Fundado em 2003, o Fe stiv al Te rras se m So mbra tem vindo a afirmar-se como o mais destacado do seu género em Portugal.
a É uma iniciativa da sociedade
civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, as igrejas da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra. a Resulta da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo e Ribatejo, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas locais e as famílias, sem esqueçer as instituições nacionais e internacionais aqui radicadas. a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo.
a Tem uma programação de qualidade internacional de que fazem
parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística. a O diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras. a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.
a A valorização
dos recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre. a Da carta mag na do Festival, fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade.
a Os concertos e demais actividades são de
acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.
TERRAS SEM SOMBRA | 11.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2015
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FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO
terras sem sombra O Magnum Mysterium Diálogos Musicais no Sul da Europa (Séculos X-XXI)
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Sob o Alto Patrocínio de Sua Ex.ª o Presidente da República Portuguesa, Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva
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terras sem sombra 11.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO 2015
O Magnum Mysterium Diálogos Musicais no Sul da Europa (Séculos X-XXI)
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DIRECÇÃO-GERAL
TRADUÇÃO
José António Falcão
Consejería de Cultura, Embajada de España José António Falcão Maria das Dores Galante de Carvalho Pedro Lourenço Ferreira Regina Sutre Silvana Urzini
DIRECÇÃO ARTÍSTICA
Juan Ángel Vela del Campo DIRECÇÃO EXECUTIVA
Sara Fonseca FOTOGRAFIA2
Paula Brito (Produção) Pedro Rocha (Biodiversidade)
Alfredo Rocha Francisco Borba Hélio Ramos Imagens de Luz José António Falcão José Freitas Município de Odemira Patrícia Bernardo Sara Fonseca Sofia Perestrello
COMUNICAÇÃO
DESIGN
João Vasco Villalobos
Beatriz Horta Correia/Linha de Letras
TEXTOS1
REVISÃO
Alexandre Delgado António Martins Quaresma Bárbara Villalobos Diogo Alte da Veiga Elena Mendoza Franco Pavan José António Falcão Juan Ángel Vela del Campo Jürgen Ruck Luís Miguel Santos Manuel Carlos de Brito Pedro Rocha Ricardo Pereira Rita Torres Rui Cabral Lopes Rui Vieira Nery
António José Massano
COMISSÃO ORGANIZADORA
António Gonçalves Francisco Lobo de Vasconcellos José António Falcão Miguel Gaspar Sara Fonseca CONSULTORES
IMPRESSÃO
M-2 Artes Gráficas DEPÓSITO LEGAL
© Departamento do Património Histórico e Artístico
da Diocese de Beja e Pedra Angular – Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja Imagem da capa: Casula [pormenor]. Trabalho italiano (?). Século XVI (segunda metade). Mértola, igreja matriz de Nossa Senhora de Entre-as-Vinhas.
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A fixação dos textos interpretados é da responsabilidade dos grupos convidados.
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As demais fotografias são da responsabilidade dos intérpretes e grupos convidados.
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“Mais do que fruir a directa emoção dum lúdico passeio, quem percorre o Alentejo tem de meditar. E ir explicando aos olhos a significação profunda do que vê.” MIGUEL TORGA, Portugal
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ÍNDICE 11 13 15 17 21 27 30 33
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A Beleza da Arte Cristã | † João Marcos Biodiversidade e Cultura | Miguel Castro Neto Viagem Intemporal | Carlos Moedas Sinais dos Tempos | José António Falcão Da Música e dos seus Diálogos, em Terras de Fraternidade | Juan Ángel Vela del Campo Preparar o Futuro | Sara Fonseca PROGRAMA MUSICAL
Concerto de Abertura | ALMODÔVAR Medievália Ibérica: Monodias e Polifonias Hispano-Portuguesas dos Séculos X a XIV Igreja Matriz de Santo Ildefonso | José António Falcão Do Mondego, pelo Minho/Miño, ao Arlanzón: Expressões da Música Medieval Litúrgica Ibérica | Diogo Alte da Veiga BIOGRAFIAS
48 50 51 52 55
Schola Antiqua Juan Carlos Asensio Palacios Concerto II | ODEMIRA Davide Perez: Nápoles-Lisboa Igreja Matriz de São Salvador | António Martins Quaresma & José António Falcão Davide Perez – Uma Vida entre Nápoles e Lisboa | Manuel Carlos de Brito BIOGRAFIAS
63 64 66 68 69 70 71
72 74
I Turchini Antonio Florio Valentina Varriale Daniela Salvo Rosario Totaro Giuseppe Naviglio Concerto III | SINES O Século XVIII ao Piano em Portugal e Espanha: De Carlos de Seixas a Antonio Soler Igreja Matriz de São Salvador | José António Falcão & Ricardo Pereira Do Alto Barroco ao Limiar do Classicismo: Sonoridades da Música Ibérica para Tecla | Rui Cabral Lopes BIOGRAFIAS
78 81
82 86
Iván Martín Concerto IV | GRÂNDOLA Vinho Velho em Odres Novos: Perspectivas das Novas Gerações sobre a Voz Humana Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção | José António Falcão Do Outro Lado do Espelho | Luís Miguel Santos
< Nossa Senhora da Boa Morte. Escola portuguesa. Século XVIII (inícios). Beja, igreja de Nossa Senhora do Carmo.
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BIOGRAFIAS
91 92 93 95 96 98 99 100
Patricia Janeková Celeste Shin Je Bang Julia Grejtáková Concerto V | SANTIAGO DO CACÉM O Tempo e o Modo: Diálogos entre Guitarras Igreja Matriz de Santiago do Cacém | José António Falcão Caprichos Goyescos | Jürgen Ruck Se Amanhecer, Partimos | Rita Torres Breviário de Miragens | Elena Mendoza BIOGRAFIAS
102 103 105
108 110
Jürgen Ruck António Chainho Concerto VI | CASTRO VERDE Íntimo Misticismo: Música Espiritual Hispano-Portuguesa do Renascimento Central e Tardio Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição | José António Falcão Eloquência Interior | Bárbara Villalobos BIOGRAFIAS
117 118 119 122 124
Capilla Santa María Carlos Mena Concerto VII | Moura O Canto do Sul de Itália: Sicília e Duas Calábrias (Séculos XVI-XVII) Igreja Matriz de São João Baptista | José António Falcão Tesouros Musicais da Itália Meridional | Franco Pavan BIOGRAFIAS
132 133 134 137
138 143 150
Laboratorio’600 Pino De Vittorio Franco Pavan Concerto de encerramento | Beja A Força da Serenidade: Música para o Fim dos Tempos (Fragoso e Verdi) Igreja de São Salvador | José António Falcão & Ricardo Pereira Face à Eternidade | Rui Vieira Nery Noites Luminosas | Alexandre Delgado
158 159 160 161 162 163 164 166 169 179 186 188
Cristiana Oliveira Ana Ferro Vicente Ombuena Rui Silva Orquestra do Norte Coro do Teatro Nacional de São Carlos Giovanni Andreoli José Ferreira Lobo No Âmago da Conservação da Natureza | Pedro Rocha Salvaguarda da Biodiversidade do Alentejo Meridional A Aguardente de Medronho, Património do Sul Prémio Internacional Terras sem Sombra
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A Beleza da Arte Cristã
A 11.ª edição do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo oferece-nos de novo momentos de diálogo entre as formas musicais e as formas arquitectónicas, escultóricas e pictóricas do vasto património artístico da Diocese de Beja. Eruditas ou populares, muito elaboradas e complexas ou simples e essenciais, estas diversas formas artísticas são expressão de uma mesma estética, a estética cristã. De facto, há uma estética cristã, assim como existem uma doutrina, uma liturgia e uma moral próprias do Cristianismo. Diferentemente de outras estéticas do nosso tempo nas quais a Beleza anda divorciada da Verdade e da Bondade, e em que as obras de arte são quase só espelho da alma do artista com suas emoções e anseios, conflitos e desilusões, na estética cristã a Beleza é a encarnação e a dádiva daquele tesouro que a Verdade e a Bondade anunciam e prometem. Trata-se de uma estética simbólica, pela qual se integram harmoniosamente num todo, numa mesma comunhão, as diferenças de várias partes e em que cada elemento está como quem serve e exalta a excelência do outro. A sua primeira forma histórica é a comunidade cristã reunida pela pregação dos apóstolos, da qual se diz, no livro dos
Actos dos Apóstolos, que “eram um só coração e uma só alma”. O mistério da comunhão divina das três pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, manifesta-se em escala humana na Igreja corpo de Cristo, onde a nossa vida é iluminada e transfigurada pela beleza de Deus. A estética cristã é também dramática pois tem a ver com o percurso do Logos que sai do Pai e ao Pai regressa depois de ter realizado a sua missão. Fala, por isso mesmo, de Encarnação e de Assunção, de esvaziamento e de plenitude, de Morte na Cruz e de Ressurreição, de Descida aos Infernos e de Ascensão aos Céus. Nela se expressa o drama da Redenção com os seus percursos de procura e de revelação, de purificação e de transfiguração em que a graça divina, dialogando com a nossa liberdade, transforma em história de salvação a vida do homem sobre a terra.
<< Órgão. Escolas alemã e portuguesa. Século XVIII (primeira metade). Almodôvar, igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição. < The Hilliard Ensemble, num ensaio para o concerto de encerramento da sua carreira. Santiago do Cacém, igreja Matriz de Santiago Maior, 26 de Abril de 2014.
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Entre o início da fé que já o justifica e a plenitude da caridade que lhe foi prometida mas que ainda não possui, o cristão caminha na esperança como membro da Igreja, povo em Êxodo, rumo à Terra Prometida. A estética cristã é, ainda, doxológica, pois, a Beleza é expressão da glória, do esplendor de Deus que, ao manifestar-Se, nos deslumbra. Como sabiamente refere Hans Urs von Balthasar, podemos ver resumida a função da estética cristã nestas palavras do prefácio da missa do Natal: “Pelo mistério do Verbo Encarnado nova luz da vossa glória brilhou sobre nós para que, contemplando Deus visível aos nossos olhos, aprendamos a amar o invisível.”
Em boa verdade, a estética cristã, tal como Jesus Cristo, é uma realidade divina e humana. Só é possível por obra do Espírito Santo e no seio da Igreja, tal como a Encarnação do Verbo de Deus aconteceu por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria. As mais genuínas obras de arte cristã realizadas por homens e mulheres dóceis aos impulsos do Espírito são epifania do Reino de Deus: dão notícia do céu ao homem peregrino na terra, fortalecendo-o nas dificuldades inevitáveis do percurso e denunciando-lhe a perigosa sedução das portas do abismo. Finalmente, a estética cristã é enquadrada por uma Ontologia da Beleza que a não deixa prisioneira do subjectivismo e a defende da fragmentação e das manipulações ideológicas de cada contexto histórico e social. Sem impedir os artistas de se dizerem na diversidade das suas vivências e, obviamente, sem tolher às obras o serem também documento das épocas em que foram produzidas, ela torna possível o milagre que as caracteriza: com maior ou menor intensidade, perpassa nelas o sopro do Espírito Criador que lhes confere uma dimensão profética e faz com que, no dizer de Romano Guardini, nelas ressoe o eco de uma boa notícia, em última análise, do Evangelho. As obras de arte que vemos e escutamos nos diversos concertos deste festival foram criadas, na sua maioria, para a acção litúrgica. É bom, certamente, que muitos possam fruir da sua beleza nestes concertos realizados nas igrejas desta Diocese. Mais felizes porém, são aqueles que as podem saborear à mesa do grande banquete que é a Sagrada Liturgia, como partes de um todo que o melhor dos concertos não pode recriar. † JOÃO MARCOS Bispo Coadjutor de Beja
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Biodiversidade e Cultura
A biodiversidade é um factor único e característico de cada região. A sua valorização e a sua protecção permitem um desenvolvimento económico capaz de reequilibrar as assimetrias regionais, tornando os territórios de baixa densidade mais atractivos e empreendedores. A constituição das áreas protegidas serve para proteger os valores ambientais e a biodiversidade, mas também para promover e valorizar as actividades económicas que contribuam para o desenvolvimento local. O Festival Terras sem Sombra é uma associação improvável entre a biodiversidade e música. Música e ambiente reuniram populações e organizações locais que, através da música, se dedicaram a causas ambientais, reflectiram sobre a extinção de espécies e o efeito das alterações climáticas, a qualidade de água e outros temas. Em contexto internacional as Nações Unidas promoveram uma iniciativa “Música e Ambiente” por considerarem a música como o meio mais poderoso para comunicar mensagens sobre ambiente a biliões de pessoas em todo o mundo, independentemente da raça, religião, género ou idade. O Festival Terras sem Sombra vai mais além; une música e biodiversidade em territórios de elevado valor natural. Em território Alentejano, promove-se o desenvolvimento cultural, a biodiversidade e a paisagem, dando a conhecer a música sacra, o património construído, o património natural e o infinito horizonte dos campos alentejanos. A valorização das áreas protegidas alcança-se através da valorização da sua biodiversidade, da cultura endógena e do desenvolvimento económico da região. Neste sentido, foi criada a estratégia Natural.pt que, incidindo sobre as áreas protegidas, torna de relevância nacional os seus produtos e serviços. Com efeito, acredito que uma grande parte das acções que estimulam o desenvolvimento do nosso território vem de iniciativas bottom-up que vão cobrindo o nosso país de projectos inovadores, criativos, humanos e empreendedores. O desenvolvimento económico e a conservação da biodiversidade são dois pilares indissociáveis, mas, por vezes, aparentemente não conciliáveis. O desafio é alterar esta ideia feita e transformar a biodiversidade num factor de diferenciação e valorização económica, através da produção de bens e da prestação de serviços de excelência e a ela associados. Viver nas áreas protegidas terá que ser visto como uma oportunidade de desenvolvimento
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sustentável, capaz de resistir aos ciclos económicos e atrair turistas. Para tal, a descentralização cultural trazida pelo Festival Terras sem Sombra e a transversalidade da abordagem que assegura são, sem dúvida, um contributo para a utilização sustentável do património natural nacional que decisivamente promove a coesão territorial. MIGUEL CASTRO NETO Secretário de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza
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Viagem Intemporal
O Festival Terras sem Sombra reúne o melhor que o nosso Alentejo tem: tradição, cultura e modernidade. Somos uma terra de contrastes, herdeira de sucessivas civilizações – fenícia, celta, romana, visigoda, árabe ou judaico-cristã. Desse contraste emerge hoje uma ideia de modernidade assente na tradição. Sectores tradicionais, como o agroalimentar ou o vitivinícola, o turismo ou as energias renováveis, conseguem ser cada vez mais competitivos na medida em que aliam qualidade ao design, à inovação e à tecnologia. A cultura – a nossa cultura alentejana – está na base desta tradição, pelo que temos que a preservar e valorizar. É por isso que o Festival Terras sem Sombra nos dá força e raízes. Conceder este alto patrocínio é um prazer e uma honra. Trata-se de um certame com créditos firmados nas passadas dez edições e que resulta de uma parceria de sucesso do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, com um conjunto de entidades públicas e privadas, além de voluntários que lhe dão corpo organizativo e participativo. Um casamento feliz entre a Cultura e a Biodiversidade, um cartaz de concertos de nível internacional e um conjunto de actividades que reforçam a nossa consciência ambiental. Neste Festival, pode admirar-se a força criativa e o talento de compositores e intérpretes e, ao mesmo tempo, levantar a voz cívica em defesa da conservação da natureza ou do combate à desertificação do interior rural. De Almodôvar a Moura, de Grândola a Odemira, de Beja a Santiago do Cacém, de Sines a Castro Verde, e sem esquecer Grândola, a “vila morena”, todo o Baixo Alentejo é “terra da fraternidade”. É de música sacra, música de culto, viagem intemporal pelas estações do Renascimento, do Barroco, do Classicismo, do Romantismo ou do Modernismo. De Março a Julho de 2015, o Alentejo será uma verdadeira Terra da Música, uma salmodia antifonal, feita de motetes, salmos, missas ou réquiens. Por dentro de cada igreja, de cada conciliábulo cultural convocado pelos organizadores, vão proliferar pandeiros e harpas, órgãos e cravos, liras e flautas com cheiro de aloendros e de estevas, numa mescla de aromas e sabores, por entre planícies de flores selvagens, horizontes a perder de vista, quilómetros de praia e montados com sobreiros, que ainda os há. Os ventos da serra, do rio e do mar levarão os sons do Festival a longínquas paragens. A Bruxelas também! CARLOS MOEDAS Comissário Europeu da Investigação, Ciência e Inovação
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Sinais dos Tempos
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO Director-Geral do Festival Terras sem Sombra
Fundado em 1984, por decreto de D. Manuel Franco Falcão, o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja assinalou, em 2014, trinta anos de actividade ininterrupta no âmbito do estudo, salvaguarda e valorização da herança cultural da antiga província do Baixo Alentejo, hoje distribuída, artificialmente, por duas sub-regiões: o Baixo Alentejo propriamente dito e o Alentejo Litoral. Uma feliz coincidência permitiu dedicar este ano – por ocasião do segundo centenário do seu falecimento – à evocação de D. Fr. Manuel do Cenáculo Villas Boas [1724-1814], bispo de Beja entre 1770 e 1802 (e, de então até à morte, arcebispo de Évora). Consagraram-se-lhe uma exposição no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa; um colóquio no Auditório do Centro de Artes de Sines; um ciclo de conferências no Museu desta cidade e em outros pontos da Diocese; um Roteiro de Cenáculo, que une algumas das localidades da nossa região onde mais se fez sentir a acção – científica, cultural e pastoral – do notável prelado, figura grada do movimento das Luzes; e, evidentemente, a 11.ª edição do Festival Terras sem Sombra, ou não fora ele um grande apreciador, e um eficiente promotor, da música sacra. A par disto, o Departamento do Património Histórico e Artístico teve ocasião, sob a égide do Ano de Cenáculo, de dar a conhecer o essencial do seu trabalho ao longo de três décadas. Este labor, muitas vezes pertinaz e silencioso, tem constituído, de acordo com o anelado por D. Manuel Falcão, significativa mais-valia para um amplo e diversificado território – Beja é a segunda diocese mais extensa do país – que, pelo carácter periférico em relação aos grandes centros, pelas características culturais, económicas, pastorais e sociais e, ainda, pelas circunstâncias políticas, fora votado a um certo esquecimento, para não dizer ostracismo. Lembremos que, em 1980 como em 1990, havia, mesmo no seio da Conferência Episcopal, quem apontava o Alentejo como um deserto espiritual, um “sertão de almas”. Só a ignorância podia alentar tão desafortunado preconceito. O esforço da pequena equipa – maioritariamente formada < Scilla peruviana (Liliaaceae). Beringel, Micro-Reserva Biológica dos Colmeais.
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por voluntários – que aceitou o repto de, a partir das fileiras pacenses, levar a cabo uma intervenção de fundo nos monumentos e bens culturais do espaço diocesano orientou-se, precisamente, para o resgate desse legado extraordinário, mas condenado ao silêncio. Hoje, a situação é distinta. Mercê de um estratégico conjunto de parcerias, em que o diálogo com o Estado, as autarquias locais e a sociedade civil se tornou prioridade bem identificada, foram dados passos fulcrais para colocar as igrejas da Diocese de Beja na vanguarda do património europeu: recuperou-se mais de uma centena de edifícios históricos, incluindo milhares de obras de arte e outros valores do património material e imaterial. Uma vez que o impulso de requalificação seria ímprobo se se esgotasse em si mesmo, regulamentou-se a intervenção nos bens culturais diocesanos; assegurou-se apoio técnico; promoveram-se exposições, dentro e fora de fronteiras; editaram-se monografias e outras publicações, nos mais variados suportes; estabeleceu-se uma rede museológica, actualmente com oito unidades de pequena e média dimensão; promoveram-se encontros científicos e acções de formação; reinstalou-se a Biblioteca do Seminário; acautelaram-se fundos documentais em risco; valorizaram-se os percursos do Caminho de Santiago e outros itinerários de peregrinação; fomentou-se a criação contemporânea, nas suas várias manifestações; e criou-se a associação de amigos do património religioso, denominada Pedra Angular. Decerto ainda falta muito por fazer, numa diocese tão ampla e a braços com dificuldades objectivas e palpáveis; mas, quando se olha para trás, o que está feito permite pisar o terreno com segurança e lançar pontes firmes em direcção ao futuro. Como se depreende das iniciativas aqui brevemente elencadas, a noção de que o património religioso é um património vivo, sujeito a uma evolução constante e deveras enraizado no quotidiano das comunidades a que pertence, levou o Departamento do Património Histórico e Artístico, desde os primórdios da sua criação, a conferir especial atenção a actividades destinadas a fomentar sucessivas aproximações no tocante a igrejas entretanto reabertas. De facto, existiu sempre, na Diocese de Beja, a perspectiva de que as intervenções físicas representam apenas uma parte da dinâmica da salvaguarda patrimonial e de que a verdadeira prioridade reside na interacção desse mesmo património com o todo do território, com os seus habitantes – e com os seus visitantes. Foi a consciência de tão aguda realidade que esteve na origem, em 2003, do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo. Não deixa de surpreender, decorridos pouco mais de dez anos, a classificação deste, por um painel de especialistas, como um dos cinco festivais mais interessantes do seu género, a nível mundial. O júri que ditou tal sentença não trouxe a lume o critério
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SINAIS DOS TEMPOS
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seguido, mas quem ler nas entrelinhas intuirá que o traço diferenciador da iniciativa alentejana flui, acima de tudo, da proposta de redescoberta, em diálogo com os artistas e os públicos locais, de um território onde se verifica uma singular simbiose entre valores culturais e naturais. Findo o balanço que o Ano de Cenáculo naturalmente potenciou, 2015 oferece um novo e substancial desafio para o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e, muito em especial, para um projecto, como o do Festival Terras sem Sombra, que, ao privilegiar uma ligação forte entre música, património e biodiversidade, acabou por adquirir uma dimensão infra-estruturante, do ponto de vista do desenvolvimento sustentado, para o Alentejo. O que está em causa, aqui, não é só o incerto destino de patrimónios frágeis e únicos; pelo contrário, entre Março e Julho, parte da “ordem do dia” da região acaba por ser marcada pela reflexão colectiva sobre o seu próprio futuro, ao longo de uma série coerente de concertos, visitas guiadas, palestras e acções de salvaguarda da biodiversidade, tendo por fio condutor a visitação do que há de mais importante a revelar em cada concelho percorrido durante a itinerância. Ao entrarmos num período em que se aproximam importantes mudanças na Diocese de Beja, o desafio de conduzir a bom porto este projecto foi aceite, com generosa serenidade, por um punhado de corajosos defensores da música, do património e da conservação da natureza. Sinais de outros tempos, a direcção artística de Juan Ángel Vela del Campo, a direcção executiva de Sara Fonseca e a colaboração dos amigos (singulares e colectivos) do Festival oferecem uma garantia de continuidade, quando o Terras sem Sombra está prestes a entrar na terceira fase da sua fecunda vida.
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Da Música e dos seus Diálogos, em Terras de Fraternidade
JUAN ÁNGEL VELA DEL CAMPO Director Artístico do Festival Terras sem Sombra
Os traços característicos (e diferenciadores) de um festival, como o Terras sem Sombra, predispõem a uma programação artística de invulgar cumplicidade afectiva. A que traços me refiro? Tentarei justificar-me. A componente musical é reforçada pela força do património artístico – todos os concertos têm lugar em igrejas – e pela envolvente vitalidade de um conjunto de iniciativas de assumida reivindicação ecológica, que se repercutem, logo à partida, na procura de uma maior qualidade de vida ou, se quisermos, numa comunicação fecunda e sã entre Arte e Natureza. Além disso, cada um dos concertos ocorre numa povoação diferente, o que redunda num conceito territorial muito específico, traduzindo, de imediato, uma visão solidária da região e dos seus habitantes. Quanto a nós, a resposta musical a estes estímulos culturais e sociológicos passa por uma planificação que valorize a aspiração ao conhecimento a partir da simplicidade – planificação que se contemple a si mesma no espelho da História e que, custe o que custar, nunca renuncie a um sentimento e a uma paixão em consonância com o nosso tempo. Parece óbvio lembrar que os critérios interpretativos devem estar de acordo com as criações de origem. A música deve incidir numa dimensão racional e, ao mesmo tempo, afável e jovial, mas, acima de tudo, deve ter a oportunidade de dialogar consigo mesma e com as suas “companheiras de viagem”, tanto artísticas como ambientais. O factor humano impõe-se com naturalidade. Há de entrada, nesta 11.ª edição do Festival Terras sem Sombra, três concertos que mantêm entre si uma unidade de aproximação ou, se preferirmos, uma continuidade < Sol [resplendor de imagem]. Trabalho português. Século XVIII (primeira metade). Serpa, igreja do convento de Nossa Senhora da Consolação.
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temporal: os que decorrerão em Almodôvar, Castro Verde e Sines. Verifica-se, em todos eles, uma correspondência hispano-lusa, um convite a contemplar a evolução da música a partir de um olhar comum ibérico: o primeiro centra-se nos séculos X a XV; o segundo, no período renascentista do século XVI e nos inícios do século XVII; e o terceiro, no luminoso e racional século XVII. Uma tentativa didáctica de encontrar um apoio nas raízes? Sem dúvida, mas com uma panóplia de sugestões adicionais, que primam pela abertura. As épocas do canto visigótico foram comuns ao que hoje denominamos Espanha e Portugal. Schola Antiqua, grupo de canto medieval respaldado por trinta anos de experiência, desenhou, para o concerto de inauguração, um programa que podemos classificar como de “geminação” entre liturgias já de si muito próximas. Manuscritos de instituições do Sul da Galiza, vizinhas da fronteira portuguesa, alternarão com obras de códices pertencentes à Ordem de Cister. Das abundantes fontes medievais portuguesas, o ensemble Schola Antiqua seleccionou vários tipos de canto: do tardio canto misto ou fratto a um hino polifónico recentemente descoberto por Manuel Pedro Ferreira no Museu de Arte Sacra de Arouca, passando pelos sugestivos textos do Cântico
dos Cânticos, musicalizados para a liturgia no Psalterium Catenatum, de Coimbra. Juan Carlos Asensio, colaborador, entre outras instituições, de scriptorium de Paleografia Musical da Abadia de Solesmes, referência mundial da música medieval, e autor de um imponente livro sobre El Canto Gregoriano. Historia, Liturgia, Formas, editado por Alianza Musica, dirige um concerto em que a espiritualidade e o prazer sensorial andam de mãos dadas. Uma segunda etapa deste percurso cronológico em que confluem as tradições musicais de Espanha e Portugal leva-nos ao concerto de Castro Verde, focado num período deveras brilhante da História da Música na Península Ibérica. 2015 é um ano de especial significado, quanto a afinidades temporais, pois comemora-se o quinto centenário do nascimento da escritora mística Teresa de Ávila – Santa Teresa de Jesus –, tão fundamental na dimensão poético-literária e vital do “Século de Ouro”. Os espanhóis Tomás Luis de Victoria e Cristóbal de Morales têm as suas obras partilhadas, na mesma sessão, com as dos portugueses António Carreira, Manuel Rodrigues Coelho ou Fr. Manuel Cardoso, em versões que realçam o misticismo e a intimidade, num formato camerístico, sustentado pela voz do contratenor Carlos Mena, acompanhado à vihuela por Juan Carlos Rivera e ao órgão por Carlos García-Bernalt. Não falta a emblemática
O magnum mysterium, de Victoria. A este “mistério” da música e da vida, alude precisamente o título com que se baptizou a vertente edição de Terras sem Sombra. A trilogia básica de aproximações hispano-lusas encontra a completude no concerto de Sines, a cargo de um dos melhores pianistas espanhóis da actualidade, o canário
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DA MÚSICA E DOS SEUS DIÁLOGOS, EM TERRAS DE FRATERNIDADE
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Iván Martín, cujo disco monográfico dedicado a Antonio Soler [1729-1783] constituiu toda uma revelação para a crítica e o público. Depois, viriam a sua incursões nas obras de Mozart ou Beethoven e, também, os primeiros passos como aclamado director de orquestra, mas a lembrança da gravação de Soler, alvo de relevantes prémios internacionais, vem sempre à memória. A admiração de Martín pela música de Carlos de Seixas [1704-1742] situa-se a uma altura em tudo idêntica à que professa por Soler. Seis sonatas do autor português e outras seis do autor espanhol ilustram um admirável jogo de correspondências. Cada compositor possui a sua indiscutível personalidade. Um ao lado do outro, reflectem o espírito musical de uma época, a do chamado “Século das Luzes”, no quadro da Península Ibérica. Duas sessões de procedência interpretativa italiana enriquecem este ciclo ibérico, oferecendo, por assim dizer, uma extensão natural dele. O concerto de Sines tem um complemento perfeito no de Odemira. Ambos são votados ao século XVIII, mas, em Odemira, o grupo I Turchini, de Nápoles, dirigido por Antonio Florio, explora três obras sacras do compositor napolitano Davide Perez que, durante 26 anos, trabalhou em Lisboa. Com um conjunto instrumental de dois violinos, viola, violoncelo, contrabaixo e órgão a 415 hz, o grupo é reforçado por quatro vozes (entre as quais se destaca a soprano Valentina Variale) para executar esta aventura emocional de homenagem a um músico de extraordinária qualidade, cuja “recuperação” europeia é, cada vez mais, evidente. Na verdade, não se torna necessário repisar o tema: basta escutar a música de Perez para se comprovar de imediato a sua importância. Chama a atenção a oportuna presença, no programa de I Turchini, da Missa brevis, de Girolamo Abos, um compositor de Malta, vinculado à escola napolitana, cujo terceiro centenário do nascimento se celebra este ano. Graças a esta incorporação, os diálogos musicais do Festival avançam, um pouco mais, pelo Sul da Europa. Também podemos considerar complementares os concertos de Castro Verde e Moura. Ao fim e ao cabo, ambos contemplam os dois mesmos séculos – o XVI e o XVII –, embora sob perspectivas diferentes. Em Moura, o Laboratório ‘600, dirigido por Franco Pavan, com o carismático tenor Pino De Vittorio, consagra o seu programa ao canto do Sul da Itália e, mais concretamente, da Sicília e das duas Calábrias, estabelecendo-se, desta forma, uma correspondência dialéctica entre o popular e o erudito. Chitarra battente, arquialaúde e harpa acompanham as tarantelas e outras canções tradicionais de regiões meridionais de Itália em que alguns investigadores vêem correspondências subtis com a paisagem e os costumes do Alentejo. É a cultura do Sul da Europa, com essa grande riqueza de manifestações artísticas que revelavam os séculos XVI e XVII. O que se vai ouvir em Castro Verde e Moura é apenas uma amostra desse magnífico património, mas que amostra!
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O popular e o erudito convivem igualmente, de uma maneira um tanto atrevida, em Santiago do Cacém, com o encontro entre a guitarra portuguesa e a guitarra “clássica”. António Chainho dispensa apresentações. Alentejano, tem 76 anos e vai evocar, num concerto alusivo a meio século de carreira, na sede do concelho onde nasceu, o que bem singulariza, do ponto de vista musical, o sentimento interior de um país e dos seus habitantes: o fado, a melancolia, as emoções à flor da pele. Jürgen Ruck, notável guitarrista alemão, admira a música popular portuguesa; prova disso é ter tocado, várias vezes, com Cristina Branco. Interpreta oito obras para guitarra baseadas nos
Caprichos, de Goya, duas delas estreias mundiais, da autoria de compositores ibero-americanos, a do uruguaio Eduardo Fernández e a da portuguesa, a viver na Alemanha, Rita Torres. Fazem também parte do programa composições “caprichosas” de outros autores: os espanhóis Elena Mendoza e José María Sánchez Verdú, a australiana Cathy Milliken, os italianos Bruno Dozza e Maurizio Pisati e o alemão Bernd Franke. Em suma, o século XXI reclama o seu protagonismo. Com a novidade de novas criações e com a eternidade das de sempre. A experiência promete ser emocionante. Nestes fluxos de inter-relações, há um concerto que, como se diz em castelhano,
va por libre: o de Grândola. Explico porquê. Mercê de uma casualidade da vida profissional, integrei, no passado Outono, em Roma, o Júri do Concurso Vocal de Música Sacra da Academia Musical Europeia, ao lado de directores de casting de teatros líricos, como o La Scala, de Milão, ou a English National Opera, de Londres, de responsáveis das instituições musicais da Polónia ou de intérpretes distinguidos de música barroca em Itália. Houve unanimidade nas deliberações, algo pouco frequente, e os dois primeiros prémios recaíram em dois cantores nos antípodas estilísticos. A vencedora, de 16 anos, oriunda da Eslováquia, cantou um fragmento da Paixão segundo São Mateus, de Bach; parecia realmente um anjo descido do céu. O segundo prémio foi concedido a uma
mezzo-soprano, da Coreia do Sul, que personificava a paixão terrestre em estado puro e, por isso, brilhou com Verdi e o seu Requiem. É difícil conseguir maior contraste entre duas cantoras. Juntá-las no seu primeiro recital, após o Concurso Internacional de Roma, afigurou-se-me uma oportunidade de ouro para o nosso Festival, além de uma primícia. Vamos ouvi-las, com o acompanhamento ao piano por outra grande artista, em obras de Rombi, Handel, Bach, Mozart, Vivaldi, Rossini e, claro está, Verdi. O concerto de encerramento do Festival será, este ano, em Beja, capital da Diocese – e capital do Baixo Alentejo. Faltava-nos algo dos séculos XIX e o XX para completar tão ousada imaginária viagem musical através do tempo. E faltava-nos, principalmente, como protagonista, uma instituição musical poderosa de Portugal. Daí a feliz escolha da Orquestra do Norte, que visitará pela primeira vez o Terras sem Sombra. O diálogo,
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aqui, não sai de casa, faz-se entre Norte e Sul. Além disso, o maestro José Ferreira Lobo é um director de fuste para estes mesteres. Numa ocasião deveras especial, interpretará
Nocturno, de um brilhante compositor português de princípios do século XX, António Fragoso, e a obra sacra mais próxima da ópera de toda a História da Música: Requiem, de Giuseppe Verdi. O Século do Romantismo está, assim, representado por uma das suas criações de profundo sentido humanista. E o olhar dirigido a Itália adquire um tom cálido, como inspira o seu compositor mais teatral. As sombras da História fazem-se terra. Algo muito lógico, aliás. Não estamos no Alentejo, terra de fraternidades?
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Preparar o Futuro
SARA FONSECA Directora Eecutiva do Festival Terras sem Sombra
A interioridade do Alentejo foi, desde sempre, uma questão crucial na definição das prioridades do trabalho do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, fundado por D. Manuel Franco Falcão em 1984. Contrariar essa realidade é difícil, mas perspectivá-la com esperança é algo que tentamos construir todos os dias e, nesse sentido, pensamos que um projecto inovador que associa a música erudita ao património cultural e natural poderá dar um estímulo significativo para ajudar o território a “não morrer”. A esperança de poder contribuir, neste âmbito, com verdadeira excelência artística, entusiasma e cria impacto na gente fantástica que vive no Alentejo. Não serão certamente números dignos de contrariar as estatísticas, mas aptos a gerar empatias e olhares distintos sobre estas realidades cruas: desertificação, esquecimento, saída dos mais novos… Dizia Victor Hugo: “o espírito enriquece-se com aquilo que recebe, e o coração com aquilo que dá”. Este tem sido um dos fios condutores do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo, em cada uma das suas onze edições. Cremos que é plausível levar as pessoas a serem mais felizes e fazer regressar aqueles que saíram – pelo menos uma vez em cada ano. A nossa missão é mostrar que a riqueza do interior (mais próximo ou mais longínquo) se espelha não só nas gentes que ficam, mas também na capacidade de acolher gentilmente os outros e de potenciar a vinda de novos habitantes. Sabemos que é um desafio a longo prazo, mas sabemos igualmente que a música molda o coração dos homens e que a associação com a natureza permite desfrutar de uma paz e de um silêncio que se traduzem, tantas vezes, em paixão. Criar públicos, tem sido outro dos objectivos do Festival Terras sem Sombra. Uma tarefa lenta, mas enriquecedora, pois os alentejanos carregam no seu ADN a música e a beleza. Basta contemplar a diversidade do nosso território, da fímbria raiana ao litoral, para entendermos que estes vectores ajudarão, a médio e a longo prazos, a fixar novos habitantes. Quem visita o Alentejo apaixona-se e, na maioria dos casos, volta e ambiciona ficar, mais que não seja durante os fins-de-semana dos concertos. < Base de sacrário [pormenor]. Escola portuguesa. Século XIV (segundo terço). Vidigueira, igreja da Misericórdia (Paróquia de São Pedro).
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O Festival mexe com a economia regional, cria ebulição, antes e depois, e desassossega positivamente as almas mais pacatas. Em suma, gera riqueza espiritual e material e leva-nos, cada vez mais, a querer fazer com que o projecto seja melhor. Combater as assimetrias é algo contra o qual batalhamos todos os dias, buscando as vias mais adequadas para reabilitar e divulgar patrimónios; alertar e sensibilizar para as questões ambientais representa uma das grandes missões que se colocam hoje, também, aos responsáveis culturais e religiosos. Este é um projecto emanado da sociedade civil e concebido por ela (e para ela). Cada edição procura captar as mais-valias do território e mediatizá-las. Através do exemplo, pode chegar-se mais longe e ser o grão de areia que fará com que este paraíso na terra não pereça. Somos tentados a pensar que o Alentejo e os seus guardiães ficam mais belos quando o Terras sem Sombra chega, com o despertar da Primavera, e a preparação de cada nova edição se torna um sinal de comunhão e esperança num futuro melhor.
