferecera “hua vestimenta de pano da Judea azull com huũs passarinhos de fio com savastro de borcado […] de todo comprida”; o estatuto do doador era bem distinto do daquela figura de alta estirpe, pois a peça, sem dúvida preciosa, encontrava-se “ja usada”. Das várias determinações que os visitadores impuseram ao recebedor da fábrica da matriz que cumprisse, sob pesadas multas, no prazo de três meses, algumas dizem respeito a obras. Verificando que “na dita ygreja chovia asy na capella como por outras partes” e que “ho forro do corpo da ygreja […] estava muito daneficado por partes pella agua que chovia por elle”, ordenou-se que “mande telhar a dita ygreja muyto bem toda emsopada em cal e asy a samcristia e a capella da pia de bautizar em maneira que todo fique muyto bem comçertado” e “forrar a dita ygreja pellas partes que mais neçesario for de maneira que seja corregida de forro e telhado”, para o que compraria seis dúzias de “tavoado de castanho”. Como “pella escada do campanario os moços sobiam […] e danavam o telhado da ygreja”, ordenou-se que “mande fazer hua porta na dita escada […] a altura que for necesario”, a qual começaria “do pee da parede da escada sobre o qual botareo se ha d armar ho portall fechado com ha capella da pya de bautizar […]”, e teria “huu cano por homde lamçe agoa fora”; a porta seria de “boom tavoado de castanho com huu ferrolho[,] fechadura e chave para sempre estar fechada e desta maneira ficara o telhado sem lhe ser feito dano”. Junto do campanário, a água “fazia

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hua cova na parede”; ordenou-se que a mandasse entulhar “d argamasa de maneira que fique muito bem corregido e se dee saida a agoa que não faça dano”. Finalmente, visto que “a porta primçipall não tinha abito da ordem de Samtiago”, segundo determinava a regra da milícia, ordenou-se que a mandasse colocar, no prazo de um mês, o que mostra ser lacuna ainda mais grave. Túlio Espanca aludiu a uma visitação de 1544, que não consta do conjunto de documentos analisado por Marques de Vilhena, segundo a qual o edifício aguardava a finalização de obras, cujo desfecho se ia arrastando: sem cobertura e com o pavimento mal ladrilhado, não reunia condições para o culto. Breves anos decorridos, ainda segundo o mesmo investigador, houve novas mudanças: fora instalado um lavabo na sacristia e erguera-se o baptistério, como determinavam as orientações do Concílio de Trento, mas continuava a não existir alpendre, demolido por ordem do comendador (para remodelação?), e faltavam as grades dos altares do cruzeiro. Isto motivava críticas do povo, e o visitador deu-lhes sequência, ordenando que se pusesse tudo de novo, a expensas do prior, talvez por este não ter sido tão zeloso como lhe competia. Algumas pedras do lavabo e do púlpito, muito partidas, seriam achadas, em 2012, servindo de entulho, sob os degraus da escadaria do lado do sul. Por ocasião da visitação de 1554, a igreja já se denominava “Santa maria da Assumpsão”, título que reflecte a especialização do culto mariano. É, mais uma vez, descrita com minúcia, inclusive no tocante aos sinais de degradação entretanto acentuados. O retábulo-mor tinha sido modificado e ostentava “cinquo painéis”, surgindo o “emcoroamento ja velho e mal dourado”; além das figurações mencionadas, aparece agora referida, no banco, “a cea do senhor”, a Última Ceia. Quanto ao baptistério, salientou-se que tinha planta quadrada e era “d abobeda d alvenaria de sinquo chaves e represas (mísulas) de pedra d alvito”. A nave encontrava-se “mal aladrilhada […] por causa das sepulturas”. Do lado da Epístola, fronteira à capela da Ressurreição, ficava outra capela, com “hum altar d alvenaria forrado d azulleiios” e “sobre elle hum painel com a pintura da purificação”. Ocorriam vários problemas de degradação: as portas do portal principal, de castanho, estavam “muito veelhas”; o alpendre, com quatro arcos, não tinha a cobertura, notando o visitador que devia ser consertado “porque a igreia he pequena e a gemte muita”. Em dias de grande afluência, os fiéis que não cabiam na nave assistiam da galilé aos ofícios. A visitação de 1565, a cargo de D. Rodrigo de Meneses, fidalgo da casa d’el-rei, comendador de Cacela e da igreja de São Salvador, em Santarém, um “dos treze”, os conselheiros da mesa mestral da Ordem, e João Fernandes Barregão, prior da igreja de Nossa Senhora do Castelo, de Alcácer do Sal, reitera a impressão de que, à míngua de trabalhos especializados, o edifício se degradava inexoravelmente. Com efeito, o madeiramento

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da nave estava “per muytas partes […] quebrado”; a imagem de Santiago pintada no painel do retábulo da sua capela apresentava-se “muyto velha e guastada do tempo por muytas partes”; o altar da capela do Espírito Santo estava numa situação idêntica; as grades do cruzeiro encontravam-se “muyto velhas”, e os altares colaterais, “quebrados por muytas partes”; o campanário mostrava-se “muyto danificado”, tal como o baptistério contíguo; nesta capela e em outros pontos, havia telhas partidas, por causa dos moços que subiam pela escada da torre ou mesmo pelas paredes, a fim de tocar os sinos e fazer outras tropelias, não hesitando em pisar as coberturas, um problema reiterado, consoante vimos; a pia baptismal, de “pedra redonda muito mal obrada e velha”, disposta “sobre uma vasa da mesma pedra”, encontrava-se “muyto suja e desconsertada por na ygreja naõ aver tisoureiro e o prior estar muyto doente”. Em melhor situação, a sacristia tinha o inconveniente de ser “muyto pequena”, pois “não cabem os padres pera se revestirem”. Desta fonte colhem-se também valiosas achegas para a história do imóvel e da própria paróquia. A capela instituída por Pedro Eanes Pixeiro e João Pixeiro, sob a invocação de Nossa Senhora das Candeias, era administrada, à data, por Pêro Nunez e Manuel Pixeiro, aos quais cabia a obrigação de mandar celebrar, em cada ano, 30 e 20 missas, respectivamente. Confrarias, existiam três: a do Santíssimo Sacramento; a de Nossa Senhora, anexada à Santa Misericórdia, “por provizão de Sua Alteza” (o cardeal D. Henrique, na menoridade de D. Sebastião); e a de Nossa Senhora do Rosário. Outras referências permitem vislumbrar interessantes aspectos do espólio móvel, como o facto de o políptico da capela-mor ser constituído por “quatro paineis pequenos em que estão as histórias da saudação” – certamente explanando o ciclo iconográfico associado à

Annunciatio Beatæ Mariæ Virginis –, ou o de existir “huma jmagem de são estevão de vulto” no altar de Santiago. Mas reveste-se de particular importância a descrição da sepultura do comendador João de Sousa (ficou omitido, mais uma vez, o nome da esposa): “Achamos dentro na capela moor da banda do evangelho peguada com a parede huma sepultura de pedra marmore chãa erguida do chão tres palmos em a qual esta sepultado João de sousa comendador que foi desta villa o qual fez esta ygreia matriz e a mandou fazer [a] sua propria custa e despesa no que mostrou Ter lembramça de sua alma E da obrigação que lhe tinha pois comia a renda delas e deu exemplo aos outros comendadores[.]”

D. Diogo de Janeiro – ou de Gouveia, segundo Espanca –, prior-mor do convento da Ordem de Santiago, cónego da sé de Lisboa e membro do Conselho Real, fez a sua visitação em 1571. A vida litúrgica decorria na ermida do Espírito Santo, por a matriz

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“estar descuberta e se fazer obra nella”. Executava-se o respectivo “madeyramento”, seguramente a construção de um novo forro; a empreitada deve ter sido vasta, como atesta o facto de que “entre a sacristia que se ora fez e a capella que esta da mesma parte da samcristia ficou hum vaão que se fez em casinha de despejos”, dando o visitador instruções sobre o modo como devia ser paga esta intervenção. Considerou também que os portais recém-instalados ficavam demasiado perto do arco cruzeiro, “onde se assentaõ as mulheres” – durante as celebrações, exigia-se uma estrita repartição dos fiéis no espaço litúrgico, de acordo com o sexo, a idade e o estatuto –, o que trazia inconvenientes, “pella grande devassidão que na serventia dos ditos Portaes vay por ser onde se as ditas molheres assentão”; ponderada a situação, determinou que os mudassem “mais a baxo duas ou tres varas de medir, avendo opporttunidade e comunodidade [sic ] para iisto”. A igreja tinha então ao seu serviço, além do prior, dois beneficiados, que formariam uma pequena colegiada; e existiam seis confrarias: Nossa Senhora da Assunção, a titular da paróquia, de acordo com a especialização dos oragos marianos que se produziu ao longo do século XVI; Santíssimo Sacramento; Santo Nome de Jesus; São Sebastião; São Pedro; e Nossa Senhora do Rosário. Beatriz Filipe, “mulher que foi” de Jerónimo Luís, mandou erguer, em 1576, a capela desta última invocação, como atesta uma inscrição cujo desenho Júlio de Vilhena recolheu. No que concerne à localização, o edifício actual não diferirá muito, segundo indicámos, daquele que o precedeu, embora ocupe um perímetro bastante superior. Uma leitura atenta permite identificar nele duas amplas campanhas de reconstrução. A primeira, em inícios do século XVIII, consistiu numa obra ab fundamentis, que aumentou substancialmente a envergadura do imóvel, de maneira a corresponder ao crescimento do número de fregueses; o cronograma no fecho do portal principal, sob a pedra de armas da Ordem,

1714 A[nno] (ou A[nnos]) –, indica que terá sido concluída por esta data. O segundo grande ciclo de trabalhos, com projecto de um jovem arquitecto da capital, José Gabriel Pinto Coelho [S Lisboa, 1936 – X id., 1996], estendeu-se de 1960 a 1965, quando estava à frente da paróquia o P.e José Mendes de Alcobia [S Pias, Ferreira do Zêzere, 1914 – X Ferreira do Alentejo, 2003]. Esta intervenção, custeada pelo povo de Ferreira e realizada numa época em que ainda se permitiam extensas liberdades quanto à adaptação de monumentos históricos, teve o mérito de salvar o conjunto da ruína e preservar, em linhas gerais, a sua traça, mas introduziu amplas modificações e levou à perda de importantes valores patrimoniais. A reabertura ao culto deu-se a 31 de Maio de 1965, numa cerimónia presidida pelo bispo de Beja, D. José do Patrocínio Dias. Entre uma e outra empreitadas, houve algumas intervenções dignas de registo. Várias fotografias da primeira metade do século XX mostram o alçado principal encimado por

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um frontão mistilíneo, característico da segunda metade do século XVIII, ao gosto rococó. Nelas se distingue igualmente a torre do relógio, propriedade do concelho, que foi adicionada ao campanário, em 1828-1830. Meado o século XIX, surgiriam outras mudanças. As mais destacadas prenderam-se com a construção da nova estrada de Beja a Sines, cuja passagem pelo interior da vila causou transformações substanciais na estrutura urbana. Marques de Vilhena deixaria um elucidativo testemunho a este respeito: “A praça formava um quadrilatero formado pelo lado do poente pelas costas da Igreja Matriz com os terrenos adjacentes, que eram do lado do sul das mesmas costas, um quintal com porta para a Praça e do lado do norte pelo adro da Igreja[,] que era separado da Praça por uma parede que não teria mais de 1 metro e 50 centimetros de altura, à qual parede chamavam os pedreirinhos. A parede que do lado da Praça formava os Pedreirinhos seguia, depois de fazer canto, até defronte da Rua Longa e ali, fazendo canto também, dirigia-se até à torre do relógio. O espaço compreendido nestas trez paredes e em todo o lado norte da Igreja era o Adro […]. Este […] comunicava com a Rua que vinha da Praça e seguia pela Rua dos Frades, por uma ponte de ferro, em frente da parede sul do Espirito Santo, e em frente dessa porta [sic] de ferro, ao fundo[,] atravessado o Adro, estava a porta lateral da Matriz[,] que também servia para entrada e saida dos fieis, assim como servia a outra porta lateral que dava para a Rua de João Lopes e de que era separada pelo lageado. O Adro estava plantado e chegou a servir de passeio. Ali se fez iluminação e festa quando casou o rei D. Pedro V [1858].”

Foi assinalável o impacto da construção da infra-estrutura viária: “A estrada […] demoliu as paredes do Adro e[,] nivelando este com a Praça[,] foi abrir cortando em diagonal alguns prédios que haviam sido alinhados com a Rua de frades, a nova rua de Sines. Desde então a matriz perdeu toda a sua originalidade primitiva, ficando um edifício desgracioso e ainda mais depois que lhe arrancaram o belo lageado em frente da porta principal e que seguia por todo o lado do Sul.”

Lembremos que a Praça é a actual Praça do Comendador Infante Passanha; a Rua Longa, a Rua Capitão Mouzinho; a Rua dos Frades, a Rua de Miguel Bombarda; a Rua de João Lopes, a Rua do Visconde de Ferreira do Alentejo; e a Rua de Sines, a Rua 5 de Outubro. Também o âmago do monumento recebeu “beneficiações”. Em 1858, procedeu-se à pintura da capela-mor e ao douramento das colunas do retábulo do seu altar. Em 1881

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ou 1882, quando Vilhena integrava um dos Governos fontistas, obteve de Ernesto Hintze Ribeiro, ministro das Obras Públicas, um subsídio para o conserto dos telhados, muito deteriorados; ter-se-lhes-á dado, então, a invulgar elevação que é perceptível nas referidas fotografias. Em 1898, a Junta de Paróquia encomendou ao pintor João Eloy Amaral, de Setúbal, uma tela a óleo, representando A Assunção de Nossa Senhora, cópia de célebre composição de Nicolas Poussin (que transitou das colecções reais para o Museu do Louvre), destinada ao retábulo-mor; custou 150 000 réis, 50 000 dos quais foram pagos pelo visconde de Ferreira do Alentejo, José Joaquim Gomes Nobre de Vilhena. O artista setubalense decorou com composições parietais outros sectores do edifício – destruídos aquando das obras do tempo do P.e Alcobia. Em 1904, deram entrada na matriz as imagens da igreja de Nossa Senhora da Luz (ou da Natividade), paroquial de Vilas Boas, cuja freguesia fora extinta; e, em 1906, veio a “capela de madeira”, ou seja, a máquina retabular do seu altar principal, que ficou na antiga capela de São João Baptista. Em 1908, a capela-mor recebeu um pavimento de mosaicos e uma grade de ferro, executada por José da Rocha Moreira, mestre ferreiro da localidade. Talvez tenha sido também ele o autor da grade que protegia o resquício da plataforma elevada do velho “eirado”, patente em fotografias antigas. Ante tantas modificações, Júlio Marques de Vilhena não pôde deixar de registar a sua consternação: “Visitei a Igreja Matriz em Maio de 1919 e em nada se parece com a Matriz descrita nas Visitações do século 16º. As muitas reconstruções, o desaparecimento completo das antigas riquezas, e outras causas, converteram o templo numa casa pobríssima que[,] exceptuada a lapide de João de Sousa, nada tem de apreciavel sob o ponto de vista arqueológico e artistico. Do antigo templo creio restarem somente a pequena Capela, onde está a Pia de Baptismo[,] e uma outra, tapada e que dá, pela Sacristia, comunicação interna para o pulpito. O altar de S. João Batista, que era do lado do norte, está convertido noutro em que puzeram a ornamentação que estava no altar mór de Vilas-Boas. O pobre João Batista[,] espulso do seu lugar[,] está na Sacristia da Igreja. Do lado oposto, onde, na minha infância, conheci S. Luiz e S. Bráz[,] fes-se, por intenção e à custa do Padre José Benedito Moreira, em 1884, uma Capela dedicada ao Santissimo Sacramento. Os santos também foram desterrados para a Sacristia. […] A Capela das Almas foi demolida recentemente, depois do advento da Republica.”

Esta capela ficava do lado da Epístola, confinando com a actual Rua do Visconde de Ferreira do Alentejo. Ao prolongar-se na direcção desta artéria, formava um recanto.

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Desde 1896 que certo cidadão, de seu nome António Avelino Soares de Sousa, à data vogal da Junta da Paróquia, insistia na necessidade de a cortar, mas a obra foi sendo sucessivamente adiada – na aparência por escassez de orçamento, na prática porque não faltava, decerto, quem se opusesse à mutilação (os Maldonado, da Quinta de São Vicente, que tinham um familiar aí sepultado?). Em reunião de 3 de Junho de 1909, a Junta insistiu em levar a cabo tal intento; na respectiva acta, diz-se que o recanto da capela, “até há pouco tempo, apenas servia de ourinol, mas […] ultimamente serve de deposito de todas as immundicies e porcarias e até de retrete, havendo ocasiões em que ali sae um fetido insuportavel”, e prejudicava o trânsito numa rua “que é da maior circulação nesta villa”, pelo que foi assente demolir o pequeno edifício “antes de virem os calores”, decisão aprovada por unanimidade. Mas só a 3 de Junho de 1911, já após o fim da Monarquia, a facção do “bota-abaixo” ganhou força para impor, finalmente, o projecto. Quando se fez a escavação, descobriram-se muitas ossadas, entre elas as do Licenciado Diogo Galvam, identificadas pela respectiva lápide sepulcral, mais tarde vendida a um particular, que a aplicou numa soleira de uma casa sua. Em 1912, a Junta construiu uma casa no terreno que ficou devoluto (seria demolida nas obras de meados do século XX, tal como a torre do relógio). Nos anos seguintes, realizaram-se pequenos trabalhos em vários sectores da igreja. Um deles consistiu no revestimento da frontaria com uma decoração rusticada, visível em fotografias das décadas de 1920-1940, mas que não se aprecia, ainda, numa imagem apensa ao texto de Marques de Vilhena. Tratava-se de uma fórmula de pendor antiquarizante, que estivera em voga muito antes; podiam encontrar-se soluções parecidas, por exemplo, em Beja, na igreja de São Salvador ou nas duas torres, a da paróquia e a da Câmara, contíguas à igreja de Santa Maria da Feira. Em 15 de Fevereiro de 1941, um ciclone varreu Ferreira, danificando com gravidade as coberturas da matriz. Seria preciso esperar mais de uma década, porém, como vimos, para que se procedesse à sua reconstrução. De certo modo, as palavras menos abonatórias de Vilhena acerca do interesse histórico e artístico do monumento serviriam para caucionar uma intervenção que fez tabula rasa de muitos valores patrimoniais. O edifício, de planta orientada – segundo determina a tradição –, longitudinal e escalonada, é composto, hoje, por nave e capela-mor, a que se adossam, do lado do Evangelho, a torre sineira e anexos e, do lado oposto, a antiga capela do Santíssimo Sacramento, a sacristia e um outro núcleo de dependências, cuja construção implicou o sacrifício de três capelas laterais e do baptistério, que correspondia a uma quarta capela. Na frontaria, enquadrada por pilastras e rematada pela empena triangular, abre-se um portal de pilastras duplas, tendo o entablamento sotopostas, nas extremidades, duas avantajadas volutas em

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forma de vieira, que glorificam a cartela central, com as armas da Ordem de Santiago. O campanário, de alçado definido por pilastras de cantaria e coroado nos ângulos por pináculos piramidais, termina numa cúpula (com as obras dos meados do século XX, encastrou-se-lhe um relógio). Sobre a cúpula da ex-capela do Santíssimo avulta um lanternim, de invulgar solução arquitectónica, porventura já de finais do século XIX. Reconhecemos, no essencial dos traços expostos, uma tipologia barroca de marcada austeridade, ainda vinculada ao “estilo chão”, que João Antunes, arquitecto das Ordens Militares, e os seus epígonos replicaram, de modo sistemático, ao serviço da Mesa da Consciência e Ordens, em igrejas das milícias de Santiago e de Avis. No desenho dos alçados e da torre sineira, vislumbram-se os ecos de fórmulas tardo-seiscentistas que aquele mestre – ou quem lhe sucedeu – fixou numa espécie de “planta-modelo”, depois adaptada às circunstâncias em diversos pontos da geografia dos domínios santiaguistas. O espectacular portal principal, elemento de sabor quase experimentalista, talvez desenhado pelo próprio Antunes, tirando partido do potencial da escultura arquitectónica, representa praticamente a única nota sumptuária de um conjunto que prima pelo despojamento. Mais discreto, o portal lateral virado ao meio-dia merece também atenção. É no interior, porém, que se tornam mais perceptíveis as marcas de tal metamorfose. A cobertura da nave, em abóbada de canhão, dividida em cinco tramos por arcos-diafragma, insinua um padrão setecentista, mas a sua modernidade não deixa margem para dúvidas (substituiu um tecto de madeira, em três planos). Desapareceram os retábulos de talha dourada e policromada. O da capela-mor, a avaliar pela iconografia que chegou até nós, constituía um apreciável exemplar de feição rococó, ao gosto da época de D. Maria I. Foi substituído por um novo, de cantaria, em forma de livro aberto, folie característica dos anos 50, em cujo centro se colocou o painel alusivo ao orago. Foi também removida a teia, feita de boa madeira e com balaústres em pedra. Data da mesma transformação o coro alto. Este acolheu, já em 2003, um órgão de tubos, construído em 1962 para uma igreja reformada da Noruega; quando cessou nela o culto, algures na década de 1990, dispersaram-se as suas alfaias (o instrumento foi adquirido na Alemanha). Isto constituiu o retomar de uma antiga tradição, pois a matriz possuiu, até ao século XIX, um órgão. Há notícia de uma provisão outorgada a Pedro Luís, em 1609, para exercer o cargo de organista, “com o ordenado anual de 6.000 réis pagos à custa da comenda e com obrigação de ajudar aos ofícios divinos” (Júlio Marques de Vilhena). Apesar das grandes alterações, o arco e os muros da capela-mor e os arcos das capelas laterais remanescentes conservam as notáveis cantarias de lavor classicista, dos inícios de Setecentos, e não, como ponderara Túlio Espanca, ainda do tempo do reinado de

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D. Sebastião. Na parede do lado do Evangelho da capela-mor, sobressai, aparentemente em lugar idêntico ao que tivera na igreja quinhentista, o monumento funerário de João de Sousa e de sua esposa, Branca de Ataíde [X ca. 1430] – um dos mais belos testemunhos, pela epigrafia e pela escultura, da arte aplicada da época manuelina que subsistem no Alentejo. Espanca descreveu-o assim: “O túmulo, com longa inscrição de caracteres góticos, está sotaposto aos brasões de armas dos donatários, esculpidos graciosamente na heráldica da tradição inglesa, em pedra rosada da região de Lisboa, metidos em quadros emoldurados por cordame e rosetões, sendo o de D. João Sousa em escudo esquartelado das quinas de Portugal e de leão rompante, assente sobre um manto da Ordem de Santiago, e sobrepujado de capuz, em forma de laço, e o de D. Branca de Ataíde em escudo de lisonja partido das armas do marido e das dela, as cinco barras de Ataídes.”

Lavrada em elegantes caracteres de tradição gótica, a inscrição, com carácter panegírico, revela-se igualmente notável na sua extensa prosopografia, evocando os aspectos cimeiros da actividade guerreira de João de Sousa (sobre a mulher, nem uma linha além do seu nome e do nome do pai): 1Aqui:

jaz: o muito: honrado: s[e]n[h]or: ioha[m]: de sousa: e a muito: honrada: sen[h]ora:

bra[n]qua: de taide: sua: molher: fi/2lha: do muito: onrado: io[ham]: de: taide: sen[h]or: de pena:coua: o cual: yo[h]a[m]: de sousa: e filho: de martim afom[so]: de sousa: / 3e: neto: d outro: m[ar]t[i]m: afom[so]: de: sousa: q[ue]: era: p[ri]mo: co[m]: irmaõ: d el rei: dom: ferna[n]do: de: purtugall: ho: qual: io[h]am: de / 4sousa: nu[n]ca: fez ero: ne[m]: vileza: ao: se[nh]or: ne[m]: amiguo: criado: d el rei: dom: afom[so]: ho: qui[n]to: e do: s[e]n[h]or imfa[n]te: se/5u: irmaõ: seus: s[e]n[h]or[es]: e por: seruico: de d[eo]s: e delles: anbos: seus: s[enho]res: e por: onra: do reino: foi: e[m] dozoito: pell[e]ias: / 6de: mouros: nas: p[ar]tes: d alem: mar: e nas: peleias: foi ferido: de sete feridas: e foi: cercado: tres vezes: hua: em / 7cepta: e duas: e[m]: alcacere: ho[n]de: foi: ferido: duas: vezes: de feridas: mortaes: ho[n]de: se oue: ta[m]: be[m]: e ta[m]: es/8forcada:me[n]te: nos: ditos: cercos: q[ue] n[e]m [h]o[m]: q[ue]: nelles: fose: se: na[m]: ouue: milhor: e foi: na guera: co[m]: el: rei: do[m] anrique / 9de: castela: em gra[na]da: onde: se: ouue: mui: bem: desafia[n]do: se: co[m]: hu[m] mouro: sobre: a fee: onde: se: ouve ta[m] be[m]: e ta/ 10m: esforcada: me[n]te: q[ue]: ho desbaratou: e foi: moito: louuado: de todos: os: castellanos: q[ue]: ai: era[m]: p[re]sentes: foi: na to/ma11da: d alcacere: ee d arzilla: e de taniere: e na destruiça[m]: d anafe: foi: e[m]: duas batalhas: ca[m]paes: com / 12el rei: dom: afom[so]: ho quinto: rei:

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de castella: e de purtugall: seu: senhor: e servio: ta[m]: be[m] q[ue]: ne[m]: hu[m]: q[ue]: c[om]: elle: fose: ho ser/13uio: milhor: asi: na guera: co[n]tinoa: como: na batalha: q[ue]: houue: c[om] el rei: dom: ferna[n]do: ho aguardou: e seruio /

14tam

bem q[ue]: n[em]

hu[m]: o aguardo[u]: ne[m]: seruio: millor: q[ue] elle: e ta[m]: be[m]: foi: co[m]: o infante: seu: s[e]n[h]or: na e[n]trada: de taniere: onde foi: fe/15rido de morte:*

Tanto as sugestões de cordames que delimitam os campos em que estão inseridos os escudos heráldicos e a própria lisonja como as rosetas dispostas nos cantos superiores são características do Manuelino, cuja feição se aprecia, outrossim, no elemento mais imponente do conjunto – o estilizado hábito, aberto e suspenso, com uma borla a coroar o seu ápice, da Ordem de Santiago. É uma referência fundamental, mas ainda não suficientemente divulgada, do corpus documental desta milícia. Na igreja, guarda-se um estimável núcleo de obras de arte, que inclui duas pinturas a óleo sobre madeira, figurando São Francisco de Assis e São Luís, Bispo de Tolosa, peças do ciclo maneirista eborense, de inícios do século XVII, talvez provenientes da arruinada igreja de Vilas Boas. Outra tábua, já dos alvores do Barroco – datará de meados do século XVII –, representa a Natividade de São João Baptista e terá pertencido a um retábulo lateral da própria matriz. No que toca à escultura, destacam-se as imagens, em madeira policroma, de São João Baptista e de Nossa Senhora da Piedade, dos séculos XVI e XVII, respectivamente, assim como um Cristo Crucificado, do século XVIII, também oriundo de Vilas Boas. Entre os espécimes de ourivesaria, sobressaem a custódia-cálice e a cruz processional da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, trabalhos seiscentistas, e o relicário do Santo Lenho e uma lâmpada de alumiar, setecentistas. A antiga capela da Ressurreição foi enriquecida, em 2012, por ocasião da abertura do Ano da Fé, com a pintura, a óleo sobre tela, que evoca A Descida de Cristo à Mansão dos Mortos, obra de António Paizana [S Mação, 1941].

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

TÚLIO ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; [JÚLIO MARQUES DE VILHENA], Ferreira do Alentejo: Documentos para a sua História, ed. org. por MARIA JOÃO PINA, I e III, Ferreira do Alentejo, Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, 2004 e 2008; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, A a Z. Arte Sacra da Diocese de Beja, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2006; ÁLVARO DUARTE DE ALMEIDA & DUARTE BELO (dir. de), Portugal – Património. Guia-Inventário, IX, Beja-Faro, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006.

* Na transcrição, substituímos os três pontos originais por dois pontos.

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Entre o Amor Divino e o Amor Humano ANTÓN CARDÓ

“O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos, nem a paz fecunda do casal. Não é o amor satisfeito mas sim a paixão do amor. E paixão significa sofrimento.” DENIS DE ROUGEMONT, O Amor e o Ocidente

Desde tempos antigos que se manifestam grandes laços entre a lírica poético-musical, fundidos de maneira natural. Os primeiros cancioneiros medievais continham poemas líricos escritos para serem cantados a cappella, juntamente com outros que possuíam música a acompanhá-los; os respectivos autores são galegos, portugueses ou castelhanos – a escola galaico-portuguesa – de inspiração estilística trovadoresca ocitana-provençal ou moçárabe (Cantigas de Santa Maria ou de Amigo ) e de conteúdo profano ou religioso, não obstante as distintas vicissitudes históricas entre os dois países, ao longo das suas extensas e prolixas relações político-sociais. Já a primeira canção do nosso programa, com música de Antón García-Abril [S Teruel, 1933-], toma por fundamento uma Cantiga de Amigo de D. Sancho I, dito o Povoador [S Coimbra, 1154 – X id., 1211], rei de Portugal, que cultivou a leitura e a poesia em ambas as línguas; era filho de D. Afonso Henriques, o primeiro monarca português, que era, por seu turno, filho de D. Henrique de Borgonha e de D. Teresa de Leão. Casou com D. Dulce de Aragão, filha de D. Raimundo IV, conde de Barcelona e príncipe de Aragão, todo um melting pot medieval. A música mostra, além de excepcional respeito pelo texto, perfeita adequação à cadência poética, graças a uma marcada e poderosa figura em ostinato de carácter jâmbico, que alterna, muito coerentemente, na voz e no piano. Um emotivo preito à Virgem, Maravillosos et piadosos, abre a sequência de três Cantigas

de Santa Maria, de D. Afonso X, o Sábio [S Toledo, 1221 – X Sevilha, 1284], filho de D. Fernando III e de D. Beatriz de Suábia, bisneto de D. Afonso VIII, fundador do Real Mosteiro de las Huelgas, de Burgos, e autor de umas 420 Cantigas. O culto a Santa Maria, de tradição jacobeia e influência aquitana, evidencia-se primordialmente nas

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suas invocações à Virgem Branca, metáfora (ou interpretação) do sumo apreço que a mulher merecia aos trovadores provençais. Ele próprio conspícuo trovador, D. Afonso X teve grande cuidado em captar e assimilar a devoção mariana, outorgando à incipiente língua castelhana, com as Cantigas, uma das jóias literárias mais apreciadas da época. Antonio José Martínez Palacios [S Burgos, 1903 – X Estépar, 1936], compositor ligado à Geração de 27 – e publicado pela editora Max Eschig, de Paris –, tão interessante quão injustamente esquecido, dedicou-lhe esta subtil e assaz sensível obra silábica, mediante um trabalho de elaboração harmónica que se destaca pelo quase ostinato e pela progressão acórdica no seu tratamento do piano. Frente à poesia “popular” ergueu-se, no século XV, a poesia artificiosa dos autores cultos, os quais consideravam aqueles cantares próprios do povo como um género ínfimo, adequado a paladares de “baixa e servil condição”, nas palavras de Íñigo López de Mendoza [S Carrión de los Condes (Palência), 1398 – X Guadalajara, 1458], 1.º marquês de Santillana. O tema da Serranilla, peça lírica de origem popular, trata, numa sugestiva fusão estilística, do encontro de um caminhante com uma moça do campo, que, depois de seduzi-lo, o ajuda a encontrar o caminho perdido na serra. Este poema deu lugar, segundo Félix Lavilla, a uma das melhores canções de Joaquín Rodrigo [S Sagunto, 1901 – X Madrid, 1999], prodígio de cinzelado harmónico-rítmico na sua adequação e recriação da música da época.

Mira gentil dama é a segunda das Tres Canciones Medievales, op. 67, de Salvador Bacarisse [S Madrid, 1898 – X Paris, 1963], membro do Grupo de Madrid ou de Los Ocho, a Geração de 27. Tem acompanhamento de piano e harpa e foi publicada, em 1970, pela Unión Musical Española. O texto é o de um poema do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende [S Évora, 1470 – X id., 1536], editado por Eduard H. von Hauser, em Estugarda, no ano de 1852. Trata-se de um canto do enamorado à amada, no qual o instrumento idealizado, a harpa ou o alaúde, desfia um harpegiado de acordes sob a declamação do canto. Com Gil Vicente [S ca. 1465 – X ca. 1536], encontramo-nos diante do primeiro grande dramaturgo português (escreveu também em castelhano) e extraordinário poeta, além de músico, actor e director teatral. A sua extensa obra representa a passagem da Idade Média para o Renascimento, ao mesmo tempo que valoriza elementos populares, intercalando nos diálogos canções de invulgar graça e musicalidade, graças a uma sábia e depurada estilização, influenciando deste modo a cultura popular portuguesa, v.g., através de farsas de costumes e tragicomédias; conta igualmente com outras peças de feição religiosa, entre elas os Autos, recebendo a influência de Juan de Encina, bem patente nas peças vicentinas em castelhano.

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Reflexos de tudo isto são os Tres Poemas de Gil Vicente, de Joaquín Nin-Culmell [S Berlim, 1908 – X Berkeley, 2004], Joaquinito, como lhe chamava Manuel de Falla, do qual recebeu, segundo ele mesmo confessou, sábios conselhos acerca da identidade da música espanhola. Estas canções foram dedicadas ao pai, o exímio pianista e compositor Joaquín Nin Castellanos [S Havana, 1879 – X id., 1949]. Nin-Culmell revelou-se também brilhante pianista, tendo estudado com dois dos mais destacados cultores do instrumento: Alfred Cortot e Ricardo Viñes; de Paul Dukas, recebeu aulas de composição. A trilogia revela, na sua brevidade quinta-essencial, grande variedade de carácter.

¿Por dó pasaré la sierra?, o primeiro desses poemas, seria igualmente musicado por Robert Gerhard [S Valls, Tarragona, 1896 – X Cambridge, 1970], outro gigante da música peninsular, infelizmente pouco conhecido, entre várias causas, pelo forçado exílio em Inglaterra (Cambridge). Aluno de Pedrell, Granados e do mesmíssimo Arnold Schönberg – para o qual procurou refúgio em Barcelona, ante a perseguição nazi –, colega e amigo íntimo de Alban Berg e Anton Webern em Viena, foi admirado por Benjamin Britten, que lhe encomendou um concerto de piano para o célebre festival de Aldeburgh. Tal circunstância afigura-se ainda mais extraordinária por se tratar de alguém que, nas palavras de Jesús López Cobos, é, a par de Falla, o melhor compositor espanhol do século XX e um dos pioneiros das vanguardas musicais e da música electrónica. A sua canção oferece uma deliciosa evocação dos devaneios amorosos entre o caminhante e a bela serrana, mediante uma linguagem baseada na bitonalidade em ambas as mãos do piano e nuns faiscantes choques harmónicos de 2.ª e/ou 9.ª menor, que realçam um fraseado entre o legato e o staccato, formando um impulso rítmico irresistível. Fecha o primeiro bloco deste concerto uma sublime versão romântica de Charles Gounod [S Paris, 1818 – X Saint-Cloud, 1893], inspirada noutro famoso poema de Gil Vicente,

Y si dormís, doncella, conhecido especialmente pelas versões de Robert Schumann (Spanisches Liederspiel, op. 74 como n.º 2, duetto para tenor e baixo) e de Hugo Wolf (lied n.º 27 de Spanisches Liederbuch: Und schläfst du, mein Mädchen, na tradução de Emanuel Geibel). A canção de Gounod, Si tu dors, jeune fille, situa o título do original no primeiro verso, intitulando a sua mélodie como Viens! Les gazons sont verts!, numa medíocre tradução edulcorada, ao gosto da sensibilidade oitocentista do Second Empire, realizada por Jules Barbier. O trecho pertence à célebre farsa vicentina Quem Tem Farelos? O segundo bloco do programa centra-se na influência dos textos de origem ibérica (ou sobre temática ibérica) no Lied, dentro da esfera do Romantismo germânico. É notável o número de poemas com origem em Espanha e Portugal e que foram traduzidos para a língua alemã. Franz Schubert [S Himmelpfortgrund, 1797 – X Viena, 1828] compôs em 1813, quando tinha 16 anos, um miniciclo, Don Gayseros. O texto procede de uma

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obra do barão Friedrich de La Motte Fouqué, Der Zauberring (O Anel Mágico), vinda a lume em 1813, e relata a história de certa dama, Doña (ou Donna) Clara, a qual se enamora de um galante cavaleiro árabe. De acordo com a trama convencional que inclui um conflito religioso, o cavaleiro é assassinado pelos irmãos de Clara. A música e a construção do lied preludiam o seu futuro e magistral estilo. Esta canção supõe a segunda parte da trilogia e sugere uma bela serenata cantada à dama pelo cavaleiro, que era, na realidade, um rei mouro, e inclui ainda uma imitação do alaúde medieval, a cargo do piano, por intermédio de uma figura rítmica em tresillos sincopados a contratempo com um baixo em ostinato pontuando o discurso com notas negras em ¾. Francisco Sá de Miranda [S Coimbra, 1481 – X Amares, 1558], poeta e dramaturgo, escreveu na língua natal e em castelhano. Um dos máximos introdutores do Petrarquismo em Portugal, relacionou-se com Ariosto através da insigne poetisa Vittoria Colonna e aglutinou em torno de si inspirados criadores, sendo protegido por D. João III. Robert Schumann [S Zwickau, 1810 – X Endenich, Bona, 1856] inspirou-se num dos seus pomas em Melancholie, o segundo lied de Spanisches Liederspiel, op. 74 (1849), em sombria tonalidade de Ré menor; trata-se de uma sarabanda solene com saltos na linha melódica que simbolizam o temperamento meridional (Dietrich Fischer-Dieskau). Na verdade, Schumann acentua, através do incessante cromatismo do piano e dos amplos saltos interválicos da voz, a dor e a solidão a que o poema alude. Um outro lied igualmente encantador (e encantatório), sob o título La sierra es alta, destinado a uma voz de contralto, é arquetípico do melos do compositor de Zwickau, de grande emotividade na sua tonalidade de Mi bemol maior. O texto, neste caso, deve-se a Pedro de Padilla [S Linares, 1540 – X Madrid, >1599], religioso da Ordem Carmelita, muito louvado por Lope de Vega no Laurel de Apolo e também por Miguel de Cervantes, que o elogia no Don Quijote. Ambos os originais foram traduzidos por Emanuel Geibel. Seis meses após a primeira colecção, ainda em 1849, Schumann completou nova incursão aos poemas hispano-portugueses com Spanische Liebeslieder, op. 138, escrevendo, então, o acompanhamento para quatro mãos, ainda que tenha efectuado, mais tarde, outra versão para um só pianista, editada, postumamente, em 1860. Nesta, convergem dois grandes autores portugueses do Renascimento: Gil Vicente e Luís Vaz de Camões. Em Tief im Herzen trag’ich pein, o mestre germânico compôs um breve lied de grande densidade e tensão dolorosa, empregando a tonalidade de Sol menor, acentuada pelo cromatismo de acordos diminuídos, em tom com o poema de Camões [S Lisboa?,

ca. 1524 – X Lisboa, 1580], De dentro tengo mi mal, registo já patente em dois dos seus primeiros versos: En lo hondo de mi corazón llevo una pena, que de fuera no hay

señal pertence às Rimas, publicadas por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, em 1953.