Acção de preservação do montado no alfoz de Sobral de Adiça (Moura). >
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PREPARAR O FUTURO
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PROGRAMA MUSICAL
Terras sem Sombra 2015
14 de Março
ALMODÔVAR Igreja Matriz de Santo Ildefonso
[21H30]
Medievália Ibérica: Monodias e Polifonias Hispano-Portuguesas dos Séculos X a XIV Schola Antiqua Miguel Ángel Asensio Palacios Javier Blasco Blanco Enrique de la Fuente Jarillo Javier de la Fuente González Miguel García Rodríguez Jorge Luis Gómez Rios Benjamín González García Antonio Miguel Jiménez Serrano Jesús María Román Ruiz del Moral Federico Rubio García Direcção Juan Carlos Asensio Palacios
28 de Março [21H30]
ODEMIRA Igreja Matriz de São Salvador
Davide Perez: Nápoles-Lisboa I Turchini Soprano Valentina Varriale Meio-soprano Daniela Salvo Tenor Rosario Totaro Baixo Giuseppe Naviglio Violinos Paolo Cantamessa, Patrizio Focardi Violeta Rosario Di Meglio Violoncelo Alberto Guerrero
Violone Duncan Fox Órgão Patrizia Varone Direcção Antonio Florio
11 de Abril
SINES Igreja Matriz do Santíssimo Salvador
[21H30]
O Século XVIII ao Piano em Portugal e Espanha: De Carlos de Seixas a Antonio Soler Piano Iván Martín
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PROGRAMA MUSICAL
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18 de Abril
GRÂNDOLA Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção
[21H30]
Vinho Velho em Odres Novos: Perspectivas das Novas Gerações sobre a Voz Humana Soprano Patricia Janečková Meio-soprano Celeste Shin Je Bang Piano Júlia Grejtáková
9 de Maio
SANTIAGO DO CACÉM Igreja Matriz de Santiago Maior
[21H30]
O Tempo e o Modo: Diálogos entre Guitarras Guitarra António Chainho Viola Carlos Silva Guitarra Jürgen Ruck
23 de Maio
CASTRO VERDE Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição
[21H30]
Íntimo Misticismo: Música Espiritual Hispano-Portuguesa do Renascimento Central e Tardio Capilla Santa María
Vihuela Juan Carlos Rivera Órgão Carlos García-Bernalt Contratenor e direcção Carlos Mena
6 de Junho
MOURA Igreja Matriz de São João Baptista
[21H30]
O Canto do Sul de Itália: Sicília e Duas Calábrias (Séculos XVI-XVII) Tenor Pino De Vittorio Arquialaúde Ilaria Fantin Harpa barroca Katerina Ghannudi Tiorba, chitarra battente e direcção Franco Pavan
20 de Junho
BEJA Igreja de São Salvador
[21H30]
A Força da Serenidade: Música para o Fim dos Tempos (Fragoso e Verdi) Soprano Cristiano Oliveira Meio-soprano Ana Ferro Tenor Vicente Ombuena Barítono Rui Silva Orquestra do Norte Coro do Teatro Nacional de São Carlos Direcção José Ferreira Lobo
4 de Julho
SINES
[18H30]
Entrega do Prémio Internacional Terras sem Sombra festival terras sem sombra
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Concerto de Abertura
ALMODÔVAR
14 de Março 21H30
MEDIEVÁLIA IBÉRICA: MONODIAS E POLIFONIAS HISPANO-PORTUGUESAS DOS SÉCULOS X A XIV Ad processionem, Litanias da Virgem em fabordão Canto Gregoriano para a Semana Santa (do Breviario de San Rosendo de Celanova (Ourense, hoje em Silos, Arch. Mon., ms. 9) Feria V in Coena Domini (Quinta-Feira Santa) Zelus domus tue, Antífona, Modo VIII Salmo 68: Salvum me fac In monte Olivetti, Responsório, Modo VIII Feria VI in Morte Domini (Sexta-Feira Santa) Ab insurgentibus in me, Antífona, Modo I Salmo 58: Eripe me de inimicis Caligaverunt oculi mei, Responsório, Modo V Sabbato Sancto O mors, Antífona, Modo IV Salmo 50: Miserere mei Deus Christus factus est, Responsório/Gradual, Modo V Canto fratto português Do Antifonário 5 de Coimbra, Museu Nacional de Machado de Castro (século XV) Stella coeli extirpavit, Versus, Modo I Canto cisterciense hispano Do Códice de Las Huelgas (Burgos, Monasterio de Las Huelgas, ms. IX, ca. 1300)
Rex virginum, Kyrie tropado a 2 vozes, Modo I Canto cisterciense português Do Antiphonarium/Hymnarium, ms. 25 do Museu de Arte Sacra de Arouca (ca. 1200) Exultet celi curia, Hino a 2 vozes, Modo VII
Officium in Cantica Canticorum Manuscritos de Coimbra e Braga, Psalterium Catenatum (ca. 1350) Candida virginitas, Responsório, Modo I Virginis electa, Responsório, Modo VIII Virginibus cunctis, Responsório, Modo VI
< Nossa Senhora da Assunção. Escola portuguesa. Século XVIII (segundo quartel). Almodôvar, igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição. festival terras sem sombra
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Hortus conclusus, Responsório, Modo III Ave festiva, Responsório, Modo VII Virga dedit florem, Responsório, Modo VII Do Códice de Las Huelgas
Benedicamus Domino cum cantico, Tropo a 3 vozes, Modo I
Schola Antiqua Miguel Ángel Asensio Palacios Javier Blasco Blanco Enrique de la Fuente Jarillo Javier de la Fuente González Miguel García Rodríguez Jorge Luis Gómez Rios Benjamín González García Antonio Miguel Jiménez Serrano Jesús María Roman Ruiz del Moral Federico Rubio García Direcção Juan Carlos Asensio Palacios
Campanário da igreja matriz de Santo Ildefonso, Almodôvar. >
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ALMODÔVAR
Igreja Matriz de Santo Ildefonso
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo e, depois, bispo da mesma cidade, que faleceu em 667) como orago da paróquia de Almodôvar constitui um interessante reflexo da presença, no Baixo Alentejo, da espiritualidade monástico-militar, difundida pelos freires da Ordem de Avis, que seguia a regra de São Bento. Porém, a primitiva igreja matriz da vila, pertencente em tempos ao padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Esta teve aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três beneficiados. Embora seguindo outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários valorizaram a devoção ao santo toledano. O edifício actual, traçado em 1592 pelo arquitecto Nicolau de Frias, é um exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (Hallenkirche), com três naves de quatro tramos cobertas por abóbadas, evidenciando grande sentido de unidade espacial e notável acústica. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo compositivo dos alçados e o destaque outorgado ao tratamento dos pormenores, como as seis colunas toscanas em que descansam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do depurado sentido classicizante atingido, em finais do século XVI, por este modelo, fiel à austeridade preconizada pela Contra-Reforma. D. João V, como grão-mestre da Ordem de Santiago, mandou proceder à remodelação parcial do monumento, intervenção descrita pelo P.e Luís Cardoso no Diccionario Geo-
grafico (1747): “porque a capela-mor se achava arruinada, e por sua pequenhez fica imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo desta comarca, foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência, e Ordens, se derrubasse, e fizesse regular ao restante da igreja, e se acrescentasse tribuna, que de presente se anda Pia de água benta. Século XVI. Rosário (Almodôvar), igreja paroquial de Nossa Senhora do Rosário. >
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fazendo”. Estas obras vieram a ser rematadas, ca. 1769, com a encomenda, à oficina do mestre entalhador eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das diversas confrarias e irmandades existentes na matriz. Nos séculos XIX e XX, realizaram-se outras intervenções de vulto que modificaram substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de 1950. Data de então a campanha de pintura mural do baptistério renovado, da autoria de Severo Portela [S Coimbra, 1898 – X Lisboa, 1985], em que sobressai a figuração d’O Baptismo de Cristo no Rio Jordão (1954-1955). Formado em Escultura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, este artista destacou-se como um dos mais notáveis pintores do período do Estado Novo. Devido à ligação a Almodôvar por laços de casamento, fez do Baixo Alentejo um epicentro da sua fecunda obra, bem representativa da época em que triunfou. A paróquia de Santo Ildefonso conserva um importante acervo de alfaias litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição da mesma vila, fundado em 1680 pela Ordem Terceira Regular de São Francisco.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
LUÍS CARDOSO, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de Todas as Cidades, Villas, Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com Todas as Cousas Raras, que Nelles se Encontraõ, assim Antigas, como Modernas, I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Depar tamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; JOSÉ MARIA AFONSO COELHO, Foral de Almodôvar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de Almodôvar, 2004; VÍTOR SERRÃO, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620), Lisboa, Editorial Presença, 2002; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Do Mondego, pelo Minho/Miño, ao Arlanzón: Expressões da Música Medieval Litúrgica Ibérica DIOGO ALTE DA VEIGA
Até finais do século XI, a quase-totalidade da Península Ibérica encontrava-se liturgicamente unificada sob o rito hispano-visigótico, destacando-se das demais regiões do Ocidente cristão, onde a liturgia de Roma, introduzida a norte dos Alpes a partir de inícios do século VII, era já, dois séculos mais tarde, a tradição dominante. O rito romano, reinterpretado e suplementado pelos clérigos do Império Carolíngio, deu assim origem ao rito romano-franco. Contrariamente a este processo de irradiação, a introdução do rito romano na Península Hispânica consistiu numa imposição vinda do exterior, oficializada em 1080 no Concílio de Burgos mas, na prática, levada a cabo entre 1071 e, pelo menos, os inícios do século seguinte. A abolição do rito hispano-visigótico, descrita por Joaquim Bragança como “um dos dramas mais pungentes de toda a história da cristandade hispânica”,1 teve como principal fundamento a suposta, e ainda contestada, convicção papal de que a liturgia visigótica, ainda que pura no seu estado primitivo, se encontrava no século XI contaminada por elementos heréticos, de índole prisciliana e ariana, urgindo, pois, um regresso à pureza e unidade originais, através da adopção do rito romano. Para a implantação da liturgia de Roma no território ibérico, o papa Gregório VII [reg. 1073-1085] serviu-se da então plena influência religiosa e política da Ordem de Cluny, cujos mosteiros se multiplicavam pela Europa. Os clérigos cluniacenses que mediaram a introdução do rito nas Espanhas eram oriundos, maioritariamente, das casas religiosas do Sul de França, sobretudo da região da Aquitânia, tendo alguns deles sido instalados como bispos em importantes dioceses hispânicas da época. Em 1096, chegava ao território português um destes clérigos cluniacenses aquitanos, São Geraldo, para ocupar a cátedra episcopal bracarense. Inicialmente responsável
1 JOAQUIM
O. BRAGANÇA, “Influência Religiosa da França no Portugal Medievo”, em Didaskalia, III, Lisboa, 1973, p. 136 (sep.).
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pelo canto e pela liturgia no mosteiro cluniacense de Moissac e, mais tarde, regente de coro na catedral de Toledo, Geraldo encontrava-se especialmente habilitado para a implementação da prática litúrgica romano-franca, com o correspondente repertório musical tradicionalmente conhecido por Canto Gregoriano. Braga, por sua vez, constituía-se como estratégico pólo de irradiação, dada a sua primazia histórica. Aquando da chegada de São Geraldo, a província eclesiástica de que Braga era capital englobava as dioceses das actuais Galiza e Astúrias, as do Noroeste da actual Castela e Leão e, ainda, as do território português a norte do rio Douro. No entanto, ele viria a obter, em 1103, junto do papa Pascoal II, a extensão dos direitos metropolitanos bracarenses às dioceses entre os rios Douro e Mondego, com limite em Coimbra. No território submetido à influência metropolítica de Braga, e a par de outras dioceses igualmente sufragâneas, permaneceu quase ininterruptamente a diocese de Orense (na Galiza), desde os tempos do imperador Diocleciano, em finais do século III, até finais do século XIV, altura em que a arquidiocese de Braga viria a restringir-se às dioceses do território nacional, ou seja, a sul do rio Minho. Do interessante e cativante programa que nos traz o grupo Schola Antiqua, consta uma selecção de peças musicais gregorianas incluídas no Breviário2 de San Rosendo de Celanova, mosteiro este, justamente, localizado na diocese de Orense. As peças musicais em causa destinam-se ao Ofício Divino (Liturgia das Horas) do Tríduo Pascal, período do ano litúrgico cujos responsórios (cânticos do Ofício de Matinas) são geralmente seleccionados e ordenados de modo distinto, consoante a tradição regional ou local medieval em que se inserem (referimo-nos a tradições anteriores à rigorosa e aniquilante uniformização litúrgica propugnada pelo Concílio de Trento no século XVI). O códice em questão, datável do último terço do século XII, apresenta-se como um produto típico da transição do rito hispano-visigótico para o romano-franco, ao combinar a nova liturgia com reminiscências da antiga. Relativamente à origem e proveniência do Breviário, hoje conservado na abadia beneditina de Silos, vários são os indícios de que o seu destino litúrgico original, após presumível confecção num scriptorium francês, ou pelo menos sob forte influência francesa, poderia ter sido o mosteiro beneditino de San Rosendo de Celanova. Tal asserção vem encontrando fundamentos através do escrutínio do Santoral do dito códice, onde é possível identificar, a par de cele brações menos ou mais restringíveis a Celanova, uma devoção muito especial a São Rosendo. 2 Os Breviários são um tipo de livros que compilam integralmente os textos do Ofício Divino para todo o ciclo anual litúrgico. Quando os textos destinados ao canto são acompanhados pela respectiva notação musical, denominam-se Breviários notados, como é o caso do livro aqui apresentado.
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Quase trezentos quilómetros a sul, na margem norte do Mondego, a diocese de Coimbra era, no dealbar do século XII, reintegrada por São Geraldo no domínio eclesiástico de Braga, ao qual já pertencera no período do reino suevo, antes das invasões árabes. Da tradição medieval da catedral conimbricense, e à parte um ritual em versão impressa de 1518, foram até hoje identificados apenas dois códices manuscritos.3 Um deles é o denominado Liber catenatum, assim apelidado por ter estado acorrentado durante séculos na sé de Coimbra. Datável de meados do século XIV, contém salmos, hinos (composições métricas cantadas no início de todas as horas do Ofício Divino) e, ainda, o Ofício de devoção mariana in Cantica canticorum, de cujas peças musicais o grupo
Schola Antiqua nos apresenta alguns exemplos. Este Ofício da hora de Matinas, igualmente conservado com notação musical em livros do rico espólio documental antigo de Braga – e em cujo uso litúrgico se mantém oficialmente até aos dias de hoje –, adoptou nos seus responsórios textos de natureza poética, uns de origem escriturária, outros de origem já medieval, como é o caso do responsório Candida virginitas, inspirado num poema latino do século IX, atribuído a um diácono da catedral de Saint-Lambert, de Liège (Bélgica). Noutro manuscrito, agora do século XV, conservado também em Coimbra, pode encontrar-se a antífona em verso rítmico Stella coeli exstirpavit, de origem incerta, amplamente difundida como fórmula de protecção contra a peste. O texto, de manifesto colorido astrológico, compõe-se de duas estrofes seguidas por três invocações a Maria, sendo aquelas duas alusivas, por um lado, à ira de Cristo, apaziguada pela memória do seio materno e, por outro, à crença de que os males que afligem a Humanidade, nomeadamente as epidemias, são resultado da discórdia entre os astros. A melodia correspondente é um exemplo de cantus fractus, espécie de composição musical em ritmo métrico, de carácter acentuada e apropriadamente silábico. Ainda no âmbito da devoção à Virgem, as litanias que introduzem o concerto Medievália
Ibérica são exemplificativas não só das orações intercessórias associadas às práticas processionais, mas também das mutações e acréscimos de índole mariana a que o repertório litânico dos santos foi sujeito a partir de finais do século XII. Adicionalmente, testemunham a prática do fabordão, existente pelo menos desde inícios do século XIV. Trata-se de um género de canto a duas ou três vozes, improvisado ou escrito, em que a voz superior, uma melodia de cantochão preexistente, é acompanhada homorritmicamente, com eventuais notas ornamentais, pela voz ou vozes mais graves, segundo 3 Cumpre destacar a tradição da catedral da tradição do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Os livros litúrgicos desta instituição, fundada em 1131, reproduzem modelos do mosteiro de Cónegos Regrantes de São Rufo de Avinhão, na Provença, e conservam-se em número considerável na Biblioteca Pública do Porto.
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regras estritas no que toca às relações intervalares sonoras. Amplamente aplicado ao repertório litânico, o fabordão é aí cantado pelo coro que responde à invocação entoada por um presbítero ou cantor-mor. Testemunhos de polifonia medieval são igualmente as três composições relacionadas com a Ordem de Cister que o grupo Schola Antiqua inclui no seu programa. Em meados do século XII, paralelamente ao declínio de Cluny, chega à Península Ibérica esta Ordem de matriz beneditina, caracterizada por uma interpretação especialmente purista da Regra de São Bento. Ao longo desse século, rapidamente se propagam a sul e sudoeste dos Pirenéus os seus mosteiros. No caso português, cabe destacar a Abadia de Santa Maria de Alcobaça, cuja rica produção librária está hoje disseminada no espaço nacional. Deste património, salientam-se os livros de coro copiados por volta de 1200, cujos exemplares mais espectaculares se conservam no Mosteiro de Arouca, refundado com patrocínio real no século XIII. Um desses manuscritos musicais inclui, nos primeiros fólios, um hino a duas vozes,
Exultet caeli curia, dedicado a São Bernardo, o fundador da casa-mãe cisterciense de Claraval, no Nordeste de França, em 1115. Recentemente descoberta e estudada por Manuel Pedro Ferreira, esta peça musical, datável em torno a 1225, constitui o único exemplo chegado até nós de escrita polifónica portuguesa anterior a 1400 e ainda, simultaneamente, um dos dois testemunhos mais antigos de polifonia ibérica. Finalmente, as outras duas peças polifónicas relacionadas com a Ordem de Cister, uma das quais encerra o concerto Medievália Ibérica, remetem para a Abadia de Santa María la Real de las Huelgas, mosteiro cisterciense feminino localizado a oeste da cidade de Burgos, na margem sul do rio Arlanzón. Fundado por Alfonso VIII em 1187, guarda o célebre Códice de Las Huelgas, manuscrito medieval de conteúdo miscelâneo, seja pela variedade de formas musicais litúrgicas, paralitúrgicas e profanas, pela variedade de estilos de composição, que vão do género polifónico ao monódico e ao didáctico, seja ainda pelas obras compostas em homenagem póstuma a personagens marcantes na vida do mosteiro. Maioritariamente copiado no primeiro quartel do século XIV, na abadia onde se encontra, este códice compila peças de origem diversa (incluindo composições locais), utilizando como recursos notacionais diferentes técnicas de mensuração musical vigentes entre os inícios dos séculos XIII e XIV. Por sua vez, estas são aplicadas a obras musicais que, no extremo mais recuado, remontam a meados do século XI. Um espectro desta amplitude geográfica e cronológica confere, assim, ao códice um carácter extraordinariamente antológico, tão moderno quanto conservador.
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PRINCIPAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASENSIO, JUAN CARLOS, El Códice de Las Huelgas, Madrid, Alpuerto y Fundación Caja Madrid, 2001. BRAGANÇA, JOAQUIM O., “Influência Religiosa da França no Portugal Medievo”, em Didaskalia, III, Lisboa, 1973 (sep.) CORBIN, SOLANGES, Essai sur la Musique Religieuse Portugaise au Moyen Âge (1110-1385), Paris, Les Belles Lettres, 1952. FERREIRA, MANUEL PEDRO, Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento , Lisboa, Arte das Musas/CESEM, 2008. ID., Aspectos da Música Medieval no Ocidente Peninsular, II, Música Eclesiástica, Lisboa, INCM /Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. ROCHA, PEDRO ROMANO, L’Office Divin au Moyen Âge dans l’Église de Braga. Originalité et Dépendances d’Une Liturgie Particulière au Moyen Âge, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, 1980. RODRÍGUEZ SUSO, CARMEN, “El Manuscrito 9 del Monasterio de Silos y Algunos Problemas Relativos a la Adopción de la Liturgía Romana en la Península Ibérica”, em Revista de Musicología, XV, 2-3, Madrid, 1992, pp. 473-510.
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Zelus domus tue
O zelo da Tua casa
Zelus domus tuae comedit me, et opprobria
O zelo da Tua casa devorou-me, e os insultos
exprobrantium tibi ceciderunt super me.
dos que te caluniavam recaíram sobre mim.
Salvum me fac Deus: quoniam intraverunt
Salvai-me, ó Deus, porque as águas entraram
aquae usque ad animam meam.
até ao fundo da minha alma:
Infixus sum in limum profundi: et non est
fiquei atolado na lama das profundezas e não
substantia.
tenho onde me suster.
Veni in altitudines maris: et tempestas demersit
Cheguei até ao alto-mar e uma tempestade me
me.
meteu a pique.
Laboravi clamans, raucae factae sunt fauces
Esfalfei-me a gritar e a minha garganta ficou
meae:
rouca:
defecerunt oculi mei, dum spero in Deum meum.
cansaram-se meus olhos a esperar pelo meu Deus.
Multiplicati sunt super capillos capitis mei:
Multiplicaram-se sobre os cabelos da minha
qui oderunt me gratis.
cabeça os que me odeiam sem razão.
Confortati sunt qui persecuti sunt me inimici
Ganharam ânimo os inimigos que me
mei iniuste:
perseguiram injustamente:
quae non rapui tunc exsolvebam.
o que não roubara tive de restituí-lo.
Deus tu scis insipientiam meam:
Ó Deus, tu conheces a minha insensatez
et delicta mea a te non sunt abscondita.
e as minhas falhas não te são ocultas.
In monte Olivetti
No Monte das Oliveiras
In monte Oliveti ad patrem oravit:
No Monte das Oliveiras [Jesus] orou ao Pai:
Pater si fieri potest transeat a me calix iste.
Pai, se é possível afasta de Mim este cálice.
Spiritus quidem promptus est caro autem infirma.
O espírito está pronto, mas a carne é frágil.
V/. Vigilate et orate, ut non intretis in
V/. Vigiai e orai, para não entrardes em
tentationem.
tentação.
Ab insurgentibus in me
Os meus agressores
Ab insurgentibus in me libera me, Domine, quia
Livra-me, Senhor, dos que se insurgem contra
occupaverunt animam meam.
mim, porque tentaram tirar-me a vida.
Eripe me de inimicis meis Deus meus:
Meu Deus, arranca-me dos meus inimigos e
et ab insurgentibus in me libera me.
livra-me dos que se insurgem contra mim.
Eripe me de operantibus iniquitatem:
Defende-me dos que praticam a iniquidade, e
et de viris sanguinum salva me.
salva-me de homens sanguinários.
Quia ecce ceperunt animam meam: irruerunt in
Porque eis que eles armam ciladas à minha
me fortes.
alma e arremeteram contra mim os soberbos.
Neque iniquitas mea, neque peccatum meum
Não há em mim iniquidade nem pecado,
Domine:
Senhor:
sine iniquitate cucurri, et direxi.
sem culpa da minha parte, tive de andar fugido
Exurge in occursum meum, et vide:
até me recuperar.
et tu Domine Deus virtutum, Deus Israel,
Levanta-te em meu auxílio e presta atenção: és
Intende ad visitandas omnes gentes:
Tu, Senhor, o Deus das forças, o Deus de Israel;
non miserearis omnibus, qui operantur
apressa-te a ir ter com todos os povos; será que
iniquitatem?
não reages a todos os que praticam a iniquidade?
Convertentur ad vesperam:
Voltam todas as tardes:
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et famem patientur ut canes,
aguentam a fome como cães,
et circuibunt civitatem.
e dão voltas à cidade.
Caligaverunt oculi mei
Enfraqueceram os meus olhos
Caligaverunt oculi mei
Enfraqueceram os meus olhos de tanto
a fletu meo:
chorarem,
quia elongatus est a me, qui consolabatur me:
porque se afastou de mim quem me consolava.
Videte, omnes populi, si est dolor similis sicut
Vede, povos todos, se há dor semelhante à
dolor meus.
minha.
V/. O vos omnes, qui transitis per viam, attendite,
V/. Ó vós todos, que passais pelo caminho,
et videte si est dolor similis sicut dolor meus.
atendei e vede se há dor semelhante à minha.
O mors
Ó morte
O mors, ero mors tua, morsus tuus ero inferne.
Ó morte, serei a tua morte, serei o teu aguilhão,
Miserere mei Deus, secundum magnam
ó inferno.
misericordiam tuam.
Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua
Et secundum multitudinem miserationum
grande misericórdia.
tuarum:
E segundo a infinidade das tuas misericórdias,
dele iniquitatem meam.
apaga a minha iniquidade.
Amplius lava me ab iniquitate mea:
Lava-me até ao fim da minha iniquidade: e
et a peccato meo munda me.
purifica-me do meu pecado.
Quoniam iniquitatem meam ego cognosco:
Porque eu reconheço a minha iniquidade
et peccatum meum contra me est semper.
e o meu pecado está sempre na minha frente.
Tibi soli peccavi,
Contra Ti apenas eu pequei; fiz o que é mal a
et malum coram te feci:
teus olhos: oxalá sejas justo nas tuas palavras e
ut justificeris in sermonibus tuis
saias vencedor quando vens julgar.
et vincas cum judicaris.
É que, de verdade, quanto a mim, eu dei-
Ecce enim in iniquitatibus conceptus sum: et in
-me a actos de iniquidade e destinado a pecar
peccatis concepit me mater mea.
me concebeu a minha mãe.
Ecce enim veritatem dilexisti:
Por teu lado, sempre amaste a verdade: e me
incerta et occulta sapientiae tuae manifestasti
deste a entender as coisas de que não tinha a
mihi.
certeza e andavam escondidas na Tua sabedoria.
Asperges me hyssopo et mundabor:
Asperge-me com o hissope e ficarei limpo.
lavabis me et super nivem dealbabor.
Lavar-me-ás e ficarei mais branco do que a neve.
Christus factus est
Cristo fez-se obediente
Christus factus est pro nobis obediens usque ad
Cristo fez-se por nós obediente até à morte,
mortem, mortem autem crucis. Propter quod et
morte que foi de cruz.
Deus exaltavit illum, et dedit illi nomen quod est
Por isso, Deus exaltou-O e
super omne nomen.
deu-Lhe o nome que está acima de todo o nome.
Stella caeli exstirpavit
A estrela do céu
Stella caeli exstirpavit,
A estrela do céu,
Quae lactavit Dominum,
Aquela que amamentou o Senhor,
Mortis pestem, quam plantavit
pôs termo à peste da morte
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Primus parens hominum.
que o primeiro casal humano implantou.
Ipsa stella nunc dignetur
Aquela que é a estrela celeste
Sidera compescere,
digne-Se agora suster os astros
Quorum bella plebem caedunt,
cujos combates fustigam o povo
Dirae mortis ulcere.
com a punição de morte atroz.
O piissima stella maris,
Ó piíssima estrela do mar:
A peste succurre nobis,
socorre-nos em tempo de peste.
Audi nos, Domina;
Ouve-nos, Senhora,
Nam Filius tuus nihil negans
Pois Teu Filho nada Te nega e assim
Te honorat.
Te honra.
Salva nos Iesu,
Salva-nos, Jesus,
Pro quibus Virgo mater te orat.
Por nós a Virgem Mãe Te suplica.
Rex virginum
Rei das Virgens
Rex virginum, amator Deus,
Rei das Virgens, Deus amador,
Mariae decus, eleison.
honra de Maria, tem piedade.
Qui de stirpe regia claram producis Mariam,
Tu que da estirpe real fazes surgir Maria
eleison.
preclara, tem piedade.
Preces eius, suscipe dignas pro mundo fusas,
Atende as suas dignas preces dirigidas em favor
eleison.
do mundo, tem piedade.
Christe Deus de Patre homo natus Maria matre,
Cristo Deus, procedente do Pai, homem nascido
eleison.
de Maria mãe, tem piedade.
Christe Dei splendor virtus Patrisque sophia,
Cristo, esplendor de Deus, força e sabedoria do
eleison.
Pai, tem piedade.
Summe laudes nostras Mariae almae dicatas,
Aceita os nossos louvores dedicados a Maria,
eleison.
tem piedade.
Amborum sacrum spiramen nexus amorque,
Espírito Sagrado, união e amor de ambos, tem
eleison.
piedade.
Qui dignum facis thalamum pactus Mariae,
Tu que fazes um digno tálamo em pacto com
eleison.
Maria, tem piedade.
Qui super caelos spiritum levas Mariae, Fac nos
Tu que elevas o espírito de Maria acima dos
post ipsam scandere
céus, faz-nos subir após Ela com o Teu poder,
tua virtute, eleison.
tem piedade.
Exultet coeli curia
Exulte a assembleia do céu
Exultet coeli curia
Exulte a assembleia do céu,
festivo leta gaudio,
em alegria festiva de exultação.
sancta mater ecclesia,
A Santa Mãe, a Igreja
sancto congaudet Filio.
Participe na alegria da santidade do Filho.
Bernardus ab infantia
Bernardo desde a infância
virtute multa claruit.
Brilhou em virtude multiplicada.
Virginali mundicia
Em virginal pudicícia
mundi victor efloruit.
Floresceu vitorioso do mundo.
Cistercium ingrediens
Entrado em Cister
crevit per vite meritum
Cresceu em méritos de vida:
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ibi sancte suscipiens
Aqui recebeu o hábito
religionis habitum.
Da santa religião.
Amator solitudinis
Amador da solidão,
deo vacare studuit.
Esforçou-se por a Deus se dedicar.
Verba mire dulcedinis
Palavras de doçura admirável
scripsit, legit, et docuit.
Escreveu, leu e ensinou.
Clarevallis egregius
De Claraval mereceu
dignus est abbas laudibus
Ser egrégio abade em louvores:
qui quasi fulgens radius
Qual raio refulgente
claris fulsit virtutibus.
Brilhou em virtudes preclaras.
Bernardus mundi misera
Bernardo, que rejeitou
qui blandimenta respuit,
As doçuras inglórias do mundo,
ut nardus odorifera
Qual nardo odorífero,
odorem vite prebuit.
Perfume à vida trouxe.
Vir virtutis et gracie
Homem de virtude e de graça,
vir iste sanctus extitit
Este varão viveu em santidade,
qui maligni malicie
A ele o enfrentou sem parar
constanter hostis obstitit.
O inimigo maligno do mal.
Huius mira simplicitas
Admirável simplicidade foi a sua
multaque patientia
E cheio de paciência
magna fuit et caritas
Foi em grande caridade
et alia sapientia.
E não menor sabedoria.
In laudem sancte virginis
Em louvor da Santa Virgem
Marie libros edidit.
Maria livros compôs;
Dei matrem et hominis
Da Mãe de Deus e Homem
laudis exemplar tradidit.
Se tornou modelo de louvor.
Regi regum sit gloria
Ao rei dos reis seja dada glória,
nunc et per omne seculum
Agora e por todo o tempo,
qui iam in aula regia,
Ele que já na corte régia
suum suscepit famulum.
Seu servo recebeu.
Amen.
Ámen.
Candida virginitas
Cândida virgindade
Candida virginitas paradisi cara colonis, ortus
Cândida virgindade, amada pelos habitantes do
conclusus,
paraíso, horto fechado,
florenti caespite vernans.
com florescente arbusto adornado.
Cui merito mundus celebrat praeconia totus.
Seus louvores todo o mundo merecidamente
V/. Quae meruit Dominum progenerare suum,
celebra.
ipsa suo Nato nos reddat florida virgo.
V/. Aquela que mereceu gerar o Seu Senhor, a
Cui merito…
Virgem florida, nos faça dignos do Seu Filho. Seus louvores…
Virginis electae
Da Virgem escolhida
Virginis electe laudes dicamus
Da Virgem escolhida os louvores digamos
ovantis,
exultantes.
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Cuius nos precibus confirmet celica virtus.
Por Suas preces nos confirme a virtude celeste.
V/. Cetus celorum et ponti telluris et orbis mater
V/ O conjunto dos céus e do mar, da terra e do
in excelsis dominantem convocat almam.
orbe, a Mãe convoca nas alturas a alma vencedora.
Cuius nos...
Por suas preces…
Virginibus cunctis
A todas as virgens
Virginibus cunctis generosior adsis atque
A todas as virgens assistas generosa e serás a
benedicta eris mulierum.
bendita das mulheres.
Tu miserere nostri cum mala sectando vinclis
Tem piedade de nós quando seguimos a maldade
capimur
e somos apanhados nos laços da iniquidade.
iniquis.
V/. No Seu ventre jazeu durante tempos o Deus
V/. Cuius ventris Deus jacuit pro tempore verus.
da verdade.
Tu miserere…
Tem piedade…
Hortus conclusus
Horto cerrado
Hortus conclusus et fons signatus hymes transit
Horto cerrado e fonte selada!
hymber abiit,
O Inverno já passou, a chuva já se foi, passou a
recessit nox declinat dies, aspirat iam veni
noite, o dia vai rodando, suspira já a esposa que
sponsa de Libano. Veni Bethsamita, veni
chega do Líbano. Vem, Betsamita, vem: irás ser
coronaberis.
coroada.
V/. Fons hortorum, puteus aquarum quo fluunt
V/. Fonte dos jardins, poço das águas, para onde
impetu de Libano.
correm elas com a força que vem do Líbano.
Veni Bethsamita…
Vem, Betsamita…
Ave festiva
Ave, festiva conviva
Ave festiva ferculi Salomonis conviva regis aurea
Ave, conviva festiva das bodas de Salomão, que
conscendens triclinia pro agni occisione martyr
sobes até aos áureos triclínios para imolação do
purpurea mente.
cordeiro, mártir de mente purpúrea. Pela graça
Pro gratia benedictionis argenteis suffulta columnis.
apoiada em colunas argênteas de bênção.
V/. Monte Libano magis candida virgo.
V/. No monte do Líbano a mais cândida virgem. A
O quam terribilis in ordine caritatis transiit per
mais esplendente na ordem da caridade passou
medias Ierusalem filias. Pro gratia…
por meio das filhas de Jerusalém. Pela graça…
Virga dedit florem
A vara deu uma flor…
Virga dedit florem castum servando pudorem.
A vara deu uma flor, mantendo a virgindade intocada.
Iusticie solem Patris per secula prolem.
Flor da Justiça é o Sol, filho do Pai pelos séculos.
V/. Gaudeat omnis homo quoniam parit pia virgo.
V/. Exulte todo o homem, pois a Virgem pia deu à
Iusticie solem…
luz. Flor da Justiça é o Sol…
Benedicamus Domino
Bendigamos ao Senhor
Benedicamus Domino cum cantico,
Bendigamos ao Senhor com cântico,
cum iubilo, cum cordis et organo,
com júbilo, com cordas e órgão,
cum psalterio, cum tripudio, cum celeste gaudio.
com o saltério, com a dança, com alegria celeste.
Deo gratias.
Graças a Deus. Tradução: Aires A. Nascimento
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Schola Antiqua
Desde a fundação, em 1984, dedica-se ao estudo, investigação e interpretação da música antiga e, em especial, do canto gregoriano. Os seus cantores formaram-se como meninos de coro na Escolania da Abadia de Santa Cruz de Vale dos Caídos. Quanto ao repertório, centra-se na monodia litúrgica ocidental e na polifonia da Ars Antiqua e da Ars Nova; inclui interpretações alternatium com órgão e conjuntos vocais e instrumentais (La Colombina, Ensemble Plus Ultra, His Majesty’s Sagbutts and Cornetts, La Grande Chapelle, Ensemble Baroque de Limoges, La Capilla Real de Madrid, Ministriles de Marsias, The English Voices, La Veneciana, Alia Musica, Orquesta Barroca de Venecia, The Tallis Scholars, Ensemble Organum, etc.). A Schola Antiqua tem actuado em inúmeros festivais na Europa, Estados Unidos da América, Próximo Oriente e Japão. Da sua discografia, fazem parte registos consagrados ao canto moçárabe (Officium Defunctorum), ao canto gregoriano (Octoechos Latino, Terribilis est & Dicit Dominus) e a reconstrucões litúrgicas: Officium Hebdomadae Sanctae, de Tomás Luis de Victoria (La Colombina); Missa Super Flumina Babylonis, de Francisco Guerrero (Ensemble Plus Ultra & His Majestys Sagbutts and Cornetts); Requiem, de Mateo Romero; Vísperas de Confesores, de José de Nebra; Officium Defunctorum, de García Fajer; Missa O Gloriosa Virginum, de Rodríguez de Hita;
Liturgia del Domingo de Ramos, de Juan García de Salazar (La Grande Chapelle). Entre as suas últimas gravações, salientam-se Oficio de la Toma de Granada, de Fr. Hernando de Talavera, e uma reconstrucão da Missa Laetatus Sum, de Victoria (Ensemble Plus Ultra & His Majestys Sagbutts and Cornetts). Em 2011, realizou várias produções da obra de Victoria com o Ensemble Plus Ultra (Officium Defunctorum & Officium Hebdomadae Sanctae) e La Colombina (Vísperas de la Ntra. Señora), os Ministriles de Marsias (Missa Pro Victoria), além da estreia de
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Apocalipsis, de Jesús Torres. No Bach Festival, interpretou as Vésperas de Pentecostes, de Claudio Monteverdi. Recentemente, gravou um monográfico dedicado à pedagogia da música medieval com exemplos das fórmulas musicais que os manuscritos europeus destinavam à aprendizagem das melodias e, com o organista Bruno Forst, as partes alternatium da tablatura de Gonzalo de Baena (Lisboa, 1540), a primeira tablatura de tecla ibérica. Em 2012, realizou uma série de gravações em câmara anecóica num programa de arquelogia acústica, em colaboração com o Consejo Superior de Investigaciones Científicas e o Institute of Technical Acoustics da Universidade de Aquisgram, para reconstuir sinais musicais em tom anecóico para a reconstrução virtual do som do Antigo Rito hispânico. Entre os seus projectos levados a cabo em 2014, avultaram a participação na Missa Fúnebre de El Greco, na catedral de Toledo, por ocasião do 400.º aniversário da sua morte, com o Ensemble Plus Ultra; a reconstrução litúrgica completa de Ofício de Sexta-Feira Santa, com The Tallis Scholars, na 53.ª edição da Semana de Música Religiosa de Cuenca; e a estreia, no mosteiro de Las Huelgas, com o Ensemble Organum, de Libro de Leonor, do compositor José María Sánchez Verdú, encomenda do Patrimonio Nacional.
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Juan Carlos Asensio Palacios Direcção Coral
É colaborador de Répertoire International des Sources Musicales (RISM) e do Atelier de Paléographie Musicale da Abadia de Solesmes. Professor de Musicologia no Conservatorio Superior de Música de Salamanca, ensina actualmente na Escola Superior de Música da Catalunha e no Real Conservatorio Superior de Música de Madrid). Autor de numerosas publicações, dirige a Schola Antiqua desde 1996. É vogal do Conselho Directivo da Associazione Internazionale Studi di Canto Gregoriano, presidente da Asociación Hispana para el Estudio del Canto Gregoriano, investigador associado do Centro Internacional de Investigación de la Lengua Española, membro do grupo de estudo Bibliopegia e editor da revista Estudios Gregorianos.