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O segundo lied, sobre poema de Gil Vicente, possui, na sua brevidade estrófica, um registo expressivo diferente, agora alegre, garboso e apaixonado. Trata-se de O wie

lieblich ist das Mädchen, escrito, como o anterior, em língua castelhana: Muy graciosa es la doncella, ¡cómo es bella y hermosa! Faz parte do Auto de la Sibila Cassandra. Robert Schumann tomou a liberdade de repetir quatro vezes o primeiro verso do poema no início de cada estrofe musical. Na obra magna de Hugo Wolf [S Slovenj Gradec, 1860 – X Viena, 1903], com 44 lieder, 10 religiosos e os restantes profanos – dos quais, pelo menos, 13 estão inspirados em poemas de autor português –, surge com veemência a figura absolutamente imprescíndivel de Johann Nikolaus Böhl de Faber [S Hamburgo, 1770 – X Cádis, 1836], cônsul da Hansa hamburguesa nesta cidade, onde reuniu um círculo artístico cujos membros admiravam e professavam o ideário dos românticos alemães da época, com os irmãos Schlegel à cabeça. Böhl tinha a sua própria tribuna literária em El Diario Mercantil. Reuniu diversos poemas numa obra de tomo, Floresta de Rimas Antiguas Castellanas, publicada em três volumes, em Hamburgo, na língua original, com a chancela da livraria de Perthes e Besser (1821, 1823 e 1825, respectivamente). A colectânea seria o detonador do Cancionero que, uma vez traduzido para o alemão, por Paul Heyse e Emanuel Geibel, se converteria num dos pontos altos do Lied através do génio e do trabalho febril de composição wolfianos. É interessante assinalar que Geibel colaborou, na qualidade de filólogo, com outro hispanista, o barão Friedrich von Schack, numa publicação cujo título fala por si mesmo: Romanzero

der Spanier und Portugiesen. Klinge, klinge mein Pandero é a versão alemã de Tango vos, el mi Pandero, poema do português Álvaro Fernandes de Almeida, um autor quinhentista, e a fonte citada por Böhl de Faber é o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. O maravilhoso lied de Wolf funda-se numa irresistível rítmica espanhola: uma negra em tremolo mais quatro colcheias no piano, num alarde inaudito de semicolcheias cromáticas de grande bravura e síncopes anelantes na mão esquerda, na tonalidade de Sol menor. Do mesmo compositor, apresentamos um segundo lied, o extraordinário Bedeckt mich

mit Blumen (Cubridme de flores, no original). Após ter sido programado, anos a fio, como poema anónimo, Margaret G. Sleeman e Gareth A. Davies, em Variations on Spanish

Themes (1982), salientaram que se deve à religiosa portuguesa Sóror Maria do Céu, também autora da obra teatral Clavel y Rosa. Hoje sabemos que escreveu aquele texto

ca. de 1740. A peça de Wolf possui um clima pseudotristanesco que o associa ao seu admirado Wagner, devido ao cromatismo e às progressões harmónicas, utilizando em

ostinato um esquema rítmico lento de seis negras num compasso de 6/4, denso, de atmosfera cintilante, digno dos cantos de Isolda no que se refere ao melos da voz.

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O mestre austríaco viria a incluí-lo, uma vez orquestrado, na inacabada ópera Manuel

Venegas, baseada na novela El Niño de la Bola, de Pedro Antonio de Alarcón. Ernesto Halffter Escriche [S Madrid, 1905 – X id., 1989], discípulo predilecto de Manuel de Falla, teve uma relação estreita com Portugal. Casou, em 1928, com a pianista Alice Câmara Santos, e Lisboa converteu-se na sua pátria adoptiva; assumiu o cargo de professor de música no Instituto Español desta capital, tendo ficado fascinado com o rico património popular e artístico luso. Fruto de tão grande paixão foram sete belas canções, seis delas populares, e a não menos interessante Rapsodia Portuguesa para Piano y Orquesta (1937-1940). A Canção do Berço pertence à sua primeira época lisboeta; evidencia grande refinamento e emotividade no recurso a uma escrita simples e diatónica, sobre um poema de Branca de Gonta Colaço [S Lisboa, 1880 – X id., 1945]. Utilizou um tema musical de origem popular, recolhido por Alexandre Rey Colaço [S Tânger, 1854 – X Lisboa, 1928], a primeira das Cantigas de Portugal, cancioneiro popular que serviria de base às Seis

Canciones Portuguesas, compostas por Halffter em 1940-1941. Gerinaldo faz parte desta colecção; trata-se de uma incursão no romanceiro tradicional, em que se narram as coitas amorosas de um pajem com uma infanta, perdoando-lhe o rei o atrevimento, por ser um súbdito apreciado ao seu serviço e, alfim, oferecendo-lhe a mão da filha. A língua portuguesa inspirou profundamente o compositor, pois a canção é outro prodígio de sensibilidade e beleza, escrita com um ar renascentista arcaizante, no qual as vozes do discurso musical fluem em contraponto livre, na tonalidade de Mi bemol menor. Ressalta notavelmente o estilo musical com “ar português”, evidenciando uma assumida simplicidade de linhas, em contraste, por exemplo, com o das canções francesas, de inaudita complexidade de escrita e profundo cromatismo de corte faureno ou pós-romântico, nos antípodas das anteriores. “Sou um grande admirador do fado, pela sua profunda e bela essência popular, inimitável e que exprime tão bem a marcada personalidade do povo português”, declarará Halffter em 1986. Ai que linda moça, porventura a canção mais conhecida e interpretada do mestre, paralelamente a La corza blanca, sobre poema de Rafael Alberti [S El Puerto de Santa María, 1902 – X id., 1999], plasma à perfeição essa declaração de intenções. Escrita em 1940, utiliza um tema do fado, em que transparece o lânguido e entristecido estribilho vocal Tudo são tristezas, muito sehnsuchtsvoll ou nostálgico, na gíria liederística. Constitui uma sofisticada canção com um tema principal em anacruz e um fraseado articulado em jeito de suspiros (2+2 com notas de semicolcheias), já patente na introdução do piano – tal como a subtil variação no poslúdio –, que se mostra ao mesmo tempo recolhido e desenvolto, evidenciando uma maneira bela e arrebatada no arco do cantabile melódico vocal.

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[AD LITTERAM] Cantiga de amigo

Cantiga de amigo

¡Ai, eu, ai, eu,

Ai, eu! Ai, eu,

Coitada, como vivo en gran coidado

Coitada, como vivo em grã’ cuidado

Por meu amigo, que hei alongado!

Por meu amigo, tão afastado!

¡Muito me tarda o meu amigo na Guarda!

Muito me tarda o meu amigo na Guarda!

¡Ai, eu, ai, eu,

Ai, eu! Ai, eu,

Coitada, como vivo en gran desexo

Coitada, que vivo em grã’ desejo

Por meu amigo, que tarda e non vexo.

Por meu amigo, que tarda e não vejo.

¡Muito me tarda o meu amigo na Guarda!

Muito me tarda o meu amigo na Guarda!

Maravillosos et piadosos

Maravilhosos e piedosos

Maravillosos et piadosos

Maravilhosos e piedosos

Ei mui fremosos miragres faz

E mui formosos milagres faz

Sancta Maria a que nos guía

Santa Maria, a que nos guia,

Ben noit’e dia e nos da paz.

De noite e de dia, dando-nos paz.

E d’est’ un miragre vos contar quero

Sobre um milagre contar-vos quero

Que en Frandes aquesta Virgen fez

Que na Flandres aquesta Virgem fez,

Madre de Deus, maravillos’ e fero

Madre de Deus, maravilhoso e fero,

Por hûa dona que foi hûa vez

A uma dona que lá foi uma vez.

Serranilla

Serranilha

Moça tan fermosa non vi en la frontera,

Moça tão bela não vi na fronteira

Como una vaquera de la Finojosa.

Como uma vaqueira lá na Finojosa.

Faciendo la via del calatraveño

Vencido p’lo sono, andava e ia

A Santa María, vencido del sueño.

Por Calatrava até Santa Maria.

Por tierra fragosa perdí la carrera,

Em terra fragosa a carreira perdi

do vi la vaquera de la Finojosa.

Mas vi a vaqueira lá na Finojosa.

En un verde prado de rosas e flores

Lá num verde prado de rosas e flores,

Guardando ganado con otros pastores,

Guardando seu gado, com outros pastores,

La vi tan graciosa que apenas creyera

Não podia crer, tão graciosa a vi,

Que fuese vaquera de la Finojosa.

Que fosse só vaqueira lá da Finojosa.

Non creo las rosas de la primavera

Não creio que as rosas duma primavera

Sean tan fermosas ni de tal manera,

Sejam tão formosas, nem de tal maneira,

Fablando sin glosa si antes supiera

Falando sem glosa, se antes soubera

De aquella vaquera de la Finojosa.

Daquela vaqueira lá da Finojosa.

Non tanto mirara su mucha beldad,

Seguiria mirando sua grã beldade,

Porque me dexara en mi libertad.

Se ela me deixara em mi’ liberdade.

Mas dixe: Donosa (por saber quién era,

Mas disse: “Donosa!” (sabendo quem era

Aquella vaquera de la Finojosa).

Aquela vaqueira lá da Finojosa).

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Bien como riendo dixo: Bienvengades,

Ela rindo disse: “Com bem venhais,

Que ya bien entiendo lo que demandades:

Que eu bem entendo o que demandais.

Non es deseosa de amar, ni lo espera,

Não deseja amor, nem sequer o espera

Aquesa vaquera de la Finojosa.

Aquesta vaqueira cá da Finojosa.”

Mira gentil dama el tu servidor

Vê, gentil dama, o teu servidor

Mira gentil dama el tu servidor,

Vê, gentil dama, o teu servidor,

Como está tan triste con tanto dolor.

Como ‘stá tão triste, com tanta dor.

Mira que merezo no ser desamado

Vê que não mereço ser tão desamado

Ni tan olvidado pues tanto padezo.

Nem tão olvidado, pois tanto padeço.

Y pues con dolor mi vida te llama.

É com muita dor que mi’ vida te chama.

Mira gentil dama, el tu servidor.

Vê, gentil dama, o teu servidor,

Pues tu hermosura causó mi dolor,

Pois tua formosura causou minha dor.

Mira mi tristura y tu disfavor.

Vê minha tristura e teu desfavor.

No trates peor el que más te ama,

Não faças pior àquele que mais t’ama!

Mira gentil dama el tu servidor.

Vê, gentil dama, o teu servidor.

Por dó pasaré la sierra

Por onde passarei a serra

¿Por do pasaré la sierra,

Por onde passarei a serra

Gentil serrana morena?

Bela serrana morena?

Tu ru ru ru la, ¿Quién la pasará?

Tu ru ru ru lá, quem a passará?

Tu ru ru ru ru, no la pases tú.

Tu ru ru ru ru, não a passes tu!

Tu ru ru ru re, yo la pasaré.

Tu ru ru ru rei, eu a passarei!

Di, serrana por tu fe,

Diz-me, serrana, de bo’ fé,

Si naciste en esta tierra.

Se nasceste nesta terra,

¿Por do pasaré la sierra,

Por onde passarei a serra,

Gentil serrana morena?

Bela serrana morena?

Ti ri ri ri ri, queda tú aquí,

Ti ri ri ri ri, fica-te por aquí!

Tu ru ru ru ru, ¿Qué me quieres tú?

Tu ru ru ru ru, que me queres tu?

To ro ro ro ro, que yo sola estó.

To reu reu reu reu, tão só estou eu.

Serrana, no puedo, no,

Serrana, não posso, nã’ posso eu

Que otro amor me da guerra.

Que outro amor me dá guerra.

¿Cómo pasaré la sierra,

Como passarei a serra,

Gentil serrana morena?

Bela serrana morena?

Ro, ro, ro...

Riu, riu, riu…

Ro, ro, ro...

Riu, riu, riu…

nuestro Dios y Redemptor,

nosso Deus e Redentor,

¡no lloréis que dais dolor

não choreis, que fazeis dor

162 FERREIRA DO ALENTEJO . IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO


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a la Virgen que os parió!

à Virgem que vos pariu!

Ro, ro, ro...

Riu, riu, riu…

Niño, hijo de Dios padre,

Nino,1 filho de Deus Padre,

padre de todas las cosas,

padre de todas as cousas,

cesen las lágrimas vuesas

cessai vossas lágrimas,

no llorará vuestra madre

não chorará vossa madre,

pues sin dolor os parió,

pois sem dor vos pariu.

Ro, ro, ro...

Riu, riu, riu…

¡No le deis vos pena, no!

À Virgem que vos pariu,

Ro, ro, ro...

riu, riu, riu…

nuestro Dios y Redemptor,

tirai a pena, Redentor

¡no lloréis que dais dolor

e nosso Deus, que fazeis dor

a la Virgen que os parió!

chorando à que vos pariu!

Ro, ro, ro...

Riu, riu, riu…

Cuál es la niña que coge las flores

Qual é a menina que colhe as flores

¿Cuál es la niña

Qual é a menina

que coge las flores

que colhe as flores

si no tiene amores?.

se não tem amores?

Cogía la niña

A menina colhia

la rosa florida.

a rosa que floria.

El hortelanico

O hortelanito

prendas le pedía

prendas lhe pedia

si no tiene amores

e não tinha amores.

Viens, les gazons sont verts

Está verde o relvado

Si tu dors, jeune fille,

Menina, se dormes,

Debout, debout! voici le soleil!

Levanta-te! Vê o sol nascente!

Chasse de tes yeux l’indolent sommeil!

Tira dos teus olhos o sono indolente!

C’est l’heure du réveil!

Está na hora! Acorda!

Suis moi, vive et gentille!

Segue-me, viva e fagueira!

Pieds nus, viens! Les gazons sont verts!

Está verde o relvado! Anda, descalça!

Les ruisseaux jaseurs par les bois déserts

Nos bosques vazios a conversa passa

Promènent leurs flots clairs!

Passeando nas ondas claras das ribeiras. Tradução: Ruy Ventura 1 Forma diminutiva de “Menino” usada em algumas zonas do Alentejo.

festival terras sem sombra

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Nächtens klang die Süße Laute

Próximo soava o doce alaúde

Nächtens klang die Süße Laute

Próximo soava o doce alaúde

Wo sie oft zu Nacht geklungen,

Como em tantas outras noites soara,

Nächtens sang der schöne Ritter,

Perto cantava o galante cavaleiro,

Wo er oft zu Nacht gesungen.

Onde tantas vezes à noite cantara.

Und das Fenster klirrte wieder,

E a janela rangeu outra vez,

Donna Clara schaut’ herunter,

Dona Clara debruçada,

Aber furchtsam ihre Blicke

Porém, temerosa, os seus olhos

Schweiften durch das tau’ge Dunkel.

Perscrutavam o escuro à sua volta.

Und statt Süßer Minnelieder,

E em vez de doces canções de amor,

Statt der Schmeichelworte Kunde

Em vez dos galanteios do seu amado,

Hub sie an ein streng Beschwören:

Lançou uma súplica lancinante:

sag, wer bist Du, finstrer Buhle?

Diz quem és tu, sinistro amante?

Sag, bei Dein’ und meiner Liebe,

Diz-me por mercê do teu e meu amor,

Sag, bei Deiner Seelenruhe,

Diz, pela paz da tua alma,

Bist ein Christ Du, bist ein Spanier?

És um cristão, és um espanhol?

Stehst Du in der Kirche Bunde?

És um religioso?

Herrin, hoch hast Du beschworen,

Senhora, bem alto protestaste,

Herrin, ja, Du sollst’s erkunden,

Senhora, sim, tu tens que o saber,

Herrin, ach, ich bin kein Spanier,

Senhora, eu não sou espanhol,

Nicht in Deiner Kirche Bunde.

Nem um religioso.

Herrin, bin ein Mohrenkönig,

Senhora, sou um rei mouro,

Glüh’nd in Deiner Liebe Gluten,

Pelo teu amor ardendo de paixão,

Groß an Macht und reich an Schätzen,

Grande em poder e rico em tesouros,

Sonder gleich an tapferm Mut.

Mas também em ânimo corajoso.

Rötlich blühn Granadas Gärten,

Avermelhados florescem os jardins de Granada,

Golden stehn Alhambras Burgen,

Dourados erguem-se os castelos de Alhambra,

Mohren harren ihrer Königin -

Os mouros aguardam a sua rainha –

Fleuch mit mir durch’s tau’ge Dunkel.

Foge comigo nesta escuridão enevoada.

Fort, Du falscher Seelenräuber,

Vai-te, tu, falso ladrão de almas,

Fort, Du Feind! - Sie wollt’ es rufen,

Vai-te, tu, inimigo! – quis ela gritar,

Doch bevor sie Feind gesprochen,

Porém, ainda inimigo não dissera

Losch das Wort ihr aus im Munde.

E a palavra não conseguiu balbuciar.

Ohnmacht hielt in dunkeln Netzen,

Desfalecido, o seu belo corpo,

Ihren schönen Leib umschlungen.

Em negros laços envolvido fica,

Er alsbald trug sie zu Rosse,

Ele, rápido, pousa-a no alazão,

Rasch dann fort im mächt’gen Flug.

Iniciando uma veloz fuga. Tradução: Maria das Dores Galante de Carvalho

164 FERREIRA DO ALENTEJO . IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO


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Melancholie

Melancolia

Wann, wann erscheint der Morgen,

Quem vira aquel’ dia

Wann denn, wann denn,

quando, quando, quando

Der mein Leben löset

saísse a minha vida

Aus diesen Banden!

de tão grande bando!

Ihr Augen, vom Leide

Ai, meu triste olhar,

So trübe, so trübe!

tão triste, tão triste,

Saht nur Qual für Liebe,

viste grão pesar

Saht nicht eine Freude,

e um prazer não viste;

Saht nur Wunde auf Wunde,

viste acrescentada

Schmerz auf Schmerz mir geben,

à pena tormento

Und im langen Leben

e à vida dilatada

Keine frohe Stunde.

nunca bom momento!

Wenn es endlich doch geschähe,

Se à minha sorte aprouvesse agora

Daß ich säh’ die Stunde,

chegar hoje a morte

Wo ich nimmer sähe!

mesmo nesta hora!2

Hoch, hoch sind die Berge

A serra é bem alta

Hoch, hoch sind die Berge,

A serra é bem alta

Und steil ist ihr Pfad;

e áspera de escalar.

Die Brunnen sprüh’n Wasser

Os regos correm água,

Und rieseln ins Kraut.

à cidreira vão dar.

O Mutter, o Mutter,

Madre, minha madre,

Schön Mütterlein du!

de corpo tão garrido,

Dort, dort in die Berge,

por aquela serra

Mit den Gipfeln so stolz

com o lombo erguido

Da ging eines Morgens

numa manhã ia

Mein süßester Freund.

o meu lindo amigo;

Wohl rief ich zurück ihn

com mi’ touca chamei-o

Mit Zeichen und Wort,

e com meus dedos cinco…

Wohl winkt’ ich mit allen

Os regos correm água

Fünf Fingern zurück

e à cidreira vão dar.2

Die Brunnen sprüh’n Wasser Und rieseln ins Kraut.

Tief im Herzen trag’ ich Pein

Cá dentro tenho meu mal

Tief im Herzen trag’ ich Pein,

Cá dentro tenho meu mal,

Muß nach außen stille sein.

que fora não dá sinal.

2 Versão a partir do original em castelhano.

festival terras sem sombra

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Den geliebten Schmerz verhehle

Minha nova e doce q’rela

Tief ich vor der Welt Gesicht;

é invisível à gente:

Und es fühlt ihn nur die Seele,

alma minha só a sente,

Denn der Leib verdient ihn nicht.

o corpo é indino dela.

Wie der Funke frei und licht

Como ‘ma viva centelha

Sich verbirgt im Kieselstein,

se esconde no pedregal,

Trag’ ich innen tief die Pein.

cá dentro tenho o meu mal.3

O wie lieblich ist das Mädchen

Que graciosa é a donzela

O wie lieblich ist das Mädchen,

Que graciosa é a donzela,

Wie so schön und voll Anmuth!

como é bela e formosa!

Sag mir an, du wackrer Seemann,

Dize lá tu, ó marinheiro,

Der du lebst auf deinem Schiffe,

que pelas naves vivias,

Ob das Schiff und seine Segel,

se a nave ou a vela ou a ‘strela

Ob die Sterne wohl so schön sind?

é tão bela?

Sag mir an, du stolzer Ritter,

Dize lá tu, ó cavaleiro,

Der du gehst im blanken Harnisch,

que tuas armas vestias,

Ob das Roß und ob die Rüstung,

se o cavalo ou as armas ou a guerra

Ob die Schlachten wohl so schön sind?

é tão bela?

Sag mir an, du Hirtenknabe,

Dize lá tu, ó pastorinho,

Der du deine Herde weidest,

que o gadito vais guardando,

Ob die Lämmer, ob die Matten,

se o gado ou os vales ou a serra

Ob die Berge wohl so schön sind?

são tão belos?

Klinge, klinge mein Pandero

Tanjo-vos eu, meu pandeiro

Klinge, klinge, mein Pandero,

Tanjo-vos eu, meu pandeiro,

Doch an andres denkt mein Herz.

tanjo-vos, mas penso n’ al.

Wenn du, muntres Ding, verständest

Se tu, pandeiro, soubesses

Meine Qual und sie empfändest,

da minha dor e a sentisses,

Jeder Ton, den du entsendest,

o barulho que farias

Würde klagen meinen Schmerz.

seria choro do meu mal.

Bei des Tanzes Drehn und Neigen

Quando tanjo est’ instrumento

Schlag’ ich wild den Takt zum Reigen,

é com força de tormento

Daß nur die Gedanken schweigen,

porque está no pensamento

Die mich mahnen an den Schmerz.

a memória deste mal.

3 Versão a partir do original em castelhano.

166 FERREIRA DO ALENTEJO . IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO


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Ach, ihr Herrn, dann will im Schwingen

Em meu coração, senhores,

Oftmals mir die Brust zerspringen,

são contínuas as dores,

Und zum Angstschrei wird mein Singen,

os cantares são clamores

Denn an andres denkt mein Herz.

de que o gesto dá sinal.

Bedeckt mich mit Blumen

Cobri-me de flores

Bedeckt mich mit Blumen,

Cobri-me de flores,

Ich sterbe vor Liebe.

qu’ eu morro de amores;

Daß die Luft mit leisem Wehen

se no seu alento o ar

nicht den süßen Duft mir entführe,

não leve o amor sublime,

Bedeckt mich!

cobri-me;

Ist ja alles doch dasselbe,

assim seja, se o mesmo são

Liebesodem oder Düfte

alentos de amor e odores

Von Blumen.

das flores;

Von Jasmin und weißen Lilien

açucenas e jasmins

sollt ihr hier mein Grab bereiten,

serão na mortalha forro,

Ich sterbe.

que eu morro;

Und befragt ihr mich: Woran?

se me perguntardes a razão

sag’ ich: Unter süßen Qualen

respondo em doces rigores

Vor Liebe.

de amores.4 Tradução: Ruy Ventura

4 Versão a partir do original em castelhano.

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Canção do berço

Ai que linda moça

A estrelinha d’alva

Ai que linda moça

mudou de lugar

sai d’aquela choça,

p’ra ver a menina

loira e engraçada

logo ao acordar

leva arregaçada a saia encarnada

E a estrela da tarde,

de chita grosseira,

trémula, a sorrir, fez-se lamparina

E cantarolando

para a ver dormir

vai gentil guiando seu ditoso gado, seu rebanho amado

Gerinaldo

sempre enamorado

Gerinaldo, Gerinaldo,

da canção fagueira.

Pajem d’el-rei tão querido Bem puderas, Gerinaldo,

Tudo são tristezas

Dormir a noite comigo,

tristezas e dor,

Gerinaldo,

tudo são tristezas

Dormir a noite comigo!

para o meu amor.

Hei-de abrir a minha porta Que el-rei não seja sentido. Anda cá, ó Gerinaldo, Podes-te deitar comigo, Gerinaldo, Podes-te deitar comigo! Acordai, ó bela infanta, Acordai que estou perdido, O punhal d’oiro d’el-rei Entre nós está metido Gerinaldo, Gerinaldo! O castigo que te dou Por seres meu pajem querido É que a tomes por mulher E ela a ti por marido, Gerinaldo, E ela a ti por marido. E assim ficou bem feliz Gerinaldo o atrevido!

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Elena Gragera Meio-soprano

Especializou-se em Lied pela mão de Irmgard Seefried, Edith Mathis, Gérard Souzay e Aafje Heynis, obtendo o Diploma Superior, com distinção, no Koninklijk Conservatorium, de Haia. Desenvolve diversos projectos de carácter temático, centrados nesse género e na canção artística espanhola. Actuou nos principais teatros e salas de Espanha, assim como nos festivais internacionais de Santander, Quincena Musical de San Sebastián, Shakespeare (Barcelona), Fundación Botín (Santander), Museo Picasso (Málaga), Museo del Prado, Museo Thyssen-Bornemisza e Ciclo de Lied do Teatro de la Zarzuela (Madrid), Ciclo Goethe y la Música na Fundación Barrié de la Maza (Corunha), Wigmore Hall (Londres), Musiekgebouw e Kleine Concertgebouw (Amesterdão), Halle aux Grains (Toulouse), Salle Cortot (Paris), Gemeentemuseum (Haia), Sala Tchaikovsky (Moscovo), Teatro Ermitage (São Petersburgo), Teatro Juárez (Guanajuato) e Teatro Bellas Artes (Cidade do México). Tem colaborado regularmente, entre outros directores, com Helmut Rilling – v.g., itinerância por diversas cidades alemãs com cantatas de J. S. Bach –, William Christie, Antoni Ros Marbá, Josep Pons, José Ramón Encinar, Ramón Torrelledó, Enrique García Asensio – estreia de Sinfonia n.º 3, de David del Puerto –, Alvaro Albiach, Alexis Soriano – estreia da Cantata de José Pradas, de Joaquín Nin-Culmell – e Fabián Panisello – estreia, em Espanha, da ópera ¡Oh Eternidad!, de Marta Lambertini. Das suas gravações, salientam-se Veinte Canciones Populares, de Joaquín Nin Castellanos; a integral da obra para voz e piano de Ernesto Halffter; canções de Joaquín Nin-Culmell; um monográfico de Josep Soler; Cánticas Sefardíes; canções de Roberto Gerhard; integrais das canções de Isaac Albéniz e Federico Mompou; La Celestina, de Pedrell; Pasión Argentina, com o Octeto Ibérico de Violonchelos e Elías Arizcuren; Canciones para Don Quijote e Mujeres Cervantinas; e a primeira gravação mundial da ópera

Glauca y Cariolano, de José Lidón, com a Orquestra do Museu Estatal de São Petersburgo, sob a direcção de Alexis Soriano.

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Antón Cardó Piano

Estudou no Conservatório Superior de Música do Liceo de Barcelona e na Schola Cantorum de Paris, onde se graduou com o 1.º Prémio de Piano e Música de Câmara. Trabalhou seguidamente com Rosa Sabater. Um intérprete lendário, Paul von Schilhawsky, à data director do Mozarteum, de Salzburgo, encaminhou-o para o repertório liederístico, sendo convidado por Miguel Zanetti a integrar o corpo docente da Escuela Superior de Canto de Madrid, onde leccionou Repertório Vocal. A importante relação profissional com Gérard Souzay, que o escolheu como acompanhante para as suas aulas magistrais, levou-o a especializar-se em Lied, tal como na Mélodie francesa. Foi também pianista oficial nas aulas magistrais de, entre outros, Jessye Norman, Edith Mathis e Arleen Auger. Tem efectuado recitais nas principais salas e teatros de Espanha e em auditórios de referência da Europa,

v.g., Gaveau, Lucernaire e Wagram (Paris), Wigmore Hall (Londres), Acropole (Nice), Halle aux Grains (Toulouse), Diligentia (Haia), Vredenburg (Utreque), Kleine Concertgebouw (Amesterdão), etc. Realizou diversas itinerâncias a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha e do Instituto Cervantes. Tocou integrais dos Lieder de Alban Berg e Robert Gerhard, compositor de que levou a cabo a recuperação da obra para canto e piano, gravada com Elena Gragera. Estreou peças de Xavier Montsalvatge, Leonardo Balada, Josep Soler, Carmelo Bernaola, Eduardo Rincón, etc. Preparou trabalhos musicológicos e de divulgação sobre autores como Isaac Albéniz, Johannes Brahms ou Hugo Wolf. Foi professor convidado da Universidade Nacional de Seul (Coreia do Sul) e dos conservatórios de Versalhes, Varsóvia e São Petersburgo.

Lavabo. Trabalho português. 1791. Ermida de Nossa Senhora da Conceição, Ferreira do Alentejo. >

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Concerto VII

SINES

3 de Junho 21H30

AS AFINIDADES ELECTIVAS: MOZART & BEETHOVEN Ludwig van Beethoven [1770-1827] Quinteto em Mi bemol maior, Op. 16, para piano, oboé, clarinete, trompa e fagote I. Grave. Allegro ma non troppo II. Andante cantabile III. Rondo: Allegro ma non troppo

Wolfgang Amadeus Mozart [1756-1791] Quinteto em Mi bemol maior, KV. 452, para piano, oboé, clarinete, trompa e fagote I. Largo. Allegro moderato II. Larghetto III. Allegretto

]W[ Ensemble & Enrique Bagaría Fagote Guilhaume Santana Oboé Lucas Macías Clarinete Vicent Alberola Trompa José Vicente Castelló Piano Enrique Bagaría

< Ite in vineam mea. Escola portuguesa. Século XVIII (segundo quartel). Igreja matriz de São Salvador, Sines.

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Igreja Matriz de São Salvador Sines Classificada como Monumento de Interesse Público pela Portaria n.º 449/2014 (Diário da República, 2.ª Série, n.º 113, de 16 de Junho de 2014)

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & RICARDO PEREIRA

Implantada no alto de uma falésia, à ilharga do castelo quatrocentista, em posição dominante sobre a baía de Sines, a matriz de São (nome de cúria: Santíssimo) Salvador começou a ser construída em 1730, tendo-se prolongado a respectiva campanha decorativa até a meados do século. Substituiu, aqui, com outro alcance volumétrico, um edifício de três naves separadas por arcos de cantaria e capelas laterais profundas. Tratar-se-ia de uma obra de feição gótica, que ainda não consta do rol das “décimas” de 1320-1321, e poderá ter sido erguida em data pouco distante da elevação da localidade a vila, pelo rei D. Pedro I, em 1362; foi remodelada no período manuelino. Esta igreja, por sua vez, terá sucedido a uma basílica altimedieval, de que chegou aos nossos dias um amplo conjunto de cantarias lavradas, extraídas, na maior parte, das muralhas do vizinho castelo – mas de que se conserva ainda um fragmento de friso no actual baptistério, além dos vestígios encastrados em diversos outros pontos do edifício. A estrutura arquitectónica, imponente, caracteriza-se pelo traço austero e claro, ao gosto do estilo chão, manifestando excepcional solidez. Este sentido de depuração sobressai na frontaria, cujo remate em empena pauta um eixo central que acompanha o portal de verga recta, com cornija saliente, onde assenta a insígnia da Ordem de Santiago, e o janelão do coro. Do lado da Epístola, ergue-se a torre sineira, terminada numa cúpula octogonal. Nos alçados laterais, avultam os volumes da sacristia, da parte do Evangelho, e da casa da Confraria do Santíssimo Sacramento, da parte oposta. Tudo revela claras analogias com os modelos mais eruditos da arquitectura espatária, em particular os concebidos por João Antunes, nomeado arquitecto das ordens militares em 1697. Daí nasce um “ar de família” que a aproxima das igrejas de Santiago, de Alcácer do Sal, e de Nossa Senhora da Conceição, de Castro Verde, imóveis de que repete vários pormenores, como as torres sineiras ou os portais secundários, numa composição adaptada à escala mais reduzida. Igreja matriz de São Salvador, Sines. >

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Transitando para o interior, chama a atenção a avantajada cornija, só interrompida pelo arco triunfal, de volta perfeita, a qual acompanha a nave única, coberta por abóbada falsa. Esta ostenta uma pintura mural, já de meados do século XX, que figura Cristo,

Salvador do Mundo, da autoria de Emmerico Nunes. Na capela-mor, destaca-se o revestimento azulejar, formando uma sofisticada e complexa composição a azul e branco que integra os vãos de janelas, portas e nichos, enquadrados por molduras de gosto rococó, e foi realizada, em torno de 1750, por uma das melhores oficinas de Lisboa. O programa iconográfico centra-se na evocação de Cristo, orago da paróquia, e apresenta, da banda do Evangelho, ao centro, a Transfiguração e, do outro, São João Baptista

Prostrado ante o Menino Jesus como Salvador do Mundo. Estes painéis são flanqueados pelas imagens dos Quatro Evangelistas, ao passo que no registo inferior sobressaem medalhões de temática eucarística. O ciclo dos Evangelistas aparece reiterado em quatro notáveis pinturas a óleo sobre tela, já do tempo de D. José I. Merece igualmente referência o painel da Última Ceia, de factura finisseiscentista, que pertenceu ao desaparecido retábulo do altar principal (o actual data do século XIX). Nas paredes da nave rasgam-se capelas, duas colaterais e quatro laterais, com molduras de cantaria, em arcos de volta perfeita, e retábulos de talha dourada e policromada, que permitem estabelecer um itinerário estilístico entre o Barroco Tardio, o Rococó e o Neoclassicismo. Tiveram outrora, cada uma, a sua confraria ou irmandade próprias. Juntamente com a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a mais influente e a mais rica, responsável pelo altar da capela-mor, estas instituições rivalizavam entre si no esplendor que imprimiam às respectivas festas, na sumptuosidade das decorações, no número de velas, na eloquência dos pregadores e, ainda, no brilho da música que acompanhava a liturgia. Em paralelo a um culto mais institucional, fortemente regrado pela Ordem de Santiago e garantido por um prior e três beneficiados, todos freires da Ordem, floresciam interessantes manifestações da religiosidade tradicional. Algumas desapareceram por imposição da hierarquia, como a corrida de touros nas festas da ermida de São Marcos (25 de Abril), dia em que também era conduzido ao altar, durante a missa, um boi, o atributo do apóstolo. Outras foram-se simplesmente perdendo com o correr dos tempos, como a tradição de os pescadores virem à igreja matriz cantar a Santo Amaro, advogado das doenças do foro reumático, no dia da sua festa (15 de Janeiro), costume de que não subsiste qualquer registo para além de memórias vagas de pessoas mais antigas. Já nos meados do século XIX, Francisco Luís Lopes descreveu com algum pormenor a atmosfera destas celebrações populares e o papel de relevo que a música nelas assumia.

176 SINES. IGREJA MATRIZ DE SÃO SALVADOR


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São dignas de particular atenção as referências à presença dos tocadores galegos que vinham de Lisboa em Agosto, com tambor e gaita-de-foles, para acompanhar a recolha das esmolas destinadas a Nossa Senhora das Salas, e às animadas e ruidosas festas de São João (24 de Junho) e São Pedro (29 de Junho), nas quais se cantava e tocava ao redor dos mastros ou em turmas pelas ruas. Uma constelação de usos e costumes que não resistiu às transformações impostas pelo advento do regime republicano e se foi apagando, pouco a pouco, nas décadas seguintes

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

FRANCISCO LUÍS LOPES, Breve Notícia de Sines, Patria de Vasco da Gama, Lisboa, Typographia do Panorama, 1850 [ed. fac-simil., Sines, Câmara Municipal de Sines, 1985]; ARNALDO SOLEDADE, Sines, Terra de Vasco da Gama, Setúbal, Junta Distrital de Setúbal, 1973 (4.ª ed., Sines, Câmara Municipal de Sines, 1999); JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Memória Paroquial do Concelho de Sines em 1758, Santiago do Cacém, Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 1987; J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010; ANTÓNIO MARTINS QUARESMA, “Sines Medieval e Moderna (Séculos XIV-XVIII)”, em SANDRA PATRÍCIO (dir. de), O Concelho de Sines. Da Fundação à Época Moderna, Sines, Câmara Municipal de Sines, Arquivo Municipal Arnaldo Soledade, [s.d.].

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Uma Obra Luminosa e Outra que Nasceu da sua Sombra BERNARDO MARIANO

O género “quinteto para piano e sopros” (estes, na combinação de oboé, clarinete, trompa e fagote) é uma raridade na história da música e devemos congratular-nos por figuras da estirpe de Mozart e Beethoven figurarem na parca lista de autores que o praticaram. De facto, além deles, apenas um par de nomes mais nos é familiar, o que não invalida que as obras tenham caído no total esquecimento. Não assim com Mozart e Beethoven. Diga-se, antes de mais, que, se Mozart não tivesse escrito o seu Quinteto (datado de 1784), Beethoven jamais haveria composto o seu de

motu proprio. Na realidade, foi seguindo conscientemente o exemplo deixado pelo colega mais velho que Beethoven se lançou no seu op. 16 (datado de 1796). Temos, assim, Beethoven colocando-se assumidamente na sombra de Mozart, sem, claro está, deixar de imprimir um cunho próprio à obra, fruto da sua personalidade e da sua formação, como também da época em que a obra viu a luz. Mas o que terá levado Mozart a escrever para uma combinação de instrumentos absolutamente inédita, logo, onde não tinha quaisquer modelos que lhe servissem de referência? A resposta deve buscar-se, antes de mais, num outro género a que assaz se dedicava na época em que escreveu este Quinteto: o Concerto para Piano. 1784 foi um ano-charneira no que à estética do concerto para piano mozartiano concerne: é aí que ele transforma esse género, na medida em que os sopros adquirem uma muito maior relevância no discurso. Alteração evidente, desde logo, porque as partes para esses instrumentos deixam de ser ad libitum (não escritas, logo dobrando em geral as cordas) para passarem a ser obligato (escritas separadamente, com material próprio). Mas, ao nível auditivo, é todo um mundo sonoro novo que se explana diante de nós, com sopros, cordas e o piano solista a assumirem em plenitude um princípio dialógico a três da condução do discurso musical, desdobrando-se em múltiplas combinações, e do qual não está, contudo, ausente o drama. Esta inovação é patenteada mormente nos Concertos n.º 15, em sib M, KV450 e n.º 16,

em ré M, KV451, aliás exactos contemporâneos do presente Quinteto.

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Outra razão há-de ser procurada no modo de vida de Mozart por esses anos. Estabelecido em Viena desde 1781, casado desde 1782, em vias de ser pai (Karl Thomas nasceria a 21 de Setembro de 1784), era um profissional freelance, cujos rendimentos advinham, não tanto dos proventos da edição impressa das suas composições, antes bem mais das suas aparições públicas enquanto instrumentista de tecla (tocando o pianoforte), mormente em concertos por subscrição (as “academias”) organizados por ele próprio sob a forma, normalmente, de pequenas séries. Foi este, precisamente, o enquadramento em que estrearam, quer os concertos KV450 e KV451, quer o Quinteto, KV452, no decurso da Quaresma de 1784. Mozart era, nesses anos iniciais em Viena, um compositor na moda, o que se tornava, então, sinónimo de um intérprete na moda, porque toda a aparição pública de um criador se destinava à interpretação das suas próprias obras. A apetência do público vienense por Mozart fica evidente no número de subscritores dos concertos acima citados: 174! Nesta lista, inclui-se a crème de la crème da sociedade vienense da época. Se pensarmos que os eventos em que estrearam os concertos KV450 e KV451 se desenrolaram numa sala de 87 m2, no Trattnerhof (edifício no Graben onde Mozart alugara, havia pouco, um exíguo apartamento), com toda a gente de pé, ficaremos com uma ideia clara do fenómeno-Mozart na Viena de então. Uma terceira razão poderá ser procurada no estabelecimento, em 1782, por José II, do

ensemble de Harmoniemusik da Corte Imperial (pares de clarinetes, oboés, trompas e fagotes), facto que mais veio evidenciar a excelência em instrumentistas de sopro existentes na Viena do tempo – no caso de Mozart, pensamos em Joseph Leitgeb, para quem escreveu várias composições com trompa solista; ou em Anton Stadler, para quem escreveu maravilhosas obras com clarinete solista. No caso deste Quinteto, não se sabe ao certo quem foram os solistas que acompanharam Mozart na estreia da obra, a 1 de Abril de 1784 (por sinal, o aniversário de Haydn), mas há fortes probabilidades de terem sido os solistas principais da Harmoniemusik, a saber: Anton Stadler, Georg Triebensee (oboé), Jakob Eisen (trompa) e Wenzel Kauzner (fagote). Curiosamente, a 1 de Abril de 1784, o ensemble de Harmoniemusik completava dois anos de existência! Se aliarmos a isto o facto de este concerto se ter realizado no Teatro da Corte (hoje, o Burgtheater), mais consistência ganha a hipótese de terem sido esses, de facto, os intérpretes da estreia. Portanto, a concatenação de (1) Mozart apresentar-se ao público com grande frequência, interpretado sempre novas obras, (2) querer “honrar” os solistas da Harmoniemusik imperial com uma obra de sua lavra, e (3) ter em mente uma transformação do papel dos sopros na sua música com piano solista levou-o à composição desta obra em Março

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de 1784, tendo-a notado no seu catálogo pessoal (que iniciara no mês anterior) como havendo sido completada a 30 de Março. Uma vez que não tinha precedentes, podemos entender a resolução como um “exercício de estilo” ou um desafio a si próprio. E, podemos imaginá-lo, terá para o resto confiado no seu génio. Para tal, Mozart buscou modelos ou aproximações na sua própria música, mais precisa mente em quatro géneros diferentes: a serenata/divertimento para instru mentos de sopro; a sinfonia concertante; a sonata para piano; o concerto para piano. Certo é que resultou uma obra de maravilhoso equilíbrio na justeza da escrita, a qual, se acusa aqui e ali traços das aproximações acima referidas, nunca deixa de ser intrinsecamente música de câmara, outrossim com uma componente de “deleite” (estético e auditivo) que se destina tanto ao intérprete e ao ouvinte, quanto “acusa” o do próprio fautor! Podemos identificar esse deleite não apenas na forma como Mozart conjuga – ou alterna, ou associa, ou contrasta – o piano com os sopros (nestes, ora privilegiando um, ora usando um par, ora usando o tutti ), mas também na maravilhosa e copiosa riqueza melódica desta obra. Assim, quase ex nihilo, atingiu a “perfeição”, de uma forma que nos deixa sempre assombrados a cada nova audição. Por tanto se percebe que, no “calor” da recente e triunfante estreia, Mozart escrevesse ao seu pai alguns dias depois, declarando tratar-se da “melhor obra que até hoje escrevi”. Obra, enfim, que transpira felicidade e serenidade, certamente, mas – referimo-lo já acima – onde irrompem a espaços momentos dramáticos, de que são exemplo mais eloquente os episódios no interior do Larghetto central. Mozart não mais escreveria para esta formação, mas, no ano seguinte e no outro (1786), deu ao KV452 dois “primos”: os Quartetos com Piano, KV478 e 493. Onde antes havia piano e quarteto de sopros, existe agora piano e trio de cordas. Talvez não por acaso, foi nesse formato (de Quarteto com Piano) que o Quinteto, KV452 foi primeiramente editado, em 1794, pela casa Artaria, de Viena. Não se sabe quem realizou a transcrição, a qual, além disso, continha uma conclusão que se veio a descobrir ser apócrifa, após haver sido identificado, mais tarde, o autógrafo de Mozart. Aparentemente, a folha onde se encontravam os 11 compassos finais da obra ter-se-á perdido e, quiçá, a própria pessoa que fez a transcrição/arranjo escreveu 4 compassos para servirem de conclusão à obra que ia para o prelo. Ora, esta edição no ano de 1794 leva-nos a Beethoven, o qual, à data (contava 23 anos), já se encontrava em Viena há dois anos e fazia também ele furor enquanto pianista e improvisador ao piano.