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Concerto II
ODEMIRA
28 de Março 21H30
DAVIDE PEREZ: NÁPOLES-LISBOA Davide Perez [1711-1778]
Lectio I – Feria V in Coena Domini a 4 voci con ripieni Gian Francesco de Majo [1732-1770]
Sonata per organo e archi Davide Perez
Nisi Dominus a voce sola con violini Girolamo Abos [1715-1760]
Missa Brevis a 4 con violini (Kyrie-Gloria) Emanuelle Barbella [1718-1777]
Ninna Nonna per archi Davide Perez
Credo Breve a 4 con violini
I Turchini Soprano Valentina Varriale Meio-soprano Daniela Salvo Tenor Rosario Totaro Baixo Giuseppe Naviglio Violinos Paolo Cantamessa, Patrizio Focardi Violeta Rosario Di Meglio Violoncelo Alberto Guerrero
Violone Duncan Fox Órgão Patrizia Varone Direcção Antonio Florio
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ODEMIRA
Igreja Matriz de São Salvador
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
Concluído o movimento da “Reconquista”, a estrutura paroquial apresentava, no território de Odemira, uma rede pouco densa, existindo apenas as freguesias de São Salvador1 e Santa Maria. A referência documental mais antiga que se conhece às suas igrejas data de 1320-1321. Viriam a disputar ambas o título de matriz da vila, mas a primazia terá pertencido à primeira. Na segunda metade do século XVI, as duas freguesias foram desmembradas, com a criação de novas paróquias; da que ponderamos, saíram a de São Luís e, talvez, parte das de Relíquias e São Teotónio. Perderam-se todos os vestígios da primitiva igreja de São Salvador, que ascenderá à época gótica, ocupando, com muita probabilidade, o sítio da actual, uma área de expansão tardo-medieval da vila, conhecida – na época moderna – pelo nome de Palhais, não muito distante do espaço urbano intramuros. Sucessivas campanhas de obras, em particular durante os séculos XVII e XVIII, fizeram desaparecer os vestígios mais antigos; talvez a arqueologia possa, um dia, iluminar este hiato da memória local. Em 1693, a Arquidiocese de Évora procedeu à remodelação das duas igrejas, de acordo com a linha programática estabelecida pelo Concílio de Trento. Os trabalhos foram arrematados pelos mestres alvanéus Domingos Gonçalves, de Odemira, e Manuel Francisco Painço, de Beja, a que se juntou um oficial do mesmo ramo, Pedro de Araújo, de Évora. Demolida a igreja de Santa Maria, em 1836, resta a de São Salvador para avaliarmos a envergadura da obra, feita praticamente de raiz. Hoje, chamam a atenção neste edifício, entre outros elementos de tal período, os cunhais e os ornatos piramidais da sacristia, da fachada cega da abside e da empena do mesmo lado, assim como a cobertura em abóbada no campanário e o lavabo da sacristia. 1
O título oficial da paróquia, na cúria diocesana de Beja, é Santíssimo Salvador, mas atemo-nos à fórmula histórica; vulgarmente, diz-se apenas Salvador. Árvore da Vida. João Charters de Almeida. 1970. Odemira, igreja matriz de São Salvador. >
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D. João V uniu os dízimos de Odemira, em 1710, à Sé Patriarcal de Lisboa, acrescendo a esta instituição uma significativa fonte de receita, mas impondo-lhe as responsabilidades correspondentes, em particular quanto à conservação das suas igrejas e à manutenção do clero ao seu serviço. O terremoto de 1755 não afectou muito, aparentemente, a igreja de São Salvador; todavia, breves semanas decorridas, já um mestre pintor local, José Rodrigues Lima, se ocupava da ornamentação das tribunas do altar-mor e dos altares laterais, fissuradas pelo sismo. Outras sequelas viriam a manifestar-se posteriormente, dando origem a sucessivas obras, ao longo da segunda metade do século XVIII. Numa primeira etapa dos trabalhos, a fachada principal recebeu novo frontão, ao gosto dito “pombalino”, característico da época posterior ao sismo. Datam da mesma etapa as pilastras dos ângulos, alternando faixas lisas e bujardadas, que lhes imprimem peculiar animação; e os elementos piramidais de base quadrangular, outrora dispostos como remates dos cunhais, cederam o lugar a imponentes fogaréus, cujas bases reaproveitaram parte das antigas estruturas geométricas. Por 1782, a igreja encontrava-se em mau estado, por certo devido ao agravamento dos problemas causados pelo megassismo (e nunca totalmente resolvidos), pelo que foi necessário proceder-se a uma empreitada importante para a consertar, de que fez parte, entre outras obras, a instalação de telhados “amouriscados”, a cargo de um mestre pedreiro de Messejana, José António. Quanto à janela de cantaria, gradeada de ferro, sobre a porta principal, é também de uma fase final do século XVIII. Deste ciclo de empreitadas, repartido por várias décadas, resultou a modificação da frontaria e da torre sineira do edifício, redundando numa elegante síntese do Barroco Tardio e do Rococó, que suavizou o anterior modelo, fiel ao “Estilo Chão”. Assim, o vetusto e o adventício integraram-se coerentemente, sem se anularem entre si, numa lógica de justaposição pragmática. Em 1969, realizou-se outra transformação de fundo, inspirada pela reforma litúrgica do II Concílio do Vaticano (1963), a cargo do arquitecto Castro e Solla e do escultor João Charters de Almeida. Estes puderam trabalhar o monumento como um “contentor”, pois a paróquia fez desmantelar os retábulos de talha dourada e policroma e vendeu-os em fracções, para obter fundos destinados à obra. O resultado consistiu numa solução arrojada, em harmonia com o estilizado despojamento do tempo. Mais interessantes se revelaram o sacrário e, principalmente, a Árvore da Vida, que Charters de Almeida concebeu para a capela-mor, obra ágil e cheia de vigor, a que não foi alheia a súbtil evocação da Árvore de Jessé. Na ousia permanece a grandiosa pintura, a óleo sobre tela, figurando Cristo Salvador
do Mundo, alusiva ao orago da igreja, outrora parte integrante do antigo retábulo do
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altar principal. Da autoria do Pedro Alexandrino de Carvalho, remonta a data incerta do terceiro quartel do século XVIII. Terá sido encomendada pelo Colégio da Sé Patriarcal de Lisboa, no âmbito da remodelação que visou corrigir os estragos causados pelo terremoto de 1755.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; A NTÓNIO MARTINS QUARESMA, Odemira Histórica. Estudos e Documentos, Odemira, Município de Odemira, 2006; id. & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Igrejas Históricas de Odemira, Beja-Odemira, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Município de Odemira, 2014.
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Davide Perez – Uma Vida entre Nápoles e Lisboa
MANUEL CARLOS DE BRITO
O programa do presente concerto desenvolve-se sob o signo de Davide Perez e da chamada escola napolitana, expressão tradicionalmente utilizada pela história da música para designar as várias gerações de compositores formados nos quatro antigos conser vatórios daquela cidade que, ao longo do século XVIII, se espalharam pelo resto de Itália e um pouco por toda a Europa, e que, juntamente com os seus colegas cantores e instrumentistas, tiveram um papel decisivo no estabelecimento do estilo italiano como linguagem internacional da música durante todo esse século. Num admirável testemunho de continuidade histórica, o nome do grupo musical que iremos escutar deriva justamente do de um desses conservatórios, o da Pietà dei Turchini, e o seu director é professor do actual Conservatório de Nápoles, herdeiro directo dos conservatórios setecentistas. A importância de Nápoles na história da música deriva não só da enorme influência e fama europeia dos seus conservatórios (levando a que músicos de fora de Itália ali fossem completar a sua formação, entre eles alguns compositores portugueses como João de Sousa Carvalho e Jerónimo Francisco de Lima), como também do facto de ter sido nessa época um dos principais centros de actividade operática na Península Itálica, aliada a uma igualmente intensa produção de música sacra, rivalizando em um ou em ambos esses campos com outras grandes cidades de Itália, como Roma ou Veneza. As relações tornaram-se, aliás, muito próximas entre os dois tipos de música, visto que o estilo da música de igreja foi largamente contaminado pela linguagem da ópera, através da introdução de números vocais a solo que, pelo seu estilo virtuosístico e muito ornamentado, não se distinguem de verdadeiras árias de ópera, lado a lado com números corais que tendem a reflectir e dar continuidade à tradição da polifonia sacra originária da Renascença. Esta justaposição de estilos, amplamente presente no conjunto de obras que iremos ouvir, corresponde sem dúvida a uma visão teatralizada da cerimónia
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litúrgica, igualmente patente na arquitectura religiosa e na decoração interior dos templos, de acordo com os ditames ideológicos e estéticos do Barroco. A carreira do principal compositor representado no programa, David(e) Perez [S Nápoles, 1711 – X Lisboa, 1778], encontra-se intimamente ligada a Portugal. Tendo estudado contraponto, canto, instrumentos de tecla e violino no Conservatorio di Santa Maria di Loreto, aos vinte e dois anos entrou ao serviço do siciliano Diego Naselli, príncipe de Aragona. Durante os anos seguintes, a sua actividade dividiu-se entre Palermo e Nápoles, tendo sido sucessivamente nomeado vice-mestre e mestre da Capela Palatina, adstrita ao Palácio Real de Palermo. Tendo composto diversas óperas para Nápoles e Génova, em 1748 obteve licença para se ausentar de Palermo (cidade aonde nunca regressaria, apesar de continuar a receber metade do seu salário até à sua morte) e começou a levar à cena óperas em Nápoles, Roma, Florença, Veneza, Milão, Turim e Viena. Em 1749, concorreu através de prova pública ao lugar de mestre de capela do Vaticano, tendo no entanto sido preterido por um outro importante compositor napolitano, Niccolò Jommelli. Em 1752, após a recusa do mesmo Jommelli de vir para Portugal (optando, em vez disso, pela corte do duque de Württemberg), Perez foi contratado para a corte de Lisboa como director musical e mestre das infantas. Salientemos que a vinda de Perez para Lisboa está ligada ao projecto desenvolvido pelo rei D. José, logo após a sua subida ao trono, dois anos antes, para dotar a sua corte de um magnífico estabelecimento de ópera segundo o modelo existente em muitas das principais cortes europeias, nas quais, para além de constituir um mero entretenimento, exercia um importante papel na afirmação do poder absoluto. No caso português, tal projecto está também associado a um processo de secularização da vida política e cultural que contrasta com o que havia dominado o reinado do pai, D. João V, o qual, ao invés, tinha utilizado a religião e o espectáculo litúrgico, a “ópera ao divino”, com aquele mesmo objectivo. Além de Perez, foram contratados para a corte de Lisboa alguns dos melhores cantores então existentes, assim como bailarinos, instrumentistas e, em particular, um dos membros da principal família de arquitectos teatrais do século XVIII, Giovanni Carlo Sicini Bibiena, acompanhado de uma equipa que incluía um cenógrafo e um maquinista teatral. Bibiena trouxe consigo os planos para três teatros, um no Palácio de Salvaterra de Magos, um outro mais pequeno destinado ao teatro declamado na Quinta de Cima da Ajuda e, sobretudo, um majestoso teatro de Estado, a Casa da Ópera, conhecida modernamente como Ópera do Tejo, sensivelmente no local onde viria, posteriormente, a existir o Arsenal da Marinha. Este último foi inaugurado no dia 31 de Março de 1755 com uma récita de Alessandro nell’Indie de David Perez, numa produção deslumbrante
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que incluía um destacamento de cavalaria no palco e que mereceu ser mencionada na conhecida General History of Music de Charles Burney. Este teatro ruiu no entanto, sete meses mais tarde, no terremoto de 1 de Novembro desse ano, tendo ocasionado uma interrupção de uns oito anos nos espectáculos de ópera, que seriam retomados numa escala mais modesta e agora mais com um carácter de entretenimento privado do que de representação política, em especial no Teatro da Ajuda, que tinha capacidade para apenas umas cento e cinquenta pessoas, ou nos teatros provisórios que se montavam ocasionalmente durante o Verão no Palácio de Queluz, para além das temporadas de Carnaval no Teatro de Salvaterra. Continuou-se, mesmo assim, a contratar um grande número de cantores em Itália, se bem que não da mesma envergadura dos que haviam inaugurado a Ópera do Tejo. Até ao terremoto, o repertório dos teatros de corte foi essencialmente constituído por óperas sérias de David Perez, mas, quando os espectáculos foram retomados a partir de 1763, a ópera cómica, ou buffa, tornou-se muito mais popular, de acordo com uma tendência que se generalizara, entretanto, em toda a Europa. A corte portuguesa continuou, mesmo assim, a interessar-se pela opera seria, em virtude sobretudo do apreço que lhe mereciam as obras do já citado Niccolò Jommelli, um importante agente da reforma desse género dramático na segunda metade do século XVIII, a quem, em 1769, foi oferecida uma pensão de 400 sequins a fim de enviar todos os anos para Lisboa uma opera seria e uma buffa, assim como um certo número de obras religiosas. Perez, por sua vez, passou a dedicar-se sobretudo à composição de música sacra para as duas instituições em que a Capela Real se tinha cindido após o terremoto: a Real Capela da Ajuda, junto do palácio onde a família real passou a residir e destinada ao culto privado da corte, e a Capela Real e Patriarcal, de maiores dimensões, que, após ter passado por diversos locais, se fixou no mosteiro de São Vicente de Fora. A fama e o prestígio das suas obras religiosas fizeram com que cópias delas (juntamente com as de Jommelli) se espalhassem pelas principais igrejas portuguesas e chegassem até ao Brasil. Em 1774, foi eleito por aclamação membro da Academia de Música Antiga de Londres, tendo publicado nessa cidade o seu Mattutino de’ morti, um acontecimento significativo numa época em que a música sacra, bem como as óperas, circulavam habitualmente em cópias manuscritas. Nos últimos anos da sua vida, padeceu de doença crónica e acabou por perder a vista, continuando, contudo, a compor. Em 1778, a rainha D. Maria I (que tinha sido uma das suas discípulas) fê-lo cavaleiro da Ordem de Cristo e, quando morreu, uns meses mais tarde, o seu funeral foi celebrado com pompa a expensas da corte. O facto de ter passado os últimos vinte e seis anos da sua vida na corte de Lisboa
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contribuiu para o declínio da sua fama internacional. Mesmo assim, em especial a sua música de igreja continuou a ser amplamente copiada e difundida em Itália ou na Alemanha até ao final do século XVIII. Para além da música sacra, a sua produção inclui mais de quarenta e cinco obras dramáticas, cerca de metade das quais óperas. Os restantes compositores representados no programa pertencem também, todos eles, ao círculo napolitano contemporâneo de Davide Perez. Gian Francesco de Majo [1732-1770], cravista e organista da Capela Real de Nápoles, ficou conhecido sobretudo pelas suas mais de vinte óperas, algumas das quais apresentou em diversas cidades do Norte de Itália, assim como em Mannheim e Viena. A sua ópera Antigono foi cantada em Lisboa, no Teatro da Rua dos Condes, em 1772. Compôs igualmente um número significativo de obras sacras. Após ouvir a sua música numa igreja de Nápoles, em 1770, o jovem Mozart escreveu a sua irmã que a tinha achado “belíssima”. Girolamo Abos [1715-1760], compositor e professor originário de Malta, estudou em Nápoles no Conservatório dei Poveri di Gesù Cristi, onde viria a ser professor, assim como, posteriormente, nos Conservatórios de Santo Onofrio a Capuana e da Pietà dei Turchini, tendo sido mestre de capela de diversas igrejas napolitanas. As suas óperas foram cantadas um pouco por toda a Itália, e algumas das suas árias incluídas em óperas representadas em Londres. Nas suas obras sacras, procurou realizar uma síntese entre o estilo mais moderno e a tradição da polifonia vocal religiosa. Emanuele Barbella [1718-1777], violinista e compositor napolitano, filho do professor de violino do Conservatório de Santa Maria di Loreto, que foi membro da Capela Real de Nápoles e das orquestras do Teatro Nuovo e do Teatro San Carlo daquela cidade. Várias colecções das suas obras para violino ou para duos e trios de instrumentos de arco foram publicadas em Londres e Paris. Ninna Nonna é uma canção de embalar originalmente escrita para violino e baixo, que aparece reproduzida na já citada General
History of Music de Burney, que o conheceu em Nápoles e se tornou seu amigo e admirador.
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Incipit Lamentatio Jeremiæ prophetæ
Começam aqui as Lamentações do profeta Jeremias
ALEPH
ALEPH
Quomodo sedet sola civitas plena populo:
Como está solitária a cidade outrora tão populosa!
Facta est quasi vidua domina
Tornou-se como uma viúva a que era grande
Gentium:
entre as nações;
Princeps provinciarum facta est sub tributo.
Primeira entre as cidades ficou sujeita ao tributo.
BETH
BETH
Plorans ploravit in nocte, et lacrymæ eius in
Chora sem cessar pela noite adentro
maxillis eius:
e as lágrimas correm-lhe pelas faces.
Non est qui consoletur eam ex omnibus caris
Não há quem a console
ejus:
entre todos os que a amavam;
Omnes amici ejus spreverunt eam, et facti sunt
todos os seus amigos a traíram,
ei inimici.
tornaram-se seus inimigos.
GHIMEL
GUIMEL
Migravit Judas propter afflictionem,
Judá foi exilada e oprimida
Et multitudinem servitutis:
sob o peso de uma dura escravidão;
Habitavit inter gentes, nec invenit requiem
habita entre pagãos,
Omnes persecutors ejus
sem encontrar descanso.
Apprehenderunt eam
Todos os seus perseguidores se apoderaram dela
inter angustias.
no meio das suas angústias.
DALETH
DALETH
Viae Sion legent eo quod non sint
Estão de luto os caminhos de Sião,
Qui veniat ad solemnitatem:
já não há quem venha às suas festas.
Omnes portae ejus destructae:
Todas as suas portas foram destruídas,
Sacerdotes ejus gementes:
gemem os seus sacerdotes,
Virgines ejus squalidae,
vivem desoladas as suas donzelas,
Et ipsa oppressa amaritudine.
e ela mesma está cheia de amargura.
HE
HE
Facti sunt hostes ejus in capite,
Apoderaram-se dela os seus opressores,
Inimici ejus locupletati sunt:
Os seus inimigos vivem felizes;
Quia Dominus locutus est super eam
Foi o Senhor quem a castigou
Propter multitudinem iniquitatum ejus:
Por causa dos seus inúmeros pecados;
Parvuli ejus ducti sunt in captivitatem,
Os seus filhos tenros foram exilados
Ante faciem tribulantis.
Diante do opressor.
Jerusalem convertere ad Dominus Deum tuum.
Jerusalém, converte-te ao Senhor, teu Deus.
Nisi Dominus
Se não for o Senhor
Nisi Dominus aedificaverit domum,
Se não for o Senhor a edificar a casa,
in vanum laboraverunt, qui aedificant eam.
em vão trabalham os construtores.
Nisi Dominus custodierit civitatem,
Se não for o Senhor a guardar a cidade,
frustra vigilat, qui custodit eam.
debalde vigiam as sentinelas.
Vanum est vobis ante lucem surgere:
Inútil levantar-se demasiado cedo,
surgite, post quam sederitis,
e fazer serão até noite dentro,
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qui manducatis panem doloris.
ou comer o pão de tanta fadiga.
Cum dederit dilectis
se Ele enche de bens os seus fiéis enquanto
suis somnum.
dormem.
Ecce hereditas Domini filii
Os filhos são bênçãos do Senhor,
mercis fructus ventris.
os frutos do ventre, um mimo do Senhor
Sicut sagittae in manu potentis,
Como setas na mão de um guerreiro,
ita filii excussorum.
assim os filhos nados na juventude.
Beatus vir,
Feliz o homem
qui implevit desiderium suum ex ipsis:
que deles enche a sua aljava;
Non confundetur,
Não se envergonhará quando discutir
cum loquetur inimicis suis in porta.
com os inimigos às portas da cidade.
Gloria patri et filio
Glória ao Pai e ao Filho
et spiritui sancto.
e ao Espírito Santo,
Sicut erat in principio
como era no princípio,
et nunc et semper
agora e sempre,
et in saecula saeculorum.
e pelos séculos dos séculos.
Amen.
Ámen.
Kyrie
Senhor, tende piedade
Kyrie eleison
Senhor, tende piedade;
Christe eleison
Cristo, tende piedade;
Kyrie eleison.
Senhor, tende piedade.
Gloria
Glória
Gloria in excelsis Deo.
Glória a Deus nas alturas
Et in terra pax hominibus bonae voluntatis.
e paz na terra aos homens de boa vontade.
Laudamus te,
Nós Vos louvamos,
benedicimus te,
nós Vos bendizemos,
Adoramus te,
nós Vos adoramos,
glorificamus te,
nós Vos glorificamos,
Gratias agimus tibi
nós Vos damos graças,
Propter magnam gloriam tuam.
por vossa imensa glória,
Domine deus Rex caelestis,
Rei Celeste,
Deus pater omnipotens.
Deus Pai Omnipotente.
Domine fili Unigenite Jesu Christe
Senhor Jesus Cristo, Filho Unigénito,
Domine Deus, Agnus Dei Filius Patris:
Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus
Qui tollis peccata mundi
Pai: Vós que tirais o pecado do mundo, tende
miserere nobis
piedade de nós;
Qui tollis peccata mundi
Vós que tirais o pecado do mundo, acolhei a
Suscipe deprecationem nostram
nossa súplica;
Qui sedes ad dexteram Patris
Vós que estais à direita do Pai,
miserere nobis.
tende piedade de nós.
Quoniam tu solus, Solus Santus
Só Vós sois o Santo;
Tu solus Dominus
só Vós, o Senhor;
Quoniam Tu Solus Altissimus
só Vós, o Altíssimo,
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Jesu Christe
Jesus Cristo;
Cum Santo Spiritu in gloria Dei Patris.
com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai.
Gloria in excelsis Deo.
Glória a Deus nas alturas.
Amen.
Ámen.
Credo
Credo
Credo in unum Deum
Creio em um só Deus,
Patrem omnipotentem
Pai todo-poderoso,
Credo in unum Deum
Creio em um só Deus,
factorem coeli et terrae
Criador do céu e da terra,
Visibilium omnium
De todas as coisas visíveis
et invisibilium
e invisíveis.
Credo in unum Deum,
Creio em um só Deus,
Dominum Jesum Christum
Senhor Jesus Cristo,
Filium Dei unigenitum
Filho Unigénito de Deus,
Et ex Patre natum
nascido do Pai
ante omnia saecula
antes de todos os séculos:
Deum de Deo,
Deus de Deus,
Lumen de lumine,
luz da luz,
Deum verum de Deo vero.
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;
Genitum non factum
gerado, não criado,
Consubstantialem Patri:
consubstancial ao Pai.
Per quem omnia facta sunt,
Por Ele todas as coisas foram feitas.
Qui propter nos homines,
E por nós, homens,
Et propter nostram salutem,
e para nossa salvação
Descendit de caelis.
desceu dos Céus.
Et incarnatus est
E encarnou
De Spiritu Sancto
pelo Espírito Santo,
Ex Maria Virgine:
no seio da Virgem Maria.
Et homo factus est.
e se fez homem.
Crucifixus etiam pro nobis
Também por nós foi crucificado
Sub Pontio Pilato
sob Pôncio Pilatos.
Passus est,
Padeceu
Et sepultus est.
e foi sepultado.
Et resurrexit tertia die,
Ressuscitou ao terceiro dia,
Secundum scripturas.
conforme as Escrituras;
Et ascendit in caelum:
e subiu aos Céus,
Sedet ad dexteram Patris.
onde está sentado à direita do Pai.
Et iterum venturus est,
De novo há-de vir em sua glória
Cum Gloria judicare vivos et mortuos
para julgar os vivos e os mortos;
Cuius regni, non erit finis.
e o seu Reino não terá fim.
Et in Spiritum Sanctum,
Creio no Espírito Santo,
Dominum, et vivificantem:
Senhor que dá a vida,
Qui ex Patre Filioque
e procede do Pai e do Filho;
Procedit qui cum Patre et Filio,
e com o Pai e o Filho
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Simul adoratur,
é adorado
Et conglorificatur:
e glorificado:
Qui locutus est per Prophetas,
Ele que falou pelos Profetas.
Et unum sanctam catholicam,
Creio na Igreja una, santa, católica
Et apostolicam Ecclesiam,
e apostólica.
Confiteor.
Professo
Unum baptisma in remissionem peccatorum.
um só baptismo para a remissão dos pecados.
Et expecto resurrectionem mortuorum.
E espero a ressurreição dos mortos
Et vita venturi saeculi,
e a vida do mundo que há-de vir.
Amen.
Ámen. Tradução: José António Falcão
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I Turchini
O ensemble I Turchini foi fundado, em 1987, por Antonio Florio, sob o nome de Cappella della Pietà de’ Turchini, optando, em 2010, pela actual denominação. É formado por cantores e instrumentistas especializados na interpretação da música napolitana dos séculos XVII e XVIII, valorizando a descoberta de compositores desconhecidos. A originalidade dos programas e a adesão a uma estrita prática do desempenho barroco faz de I Turchini uma das vanguardas da cena musical italiana e europeia. Tem sido convidado a actuar em palcos de renome, como a Accademia di Santa Cecilia, de Roma; o Teatro San Carlo, de Nápoles; o Palau de la Musica, de Barcelona; a Berlin Philharmonie; a Vienna Konzerthaus; o Teatro Lope de Vega, de Sevilha; o Teatro Colón, de Buenos Aires; La Monnaie, de Bruxelas. Tem, igualmente, participado nos principais festivais europeus: Monteverdi Festival, de Cremona; Versalhes; Beaune; Nancy; Nantes; Metz; Caen; Ambronay; Festival de Otoño de Madrid; Telavive; Barcelona; Potsdam; Cracóvia; BBC; Cité de la Musique; Fondation Royamount; e Festival Mozart (Coruña). As suas produções recentes incluem Il Disperato Inocente, de Francesco Boerio; Dido and Æneas e The
Fairy Queen, de Henry Purcell; Festa Napolitana; La Statira, de Francesco Cavalli; Motezuma, de Francesco de Majo; La Partenope, de Leonardo Vinci; La Finta Giardiniera, de Pasquale Anfossi;
L’Ottavia Restituita al Trono, de Domenico Scarlatti; La Salustia, de Giovanni Battista Pergolesi; Aci, Galatea e Polifemo, de George Friedrihc Händel. I Turchini gravou para a Rádio França, a BBC e várias rádios espanholas, alemãs, austríacas e belgas. Em 1998, destacou-se num documentário realizado pela televisão belga e num filme inteiramente dedicado à ópera buffa para a companhia franco-alemã ARTE (prémio da UNESCO).
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Antonio Florio Direcção musical
Natural de Bari, estudou no conservatório desta cidade, especializando-se em Violoncelo, Piano e Composição. Em 1987, fundou o ensemble I Turchini. Repartindo a vida profissional entre a actividade concertística e a investigação musicológica, interessou-se, em particular, pelo repertório da música napolitana dos séculos XVII e XVIII, revelando obras-primas, nunca antes publicadas, em concertos nos mais prestigiados palcos de Itália e da Europa. Entre os títulos dados a conhecer por Antonio Florio, destacam-se La Colomba Ferita, Il Schiavo di
Sua Moglie e La Stellidaura Vendicante, de Francesco Provenzale; Il Disperato Innocente, de Francesco Boerio; La Finta Cameriera,de Gaetano Latilla; Li Zite’n Galera, de Leonardo Vinci; Il Pulcinella
Vendicato, de Giovanni Paisiello; Statira, de Francesco Cavalli; e Motezuma, de Francesco De Majo. Em 1999-2000, dirigindo a Orquestra Sinfónica de Santiago de Compostela, apresentou La Serva
Padrona e Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi. Tem-se consagrado à edição crítica da opera seria de Vinci, La Partenope, que levou à cena, em 2004, no Teatro de Ponferrada e no Auditorio de León. Em 2005, deu a conhecer La Finta Giardiniera, de Anfossi, apresentada na Fondation Royaumont. Em 2005, dirigiu I Turchini no festival Anima Mundi, de Pisa, e recebeu o Award for the diffusion of Mediterranean Music. Em 2007, foi maestro convidado da Accademia Chigiana, de Siena, da Associazione Scarlatti, de Nápoles, e do Centre Lyrique d’Auvergne, de Clermont Ferrand. Em 2008, dirigiu Alidoro, de Leo, no Teatro Valli, de Reggio Emilia, e no Teatro Mercadante, de Nápoles; a sua gravação obteve o Diapason d’Or e o Orphée d’Or; e conquistou, em Oviedo, o Premio Luis Gracia Iberni, pela primeira audição, nos tempos modernos, de Ottavia Restituita
al Trono, de Scarlatti. Em 2009, apresentou Acis and Galatea, de Handel, no Teatro dell’Arte, de Milão. Em 2010, dirigiu Orpheus and Eurydice, de Fux, na Konzerthaus de Viena.
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Como professor, orientou seminários e masterclasses sobre a música vocal e de câmara da época barroca no Centre de Musique Baroque de Versailles, na Fondation Royaumont e no Conservatoire de Toulouse. É professor de Música de Câmara no Conservatorio San Pietro a Majella, em Nápoles, onde dirige um curso sobre o estilo e o repertório barrocos.
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Valentina Varriale Soprano
Graduada pelo Conservatorio di San Pietro a Majella, em Nápoles, foi uma aluna brilhante. Teve
masterclasses no estilo barroco com Roberta Invernizzi e, em canto lírico, com Mirella Freni. Frequentou igualmente a academia de alta especialização com Lella Cuberli e June de Anderson. Iniciou cedo a carreira a solo, tendo participado, no ano de 2001, em duas produções do Autunno Musicale do Teatro di San Carlo, de Nápoles. Desempenhou o papel de Messo, na Statira, Principessa
di Persia, de Cavalli, na primeira produção desta ópera pelo ensemble I Turchini, sob a direcção de Antonio Florio. Colaborou também com Rinaldo Alessandrini durante a série de concertos de Ambronay. Em 2004, venceu a primeira edição do Concurso Internacional de Música Barroca Francesco Provenzale e cantou o papel de Armindo em Partenope, de Handel (Festival de Beaune e La Cité de la Musique, de Paris). Em 2005, colaborou com os Sonatori de Gioiosa Marca em Stabat Mater, de Pergolesi, que voltou a interpretar, sob a direcção de Ottavio Dantone, no Festival Pergolesi-Spontini de 2006. Com a Cappella della Pietà de’ Turchini apresentou La Betulia Liberata, de Mozart, nos festivais em Beaune e Santiago de Compostela. Foi Barbarina em Le Nozze di Figaro, de Mozart, no Théâtre des Champs-Élysées; Rosilda, em
Ottavia Restituita al Trono, de Scarlatti; Zeza, em Alidoro, de Leo, no Teatro Valli, em Reggio Emilia, e no Teatro Mercadante, em Nápoles; Albina, em Salustia, de Pergolesi, no Festival de Montpellier; Armindo, em Partenope, de Handel, apresentada de novo em Ferrara e Modena. Colheu, nestas ocasiões, o entusiasmo da crítica e do público. Trabalhou com Jordi Savall – mormente nos projectos de L’Orfeo e Vespri della Beata Vergine, de Monteverdi – e com Peter Kopp, participando em vários festivais europeus (Edimburgo, Salzburgo,
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Dresden, etc.) e nacionais (Jesi Festival, Festival Monteverdi Cremona, Stagione dell’ Associazione Alessandro Scarlatti di Napoli, MITO, etc.). É colaboradora habitual de I Turchini. Venceu diversos certames líricos, entre os quais os primeiros prémios do Concurso Benvenuto Franci, de Pienza (2010), do Concurso Vincenzo Bellini, de Caltanissetta (2011), e da Puccini International Competition, de Torre del Lago (2012). Tem realizado gravações para etiquetas como Eloquentia, Glossa, Naive, Stradivarius, Brillant Classic e Berlin Classic.
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Daniela Salvo Meio-soprano
Vinculada ao universo da música desde muito jovem, estudou piano com Maria Rosaria Capone, Angelina Le Piane e Lina Tufano, diplomando-se em 2011 no Conservatorio Domenico Cimarosa, de Avellino. Uma profunda paixão pelo canto levou-a a estudar canto lírico na tessitura de meio-soprano, área em que se diplomou, sob a orientação de Susanna Anselmi. Frequentou cursos de aperfeiçoamento com Francesco Nicolosi, Valeria Baiano, Roberto De Simone e Amanda Smallbone. Actua na qualidade de solista com grupos de música de câmara, corais e orquestras em vários projectos, que vão da música antiga à contemporânea, colaborando com os conservatórios de Nápoles e Avellino e com diversas associações culturais e musicais. Em 2014, participou na quarta edição de AcarlattiLab, sob a direcção de Antonio Florio e Dinko Fabris, executando Miserere a due voci no concerto dedicado a N. Jommelli por ocasião do terceiro centenário do seu nascimento; e, como solista, na primeira execução mundial nos tempos modernos de La Passione secondo Giovanni, de G. Veneziano, com I Turchini, no âmbito de Arezzo Summer Music School & Festival; e inaugurou o programa de intercâmbios internacionais entre o Conservatorio Domenico Cimarosa e a Missouri University (Estados Unidos da América).
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Rosario Totaro Tenor
Diplomou-se no Conservatorio San Pietro a Majella, de Nápoles, em Piano, sob a orientação de Carlo Ardissone, e posteriormente em Canto, com Tina Quagliarella. Aprofundou os estudos em canto com Michael Aspinall, Claudine Ansermet e Maria Ercolano. O encontro com Argenzio Jorio alimentou-lhe a paixão pela direcção coral. Em 1984, deu o primeiro concerto como director do grupo Li Chori in Musica Neapolitani, que orientou durante sete anos. Em 1991, integrou I Turchini, na qualidade de tenor, tendo participado com o mesmo em importantes manifestações e temporadas de concertos em Itália (Teatro di San Carlo, Nápoles; Teatro Carlo Felice, Génova; Teatro Massimo, Palermo) e no estrangeiro (Viena, Berlim, Madrid, Lisboa, Paris, Londres, Cidade do México, Buenos Aires, Tóquio, Xangai, Jerusalém). Participou também em gravações para a Simphonia, Opus 111, Naive e Glossa. Com Ugo di Giovanni à guitarra, apresentou um trabalho de recuperação da canção napolitana do século XIX. Alguns destes trechos fazem parte da colectânea Tesori di Napoli, organizada pelo Opus 111. Em 1992, em colaboração com outros músicos napolitanos, criou o coro polifónico Mysterium Vocis, que dirige actualmente. É docente no Conservatorio Domenico Cimarosa, de Avellino.
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Giuseppe Naviglio Baixo
Natural de Bari, iniciou os estudos com Gino Lorusso Toma, prosseguindo-os em Pesaro com Rina Filippini Del Monaco. Foi aluno de Paride Venturi e obteve a licenciatura em Letras na Universidade de Bari. Após a estreia em Il Barbiere di Siviglia, de Rossini (Don Bartolo, 1991), ingressou no Teatro de Ópera de Bona como solista, ampliando o seu repertório, ao lado de artistas de renome internacional. Colabora assiduamente, desde 1996, com I Turchini, tendo actuado nos mais prestigiados teatros e festivais de todo o mundo, entre eles a Konzerthaus, de Viena, o Teatro Colón, de Buenos Aires, o Teatro de la Zarzuela, de Madrid, o Palau de la Música, de Barcelona, o Théâtre des Champs Elysées, de Paris, a Accademia Filarmonica, de Roma, e o Teatro di San Carlo, de Nápoles. A sua actividade estende-se do repertório barroco à produção contemporânea e atravessa todos os géneros: das óperas, lembramos L’Elisir d’Amore, de G. Donizetti; Tosca, de G. Puccini; Don
Giovanni e Le Nozze di Figaro, de Mozart. Interpretou, em primeira execução absoluta, diversas composições de autores contemporâneos, mormente Asinus Aureus, Stupor Mundi-Puer Apuliae,
Questa Fenice e Seconda Sinfonia Lirica, de N. Scardicchio; e All’Ombra dell’Uomo Montagna de B. Moretti; Exit Mundi, de G. Tamborrino; Nativitas, de G. Panariello; Il Sogno di Galileo, Nacque
al Mondo un Sole, Helias e Roma-Istambul senza Scalo, de F. Bonetti-Amendola. Foi titular da cadeira de Canto Histórico no Conservatorio N. Piccinni, de Bari.
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Concerto III
SINES
11 de Abril 21H30 O SÉCULO XVIII AO PIANO EM PORTUGAL E ESPANHA: DE CARLOS DE SEIXAS A ANTONIO SOLER Carlos de Seixas [1704-1742] Sonata I em sol menor I. Allegro II. Minuet Sonata en si menor K.80 Sonata II en sol mayor I. Allegro II. Adagio III. Allegro assai Sonata en re menor K.23 I. Adagio II. Giga: Allegro III. Minuet Sonata en do menor K.14 I. Allegro II. Minuet I-II Sonata en re menor K.24 Antonio Soler [1729-1783] Sonata en re mayor R.84 Sonata en sol menor R.32 Sonata en mi bemol mayor R.105 Sonata en re b mayor R.88 Sonata en re menor R.115 Sonata en do menor R.48
Piano Iván Martín
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SINES
Igreja Matriz de São Salvador
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & RICARDO PEREIRA
Implantada no alto de uma falésia, em posição dominante sobre a baía de Sines, a igreja matriz de São (Santíssimo) Salvador data de 1730, tendo substituído uma igreja gótica, de três naves separadas por arcos de cantaria e capelas laterais profundas. Esta, por seu turno, foi erguida no local de uma basílica visigótica do século VI, de que chegou aos nossos dias um notável conjunto de cantarias lavradas, extraídas, na maior parte, das muralhas do vizinho castelo, mas de que se conserva ainda um fragmento de friso no actual baptistério, além dos vestígios encastrados em diversos outros pontos do edifício. A actual estrutura caracteriza-se pela clareza e pela austeridade, aliadas a uma excepcional solidez, revelando claras analogias com os modelos mais eruditos da arquitectura da Ordem de Santiago, em particular os concebidos por João Antunes, nomeado arquitecto das ordens militares em 1697. Daí resulta um “ar de família” que a aproxima das igrejas de Santiago, de Alcácer do Sal, e de Nossa Senhora da Conceição, de Castro Verde, imóveis de que repete muitos pormenores, como as torres sineiras ou os portais laterais, numa composição adaptada à escala mais reduzida. Quanto ao interior, destaca-se o revestimento de azulejos da capela-mor, uma sofisticada e complexa composição a azul e branco, que integra os vãos de janelas, portas e nichos, enquadrados por molduras de gosto rococó, e foi realizada, em torno de 1750, por uma das melhores oficinas de Lisboa. O programa iconográfico centra-se na evocação de Cristo, orago da paróquia, apresentando do lado do Evangelho, ao centro, a Transfi-
guração e, do outro, São João Baptista Prostrado ante o Menino Jesus como Salvador do Mundo. Estes painéis são flanqueados pelas imagens dos Quatro Evangelistas, enquanto num registo inferior sobressaem medalhões de temática eucarística. O ciclo Porta “fingida”. Escola portuguesa. Século XVIII (último quartel). Sines, igreja de Nossa Senhora das Salas. >
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dos Evangelistas aparece reiterado em quatro notáveis pinturas a óleo sobre tela, já do tempo de D. José I. Merece igualmente referência o painel da Última Ceia, de factura finisseiscentista, que pertenceu ao desaparecido retábulo do altar principal. No espaço da nave abrem-se seis capelas laterais com retábulos de talha, tendo outrora cada uma a sua confraria ou irmandade próprias. Juntamente com a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a mais influente e a mais rica, responsável pela capela-mor, estas instituições rivalizavam entre si no esplendor que imprimiam às respectivas festas, na sumptuosidade das decorações, no número de velas, na eloquência dos pregadores e, ainda, no brilho da música que acompanhava a liturgia. Em paralelo ao culto mais institucional, fortemente regrado pela Ordem de Santiago e garantido por um prior e três beneficiados, todos freires espatários, floresciam interessantes manifestações da religiosidade popular. Algumas desapareceram por imposição da hierarquia, como a corrida de touros nas festas da ermida de São Marcos, em que um boi era conduzido ao altar, durante a missa (25 de Abril). Outras foram-se simplesmente perdendo com o correr dos tempos, como a tradição de os pescadores virem à igreja matriz cantar a Santo Amaro, no dia da sua festa (15 de Janeiro), costume de que não subsiste qualquer registo para além de memórias vagas de pessoas mais antigas. Francisco Luís Lopes descreveu pormenorizadamente, nos meados do século XIX, a atmosfera destas celebrações tradicionais e o papel de relevo que a música nelas assumia, desde a presença dos tocadores galegos que vinham de Lisboa em Agosto, com tambor e gaita-de-foles, para acompanhar a recolha das esmolas destinadas a Nossa Senhora das Salas, até às ruidosas festas de São João (24 de Junho) e São Pedro (29 de Junho), nas quais se cantava e tocava ao redor dos mastros ou em turmas pelas ruas.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
FRANCISCO LUÍS LOPES, Breve Notícia de Sines, Patria de Vasco da Gama, Lisboa, Typographia do Panorama, 1850 [ed. fac-simil., Sines, Câmara Municipal de Sines, 1985]; ARNALDO SOLEDADE, Sines, Terra de Vasco da Gama, Setúbal, Junta Distrital de Setúbal, 1973 (4.ª ed., Sines, Câmara Municipal de Sines, 1999); JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Memória Paroquial do Concelho de Sines em 1758, Santiago do Cacém, Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 1987; ANTÓNIO MARTINS QUARESMA, “Sines Medieval e Moderna (Séculos XIV-XVIII)”, em SANDRA PATRÍCIO (dir. de), O Concelho de Sines. Da Fundação à Época Moderna, Sines, Câmara Municipal de Sines, Arquivo Municipal Arnaldo Soledade, [s.d.].