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Note-se que permanece um mistério o que terá levado Beethoven a querer emular especificamente esta obra de Mozart, mas o que fica evidente é que o conhecimento que ele tinha do “original” se resumia à citada edição sob a forma de quarteto com piano. Que ele poderá, quiçá, ter até ouvido algures, ou tê-la ele próprio estudado ao piano. Mas é de todo improvável que houvesse, em 1796, alguma vez escutado a versão original (editada em partitura só em 1800, por André), quando se debruçou sobre o seu próprio Quinteto. De resto, a composição do mesmo ocorreu en route, porquanto coincide com uma digressão de Beethoven pelas cidades de Praga, Dresden, Leipzig e Berlim na Primavera de 1796, sendo que até Praga gozou da companhia do príncipe Lichnowsky – melómano, músico amador e grande mecenas da música em Viena. Por espantosa coincidência, Mozart fizera justamente o mesmo circuito, sete anos antes, e também na mesma principesca companhia! Não devemos esquecer as famosas palavras atribuídas a Van Swieten (amigo de Lichnowsky) e dirigidas a um Beethoven recém-chegado a Viena, segundo o qual este iria “receber das mãos de Haydn o espírito de Mozart”… Temos então que, assumida e conscientemente, Beethoven decide tomar a obra do mestre austríaco por modelo da sua: usa os mesmos instrumentos, a mesma tonalidade, a mesma estrutura formal (inclusive, a Introdução lenta do 1.º andamento) e até cita uma ária de Zerlina do Don Giovanni, a ópera de Mozart que mais rapidamente adquiriu reputação e ganhou circulação após a morte do autor. Em abono da verdade, no caso da tonalidade, não havia grande alternativa ao mib M, já que correspondia à afinação da trompa natural do tempo (em mib), sendo por isso uma escolha eminentemente pragmática para sopros concertantes com trompa. Agora, a matéria sonora que ouvimos dentro deste enquadramento mozartiano, por assim dizer, e o vocabulário e os processos da linguagem, são já distintivamente os de Beethoven. Claro que Beethoven não foi o prodígio precoce que fora Mozart em termos criativos, por isso não detinha, aos 25 anos, a soberana mestria que Mozart, aos 28 anos (idade em que escreveu o Quinteto), já evidenciava (e evidenciara) em todos os domínios e géneros musicais; assim como é óbvio que Beethoven não tinha, como nunca teve, aquele melodismo transbordante em quantidade e qualidade que se tornou uma das marcas miraculosas de Mozart. Isso reflecte-se, claro está, nos processos compositivos que emprega, na forma como trata os motivos e os temas que apresenta. Por outro lado, do que acima afirmávamos, decorre que, no seu Quinteto, não existe ao mesmo grau a fluida, subtil e sempre harmoniosa fusão e/ou complementaridade das sonoridades de piano e sopros. Digamos que, por um lado, se nota nesse op. 16 mais a procedência da experiência adquirida

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pelo autor na escrita concertística para piano “enfrentando” a orquestra (tinha completado, pouco tempo antes, o primeiro Concerto para Piano, depois e até hoje conhecido como n.º 2, op. 19 ). E, por outro lado, apercebemo-nos mais, ao escutar o seu Quinteto, de como Beethoven era um excelente pianista solista. Daqui resulta, por um lado, que há um acrescido relevo da parte de piano na textura e, por outro, que não há um princípio dialógico tão natural e consumado a presidir à relação entre o piano e os instrumentos de sopro, tal como ele surge à saciedade em Mozart. O Quinteto, op. 16 teve estreia em Viena, a 6 de Abril de 1797, na Jahn’s Traiteurie, o restaurante do cozinheiro Ignaz Jahn, no n.º 6 da Himmelpfortgasse (Rua das Portas do Céu), com Beethoven ao piano. Jahn era um conceituado chef, mas o seu restaurante era também conhecido pela excelente música que oferecia (Mozart chegou a tocar nesse espaço). O concerto de estreia foi, além disso, em benefício de um jovem violinista de 21 anos chamado Ignaz Schuppanzigh cuja vida e carreira se cruzariam depois, amiúde (e indelevelmente), com as de Beethoven até à morte deste, em 1827. Este Quinteto foi editado em 1801, em Viena, por Mollo, em simultâneo (decerto, não por acaso) com a versão para Quarteto com Piano, do punho do próprio Beethoven – aliás, uma das raras ocasiões em que Beethoven se entregou a tal trabalho. Temos, em conclusão, duas obras à primeira vista aparentadas, mas, a uma escuta atenta, suficientemente distintas (e distintivas dos respectivos autores) para contemplarmos, por ser mais rica e abrangente, uma experiência mais ampla das possibilidades oferecidas pela rara combinação de piano com o quarteto de oboé, clarinete, trompa e fagote!

Quinteto, KV452 Uma introdução Largo (20 compassos) com três ideias melódicas principais dá um ar solene ao início da obra. Encadeia para um Allegro moderato (em 4/4), na forma-sonata, com dois temas (o 2.º marcado dolce, dado no piano). O Desenvolvimento mostra-se breve e baseado no 1.º tema. A Reexposição contém um Desenvolvimento interno (sobre o 1.º tema), e breves floreios da trompa antecedem o final, suave. O Larghetto, em sib M (em 3/8), também na forma-sonata, apresenta a mesma riqueza melódica. O Desenvolvimento mostra-se aqui mais extenso, sendo “prolongado” na Reexposição, num tratamento semelhante de marcha harmónica por progressão cromática. O sereno 3.º tema da Exposição regressa no final para tudo acalmar. O Allegretto (2/2) oferece uma forma rondó-sonata tratada com muita liberdade: como é marca desta obra, a abundância

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melódica permite a Mozart jogar com grande destreza com os seus temas e motivos, seja na sua sucessão, seja na sua reaparição em diferentes andamentos. Uma cadenza in tempo (isto é, escrita e com barra de compasso) antecede a Coda, lançada pela reiteração do tema inicial.

Quinteto, op. 16 Uma Introdução marcada Grave estabelece logo os diferentes temperamentos de Mozart e de Beethoven. Um motivo na trompa liga ao Allegro ma non troppo, na forma-sonata, com dois temas principais, bastante diferenciados. O Desenvolvimento é marcado pela textura cromática ascendente em tutti e apresenta um novo motivo melódico (nos sopros). O 1.º tema dado no piano traz a Reexposição, bastante regular. Na Coda, extensa, regressa a tensão, numa escrita concertante cheia, terminando em f. O Andante cantabile (cujo tema provém da referida ária de Zerlina) é uma Romanze com dois episódios internos (o 1.º com um diálogo de oboé e fagote, em solm; o 2.º para a trompa, em sib m), afim da forma-Rondó, sendo que cada reaparição da secção de entrada (A) surge progressivamente ornamentada. O andamento conclusivo (em 6/8) é um Rondó-Sonata (como em Mozart, mas aqui mais estrito) no espírito saltitante e animado de um “rondó de caça”, carácter esse logo audível no tema principal. A 2.ª copla vem na tradição dos minore barrocos e pré-clássicos e faz as vezes de Desenvolvimento. Uma Coda baseada no tema-refrão dá primazia aos sopros, antes de figurações brilhantes fecharem esse andamento, que muito lembra um Concerto para piano, em ff.

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]W[ Ensemble

Tem, como agrupamento de origem, a famosa Lucerne Festival Orchestra. Os seus membros, intérpretes cimeiros nos respectivos instrumentos, desenvolveram uma importante trajectória camerística paralela aos lugares que ocuparam em algumas das principais orquestras europeias, v.g., Royal Concertgebouw Orchestra, Deutsche Radio Philharmonie (Saarbrücken), Mahler Chamber Orchestra, Les Dissonances e Orchestra Mozart (Bolonha), entre outras. Actua com directores de referência internacional, entre eles Andris Nelsons, Lorin Maazel, Mariss Jansons, Simon Rattle, Pierre Boulez, Bernard Haitink, Neville Marriner e, especialmente, Claudio Abbado – o seu mentor ao longo dos últimos doze anos, influenciando de maneira decisiva a concepção musical do

ensemble, logo a partir de uma etapa inicial, na Gustav Mahler Jugendorchester, até à consolidação, já no âmbito da Lucerne Festival Orchestra. Isto permite-lhe não só oferecer uma grande variedade de estéticas musicais, mas também adoptar diferentes formações, valorizando par ticularmente os repertórios para instrumentos de sopro. Tem colaborado com intérpretes de craveira mundial, dos quais se destacam Mitsuko Uchida, Emmanuel Ax, Maria João Pires, Jacques Zoon, Giuliano Carmignola, Heinz Holliger, Sabine Meyer, Albrecht Mayer, Isabelle Faust, Alexander Lonquich e Radu Lupu.

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Enrique Bagaría Piano

Natural de Barcelona (1978), estudou no Conservatório Municipal desta cidade e na École Normale Alfred Cortot, especializando-se no Conservatori Superior de Música del Liceu, da capital catalã, na Escuela Superior Reina Sofía, de Madrid, e no Richard Strauss Konservatorium, de Munique. Recebeu masterclasses de Alicia de Larrocha, Josep María Colom, Eliso Virsaladze, Andrew Watts e Boris Petrushnsky, entre outros. É figura habitual nas principais temporadas e festivais de Espanha, v.g., Palau de la Música e Auditori (Barcelona); Auditorio Nacional (Madrid); Auditorio de Zaragoza; Centro Cultural Miguel Delibes (Valladolid); Teatro de la Maestranza (Sevilha); Ibercamera (Barcelona); Festival de Música y Danza de Granada; Festival Internacional de Santander; e Castell de Peralada. No âmbito internacional, sobressaem as suas actuações em palcos célebres: Philharmonia (São Petersburgo); Filarmónica Nacional (Kiev); Teatro dal Verme (Milão); Alfred Cortot (Paris); Academia de España (Roma); Luis Ángel Arango (Bogotá); Oriental Art Center (Xangai); e National Center for the Performing Arts (Pequim). Apresentou-se com a Orquestra Sinfónica do Teatro Mariinsky (São Petersburgo); Wiener Kammerorchester; Salzburger Kammerphilarmonie; Filarmónica de Bogotá; Simfònica de Barcelona; Orquestra Nacional de Catalunya; Orquesta Sinfónica de Galicia; Orquesta Sinfónica de Castilla y León. Tem sido dirigido por Valeri Gergiev, Vasily Petrenko, Yoon Kuk Lee, Francisco Rettig, Pedro Halffter, Eduardo Portal e Salvador Brotons, entre outros. Na qualidade de músico de câmara, trabalha regularmente com os agrupamentos ]W[ Ensemble, Elias String Quartet e Cuarteto Quiroga, além das colaborações que o unem a Stefano Canuti, Erez Ofer, Latica Honda-Rosenberg e Alexandre da Costa. Integra o corpo docente do Conservatorio Superior de Música de Aragón e do Conservatori Superior de Música del Liceu de Barcelona.

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Concerto de Encerramento 17 de Junho 21H30

BEJA

CAMINHO, VERDADE E VIDA: MOTETES E PRELÚDIOS CORAIS DE J. S. BACH Johann Sebastian Bach [1685-1750] Ária das Variações Goldberg, BWV 988 Motete Lobet den Herrn, alle Heiden, BWV 230 Prelúdio coral Erbarm’dich mein, o Herre Gott, BWV 721 Motete Ich lasse dich nicht, BWV Anh.III 159 Préludio coral Ich ruf’zu dir, Herr Jesu Christ, BWV 639 Motete Jauchtzet den Herrn alle Welt, BWV Anh.III 160 Prelúdio coral Wer nur den lieben Gott lässt walten, BWV 691 Motete Jesu, meine Freude, BWV 227 Prelúdio coral Liebster Jesu, wir sind hier, BWV 730-1 Motete Komm, Jesu komm, BWV 229

Coro Gulbenkian Órgão Fernando Miguel Jalôto Viola da gamba Sofia Diniz Contrabaixo barroco Marta Vicente Direcção musical Michel Corboz

< Santiago Apóstolo [pormenor]. Escola portuguesa. Século XVI, finais-século XVII, inícios. Catedral, Beja.

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Catedral (Igreja Paroquial de Santiago Maior) Beja

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Tanto a origem como a localização da primitiva igreja de Santiago constituem um enigma por resolver, ainda que diversas fontes enfatizem a importância da sua colegiada (secular), uma das mais antigas de Beja. Ombreava, assim, com as das outras paróquias da urbe: a matriz, Santa Maria da Feira, sob a jurisdição da Ordem militar de São Bento de Avis; e São João Baptista e São Salvador, igualmente seculares. Alguns autores defendem que esse lugar de culto coincidiria com a vizinha igreja de Santa Maria – a partir do século XVI, Nossa Senhora – da Graça, depois mais conhecida pela invocação popular de Santo Amaro, cuja mole fundamental poderá remontar à transição do século VI para o século VII. Outros, pelo contrário, ligaram-no a um espaço de culto independente, também extramuros, mas não esclarecendo onde. No século XIV, a sede da freguesia de Santiago Maior ter-se-á fixado no actual sítio, dentro do circuito das muralhas e perto de uma das suas principais portas. Já seria, à data, um marco no Caminho de peregrinação a Compostela. Dos poucos traços que dele sobreviveram (essencialmente, alguns fragmentos de escultura arquitectónica, com destaque para os reaproveitados em casa de habitação da Rua Dr. Aresta Branco, antes Rua das Ferrarias), pode deduzir-se a existência de um imóvel de traça gótica, fiel à linhagem artística do tempo de D. Dinis. Este monarca, a quem Beja ficou a dever notável impulso, ampliou o sistema fortificado e favoreceu a expansão da malha urbana; datará de então a fundação da nova paróquia, dedicada a um apóstolo cuja veneração conhecia, à época, um ápice, sob o estro do movimento neocruzadístico. Nas “décimas” de 1320-1321, a igreja foi taxada em 500 libras, e o comum dos raçoeiros da mesma em 420, pagando substancialmente mais do que as de São João e São Salvador. O edifício que chegou aos nossos dias sucedeu ao medievo, arrasado para lhe dar lugar – hoje, visível, só dele permanece, no actual, uma pequena janela, reaplicada no arranque do arco da última capela lateral da banda do Evangelho, onde está o túmulo de D. José do Patrocínio Dias. Tratou-se de uma obra de raiz, erguida a instâncias de

Catedral (igreja paroquial de Santiago Maior), Beja. >

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D. Teotónio de Bragança, arcebispo de Évora entre 1578 e 1602. Prelado renovador das estruturas pastorais do vasto território sob a sua jurisdição, de acordo com as instruções emanadas do Concílio de Trento (1545-1563), e mecenas das artes, D. Teotónio interessou-se pela dinamização da vida religiosa de Beja, a segunda cidade da Arquidiocese, cabeça de uma importante vigairaria, cujo epicentro foi precisamente a igreja de Santiago. Levados a cabo sob a direcção do arquitecto Jorge Rodrigues, os trabalhos do novo lugar de culto estariam concluídos, no essencial, à data da sagração: 14 de Julho de 1590. De planta rectangular, formando três naves divididas em cinco tramos, a igreja é coberta por abóbadas de arcos cruzados com nervuras de aresta estucadas, ainda de tradição gótica. Porém, a organização espacial, ampla e unitária, obedece já, nitidamente, a um modelo característico da “arquitectura chã” do Alentejo, correspondendo à tipologia das “igrejas-salão”. Datará do mesmo período finiquinhentista a imagem do orago, que se venerava no altar-mor. Um acidente com velas, em época indeterminada, levou a que se queimasse parcialmente; esquecida numa dependência, foi alvo de resgate pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, em 1997. Ao longo do século XVII, efectuaram-se grandes beneficiações, incluindo a construção, nos finais da centúria, de vários retábulos de talha dourada e policroma, com os respectivos painéis pictóricos. D. Fr. Luís da Silva Telles [reg. 1691-1703], outro arcebispo de Évora que se distinguiu como generoso promotor de empreitadas artísticas, financiou, em 1692, o retábulo da capela de São Francisco Xavier. O retábulo da capela-mor foi concebido e levantado por um mestre lisboeta, o entalhador régio Manuel João da Fonseca, em 1696-1697, a expensas da fábrica da igreja, com o auxílio das confrarias e de esmolas. Este insigne artista ocupou-se igualmente da feitura da estante do coro, além de outras peças acessórias. Sabe-se menos acerca dos trabalhos efectuados ao longo dos séculos XVIII e XIX, mas não há dúvida de que o terramoto de 1 de Novembro de 1755 provocou alguns estragos, prontamente reparados, cujos vestígios chegaram aos nossos dias. A presença do escudo real, da época de D. José I, encimando o arco cruzeiro, é um sinal do amparo da Coroa. O bispo D. José do Patrocínio Dias [reg. 1920-1965], fautor da “reconstrução” física e moral da Diocese, considerou uma prioridade pastoral o enobrecimento da função catedralícia, que vinha tendo lugar sem todas as condições requeridas, na igreja paroquial de São Salvador desde a refundação da Diocese de Beja, em 1770. Para isso, escolheu a igreja de Santiago, a mais ampla da cidade, localizada em sítio nobre do centro histórico. Esta, não perdendo o estatuto de cabeça da paróquia e o título original, foi elevada a catedral, a pedido de D. José, por rescrito da Sagrada Congregação Consistorial, de 14 de Novembro de 1925, sob a invocação – única em Portugal – do Sagrado Coração

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de Jesus, que correspondia à devoção pessoal do “bispo-soldado”, e não deixava de reflectir uma corrente da espiritualidade arreigada na época. Nessa mesma ocasião, por decreto episcopal, instituiu o Cabido. Patrocínio Dias, falecido em 1965, viria a jazer na “sua” sé, em arca tumular, como vimos. Entre 1932 e 1934, efectuou-se uma profunda remodelação no interior e no exterior do imóvel, orientada, não por um arquitecto, mas por um perito de arte, o Dr. Diogo de Castro e Brito, dentro do gosto neomaneirista e neobarroco, cujo revivalismo transparece à saciedade no novo desenho da frontaria e da capela-mor. A sagração ocorreu em 31 de Maio de 1946. Ciente do peso simbólico que importava conferir à catedral, D. José do Patrocínio trabalhou com afinco para juntar ao modesto acervo da paróquia de Santiago Maior notáveis fundos sumptuários, maioritariamente oriundos de conventos e mosteiros extintos de Lisboa, de depósitos do Ministério da Guerra, do Palácio Real das Necessidades e do Paço Ducal de Vila Viçosa. São também significativas as obras de arte provenientes de outros monumentos religiosos da cidade de Beja que haviam sucumbido à sanha vandálica, como o convento de Nossa Senhora da Conceição (extinto em 1892 e parcialmente demolido nos anos seguintes), a igreja paroquial de São João Baptista (demolida em 1919) ou a igreja de São Sisenando (secularizada em 1845). O património da sé incorporou, assim, relevantes colecções de pintura, escultura e artes decorativas – com ênfase para o mobiliário, a ourivesaria, a joalharia, a paramentaria e a azulejaria. Neste último âmbito, salientam-se os painéis da primeira metade do século XVIII, retirados da igreja do convento lisboeta de Santa Mónica (vulgo, Mónicas), à Graça; fazem parte de um vasto programa iconográfico, característico do “ciclo dos Mestres”, que abarca, além de episódios bíblicos – sobressaindo os alusivos à Paixão e Morte de Cristo –, cenas alegóricas, entre as quais se destacam as de uma série inspirada em gravuras do livro do erudito sacerdote jesuíta Hermann Hugo, Pia

Desideria (1624), um clássico da literatura emblemática pós-tridentina. Também digna de atenção, a pinacoteca inclui peças da autoria de pintores activos em Lisboa, Évora e Beja nos séculos XVI-XVIII. Pela iconografia, tornou-se célebre, apesar da discreta qualidade plástica, a tela seiscentista que figura o Milagre do Urso, evocação de uma montaria, ocorrida em 1294, nos “matos do Guadiana”, durante a qual o rei D. Dinis foi salvo da morte, às mãos de um temível urso, graças à intervenção do franciscano São Luís de Anjou, bispo de Toulouse, do qual era devoto. Da transição do Barroco Final para o Rococó, data a conspícua Visita das Santas Mulheres ao Sepulcro

Vazio (segundo quartel do século XVIII), obra de um mestre familiarizado com a arte veneziana. A criação contemporânea está representada pel’A Ceia de Emaús, de Severo

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Portela (1936), na capela do Santíssimo Sacramento. É uma das mais interessantes composições de temática religiosa deste artista, natural de Coimbra e formado pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, que viveu e produziu grande parte da sua obra em Almodôvar. Deve-se-lhe igualmente um retrato de D. José do Patrocínio Dias, colocado na sala capitular. No campo da escultura, sobressaem as imagens, em mármore branco, de quatro santos jesuítas: Santo Inácio de Loiola, São Francisco Xavier, São Luís de Gonzaga e Santo Esta-

nislau Kostka, atribuídas a um escultor italiano radicado em Portugal, Giovanni Antonio Bellini, dito Pádua, por ser natural desta cidade (ou do seu alfoz), que se evidenciou, como estatuário, na remodelação da capela-mor da sé de Évora. Vindas do depósito militar da Cova da Moura, na capital, terão pertencido a uma instituição da Companhia de Jesus, provavelmente a igreja do Colégio de Nossa Senhora da Nazaré, em Arroios, onde funcionou um noviciado dessa ordem. Isto leva a aproximá-las de 1733, data inscrita num dos dois retábulos de mármore branco e róseo, também da autoria do mesmo mestre, existentes na catedral e provenientes do referido colégio. Digno de particular atenção, o núcleo de “prataria” – assim mencionado em inventários da antiga casa-forte da sé – inclui algumas das obras-primas do património diocesano, com realce para o lampadário da capela do Santíssimo Sacramento; da autoria de um dos melhores ourives lisboetas do segundo quartel do século XVIII, pertenceu à igreja de Santa Luzia e de São Brás, em Lisboa, da Ordem militar de São João do Hospital, e foi classificado como Tesouro Nacional. Quanto ao acervo têxtil, cumpre salientar a presença, entre outras alfaias de valor, dos sumptuosos estofos, importados de Itália por ocasião do baptismo do futuro rei D. Pedro V (1837), que ornaram a capela do Palácio Real das Necessidades. Tudo contribuiu para dar sumptuosidade a uma “igreja-museu”, tal como a desejara D. José do Patrocínio. A remodelação da paroquial de Santiago por Castro e Brito imprimiu-lhe um assumido carácter cenográfico, mas deixou em aberto diversos problemas de conservação, em especial das coberturas e dos terraços, exigindo cuidados assíduos. Como esta rotina de manutenção nem sempre teve os cuidados devidos – uma mácula crónica ao longo das últimas décadas –, o edifício acabou por degradar-se muito. Em 1990-1991, a instâncias do bispo D. Manuel Franco Falcão [reg. 1980-1999], procedeu-se a obras, que visaram especialmente a remodelação do espaço litúrgico e dos anexos, sob a direcção do arquitecto Aldomiro da Silva Carvalho; foram então cometidos diversos atropelos, por vezes à revelia do autor do projecto. Outros trabalhos vieram a ter lugar, ad hoc, em anos seguintes, mas, falhos de acompanhamento técnico adequado, não resolveram as debilidades estruturais, que constituíam o grande dilema de fundo, antes influindo

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para exacerbá-las. Disto foi sendo dado conta, às instâncias do estilo, pelo Departamento do Património Histórico e Artístico. Chamado a intervir, por dever do cargo, como Dombaumeister, numa fase já de pré-colapso de vários sectores do monumento, coube ao autor das presentes linhas, alfim, guiado pelos contributos de muitos, estabelecer sem demora o diagnóstico e o programa de requalificação que serviram de base ao trabalho posteriormente desenvolvido. As obras de reabilitação, orientadas pelos arquitectos Augusto Costa e Miguel Malheiro, com a colaboração da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, decorreram em 2015-2016, sob a coordenação da Associação de Desenvolvimento Regional Terras do Património, permitindo apetrechar a catedral para os novos desafios pastorais que se colocam, à porta do terceiro milénio. No decurso de tais obras, foram descobertos elementos de grande interesse patrimonial, com realce para um desenho a tinta, esboçado num pé-direito do arco da capela-mor, do lado sul; figura um balaústre que poderá ter sido traçado por Manuel João da Fonseca, aquando da sua presença na igreja, em finais do século XVII.

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA

[JOSÉ] GONÇALVES SERPA, D. José Patrocínio Dias, Bispo Soldado – Beja, Lisboa, União Gráfica, 1958; id., A Sé de Beja – Sua História em Três Épocas, [Beja], [edição do autor], 1984; TÚLIO ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja [Catálogo da Exposição, Beja, Pousada de São Francisco, 1998-1999 – Lisboa, Panteão Nacional, 2000-2001], I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; id., As Formas do Espírito. Arte Sacra da Diocese de Beja [Catálogo da Exposição, Roma-Lisboa, Istituto Portoghese di Sant’Antonio-Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio Nacional da Ajuda, 2003-2004], I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004: id., No Caminho sob as Estrelas. Santiago e a Peregrinação a Compostela [Catálogo da Exposição, Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior, 2007-2008], I-II, Santiago do Cacém-Beja, Município de Santiago do Cacém-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2012; FRANCISCO LAMEIRA, O Retábulo da Companhia de Jesus em Portugal: 1619-1759, Faro, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2006; id. & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2011; TERESA LEONOR M. VALE, Um Português em Roma – Um Italiano em Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008.

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Soli Deo Gloria

JOSÉ BRUTO DA COSTA

Os motetes e prelúdios corais de Johann Sebastian Bach [S Eisenach, 1685 – X Leipzig, 1750] constituem dois corpora artísticos tão importantes para a compreensão da música luterana da primeira metade do século XVIII que, per se, garantiriam ao compositor um lugar destacado na história da música ocidental. Ao mesmo tempo, dado o largo espectro temporal da sua composição, permitem acompanhar o percurso profissional de Bach, desde os primeiros anos enquanto organista em Weimar, Arnstadt e Mühlhausen (1703-1708), Konzertmeister da corte de Weimar (1708-1717), Kappellmeister dos príncipes de Köthen (1717-1723) e o de Kantor do município de Leipzig (1723-1750). Porém, torna-se fácil ao ouvinte contemporâneo alcançar, na plenitude, o efeito destas obras musicais, despojadas das funções litúrgicas e interpretadas num contexto de concerto, pelo que é necessário revisitar três conceitos fundamentais: o coral, o motete e o pietismo. Hino congregacional da liturgia da Igreja Luterana, o coral apresenta, em termos formais e estilísticos, uma linguagem simples, verso com métrica na língua vernácula e uma melodia fácil. Durante as primeiras décadas da Reforma Protestante, Martinho Lutero [S Eisleben, 1483 – X id., 1546] referia-se-lhe como geistliche Lieder (“canção espiritual”). Todavia, nos finais do século XVI, o termo coral começou a ser aplicado aos hinos em vernáculo. Tal facto deveu-se ao costume de os cânticos congregacionais estarem entregues ao chorus choralis (monofónico), em oposição ao chorus musicus (polifónico). A publicação, em 1526, da Deutsche Messe (Missa em Alemão), por Lutero, veio transformar o coral na peça central do serviço religioso, postulando a participação de toda a comunidade. Elevado a um status litúrgico, operou uma mudança fundamental na natureza da liturgia, assumindo-se como veículo de proclamação da Fé por parte dos fiéis, a sua oração a Cristo, em paralelo com o sermão do pastor. Neste sentido, a liturgia abandonava a dimensão sacramental católica e passava a constituir um meio de transmissão da Palavra – a Bíblia. Por oposição ao canto gregoriano, ponto de partida recorrente da música sacra católica, os corais transformaram-se na pedra angular dos compositores luteranos. Harmonizados de forma complexa, dispersos ao longo do contraponto floreado e pontificando sobre o esplendor da música barroca, esses mesmos corais encontraram no génio de Bach o seu auge de exploração musical.

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Quanto ao motete, poder-se-á definir como uma das formas de polifonia vocal mais destacadas da música ocidental, entre os séculos XIII e XIX. Ainda que, no rescaldo das reformas litúrgicas protestantes, as suas versões em latim tenham sido abandonadas, o mesmo não aconteceu com as versões em alemão. Um dos primeiros compositores a retomar este género foi Johann Walter [S Kahla, 1496 – X Dresden, 1570] que, à semelhança do que Claude Goudimel [S Besançon, ca. 1514/1520 – X Lyon, 1572] fizera em França, usou como cantus firmus melodias tradicionais para os motetes que escreveu, rapidamente substituídas por corais. A presença de Orlando di Lasso [S Mons, ca. 1530 – X Munique, 1594] e de Michael Praetorius [S Creuzburg, 1571 – X Volfembutel, 1621] nas cortes de Munique e Dresden, respectivamente, foram fulcrais não só para o estabelecimento do motete como forma musical por excelência do espaço cultural alemão, como ainda pela introdução das técnicas mais avançadas de composição, influenciando sucessivas gerações de compositores. A tradição dos motetes corais estabeleceu-se, assim, no seio da Igreja Luterana, ao longo da segunda metade do século XVII, atingindo o seu apogeu com a diversidade linguística e o apuramento técnico dos motetes de Bach. Por último, cabe salientar o pietismo, corrente espiritual nascida nos finais do século XVII, sob a inspiração de um célebre texto de Philipp Jakob Spener [S Rappoltsweiler, 1635 – X Berlim, 1705], Pia Desideria (1675). Fruto do misticismo e do emocionalismo religioso que se desenvolveu durante o século XVII, mormente no rescaldo dos horrores da Guerra dos Trinta Anos, o movimento pietista tinha como tema central a experiência do crente com Deus, na sua condição de pecador, e o caminho para a salvação, defendendo uma experiência vitalista da Fé, pela demonstração e comprovação desta numa piedade prática, pela rejeição do espírito mundano, pelo estudo da Bíblia em comunidade e pela participação activa dos leigos na vida religiosa. Isto lançou a Igreja Luterana num vívido debate, entre ortodoxos e pietistas, sendo evidente a simpatia de Bach não só pelo pietismo, mas também pela escolha continuada de corais pietistas para muitas das suas composições vocais. Destinados a serem executados ao órgão, em diversos momentos da Liturgia luterana, os prelúdios corais foram um terreno fértil para o compositor, na dupla dimensão de músico e crente, ao dar um testemunho íntimo da sua Fé e do seu virtuosismo como organista e criador. Influenciado pelos prelúdios de Johann Pachelbel [S Nuremberga, 1653 – X id., 1706] e Dieterich Buxtehude [S ca. Helsingborg, 1637 – X Lübeck, 1707], apesar da ausência óbvia do texto, Bach imprimiu uma força indizível à mensagem de cada coral. Tal é particularmente evidente no prelúdio Erbarm’dich mein, o Herre Gott (Tende piedade de mim, Senhor Deus), com a melodia do coral flutuando sobre um

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acompanhamento compassado e de extrema riqueza harmónica. A opção do maestro Michel Corboz de conferir a linha do coral ao violoncelo permite aos ouvintes usufruir, na plenitude, quer a melodia, quer o contraponto. Quanto aos motetes, Bach dá azo a um lirismo musical único, muito próximo do sentido efectivo do texto, sendo fértil em figurações de retórica musical, caras à sensibilidade barroca. Ao mesmo tempo, a utilização de corais nos motetes, dado o seu peso litúrgico, transporta a assembleia para dentro da composição, unindo-a à voz do compositor. Ich lasse dich nicht A redescoberta, em 1999, do Altbachisches Archiv, uma colectânea de obras vocais da família Bach, dada como desaparecida depois da II Guerra Mundial, permitiu, ainda que com algumas reservas, atribuir este motete a Johann Sebastian Bach, datando-o de 1712-1713, período em que o compositor era organista em Weimar, descartando a teoria que dava a autoria a Johann Christoph Bach [S Arnstadt, 1642 – X Eisenach, 1703], seu primo direito. O texto é uma adaptação do Livro do Génesis (32,26), e a terceira quadra provém do famoso hino

Warum betrübst du dich, de Erasmus Alberus [S Bruchenbrücken, 1553 – X Neubrandenburg, 1553]. O coro invoca, incessantemente, a bênção divina, primeiro de forma serena, seguida de uma secção contrapontística, pontuada pelas notas longas dos sopranos que entoam o coral Dir,

Jesu, Gottes Sohn , com texto de Hans Sachs [S Nuremberga, 1494 – X id., 1576] e melodia de Bartholomäus Monoetius [século XVI]. O coral final foi adicionado em 1802 por Johann Gottfried Schicht [S Bogatynia, 1753 – X Leipzig, 1823], fazendo uso da composição BWV421.

Lobet den Herrn Publicado em 1821, como sendo um motete de Bach, é hoje considerado por muitos parte integrante de uma cantata perdida, dado o facto de estar escrito a 4 vozes e não a duplo-coro, como os restantes motetes do autor, e de uma escrita demasiado virtuosística para o género em questão. Fazendo uso dos versículos 1-2 do Salmo 117, está dividido em três momentos distintos: uma secção virtuosa, em que as tríades iniciais ascendentes sobre a palavra Lobet, são uma excelente figura de retórica musical, representando a Santíssima Trindade; uma secção intermédia, mais vertical, semelhante a um coral, repleta de jogos contrapon tísticos sobre valores longos, aludindo à eternidade, Ewigkeit; e uma esfusiante fuga conclusiva, sobre a palavra Halleluja.

Jauchtzet dem Herrn, alle Welt Aparentemente, Bach terá idealizado este motete para o 1.º Domingo do Ano Novo, recorrendo ao motete homónimo de Georg Telemann [S Magdburgo, 1681 – X Hanburgo, 1767] no 1.º

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andamento e da sua Cantata BWV28, estreada em Leipzig, a 30 de Janeiro de 1725, no 2.º andamento. Anos mais tarde, o sucessor de Bach como Kantor em Leipzig, Johann Gottlob Harrer [S Görlitz, 1703 – X Karlsbad, 1755], acrescentaria um 3.º andamento, recorrendo, para o efeito, à cantata

Lobt Gott, de Telemann. O 1.º andamento, sobre os versículos 1-2 do Salmo 100, apresenta duas secções contrastantes: uma inicial, dialogante, entre os dois coros, e uma fuga sobre as palavras Kommet vor sein

Angesicht (Apresentem-se diante da Sua Face ) que percorre as oito vozes. O 2.º andamento utiliza a estrofe final do hino Nun lob, mein Seel, de Johann Gramann [S Neustadt an der Aisch, 1487 – X Königsberg, 1541], presente na voz do soprano, sobre um delicado contraponto imitativo das restantes vozes. Conclui-se o motete com um gracioso diálogo entre os dois coros, com o versículo 7,12 do Apocalipse.

Jesu, meine Freude Escrito após a chegada do compositor a Leipzig, na qualidade de Kantor, em 1723, este motete fúnebre é considerado, justamente, uma das obras-primas de Bach. São 11 andamentos organizados internamente de forma simétrica, construída em torno de um andamento pivot (n.º 6), em espelho: Coral-Coro-Coral-Trio-Variação Coral-FUGA-Variação Coral-Trio-Coral-Coro-Coral. A simetria aplica-se também ao texto utilizado, os números pares são retirados de uma famosa Epístola de São Paulo ( Ad Rom., 8,1-2; 9-11), e os ímpares do hino homónimo de Johann Franck [S Guben, 1618 – X id., 1677]. Sobre o homem pende a doce eternidade no Paraíso ou o penoso castigo do Inferno. Em constante tensão, caminha-se até ao centro do motete. Aí, os melismas ascendentes da fuga simbolizam o espírito de Deus que habita em todos os crentes. Daí em diante, a tensão dá lugar à serenidade: Cristo liberta o Homem do Pecado e da Morte.

Komm, Jesu, Komm Provavelmente escrito entre 1723 e 1734, trata-se do único motete de Bach que utiliza, ao invés de textos bíblicos, um poema de Paul Thymich [S Großenhain, 1656 – X Leipzig, 1694] para o funeral do filósofo Jakob Thomasius [S Leipzig, 1622 – X id., 1684], professor da Universidade de Leipzig, musicado por Johann Schelle [S Geising, 1648 – X Leipzig, 1701], também ele Kantor de Leipzig (entre 1677 e 1701). Para duplo coro, a invocação constante e melancólica da vinda de Jesus para salvação do moribundo transforma-se, num segundo momento, em proclamação serena de Cristo como único “Caminho, Verdade e Vida”. Termina o motete com uma solene oração, uma melodia harmonizada ao jeito de um coral.

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[AD LITTERAM] Lobet den Herrn, alle Heiden

Louvai ao Senhor, todos os gentios

Lobet den Herrn, alle Heiden,

Louvai ao Senhor, todos os gentios,

und preiset ihn, alle Völker!

e exaltem-’O, todos os povos!

Denn seine Gnade und Wahrheit waltet über uns

Porque a Sua misericórdia e verdade

in Ewigkeit. Halleluja.

reinam sobre nós eternamente. Aleluia.

Ich lasse dich nicht

Não te deixarei partir

Ich lasse dich nicht,

Não Te deixarei partir,

du segnest mich denn,

enquanto não me abençoares,

mein Jesu, ich lasse dich nicht,

meu Jesus, não Te deixarei partir,

du segnest mich denn!

enquanto não me abençoares!

Weil du mein Gott und Vater bist,

Pois és o meu Deus e meu Pai,

dein Kind wirst du verlassen nicht,

não abandonarás o Teu filho,

du väterliches Herz!

coração paternal!

Ich bin ein armer Erdenkloß,

Sou um pobre torrão de terra,

auf Erden weiß ich keinen Trost.

na Terra não conheço consolo.

Jauchzet dem Herrn, alle Welt

Exulte ao Senhor toda a terra

Jauchzet dem Herrn, alle Welt,

Exulte ao Senhor toda a terra,

dienet dem Herrn mit Freuden!

sirvam o Senhor com alegria!

Kommet vor sein Angesicht

Vinde à sua presença

mit Frohlokken, Alleluja!

com júbilo, Aleluia!

Sei Lob und Preis mit Ehren,

Sejam louvados na sua glória,

Gott Vater, Sohn und Heiliger Geist!

o Deus Pai, o Filho e o Espírito Santo!