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Do Alto Barroco ao Limiar do Classicismo: Sonoridades da Música Ibérica para Tecla
RUI CABRAL LOPES
Este programa do Festival Terras sem Sombra reúne dois lídimos representantes da música ibérica para tecla do século XVIII: o português José António Carlos de Seixas [1704-1742] e o espanhol Francisco Javier José Antonio Soler Ramos [1729-1783]. Muito embora não tenha existido nenhuma relação directa entre os dois talentosos compositores e executantes de tecla, ambos prosseguiram a mesma e significativa demanda, nos contextos culturais e artísticos específicos em que trabalharam, a qual consistiu no alargamento dos horizontes estéticos, formais e estilísticos da literatura para instrumentos como o cravo, o clavicórdio, o órgão e o pianoforte, entre o período barroco tardio e a época clássica. Carlos de Seixas nasceu a 11 de Junho de 1704, filho de Francisco Vaz, organista da Sé, e da sua esposa, Marcelina Nunes. Um dos aspectos biográficos menos esclarecidos prende-se com a adopção do apelido Seixas, em desfavor do de seu pai, o que pode ser interpretado, eventualmente, como um gesto reverencial para com a figura de um presumível protector e mecenas, D. João de Seixas, personalidade que chegou a subscrever a dedicatória, dirigida a D. António Infante de Portugal, das Sonate da Cimbalo di piano
e forte detto volgaremente di marteletti, compostas por Lodovico Giustini di Pistoia (Florença, 1732). Em 1718, com apenas catorze anos de idade, Carlos de Seixas veio a ocupar o cargo de organista da Sé de Coimbra, deixado vago por morte de seu pai, tendo desempenhado estas funções até 1720. Neste ano, viajou para Lisboa, cidade onde foi nomeado organista da Santa Igreja Patriarcal e, posteriormente, vice-mestre da Capela Real e Patriarcal. De acordo com as informações legadas pelo bibliófilo Diogo Barbosa de Machado na sua Bibliotheca Lusitana, publicada entre 1741 e 1759, os primeiros anos da estadia de Seixas em Lisboa trouxeram-lhe grande fama, a qual “se divulgou da destreza e suavidade com que tocava órgão”. Documentação diversa atesta também a actividade do músico como professor de cravo e composição em numerosas casas aristocráticas da capital.
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Coroando a sua carreira com o honroso hábito de cavaleiro de Cristo, obtido no termo de um longo processo que se estendeu até 1738, Seixas acabou por falecer quatro anos depois, vítima, segundo Barbosa Machado, de um “reumatismo, que degenerou em febre maligna”. No cerne da produção musical de Seixas, estão as mais de cem sonatas para tecla que se conhecem através de cópias manuscritas que se conservam na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, na Biblioteca da Ajuda e na Biblioteca Nacional de Portugal. Tal corpus musical vultuoso foi já objecto de estudos aprofundados, da autoria dos musicólogos Macario Santiago Kastner e Klaus F. Heimes, entre vários outros investigadores e intérpretes. No tempo de Carlos de Seixas, as sonatas podiam ser executadas tanto em cravo, como no clavicórdio ou no órgão, em função das suas características idiomáticas e do gosto do executante. Hoje em dia, o piano moderno é o condigno sucessor deste instrumentário, podendo oferecer, mercê da leitura atenta das fontes, uma perspectiva renovada e enriquecedora sobre as diversas singularidades do repertório. Quando o famoso compositor e cravista Domenico Scarlatti [1685-1757] chegou a Lisboa, a 29 de Novembro de 1719, vindo de Roma para superintender a Capela Real e Patriarcal, as competências criativas de Carlos de Seixas gozavam já de reconhecimento incomum na sociedade portuguesa, como nos atesta o curioso relato publicado pelo lexicógrafo José Mazza, no Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses (1944-1945): “Quis o Serenissimo Senhor Infante D. Antonio [irmão de D. João V] que o grande Escarlate, pois se achava em Lx.a no mesmo tempo lhe desse alguma Lição regulandosse por aquela idêa errada de que os Portugueses por mais que fação nunca chegão a fazer o que fazem os Estrangeiros, e o mandou ao ditto; este apenas o vio por as maos no Cravo cunhecendo o Gigante pelo dedo lhe disse = Vossa mercê hé que me pode dar Lições, e encontrandosse com aquele Senhor lhe disse V.a Alteza mandome examinar, pois saiba que aquele sugeito hé dos maiores Proffessores que eu tenho ouvido.”
Ligados por vínculo profissional à Capela Real e Patriarcal de Lisboa, um como mestre de capela e o outro como vice-mestre e organista, ambos os compositores uniram esforços para o desenvolvimento formal e idiomático da sonata, partindo de uma estrutura bipartida, comum a grande parte das danças instrumentais barrocas, em direcção a modelos formais de natureza mais complexa e heterodoxa, alguns deles prefigurando as formas de sonata que se viriam a cristalizar nos repertórios da sonata e do quarteto para cordas classicistas. À eloquência melódica contínua do Allegro da Sonata I, em Sol menor, sucede-se o tradicional Minueto da tradição francesa, mas que
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tinha, entre nós, grande popularidade. Os Minuetos das sonatas representadas no presente programa detêm, todos eles, perfis muito simples, baseados na métrica ternária e na graciosidade melódica típicas da dança. A par com os Minuetes, são de realçar os andamentos lentos, como o Adagio da Sonata II em Sol menor ou o andamento homónimo da Sonata em Ré menor, K. 23, dotados de grande expressividade. A inclinação para as tonalidades menores e a exploração de dramatismos, por via da harmonia ou do trabalho motívico, levaram autores como Santiago Kastner a reconhecer na música de Seixas a influência da Empfindsamkeit (estilo da sensibilidade) germânica, característicos do Pré-Classicismo. A Sonata em Ré menor, K. 24, espelha, de modo vincado, esta linha de influência. Tal como Carlos de Seixas, Antonio Soler teve a oportunidade de privar com Domenico Scarlatti, numa fase tardia do percurso de vida do mestre italiano, o qual se fixara, desde 1729, em Madrid. Este contacto foi decisivo para a formação da linguagem musical de Soler, cujo legado abarca a música vocal sobre texto em latim, o vilancico religioso, a música instrumental para tecla (sonatas, em particular) e a música de câmara. De ascendência catalã, Soler realizou os primeiros estudos musicais na conceituada Escolania do Mosteiro de Montserrat. No início da década de 1750, foi nomeado mestre de capela da Catedral de Lérida, posto que abandonou, decorridos apenas dois anos, para integrar a ordem hieronimita do Mosteiro do Escorial, situado nas proximidades de Madrid. Aí permaneceu até ao fim da vida, ocupando-se das funções de mestre de capela e organista. Para além destas funções, foi professor de cravo do infante D. Gabriel de Bourbon, a quem dedicou algumas das suas sonatas para tecla. À imagem de Carlos de Seixas, Soler compôs um extenso rol de sonatas para tecla, o qual ultrapassa também a centena e se impõe como um manancial de todos os recursos técnicos e expressivos da era barroca, ao mesmo tempo que introduz “novidades”, tanto do ponto de vista formal, como do ponto de vista harmónico e melódico. A carga de conotações com os novos ventos da música galante e pré-clássica é, de um modo geral, bastante mais vincada do que nas sonatas do músico português. As modulações constantes da Sonata em Sol menor, R. 32, e a predilecção pelos acordes de sexta aumentada, os quais resolvem para a dominante com movimentos de tensão harmónica, representam indícios da importante transição estilística que se verificou na música europeia, a partir de meados do século XVIII. Tal arrojo nas mudanças de tonalidade, detectável noutras sonatas do presente recital, constituiu um dos expedientes de escrita favoritos de Soler, que chegou a publicar um tratado sobre o tópico em 1762:
Llave de la Modulación. Numa linha barroca de carácter motívico, repetitivo, deparamos, por exemplo, com as Sonatas em Ré maior, R. 84, e em Ré bemol maior, R. 88, as quais
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fazem recordar, em certas passagens, o idioma de Carlos de Seixas. Apesar de não renegar a influência do mestre Domenico Scarlatti e dos seus “selos” típicos de escrita, Soler mostra, de facto, uma linha de criação melódica individual e bastante expressiva, por exemplo na Sonata em Mi bemol maior, R. 105. É importante ter em conta que muitas das sonoridades idealizadas por Soler tiveram como ponto de partida o pianoforte, instrumento que dava então os primeiros passos na corte espanhola. A cadência rítmica do minuete barroco faz-se sentir na Sonata em Ré menor, R. 115, como base de um discurso musical dotado de elevada periodicidade e simetria na sua articulação interna. Como corolário do presente recital, a Sonata em Dó menor, R. 48, transmite-nos uma energia imparável, cujo cunho “hispanizante” advém da insistência nas perorações de natureza frígia. A alternância constante de passagens em movimentos contrapontísticos e outras em sequência vertical coloca ao intérprete desafios particulares que conferem à obra, no seu conjunto, aquilo que se poderá considerar, já nesta época, uma inequívoca vocação “virtuosística”.
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Iván Martín Pianista
Nascido em Las Palmas de Gran Canaria (1978), é reconhecido pela crítica e pelo púbico como um dos pianistas mais brilhantes da sua geração, dentro e fora das fronteiras de Espanha. Colabora praticamente com a totalidade das orquestras espanholas, além de, entre outras, com a Orquestra Filarmónica de Londres, a Berliner Konzerthausorchester, a Orquestra de Paris, a Orquestra Filarmónica de Estrasburgo, a Orquestra dos Virtuosos de Praga, a Orquestra Filarmónica de Helsinki, a Orquestra Filarmónica de Zagreb, a Polish Chamber Orchestra, a Sinfonia Varsovia, a Orquestra Sinfónica de Monterey, a Orquestra Sinfónica de São Paulo, a Filarmónica de Montevideo, a Orquestra Sinfónica de Santiago de Chile e a Orquestra Mundial de Juventudes Musicales. Tem tocado sob a direcção de Gerd Albrecht, Max Bragado, Josep Caballé Domenech, Marzio Conti, Justin Brown, Christoph Eschenbach, Andrew Gurlay, Günter Herbig, Pedro Halffter, Eliahu Inbal, Lü Jia, Vladimir Jurowsky, Christoph König, Jean Jacques Kantorow, Kirill Karabits, Adrian Leaper, Paul Mann, Miguel Ángel Gómez Martínez, Juanjo Mena, Roberto Montenegro, John Neschling, Josep Pons, Alejandro Posada, Christophe Rousset, Antoni Ros Marbá, George Pehlivanian, Michael Sanderling, Michael Schønwandt, Dima Slobodeniouk, Georges Tchitchinadze ou Antoni Wit. Protagonizou estreias e interpretou obras de Antón García Abril, Cristóbal Halffter, Pedro Halffter, Pilar Jurado, Alberto Martínez, Daniel Roca, Ramón Paus ou, mais recentemente, Eric Palomar e Michael Nyman, de quem estreou os Concertos para Piano e Orquestra. Ciente da importância da música de câmara, participa assiduamente em projectos com outros artistas e outras formações instrumentais.
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Dirigiu a Real Filarmónica de Santiago de Compostela, a Orquestra Sinfónica de Castela e Leão e a Orquestra Sinfónica da Galiza. Fundou, há poucos anos, o Galdós Ensemble, um novo e versátil grupo orquestral com a finalidade de interpretar música do periodo Barroco e do Classicismo, assim como também música moderna e contemprânea. Gravou inúmeros programas de rádio e televisão em Espanha, França, Itália, Brasil e Estados Unidos. As suas gravações de obras de Soler, Mozart e Schröter são consideradas uma referência, valendo-lhe importantes distinções (XV Prémios Nacionais de Música de Espanha). Foi artista residente da Orquestra Filarmónica de Gran Canaria e do Centro Cultural Miguel Delibes, de Valladolid.
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Concerto IV
GRÂNDOLA
18 de Abril 21H30 VINHO VELHO EM ODRES NOVOS: PERSPECTIVAS DAS NOVAS GERAÇÕES SOBRE A VOZ HUMANA Philippe Rombi [1968-] Ave Maria George Frideric Handel [1685-1759] Joshua, HWV 64, Oh had I Jubals lyre Dixit Dominus, HWV 232, Tecum Principium Johann Sebastian Bach [1685-1750] Matthaus Passion, BWV 244, BWV244b, Aus Liebe Willmein Heiland Sterben Wolfgang Amadeus Mozart [1756-1791] Vesperae Solenne de Confessore, KV 339, Laudate Dominum Soprano Patricia Janečková1
Antonio Vivaldi [1678-1741] Gloria, RV 588, Qui sedes ad dexteram Patris Johann Sebastian Bach Magnificat in Re Maggiore, BWV 243, Et exultavit Gioachino Rossini [1792-1868] Petite Messe solennelle, Agnus Dei Stabat Mater, Fac ut portem Giuseppe Verdi [1813-1901] Requiem, Liber scriptus Meio-soprano Celeste Shin Je Bang2 Piano Júlia Grejtáková
1 Primeiro Prémio do Concurso Internacional “Música Sacra” 2014, Roma, Accademia Musicale Europea. 2 Segundo Prémio do Concurso Internacional “Música Sacra” 2014, Roma, Accademia Musicale Europea.
< Nossa Senhora da Conceição. Escola portuguesa. 1721. Grândola, ermida de Nossa Senhora da Penha.
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GRÂNDOLA
Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção Classificada como Imóvel de Interesse Público pela Portaria n.º 192/2013, de 9 de Abril (Diário da República, 2.ª série, n.º 69, de 9 de Abril de 2013)
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
A igreja matriz de Grândola é, tal como a vemos hoje, o resultado de um longo percurso histórico. Fundada nos finais da Idade Média, desconhece-se com rigor a data da sua primeira construção. Terá começado por ser uma capela curada, dependente da paróquia de Santa Maria, de Alcácer do Sal. O lugar, sito numa encruzilhada de caminhos e rodeado por terras férteis, conheceu assinalável desenvolvimento no século XV, levando a Ordem de Santiago, senhora de grande parte do Alentejo litoral, a escolhê-lo para cabeça de uma importante comenda. Datará sensivelmente deste período a elevação da igreja a sede paroquial. Santa Maria de/da Bendada ou Abendada, a sua invocação primitiva, é algo enigmática. Tratar-se-á da reminiscência, como era frequente na época gótica, de um qualificativo da Virgem, Santa Maria-a-Bem-Dada, ou seja, a protectora generosa? Esta hipótese lembra outra invocação, Santa Maria-a-Bela, padroeira da aldeia de Abela, no vizinho concelho de Santiago do Cacém. Há igualmente quem admita ser aquele um termo associado à riqueza da terra, ela, sim, “bem-dada”. Porém, afigura-se mais provável que faça parte da extensa lista de topónimos de origem berbere, alusivos a um dos impor tantes clãs ou tribos que colonizaram o Sudoeste Peninsular, estando na origem do nome de muitos locais que começam por ben- (forma ibérica de banu-). D. Jorge, mestre das ordens de Santiago e Avis e duque de Coimbra, frequentou assiduamente Grândola, instalando aqui um paço. A tradição registou a predilecção que lhe mereceu a actividade venatória nos matos e serranias da zona, onde abundava a caça grossa, mas não oculta um interesse mais abrangente quanto ao desenvolvimento de uma povoação dotada de grande valor estratégico, em termos económicos e sociais,
São Jorge [pormenor]. José Escada. 1961. Grândola, Museu de Arte Sacra. >
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GRÂNDOLA . IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO
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para a milícia espatária. As temporadas de vilegiatura do mestre e da respectiva corte ajudaram a chamar moradores à terra, imprimindo-lhe a feição senhorial que perduraria até tarde. Não surpreende, por isso, que uma das filhas ilegítimas de D. Jorge, de seu nome D. Joana de Lencastre, tenha sido criada pelo almoxarife de Grândola, Heitor Nunes. Em 1492, já existiam 135 residentes na aldeia, ao passo que a área da comenda totalizava 810, distribuídos por cerca de 180 fogos, número considerável para a época. Com o aumento da população, a igreja medieval tornou-se exígua. Além disso, apresentava deficiências. A visitação efectuada por D. Jorge, em 1513, mostra que estava por ladrilhar e com diversos problemas de conservação. O mestre determinou então ao prior, Fr. Martim Nunes, que fosse “corrigida” com a colaboração do comendador, D. Simão de Meneses, e dos homens-bons da terra. O contributo da comenda para a fábrica da igreja, porém, não era pago desde que esse comendador assumira a posse do cargo, pelo que D. Jorge fê-lo advertir, em 1514, para que cumprisse o que era de direito. Mesmo assim, as obras só arrancaram em 1525. O atraso pode ser explicado pelo facto de estar em causa, afinal, não uma simples “correcção”, mas a reconstrução integral, ou quase, do edifício. Três anos mais tarde, embora ainda incompleto, este encontrava-se já em condições de ser usado. Um alvará de D. Jorge, em 1532, alude a problemas administrativos que impediam a finalização dos trabalhos, devido ao falecimento do pedreiro responsável, salientando que a igreja “se feez de novo”. Para tornar exequível o encerramento das contas, mandou os responsáveis da fábrica reunirem com Rodrigo Afonso, pedreiro de Santiago do Cacém – vila celebrada pela perícia dos seus mestres construtores –, que terá sucedido àquele profissional à frente das obras. No entanto, a visitação realizada em 1533 por Álvaro Mendes, cavaleiro da Ordem, e Fr. Afonso Rodrigues, prior de São Pedro de Palmela, indica que a igreja permanecia destelhada e não existia sino no campanário, além de outras lacunas. Os visitadores ordenaram a pronta resolução das falhas. O rei D. João III, a pedido de D. Jorge, concedeu, em 22 de Outubro de 1544, carta de foral a Grândola, elevando-a a vila e sede de concelho, sinal inequívoco de reconhecimento do progresso atingido pela terra. Cerca de uma década mais tarde, deu-se um passo importante para a valorização da matriz, a instituição da Confraria do Santíssimo Sacramento, formalizada por decreto, com data de 4 de Dezembro de 1554, do cardeal Marcello Cervino, patrono da confraria-mãe da mesma invocação, na igreja de Santa Maria sobre Minerva, de Roma. O documento original, magnificamente iluminado, guarda-se no arquivo da paróquia grandolense. A igreja ainda consta nele com o título
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de Santa Maria da Bendada. Ao longo da segunda metade do século XVI, optou-se por outro, mais “especializado”, o de Nossa Senhora da Assunção, comum a muitas igrejas alentejanas. As obras da primeira metade do século XVI deixaram marcas penetrantes na estrutura do imóvel, que se caracteriza pela planta longitudinal, com nave única e capela-mor profunda. Este conjunto, de grande coerência formal, tem adossados os volumes da sacristia, da torre sineira e das antigas dependências da Confraria do Santíssimo Sacramento. Nas centúrias seguintes, ocorreram outras transformações de vulto, embora respeitando, quanto ao essencial, a solução quinhentista. Uma das empreitadas mais significativas teve lugar durante a segunda metade do século XVII, quando se executou a abertura, na nave, de quatro capelas laterais, três das quais foram revestidas, a breve trecho, tal como a própria nave, por azulejaria de padrão. A capela da confraria das Almas conserva uma inscrição, também em azulejos, que data esta intervenção de 1657. Pouco mais de vinte anos depois, procedeu-se à remodelação da capela-mor, incluindo a feitura de um retábulo de talha dourada e policromada, já sob a vigência do Barroco de “estilo nacional”. Construído em 1680-1684 pelo mestre entalhador Francisco Álvares, de Setúbal, dele fez parte o túmulo para a imagem do Senhor Morto, projectado em 1680 ou 1681 por Francisco Coelho, mestre carpinteiro e entalhador de Beja. Três capelas laterais viriam a receber igualmente retábulos de talha. Nos finais do século XVIII, registaram-se apreciáveis modificações, certamente destinadas a solucionarem os estragos causados pelo terremoto de Lisboa (1 de Novembro de 1755). Entre estas campanhas, sobressai a da remodelação da fachada principal e da torre sineira, seguindo fórmulas tectónicas e decorativas, ao gosto pombalino, largamente utilizadas, pela mesma época, em diversas igrejas da faixa costeira do Alentejo que foram alvo de reconstrução após o sismo. Outra obra de vulto consistiu na erecção de um novo retábulo para a capela-mor, de pendor neoclássico. Ao longo dos séculos XIX e XX, houve diversas intervenções complementares que acabaram por sublinhar, nem sempre da maneira mais afortunada, o pendor ecléctico do edifício. A matriz de Grândola possui um notável acervo de pintura, escultura e artes decorativas, com destaque para a ourivesaria e os têxteis litúrgicos. Sobressai o painel que figura o Pentecostes, executado ca. 1610 por Fernão Gomes, pintor do mestrado da Ordem de Santiago. É também digna de particular nota a custódia em prata dourada, obra de um importante mestre ourives de Lisboa, cuja realização data dos finais do século XVII ou dos inícios do século XVIII, por encomenda de D. Nuno Álvares Pereira de Mello, 1.º duque de Cadaval, 4.º marquês de Ferreira e 5.º conde de Tentúgal, na qualidade de
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comendador de Grândola. Estas e outras obras encontram-se patentes ao público no Museu de Arte Sacra local, instalado, em 2011, na igreja de São Sebastião. A paróquia de Nossa Senhora da Assunção preserva grande parte dos fundos documentais do seu arquivo, um dos mais completos, no género, do Alentejo.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
GERMESINDO SILVA, O Mestre de Sant’Iago D. Jorge e as Visitações ao Lugar da Grandolla, Lisboa, [edição do autor], 1991; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, O Entalhador Francisco Álvares e a Construção do Retábulo-Mor da Igreja Matriz de Grândola em 1680-1684, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 1995; M ANUEL COSTA GAIO TAVARES DE ALMEIDA, Roteiro Setecentista da Vila de Grândola. Subsídios para uma Monografia, III, Grândola, Câmara Municipal de Grândola, 1998; J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 1-2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja, I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000.
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Do Outro Lado do Espelho
LUÍS MIGUEL SANTOS
Philippe Rombi [1968-]
Ave Maria (da banda sonora Joyeux Noël ) O compositor francês Philippe Rombi tem obtido algum destaque no panorama da criação musical para cinema. Depois de inúmeras colaborações em curtas-metragens e filmes, o seu primeiro grande sucesso viria a ser alcançado com a segunda colaboração com o realizador Christian Carion, designadamente com a banda sonora para Joyeux
Noël (2005). No âmbito desta produção, cuja acção decorre durante a Primeira Guerra Mundial, Rombi compôs Ave Maria, para a cena em que, na véspera de Natal, um padre escocês improvisa uma missa em que a personagem de Anna canta uma Ave-Maria, ouvida em recolhimento por soldados alemães, franceses e escoceses – uma cena em que o tempo se suspende e que constitui um dos momentos-chave do filme. A peça de Rombi foi concebida especificamente para a tessitura do célebre soprano francês Natalie Dessay, a quem é dedicada, exigindo da intérprete um elevado domínio do registo agudo em níveis dinâmicos subtis. Georg Friedrich Händel [1685-1759]
Tecum Principium (de Dixit Dominus, HWV 232) Oh had I Jubal’s lyre (de Joshua, HWV 64) Georg Friedrich Händel foi um dos mais reputados compositores do período barroco, tendo realizado uma longa carreira em que abarcou todos os géneros vocais e instrumentais em voga na época. A sua música prima pela segurança com que concilia aspectos dos estilos dominantes na Europa coeva, em particular a tradição contrapontística germânica e o estilo operático italiano. No início de 1707, Händel encetou um período de três anos de actividade em Roma, onde, com o patrocínio de altas instâncias religiosas, teve ensejo de compor várias
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obras sacras relevantes. O Dixit Dominus HWV 232, datado desse ano, avulta enquanto testemunho impressionante de quão estava empenhado em exibir o seu virtuosismo contrapontístico, a sua mestria harmónica e a sua sofisticação melódica. Baseada no texto latino do Salmo 110 e composta para cinco solistas, coro, cordas e baixo contínuo, é uma obra de grande intensidade expressiva em que abundam os momentos descritivos e os contrastes dramáticos. Depois da abertura energética do coro e da elegância do solo do contralto, o n.º 3, Tecum Principium, é uma requintada ária para soprano que constitui um bom exemplo do talento melódico do compositor. As primeiras incursões de Händel no domínio da oratória remontam também ao período italiano, mas seria apenas com o sucesso de Messiah, em 1742, que abandonaria a composição de ópera em favor deste género. Entre 19 de Julho e 19 de Agosto de 1747, trabalhou na oratória Joshua, HWV 64, baseada no tema bíblico da conquista de Canaã pelos israelitas liderados por Josué, sendo os aspectos mais sangrentos da narrativa temperados pela relação amorosa entre o jovem guerreiro Othniel e Achsah, filha do patriarca Caleb. Esta é uma obra repleta de incidentes dramáticos, heróicos e contemplativos, destacando-se neste âmbito a ária Oh had I Jubal’s lyre, tecnicamente bastante exigente para soprano, que Acsa canta no Acto III, quando Caleb concede a bênção ao seu casamento com Otniel. Johann Sebastian Bach [1685-1750]
Aus Liebe will mein Heiland sterben (de Paixão segundo São Mateus, BWV 244) Johann Sebastian Bach, um dos principais vultos da música barroca, desenvolveu uma linguagem musical distintiva e extraordinariamente variada, que sintetizava os estilos e as técnicas da sua geração e abria novas perspectivas em praticamente todos os géneros correntes no seu tempo. O seu percurso criativo foi pontuado por diferentes prioridades ao nível da composição, de acordo com os compromissos profissionais que assumiu ao longo da vida. A música sacra ocupa um lugar central no catálogo de Bach, tendo sido composta sobretudo a partir de 1723, no período em que as funções de Kantor, em Leipzig, lhe exigiam uma criatividade intensa nessa esfera. Inspirada na narrativa evangélica dos episódios da traição, captura e crucificação de Cristo, a Paixão segundo São Mateus, composta em 1727, representa o ponto máximo da sua produção sacra. A ária Aus Liebe
will mein Heiland sterben (n.º 49), escrita para soprano, constitui um momento de relaxamento da tensão, com um acompanhamento etéreo que pretende simbolizar a pureza de Cristo expressa no texto.
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Wolfgang Amadeus Mozart [1756-1791]
Laudate Dominum (de Vesperae Solennes de Confessore, KV 339) W.A. Mozart é um dos representantes máximos do chamado classicismo vienense, tendo seguido um estilo bastante pessoal, produto da confluência entre o lirismo da ópera italiana e a tradição instrumental germânica, no qual sobressaem a sua beleza melódica, a sua elegância formal, bem como a sua riqueza a nível harmónico e textural. Autor de uma obra vasta e variada, é possível constatar que dominou todos os géneros sobre os quais se debruçou. A produção de Mozart na esfera da música sacra foi marcada, sobretudo, pelos modelos italianos estabelecidos em Salzburgo. Em 1780, antes da partida definitiva para Viena, compôs a sua última obra destinada aos serviços litúrgicos na catedral local, as Vesperae
Solennes de Confessore, KV 339, constituídas por cinco salmos e um Magnificat. O 5.º andamento, Laudate Dominum, sobre o texto do Salmo 117, é um Andante em Fá maior em que o soprano solista entoa um lírico hino de louvor, acompanhado por linhas instrumentais fluidas. Antonio Vivaldi [1678-1741]
Qui sedes ad dexteram Patris (de Gloria, RV 588) Antonio Vivaldi foi o compositor italiano mais influente da sua geração, tendo-se destacado particularmente na esfera do concerto instrumental barroco, mas também no âmbito da ópera e da música sacra. A sua produção neste último domínio revela a ascendência do concerto e da ópera, para além de uma preocupação com a transmissão do sentido das palavras. O texto do hino Gloria in excelsis Deo, que integra o ordinário da Missa, foi musicado pelo compositor em pelo menos três ocasiões. No entanto, apenas dois exemplos parecem ter sobrevivido, ambos compostos provavelmente em 1715, no contexto das funções que exercia no Pio Ospedale della Pietà, instituição que possuía um coro de elevada qualidade. O Gloria RV 588, em Ré maior, para cinco solistas, coro e orquestra, é o menos conhecido dos dois que subsistem, apresentando muitas semelhanças com o seu congénere (RV 589). No trecho Qui sedes ad dexteram Patris em Ré maior, cabe ao contralto elaborar um solo de grande serenidade. Johann Sebastian Bach
Et exultavit (de Magnificat em Ré maior, BWV 243) Foi ainda no primeiro ano de actividade em Leipzig, em 1723, que Bach compôs um
Magnificat em Mi bemol maior, a sua primeira composição litúrgica relevante sobre
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texto latino, neste caso sobre o trecho do Evangelho de São Lucas relativo ao episódio da Visitação. Mais tarde, em 1733, essa peça seria revista em Ré maior, sem os hinos de Natal que possuía originalmente, podendo, deste modo, ser associada a qualquer festividade litúrgica. Após a alegria expressa no andamento inaugural, o n.º 2, Et exultavit, é uma ária em que o soprano dá continuidade a tal sentimento, com as figuras melódicas ascendentes que salientam a palavra exultavit. Gioachino Rossini [1792-1868]
Fac ut portem (de Stabat Mater) Agnus Dei (de Petite Messe Solennelle) Na primeira metade do século XIX, Gioachino Rossini distinguiu-se por ser o compositor que maior prestígio e popularidade alcançou, tendo dado um imenso contributo para o repertório operático italiano. Apesar do sucesso que conheceu desde muito cedo, em 1829 decidiu abandonar a composição de ópera, recusando-se a voltar a esse género nos restantes quarenta anos de vida, marcados pela doença física e pela exaustão mental.
Stabat Mater é uma das obras mais relevantes do período que então iniciou. Encomendada em 1831, durante uma visita a Espanha, seria nessa ocasião apenas parcialmente composta, ocorrendo a definitiva conclusão já pelos finais de 1841. No tratamento do texto de um poema devocional dedicado à dolorosa vigília da Virgem Maria aos pés da cruz, o compositor procura aproximar-se ao máximo do espírito da música sacra, o que acaba por resultar numa fusão estilística entre a escrita coral à maneira de Palestrina ou Pergolesi e a escrita solística próxima das realizações operáticas rossinianas. Esse é precisamente o caso do n.º 7, Fac ut portem, uma cavatina escrita para mezzo-
-soprano. Nos inícios de 1855, a actividade criativa de Rossini assistiu a um renascimento que originou um número considerável de pequenas composições, que designaria como os seus “pecados da velhice”. A obra mais sofisticada que compôs nesses últimos anos de vida foi a Petite Messe Solennelle, para 12 vozes, dois pianos e harmónio, mais tarde adaptada para orquestra. É uma música marcada pela riqueza da escrita contrapontística, pela elaboração dos cromatismos, pela audácia harmónica, bem como pelo cariz operático da escrita solística. O Agnus Dei consiste num solo de contralto que se destaca pela atenção ao significado das palavras, conduzindo a obra a um encerramento dramático.
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Giuseppe Verdi [1813-1901]
Liber scriptus (de Messa da Requiem) Tido como o mais distinto representante da música dramática em Itália, Giuseppe Verdi adquiriu, ainda em vida, um estatuto emblemático na consciência nacional italiana. Em 1868, por ocasião da morte de Rossini, sugeriu a criação de um Requiem escrito em colaboração exclusivamente por autores italianos, tendo participado com a composição do Libera me. Mais tarde, em 1874, esse andamento integraria a sua própria
Messa da Requiem, uma obra emocionalmente intensa, cujas partes solísticas são claramente influenciadas pela experiência operática do compositor. Dos sete andamentos em que se divide, o Dies irae é o mais longo, incluindo diversos momentos de acentuados contrastes dramáticos, a vários níveis, de acordo com a sua descrição terrífica do dia do Juízo Final. Em 1875, aquando da estreia londrina, Verdi comporia um novo Liber scriptus (o n.º 4 desse andamento), uma poderosa ária para
mezzo-soprano que descreve o momento em que é proferido o que está contido no livro do Juízo Final.
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Patricia Janečková Soprano
Nascida em 1998 e de nacionalidade eslovaca, vive em Ostrava, na República Checa. Canta desde os quatro anos de idade, dando provas de excepcional talento no panorama da música contemporânea. A crítica tem chamado a atenção para a sua maturidade musical, de uma entoação e afinação vocal perfeitas. Teve o primeiro contacto com a ópera na participação, como membro do Estúdio de Ópera, no Teatro Antonín Dvorák, em Ostrava. Aos 10 anos, venceu a audição realizada pela Orquestra Filarmónica Janácek, cantando, pela primeira vez, com uma orquestra sinfónica. Em 2010, com 12 anos, cativou, com a sua voz cristalina, a audiência do concurso da televisão checa e eslovaca Talentmania, sendo nomeada vencedora absoluta e recebendo o prémio das mãos do célebre tenor eslovaco Peter Dvorský. O seu primeiro concerto individual no estrangeiro teve lugar na série “Junge Talente der Klassik 2013”, em Klosterneuburg. Brilharia, em 2014, como protagonista de Buquet, uma adaptação musical de poemas e baladas da colecção do mesmo nome, do século XIX, escrita pelo consagrado poeta checo. Actualmente, estuda ópera no Conservatório Janácek, em Ostrava, sob a direcção de Eva Drízgová-Jirusová.
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Celeste Shin Je Bang
Nasceu em 1982 em Seul (Coreia do Sul). Iniciou os estudos de piano aos quatro anos e cultivou, seguidamente, o canto lírico. Formou-se na Universidade de Chong.Shin em 2005. Prosseguiu os estudos de canto, com Rebecca Berg e Ida Ciucci, no Conservatorio di Santa Cecilia, de Roma, diplomando-se em 2010. Em 2013, terminou o curso da Accademia Teatro alla Scala, de Milão, onde foi discípula de Renato Bruson, Luciana D’Intino, Luciana Serra, Luis Alva, Mirella Freni, Vincenzo Scalera, Umberto Finazzi e Marco Gandini. Participou em masterclasses de Garbis Boyagian, Daniela Dessi, Mirella Parutto e Luca Gorla. Em 2007, no Concurso Internacional Anemos de Roma, obteve o terceiro lugar. Em 2008, venceu o segundo prémio do Concurso Lírico Internacional Fedora Barbieri, de Viterbo. Em 2011, classificou-se em segundo lugar no Concurso Internacional Pietro Mascagni para Cantores Líricos (Prémio Cidade de Roma). Em 2013, recebeu o terceiro prémio no Concurso La Città Sonora, de Cinisello Balsamo. Em 2014, conquistou o segundo prémio no Concurso Lírico Citta di Iseo, o primeiro prémio no Concurso Internacional Premio Boni, de Brescia, o segundo prémio no Concurso Internacional Riccardo Zandonai e o prémio Especial Teatro Chiesa SS. Pietro e Paolo, de Cercola. Estreou-se no Teatro alla Scala, em 2013, no papel de Lucila ( La Scala di Seta, de Rossini) e fez
Il Piccolo Spazzacamin, de Britten, no papel de Miss Baggot. Interpretou Mefistofele, de Boito, no papel de Pantalis, no Seoul Art Center Opera Theater, em 2010. Em 2013, fez parte dos solistas na Petite Messe Solennelle, de Rossini, no Teatro Müvészetek Palotája de Budapeste, sob a direcção de Bruna Casoni. Outras actuações de relevo: Missa en Dó Maior, op. 86, de Beethoven; no Nuovo Teatro dell’Opera de Florença (direcção de Omer Meir Welber); Missa Grande em Dó Menor Kv.427, de Mozart (direcção de Fabrizio Meloni).
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Julia Grejtáková Piano
Formada pelo Conservatório de Kosice, continuou os estudos de arte dramática e direcção coral na Vysoká Škola Múzických Umení, em Bratislava. De 1990 a 2014, trabalhou como pianista co-repetidor no Conservatorio de Kosice, nas aulas de ópera. Em 2003, ganhou a audição para pianistas co-repetidores no Teatro Nacional de Kosice, onde desempenhou, até 2014, as funções de primeira assistente do director musical. Neste último ano, ascendeu ao lugar de pianista co-repetidor do Teatro Nacional Eslovaco de Ópera, em Bratislava. É, desde 2011, a pianista oficial do Concorso Internazionale di Musica Sacra, de Roma. Desempenha igualmente as funções de ensaiadora vocal e pianista co-repetidora do Arezzo Music School & Festival. Colabora regularmente com o Tiroler Festspiel Erl e com o Peter Dvorský International Music Festival.
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Concerto V
SANTIAGO DO CACÉM
9 de Maio 21H30 O TEMPO E O MODO: DIÁLOGOS ENTRE GUITARRAS Caprichos Goyescos: Novas Composições para Guitarra a partir das Gravuras de Francisco de Goya [I] Bernd Franke [1959-] Another Way to Describe Monsters and Whores (for Goya) Bruno Dozza [1962 -] Por que Fue Sensible José María Sánchez Verdú [1968-] Volaverunt Rita Torres [1977-] Si Amanece, nos Vamos [estreia mundial] António Chainho [1938-] Escadinhas do Duque Sonhar Lisboa Rapsódia Fadista Lisboa-Rio Caprichos Goyescos: Novas Composições para Guitarra a partir das Gravuras de Francisco de Goya [II] Elena Mendoza López [1973-] Breviario de Espejismos Maurizio Pisati [1959-] Canciones de Simios y Burros Eduardo Fernández [1952-] Esto sí que Es Leer [estreia mundial] Cathy Milliken To Spin a Good Yarn António Chainho Sentir em Português Valsa Mandada Voando sobre o Alentejo Cumplicidades Variações em Lá Guitarra António Chainho Viola Carlos Silva Guitarra Jürgen Ruck < Porta do Sol [pormenor]. Século XIV (inícios). Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.
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SANTIAGO DO CACÉM
Igreja Matriz de Santiago Maior Classificada como Monumento Nacional por Decreto de 16 de Junho de 1910 e pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a “Reconquista” ficava no interior do castelo, onde já existia uma mesquita, partilhando da posição altaneira da fortaleza, que impera, do alto de um monte – o Cerromaior do romance de Manuel da Fonseca –, sobre a planície costeira. Ao tomarem a terra, em torno de 1217, os religiosos-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe o antropónimo árabe Qasim (da tribo dos Banu Qasim), elevado a topónimo. O antigo edifício viria a tornar-se pequeno quando a vila extravasou os limites da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV, sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça, neta do imperador Teodoro II Lascaris, parente e aia da rainha D. Isabel, a esposa de D. Dinis. Na posse de Santiago do Cacém e Panóias, mercê de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre senhora dotou as igrejas destes domínios com relíquias insignes – provavelmente oriundas do pecúlio familiar dos Lascaris, trazido de Niceia. À matriz de Santiago couberam, entre outros vestígios sagrados, vários fragmentos da Cruz de Cristo, ou Lignum Crucis, a que se dá, localmente, o nome de
Santo Lenho. Para o altar-mor do mesmo edifício, encomendou o retábulo de Santiago Combatendo os Mouros, obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um dos mestres da catedral de Lisboa. Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (nomeadamente em 1530, em 1704 e, sobretudo, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terremoto de 1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três naves separadas por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas Prato de esmolas [pormenor]. Trabalho alemão. Século XV (finais). Santiago do Cacém, Tesouro da Colegiada de Santiago.>
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perdurou um dos laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo dos capitéis e das impostas, alinha-se densa carga ornamental vegetalista e zoomórfica. Corresponde-lhe, no interior da igreja, a decoração que guarnece os capitéis e anima o perfil das arcadas em ogiva, com a introdução de figuras humanas, reflectindo a dominância naturalista da arte da época. O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por frestas esguias, define uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcossólio. Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em finais do reinado dionisíaco, quando se transfiguraram quase totalmente, sob o impulso de correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda metade da era ducentista, em que ainda preponderavam arcaísmos do período “experimental” do mesmo estilo. A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, constituída por um prior dotado de poderes quase-episcopais, o qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem, seis (oito no século XVII) beneficiados e um prioste, todos freires espatários, assumiu decisiva influência na vida da povoação. Sucedeu o mesmo com as importantes confrarias, irmandades e ordens terceiras agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversificado património artístico, boa parte do qual está patente ao público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi instalado, em 2002, na sala capitular e outras dependências do próprio monumento. Aqui se conserva, com o merecido destaque, o relicário do Santo Lenho. BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
BERNARDO FALCÃO, Memorias sobre a Antiga Mirobriga (Lisboa, Biblioteca dos Herdeiros do Prof. Doutor Eng.º Manuel António Falcão Beja da Costa, ms. s.n.); ANTÓNIO DE MACEDO E SILVA, Annaes do Municipio de Sanct-Yago de Cassem desde Remotas Eras até ao Anno de 1853, Beja, Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id., Annaes do Municipio de Sant’Iago de Cacem, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1869; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & JORGE M. RODRIGUES FERREIRA, “Marcas Lapidares da Igreja Matriz de Santiago do Cacém – I”, em Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2.ª Série, I, Santiago do Cacém, 1987; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, O Alto-Relevo de Santiago Combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, BejaSantiago do Cacém, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), No Caminho sob as Estrelas. Santiago e a Peregrinação a Compostela [Catálogo da Exposição, Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior, 2007-2008], I-II, Santiago do Cacém-Beja, Câmara Municipal de Santiago do Cacém-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2012; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Caprichos Goyescos
JÜRGEN RUCK
O ponto de partida deste ciclo de novas composições para guitarra são os Caprichos, de Francisco de Goya, uma série de gravuras publicadas em Madrid, em 1799, que “se situa nos prolegómenos da Modernidade e, ao mesmo tempo, marca um dos seus pontos culminantes”. Em 2003, por ocasião de um concerto na Staatsgalerie, de Stuttgart, solicitei a vários compositores que me escrevessem algumas peças para guitarra que, segundo as regras do jogo, deviam escolher como tema um dos Caprichos. O facto de a reacção desses artistas ter sido tão positiva, superando em muito as expectativas, é algo que me enche de gratidão e orgulho. A frutífera colaboração com os compositores – com todo o estímulo que isso naturalmente implica – e o sortilégio de sucessivos ensaios e leituras fazem parte de um dos momentos mais satisfatórios do meu trabalho artístico. Os autores de Caprichos
Goyescos são alguns dos mais destacados representantes da Nova Música. É óbvio que as suas peças musicais constituem obras de arte muito próprias, que seguem determinadas regras intramusicais e não se esgotam nas referências às gravuras. Resulta fascinante observar como cada um dos convidados reagiu ao “seu” Capricho.
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Se Amanhecer, Partimos
RITA TORRES
Esta peça foi escrita para o projecto Caprichos Goyescos, do guitarrista Jürgen Ruck. O projecto consiste na ilustração musical da série de 80 gravuras Los Caprichos (1797-1798), do pintor espanhol Francisco de Goya, através de peças curtas para guitarra, escritas por diversos compositores. O título da obra toma o título da gravura escolhida (Se Amanhecer, Partimos ), que tem o número 71. Mostra um grupo de cinco bruxas sentadas sob um céu estrelado, encontrando-se por detrás delas a silhueta negra de uma figura alada. Uma das bruxas está a apontar para o céu e tem, agarradas a si, crianças pequenas – a carne destas era, supostamente, a refeição das bruxas num sabbat. Visto as crianças estarem presentes na cena, esta tem lugar antes do repasto. Interpretando a silhueta negra como o símbolo do Diabo prestes a chegar, as bruxas terão desmontado, há pouco tempo, das suas vassouras e estarão a preparar-se para o seu ritual – eis o imaginário da peça.
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Breviário de Miragens
ELENA MENDOZA
É para mim um grande prazer contribuir, com o meu Breviario de Espejismos, para o ciclo de Jürgen Ruck sobre os Caprichos de Goya, não só por ter a oportunidade de trabalhar com um músico da categoria de Jürgen, mas também por se tratar de um projecto que concebe o programa do concerto como um acto criativo, colocando questões estéticas muito para além da mera sucessão das obras. Do ponto de vista do compositor, a ideia de Jürgen Ruck aborda a questão geral das relações entre a imagem e o som, mas incide ainda num tema muito mais complicado: como reagir musicalmente face a uma obra de arte acabada, um universo fechado, com as suas próprias regras e o seu próprio sistema de relações simbólicas, psicológicas e históricas? Que atitude adoptar para não cair na banalidade da música programática ou na mera ilustração? O facto de dizer respeito a um género menor, como a gravura, e de reduzir o material tímbrico às possibilidades de um só instrumento, a guitarra, não minimiza a questão, bem pelo contrário: devido à concentração dos meios, torna-a muito mais evidente. A minha resposta pessoal a estas perguntas reside na concepção de um universo paralelo, igualmente fechado e independente, cujo princípio formal está ligado à interpretação poética da gravura como que por um cordão umbilical. O Capricho n.º 9, “Nadie se conoce”, é, à primeira vista, uma cena galante em que o cavalheiro faz a corte a uma dama. A irritação surge quando observamos que todos os personagens que compõem a cena, apesar de estarem a comunicar entre si, se apresentam mascarados, pelo que ninguém pode realmente conhecer o seu interlocutor. Este paradoxo, cuja interpretação fica em suspenso (terá um significado filosófico, psicológico, de crítica social?), constitui, para mim, a essência poética da gravura. A fronteira perceptiva entre (re)conhecer e desconhecer, uma das minhas grandes preocupações compositivas, é precisamente o ponto de partida para a concepção
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dramatúrgica do Breviario: quatro elementos sonoros sucedem-se rapidamente em combinações diversas, pelo que, dependendo da sua posição relativa e da sua duração, surgem em cada caso a cumprir uma função formal diferente, apresentando, assim, o material conhecido de um modo sempre novo. Por exemplo: o elemento A, utilizado como transição entre B e C, seria percebido de um modo totalmente diferente se fosse empregue como ponto culminante. Partindo deste fenómeno, que submete os quatro elementos a uma mutação permanente, a composição joga com as categorias conhecido/desconhecido. Surge assim esta pequena colecção de miragens, de impressões musicais que julgamos reconhecer, mas cuja realidade, porém, é constantemente posta em causa.
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Jürgen Ruck Guitarra
Nasceu em Freiburg, na Alemanha, onde estudou guitarra com Sonja Prunnbauer, prosseguindo a formação, em Basileia, com Oscar Ghiglia. Em 1986, ganhou o 1.º prémio do Deutscher Musikwettbewerb e, em 1990, o International Kranichstein para a interpretação da New Music. O seu repertório estende-se do século XVI à actualidade. Colaborou com inúmeros agrupamentos de música de câmara e realizou concertos em muitos festivais internacionais. Tocou a solo com a Orquestra Filarmónica de Berlim, a London Sinfonietta, o Ensemble InterContemporaine de Paris, a Musik Fabrik, as orquestras de rádio de Frankfurt, Colónia, Amburgo e Saarbrücken, a Orquestra RAI de Mainland e a Orquestra ORF de Viena. Jürgen Ruck interessa-se especialmente pela música contemporânea: é membro do Ensemble Modern, dirigiu o German Ensemble da New Music e colaborou com importantes compositores, como György Kurtág, Hans Werner Henze, Helmut Lachenmann e John Adams. Estreou Grabstein
für Stephan, de Kurtág, em 1991, com a Orquestra Filarmónica de Berlim. O tributo de Hans Werner Henze para o repertório para guitarra é o ponto central do seu trabalho. Realizou, de início, espectáculos com diversas obras de Henze, incluindo Minette, um duo para duas guitarras, com arranjo de Ruck, a pedido do autor. A gravação das peças de Henze para duas guitarras (juntamente com Elena Càsoli) ganhou o prestigiado prémio Echo Klassic 2000. Principiou, em 2003, o seu notável projecto Caprichos Goyescos, um ciclo de composições a solo, especialmente escritas para ele, e todas associadas à famosa série de gravuras de Francisco de Goya. Ensina guitarra na Universidade de Música, em Würzburg.
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António Chainho Guitarra
Iniciou a carreira, em 1965, na Severa, em Lisboa, onde deu nas vistas; aí permaneceu apenas seis meses, sendo convidado a integrar o conjunto de Raul Fontes. A partir de então, granjeou notoriedade, com numerosas aparições em programas de televisão e de rádio, sendo solicitado para acompanhar grandes nomes do fado, como Hermínia Silva, Lucília do Carmo e Maria Teresa de Noronha, entre outras vozes que se notabilizaram no panorama artístico nacional e manifestavam vontade de o ter como acompanhante, tanto pelo brilhantismo da técnica, como pela alma que punha nas interpretações. Não é de estranhar, pois, que viesse a formar o seu próprio conjunto, em que contou com músicos de excelência: Raúl Silva, José Maria Nóbrega, José Luis Nobre e Costa, Fernando Alvim, Pedro Nóbrega, Martinho Assunção ou Carlos Silva. Com este último actuou durante 25 anos, apoiando em permanência Carlos do Carmo, Fr. Hermano da Câmara e Rão Kyao – sem, contudo, deixar de acompanhar outros fadistas de renome, sempre que para tal era requisitado. Percorreu grandes palcos de Portugal e do mundo, o que lhe valeu ser reconhecido como um dos expoentes da guitarra portuguesa. A corroboração do decréscimo de músicos dedicados à prática da guitarra levou-o a lutar pela criação de escolas onde os jovens pudessem aprender a tocar o instrumento. Em articulação de esforços com a Câmara Municipal de Lisboa, conseguiu criar a primeira escola especializada na capital e, mais tarde, criou a sua própria escola em Santiago do Cacém e, depois, em Grândola, onde ainda lecciona. Conhecedor profundo das potencialidades da guitarra, libertou-a das amarras do Fado, dando-lhe uma nova dimensão, casando-a com outros instrumentos, outras vozes, outras culturas e outras formas de viver a música, como atesta o sucesso da sua discografia: Cumplicidades (2015);
Entre Amigos (2012); Lisboa (2010); António Chainho e Marta Dias ao Vivo no CCB (2003); Lisboa-Rio (2000); A Guitarra e Outras Mulheres (1998); Guitarra Portuguesa (1980).
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Concerto VI
CASTRO VERDE
23 de Maio 21H30
ÍNTIMO MISTICISMO: MÚSICA ESPIRITUAL HISPANO-PORTUGUESA DO RENASCIMENTO CENTRAL E TARDIO Tomás Luis de Victoria [1548-1611]/Anónimo Alma redemptoris Mater Tomás Luis de Victoria Pange lingua gloriosi “more hispano” Tomás Luis de Victoria/Juan Carlos Rivera Crucifixus da Missa Quam pulchri sunt Tomás Luis de Victoria O magnum mysterium António Carreira [ca. 1525-ca. 1590] Canção Tomás Luis de Victoria/Anónimo Et Jesum Pedro de Escobar [ca. 1465->1535) Virgen bendita sin par Tomás Luis de Victoria/Anónimo Ne timeas Maria Josquin des Prez [ca. 1450/1455-1521]/Luis de Narváez [1500-1550/60?] Canción del Emperador Cristóbal de Morales [1500-1553]/Miguel de Fuenllana [ca. 15001579] Benedictus da Missa Mille regretz Cristóbal de Morales Agnus Dei da Missa Mille regretz Josquin des Prez Mille regretz Tomás Luis de Victoria/Anónimo Senex puerum portabat Manuel Rodrigues Coelho [ca. 1555-1633] Susana (sobre a canção Suzanne on jour, de Orlando di Lasso, 1560) Manuel Cardoso [1566-1650] Domine tu mihi lavas pedes
< Albarrada com moldura de volutas e quimeras, sobrepujada por festão. Escola portuguesa. Ca. 1730. Castro Verde, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição.
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Tomás Luis de Victoria/Anónimo Salve Regina Capilla Santa María Vihuela Juan Carlos Rivera Órgão Carlos García-Bernalt Contratenor e direcção Carlos Mena
Samuel Bottschild, O Sonho de Jacob (pormenor). Século XVII (finais). Castro Verde, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Dep n.º 1. >
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CASTRO VERDE
Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro (Diário da República, n.º 280, de 30 de Novembro de 1993)
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
Terminada a “Reconquista” definitiva do Sul de Portugal, na primeira metade do século XIII, Castro Verde foi entregue à Ordem de Santiago, que aqui estabeleceu uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, situada numa colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores da vila. Teve ao seu serviço uma colegiada, presidida por um prior com as funções de pároco. Em 1573, após visitar a terra, D. Sebastião, o monarca visionário, mandou reerguer esse edifício, em lembrança de um facto decisivo para que Portugal se tornasse nação independente: a batalha de Ourique, travada nas elevações de São Pedro das Cabeças, a pouca distância de Castro Verde, em 25 de Julho de 1139 (festa litúrgica do apóstolo Santiago Maior), correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus Cristo, na véspera da peleja, ao nosso primeiro rei. O edifício actual, que ocupa aproximadamente o mesmo local dos anteriores, ficou a dever-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível ao significado patriótico e escatológico do “Milagre de Ourique”. Iniciados ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram sem delonga. A sua traça segue um modelo derivado da arquitectura “chã” da época da Restauração e que o mestre régio João Antunes [X 1712] aplicou na concepção de vários imóveis para a milícia espatária, como a igreja de Santiago, de Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a igreja matriz de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou a planta longitudinal composta, formada por uma nave rectangular em que se inscrevem duas torres sineiras quadradas e a capela-mor, mais estreita, ladeada por dependências. Na frontaria, com três corpos delimitados por pilastras e empena rectilínea, avulta o portal, sobrepujado por um frontão curvo quebrado, com a insígnia da Ordem. Santiago Mata-mouros [pormenor]. Mestre P.M.P. Ca. 1730. Castro Verde, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição. >
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Se a estrutura arquitectónica do monumento acompanha a tradição seiscentista, a decoração interior corresponde já à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo uma notável visão integradora das artes da época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a
Aparição de Cristo a D. Afonso Henriques. Este conjunto foi levado a cabo, em 1728-1731, mediante uma parceria entre os pintores lisboetas António Pimenta Rolim e Manuel Pinto e os pintores bejenses Manuel e José Pereira Gavião – que também se terão ocupado do revestimento mural de outros sectores. As paredes estão guarnecidas por painéis azulejares. No corpo da igreja, sobressaem os alusivos ao ciclo da batalha de Ourique e aos seus reflexos na história nacional, enquadrados por composições características das oficinas lisboetas de ca. 1730. Ao longo dos paramentos da capela-mor, destaca-se uma série evocativa da vida, paixão e milagres de Santiago, integrada numa amálgama de mísulas, molduras e outros elementos de arquitectura “fingida”, em obediência ao gosto de trompe-l’œil vigente na época. José Meco atribuiu a feitura do conjunto ao pintor P.M.P., uma das principais figuras do ciclo dos “Grandes Mestres”. O recurso aos artistas de Lisboa evidencia-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas referentes à Monarquia e à própria Ordem de Santiago. Proclive ao enobrecimento da matriz de Castro Verde, D. João V conseguiu que a Santa Sé lhe outorgasse, a dignidade de basílica menor, depois completada, vox populi, pelo título de real. Mas o soberano empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as quais sobressai a custódia de aparato executada, em Lisboa, ao redor de 1715. O Tesouro instalado em 2004 na antiga sacristia, por iniciativa do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, dá a conhecer este acervo, além de outras obras provenientes de várias igrejas do concelho. Cabe aqui um lugar especial à cabeça-relicário de São Fabião, peça de origem aragonesa, oferecida pela princesa D. Vataça a Panóias (e transferida, no século XVI, para Casével).
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004; LOURDES CIDRAES, A Tradição Lendária de Afonso Henriques e as Memórias do Rei Fundador em Castro Verde, Castro Verde, Câmara Municipal de Castro Verde, 2008; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Eloquência Interior
BÁRBARA VILLALOBOS
Denominado de “Século de Ouro Espanhol” pela importância que este país alcançou a todos os níveis, o século XVI foi também um período conturbado e cheio de inquietações manifestas de forma intensa na crise religiosa gerada pela reforma protestante. Na música, foi uma época especialmente criativa e diversificada a todos os níveis, começando precisamente pelos géneros de música sacra: as novas igrejas saídas do movimento da Contra-Reforma implementaram um novo repertório litúrgico, e a música católica deu continuidade à polifonia franco-flamenga do século XV numa abordagem renovada personificada nas obras de Palestrina ou Victoria, mantendo-se a proeminência dos géneros da missa e do motete polifónicos. O século XVI foi também aquele em que a música instrumental conquistou, pela primeira vez, um peso ímpar na história da música ocidental até então. De facto, até à data, esta praticamente não era escrita, estando fortemente associada à improvisação, acompanhamento de danças ou outras obras vocais, bem como à substituição ou dobragem de linhas vocais em obras polifónicas, tanto profanas como sacras. Passou, pois, a ser notada de maneira sistemática e, ainda, difundida em larga escala através da imprensa polifónica que, desde 1501, vinha alimentando não só profissionais, mas também um mercado de amadores em crescimento que procurava repertório para executar na intimidade das suas casas, a solo ou em conjunto. Porém, se muito do repertório instrumental passou então a ser escrito de raiz, tornando-se estilisticamente mais idiomático e tendente a uma maior abstracção decorrente da desvinculação de modelos vocais, observou-se a continuidade da prática de usar instrumentos para duplicar ou substituir melodias de obras compostas para vozes. Uma larga fatia do repertório instrumental assentava também em transcrições e arranjos de obras vocais, e estas podiam ser tanto sacras como profanas. Nesses casos, normalmente já eram detentoras de um certo grau de popularidade, destinando-se com frequência a instrumentos de teclas ou de cordas dedilhadas que conseguiam emular a textura a várias vozes encontrada na maioria dos casos nas peças de base; chansons, motetes
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ou secções de missas. Isto sem embargo de serem, na maior parte dos casos, bastante mais ornamentadas, seja para demonstrar uma perícia equiparável à arte da elaboração retórica, como, no caso dos instrumentos de cordas dedilhadas, os ornamentos serem necessários por causa das limitações que os mesmos têm em emular o poder de sustentação da voz. Se muitas das peças de base eram polifónicas, era também comum a elaboração instrumental a partir de peças monódicas. É, pois, certo que os instrumentos e o repertório instrumental mantêm uma ligação muito estreita à música vocal sacra e profana que, por seu turno, também se inter-relacionam tanto no domínio vocal como instrumental, visto que era comum algumas obras sacras basearem-se em peças profanas, factos particularmente relevantes para o presente programa que assenta em repertório ibérico exclusivamente instrumental, ou vocal acompanhado por instrumentos. A figura de Tomás Luis de Victoria, o principal compositor espanhol da segunda metade do século XVI e um dos principais representantes da música católica contra-reformista, e a sua produção no género do motete dominam este concerto. Tendo estudado em Roma, possivelmente com Palestrina, sob o patrocínio de Filipe II de Espanha, I de Portugal, arranjou depois trabalho nessa cidade, tendo sido ordenado padre. De regresso ao país natal, acabou por tornar-se capelão pessoal da imperatriz Maria, que se havia retirado para o convento das Descalzas Reales, em Madrid, quando enviuvou. O compositor acumulou esse trabalho com o de mestre de capela do convento até à morte da sua patrona em 1603, embora se tenha mantido ao serviço da mesma instituição, como organista, até 1611. Os motetes de Victoria são, em geral, obras particularmente expressivas, embora não exuberantes, antes intimistas, mesmo quando a mais de quatro vozes, por vezes dramáticas e plenas de madrigalismos que atestam o seu conhecimento profundo da tradição contemporânea do madrigal italiano, observando-se com frequência alterações cromáticas e passagens contrastantes em divisão ternária. Segundo a praxis corrente na época de se fazerem arranjos instrumentais de peças vocais preexistentes para outros usos, nomeadamente litúrgicos, ouviremos vários dos motetes deste autor – com acompanhamento de órgão ou vihuela, cordofone dedilhado especialmente proeminente em Espanha e nos territórios de influência espanhola –, em que alguns deles são arranjos anónimos do século XVI em tablatura, espelhando a popularidade significativa da música deste compositor na sua época, embora um deles seja da autoria de um dos intérpretes, J. C. Rivera. A prática corrente, ao tempo, de basear obras sacras em peças profanas é atestada pelo “Agnus Dei” da Missa Mille Regrets, do principal compositor espanhol da primeira metade do século, Cristóbal de Morales, baseada na
chanson atribuída ao grande mestre da terceira geração do período internacional do
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Renascimento, Josquin Desprez, e publicada juntamente com quinze outras obras do género em 1544 em Roma, onde Morales trabalhava, na altura, como membro da capela papal. Por outro lado, encontramos no concerto de hoje peças exclusivamente instrumentais baseadas em obras vocais preexistentes, nomeadamente “La canción del Emperador”, de Luis de Narváez, publicada em Los Seys Libros del Dolphin (1538) e baseada igualmente na chanson supra referida de Josquin, embora o título diferente se deva ao facto de Mille Regretz, sobre a dor da separação dos amantes, ser a peça preferida do imperador Carlos V, para cujo secretário Narváez terá trabalhado entre 1526 e 1547, altura em que passará a fazer parte da capela real espanhola (1548-1549). No seu arranjo, Narváez preserva a textura original a quatro vozes, facilmente reconhecível, mas introduz ornamentação sob a forma de escalas, grupetos e outras figurações, usando ainda divisões ou diminuições para animar o ritmo. Tal como as peças profanas, as obras religiosas eram alvo frequente de arranjos instrumentais, como a entabulação que o compositor e vihuelista Miguel de Fuenllana, activo em Sevilha entre 1553 e 1578, fez para voz e vihuela do “Benedictus a 3”, também da Missa Mille Regretz, de Morales, publicada entre as 13 fantasias do autor no final do quarto dos seus seis livros do Orphenica Lyra de 1554, que contêm toda a sua música impressa. Detentor de um estilo em que as soluções de ornamentação são bastante mais parcas que as de muitos dos seus contemporâneos, face a Narváez, a proximidade de Fuenllana com o modelo original de Josquin é aqui menor. No entanto, o “Benedictus a 3” é, talvez, também aquele em que, em toda a missa, Morales se afasta mais da
chanson de Josquin, tal como opta por apenas três em vez das seis vozes nas restantes rubricas, e Fuenllana segue de perto a sua elaboração. Paralelamente a várias obras compostas de raiz para órgão, como será a Canção com glosas sem indicação de autor mas atribuída por Kastner a António Carreira, pai, pelas características estilísticas consentâneas com várias outras obras suas, encontramos arranjos feitos para órgão com fins litúrgicos ou não (ou mistos) de peças preexistentes. Destaque-se aí o caso da Susana de Manuel Rodrigues Coelho, compositor português natural de Elvas que terá estudado na catedral de Badajoz, onde foi organista entre 1573-1577. De regresso a Elvas na década de 1580, viria a trabalhar como organista na Sé de Lisboa (1602-1603) e, pouco tempo depois, assumiria o posto de organista da Capela Real (1604-1633). Ombreando com grandes organistas contemporâneos como Cabezón, Coelho destacou-se pela sua Flores de Música em dois volumes publicados por Craesbeeck em Lisboa e em que encontramos quatro Susanas, isto é, arranjos para órgão feitos a partir da
chanson a cinco vozes Suzanne un Jour, do contemporâneo e extremamente prolífico Orlande de Lassus.
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Numa época de crise religiosa e de novos valores e igrejas, os estilos e géneros locais de música profana ganharam igualmente mais peso, emergindo tradições em vários pontos da Europa que romperam a homogeneidade da tradição franco-flamenga que se fazia sentir desde meados do século XV, e a Itália manifestou, pela primeira vez, um papel de liderança através da prática intensiva do madrigal que levou a expressão musical do texto a patamares nunca vistos. Na Península Ibérica, o vilancico floresce, como atesta Virgen Bendita sin par, de Pedro de Escobar, compositor português também conhecido como Pedro do Porto, activo em Espanha nos inícios do século XVI, embora tenha estado igualmente ao serviço do cardeal D. Afonso, filho de D. Manuel I, como mestre de capela a partir de 1521. D. Afonso veio a ser administrador do bispado de Évora e foi a figura responsável pelo início nesta cidade de uma tradição polifónica que viria, no final do século XVI e inícios do século XVII, a constituir um dos pontos áureos da história da música portuguesa com a chamada Escola de Évora, de que Frei Manuel Cardoso é um dos mais ilustres representantes. O seu Domine tu mihi lavas pedes é um motete incluído no Livro de
Vários Motetes. Officio da semana santa. E outras cousas publicado em 1648 e dedicado a D. João IV. O texto, um pequeno diálogo sobre a lavagem dos pés dos discípulos por Cristo na véspera da crucificação, é retirado do Evangelho segundo São João (13, 6 e 8-9), e a peça consiste num exemplo do interesse manifesto dos compositores portugueses pelo tratamento dos textos de forte conteúdo emocional, como os da Semana Santa. Com contrastes de textura, contraponto e homofonia que marcam as diferentes frases do texto seleccionado, articulando uma forma ABA com a repetição da parte inicial, é uma peça intimista, como o é a cerimónia do Lava-Pés, fazendo jus ao estilo particularmente expressivo e dramático de Cardoso. Oportunidade para conhecer ou revisitar obras de um período marcante para a música ibérica, este concerto reúne obras que espelham o pluralismo quinhentista e a criatividade expressiva destes compositores do “Século de Ouro”.
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Alma redemptoris mater
Santa Mãe do Redentor
Alma redemptoris mater
Santa Mãe do Redentor,
quae per via caeli porta manens,
que continuais a ser porta aberta do céu
et stella maris succurre cadenti,
e estrela do mar,
surgere qui curat populo.
socorrei o povo que cai e procura erguer-se.
Tu quae genuisti natura mirante,
Vós que gerastes, com admiração da natureza,
tuum sanctum genitorem.
o vosso santo Criador;
Virgo prius ac posterius,
ó sempre Virgem Maria,
Gabrielis ab ore
que da boca de Gabriel
sumens illud Ave,
recebestes o Ave,
peccatorum miserere.
tende misericórdia dos pecadores.
Pange, lingua, gloriosi
Canta, minha língua
Pange, lingua, gloriosi
Canta, minha língua
Corporis mysterium
Este mistério do corpo glorioso,
Sanguinisque pretiosi,
E do sangue precioso,
Quem in mundi pretium
Que, do fruto de um ventre generoso
Fructus ventris generosi
O rei das nações derramou
Rex effudit gentium
Como preço da redenção do mundo.
Nobis datus, nobis natus
Dado a nós, por nós nascido
Ex intacta virgine,
De uma intacta virgem,
Et in mundo conversatus,
E no mundo vivendo,
Sparso verbi semine,
Espalhando a semente da palavra,
Sui moras incolatus
O tempo certo da sua permanência
Miro clausit ordine.
Encerrou no rito admirável.
In supremæ nocte coenæ
Na noite da última ceia
Recumbens cum fratribus,
Reclinando-se com os seus irmãos,
Observata lege plene
Tendo observado plenamente
Cibis in legalibus,
A lei da festa prescrita,
Cibum turbæ duodenæ
Deu a si mesmo com as suas mãos
Se dat suis manibus.
Sumo alimento ao grupo dos doze.
Verbum caro, panem verum
O verbo encarnado, o pão real
Verbo carnem efficit:
Com sua palavra muda em carne:
Fitque sanguis Christi merum,
O vinho torna-se o sangue de Cristo,
Et, si sensus deficit,
E, como os sentidos falham,
Ad firmandum cor sincerum
Para firmar um coração sincero
Sola fides sufficit.
Apenas a fé é eficaz.
Tantum ergo sacramentum,
O sacramento tão grande
Veneremur cernui:
Veneremos curvados:
Et antiquum documentum
E a antiga lei
Novo cedat ritui;
Dê lugar ao novo rito:
Præstet fides supplementum
A fé venha suprir
Sensuum defectui
A fraqueza dos sentidos.
Genitori genitoque
Ao pai e ao filho
Laus et iubilatio;
Saudemos com brados de alegria,
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Salus, honor, virtus quoque,
Louvando-os, honrando-os, dando-lhes
Sit et benedictio;
Graças e bendizendo-os:
Procedenti ab utroque
Ao espírito que procede de ambos
Compar sit laudatio.
Demos os mesmos louvores.
Amen.
Ámen.
O magnum mysterium
Ó grandioso mistério
O magnum mysterium,
Ó grandioso mistério
et admirabile sacramentum,
E admirável sacramento,
ut animalia viderent Dominum natum,
Pois os animais viram o Senhor nascido,
jacentem in praesepio!
Reclinado no presépio!
Beata Virgo,
Ó bem-aventurada Virgem,
cujus viscerameruerunt portare
Cujas entranhas mereceram levar
Dominum Christum.
a Nosso Senhor Jesus Cristo
Alleluia.
Aleluia. Tradução: Pedro Lourenço Ferreira
Virgen bendita sin par
Virgem bendita sem par
Virgen bendita sin par,
Virgem bendita sem par,
de quien toda virtud mana,
de quem mana toda a virtude.
vos sois digna de loar.
Vós sois digna de louvar.
Vos sagrada emperadora,
Vós, sagrada imperadora,
Deshicisteis el engaño
desfizestes o engano
y remediasteis el daño
e remediaste o dano
de la gente pecadora.
da gente pecadora.
De los ángeles señora
Dos anjos senhora,
vos queráis tal gracia dar,
Vós quereis tal graça dar,
que no podamos pecar
que não possamos pecar
contra aquel que carne humana
contra Aquele que carne humana
de vos le plugo tomar.
de Vós Lhe aprove tomar. Tradução de José António Falcão
Ne timeas, Maria
Não temas, Maria
Ne timeas, Maria:
Não temas, Maria:
invenisti enim gratiam
Encontraste graça
apud Dominum:
junto do Senhor:
ecce concipies in utero,
E eis que conceberás no útero,
et paries filium,
e parirás um filho,
et vocabitur Altissimi Filius.
e será chamado Filho do Altíssimo.
Benedictus
Bendito
Benedictus qui venit in nomine Domini.
Bendito seja o que vem em nome do Senhor.
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Agnus Dei
Cordeiro de Deus
Agnus Dei
Cordeiro de Deus
qui tollis peccata mundi,
que tirais o pecado do mundo,
miserere nobis.
tende piedade de nós. Tradução: Pedro Lourenço Ferreira
Mille regretz de vous abandonner
Mil lamentos de vos abandonar
Mille regretz de vous abandonner
Mil lamentos de vos abandonar
Et d’eslonger vostre fache amoureuse,
E de afastar vosso rosto amoroso,
Jay si grand dueil et paine douloureuse,
Tenho tão grande coita, tal sentir doloroso
Quon me verra brief mes jours definer.
Que em breve verão meus dias definhar. Tradução: José António Falcão
Senex Puerum portabat
O ancião levava o Menino
Senex Puerum portabat,
O ancião levava o Menino,
puer autem senem regebat:
o Menino, porém, regia o ancião.
quem Virgo peperit,
Aquele que a Virgem gerou,
et post partum Virgo permansit
e depois do parto permaneceu Virgem,
ipsum quem genuit, adoravit.
adorou aquele mesmo que gerou.
Domine, tu mihi lavas pedes?
Senhor, Tu vais lavar-me os pés?
Domine, tu mihi lavas pedes?
Senhor, Tu vais lavar-me os pés?
Respondit Jesus, et dixit ei:
Jesus respondeu-lhe:
Si non lavero tibi pedes,
Se Eu não te lavar os pés,
non habebis partem mecum.
não terás parte Comigo.
Domine, non tantum pedes meos,
Senhor, não só os pés,
sed et manus, et caput.
mas também as mãos e a cabeça.
Salve regina mater misericordiae
Salve Rainha, Mãe de Misericórdia
Salve regina mater misericordiae
Salve Rainha, Mãe de Misericórdia,
vita dulcedo et spes nostra salve.
vida, doçura e esperança nossa, salve!
Ad te clamamus, exsules filii Hevae.
A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva.
Ad te suspiramus, gementes et flentesin hac
A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste
lacrimarum valle.
vale de lágrimas.
Eia ergo, Advocata nostra, illos tuos misericordes
Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos
oculos ad nos converte.
misericordiosos A nós volvei.
Et Jesum, benedictum fructum ventris tui, nobis
E, depois desse desterro, Mostrai-nos Jesus,
post hoc exilium ostende.
bendito fruto do Vosso Ventre.
O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria.
Ó Clemente, ó Piedosa, ó Doce Virgem Maria. Tradução: Pedro Lourenço Ferreira
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CASTRO VERDE . BASÍLICA REAL DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO
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Capilla Santa María
Nascida sob o impulso da Fundación Santa María e dirigida por Carlos Mena, estreou-se, em 2009, por ocasião da reabertura da nave central da catedral de Santa María de Vitoria-Gasteiz. O seu repertório abrange um vasto espectro da denominada “música histórica”, do século XIII aos finais do século XVIII, merecendo particular referência os programas que organizou para as comemorações de compositores como Haendel, Purcell, Avison, Pergolesi, Caldara, Victoria, Hidalgo, Literes ou Monteverdi. Possui uma formação variável, adaptando o dispositivo orgânico de acordo com os códigos de interpretação da literatura musical ao longo de seis centúrias. Entre os seus objectivos, salienta-se o de dar a conhecer os autores que deixaram o testamento musical no arquivo da catedral de Santa María de Vitoria-Gasteiz e de outros fundos documentais da Península Ibérica. Dá também grande atenção a actividades pedagógicas em torno do repertório histórico. Em Maio de 2014, protagonizou um ambicioso projecto de homenagem dramático-lírica a Juan de Hidalgo, no Teatro de la Zarzuela de Madrid. Tem actuado em festivais de grande prestígio: Semana de Música Antigua de Álava; Les Riches Heures de Valère e Concerts de Saint Gervais, en Genebra; Quincena Musical de Donostia; e Festival de Música Antigua de Gijón. Realizou igualmente notáveis concertos no Auditorio Nacional de Música, de Madrid, e no Auditorio de Salamanca.
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Carlos Mena Contratenor e direcção musical
A sua intensa actividade como cantor leva-o a actuar nas mais prestigiadas salas, mormente Konzerthaus e Musikverein, de Viena; Concertgebouw, de Amesterdão; Teatro Real, de Madrid; Staatsoper, de Berlim; Liceu, de Barcelona; Grosses Festspielhaus, de Salzburgo; Barbican Center, de Londres; Teatro Colón, de Buenos Aires; Metropolitan Opera, de Nova Iorque; Kennedy Center, de Washington; Opera City Hall, de Tóquio; Osaka Symphony Hall; Sydney Opera House; Concert Hall de Melbourne. Tem colaborado com maestros como Sir Neville Marriner, Frühbeck de Burgos, Goodwin, Leonhardt, Weigle, Jacobs, Biondi, Juanjo Mena, Marcon, Ros-Marbà, Coin, Corboz e López-Cobos. É fundador e director de Lux Orphei e de Capilla Santa María, principal atividade musical da Fundación Catedral Santa María e referência para a “música histórica”. Com esta formação, interpretou obras da Idade Média, do Barroco e do Renascimento, em cenários como o Auditorio Nacional de Música, de Madrid, Riches Heures de Valère, na Suíça, e a Semana de Música Antigua de Álava, entre outros. Por ocasião do centenário do nascimento de Juan Hidalgo, criou e assegurou a direcção musical do espetáculo De lo humano y divino. Anatomía de las pasiones no Teatro de la Zarzuela de Madrid, sob a direcção de Joan Antón Rechi.
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CASTRO VERDE . BASÍLICA REAL DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO
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Concerto VII
MOURA
6 de Junho 21H30 O CANTO DO SUL DE ITÁLIA: SICÍLIA E DUAS CALÁBRIAS (SÉCULOS XVI-XVII)
Marsalisa Anónimo, tradicional, Sicília Er allavò Anónimo, tradicional, Sicília Danza cantata Anónimo, tradicional, Sicília, Berlin, Staatsbibliothek, Meyerbeer Archiv, apêndice à partitura da ópera Romilda e Costanza La Pachianella Anónimo, tradicional, Sicília, Berlim, Staatsbibliothek, Meyerbeer Archiv, apêndice à partitura da ópera Romilda e Costanza A la Santaninfára Anónimo, tradicional, Sicília, Canti della e del Mare di Sicilia, Milão, Ricordi, 1907, editado por Alberto Favara Tu rinnina Anónimo, tradicional, Calábria Siciliana per E Anónimo, Milão, Biblioteca del Conservatorio Giuseppe Verdi, ms. A. 48 Donna Incostante – Ingrata disleali ed incostanti Amore Celato – Si bem mustru di fora tuttu yelu Amore Sdegnato – Non ardu chiù com’ardìa Anónimo, Affetti Amorosi. Canzonette ad una Voce Sola Raccolte da Giovanni Stefani, con Tre Arie Siciliane, & Due Vilanelle Spagnole, Veneza, Giacomo Vencenti, 1618 Capona – La Castagnetta Anónimo, tradicional, Sicília, Berlim, Staatsbibliothek, Meyerbeer Archiv, apêndice à partitura da ópera Romilda e Costanza Passioni di Nostru Signuri Anónimo, tradicional, Sicília Canzone araba Anónimo, tradicional, Sicília, Canti Popolari Siciliani, Giuseppe Pitré, Palermo, Pedone-Lauriel, 1875 Ninnananna delle donne dei marinai di Trapani Anónimo, tradicional, Sicília, Canti della e del Mare di Sicilia, Milão, Ricordi, 1907, editado por Alberto Favara Sona a battenti Anónimo, tradicional, Apúlia, arranjos de Pino De Vittorio La Calabrisella Anónimo, tradicional, Calábria
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Arietta grica Anónimo, tradicional, Calábria Matajola Anónimo, tradicional, Calábria Occhi turchini Anónimo, tradicional, Calábria Tarantella siciliana Anónimo, tradicional, Sicília, Staatsbibliothek, Meyerbeer Archiv, apêndice à partitura da ópera Romilda e Costanza Ninna nanna ri la rosa Anónimo, tradicional, Sicília Tarantella di Sannicandro Anónimo, tradicional, Apúlia
Tenor Pino De Vittorio Arquialaúde Ilaria Fantin Harpa barroca Kateřina Ghannudi Tiorba, chitarra battente e direcção Franco Pavan
Portal principal [pormenor]. Século XVI (inícios). Moura, igreja matriz de São João Baptista. >
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MOURA
Igreja Matriz de São João Baptista Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto n.º 21 355, de 13 de Junho de 1932
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
O florescimento de Moura, nos finais da Idade Média, tornou insuficiente a primitiva igreja matriz, situada dentro dos muros do castelo, pelo que D. Afonso V autorizou, em 1455, a transferência da sede desta paróquia, sob a jurisdição da Ordem militar de São Bento de Avis (como todo o território da margem esquerda do rio Guadiana), para a zona urbana em expansão, onde se levantou um novo edifício. Todavia, a população da vila aumentou tanto, ao longo das décadas seguintes, que ele veio a revelar-se, também, exíguo. Nos inícios do século XVI, ergueu-se a actual igreja, que aproveitou parte das estruturas da anterior, incluindo a anexa capela das Almas. A autoria da sua traça foi atribuída a Cristóvão de Almeida, Diogo de Boutaca e Diogo de Arruda, mas o problema continua em aberto. Do ponto de vista planimétrico, este poderoso edifício é fiel a um esquema tradicional, de raiz gótica, com três naves, cinco tramos, pilares octogonais, abóbadas de berço – inicialmente, as coberturas seriam de madeira –, ausência de transepto e cabeceira quadrangular. Na frontaria, rasga-se um portal trilobado e de arco canopial, guarnecido pelas empresas reais. A torre sineira destaca-se pelo altar exterior nela existente, protegido por um balcão de dossel, obra concebida pelo arquitecto João de Moraes, em 1609, e levada a cabo no ano seguinte, sendo prior Fr. Luís Lopes, com a finalidade de se poder celebrar a missa para os presos da antiga cadeia, que lhe fica fronteira. Visitando o seu interior, é de salientar o notável revestimento de azulejos policromados da capela-mor e das capelas laterais, encomendado nos meados do século XVII a oficinas de Lisboa, beneficiação que ficou a dever-se, em larga medida, ao mecenato de Rui Lourenço da Silveira, instituidor da capela de Nossa Senhora das Almas. Esta ostenta
Balcão com altar. 1610. Moura, igreja matriz de São João Baptista. >
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um sumptuoso ciclo de painéis com a representação das Virtudes, enquanto a outra capela colateral possui um ciclo de painéis cronografados de 1651. Embora despojada do acervo de talha e de outros elementos decorativos, no âmbito das severas obras de reintegração estilística levadas a cabo pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1945-1946, a igreja de São João Baptista conserva ainda um vasto conjunto de pinturas, esculturas e alfaias litúrgicas. Os antigos altares foram distribuídos por vários monumentos da cidade, como é o caso da igreja de São Pedro (Museu de Arte Sacra de Moura).