Der woll in uns vermehren,

Que se multiplique em nós,

was er aus Genaden uns verheißt,

o que nos prometeu na sua graça,

daß wir ihm fest vertrauen,

para que n’Ele acreditemos firmemente,

gänzlich verlassen auf ihn,

e n’Ele confiemos totalmente,

von Herzen auf ihn bauen,

com todo o nosso coração,

daß unser Herz, Mut, und Sinn

para que o nosso coração e os nossos sentidos

ihm tröstlich sollen anhangen,

a Ele se juntem com confiança.

drauf singen wir zur Stund:

Assim cantemos nesta hora:

Amen, wir werdens erlangen,

Ámen, nós conseguiremos,

glauben wir aus Herzens Grund.

acreditamos do fundo dos nossos corações.

Amen.

Ámen.

Lob und Ehre und Weisheit

Louvor, honra e sabedoria

und Dank und Preis

graças e louvor,

und Kraft und Stärke,

força e poder,

sei unserm Gott von Ewigkeit zu Ewigkeit.

Ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos.

Amen.

Ámen.

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Jesu, meine Freude

Jesus, minha alegria

Jesu, meine Freude,

Jesus, minha alegria,

Meines Herzens Weide,

deleite do meu coração,

Jesu, meine Zier,

Jesus, meu tesouro,

Ach wie lang, ach lange

há quanto tempo, há quanto

Ist dem Herzen bange

anseia por Ti o meu coração

Und verlangt nach dir!

e Te deseja ardentemente!

Gottes Lamm, mein Bräutigam,

Cordeiro de Deus, meu esposo,

Außer dir soll mir auf Erden

nada senão Tu me poderá ser

Nichts sonst Liebers werden.

mais precioso sobre a Terra!

Es ist nun nichts Verdammliches an denen, die in

Portanto, agora não há mais condenação alguma

Christo Jesu sind, die nicht nach dem Fleische

para os que estão em Cristo Jesus, para os que

wandeln, sondern nach dem Geist.

caminham não pela via da carne, mas sim pela via do espírito.

Unter deinem Schirmen

Sob a Tua protecção,

Bin ich vor den Stürmen

estou a salvo da tempestade,

Aller Feinde frei.

livre de todos os inimigos.

Lass den Satan wittern,

Que Satanás se encolerize,

Lass den Feind erbittern,

que os inimigos se enfureçam,

Mir steht Jesus bei.

Jesus estará comigo.

Ob es itzt gleich kracht und blitzt,

Ainda que comece a relampejar e a trovejar,

Ob gleich Sünd und Hölle schrecken:

ainda que o pecado e o inferno aterrorizem:

Jesus will mich decken.

Jesus irá proteger-me.

Denn das Gesetz des Geistes, der da lebendig

É que a lei do Espírito que dá a vida libertou-me,

macht in Christo Jesu, hat mich frei gemacht von

em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte.

dem Gesetz der Sünde und des Todes. Trotz dem alten Drachen,

Desafia o velho dragão,

Trotz des Todes Rachen,

desafia as fauces da morte,

Trotz der Furcht darzu!

desafia também o medo!

Tobe, Welt, und springe,

Enfurece-te, Terra, e treme,

Ich steh hier und singe

que eu continuo aqui e canto

In gar sichrer Ruh.

em segurança e em paz.

Gottes Macht hält mich in acht;

O poder de Deus mantém-me vigilante;

Erd und Abgrund muss verstummen,

Terra e abismo irão aquietar-se,

Ob sie noch so brummen.

por muito que possam ainda ribombar.

Ihr aber seid nicht fleischlich, sondern geistlich,

Ora vós não estais sob o domínio da carne, mas

so anders Gottes Geist in euch wohnet.

sob o domínio do Espírito, pressupondo que o

Wer aber Christi Geist nicht hat, der ist nicht

Espírito de Deus habita em vós.

sein.

Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse não lhe pertence.

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Weg mit allen Schätzen!

Fora com todos os tesouros!

Du bist mein Ergötzen,

Tu és o meu regozijo,

Jesu, meine Lust!

Jesus, meu deleite!

Weg ihr eitlen Ehren,

Fora, vãs honrarias,

Ich mag euch nicht hören,

Não quero mais ouvir-vos,

Bleibt mir unbewusst!

permanecei de mim desconhecidas!

Elend, Not, Kreuz, Schmach und Tod

Miséria, necessidade, sacrifício, opróbrio e morte,

Soll mich, ob ich viel muss leiden,

por muitos que sejam os meus sofrimentos,

Nicht von Jesu scheiden.

não hão de separar-me de Jesus.

So aber Christus in euch ist, so ist der Leib zwar

Se, porém, Cristo está em vós, o corpo está

tot um der Sünde willen; der Geist aber ist das

morto, pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela

Leben um der Gerechtigkeit willen.

justiça.

Gute Nacht, o Wesen,

Boa noite, criaturas

Das die Welt erlesen,

que escolhestes o mundo,

Mir gefällst du nicht.

não me agradais.

Gute Nacht, ihr Sünden,

Boa noite, pecados,

Bleibet weit dahinten,

ficai longe daqui,

Kommt nicht mehr ans Licht!

Não mais vinde à luz!

Gute Nacht, du Stolz und Pracht!

Boa noite, orgulho e ostentação!

Dir sei ganz, du Lasterleben,

E a ti, ó vida de corrupção,

Gute Nacht gegeben.

Digo também boa noite.

So nun der Geist des, der Jesum von den Toten

E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de

auferwecket hat, in euch wohnet, so wird auch

entre os mortos habita em vós, Ele, que

derselbige, der Christum von den Toten

ressuscitou Cristo de entre os mortos, também

auferwecket hat, eure sterbliche Leiber lebendig

dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do

machen um des willen, dass sein Geist in euch

Seu Espírito que habita em vós.

wohnet. Weicht, ihr Trauergeister,

Afastai-vos, espíritos de tristeza,

Denn mein Freudenmeister,

pois o Senhor da minha alegria,

Jesus, tritt herein.

Jesus, está a chegar.

Denen, die Gott lieben,

Para aqueles que amam a Deus,

Muss auch ihr Betrüben

até as suas preocupações

Lauter Zucker sein.

serão o mais puro açúcar.

Duld ich schon hier Spott und Hohn,

Ainda que suporte aqui escárnio e desprezo,

Dennoch bleibst du auch im Leide,

permaneces comigo mesmo na dor,

Jesu, meine Freude.

Jesus, minha alegria.

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Komm, Jesu, komm

Vem, Jesus, vem

Komm, Jesu komm, mein Leib ist müde,

Vem, Jesus, vem, o meu corpo está cansado,

die Kraft verschwindt je mehr und mehr,

as minhas forças desaparecem mais e mais,

ich sehne mich nach deinem Friede;

anseio pela Tua paz;

der saure Weg wird mir zu schwer!

o árduo caminho está a tornar-se demasiado

Komm, komm, ich will mich dir ergeben;

difícil para mim!

du bist der rechte Weg, die Wahrheit und das

Vem, vem, quero entregar-me a Ti;

Lieben.

Tu és o caminho verdadeiro, a verdade e a vida.

Arie

Ária

Drum schließ ich mich in deine Hände

Por isso me entrego nas Tuas mãos,

und sage, Welt, zu guter Nacht!

E digo ao mundo boa-noite!

Eilt gleich mein Lebenslauf zu Ende,

Ainda que a minha vida corra para o fim,

ist doch der Geist wohl angebracht.

o espírito está bem preparado.

Er soll bei seinem Schöpfer schweben,

Irá subir para junto do Criador,

weil Jesus ist und bleibt der wahre Weg zum

Pois Jesus é e permanecerá o caminho verdadeiro

Leben.

para a vida. Tradução: José Noronha de Valladares

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Coro Gulbenkian

Fundado em 1964, apresenta-se, quer como grupo a cappella, interpretando a polifonia dos séculos XVI e XVII, quer em colaboração com a Orquestra Gulbenkian ou outros agrupamentos, para a execução de obras coral-sinfónicas do repertório clássico, romântico ou contemporâneo. Na música do século XX, tem interpretado, frequentemente em estreia absoluta, inúmeras obras contemporâneas de compositores portugueses e estrangeiros. Colaborou com as mais prestigiadas orquestras mundiais, entre as quais a Philharmonia de Londres; a Freiburg Barockorchester; a Orquestra do Século XVIII; a Filarmónica de Berlim; a Sinfónica de Baden-Baden; a Sinfónica de Viena; a Sinfónica do Norte-Vestefália; a Orquestra do Concertgebouw (Amesterdão); a Orquestra Nacional de Lyon; a Orquestra de Paris; a Orquestra Juvenil Gustav Mahler; e a Orquestra Sinfónica Simón Bolívar. Foi dirigido por grandes figuras, como Claudio Abbado, Sir Colin Davis, Frans Brüggen, Franz Welser-Möst, Gerd Albrecht, Gustavo Dudamel, Jonathan Nott, Michael Gielen, Michael Tilson Thomas, Rafael Frübeck de Burgos, René Jacobs e Theodor Guschbauer. Participou em importantes festivais internacionais, v.g., Festival Eurotop (Amesterdão), Festival Veneto (Pádua e Verona), City of London Festival, Hong Kong Arts Festival e Festival Internacional de Música de Macau. Em anos recentes, apresentou-se no Festival de Aix-en-Provence, numa produção de Elektra, com a Orquestra de Paris, dirigida por Esa-Pekka Salonen, que teve a assinatura do encenador Patrice Chéreau. Em 2015, participou, em Paris, no concerto comemorativo do Centenário do Genocídio Arménio, com a World Armenian Orchestra, dirigida por Alain Altinoglu. A discografia do Coro Gulbenkian averbou, ao longo de décadas, um repertório diversificado, com particular incidência na música portuguesa dos séculos XVI a XX. Algumas destas gravações receberam prémios internacionais. Desde 1969, Michel Corboz é o Maestro Titular do Coro, sendo as funções de Maestro Adjunto e de Maestro Assistente desempenhadas por Jorge Matta e Paulo Lourenço, respectivamente.

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Fernando Miguel Jalôto Cravo

Graduou-se no Departamento de Música Antiga e Práticas Históricas de Interpretação do Koninklijk Conservatorium, de Haia, com Jacques Ogg. Frequentou masterclasses de Gustave Leonhardt, Olivier Baumont, Ilton Wjuniski, Ketil Haugsand e Laurence Cummings e estudou órgão barroco, pianoforte e clavicórdio. Possui o mestrado em Música pela Universidade de Aveiro. Integrou a Académie Baroque Européenne d’Ambronay, em 2004, sob a direcção de Cristophe Rousset, e as Academias MUSICA (Neerpelt), sob a direcção de Dirk Snellings e Wim Becu, em 2006, 2008 e 2010. Como solista e continuísta, apresentou-se em vários festivais e concertos em Portugal, Espanha, França, Bélgica, Países Baixos, Reino Unido, Áustria, República Checa, Polónia, Bulgária e Japão. É co-fundador e director artístico do Ludovice Ensemble, membro da Orquestra Barroca da Casa da Música do Porto e solista convidado da Orquestra Gulbenkian. Apresenta-se internacionalmente com grupos especializados, v.g., La Galanía, Capilla Flamenca, Oltremontano, La Colombina e Bonne Corde. Pertenceu à Orquestra Barroca Divino Sospiro. Trabalhou sob a direcção de Ton Koopman, Roy Goodman, Christina Pluhar, Christophe Rousset, Fabio Biondi, Laurence Cummings, Antonio Florio, Harry Christophers, Andrew Parrott, Rinaldo Alessandrini, Chiara Banchini, Enrico Onofri, Alfredo Bernardini, Jaap ter Linden, Elizabeth Wallfish, Christophe Coin, Erik van Nevel, Marco Mencoboni, Masaaki Suzuki e Riccardo Minasi, entre outros.

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Sofia Diniz Viola da gamba

Tendo recebido, desde cedo, formação nas áreas da dança e da música nas escolas do Conservatório Nacional, optou pelo curso de Violoncelo e concluiu o bacharelato na Escola Superior de Música de Lisboa. Foi nos cursos da Academia de Música Antiga de Lisboa que surgiu o seu interesse pela interpretação histórica em instrumentos originais e a motivação para especializar-se num domínio tão sedutor. Como bolseira do Centro Nacional de Cultura e, mais tarde, do Programa Nuffic-Huygens, estudou Violoncelo Barroco e Viola da Gamba com Rainer Zipperling, em Colónia, e Viola da Gamba, com Wieland Kuijken e Philippe Pierlot, em Haia e Bruxelas. Toca estes dois instrumentos em vários grupos de câmara e orquestras, v.g., Concerto Campestre, Capela Real, Ludovice Ensemble, Ricercar Consort, The Spirit of Gambo, Il Fondamento e Colegium Vocale Gent. Já actuou em inúmeros festivais um pouco por toda a Europa, designadamente Festival de Música de Mafra, Festival Bach em Vallée Mosane (Bélgica), Les Folles Journées (Nantes) e Holland Festival Oude Musik (Utrecht). No âmbito da actividade concertística, participou em gravações com o Ricercar Consort, sob a direcção de Philippe Pierlot, e com o Colegium Vocale Gent, sob a direcção de Philippe Herreweghe.

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Marta Vicente Contrabaixo barroco

Iniciou os estudos de música na Fundação Musical dos Amigos das Crianças, de Lisboa, nas classes de Contrabaixo de Adriano Aguiar e Pedro Wallenstein. Foi igualmente discípula de Alejandro Erlich-Oliva e Duncan Fox. Obteve a licenciatura no Departamento de Música Antiga do Koninklijk Conservatorium, de Haia, nas especialidades de Violone e Contrabaixo, integrando a classe de Margaret Urquhart. Frequentou masterclasses com Rainer Zipperling, Peter Holtslag, Richard Gwilt, Sigiswald Kuijken, Charles Toet, Ton Koopman, Jacques Ogg, Patrick Ayrton, Mieneke van der Velden e Daniël Brüggen. Entre as orquestras e agrupamentos com as quais tem actuado, destacam-se a Contr’Orquestra, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, a Orquestra Gulbenkian, a Sinfonietta de Lisboa e a Deutsche Kammerphilharmonie de Bremen. Colaborou com Ars Antiqua, Segréis de Lisboa, Capela Real, Capella Patriarchal, Quarteto Arabesco, Músicos do Tejo, Sete Lágrimas, Ludovice Ensemble, Concerto Campestre, La Nave Va, Flores de Música, Suave Melodia, New Dutch Academy, Wallfisch Band, Luthers Bach Ensemble, Opera2Day e La Grande Chapelle. É membro, desde a sua formação em 2004, da Orquestra Barroca Divino Sospiro, tendo-se já apresentado com ela em Portugal, Espanha, França, Itália, Bulgária, Polónia e Japão, sob a direcção de Enrico Onofri, Rinaldo Alessandrini, Harry Cristophers, Alfredo Bernardini, Chiara Banchini, Vittorio Ghielmi, Alberto Grazzi, Christophe Coin, Marc Hantai e Michel Corboz.

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Michel Corboz Direcção musical

A entrada deste grande intérprete – hoje, já uma “figura mítica” – no universo da música está profundamente ligada ao fascínio pela voz e pelas obras escritas no domínio da música vocal. Após fundar o Ensemble Vocal de Lausanne, em 1961, a adesão entusiasta da imprensa às gravações das Vésperas e do

Orfeo, de Monteverdi (1965 e 1966), marcou o início de uma longa carreira que evoluiu naturalmente, sem ambições particulares, enriquecendo-se todos os anos com uma nova obra. Em 1969, foi nomeado Maestro Titular do Coro Gulbenkian, cargo que vem exercendo com inexcedível competência desde então. A sua discografia regista mais de cem títulos registados, muitos deles assinalados pela atribuição de prémios internacionais, mormente as inúmeras e históricas gravações com o Coro Gulbenkian. Neste domínio, salientam-se as grandes obras sacras de Bach e de Mozart; Selva Morale, de Monteverdi; as oratórias de Mendelssohn e os Requiem de Brahms, Fauré, Duruflé e Verdi. Na Ópera de Lyon, recriou

Ercole Amante, de Cavalli, bem como David et Jonathas, de Charpentier. Ainda neste âmbito, dirigiu L’Incoronazione di Poppea, Il Ritorno d’Ulisse in Patria e Orfeo, de Monteverdi. Em Dezembro de 1999, foi condecorado pelo Presidente da República Portuguesa com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

Arco triunfal [pormenor]. Escola portuguesa. Século XVIII, inícios. Igreja de Nossa Senhora ao Pé da Cruz, Beja. >

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Centros Históricos, Monumentos & Sítios

Sensivelmente entre as 15h00 e as 18h30 de cada dia de concerto, realiza-se uma visita ao centro histórico das cidades e vilas percorridas pelo Terras sem Sombra, tendo por guia vários especialistas no estudo do património cultural e natural de cada uma das terras. Tais ocasiões servem igualmente para – tomando como referência um ponto destacado – contemplar a envolvente dessa localidade. Perscrutar alguns segredos bem guardados dos territórios em que decorre o festival, através do conhecimento dos seus edifícios e paisagens singulares, sem esquecer, ainda, a cultura imaterial, constitui o objectivo desta iniciativa. O ponto de encontro coincide sempre com o espaço onde se realizam os concertos; e aos participantes na deambulação é dada a oportunidade de se familiarizarem com um bem patrimonial inédito, geralmente não acessível ao público. Highlights:

ALMODÔVAR

SERPA

11 de Fevereiro

6 de Maio

Convento de Nossa Senhora da Conceição

Palácio dos Marqueses de Ficalho

ODEMIRA

FERREIRA DO ALENTEJO

4 de Março

27 de Maio

Igreja da Misericórdia

Capela do Calvário

SANTIAGO DE CACÉM

SINES

25 de Março

3 de Junho

Palácio dos Condes de Bracial

Torre de menagem do castelo

CASTRO VERDE

BEJA

8 de Abril

17 de Junho

Igreja da Misericórdia

Colégio de São Francisco Xavier

< Acção de salvaguarda da biodiversidade nas ruínas do convento de Nossa Senhora do Loreto, Santiago do Cacém. Terras sem Sombra 2016.

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Para a Salvaguarda da Biodiversidade no Alentejo Meridional

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

Funcionando, ao mesmo tempo, como causa e como efeito de um novo capítulo na vida artística, cultural e religiosa do Alentejo, o Festival Terras sem Sombra tem, na sua génese, uma reunião de sinergias, pouco vulgar entre nós, que permite muitas formas de ver e, principalmente, de sentir o seu território. Um espaço onde marcam presença idiossincrasias e patrimónios diversos, mas complementares. Tanto a multiplicidade como a pluralidade de perspectivas são, de resto, esteios fundamentais de uma proposta que, independentemente de se haver tornado já um dos rostos mais conhecidos da região, não existe só por si, nem se centra apenas no universo da Ars

Sacra. Pelo contrário, abre-se a causas relevantes para a sociedade actual, onde o voluntariado possa despertar pequenos gestos que ajudem a marcar a diferença. Depositário e guardião de um formidável conjunto de recursos biodiversos, Portugal enfrenta grandes responsabilidades, a nível global, para os conservar e valorizar adequadamente. Esta tarefa – é sempre necessário lembrá-lo – assume a maior relevância no Alentejo, um dos territórios com mais elevados índices de preservação do Sul da Europa, mas onde a desertificação do mundo rural e a concentração de habitantes e actividades no litoral levantam desafios muito significativos. Ao abrigo de protocolos de cooperação com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Ministérios da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, do Ambiente e do Mar), associações, empresas, municípios, universidades, institutos politécnicos, agrupamentos de escolas e outras entidades presentes in situ, o FTSS promove, no dia seguinte a cada concerto, acções-piloto de salvaguarda da biodiversidade. Estas iniciativas permitem que voluntários de origens ou perfis muito diversos – músicos, espectadores, staff, membros das comunidades locais, eleitos, cientistas, técnicos, etc. – colaborem, ombro com ombro, em iniciativas úteis à conservação da natureza. Actividades simples, mas que encerram toda uma mensagem dirigida aos decisores e à opinião pública. < Acção de salvaguarda da biodiversidade em São Pedro das Cabeças, Castro Verde, Terras sem Sombra, 2016.