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
JORGE SEGURADO, A Igreja de S. João de Moura, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1919; ID., “Christovam de Almeida e a Igreja de São João de Moura”, em Belas-Artes, 2.ª Série, XXXI, Lisboa, 1975; ID., “Da Génese da Igreja de S. João de Moura”, em Belas-Artes, 2.ª Série, XXXI, Lisboa, 1975; ID., “Data da Igreja Manuelina de São João de Moura”, em Belas-Artes, XXXII, Lisboa, 1978; “Igreja Matriz de S. João Baptista, Moura”, Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, XLV, Lisboa, 1946; JOSÉ CUSTÓDIO VIEIRA DA SILVA, O Tardo-Gótico em Portugal. A Arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros Horizonte, 1989; J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, Elenco, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; JOÃO ROSADO CORREIA (dir. de), Vasco da Gama e os Humanistas no Alentejo – De D. João II (1481-1495) a D. João III (1521-1557). O Pensamento e a Técnica: DoTardo-Gótico ao Maneirismo, Monsaraz, Fundação Convento da Orada, 2002; PEDRO DIAS (dir. de), Manuelino: À Descoberta da Arte do Tempo de D. Manuel I, [Porto], Civilização, 2002; ID., Arte Portuguesa: Arquitectura Manuelina, 2.ª. ed., Vila Nova de Gaia, A. Alves – Arte e Edições, 2009.
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Tesouros Musicais da Itália Meridional
FRANCO PAVAN
Canções da Ilha Mágica Quando, há alguns anos, comecei a investigar os sicilianos, nunca imaginei as surpresas, os tesouros e as maravilhas que estes textos, na língua falada, sobretudo na ilha da Sicília, me reservavam. Historiadores, músicos, investigadores, etnógrafos cultos e iluminados conduziram-me, através de várias portas secretas, umas mais pequenas, outras maiores, ao interior de salas ladeadas por centenas de documentos de poesia e música, relacionados com a cultura tradicional de uma das mais extraordinárias regiões do Mediterrâneo. Para os Italianos, a Sicília é um dos pulsares do coração (o outro é a Toscânia) que nos deu a linguagem literária e é, também, o centro de uma cultura musical muito especial, enriquecida pelas influências mediterrânicas, africanas e árabes, bem como pelo vasto número de trabalhadores da ilha em contacto permanente com o Continente. Mas, enquanto as composições que datam do período medieval são normalmente bem executadas, as oportunidades de ouvir algo dos séculos XVII e XVIII num concerto são muito poucas e espaçadas no tempo. Para a poesia em língua siciliana, este foi um tempo de extraordinário florescimento – estamos a falar de dezenas de milhares de obras –, florescimento que, pelo cuidado com que foi tomado, pela ampla divulgação e, também, pela publicação dos textos, reflectiu um nível de sensibilidade pouco usual. Escrita e transcrita em dezenas de manuscritos e edições impressas, a música adoptou uma forma que ombreia com o esquema estrófico da estância de oito linhas, a principal forma em verso usada na improvisação. Ao longo de uma tradição de música erudita e semierudita, existiu uma tradição excepcionalmente vigorosa de música popular que transporta com ela séculos de história cultural. Assim, além das obras escritas, tanto manuscritas como impressas, as quais, durante os séculos XVII e XVIII, atingiram um número muito substancial de textos a serem cantados pelos sicilianos, geralmente acompanhados pela guitarra espanhola (barroca), podemos incluir neste corpus as obras dos viajantes, músicos e estudantes
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que transcreveram as canções da terra da Sicília e dos mares circundantes. Deixaram-nos uma caixa de jóias que tentámos descobrir, pelo menos em parte, com o nosso próprio trabalho de estudo e interpretação. Graças a esses precursores, dispomos de uma herança de transcrições musicais que, de outro modo, teríamos perdido através do declínio inevitável da tradição oral. Entre eles, os mais memoráveis são, certamente, Giacomo Meyerbeer [1791-1864], Giuseppe Pitrè [1841-1916] e Alberto Favara [1863-1923]. Sendo, apesar de tudo, os seus elementos tão diversos, esta tradição musical contém características comuns muito fortes e inconfundíveis, que permitem uma comparação útil entre as fontes impressas no século XVII, transmitidas oralmente e editadas no princípio do século XIX. Durante a viagem pela Sicília, em 1816, Meyerbeer coleccionou e transcreveu documentos de origem popular, nos quais identificamos “airs”, canzonette, histórias, canzune, cantares sacros, danças e canções para dançar, as quais, em conjunto, fornecem uma visão coerente da tradição musical siciliana. Partindo de “airs”, escolhemos o fascinante Sullu sullu, escrito em finais do século XVI num estilo que faz lembrar a grande poesia lírica popular de Giovanni Meli. Nas baladas, preferimos a versão transcrita por Favara a partir de uma bem conhecida e largamente difundida, C’eranu tri surelle, enquanto A la Santaninfára oferece um belíssimo exemplo da canzune. Voltando à música para dançar, pode fazer-se uma comparação nítida de Li cinque passi, dança que surgiu na colecção de Bernardo Storace, Selva di varie compositioni
d’intavolatura per cembalo ed organo (Veneza, 1664), com a Capona incluída no Libro Quarto d’Intavolatura di Ghitarrene, de Johannes Hieronimus Kapsperger, publicado em Roma, em 1640. Ambas as peças foram, de facto, transcritas por Meyerbeer durante a sua visita de 1816 à Sicília. Outra fonte de comparação muito interessante é o trabalho de Antonino di Micheli, publicado em Palermo, em 1680, Nuova Chitarra di Regole,
Dichiarazioni e Figure, que contém tipos de danças e canzuni da Sicília, também gravadas pelo compositor alemão. Fortes ecos de influências helénica e árabe sobreviveram também no conjunto das obras de alla Siciliana, evidentes, sobretudo, pela utilização dos invulgares intervalos melódicos e harmoniosos, que não estão necessariamente relacionados com a sua inclinação para a escrita modal. Outro eco da sua originalidade encontra-se num manuscrito napolitano muito valioso, em Milão, do qual consta o Siciliana per E (que indica, de acordo com instruções de professores de guitarra em Espanha, que a chave é D menor), do qual vislumbramos – por alturas do século XVIII! – trechos de harmonias assaz ousadas. Um aspecto característico de toda esta música, não só no domínio da cultura popular, como também nos das classes instruídas, é a utilização das competências interpretativas
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muito distintas dos cantores. Dois dos escritores mais influentes na arte de cantar, Pier Francesco Tosi e Giovanni Battista Mancini, fizeram-lhe uma alusão, breve mas apaixonante, nos seus trabalhos. Em 1723, o primeiro escreve: “Passaggi [passagens floridas designadas por entretenimento] estão fora do lugar entre os sicilianos. Mas os diapositivos são maravilhosos.” E, em 1774, Mancini acrescentava: “Se uma vibração, por exemplo, tiver de ser inserida numa [peça] siciliana, produzirá imediatamente um efeito extremamente feio, porque, como o ritmo cadenciado pede comportamento e
legato suave, a vibração introduziria um elemento de paródia.” Um aparte interessante na expansão da “vogue of airs” alla Siciliana durante o século XVII é oferecido por Pietro Della Valle numa carta endereçada a Lelio Guidiccioni, chamada Della musica dell’età nostra che non è punto inferiore, anzi è migliore di
quella dell’età passata, datada de 16 de Janeiro de 1640: “E pela agitação das emoções de pena e melancolia, consegue-se um efeito romântico muito intenso nas canções sicilianas, as quais, possivelmente, fui eu o primeiro a apresentar a Roma, inicialmente a partir de Nápoles e depois da Sicília, onde, em 1611, ouvi uma canção em Messina que agora ouço louvar em Roma como uma das mais belas, e também me deram dois volumes manuscritos de excelente poesia siciliana que ainda possuo; a partir daí, tendo de certo modo apanhado o jeito, eu próprio produzi as minhas notas no estilo siciliano, que agora jazem no meio dos meus apontamentos, e, como vês, são muito mais úteis. Em tempos passados, essas coisas nunca se ouviam em Roma; hoje, são tão bem cantadas lá como na própria Sicília, e duvido que alguma vez sejam superadas.” Isto, posso aventurar-me a afirmá-lo, foi uma moda real, evidenciada pelo extenso conjunto de notas em siciliano, muito bem preservadas nos canzonieri, livros de canções acompanhadas à guitarra. Mas os impressos venezianos não lhe ficaram imunes por muito tempo. Foram publicadas antologias importantes de Giovanni Stefani, em 1618, e de Carlo Milanuzzi, em 1625, que incluíam peças dessa tradição. Outra faceta da tradição musical siciliana, sem dúvida muito importante, foi a dos orbi, bardos cegos que surgiram, a partir do século XVII, pelo menos, a meio caminho entre o “erudito” e o “popular”. Sob a protecção dos jesuítas, a herança dos orbi foi carregada com a custódia e a execução – entre outras coisas – de um legado riquíssimo da música sacra cantada na Sicília. O centro deste repertório era a Passio, da qual Alberto Favara transcreveu as partes vocais. Um poema de Paolo Catanio, monge beneditino de Montréal, que ele citou no seu Teatro ove si rappresentamo le miserie humane, “E le mentite apparenze di questo fallace mondo”, publicado em Palermo, em 1665, mencionou os instrumentos utilizados pelos bardos cegos:
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“Si vidi un Cecu cantari pri via A somu d’Arpa, ò Chitarra, ò Liutu, E benchì privu di la vista sai, Cerca cantandu succursu, ed aiutu, Leta la vita in canti, e puisia La passa, è lu strumentu lu do scutu; Buscando lu guadagnu giustamente ‘Ntra li miserìj soi campa contenti.”
(“Se vires um homem cego cantando na estrada, / ao som da harpa, da guitarra, do alaúde, / e embora privado da visão, / pedindo na sua canção esmolas e auxílio, / com canção e poesia / ele passa o tempo com alegria / e o instrumento é o seu escudo / enquanto vive uma vida honesta / e, apesar da sua pobreza, está contente.”)
Um dos principais instrumentos adicionados mais tarde pelos bardos cegos para acompanhar as suas canções foi o violino, como verificamos pelas numerosas transcrições existentes, inclusivamente as que foram feitas por Meyerbeer, em 1816. A sua força real está, no entanto, no poder expressivo do seu cantar. A tradição da orbi é, hoje, quase uma coisa do passado, mas, pelo menos, o que ficou do seu legado cultural foi coleccionado e preservado graças ao trabalho de uma plêiade de estudiosos, em particular de Elsa Guggino. The ninne name, ou canções de embalar, merecem um tratamento especial. O Ninna nanna delle done marinai di Trapani é uma homenagem ao trabalho extraordinário de Alberto Favara. Uma Memória Viva A tradição da música da Calábria é uma das mais importantes de Itália, provavelmente a mais desconhecida. Ao trabalhar a música para o disco Siciliane, pesquisando em fontes históricas e tradicionais, reuni um grande número de peças de invulgar interesse estético. A música tradicional goza ainda de grande popularidade na Calábria, muito mais do que na Sicília. De facto, é ainda possível ouvir tocar a chitarra battente num repertório muito antigo. Há uma fonte muito interessante, ainda não estudada, o manuscrito, compilado na primeira metade do século XVII por um músico de nome desconhecido. Este coligiu 312 peças, da Calábria à China, numa viagem à volta do mundo. O exemplar da música da Calábria existente nesta colecção é notável. Existem, também, outras fontes, como um manuscrito de composições para alaúde, que se encontra actualmente na Biblioteca do Conservatório de Pesaro, que contém umas nove peças da Calábria.
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Além disso, entre os séculos XVI e XVII, os poetas napolitanos desenvolveram uma linguagem muito especial, ao tentarem imitar Giangurgolo e Don Nicola, o amante da filha de Pulcinella, e outros personagens da Commedia dell’arte. Esta linguagem surgiu pela primeira vez numa ópera de Filiberto Laurenzi, em 1641, e foi definida por Andrea Perrucci, em 1699, que produziu uma hilariante canção, num misto de calabrês e espanhol. Durante o século XVII, esta linguagem foi usada de muitas formas teatrais e musicais, até ao incrível Te Deum, de Calabresi, um violento ataque ao sistema napolitano do final dessa centúria. O extraordinário património da música de tradição oral inclui Tarantelas, rápidas e lentas, Baladas, Sonetos, Cantigas e, evidentemente, Melodias Sacras. Investigando estes tesouros musicais sicilianos e calabreses, tentámos apresentar uma breve visão de um maravilhoso conjunto de textos, aparentemente ilimitado, mera gota no oceano de um universo mágico. Certamente que não visámos actuar numa espécie de “música popular” – pois, não fazendo parte de um mundo cultural que transporta consigo séculos de história, nunca seríamos capazes de o fazer –, mas apenas interpretar um repertório que suscitou a nossa paixão pela arte. Tudo o que fizemos, incluindo a escolha dos instrumentos, foi inspirado nestas palavras de François Couperin: “Eu prefiro muito mais ser movido por algo do que ficar estupefacto.” Um sentimento que parece estar demasiado esquecido nos tempos actuais.
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A la Santaninfára
A la Santaninfára
Vogghiu cantari a sta strata riali
Quero cantar nesta real rua
‘mmezzu di tut tanti nobuli signuri.
entre tantos nobres senhores.
Lo statu è bonu e lu vogghiu avantari;
A companhia é boa e eu pretendo louvá-la;
pirsuni onesti e picciotti d’onuri.
gente honesta, jovens honrados.
La rosa russa misi a’ mbuttunari;
Pus uma rosa encarnada;
lu alofaru nun perdì lu culuri.
se usada na lapela, o encarnado não esmorece.
Licenzia iu vi vogghiu addimannari,
Desejo pedir autorização para partir,
addiu, scocca di rosa e bianca ciuri.
adeus, rosa encarnada, adeus, alva flor.
Danza cantata
Danza cantata
Mamma mi l’ati persu lu rispettu
Mamã, tu já não confias em mim,
di la finestra lu
eu ajudei-o a trepar,
natichi tunni e lariulè
natichi tunni, oh la ri lo lé,
di la finestra lu fici acchianari.
a entrar pela janela.
Cu parla parla mi lu tegnu to strittu
Não me interessa o que digam, fico com ele
ca sechtta vecchia nun
porque não quero ficar uma velha solteirona,
natichi tunni lariulè
natichi tunni, oh la ri lo lé
di la finetra lu fici acchianari.
ajudei-o a trepar e a entrar pela janela.
Ninni fuiemu dirittu dirittu
Meu amor, fujamos agora, imediatamente,
poi comu voli Diu
porque como Deus ordena,
natichi tunni lariulè
natichi tunni, oh la ri lo lé,
poi comu voli Diu m’ha maritari.
como Deus ordena, tens de casar comigo.
Nina nanna ri la rosa
Nina nanna ri la rosa
Duormi riposa sutta a ‘na rosa
Vai dormir, repousa sob uma rosa,
alla susuta ti rugnu na cosa
quando acordares, dar-te-ei uma coisa linda
ti vogghiu beni, ti vogghiu beni
amo-te, amo-te,
chiuri l’ucciddi ca ‘u sunnuzzu veni.
fecha os olhinhos e o sono virá.
T’ha quitari, t’ha quitari
Acalma-te, acalma-te,
Comu si queta l’unna ru mari
Tal como se acalmam as ondas do mar.
Comu agghia a ddiri, comuagghia a ddiri
Que posso dizer, que posso dizer,
l’occhiu ti joca e a ‘ucca t’arriri.
quando teus olhos cintilam e a tua boca sorri.
Quantu si ruci, quntu si ruci
Como tu és doce, tão doce
pasta ri zuccaru, pasta ri nuci
Como o torrão de açúcar ou o maçapão.
chi hai ca cianci, a naca ti cunzai
Porque choras então?
miezu arani,
Pus o teu berço debaixo das laranjeiras.
chi hai ca sempri cianci.
O que te atormenta, porque choras tu?
Tu rinnina
Tu rinnina
Tu rinnina che vai lu maru maru
Andorinha que voas sobre o mar,
Ferma quantu ti dico dui paroli,
detém-te, tenho algo para te dizer.
Corri a jettari lu suspiro a mari
Corre a lançar meu suspiro sobre as águas
E vididi se mi rispunnaa lu mio beni
e vê se o meu amor responde.
Non mi rispunna no troppo lontano.
Não me responde porque está longe,
È sotto a na frescura chi sta durmenne
está a dormir ao fresco,
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Poisi ripiglia cu nu chianta all’occhi
acorda com os olhos cheios de lágrimas
Se struja l’occhi e li passa lu chianto.
seca os olhos e pára de chorar.
Piglia lu muccaturo, lu vai a lavu,
Eu pego num lenço e lavo-o para ti,
poi ti lu spanno a lu peru de rosa
Depois estendo-o numa roseira,
poi ti lu cogliu a la napolitana
Depois ponho-o à napolitana,
poi ti lu manno a Napoli a stirari
Depois tu leva-lo a Nápoles para engomar,
poi ti lu mannu cu ventu a purtari.
Depois envio-to pelo vento.
Ventu và portacello a lu mio beni,
Vento, leva-o ao meu amor,
Mera che nun ti cada pé supra mari
tem cautela, não o deixes cair ao mar,
Ca perdali sigilli de stu cori.
que ele não pode perder a marca deste coração.
Passioni di Nostru Signori
Passioni di Nostru Signori
Passio Domini nostri Jesu Cristi,
A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo
cu lagrimi di sangu ognunu scrissi
foi escrita com lágrimas de sangue
tutti quattru li Santi Evangelisti
pelos quatro Santos Evangelistas.
Di San Matteu ‘nprincipiu, chi scrissi
Primeiro, por São Mateus, que escreveu
Di làmurusu Gesù, summa buntà,
sobre Cristo, amor e suprema bondade
‘nta chiddu tempu a l’Apostuli dissi:
e que anunciou então aos Apóstolos:
“Jorna ci voli, e Pasqua venirà
“Chegarão os dias, chegará a Páscoa
Chi lu figghiu di l’omu vidiriti
em que vereis o Filho do Homem
mortu’n cruci nta tanta crudeltà.
morto na cruz com a maior crueldade.
Tutti sti turbi chi oggi viditi
Estas multidões que hoje vedes
Vannu gridannu Osanna pi la strata
Aclamando pelas ruas Hossana
Crucifiggilu diranno tutti uniti.”
Estarão todas vociferando Crucificai-O.”
Ninna manna delle donne dei marinai di
Ninna manna delle donne dei marinai di
Trapani
Trapani
Er alaò e ora veni lu tatatò alaò
Vai fazer oó, que o papá está a chegar, oó,
e ti porta alaò sita ‘ncarnata, alaò
e vai trazer-te seda escarlate, oó,
p‘arricanariti la facciata, alaò
para devolver a cor às tuas faces, oó,
er alaò san ‘Antuninu
vai fazer oó, que Santo António
mittiticilu bonu lu cuscino alaò
torne o travesseiro macio, oó,
er alaò San Franciscu di Paula
oó, que São Francisco de Paula
purtativillu a la vostra tavula alaò
o traga à sua mesa, oó,
ci rati a manciari e pani e pisci
lhe dê a comer pão e peixe,
forsi lu picciriddu s ‘addurmisci.
então talvez a criança adormeça.
Donna incostante
Donna incostante
Ingrata disleali ed incostanti
Ingrata, desleal, inconstante,
quant’iu t’amu Iu vidi apertamenti
tu tens a noção exacta de quanto te amo
e fingi di I’auricchi di mircanti
mas finges ficar surda como uma porta
quasi che non mi vidi ò non mi senti.
como se nunca me tivesses visto ou ouvido.
Non torna no lu tempu ch’u indavanti
O tempo passa e não volta mais,
né la bellezza dura eternamente.
tal como a beleza não perdura sempre.
Ogni machin‘autissima importanti
Até a máquina maior e a mais importante
si disfa, si consuma, e torna nenti.
se quebra, se desintegra, e nada dela resta.
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Amore celato
Amore celato
Si ben mustru di fora tuttu yelu
Embora a minha aparência seja gélida,
andi lu pettu miu di focu tali
dentro de mim o coração
chi com’un mongibellu dentru celu
está a arder qual vulcão
l’audentissima chiama a nulla equali.
em labaredas terríveis, sem igual.
Amu, e làmuri miu a nullu rivela
Amo, mas não posso revelar o meu amor,
Ben chi sìu parlu m’è contra lu celu
porque, se o confesso, terei contra mim o céu,
Lu mundu, e la mia sortèmpia, e fatali.
o mundo e a minha sorte ímpia e fatal.
Amore sdegnato
Amore sdegnato
Non ardu chiù, non ardu comardia
Já não ardo de amor por ti
per lu tu amur ingrata scannuscernti
como antigamente, egoísta e ingrata.
sanau La chiagga ch ‘amuri di tia
Já sarou a ferida causada
mi fici co li soi strali pungenti.
pelo meu amor por ti.
Mi passau, mi passau la fantasia
Perdi todo o desejo de escutar
mi dicisti di lu cori, e di lamenti.
o teu coração e as tuas mágoas.
Sdegnu pietusu di la morti mia
O desdém compassivo pela minha morte
mi librau di li soi tradimenti.
Curou-me de toda a perfídia.
Er allavò
Er allavò
Er allavò ch’è di li grutti.
O papão que vem das profundezas,
so matrti mancia e so figghiu agghiurti,
que come a mãe e traga o filho,
er alavò,
o papão
bo’, bo’, bo’, dormi figghiu e fa lavó,
buh buh buh, dorme, filho, e faz oó,
E s’un voli, dormiri naticateddi
porque quem não quer dormir
avi ad aviri,
apanha uma tareia,
bo’, bo’, bo’, dormi figghiu e fa alalò.
buh buh buh, dorme, filho, e faz oó. Tradução: Maria das Dores Galante de Carvalho
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Laboratorio’600
Este agrupamento surgiu, em 2010, como conjunto de instrumentos de cordas dedilhadas de repertório renascentista e barroco. O traço característico do grupo reside nas pesquisas musicais em campos totalmente inexplorados, seguindo ao mesmo tempo, com grande atenção, tudo o que é possível aprender das fontes históricas, graças particularmente a um apaixonado estudo do baixo contínuo. Após concertos em Espanha, Áustria e Itália, iniciou uma colaboração com a marca espanhola Glossa, que dá o seu apoio a um fascinante percurso empreendido pelo grupo, conjuntamente com o cantor Pino De Vittorio. O primeiro sinal tangível deste projecto é a publicação de Siciliane, em 2013, fruto de uma longa investigação musicológica. Trata-se de uma viagem na música da terra da Sicília dos séculos XVII e XVIII, com trechos de uma beleza surpreendente, interpretados com luminosa teatralidade. Na temporada em curso, o conjunto estreia-se no Festival de Radovljica, na Eslovénia, no Festival All’Improvviso, de Gliwice/Polónia, no Bucerius Forum, de Hamburgo, no Concertgebouw, de Amesterdão, no De Bijloke, de Bruges, no Festival FEMAS, de Sevilha e da Corunha, e no Festival Les Nuits de Septembre, em Liège.
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Pino De Vittorio Tenor
Natural de Leporano (Taranto), após um início artístico dedicado à recuperação das tradições da Apúlia, fundou com Angelo Savelli a companhia teatral Pupi e Fresedde. Integrou depois a companhia de Roberto De Simone, participando em alguns dos seus mais importantes trabalhos – Mistero
Napolitano, Li Zite ’ngalera, Opera Buffa del Giovedì Santo, La Gatta Cenerentola, Stabat Mater (com Irene Papas), Requiem in Memoria di Pier Paolo Pasolini, Le 99 Disgrazie di Pulcinella, Il
Drago –, espectáculos realizados em todo o mundo: de Berlim a Edimburgo, de Nova Iorque a Buenos Aires. Teve a sua estreia na ópera no Teatro San Carlo de Nápoles com Crispino e la Comare, dos irmãos Ricci, replicado depois no Teatro La Fenice, de Veneza, e no Théâtre des Champs-Élysées, de Paris. Foi várias vezes artista convidado do Maggio Musicale Florentino, entre outros com L’Orfeo, de Monteverdi, numa revisitação de Luciano Berio. Nas Settimane internazionali de Nápoles, cantou
L’Idolo Cinese, de Paisiello, Pulcinella, de Stravinsky, dirigido por Massimo De Benardt, e L’Histoire du Soldat, dirigido por Salvatore Accardo. Com Rinaldo Alessandrini cantou o papel da Nutrice em L’Incoronazione di Poppea, de Monteverdi, em Salamanca, na Opéra de Paris e no Teatro alla Scala de Milão. Actuou em Londres, na presença da família real inglesa, em Dafne, de Marco da Gagliano. Colabora regularmente com I Turchini. Dirigido por Antonio Florio, interpretou diversas óperas barrocas como La Colomba Ferita, de Francesco Provenzale (Teatro San Carlo, de Nápoles, e Teatro Massimo, de Palermo), La Finta Cameriera, de Gaetano Latilla, Pulcinella Vendicato, de Paisiello (Teatro Bellini, de Catânia, e Cidade do México), Li Zite ’ngalera (Teatro Piccinni, de Bari), La Festa
Napoletana e Il Disperato Inocente, de Franceso Boerio (Clermont Ferrand), La Partenope, de Leonardo Vinci (Teatro San Carlo, de Nápoles, León, Santander, Sevilha, Corunha), e L’Ottavia, de Domenico Scarlatti (San Sebastián).
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Franco Pavan Tiorba, chitarra battente e direcção
Colabora com algumas das mais importantes formações italianas de música antiga, como Concerto Italiano, Accordone, La Cappella della Pietà dei Turchini, La Risonanza, La Venexiana e Trinity Baroque, tocando nas mais importantes salas de concerto da Europa e do mundo, sob a direcção de Rinaldo Alessandrini, Antonio Florio, Alessandro Ciccolini, Enrico Gatti, Alan Curtis, Julian Podger e Guido Morini, entre outros. Gravou mais de cinquenta discos com as etiquetas Emi, Virgin, Opus 111, Naïve, Alpha, Cyprès, Glossa, Cantus, Accord e, como solista, com a marca italiana E Lucevan le Stelle, sendo premiado com o Gramophone Award, o Diapason d’Or e o Premio Vivaldi. Gravou para inúmeras emissoras radiofónicas europeias e cadeias de televisão italianas, francesas, alemãs, espanholas, colombianas, chinesas e japonesas. O disco a solo Le Mouton Fabuleux, dedicado à música do alaudista francês setecentista Charles Mouton, foi declarado Disco do Ano 2008, no âmbito da música antiga, pela revista Amadeus. A sua actividade, nos últimos anos, centra-se no Laboratorio’600, que fundou com a harpista Katerina Ghannudi e a alaudista Ilaria Fantin. Toca em duo com o alaudista Gabriele Palomba, com o qual realizou três discos dedicados ao repertório alaudista quinhentista, reconhecidos como fundamentais na discografia dedicada aos duetos para alaúde. Iniciou também uma colaboração com a flautista alemã Dorothee Oberlinger, estudando páginas pouco conhecidas do repertório para flauta doce europeia. Licenciado em História da Música pela Universidade de Milão, sob a orientação de Francesco Degrada, dedicou-se à investigação, publicando artigos e ensaios sobre a história do alaúde e do Seiscentismo italiano. Colaborou no New Grove Dictionary of Music and Musicians e em Die Musik
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em Geschichte und Gegenwart . Editou obras de Francesco da Milano, Pietro Paolo Borrono e Johannes Hieronimus Kapsperger, e, com Marco Caffagni, a Opera Omnia do alaudista quinhentista Perino Fiorentino. Faz parte do comité editorial do Journal of the Lute Society of America, é colaborador científico do projecto Ricercar do Centre d’Études Supérieures de la Renaissance de Tours e membro do Comité Científico para o Estudo das Tablaturas da International Musicological Society. Ensina alaúde no Conservatório Evaristo Felice Dall’Abaco, de Verona.
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Concerto VIII
BEJA
20 de Junho 21H30
A FORÇA DA SERENIDADE: MÚSICA PARA O FIM DOS TEMPOS (FRAGOSO E VERDI)
António Fragoso [1897-1918] Notturno Giuseppe Verdi [1813-1901] Requiem 1. Requiem et Kyrie 2. Dies irae 3. Tuba mirum 4. Mors stupebit 5. Liber scriptus 6. Quid sum miser 7. Rex tremendae 8. Recordare 9. Ingemisco 10. Confutatis 11. Lacrymosa 12. Offertorio: Domine Jesu 13. Offertorio: Hostias et preces tibi 14. Sanctus 15. Agnus Dei 16. Lux aeterna 17. Libera me 18. Dies irae 19. Requiem aeternam 20. Libera me
Orquestra do Norte Coro do Teatro Nacional de São Carlos Soprano Cristiana Oliveira Meio-soprano Ana Ferro Tenor Vicente Ombuena Barítono Rui Silva Direcção José Ferreira Lobo
< Um aspecto da sacristia da igreja de Nossa Senhora ao Pé da Cruz, em Beja, antes de serem iniciadas as obras de conservação e restauro do monumento (2011).
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BEJA
Igreja de São Salvador
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & RICARDO PEREIRA
As origens da igreja de São Salvador ascendem ao período em que, uma vez consolidada a “Reconquista”, Beja foi organizada em quatro paróquias, as mesmas que chegaram aos dias de hoje, mas com vastos territórios rurais. Surge referida, em 20 de Setembro de 1264, sendo bispo de Évora D. Martinho I (Pires), como prebenda de um cónego da catedral da mesma cidade, Abril Paes. Valorizada por este patrocínio, cedo assumiu papel relevante na vida bejense. Para tal, contribuiu a presença não só de uma colegiada, mas também de confrarias de artífices, como a dos alfaiates, a dos carpinteiros e a dos pedreiros – os mesteirais abundavam no bairro onde está localizado o imóvel –, a que se juntariam outras, de carácter mais geral. Pelos finais da Idade Média, salientou-se, entre estas instituições, a Confraria do Corpo de Deus, já existente em 1519; cabia-lhe a administração da capela e da bandeira ou grémio de São Jorge, que figurava em grande destaque na procissão do Corpus Christi, a mais importante de Beja, uma das manifestações cimeiras do espírito concelhio, outrora celebrada com danças e folias alegóricas, em que o Sagrado e o Profano andavam lado a lado. Em 1544, tomou a designação do Santíssimo Sacramento, de acordo com a vocação eucarística da Reforma Católica. Datará do mesmo período a fundação (ou a reorganização, sob um título mariano “especializado”) da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios. A visitação efectuada à igreja, a 28 de Agosto de 1544, por Luís Álvares de Proença, em nome do cardeal-infante D. Henrique, arcebispo de Évora, denota a sua crescente relevância. Entre cidade e campo, integravam a paróquia 342 fregueses. O priorado era pertença do vizinho convento de Nossa Senhora da Conceição, de religiosas franciscanas – que seguiam regra urbaniana e estavam sob a protecção real. Quanto à cura das almas, corria a cargo de um vigário e oito beneficiados. Para o sustento do Retrato Funerário de Madre Maria Perpétua da Luz. Escola portuguesa. Ca. 1736. Beja, Museu Episcopal. >
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culto e dos clérigos a ele adstritos, reunira-se um património assinalável, com suficientes capelas e herdades foreiras. Tal despertava a cobiça de “muitos clerigos e leygos” que, como noutras paróquias da cidade, pretendiam servir os postos de “oficiaes das remdas […], tisoureyros, prioste, dizimeiros, escrivães” dos bens eclesiásticos, para o que solicitavam os empenhos de “muytos intercedores e roguadores, asy como muytas pessoas fidalguas da dita cidade e de fora dela, e outras homradas, amiguos e paremtes”, mesmo quando não estavam habilitados para tal. Com o intuito de evitar as perdas que isto causava ao erário arquiepiscopal, além de “muytos danos e odios e escamdalos”, o visitador determinou que as eleições para os ditos ofícios obedecessem escrupulosamente às Constituições da Arquidiocese. Embora sujeito a várias transformações no decorrer dos tempos, o edifício gótico viria a revelar-se, com o crescimento da cidade, exíguo para as necessidades da freguesia, o que ditou, já em pleno século XVII, a sua remodelação ab fundamentis. De entre os poucos traços da antiga igreja que chegaram aos nossos dias, sobressai a escada de caracol da torre sineira, provavelmente já obra quinhentista. Em 20 de Maio de 1652, lançou-se a primeira pedra da nova fábrica. Ainda que a cátedra eborense se encontrasse vacante, devido à crise nas relações com a Santa Sé, motivada pela restauração da independência nacional, o Cabido, à frente do governo da Arquidiocese, dava provimento a iniciativas como esta que, além de suprirem carências evidentes das populações, permitiam aglutinar as energias locais. Interessante exemplo do “Estilo Chão” pelo qual se pautou grande número de manifestações da arquitectura portuguesa entre o segundo quartel do século XVI e os primórdios do século XVIII, a solução arquitectónica que hoje podemos apreciar, característica do Maneirismo alentejano, subordina-se aos valores da austeridade e da solidez. De facto, corresponde plenamente, em termos funcionais e simbólicos, ao espírito e à forma da liturgia tridentina. Isto torna-se bem patente na organização da ampla capela-mor e nas celas laterais faciais, possibilitando uma perfeita visibilidade a partir de todos os pontos da nave única, de elevado pé-direito, assim como excelentes condições acústicas. Marcada pelo jogo de morfologias geometrizantes, a severidade do exterior da igreja contrasta com a riqueza decorativa do seu interior. Preponderam aqui as estruturas retabulares de talha dourada e policroma (além do altar principal, dois altares colaterais e quatro altares laterais), representativas de diferentes fases da evolução desta manifestação artística ao longo de dois séculos, desde a vulgarização do formulário da
Maniera aos esplendores triunfais do Barroco e do Rococó. O percurso arranca, do lado do Evangelho, com o modelo arquitectónico, caro ao gosto maneirista, da primeira capela, dedicada a São Bartolomeu, o padroeiro dos ofícios
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associados aos curtumes. Decerto transferido da igreja anterior, o seu retábulo inclui o ciclo pictórico da Vida e Milagres do orago, uma série de assumida intenção narrativa, realizada ca. 1600 por Júlio Dinis de Carvo e António de Oliveira, dois mestres activos em Beja. Simétricos, os altares colaterais, sob as invocações de Nossa Senhora dos Remédios – o do lado do Evangelho – e de Nossa Senhora do Amparo – o do lado da Epístola –, enunciam já a transição do Maneirismo para o Proto-Barroco. Defronte da capela de São Bartolomeu, o retábulo da capela do Santíssimo Sacramento oferece um luminoso testemunho do “Estilo Nacional” que singulariza a talha dos finais do século XVII. Por seu turno, o retábulo principal, encomendado em 1721 ao mestre entalhador Manuel Nunes da Silva, com oficina em Lisboa, é obra cimeira da escultura do tempo de D. João V; chama a atenção pela figuração de Deus Pai, em alto-relevo, no frontão, e pelo sacrário hemisférico, amparado por dois anjos. A segunda capela da Epístola, consagrada a Nossa Senhora das Dores, e a capela correspondente do lado oposto, da invocação de Nossa Senhora da Conceição, ilustram distintas etapas da arte da talha na segunda metade do século XVIII, manifestando a liberdade plástica do Rococó. Estes dois altares são contemporâneos do período em que a igreja conheceu os seus dias de maior fulgor, após a refundação da Diocese de Beja, em 1770. O bispo designado para a nova cátedra, D. Fr. Manuel do Cenáculo, figura próxima do Marquês de Pombal, instalou o paço num vasto edifício que lhe ficava contíguo, o antigo colégio de São Francisco Xavier, da Companhia de Jesus, entregue para esse efeito pelo Governo (mas só passou a residir em Beja depois da Viradeira imposta pela subida ao trono de D. Maria I, em 1777); e a igreja situada entre a paroquial de São Salvador e o colégio-paço, sob a invocação de São Sesinando, o padroeiro de Beja, acolheria, em 1791, por iniciativa do erudito prelado, o primeiro museu português. Apesar de ter gizado planos mais grandiosos para a erecção de uma sé, D. Fr. Manuel viu-se constrangido, pelas circunstâncias económicas, a adaptar a igreja de São Salvador à função catedralícia, imprimindo-lhe, tanto quanto possível, a dignidade que tal estatuto pressupunha. Segundo lembram diversos testemunhos coevos, as missas pontificais a que aí presidiu constituíram momentos de notável elevação religiosa, mas também estética, que muito impressionaram diocesanos e visitantes. O bispo não poupou esforços para, na medida das suas possibilidades (e, talvez, até um pouco além delas), adquirir obras de arte, tendo em vista a cuidadosa “encenação” do cerimonial, em que a música desempenhava um papel capital, num tempo em que a liturgia era assumida como uma forma de “arte total”, de grande impacto estético e emocional. Vem a propósito destacar, a título de exemplo, a solene celebração, em 1788, das exéquias do Príncipe da Beira, D. José, prematuramente falecido aos 27 anos – e ao qual Cenáculo
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estava ligado por laços profundos, enquanto confessor e preceptor. De acordo com o que registou no seu Diário, a frontaria da igreja encontrava-se decorada com as armas reais, bandeiras, representações de instrumentos marciais e inscrições latinas alusivas à ocasião. Acompanharam o rito dezasseis cantores, três “rabecões” (contrabaixos), duas flautas e dois baixões, sendo interpretadas as diversas lições e os correspondentes responsórios, mas com algumas particularidades: a segunda lição do primeiro Nocturno foi entoada por um religioso terceiro franciscano do convento de Santiago, de Viana do Castelo, de passagem por Beja, e as demais pelos frades do convento de São Francisco, desta cidade; a lição do segundo Nocturno, Homo natus, consistiu num dueto de nova composição; a lição do terceiro Nocturno, um solo. Na missa, cantou-se famosa Sequentia de Davide Perez, “muito bem desempenhada”, consoante o próprio Cenáculo. A capela em que se dispunha o coro da antiga colegiada, à ilharga da capela-mor, da banda da Epístola, e unida a esta por um arco, recebeu, em pleno século XIX, uma tribuna onde os membros da Casa Real assistiam à missa, aquando de visita a Beja. Foi utilizada por D. Maria II e D. Fernando II, e pelos seus filhos, em 1843; por D. Pedro V e pelo irmão D. João, 16.º Duque de Beja, em 1860; e por D. Carlos I, em 1893. Desapareceu após a proclamação da República. Por outro lado, com a extinção do convento de Nossa Senhora da Esperança, casa-mãe das religiosas (observantes ou descalças) da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, demolido em 1897, que ficava perto da igreja de São Salvador, esta recebeu parte do seu acervo, incluindo o corpo incorrupto de Madre Mariana da Purificação [S Lisboa, 1623 – X 1695] e o retrato funerário de Madre Maria Perpétua da Luz [S Beja, 1684 – X id., 1736], que se destacaram pelas virtudes místicas e faleceram com fama de santidade. Do convento de Nossa Senhora da Conceição, onde falecera, em 1892, a última religiosa aí residente, vieram outras alfaias. No pavimento da entrada da igreja permanece ainda a sepultura, com a inscrição latina já muito apagada, do P.e Manuel Feio, Doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra, o qual, devido ao grande prestígio de que gozava, era conhecido pelo título de Mestre Manuel; sendo pároco desta igreja, promoveu a canonização de São Sisenando, natural de Pax Iulia, promulgada em 1597, com honras de mártir, pelo papa Clemente VIII, e obteve do arcebispo de Córdova, D. Francisco Reinoso, em 1601, uma relíquia do mesmo. O altar de Nossa Senhora do Amparo possui uma cripta em que está sepultado D. Manuel Pires de Azevedo Loureiro, bispo de Beja entre 1833 (confirmado pela Santa Sé apenas em 1844) e 1848, figura controversa do regime liberal, devido à sua intervenção na extinção das Ordens Religiosas e no afastamento do clero tradicionalista. Em 1922, por iniciativa de D. José do Patrocínio Dias, a catedral foi transferida para a igreja de Santiago Maior, sede da paróquia homónima, mantendo a igreja de São Salvador
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o seu estatuto paroquial. Não obstante a deslocação das insígnias catedralícias, o edifício continuou a atesourar um importante conjunto de obras de arte, entre pinturas, esculturas e exemplares das artes decorativas.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
Évora, Biblioteca Pública de Évora, Cód. CXXIX/1-19, Diário de Frei Manuel do Cenáculo; Beja, Arquivo Municipal, Fundo Mira, cx. 3, ms. n.º 66, JOSÉ INÁCIO DE MIRA, Igrejas e Conventos de Beja, 1867; TÚLIO ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Entre o Céu e a Terra. Arte Sacra da Diocese de Beja [Catálogo da Exposição, Beja, Pousada de São Francisco, 1998-1999 – Lisboa, Panteão Nacional, 2000-2001], I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000; ÁLVARO DUARTE DE ALMEIDA & DUARTE BELO (dir. de), Portugal – Património. Guia-Inventário, IX, Beja-Faro, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Retábulos na Diocese de Beja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Face à Eternidade
RUI VIEIRA NERY
A 13 de Novembro de 1868, morria em Paris Gioacchino Rossini, o patriarca dos compositores italianos. Rossini deixara de compor ópera desde a estreia de Guilherme
Tell, em 1829, e a partir de então passara a escrever apenas obras de circunstância – com as grandes excepções do Stabat Mater, de 1832 (revisto em 1841), e da Petite Messe
Solennelle, de 1864 (revista em 1867) –, mas continuava a ser a referência mais emblemática da música italiana em toda a Europa. Para Giuseppe Verdi, apesar de ele próprio estar já então plenamente consagrado internacionalmente pelas suas óperas, a morte do autor d’ O Barbeiro de Sevilha representava a perda irreparável de um símbolo nuclear da identidade cultural da Itália recém-unificada, que lutava ainda por impor no âmbito europeu a sua nova imagem como nação. Com o apoio do editor Tito Ricordi, decidiu, por conseguinte, propor um projecto de composição colectiva de uma Missa de Defuntos à memória de Rossini, que deveria juntar os mais respeitados compositores italianos em actividade, cabendo a cada um deles a autoria de uma secção, segundo um plano formal e de tonalidades preestabelecido. Os compositores escolhidos foram, pela sequência das secções de que se encarregaram, Antonio Buzzola, Antonio Bazzini, Carlo Pedrotti, Antonio Cagnoni, Federico Ricci, Alessandro Nini, Raimondo Boucheron, Carlo Coccia, Gaetano Gaspari, Pietro Plataina, Enrico Petrella e Teodulo Mabellini, além do próprio Verdi, que se encarregou da escrita da última secção da partitura, um Libera me para Soprano solo e coro. O projecto – com pormenores de idealismo romântico extremo na sua concepção – previa que a obra fosse executada uma única vez em Bolonha, numa sessão solene em memória de Rossini, e que a partitura ficasse, a partir de então, selada e depositada como monumento fúnebre nos arquivos do Liceo Musicale daquela cidade. Os diversos compositores cumpriram, todos eles, o seu compromisso e entregaram as respectivas secções no prazo combinado, mas logo em seguida se levantaram obstáculos intransponíveis à produção da obra, em particular a recusa do empresário da Ópera
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de Bolonha em ceder, para a execução, os efectivos musicais do seu teatro, alegando que isso o obrigaria a cancelar uma parte da temporada já anunciada e vendida. Chegou a aventar-se ainda a possibilidade de uma estreia no Scala de Milão, em 1871, mas tampouco esta hipótese veio a concretizar-se, e as várias partituras parcelares foram por fim devolvidas aos respectivos autores. A estreia integral desta peça viria a ter lugar apenas a 11 de Novembro de 1988, em Stuttgart, sob a direcção de Helmut Rilling. Verdi ficou manifestamente frustrado pelo fracasso da iniciativa – e é possível que também pelo nível musical muito desequilibrado resultante da colagem de trabalhos de autores tão desiguais. Quando o director do Conservatório de Milão, Alberto Mazuccato, lhe escreveu elogiando entusiasticamente o seu Libera me, respondeu mesmo que pensava agora na possibilidade de compor, ele próprio, a totalidade do
Requiem. Entretanto, a 22 de Maio de 1873 dava-se a morte, aos 89 anos, do poeta Alessandro Manzoni, o autor do romance I promessi sposi [Os noivos], que, desde a sua edição original, em 1827, fora aclamado como a obra-prima absoluta da nova literatura italiana. Para esta consagração contara, por um lado, o contexto histórico do argumento, passado no início do século XVII, na Lombardia sob o domínio espanhol e descrevendo o conflito entre dois amantes locais de extracção popular (Renzo e Lucia) e o tirano Don Rodrigo: para o imaginário romântico italiano, era uma metáfora evidente da opressão contemporânea do Norte de Itália pelo ocupante austríaco e, como tal, uma poderosa bandeira de luta nacionalista. Mas ao mesmo tempo, numa Itália em que a própria língua se encontrava ainda subdividida em inúmeros dialectos e usos regionais, o facto de Manzoni recorrer ao dialecto toscano (a edição definitiva de 1840 acentuaria ainda mais este elemento, expurgando o texto original de outras influências dialectais) contribuíra decisivamente para a adopção deste dialecto como matriz de uma língua italiana de uso erudito, capaz de servir de expressão linguística catalisadora dos anseios de unificação política dos liberais italianos oitocentistas. Verdi lera I promessi sposi aos dezasseis anos e ficara fascinado, como a maioria dos adolescentes italianos da sua geração. Quase cinco décadas mais tarde, escreveria ainda: “O meu entusiasmo pelo livro permanece inalterado. Pelo contrário, com o conhecimento alargado da humanidade, o meu entusiasmo aumentou. E isto porque é um livro verdadeiro, tão verdadeiro como a própria verdade. Ah, se ao menos os artistas pudessem entender esta verdade! Então não teríamos nem músicos do futuro, nem músicos do passado; nem pintores veristas, nem realistas, nem idealistas; nem poetas clássicos, nem românticos; poetas sim, mas apenas verdadeiros poetas, verdadeiros pintores, verdadeiros músicos!”