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12 de Fevereiro 2017 10H00 ALMODÔVAR COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Departamento de Conservação

da Natureza e Florestas do Alentejo) APOIO:

Câmara Municipal de Almodôvar; Associação dos Produtores Florestais da Serra do Caldeirão

PELAS ALTURAS DE MÚ: UMA EXPEDIÇÃO NO ALENTEJO SERRANO Segundo ponto mais alto da Serra do Caldeirão, com 577 m, a Serra de Mú constitui um extenso relevo xistograuváquico de formas arredondadas, entrecortado por rios e ribeiras. É um território singular na flora (densa e fechada nas umbrias, onde dominam o medronheiro, o sobreiro, a azinheira, a urze e o rosmaninho) e na fauna (de que se destaca a imponente águia-de-bonelli). O sustento dos habitantes provém da floresta, da pecuária e dos recursos silvestres. Entre estes, sobressai a cortiça, de magnífica qualidade, graças à densidade que a caracteriza. Não obstante, o equilíbrio do meio serrano está comprometido devido à ocorrência de fogos florestais de assinalável magnitude, permanecendo viva a memória do grande incêndio de 2004, no qual arderam cerca de 30 000 hectares. De então para cá, verificaram-se mudanças: a Serra perdeu população e viu transformar o capital florestal, mas assistiu também ao incremento dos trabalhos de prevenção e ao surgimento de novas oportunidades em torno dos recursos silvestres. Nesta actividade, procuramos compreender tal evolução, avaliar o seu impacto na salvaguarda da biodiversidade e apontar caminhos para o futuro.

5 de Março 2017 10H00 ODEMIRA COLABORAÇÃO: APOIO :

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas

Câmara Municipal de Odemira; Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora

SEGUINDO OS MEANDROS DO MIRA: QUE FUTURO PARA A NATUREZA RIBEIRINHA? O Mira tem a particularidade de, como o Sado, empreender um curso de sul para norte. Nascendo na Serra de Mú, percorre cerca de 150 km até à foz, junto a Vila Nova de Milfontes. Ao longo deste trajecto, podem encontrar-se sucessivas tipologias de habitat, dos montados de sobro e azinho até aos sapais e às zonas de vasa. É precisamente no troço inferior, próximo do estuário, que surgem algumas das suas características únicas: as pradarias marinhas, que integram a lista dos ecossistemas mais ameaçados ao nível mundial, e uma população de lontra muito peculiar. Na secção mais a jusante do estuário, existem pradarias de Zostera (género botânico pertencente à família das

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Zosteraceæ ), as quais têm importante papel na dinâmica sedimentar costeira, já que, entre outras mais-valias, permitem a fixação de invertebrados e funcionam como maternidade para várias espécies marinhas. É de salientar que, no Mira, as lontras apresentam adaptações ecológicas singulares em Portugal, pois vivem em ambientes marinhos. Durante um percurso de barco, faz-se o reconhecimento das áreas mais significativas deste rio para a conservação da biodiversidade e analisados os perigos que sobre ele recaem.

26 de Março 2017 10H00 SANTIAGO DO CACÉM COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Reserva Natural das Lagoas de

Santo André e Sancha) APOIO: Câmara Municipal de Santiago do Cacém; Centro UNESCO para a Arquitectura e a Arte Religiosas;

Real Sociedade Arqueológica Lusitana

A PAISAGEM CULTURAL EM TORNO DO CONVENTO DO LORETO: SEIS SÉCULOS DE MONTADO Esta actividade visa a paisagem cultural em torno do antigo convento de Nossa Senhora do Loreto, fundado nos meados do século XV e extinto em 1834, que pertenceu à Ordem dos Frades Menores. Os religiosos franciscanos adquiriram, em 1515, por 300$000 réis, uma mata de sobro contígua ao cenóbio, ampliaram-na e valorizaram-na. Aproveitando a proximidade ao Dia Internacional da Floresta (21 de Março), a jornada incide na preservação desta surpreendente área de montado e tem como objectivo um aspecto fulcral para que possa sobreviver – a sua renovação. Com esse objectivo, serão plantadas dezenas de sobreiros, oriundas do Viveiro da Mata Nacional de Valverde, em Alcácer do Sal, adstrita ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. Pretende-se ainda definir um “caderno de encargos” para o acompanhamento das plantas, assegurando a protecção das mesmas face à herbivoria (através da construção e implantação de protectores individuais) e procurando aumentar a hipótese de que subsistam no período de estiagem (através da rega pontual). São recrutadas, na comunidade local, famílias voluntárias, cada uma das quais assume a responsabilidade por um núcleo de árvores, que ficam identificadas com os nomes dos respectivos “padrinhos”.

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9 de Abril 2017 10H00 CASTRO VERDE COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Departamento de Conservação

da Natureza e Florestas do Alentejo) APOIO:

Câmara Municipal de Castro Verde; Associação de Agricultores do Campo Branco

MEMÓRIAS VIVAS DA PASTORÍCIA E DA TRANSUMÂNCIA: O CICLO DA LÃ NO CAMPO BRANCO As contingências da economia global em nada têm beneficiado o mercado nacional da lã. Outrora um produto de elevada riqueza, esta mal cobre, actualmente, os custos da tosquia, o que coloca muitos problemas. No contexto da paisagem cultural de Castro Verde, cuja importância, do ponto de vista da conservação da natureza, está subjacente na recente candidatura a Reserva da Biosfera, apresentada à UNESCO, a ovelha é um elemento preponderante – e a lã um dos seus produtos mais nobres. Fiel à intenção de promover o conhecimento, a salvaguarda e a valorização do “Ciclo da Lã”, o Terras sem Sombra acompanha uma tosquia tradicional das ovelhas auctótones da região (raças merino e campaniça) e visita o recém-inaugurado pólo de Lombador, dedicado à tecelagem, na freguesia de Santa Bárbara de Padrões, do Museu da Ruralidade, com sede na vila de Entradas. Um excelente fio condutor quando se trata de aprofundar uma reflexão, iniciada já em 2003, sobre o património da transumância, no plano nacional e peninsular, em terras do Campo Branco, onde a pastorícia e as actividades com ela relacionadas constituem uma referência fundamental para o entendimento deste inland do Baixo Alentejo.

7 de Maio 2017 10H00 SERPA COLABORAÇÃO: Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do Guadiana) APOIO:

Câmara Municipal de Serpa; LNEG – Laboratório Nacional de Energia e Geologia

COM ENGENHO E ARTE: O OLIVAL TRADICIONAL DA SERRA DE FICALHO E AS VARIEDADES LOCAIS A Serra de Ficalho marca a paisagem raiana de Serpa. É a elevação mais proeminente da mancha de terrenos metamórficos que se estende desde a fronteira até Montemor-o-Novo (518 m), constituindo um relevo de rochas carbonatadas no seio de uma matriz xistosa. Cambiantes litológicas conferem à zona, incluída na Rede Natura 2000, características próprias, manifestadas pela flora diversificada e rica, distinta da das áreas envolventes. A existência de matagais densos e fechados (maquis ), de difícil

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penetração, permite o abrigo de muitas espécies de mamíferos, v.g., o lince ibérico. Tal diferenciação verifica-se também ao nível do uso do solo, sendo de realçar a vocação dos trechos serranos para a cultura do olival, de cariz tradicional, com abundantes variedades locais (Cordovil de Serpa, Galega, Verdeal Alentejana, Carrasquenha, Bico de Corvo, Cornicabra, Gama e Maçanilha). Partindo de Vila Verde de Ficalho, traça-se um percurso de descoberta, nas componentes geológica, biológica e agronómica, desta área limítrofe da Andaluzia; o seu esplêndido olival tradicional dá o mote para a viagem, reveladora de alguns dos enigmáticos arcanos do território da Margem Esquerda do Guadiana.

28 de Maio 2017 10H00 FERREIRA DO ALENTEJO COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Departamento de Conservação

da Natureza e Florestas do Alentejo) APOIO:

Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo; Agência Portuguesa do Ambiente (Administração

da Região Hidrográfica do Alentejo); Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora

ILUSTRE, MAS AINDA DESCONHECIDO: PARA UM DIAGNÓSTICO DO RIO SADO O Sado, cuja fonte tem dividido opiniões, nasce perto de São Martinho das Amoreiras, no concelho de Odemira, e, tal como o Mira, corre de norte para sul. A sua importância está associada ao grande estuário, o qual, pelos valores de biodiversidade que possui, cedo foi considerado Reserva Natural. Não obstante, existe um “outro” Sado desconhecido, continental, afastado da influência marinha, mas que continua a representar um forte elemento identitário das populações e das suas manifestações sociais – de que é exemplo, hoje, o Festival do Sado, na freguesia de Figueira de Cavaleiros. Ao longo de um percurso de ca. 180 km, o rio sofre várias agressões, entre outras as causadas pelas barragens, pelos rejeitados de minas, pela agricultura intensiva, pelos efluentes urbanos e pelos areeiros. Inventariar a biodiversidade (particularmente das galerias ribeirinhas) e avaliar a qualidade da água são os objectivos desta acção, que toma por epicentro a pequena aldeia de Santa Margarida do Sado, vizinha do curso fluvial, também ela uma “princesa encantada”. Sede de uma paróquia histórica, conserva orgulhosamente a igreja tardo-medieval, assim como vestígios romanos e “visigóticos”.

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4 de Junho 2017 10H00 SINES COLABORAÇÃO:

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Sudoeste

Alentejano e Costa Vicentina, Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha) APOIO:

Câmara Municipal de Sines

NO LIMIAR ENTRE O ATLÂNTICO E O MEDITERRÂNEO: À DESCOBERTA DOS MONGES EREMITAS DA JUNQUEIRA As dunas são um ambiente de transição por excelência, marcando a fronteira entre as influências marinha e continental. No termo de Sines abundam os sistemas dunares, mormente a sul da ribeira da Junqueira, zona com uma ancestral ocupação humana e, em virtude disso, com uma longa história de modelação do solo em terra arável. À margem de um dos maiores complexos industriais do país – a Central Termoeléctrica de Sines –, saímos em busca da provença de Santa Maria da Junqueira. Este situava-se perto da foz da ribeira que desagua na praia onde, reza a tradição, veio dar a barca, conduzida por um anjo, com o corpo de São Torpes, martirizado em Pisa, que uma habitante local, Santa Celerina, recebeu e fez sepultar. O mosteiro surgiu, em 1447, por iniciativa de um grupo de homens da “pobre vida”, sob a orientação do clérigo João Gonçalves, que recebera a herdade da Junqueira, em sesmaria; integrou, breves anos depois, a Congregação dos Eremitas da Serra de Ossa (em 1578, Ordem de São Paulo). Entender como viviam e interagiam com o ambiente esses monges é o ponto de partida para um percurso de descoberta da biodiversidade que circunda a ermida de Nossa Senhora dos Remédios, âmago do complexo eremítico, entre hortejos e pomares.

18 de Junho 2017 10H00 BEJA COLABORAÇÃO: Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do Guadiana) APOIO:

Câmara Municipal de Beja; Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora

O GRANDE RIO DO SUL: MISTÉRIOS E TESOUROS DO GUADIANA O Guadiana é, em vários aspectos, um rio ímpar. Tendo uma das maiores bacias hidrográficas da Península, os seus humores moldaram, ao longo de milhões de anos, a peneplanície. O vale antigo e erodido que escavou guarda uma extraordinária biodiversidade, funcionando como um corredor privilegiado para aves, mamíferos, peixes e plantas. Mas a dinâmica hidrológica está também presente nos elementos culturais, entre os quais se distinguem as peculiares azenhas de submersão, base de

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uma florescente actividade proto-industrial, que remonta à Idade Média, e os fortins edificados na época da Guerra da Restauração (1640-1668), que traçam uma linha defensiva ao longo de pontos estratégicos. Apesar da recente intensificação das práticas agroindustriais que decorrem nas áreas envolventes a jusante de Alqueva, este mantém elementos patrimoniais de grande interesse, como os que se podem observar na zona de Quintos. O desafio decorre em torno do percurso PR1 – Azenhas e Fortins do Guadiana, do Município de Beja (homologado pela Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal), com término no curso fluvial. Aqui, far-se-á a avaliação do elemento água, recorrendo a um kit de análise.

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“E a Terra será Propícia ao Azeite”

LUÍS MIRA COROA

Como lembra este fragmento do profeta Oseias (2,24), o azeite é o óleo sagrado das “Religiões do Livro”, inspiradas pelo monoteísmo abraâmico. Todas as três o referem explicitamente. Judeus, cristãos e muçulmanos falam com reverência da oliveira, árvore simbólica da paz, e do azeite, que serve para a liturgia e se revela da maior utilidade na alimentação, na iluminação, na cosmética e na medicina. Um óleo raro no mundo, onde só 3% do total das gorduras alimentares vegetam, sendo apenas produzido em restritas regiões do globo. O geógrafo alentejano Mariano Feio fazia questão de lembrar, amiúde, que a oliveira constitui a cultura mais característica do clima mediterrânico, ao ponto de, segundo alguns autores de referência, servir até para o delimitar (Birot e Dresch). Planta autóctone da periferia do Mediterrâneo, incluindo Portugal, onde a variante bravia da Olea

Europea – o zambujeiro – existe espontânea em grande parte do país, nomeadamente em solos calcários. Árvore de Verão quente e seco, a oliveira mostra-se tolerante a temperaturas elevadas. Em bom rigor, as baixas temperaturas constituem o seu limite mais constringente, a par do excesso de água no solo. Cabe lembrar que as formas domesticadas, com fruto grado, têm origem no Médio Oriente, de onde se difundiram para o Ocidente. Há notícias de oliveiras no território do Egipto, cerca de 2000 anos a.C. Na Península Ibérica, eram bem conhecidas antes da época romana. Estrabão fala de olivais no Sul

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do actual território nacional e não faltam registos históricos da exportação de azeite para Roma. Deparamo-nos hoje, no Alentejo, pois, com uma cultura simbólica, mas cheia de modernidade e inovação dentro de uma tradição de sempre. Facto importante, o olival ocupa mais de 60% do regadio do perímetro de Alqueva. Mudar o paradigma da agricultura de sequeiro para regadio e fazê-lo com base numa cultura autóctone da região e não em espécies de outras latitudes é, realmente, algo extraordinário do ponto de vista ambiental. Portugal já se está a tornar auto-suficiente e exportador líquido de azeite, sendo precisamente o Alentejo a grande região produtora, com 76% do total nacional. Na nossa região, a zona de maior volume produtivo coincide com a área mais beneficiada pelo regadio do perímetro de Alqueva, o eixo Ferreira-Aljustrel, Beja e Serpa-Moura. Trata-se de uma cultura impactante na economia nacional. Possuímos a mais avançada tecnologia em prática: no olival em si, nos lagares que extraem o azeite e até na utilização dos resíduos e subprodutos. Uma economia em constante evolução tecnológica permite uma grande empregabilidade dos técnicos formados pelas escolas superiores locais. Mantendo e inovando uma agricultura a conviver com um ambiente sustentável, o olival revela-se modesto consumidor de água de rega: 2000 m3/hectare. Lembremos que o milho e a beterraba, por exemplo, gastam cerca de 9000 m3/hectare (ou seja, cinco vezes mais), e o trigo regado, cerca de 4000 m3/hectare (duas vezes mais). Em adubações azotadas, o seu consumo é menor do que o de uma seara de sequeiro. Além destas vantagens, o olival funciona como um notável sequestrador de carbono e um efectivo melhorador do solo, impedindo também a erosão. Uma vez que garante, em permanência, o coberto vegetal das entrelinhas, com vegetação espontânea, assegura também a biodiversidade da flora natural que, a par da disponibilidade de água e abrigo, torna este habitat favorável a uma fauna biodiversa.

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1 de Julho 18H30

Prémio Internacional Terras sem Sombra Sines, Auditório do Centro das Artes

ANA SANTOS

Na sequência de uma decisão tomada, aquando da sua primeira reunião, pelo Conselho de Curadores, a organização do Festival Terras sem Sombra criou, em 2011, o Prémio Internacional com o mesmo nome, destinado a homenagear uma personalidade ou uma instituição que se tenham salientado, ao nível global, em cada uma das seguintes categorias: a promoção da Música; a defesa do Património Cultural; e a salvaguarda da Biodiversidade. A escolha dos recipiendários é da responsabilidade de um júri internacional, designado pela Pedra Angular – Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja e pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, como entidades promotoras do Festival, uma vez ouvido o parecer das diversas instâncias deste. O Prémio consta de um diploma e de uma obra de arte encomendada a um artista contemporâneo, sendo entregue num momento culminante da temporada musical no Alentejo. Com periodicidade anual, esta distinção foi entregue pela primeira vez por S.A.R. o Príncipe Pavlos da Grécia, a 7 de Maio de 2011, em sessão solene realizada na igreja matriz de Santiago do Cacém. Por decisão unânime, a escolha do júri contemplou, então, a soprano norte-americana Cheryl Studer (Música), a Pontificia Accademia Romana di Archeologia, com sede na Cidade do Vaticano (Património Cultural), e o oceanólogo português Mário Ruivo (Biodiversidade). Em 2012, o Prémio distinguiu a soprano grega Dimitra Theodossiou (Música), a museóloga e historiadora de arte portuguesa Maria Helena Mendes Pinto (Património Cultural) e o biólogo espanhol Miguel Ángel Simón (Biodiversidade). A cerimónia da sua entrega realizou-se no Auditório Municipal de Grândola, em 7 de Julho, e foi presidida pelo Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Carlos Moedas, em representação do Primeiro-Ministro. A Casa da Cultura da Comporta, no concelho de Alcácer do Sal, acolheu a celebração do Prémio Terras sem Sombra em 2013, a que presidiu S.A.R. a Infanta D. Pilar de Borbón, duquesa de Badajoz. Foram premiados o baixo italiano Enzo Dara (Música), a

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Prémio Internacional Terras sem Sombra 2016, na categoria de Música e Musicologia – Michael Haefliger, músico e musicólogo.

Prémio Internacional Terras sem Sombra 2016, na categoria de Património Cultural – Khaled al-Asaad [a título póstumo]. O prémio foi recebido por estudantes sírios de Arqueologia nas Universidades de Coimbra e Lisboa.

Prémio Internacional Terras sem Sombra 2016, na categoria de Biodiversidade – Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal, representada por José Raimundo Quintal.

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Associação dos Arqueólogos Portugueses (Património Cultural), que celebrou naquele ano o 150.º aniversário da sua fundação, e o investigador angolano Pedro Vaz Pinto (Biodiversidade). O ano de 2014 foi o primeiro em que o acto de entrega decorreu no Auditório do Centro das Artes de Sines. Em sessão presidida pelo Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, o Prémio galardoou a soprano espanhola Teresa Berganza (Música), o estadista e homem de letras brasileiro Angelo Oswaldo de Araújo Santos (Património Cultural) e o ambientalista português Serafim Augusto de Freitas Riem (Biodiversidade). Sines acolheu igualmente, no Auditório do Centro das Artes, a cerimónia de 2015, tendo como presidente S.A.R. o Príncipe D. Pedro de Borbón-Duas Sicílias, duque de Noto. Receberam o Prémio o músico e musicólogo espanhol Ismael Fernández de la Cuesta (Música), o Centro Nacional de Cultura, com sede em Lisboa (Património Cultural), e o Programa para o Mediterrâneo do WWF – World Wide Fund For Nature, que irradia a sua acção internacional a partir de Roma (Biodiversidade). Em 2016, foram distinguidos o director musical e gestor cultural alemão Michael Haefliger (Música), o arqueólogo e museólogo sírio Khaled al Asaad (Património Cultural), a título póstumo, e a Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal (Biodiversidade). Sob a presidência do Ministro da Cultura, Luís Filipe de Castro Mendes, a sessão solene decorreu, mais uma vez, no Auditório do Centro das Artes de Sines.

Os premiados serão oportunamente anunciados em www.festivalterrassemsombra.org

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AGRADECIMENTOS

Concha Gallego Luís Pedro Ramos Manuel Gracia Rivas Maria das Dores Galante de Carvalho Maria de Fátima Egydo Nobre Pedro Lourenço Ferreira Raquel Ventura Teresa Segismundo


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Terras sem Sombra é membro de

e foi premiado por

EUROPE FOR FESTIVALS FESTIVALS FOR EUROPE

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mais destacado do seu género em Portugal.

a É uma iniciativa da sociedade

civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, as igrejas da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra. a Resulta da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo e Ribatejo, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas

a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo. a

locais e as famílias.

Tem uma programação de qualidade internacional de que fazem parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística. a O diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras. a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.

a A valorização dos

recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre. a Da carta magna do Festival fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade. a Os concertos e demais actividades são de acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.

TERRAS SEM SOMBRA | 13.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2017

Fundado em 2003, o Festival Terras sem Sombra tem vindo a afirmar-se como o

terras sem sombra DO ESPIRITUAL NA ARTE IDENTIDADES E PRÁTICAS MUSICAIS NA EUROPA DOS SÉCULOS XVI-XX


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