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Quando a Condessa Clara Maffei o levou por fim, em 1868, a casa do poeta, para o apresentar, escreveria depois a esta sua amiga dilecta, ao regressar da visita: “Que posso eu dizer-lhe sobre Manzoni? Como descrever a sensação extraordinária e indefinível que a presença deste Santo, como lhe chama, produziu em mim? Teria ajoelhado diante dele se se pudesse adorar um homem. Dizem que não se deve fazer tal coisa, mas há muitos outros que adoramos nos altares e que não têm nem os dotes, nem as virtudes de Manzoni... Quando o vir, beije-lhe a mão por mim e diga-lhe de toda a minha veneração.” Compreende-se assim que a morte de Manzoni o tenha deixado profundamente abalado. Perturbado, não sentiu coragem de assistir ao funeral, mas nessa mesma noite escreveria de novo a Clara Maffei: “Não estive presente, mas poucas pessoas terão estado esta manhã mais tristes e mais comovidas do que eu. Agora, tudo acabou! E com ele acaba a mais pura, a mais santa, a maior das nossas glórias. Li todos os jornais. Nenhum fala dele adequadamente. Muitas palavras – nenhuma que seja verdadeiramente sentida. E até não faltam ataques. Mesmo a ele! Que raça miserável que nós somos!” Possivelmente a exemplo da iniciativa que tivera relativamente a Rossini, no início de Junho escreveu ao Presidente da Câmara de Milão, o Conde Giulio Belinzaghi, para lhe apresentar a proposta de compor um Requiem à memória de Alessandro Manzoni, que seria executado em Milão no primeiro aniversário da morte do poeta. Se o município assumisse os custos da execução, o compositor não só abdicaria de qualquer remuneração, como também cobriria ele próprio as despesas de cópia da partitura e dos materiais de coro e orquestra. Belinzaghi concordou e Verdi lançou-se ao trabalho. A 25 de Junho partia com a mulher, Giuseppina Strepponi, para Paris, onde se encerraria no Hotel de Rade para mergulhar exclusivamente no trabalho de composição. Levava consigo o Libera me que já compusera para o Requiem a Rossini e que agora voltaria a utilizar como base do trabalho, quase sem alterações, e sabemos também que, no processo de concepção da obra no seu todo, terá então analisado em profundidade as partituras das Missas de Defuntos de Mozart, Cherubini e Berlioz, como paradigmas do género. A 10 de Abril de 1874, a partitura estava já pronta e entregue ao editor Ricordi. Mesmo assim, havia ainda múltiplos problemas de ordem prática a resolver, alguns dos quais hoje difíceis de conceber. Primeiro, havia que encontrar os solistas ideais e convencê-los a participar no projecto a título gracioso. Ao enviar uma carta de convite ao meio-soprano Maria Waldmann, que fora a intérprete do papel do Amneris na estreia italiana de Aida, explicava-lhe: “Não ganhará com isto nem reputação, nem dinheiro; mas, visto que será uma coisa que fará história – certamente não pelo mérito da música,
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mas pelo homem a quem é dedicada –, penso que seria bonito que um dia a história pudesse dizer – a 22 de Maio houve uma grande Missa de Requiem para assinalar o aniversário da morte de Manzoni, executada pelos Senhores...” Verdi fazia questão de que a estreia tivesse lugar numa igreja, e isso implicava licenças especiais de parte do Arcebispo de Milão, desde logo para que o texto da Missa de Defuntos segundo o ritopadrão gregoriano pudesse ser, a título excepcional, executado numa igreja milanesa, substituindo o rito ambrosiano, que era o uso oficial da Arquidiocese local. E havia igualmente que solicitar uma dispensa da hierarquia eclesiástica milanesa para que pudesse haver vozes femininas no templo, o que só veio a ser permitido com a obrigação de que tanto as coralistas como as solistas se vestissem a rigor de preto e cobrissem a cabeça com um véu. A própria escolha da igreja mais adequada levantava problemas, porque Verdi fazia questão de encontrar um espaço que não só fosse suficientemente vasto para acolher uma orquestra e um coro sinfónicos, como também tivesse condições acústicas excepcionais. Finalmente, tudo se resolveu da melhor maneira, e a estreia teve lugar na igreja de São Marcos, a 22 de Maio de 1874, com urna orquestra do 100 instrumentistas, um coro de 120 vozes, o Soprano Teresa Stolz, o meio-soprano Margarita Waldmann, o tenor Ormondo Maini, o baixo Giuseppe Caponi e o próprio Verdi na direcção. As intérpretes femininas cumpriram a obrigação da indumentária solene que lhes fora exigida e pediu-se ao público que se coibisse de aplaudir, mas o sucesso foi imenso. Três dias mais tarde, a 25, Verdi dirigia a primeira de mais três execuções em dias consecutivos, mas agora no Teatro alla Scala, onde as regras mudaram completamente: Stolz apareceu de vestido azul-celeste, e Waldmann de cor-de-rosa; a atmosfera geral era a de uma récita de Ópera de gala; o público aplaudiu freneticamente no final de cada secção e obrigou mesmo a bisar três dos andamentos. No final, Verdi foi agraciado com uma coroa de prata, mas tudo sugere que ele próprio terá preferido não continuar a associar-se a este ambiente tão alheio à sua intenção original ao compor a obra, e as duas récitas seguintes seriam regidas por Franco Faccio. A repercussão internacional da estreia não se fez esperar. Logo em seguida, como já estava previsto, Verdi foi para Paris, com o mesmo elenco de solistas, para dirigir uma série de apresentações da obra na Opéra-Comique. No ano seguinte, regressaria em meados de Abril à mesma cidade para oito novas execuções, agora no Théâtre des Italiens, sendo aí condecorado com a Comenda da Legião de Honra. A 15 de Maio, era a vez de uma récita monumental no Royal Albert Hall, de Londres, à frente de uma orquestra de 150 músicos e de um coro gigantesco de 1200 vozes, e seguir-se-iam apresentações na Ópera de Colónia e na Hofoper de Viena, onde o compositor seria
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mais uma vez condecorado, desta vez com a Ordem de Francisco José. Era a consagração europeia definitiva para o actor de Aida. No entanto, apesar deste sucesso esmagador, nem todas as vozes foram unânimes. No próprio dia da estreia, o compositor Hans von Bülow, paladino da vanguarda musical alemã, publicava um artigo em que escrevia: “Verdi, o omnipotente corruptor do gosto da Itália, alimenta a esperança de destruir os últimos restos da imortalidade de Rossini, que é uma coisa que o incomoda A sua mais recente ópera, em trajo eclesiástico, será apresentada, depois de uma saudação inicial e fictícia à memória do poeta, em três saraus, para admiração do mundo. Depois, acompanhada pelos seus solistas amestrados, irá a Paris, a Roma estética dos italianos.” E Cosima Wagner, depois de assistir com o marido a uma das récitas vienenses da obra, escreveria no seu diário – traduzindo, muito provavelmente, uma opinião partilhada por ambos – uma sentença tão fatal quanto sintética: “2 de Novembro de 1875. Ao sarau, o Requiem de Verdi; sobre isto, decididamente, o melhor é não dizer nada.” O próprio público inglês, no seu puritanismo vitoriano, não encheu a estreia londrina do Royal Albert Hall, apesar do sucesso do espectáculo junto dos espectadores presentes, e a crítica londrina dividiu-se, com algumas recensões entusiásticas, mas com o Morning Post, por exemplo, a declarar peremptoriamente: “Não há uma única melodia de que a nossa mente se possa aperceber que seja consonante com as palavras, e a subdivisão destas palavras em exclamações curtas e acutilantes, como uma série de ladridos e de urros, não é, por certo, indicativa de reverência.” Por todo o meio musical europeu, continuaria a debater-se apaixonadamente, não tanto o mérito musical intrínseco da obra, quanto a sua adequação ao texto sagrado e, em particular, ao contexto litúrgico. Para lá da recepção pública generalizadamente favorável, houve, contudo, também outras vozes insuspeitas que se ergueram imediatamente em favor da obra. A respeito da crítica violenta de Bülow, uma figura da dimensão de Brahms, por exemplo, declararia sem hesitação, após examinar a partitura: “Bülow disparatou por completo; só um génio poderia ter escrito uma semelhante obra-prima.” Na verdade, o próprio Hans von Bülow acabaria por renegar por completo a sua reacção inicial, ao ouvir pela primeira vez, anos mais tarde, uma execução do Requiem, ainda que tecnicamente pouco apurada, o que levaria mesmo a escrever, em Abril de 1892, ao compositor uma carta contrita, em que considerava a sua postura anterior uma “bestialidade jornalística”, alegando ter estado então “cego pelo fanatismo e por um preconceito ultrawagneriano” e pedindo agora a Verdi “a sua absolvição e o exercício do poder régio do indulto”. Particularmente interessante é a resposta de Verdi, reveladora de uma abertura de espírito no plano estético que importa citar de forma mais alongada. “Não há em si sombra de pecado
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e não vale por isso a pena falar nem de penitência, nem de absolvição. Se as suas opiniões mudaram, fez bem em mo dizer, ainda que eu não me tivesse atrevido a queixar-me. Quanto ao resto, quem sabe? Talvez Você tivesse razão na primeira instância. Em qualquer caso, a sua carta inesperada, vinda de um músico do seu valor e da sua posição no mundo da arte, deu-me grande prazer. E isto não por uma vaidade pessoal, mas porque demonstra que os artistas verdadeiramente grandes podem formular juízos sem preconceitos de escola, de nacionalidade ou de época. Se os artistas do Norte e do Sul têm tendências diferentes, muito bem, deixá-los ser diferentes! Cada qual deve manter as características peculiares da sua nação, como Wagner disse de forma muito feliz.” A polémica que se gerou em torno do carácter sacro ou profano do Requiem prolongar-se-ia até aos nossos dias e, em particular, reacendeu-se na viragem para o século XX, por ocasião da reforma de música litúrgica católica promulgada pelo Papa Pio X, em cujo âmbito a Missa de Defuntos de Verdi foi mesmo expressamente apontada pelo Vaticano como um exemplo a não seguir na composição sacra. Em relação a esta polémica, Giuseppina Strepponi, companheira do compositor, comentara já com extrema lucidez, logo no respectivo início: “Fala-se muito do espírito mais ou menos religioso de Mozart, Cherubini e outros. Por mim, digo que um homem como Verdi tem de escrever como Verdi, isto é, de acordo com a sua própria maneira de sentir e interpretar o texto. E, se as várias religiões têm um princípio e um desenvolvimento e se alternam e se modificam de acordo com a época e o país, então o espírito religioso tem de receber a marca do seu tempo e, certamente, a da personalidade do seu autor. Eu teria repudiado uma Missa de Verdi que tivesse sido copiada dos modelos A, B ou C.” Mas, independentemente da questão mais específica de saber se a obra se adequa ou não a uma função litúrgica, no sentido estrito, ou se a sua escrita musical releva ou não de convenções mais próximas da Ópera do que da tradição sacra anterior, vale a pena debater uma interrogação mais de fundo sobre o problema da sua religiosidade intrínseca. Será o Requiem uma verdadeira obra de fé, uma oração convicta pela misericórdia divina para com as almas chamadas ao Juízo Final, ou antes uma imensa meditação sobre a fragilidade da condição humana e sobre os anseios e os temores que nesta se contêm face à inevitabilidade da morte? Na opinião da mulher, católica devota, Verdi era essencialmente um ateu, e Giuseppina confessava mesmo ficar furiosa quando ele se definia a si próprio “não como um ateu declarado, mas como um crente com dúvidas”, apesar de nunca ter tido qualquer prática religiosa regular. Strepponi observava, de resto, a este respeito, com uma independência de espírito de assinalar na sua época: “Para algumas naturezas virtuosas, a fé em Deus
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é uma necessidade, mas há outras, igualmente perfeitas, que, muito embora observem rigorosamente todos os preceitos do mais elevado código moral, são mais felizes não acreditando em nada. Manzoni e Verdi! Estes dois homens que me alimentam o espírito – as minhas imperfeições e a minha ignorância, infelizmente, deixam-me incapaz de resolver um semelhante enigma tão obscuro.” Como liberal convicto, Verdi tomara certamente diversas posições políticas contrárias ao Vaticano no contexto dos conflitos ideológicos do Rissorgimento, e nas suas óperas há retratos impiedosos do fanatismo e da intolerância clericais – basta pensarmos nas denúncias frontais da crueldade do auto-de-fé n’O Trovador, do personagem caricato do frade sem vocação no Fra Melitone d’A Força do Destino, da figura sinistra do Grande Inquisidor no Don Carlos, ou do fanatismo dos sacerdotes egípcios na Aida. Mas nas mesmas óperas era também o autor de passagens de expressão religiosa de uma sinceridade comovente, desde o drama interior do Miserere da Leonora d’O Trovador à súplica sublime de La Vergine degli Angeli da Leonora d’A Força, e um personagem como o Padre-Guardião, desta última obra, é bem o retrato do sacerdote na sua personificação mais nobre, mais digna e mais austera. O que é indiscutível é que – abordado na óptica da fé interior ou na da simples observação da natureza humana – o quadro traçado pelo Requiem é de uma força expressiva e de uma dimensão espiritual a que ainda hoje o público de todos os quadrantes culturais não pode deixar de reagir com uma emoção profunda. Talvez por isso esta obra tenha protagonizado, de forma emblemática, um dos maiores dramas contemporâneos em 1943-44, quando 150 prisioneiros judeus do campo de concentração nazi de Theresienztadt (Terezin) o interpretaram por dezasseis vezes, no seu cativeiro, perante os demais reclusos e os respectivos guardas SS, sob a direcção do jovem maestro checo Raphael Schächter. Durante este período, a orquestra e o coro tiveram de ser refeitos por duas vezes, sempre que parte dos seus efectivos era enviada para os campos do extermínio, como acabaria por suceder ao próprio Schächter, que viria a morrer nas camaras de gás de Auschwitz. A música de Verdi, com a sua mensagem de esperança na salvação eterna dos oprimidos e de certeza do castigo para os opressores, deu corpo e voz ideais a uma espantosa afirmação de dignidade humana e de grandeza espiritual por entre as trevas da barbárie.
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Noites Luminosas
ALEXANDRE DELGADO
Crepúsculo Ao lado de nomes como Francisco de Lacerda, Luís Costa e Luís de Freitas Branco, António Fragoso pertence ao reduzido número de compositores portugueses que exploraram a linguagem impressionista nas primeiras décadas do século XX. O facto de ter morrido aos 21 anos, vítima da gripe pneumónica, torna tanto mais surpreendente a qualidade e o arejamento estético da sua produção que, além de obras para piano, obras para canto e piano e música de câmara, inclui o belo Nocturno que será ouvido neste concerto. Nascido perto de Cantanhede, no distrito de Coimbra, em 1897, Fragoso aprendeu música desde a infância e estudou piano com Ernesto Maia, enquanto fazia o liceu no Porto. Forçado pela família a frequentar o Curso Superior do Comércio, em 1914 interrompeu tais estudos para se dedicar exclusivamente à música. Nesse ano partiu para Lisboa, em cujo Conservatório Nacional encontrou professores que contribuíram para o seu alargamento de horizontes técnicos e estéticos: Marcos Garin em piano, Tomás Borba em harmonia, e Luís de Freitas Branco em leitura de partituras. Aí concluiu o curso de piano com 20 valores, três meses antes da sua morte prematura. O Nocturno é a única obra orquestral de António Fragoso, tendo sido terminada em Lisboa, em 1918. Trata-se de uma versão para orquestra do segundo nocturno para piano do autor, escrito em Lisboa em Outubro de 1917, cujo manuscrito tem a mesma epígrafe: “Dedicado ao meu Mestre Sr. Luís de Freitas Branco.” Com ela, Fragoso homenageava o professor, sete anos mais velho, que assinara em 1910 a primeira obra orquestral impressionista da música portuguesa, Paraísos Artificiais. Transposta um tom acima na versão orquestral (mi bemol maior em vez de ré bemol maior, uma tonalidade mais praticável), a obra destina-se a uma formação relativamente pequena, com duas flautas, dois oboés, dois clarinetes, dois oboés e corne inglês, dois fagotes, quatro trompas, harpa e cordas, tendo uma duração aproximada de nove minutos. Trata-se uma forma-canção (ABA) poética e evocativa, um “lento expressivo”
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que se torna mais veemente na secção central e que explora harmonias e coloridos de sabor impressionista com uma sensibilidade romântica.
Aurora Entre as 28 óperas de Verdi, figuram duas raras e magníficas incursões por outros géneros, aos quais também imprimiu o seu génio dramático: a música de câmara (Quarteto de Cordas, 1873) e a música sacra ( Requiem , 1869-1874). O ateísmo e o anticlericalismo do compositor não o impediram de criar, com este Requiem, uma das mais comoventes e impressionantes obras sacras do século XIX. Aquando da morte de Rossini em 1868, Verdi lançou a ideia de reunir 12 autores e compatriotas na composição de um Requiem à memória desse ilustre antecessor que contagiara toda a Península Italiana. Distribuídos os números segundo um plano preestabelecido, esse pot-pourri ficou concluído em 1869 mas, devido a vicissitudes várias, não chegou a ser estreado (só o seria em 1988). Do plantel de obscuros autores da Messa per Rossini, apenas o nome de Verdi ficou para a posteridade, tendo o seu
Libera me conclusivo sido muito elogiado pelo seu editor, Ricordi. Em 1873, a morte de Alessandro Manzoni – autor de I promessi sposi, herói literário da Itália unificada – levou Verdi a retomar esse trecho e a escrever os restantes de um requiem à memória do escritor, que seria estreado em Milão no primeiro aniversário da sua morte, 22 de Maio de 1874, na igreja de San Marco, com orquestra, coro e solistas do La Scala, sob direcção musical do autor. Da experiência como organista de igreja que tivera na infância e na adolescência, Verdi guardava uma atracção especial pela prece do “Libera me”. É possível (como indica Julian Budden) que já tivesse a intenção de compor um requiem quando escolheu esse texto que inclui recordações dos dois momentos mais marcantes da missa de defuntos, “Requiem aeternam” e “Dies irae”. Ao compor as secções precedentes, criou ligações temáticas que são uma linha de força desta partitura em que tudo parece convergir para a lancinante peroração final de soprano, coro e orquestra. Este requiem surgiu numa época em que a música sacra perdera – com honrosas e esporádicas excepções – a vitalidade que tivera nos séculos anteriores. A generalidade dos compositores italianos só escrevia missas em contextos específicos, académicos ou utilitários, usando contraponto arcaico nos coros, e bel canto nos solos. Depois da Missa
Solemnis, de Beethoven (1824), só uma obra poderia ter servido de exemplo à concepção dramática de Verdi (embora não seja certo que ele a conhecesse): a Grande Messe des
Morts, de Berlioz (1837).
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Então no apogeu das suas capacidades, Verdi estreara recentemente Don Carlos (1867) e Aida (1871). Antes do seu almejado retiro agrícola em Santa Ágata, esta incursão pela música sacra traduz uma necessidade de renovação, 15 anos antes da eclosão tardia de Otello e Falstaff. Verdi adoptou praticamente a mesma sucessão de textos e a mesma distribuição vocal da Messa per Rossini , usando quarteto de solistas, coro e uma orquestra semelhante à que apresentara em Don Carlos, com quatro fagotes e quatro trompetes extra fora de cena. Apesar de ter sido estreada numa cerimónia religiosa, a obra – pelo seu carácter, pelos meios que envolve e pela duração de hora e meia – destina-se mais às salas de concerto do que ao culto, e é nesses moldes que continua a ser ouvida até hoje. A emoção telúrica e a dramaturgia palpitante que o compositor imprimiu ao texto latino fazem dela aquilo que alguns consideram ser “a melhor ópera de Verdi”. A obra segue no essencial o rito romano da missa de defuntos e divide-se em sete números, o 1.º dos quais, Intróito (“Requiem aeternam”), nos prepara para a escala colossal desta interrogação do homem perante a morte, apresentando no limiar do audível as suas células melódicas primordiais. Depois do “Requiem aeternam” entoado pelo coro, o “Kyrie” é lançado, sucessivamente, pelos solistas como uma prece que levanta grandiosamente voo. Na Sequência (“Dies irae”), secção mais longa do requiem, concentra-se o poder terrífico do dramaturgo musical: a fúria divina abate-se com uma violência superior à de qualquer
requiem passado ou futuro e cimenta o fascínio hipnótico da obra. Ao longo de quase 40 minutos, Verdi explora contrastes extremos e palpitantes, com múltiplos solos vocais a corresponder ao texto na primeira pessoa, entre réplicas da ira divina. Em “Tuba mirum”, os quatro trompetes fora de cena somam-se aos metais para evocar as trombetas do juízo final; em “Mors stupebit”, o baixo faz interjeições petrificadas que prenunciam “la morte è il nulla”, do Iago de Otello; “Liber scriptum” é um vaticínio do mezzo ou contralto digno da Amnéris de Aida (e que substituiu aquilo que era originalmente uma fuga coral, aquando da estreia inglesa da obra no Albert Hall, em 1875). Depois de um reacender da ira divina, “Quid sum miser” (Adagio) junta soprano e tenor ao lamento do mezzo , sobre um fagote soluçante. Em “Rex tremendae majestatis”, a temível majestade divina é evocada pelos baixos, seguindo-se solistas, coro e orquestra a unir-se em súplica. Após um oásis de paz de soprano e mezzo em “Recordare”, o tenor tem o seu momento de bravura em “Ingemisco”, e o baixo atinge os cumes do Verdi mais tardio (anunciador de Puccini) em “Confuntatis maledictis”. Ouvida a última réplica do “Dies irae”, é pungente o efeito do “Lacrymosa” (baseado na melodia de um dueto
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originalmente pensado para a ópera Don Carlos), que começa no mezzo para depois reunir solistas, coro e tutti num fervoroso apaziguamento. O n.º 3, Ofertório, é mais intimista: quarteto solista e orquestra (reduzida) partem do doce balanço de “Domine Jesu Christe”, ganham energia em “Quam olim Abraham” (com modulações que prenunciam Otello) e atingem o cume expressivo em “Hostias et preces”, para depois fazer o caminho inverso, numa estrutura em palíndromo. Com o “Sanctus”, regressa o tutti: Verdi divide o coro e usa a orquestra completa num embrião de fuga, forma contrapontística a que o compositor era refractário por considerá-la académica, mas demasiado inescapável em música sacra. Neste caso, é uma engenhosa dupla fuga (ou seja, uma fuga com dois temas), da qual Verdi se evade para criar o contraste de “Pleni sunt coeli” e “Hosanna”. Segue-se um “Agnus Dei” de grande simplicidade, cuja melodia, cantada por soprano e mezzo sem acompanhamento, é uma alusão ao canto gregoriano em moldes bem verdianos. As três invocações do Cordeiro de Deus são retomadas pelo coro com orquestra, a segunda mais plangente, no modo menor. No estremecimento de luz do n.º 6 (“Lux aeterna”), em que a poalha orquestral só por instantes excede o pianíssimo, Verdi usa apenas três das vozes solistas. Excluiu o soprano – devido ao papel crucial que lhe reservava no “Libera me”. É nesse número final que Verdi mais se aproxima do mundo da ópera, conferindo um sentimento personalizado de angústia e ansiedade às palavras “Liberta-me, Senhor, da morte eterna”, que assentaria bem (como sugere Budden) à Leonora de La Forza del
Destino. Depois de uma derradeira eclosão do “Dies irae”, é com uma sensação de epifania que reouvimos a música de requiem aeternam cantada (meio-tom acima) por soprano e coro a cappella. Com as palavras “Libera me, Domine, de morte aeterna”, começa uma derradeira fuga, em que cada frase do coro é pontuada por chicotadas do pleno orquestral antes de mergulhar numa altaneira demonstração de suprema força e engenho contrapontístico, que torna ainda mais marcante o despojamento transido das páginas finais.
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Introitus
IIntróito
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Dá-lhes, Senhor, o repouso eterno
Et lux perpetua luceat eis.
E que sobre eles resplandeça a luz perpétua.
Te decet hymnus, Deus, in Sion,
A Ti são dirigidos hinos, em Sião,
et tibi reddetur votum in Jerusalem,
e a Ti são oferecidos votos em Jerusalém,
Exaudi orationem meam,
Ouve a minha oração;
ad te omnis caro veniet.
perante Ti comparecem todas as criaturas.
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Dá-lhes, Senhor, o repouso eterno,
Et lux perpetua luceat eis.
E que sobre eles resplandeça a luz perpétua.
Kyrie
Kyrie
Kyrie eleison.
Senhor, tende piedade;
Christe eleison.
Cristo, tende piedade;
Kyrie eleison.
Senhor, tende piedade.
Sequentia
Sequência
Dies irae, dies illa
Dia da ira, dia esse
olvet saeculum in favilla,
em que o universo será reduzido a cinzas,
teste David cum Sibylla.
assim predisseram David e Sibila.
Quantus tremor est futurus,
Qual não será o terror,
Quando judex est venturus
Quando vier o Juiz
Cuncta stricte discussurus.
Examinar com rigor as acções dos homens.
Tuba mirum spargens sonum
O som estridente da trombeta
per sepulcra regionum,
espalhar-se-á pelas sepulturas,
coget omnes ante thronum.
conduzindo a todos perante o trono.
Mors stupebit et natura
A morte e a natureza ficarão estupefactas
cum resurget creatura,
quando a criatura se reerguer,
judicanti responsura.
para responder perante o juiz.
Liber scriptus proferetur,
Será apresentado um livro escrito,
in quo totum continetur
em que estará contido tudo aquilo
unde mundus judicetur.
pelo qual o mundo será julgado.
Judex ergo cum sedebit,
Quando o juiz tomar assento,
quidquid latet apparebit,
tudo o que estiver oculto aparecerá,
nil inultum remanebit.
e nada ficará impune.
Quid sum miser tunc dicturus?
Pobre de mim, que direi então?
Quem patronum rogaturus,
A que protector rogarei,
cum vix justus sit securus?
quando só o justo esteja seguro?
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Rex tremendae majestatis,
Rei de tremenda majestade,
qui salvandos salvas gratis,
que salvas gratuitamente os eleitos,
salva me, fons pietatis.
salva-me, ó fonte de piedade.
Recordare, Jesu pie,
Recorda-Te, piedoso Jesus,
quod sum causa tuae viae,
de que sou a causa da Tua vinda,
ne me perdas illa die.
para que não me condenes nesse dia.
Quaerens me, sedisti lassus,
Ao procurares-me, sentaste-te cansado,
redemisti crucem passus,
para me redimires morreste na cruz,
tantus labor non sit cassus.
que tanto esforço não tenha sido em vão.
Juste judex ultionis,
Ó juiz que castigas com justiça,
donum fac remissionis
concede-me a remissão
ante diem rationis
no dia do julgamento.
Ingemisco tamquam reus,
Gemo como um réu,
culpa rubet vultus meus,
a culpa ruboriza-me as faces,
supplicanti parce, Deus.
suplico-Te que me poupes, ó Deus.
Qui Mariam absolvisti
Tu, que absolveste Maria
et latronem exaudisti
e deste ouvidos ao ladrão
mihi quoque spem dedisti.
concedeste-me também a mim a esperança.
Preces meae non sunt dignae
As minhas preces não são dignas
Sed tu bonus fac benigne,
Mas Tu que és bom sê benigno,
ne perenni cremer igne.
para que eu não arda no fogo.
Inter oves locum praesta
Conta-me entre os cordeiros
et ab haedis me sequestra
e separa-me dos pecadores
statuens in parte dextra.
colocando-me à Tua direita.
Confutatis maledictis,
Quando os malditos tiverem sido derrotados,
flammis acribus addictis,
condenados às chamas devoradoras,
voca me cum benedictis.
chama-me para junto dos bem-aventurados.
Oro supplex et acclinis,
Rogo-Te, suplicante e de joelhos,
cor contritum quasi cinis
com o coração contrito quase em cinzas
gere curam mei finis.
que me protejas quando chegar o meu fim.
Lacrimosa dies illa,
Dia de lágrimas esse,
qua resurget ex favilla
em que renasce das cinzas
judicandus homo reus.
o homem, para ser julgado.
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Huic ergo parce, Deus,
Tem pois piedade dele, ó Deus,
pie Jesu Domine,
piedoso Senhor Jesus,
Dona eis requiem.
Concede-lhe o repouso eterno.
Amen.
Ámen.
Offertorium
Ofertório
Domine Jesu Christe, Rex gloriae,
Senhor Jesus Cristo, Rei da Glória,
libera animas omnium fidelium defunctorum
livra as almas de todos os fiéis defuntos
de poenis inferni et de profundo lacu,
das penas do inferno e do abismo profundo.
Libera eas de ore leonis,
Livra-as da boca do leão,
Ne absorbeat eas tatarus,
Que o inferno não as engula,
ne cadant in obscurum,
que não caiam nas trevas.
Sed signifer sanctus Michael repraesentet eas in
Mas que o porta-estandarte São Miguel
lucem sanctam,
as conduza à luz santa,
Quam olim Abrahae promisiti et semini ejus.
Como em tempo prometeste a Abraão e à sua descendência.
Hostias et preces tibi, Domine, laudis offerimus,
Oferecemos-Te, Senhor, hóstias e louvores,
Tu suscipe pro animabus illis
Aceita-os pelas almas daqueles
quarum hodie memoriam facimus,
cuja memória hoje evocamos.
Fac eas, Domine, de morte transire ad vitam,
Faz, Senhor, com que passem da morte à vida,
Quam olim Abrahae promisisti et semini ejus.
Como em tempo prometeste a Abraão e à sua descendência.
Sanctus
Sanctus
Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus, Deus
Santo, Santo, Santo, é o Senhor
Sabaoth.
Deus dos Exércitos.
Pleni sunt coeli et terra gloria tua.
O céu e a terra estão cheios da Tua glória.
Hosanna in excelsis.
Hosana nas alturas.
Benedictus qui venit
Bendito aquele que vem
in nomine Domini.
em nome do Senhor.
Hosanna in excelsis.
Hosana nas alturas.
Agnus Dei
Cordeiro de Deus
Agnus Dei,
Cordeiro de Deus,
qui tollis peccata mundi,
que tirais os pecados do mundo,
donna eis requiem.
dá-lhes repouso.
Agnus Dei,
Cordeiro de Deus,
qui tollis peccata mundi, donna eis requiem
que tirais os pecados do mundo,
sempiternam.
dai-lhes o repouso eterno.
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Communio
Comunhão
Lux aeterna luceat eis, Domine,
Que a luz eterna resplandeça sobre eles
cum Sanctis tuis in aeternum,
com os Teus santos para sempre,
quia pius es.
porque Tu és piedoso.
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Dá-lhes, Senhor, o repouso eterno
Et lux perpetua luceat eis.
E que sobre eles resplandeça a luz perpétua.
Cum Sanctis tuis in aeternum,
Com os teus Santos para sempre,
quia pius es.
porque Tu és piedoso.
Responsorium
Responsório
Libera me, Domine, de morte aeterna,
Liberta-me, Senhor, da morte eterna,
in die illa tremenda,
nesse dia tremendo,
quando coeli movendi sunt et terra
em que os céus e a terra serão revolvidos
dum veneris judicare saeculum per ignem.
e Tu virás julgar o mundo pelo fogo.
Tremens factus sum ego et timeo
Por isso estou a tremer e temo
dum discussio venerit atque ventura ira,
até que o julgamento chegue e a ira venha,
quando coeli movendi sunt et terra.
quando os céus e a terra forem revolvidos.
Dies illa, dies irae,
Dia da ira, dia esse
calamitatis et miseriae,
de calamidade e de miséria,
dies magna et amara valde,
dia por certo grande e amargo,
dum veneris judicare saeculum per ignem.
em que virás julgar o mundo pelo fogo.
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Dá-lhes, Senhor, repouso etermo
Et lux perpetua luceat eis.
E que a luz perpétua brilhe sobre eles. Tradução: Rui Vieira Nery
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Cristiana Oliveira Soprano
Natural de Braga, é licenciada em Educação pelo Instituto Piaget e em Canto pela Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto, nas classes dos professores Oliveira Lopes e Margarida Reis. Prosseguiu os estudos em Itália com Gabriella Morigi e, actualmente, trabalha com Palmira Troufa e Jaime Mota. Em 2010, foi aceite no curso intensivo do Estúdio de Ópera de Nova Iorque, onde interpretou o papel de Yaroslavna em Prince Igor, de Borodin. Apresentou-se em vários recitais de Lieder em Portugal, Espanha, Itália e Estados Unidos da América, sobressaindo com a interpretação das quatro últimas canções de Richard Strauss. Recentemente, estreou o ciclo Quatro canções para Inês, de António Chagas Rosa. Foi solista em
Requiem, de Fauré (direcção de Jorge Matta), Requiem, de Mozart (direcção de José Ferreira Lobo); Oratória de Natal, de Saint-Saens (direcção de Toby Hoffman), e Requiem, de Bomtempo (direcção de Vítor Matos). Em Ópera, interpretou Ivette, em La Rondine, de Puccini, no Teatro Nacional de São Carlos (direcção de José Miguel Esandi); Nita, na zarzuela Los Gavilanes, no mesmo Teatro (direcção de Miguel Ortega); Violetta Valery, em La Traviata, de Verdi, no Festival de Musica de Sant Pere Sallavinera, em Barcelona (direcção de Ana Belén Gómez). Em 2011, obteve uma Menção Honrosa no Concurso Nacional de Canto Luísa Todi. Em 2012, ganhou o 1.º Prémio no XIV Concurso Internacional de Interpretação do Estoril. Em 2013, alcançou o Prémio Especial Concerto a Milano, no Concurso Internacional de Canto Maria Malibran, de Milão.
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Ana Ferro Meio-soprano
Iniciou os estudos musicais no Conservatório Nacional de Lisboa, em Flauta transversal, e na Escola de Música de Nossa Senhora do Cabo, de Linda-a-Velha, em Canto. Frequentou a Guildhall School of Music and Drama, em Londres, onde concluiu o Bachelor in Music with Honours em Canto, a que se seguiu fecundo estágio no Flanders Operastudio, na Bélgica. Aperfeiçoou-se em cursos e masterclasses com Claudio Desderi, Tom Krause, João Paulo Santos, Lawrence Foster, Graham Johnson, Ann Murray, Pietro Rizzo, Laura Sarti, Emma Kirkby e Enza Ferrari, entre outros. Interpretou Dinah em Trouble in Tahiti, de Bernstein (Spectra Ensemble, Schouwburg de Roterdão); Cinthia, em As Taças de Hymineu (Estúdio de Ópera de Sintra); Segunda Dama, em A Flauta
Mágica, de Mozart (Ópera do Castelo); Médica, em Banksters, de Nuno Côrte-Real (estreia absoluta); Suzy/Lolette, em La Rondine, de Puccini; Maddalena em Il Viaggio a Reims, de Rossini (Teatro Nacional de São Carlos); Suzuki, em Madama Butterfly, de Puccini (Coliseu do Porto, Orquestra do Norte); e Carmen, de Bizet (no ciclo Opera Lovers Barcelona). Trabalhou com os maestros Filip Rathé, Lawrence Renes, José Miguel Esandi, José María Moreno, Martin André, Armando Vidal, Rui Pinheiro, José Ferreira Lobo, José Manuel Pinheiro, António Vassalo Lourenço, Jan Wierzba, Yi-Chen Lin, Pedro Neves e João Paulo Santos. Recentemente, apresentou-se, com o ensemble l’Avventura, no Festival de Música Antiga de Brighton (gravado e transmitido para BBC Radio 3), interpretando Vilancicos e Romances Portugueses do Século XVII, e com o Grupo Johann Sebastian Bach, no VIII Festival de Música Antiga dos Açores, interpretando o Magnificat, de Carl Philipp Emanuel Bach, e a Cantata Ein hoher Tag kömmt, Gottfried August
Homilius.
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Vicente Ombuena Tenor
Natural de Valência, ganhou em 1988 a XXVI edição do Premio Internacional de Canto Francisco Viñas, assim como o galardão outorgado por Plácido Domingo ao melhor tenor. Após dois anos de intenso labor no Staatstheater, de Mainz, estreou-se no Teatro alla Scala, de Milão, com a ópera
Don Pasquale, sob a direcção de Riccardo Muti. Além de Espanha e Portugal, tem cantado em muitos países – Canadá, Chile, China, Estados Unidos da América, França, Israel, Reino Unido, República da África do Sul e Suécia –, sob a direcção de maestros como Claudio Abbado, Daniel Baremboim, Riccardo Chailly, Sir Colin Davis, Giuseppe Sinopoli, Jesús López-Cobos ou Rafael Frühbeck de Burgos. Intérprete de vasta discografia, distinguem-se, entre as gravações que efectuou, Cristoforo Colombo, de Franquetti; La Fanciulla del West, Gianni Schicchi e Turandot, de Puccini; Bohemios, de Vives;
Requiem, de Verdi; La Bien Amada, de Padilla; La Traviata, de Verdi; Babel 46, de Montsalvatge; Tannhauser, de Wagner; Gaudí, de Guinjoan; e La Vida Breve, de Manuel de Falla.
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Rui Silva Barítono
Natural da Póvoa de Varzim, concluiu a licenciatura do Curso Superior de Canto Teatral no Conservatório Superior de Música de Gaia, na classe da professora Fernanda Correia. Aperfeiçoou os conhecimentos com o maestro Marc Tardue. É docente de Canto na Escola de Música da Póvoa de Varzim. Apresentou-se, como solista, em, entre outras obras, L’Enfant et les Sortilèges, Ravel (Fauteuil);
La Serva Padrona, de Pergolesi (Uberto); El Gato con Botas, de Montsalvatche (Rei); Bastien und Bastienne (Colas), A Flauta Mágica (Sarastro) e Don Giovanni, de Mozart (Leporello); Carmen, de Bizet (Morales, Escamillo); Sete Pecados Mortais, de Weill (Father); O Trovador, de Verdi (Ferrando);
Amahl e os Visitantes da Noite, de Menotti (Balthazar); O Barbeiro de Sevilha, de Rossini (Fiorello, Ufficiale); Amor de Perdição, de Arroyo (Tadeu de Albuquerque); Aladino e a Lâmpada Mágica, de Rota (L’Orafo, Il Genio della Lampada); Gianni Schicchi, de Puccini (Simone); A Coragem e o
Pessimismo, de Salgueiro (Pessimista). No campo da Oratória, destacou-se em Missa da Coroação e Requiem, de Mozart; Requiem, de Bomtempo; Requiem, de Donizetti; Magnificat, de Pergolesi; Magnificat, de Bach; Stabat Mater, de Dvorák; Missa op. 147, de Schumann; Te Deum, de Bruckner; e Via Crucis, de Liszt. Tem cantado sob a direcção de Mário Mateus, Lawrence Golan, Artur Pinho, António Vassalo Lourenço, Jiri Málat, António Ferreira dos Santos, António Saiote, Miramontes Zapata, Nicola Giusti, Ferreira Lobo, Rui Massena e Marc Tardue.
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Orquestra do Norte
Sediada em Amarante, a Orquestra do Norte (ON) concretiza, desde 1992, o projecto de descentralização da cultura musical, apresentado pela Associação Norte Cultural, vencedora do primeiro concurso nacional para a criação de orquestras regionais, instituído pelo Estado português nesse ano. Com a titularidade de José Ferreira Lobo, tem levado a cabo um trabalho verdadeiramente pioneiro e inédito, tendo-se afirmado no panorama da música erudita, sendo hoje uma instituição reconhecida, nacional e internacionalmente. Os objectivos básicos pelos quais sempre se pautou a sua actividade passam pela criação de novos públicos, pelo apoio à música e aos músicos portugueses e pela constante renovação do repertório. Vinte e dois anos depois, estes critérios continuam a ser fundamentais para a instituição. Agente de transformações na gestão cultural do nosso país e criadora de um novo paradigma musical, desenvolve uma intensa actividade com temporadas regulares de norte a sul do país. Realizou mais de 3000 espectáculos em mais de uma centena de lugares. Apresenta-se ainda com regularidade em Espanha, França e Alemanha. Consciente da importância que representam o aumento e a diversificação da oferta artística qualificada no desenvolvimento cultural da população, no alargamento de públicos e na formação do gosto, a Orquestra do Norte valorizou as obras mais representativas dos grandes compositores da história da música. Servindo o grande repertório orquestral, desde o Barroco até ao presente, dá especial atenção à difusão da música portuguesa. João de Sousa Carvalho, Luís de Freitas Branco, Francisco Lacerda, Corrêa de Oliveira e Joly Braga Santos foram alguns dos compositores portugueses abordados.
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Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Criado em condições de efectividade em 1943, sob a direcção de Mario Pellegrini, entre 1962 e 1975 colaborou com a Companhia Portuguesa de Ópera (Teatro da Trindade), com a qual se deslocou à Madeira, Açores, Angola e Oviedo (1965), e obteve o Prémio de Música Clássica, conferido pela Casa da Imprensa. Participou em estreias mundiais de Lopes-Graça (D. Duardos e Flérida) e Victorino d’Almeida (Canto da Ocidental Praia). A profissionalização do Coro foi consumada em 1983, sob a direcção de Antonio Brainovitch. A plena afirmação artística do conjunto será creditada a Gianni Beltrami, em 1985. Nesta fase, assinalam-se Oedipus Rex (Stravinski); Ascensão e Queda da Cidade
de Mahagonny (Weill); Kiú (De Pablo); L’Enfant et les Sortilèges (Ravel); e Dido and Aeneas (Purcell). Registe-se a participação em Grande Messe des Morts (Berlioz), em Turim, a convite da RAI. Depois da morte de Gianni Beltrami, João Paulo Santos assumiu a direcção, constituindo-se como o primeiro português no cargo em toda a história do Teatro Nacional de São Carlos. Sob a sua responsabilidade, registaram-se êxitos, como Mefistofele (Boito); Blimunda e Divara (Corghi); Sinfonia
n.º 2 (Mahler); Die Schöpfung (Haydn); Faust e Requiem (Schnittke); Perséphone e Le Rossignol (Stravinski); Evgueni Oneguin (Tchaikovsky); Les Troyens (Berlioz); Missa Glagolítica (Janáãek);
Tannhäuser e Die Meistersinger von Nürnberg (Wagner); e Le Grand Macabre (Ligeti). Com o Requiem, de Verdi, o Coro deslocou-se a Bruxelas (Europália, 1991). No âmbito da Expo’98, actuou no concerto de encerramento. O Coro tem sido dirigido por prestigiados maestros estrangeiros, nomeadamente Antonino Votto, Tullio Serafin, Vittorio Gui, Carlo Maria Giulini, Oliviero de Fabritiis, Otto Klemperer, Molinari-Pradelli, Franco Ghione, Alberto Erede, Alberto Zedda, Georg Solti, Nello Santi, Nicola Rescigno, Bruno Bartoletti, Heinrich Hollreiser, Richard Bonynge, García Navarro, Rafael Frühbeck de Burgos, Franco Ferraris, James Conlon, Harry Christophers, Michel Plasson e Marc Minkowski, entre outros. Também foi dirigido pelos mais importantes maestros portugueses, com relevo especial para Pedro de Freitas Branco.
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Giovanni Andreoli Direcção coral
Estudou composição, piano, música coral, direcção de coro, flauta e percussão. Iniciou, muito jovem, a actividade no âmbito teatral, primeiro como co-repetidor, depois como director dos estudos musicais, finalmente como responsável pela preparação musical das companhias de canto. Foi maestro substituto em importantes teatros italianos e festivais líricos (Rossini Opera Festival, Torre del Lago, Maggio Musicale Fiorentino, etc.). Tem desempenhado as funções de maestro de coro em importantes instituições, como a RAI, de Milão, o Teatro la Fenice, de Veneza, o Teatro Carlo Felice, de Génova, e a Arena, de Verona. De 2004 a 2008, foi maestro titular do Coro do Teatro Nacional de São Carlos de Lisboa, cargo ao qual regressou na temporada de 2010-2011 – nele permanecendo. Colaborou com a Biennale Musica di Venezia, onde assegurou a estreia mundial de obras de autores como Guarnieri, De Pablo, Clementi, Manzoni ou Nono. Em 1996, principiou um intenso labor como director de orquestra, interpretando, nomeadamente, Carmina Burana, de Orff, e Petite
Messe Solennelle, de Rossini, com os recursos artísticos do Teatro La Fenice, de Veneza. No ano seguinte, dirigiu a Petite Messe Solennelle de Rossini no Teatro Municipal de São Paulo. Com o coro do Teatro La Fenice, realizou o projecto L’Esperienza Corale del 900 Italiano, com músicas di Dallapiccola, Rota, Petrassi. Em 1998, dirigiu L’Elisir d’Amore, de Donizetti, em Reiquiavique,
L’Incoronazione, de Mozart, e a Nelson Messe, de Haydn, em São Paulo. Dirigiu igualmente a Via Crucis, de Liszt, com o ensemble da Fenice no Festival di Orvieto. À frente do mesmo ensemble, retomou a Carmina Burana e dirigiu obras de Remacha e Falla, o Dies Irae, de Fellegara, e Les
Noces, de Stravinsky, no Festival de Granada. A convite do Festival Klangbogen Wien, dirigiu Otello, de Rossini, no Theater an der Wien, com a Orquestra Sinfónica de Varsóvia. No mesmo ano, dirigiu
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o Coro e a Orquestra del Teatro La Fenice numa primeira execução, em tempos modernos, da
Missa Amabilis e da Missa Dolorosa, de Caldara. Em 1999, dirigiu La Bohème, de Puccini, no Teatro Grande di Brescia e em Lanciano, com a Orchestra Giovanile Italiana, e a Messa in Do, de Beethoven, em Porto Alegre. Dirigiu, seguidamente, os Archi della Scala e o Coro do Teatro La Fenice num programa de música sacra em Brescia, Il Barbiere di Siviglia, de Rossini, no Teatro degli Italiani em Gardone Riviera, Una Cosa
Rara, de Martin y Soler, no Teatro Goldoni de Venezia, com o Coro e a Orquestra do Teatro La Fenice. Dirigiu igualmente as massas corais do Teatro Carlo Felice, de Génova, em numerosos concertos que abrangiam repertório do sacro ao musical e às músicas de filmes. Como maestro titular do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, dirigiu programas dos autores portugueses mais significativos. Possui vasta discografia, com destaque para Orfeo Cantando... Tolse, de Guarnieri (gravada no Auditorium RAI, de Florença, em 1996), e Carmina Burana (gravada com o Coro e a Orquestra do Teatro La Fenice, de Veneza).
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José Ferreira Lobo Direcção musical
Iniciou a actividade profissional, em 1979, como maestro director da Camerata do Porto, que fundou com Madalena Sá e Costa. Com a presença de solistas prestigiados internacionalmente, apresentou-se em inúmeros concertos, no país e no estrangeiro. Em 1992, fundou a Associação Norte Cultural e a Orquestra do Norte, de que é maestro titular e director artístico. Colaborou com Krisztof Penderecki, José Carreras, Julia Hamari, Régis Pasquier, Katia Ricciarelli, Patricia Kopatchinskaya, Michel Lethiec, Eteri Lamoris, António Rosado, Dame Moura Linpany, Svetla Vassileva, José de Oliveira Lopes, Vincenzo Bello e Fiorenza Cossotto. De entre outros grandes marcos da sua carreira, salienta-se a direcção de ópera e concerto na África do Sul, Brasil, Alemanha, China, Coreia do Sul, Chipre, Espanha, Estados Unidos da América, Egipto, França, Holanda, Inglaterra, República Checa, Eslováquia, Lituânia, Itália, Letónia, México, Polónia, Roménia, Rússia, Suíça, Turquia, Colômbia e Venezuela, colaborando com orquestras de renome como: Manchester Camerata, Orquestra Sinfónica Nacional da Lituânia, Orquestra de Cannes, Orquestra Sinfónica da Galiza, Orquestra Sinfónica de Izmir, Orquestra Filarmónica Checa, Orquestra Sinfónica de Istambul, Orquestra CRR de Istambul, Orquestra da Rádio Televisão de Pequim, Orquestra Sinfónica do Teatro Nacional Claudio Santoro, Orquestra da Rádio Nacional da Holanda, Orquestra Sinfónica do Estado do México, Orquestra Sinfónica da Universidade de Nuevo León, Filarmónica Artur Rubinstein – Lodz, Orquestra Hermitage de São Petersburgo, Orquestra Sinfónica de Zurique – Tonalle, Sinfonieta Eslovaca, Sinfonia Varsóvia, Orquestra Filarmónica de Montevideu, Orquestra Nacional de Atenas e os Seoul Classical Players. José Ferreira Lobo apresentou-se em algumas das mais importantes salas de espectáculo do mundo, nomeadamente: Filarmonia de Munique; Tonhale de Zurique; Ópera Nacional do Cairo;
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Centro Cultural de Hong Kong; Centro Cultural de Pequim; Teatro Solis, de Montevideu; Teatro Claudio Santoro, de Brasília; Teatro Teresa Carreño, de Caracas; Filarmonia de Vilnius; Sala Smétana, de Praga; e Hermitage, de São Petersburgo. Interpretou ainda música sacra na igreja da Madeleine, em Paris, na catedral de Catânia (Festival Bellini) e na igreja de Orsanmichele, em Florença.
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No Âmago da Conservação da Natureza
PEDRO ROCHA Director do Departamento de Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo
Em 2011, iniciou-se uma nova etapa no Festival Terras sem Sombra. Corria então a sua 7.ª edição, e um novo tema foi incorporado: a biodiversidade. O desafio então lançado pela coordenação do Festival partia de um conceito simples – associar uma acção de biodiversidade a cada um dos concertos itinerantes do FTSS, educando, sensibilizando e actuando em prol da natureza. Este conceito não podia ser mais feliz, pois à diversidade artística e cultural que caracteriza o festival (o qual percorre o património edificado da Diocese de Beja, ano após ano, com um repertório musical inovador e diverso), associou-se a diversidade da natureza viva ou, querendo ser mais exigentes no conceito de biodiversidade, segundo a International Union for Conservation of Nature, a variedade entre os organismos vivos – animais, plantas, os seus habitats e genes, de todas as origens, incluindo todo o tipo de ecossistemas terrestres e aquáticos e os complexos ecológicos dos quais fazem parte. Neste conceito, mais amplo, é incluída a diversidade intra-específica, interespecífica e dos ecossistemas. De acordo com as premissas que ponderamos, foi estabelecido um Acordo de Colaboração entre o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, assinado em 11 de Janeiro de 2011, em Mértola, que tem por objecto (Cláusula 1.ª) a “criação de um quadro institucional para o desenvolvimento de actividades de cooperação que reforcem os interesses mútuos das duas instituições, particularmente nas áreas de cruzamento do património natural e do património cultural e da associação dos monumentos, religiosos e outros, à salvaguarda e à dinamização dos valores naturais e culturais”. Desde 2011, foram desenvolvidas mais de 20 iniciativas, vinculadas aos locais dos concertos – Sines, Santiago, Grândola, Vidigueira, Beja, Almodôvar, Moura, Castro Verde –, mas propiciando uma grande variedade de temas, levando as problemáticas da ecologia, da biologia, da paisagem e da biodiversidade ao público que acompanha o Festival e, de um modo mais lato, à sociedade baixo-alentejana. < Acção de recolha de lixo, em parceria com o projecto MARLISCO, Marine Litter in European Seas: Social Awareness and Co-Responsibility, na Lagoa da Sancha (Sines).
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O Alentejo é a maior das regiões portuguesas, ocupando um terço do território português; no entanto, a sua população representa pouco mais de 7% dos habitantes de Portugal. A baixa densidade populacional, associada a um conjunto de actividades de cariz tradicional de base agro-silvo-pastoril, permitiu a manutenção de elevados níveis de biodiversidade, ainda bem evidentes neste início do século XXI. Os montados de sobro e de azinho são a expressão, por excelência, de tais sistemas, em co-evolução permanente com as actividades humanas. São as características biogeográficas, em primeira ordem, que estão, obviamente, na base desta diversidade biológica. No Alentejo, cruzam-se as regiões biogeográficas mediterrânica e atlântica, constituindo o extremo ocidental da distribuição de várias espécies de fauna e flora, com expressão máxima na costa sudoeste alentejana (e com continuidade para a costa vicentina). Por outro lado, apesar da evidente dominância da peneplanície, que incute no Alentejo o carácter de monotonia paisagística que lhe é atribuído, a profusão de serras de pequena e média dimensão garante um mosaico paisagístico diversificado. Entre as serras, salientam-se as de São Mamede, Portel, Mendro, Grândola, Ossa, Cercal, Adiça e Ficalho e, a sul, Caldeirão e Monchique, estas partilhadas com o Algarve. E, depois, as áreas costeiras, a costa arenosa, do arco Tróia-Sines, e a costa rochosa, sudoeste, estendendo-se até à costa vicentina, cortadas pelos estuários dos rios Mira e Sado. Estas características conferem invulgar importância à natureza no Alentejo. Nesta região, encontram-se cinco áreas protegidas da Rede Nacional: a norte, o Parque Natural da Serra de São Mamede; no litoral, a Reserva Natural do Estuário do Sado, a Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha e o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina; e, a sul (interior), o Parque Natural do Vale do Guadiana. O conjunto destas áreas representa cerca de 200 000 hectares. Para além da Rede Nacional de Áreas Protegidas (que integra os parques e as reservas naturais), o Sistema Nacional de Áreas Classificadas inclui as Zonas de Protecção Especial para as Aves e os Sítios, locais designados pelo elenco de habitats prioritários que aí ocorrem. Ambos os estatutos constituem a “Rede Natura 2000”, rede de espaços europeus protegidos. No Alentejo, estas áreas representam mais de 700 000 hectares, 18 Zonas de Protecção Especial para aves (São Vicente, Torre da Bolsa, Campo Maior, Monforte, Veiros, Vila Fernando, Évora, Reguengos, Mourão/Moura/Barrancos, Cuba, Vale do Guadiana, Castro Verde, Piçarras, Lagoa de Santo André, Lagoa da Sancha, Costa Sudoeste, Monchique e Caldeirão) e 14 Sítios de Importância Comunitária (São Mamede, Nisa/Laje da Prata, Caia, Cabeção, Monfurado, Cabrela, Guadiana/Juromenha, Moura/Barrancos, Comporta/Galé, Alvito/Cuba, Guadiana, Costa Sudoeste, Monchique e Caldeirão).
170 SALVAGUARDA DA BIODIVERSIDADE DO ALENTEJO
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Portugal é um dos Estados-membros da União Europeia que detém maior percentagem de espécies da flora e da fauna importantes para a conservação ao nível comunitário (espécies de interesse comunitário), com 32% das espécies da flora (94 em 295). Particularmente interessante é ainda a ocorrência, dentro das espécies da flora, de 14 espécies prioritárias na comunidade europeia. Quanto à fauna, ocorrem em Portugal mais de 280 espécies de aves selvagens, correspondendo a 41% das espécies no espaço EUR15. Ao nível dos outros vertebrados, destaca-se a presença de 13 espécies endémicas de Portugal ou num contexto ibérico. O nosso é, ainda, um país que se pode considerar como tendo, proporcionalmente, uma maior biodiversidade de habitats, respeitantes às regiões atlântica e, particularmente, mediterrânica (ocorrendo 62% dos tipos de habitat desta região). Tais constatações indicam a importância de Portugal na conservação da biodiversidade europeia. Neste contexto, o Alentejo destaca-se pela presença de várias espécies da flora endémicas ou de distribuição muito restrita. A Costa Sudoeste é o sítio que apresenta maior número de endemismos lusitanos, oito dos quais apenas ocorrendo nesta área classificada (por exemplo, Plantago almogravensis, Silene rothmaleri, Avenula hackelli, Cistus palhinhae). Mas outras áreas, como Cabeção (Halimium verticillatum), Alvito/Cuba (Linaria ricardoi), Comporta-Galé (Ononis hackelii, Centaurea fraylensis, Myosotis retusifolia), Guadiana-Juromenha (Narcissus cavanillesii ) ou Guadiana (Narcissus fernandesii ), apresentam também valores da flora raros ou localizados. Quanto à fauna, das oito espécies de aves consideradas prioritárias em Portugal num contexto europeu, sete nidificam no Alentejo, onde ocorrem populações muito relevantes (abetarda, sisão, abutre-preto, águia-imperial, águia-de-bonelli, francelho e camão). É nesta região que se localiza, a nível nacional, o reduto das aves estepárias, grupo de aves de zonas abertas, desprovidas de árvores, onde se praticam culturas cerealíferas, em regime de rotação com outros elementos do mosaico agrícola, como os pousios, lavrados e restolhos. Deste grupo de aves, fazem parte a abetarda (Otis tarda), o sisão ( Tetrax tetrax) , a calhadra-real ( Melanocorypha calandra) , o alcaravão ( Burhinus
oedicnemus), o cortiçol-de-barriga-negra (Pterocles orientalis), entre outros. Das áreas estepárias existentes no Alentejo (maioritariamente integradas em Zonas de Protecção Especial), há uma que se destaca, pela dimensão e pelas populações de aves que alberga, o Campo Branco (coincidente com a ZPE de Castro Verde), onde se concentram dois terços da população portuguesa da abetarda, estimada em cerca de 1800 indivíduos. Das aves, realçam-se ainda a águia imperial ibérica, uma das espécies mais ameaçadas do mundo, que retornou recentemente como nidificante a Portugal, nas planícies do Baixo Alentejo e do Alentejo Central, e a águia-de-bonelli, sujeita a um elevado grau de
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ameaça, que encontra no Baixo Alentejo e nas serranias algarvias a sua área de reprodução preferencial. A gestão cinegética sustentável, que permite conciliar a actividade económica decorrente da prática cinegética com a conservação da natureza, é uma das actividades com intervenção direta positiva na distribuição destes predadores de topo. Quanto aos mamíferos, várias áreas classificadas apresentam características de habitat adequadas ou susceptíveis de serem optimizadas de forma a promover a ocorrência do lince ibérico Lynx pardinus (Sítio Moura-Barrancos, Sítio Guadiana, Sítio Monchique, Sítio Caldeirão), permitindo o desenvolvimento do processo de reintrodução no meio natural. Salienta-se, a propósito, o início do processo de reintrodução, com a entrada do primeiro casal de linces ibéricos na área do Sítio Guadiana ( Jacarandá, fêmea, e
Katmandu, macho), em finais de 2014. No Alentejo, ocorrem ainda dois dos principais abrigos de importância nacional para a conservação dos morcegos: em Moura, o abrigo “Preguiça” e, em Marvão, a “Cova da Moura”. Ambos albergam vários milhares de indivíduos, quer em época de reprodução, quer em época de hibernação, nomeadamente das espécies morcego-de-peluche (Miniopterus shreibersii), morcego-de-ferradura-grande (Rhinolophus ferrumequinum), morcego-de-ferradura-mourisco (Rhinolophus
mehelyi) e morcego-rato-grande (Myotis-myotis). A ictiofauna merece também um amplo destaque, com a presença de várias espécies endémicas. Esta riqueza está essencialmente associada à bacia do Guadiana, a qual, sendo a quarta maior da Península Ibérica, assume particular expressão no Alentejo. O valor patrimonial da comunidade piscícola autóctone da bacia do rio Guadiana é especialmente relevante, sobressaindo pela presença nas suas águas de grande quantidade de endemismos piscícolas ibéricos, dez no total, dos quais oito estão classificados com estatutos de ameaça: saramugo (Anaecypris hispânica), boga-do-guadiana (Pseudochondrostoma willkommii), boga-de-boca-arqueada (Iberochon -
drostoma lemmingii), cumba (Luciobarbus comizo), barbo-de-cabeça-pequena (Barbus microcephalus), barbo-do-sul (Barbus sclateri), barbo-de-Steindachner (Luciobarbus steindachneri), escalo-do-sul (Squalius pyrenaicus), bordalo “Complexo de Squalius alburnoides” e verdemã-comum (Cobitis paludica). Destes, o barbo-de-cabeça-pequena e a boga-do-guadiana são endémicos da Bacia do Guadiana e por isso só ocorrem nesta bacia hidrográfica. Importante, outrossim, salientar a presença do caboz-de-água-doce (Salaria fluviatilis) que, em território nacional, apenas ocorre nesta bacia. No Alentejo, encontram-se três zonas húmidas de importância internacional (Sítios Ramsar), duas coincidentes com áreas protegidas: o Estuário do Sado e as Lagoas de Santo André e Sancha e, ainda, a Ribeira do Vascão, curso de água da bacia do Guadiana que faz fronteira entre o Alentejo e o Algarve. A Reserva das Lagos de Santo André e
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da Sancha alberga uma grande diversidade de habitats costeiros (em contiguidade com o Sítio Comporta-Galé, estabelecendo o arco Tróia-Sines), nomeadamente a sequência de habitats dunares desde o mar ao interior, das dunas costeiras, passando pelas dunas embrionárias, dunas brancas, dunas cinzentas, dunas com vegetação esclerófila ou com prados anuais oligotróficos. No interior, a maior estabilidade das dunas (ou paleodunas) permite o aparecimento de formações arbustivas e arbóreas de zimbro ( Juniperus
turbinata ou Juniperurs navicularis) e pinheiro-bravo. Das espécies da flora, para além das citadas, são ainda referência, nestes ambientes costeiros, as espécies prioritárias
Armeria rouyana, Jonopsidium acaule, Linaria ficalhoana e Thymus camphoratus. A Lagoa de Santo André é um ponto fundamental de paragem das aves (principalmente passeriformes) no seu percurso migratório entre o Norte da Europa e África. Este é mesmo o local do país com maior número de espécies de aves registadas (cerca de 270 espécies). Aqui se desenvolve, desde 1977 e de forma ininterrupta, a campanha outonal de anilhagem, constituindo a estação com maior número de aves anilhadas e maior sequência de dados. Desde 1977 até 2014, e apenas no âmbito das campanhas de anilhagem na migração, foram anilhadas 117 416 aves de 171 espécies, destacando-se, em termos numéricos, o rouxinol-pequeno-dos-caniços (Acrocephalus scirpaceus), a andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica) e a felosa-comum (Phylloscopus trochilus). Merece tambem destaque o rico património florestal da região, predominantemente dominado pelas duas espécies de quercíneas que constituem o “montado”. As duas espécies, de características mediterrânicas, representam cerca de 34% da superfície da floresta portuguesa, com cerca de 1 milhão de hectares. Formam três tipos de habitats: “Florestas de Quercus suber”, “Florestas de Quercus ilex” e “Montados de
Quercus spp. de folha perene”, de todos o mais abundante. Os “montados” são sistemas agro-silvo-pastoris, cuja manutenção depende de um conjunto de práticas tradicionais, em desuso face ao actual contexto socioeconómico. Apesar do seu excepcional valor para a biodiversidade e enquanto paisagem cultural, os montados, e muito em particular o montado de azinho, encontram-se em acentuado e notório declínio. Este constituirá, porventura, um dos maiores problemas que afectam quer a socioeconomia, quer a biodiversidade transtagana. Para tal declínio, concorrem as práticas culturais (podas excessivas, sobrepastoreio, mobilizações profundas), as pragas e doenças e as alterações climáticas. A viabilidade económica dos sistemas de produção do montado (nomeadamente o azinho) está em risco, colocando-se a questão da sua substituição por sistemas concorrentes, assentes numa maior densidade de pastoreio, modelos de silvicultura distintos ou em regadio (terrenos de maior fertilidade).
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No Alentejo, existem duas Matas Nacionais seculares, geridas pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas: a Mata Nacional de Valverde, em Alcácer do Sal, e a Mata Nacional de Cabeção, em Mora. A primeira pertenceu ao convento franciscano – feminino – de Ara Cœli, em Alcácer do Sal, tendo transitado, em 1824, para a Administração das Matas do Reino (e, dessa, para os Serviços Florestais). Tem a produção dirigida para o pinheiro-manso, aqui se desenvolvendo experiências e estudos relativos à sua silvicultura, funcionando como centro difusor de conhecimento. Nesta mata, assumem também especial importância o sobreiro e o pinheiro-bravo. A Mata Nacional de Cabeção encontra-se inserida numa área de produção suberícola, sendo considerada uma “mata-modelo”, uma vez que apresenta habitats representativos da região. É constituída por pinheiro-manso e sobreiro, e a sua origem remonta à Ordem de Avis (desde 1574, pelo menos). Ambas as Matas têm utilização recreativa por parte da população local.
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Os Símbolos das Áreas Protegidas do Alentejo O símbolo da Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha é o rouxinol-pequeno-dos-caniços (Acrocephalus scirpaceus), espécie que inverna em África e chega à Lagoa de Santo André na primeira quinzena de Março.
O símbolo do Parque Natural da Serra de São Mamede é a águia de Bonelli (Aquila fasciata), ave de presa que nidifica nas inacessíveis cristas quartzíticas da serra.
O símbolo do Parque Natural do Vale do Guadiana, uma ave de presa de pequeno porte, é retirado de um prato vidrado em corda seca do século XI.
A Reserva Natural do Estuário do Sado é representada pelo roaz-corvineiro (Tursiops truncatus). O estuário do Sado alberga a única comunidade desta espécie residente em território português.
A disposição da costa no extremo sudoeste é, certamente, uma das imagens mais fortes e duradouras do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina; daí a escolha das arribas marinhas para seu símbolo.
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A Preservação da Biodiversidade e o Festival Terras sem Sombra (2011-2014) Desde 2011 que o FTSS intervém na biodiversidade. As iniciativas, dirigidas ao Alentejo meridional, têm permitido aumentar o conhecimento da biodiversidade alentejana, envolvendo espectadores, artistas, membros das comunidades locais e público em geral. As temáticas abordadas incidem não só na fauna, na flora e nos habitats, mas também nas actividades de suporte, agricultura, silvicultura, piscicultura, apicultura, indústria, turismo (e na forma como estas se relacionam com a biodiversidade). As iniciativas são sempre desenvolvidas num processo de articulação e parceria com entidades locais – proprietários, autarquias, associações ou instituições de investigação e/ou ensino. Os temas desenvolvidos revelam-se muito diversos e abrangentes: • O controlo de espécies exóticas é uma matéria bastante presente no FTSS (limpeza de chorão nas Lagoas de Santo André; pesca eléctrica de espécies piscícolas exóticas na Ribeira do Vascão). As espécies exóticas invasoras representam um dos maiores problemas globais ao nível da conservação da natureza. Na Europa, existem cerca de 10 000 espécies exóticas, das quais, pelo menos, 15 têm um impacto muito negativo ao nível da ecologia ou da economia. Sabe-se que a taxa de invasão destas espécies tem vindo a aumentar num contexto de comércio mundial global. Das 395 espécies listadas como criticamente ameaçadas na Europa, 110 estão em perigo devido ao efeito das espécies exóticas invasoras; • A construção de ninhos e outras estruturas de abrigo, como acção de conservação, visa providenciar locais de repouso ou nidificação adequados e inacessíveis a predadores (ninhos para francelho na Basílica Real de Castro Verde e na Herdade da Apariça, em São Matias – Beja; abrigos para morcegos na igreja matriz de Santa Cruz – Almodôvar e na Serra da Preguiça – Moura; ninhos para passeriformes em Grândola); • A sensibilização para as boas práticas no montado de sobro (Com os Olhos no Futuro:
Assegurar a Renovação do Montado de Sobro, acção desenvolvida na Herdade das Barradas da Serra, Grândola), incidindo na prevenção da erosão, na salvaguarda da regeneração natural e na protecção do sistema radicular das árvores e, no caso do montado de azinho, nas boas práticas de pastoreio (O Azinhal e as Alterações Climáticas
no Baixo Alentejo: Uma Vanguarda contra a Desertificação, iniciativa na Herdade da Corte Ligeira, Cabeça Gorda – Beja; Na Senda da Transumância: O Campo Branco,
a Pecuária Extensiva e a Conservação da Natureza, acção que permitiu acompanhar o itinerário de um rebanho de ovelhas numa rota de microtransumância, sensibilizando para a importância desta prática milenar, que moldou durante séculos a paisagem da região dos Campos de Ourique e a sua biodiversidade; Agricultura, Pecuária e
Abetardas, numa visita a uma exploração agrícola – Herdade da Apariça – na Zona
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de Protecção Especial de Cuba, onde se discutiram formas de compatibilização entre a actividade e a conservação da natureza); • A salvaguarda da diversidade de sementes e cultivares, no estímulo da agricultura familiar e na partilha em torno das hortas comunitárias (Hortas no Mediterrâneo:
Depósito da Biodiversidade, iniciativa desenvolvida em parceria com a Associação Colher para Semear); a salvaguarda de ambientes e habitats costeiros, numa acção de recolha de lixo em zonas costeiras (Lagoa da Sancha – Sines, em parceria com a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa – projecto Marlisco); • O conhecimento e a sensibilização para a biodiversidade em sistemas aquáticos (Tesouros
Ocultos da Natureza: Preservar os Invertebrados da Ribeira do Vascão, chamando a atenção para as libelinhas e libélulas da Ribeira do Vascão, numa iniciativa com a Universidade do Algarve, e para os bivalves do mesmo curso de água, numa iniciativa com a Universidade de Lisboa), em torno das formações calcárias das serras de Adiça e Ficalho, com a Liga para a Protecção da Natureza e a Associação para o Desenvolvimento do Concelho de Moura (Olivais, Matos e Grutas: No Coração da Serra da Adiça); • A compreensão dos mecanismos de monitorização e avaliação do estado da Biodiversidade (A Lagoa de Santo André, Paragem Obrigatória na Rota das Aves Migratórias, anilhagem científica na Estação Nacional de Anilhagem do Outeirão; Bioindicadores de Sistemas
Florestais Mediterrânicos, inventariação biológica das parcelas de montado de Vila de Frades ao nível da flora e da fauna, com relevância para o papel das aves biológicas como bioindicadores da riqueza ecológica, numa acção coordenada pelo Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas da Universidade de Évora; Sines: Biodiversidade
Marinha num Porto Industrial, iniciativa coordenada pelo Laboratório de Ciências do Mar da Universidade de Évora, na monitorização dos organismos planctónicos; A Flora
Ameaçada da Planície Dourada, em visita à Micro-Reserva gerida pela Quercus em Beringel, Beja); • O estímulo e incentivo para o usufruto da natureza e do seu potencial económico, na realização de percursos em áreas protegidas e classificadas (O Potencial Ecoturístico
do Litoral Português: Gerir Sensibilidades, Suscitar Equilíbrios, percurso do Salgueiral da Galiza, na Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha; No Coração do
Mediterrâneo: Entre Peixes e Ervas, o potencial da vegetação autóctone enquanto sustentáculo de diversificação empresarial e emprego, com a participação do Centro de Excelência para a Valorização dos Recursos Mediterrânicos, de Mértola). Observação de espécies autóctones no Percurso do Salgueiral da Galiza, Lagoa de Santo André e da Sancha (Santiago do Cacém). >>
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Funcionando, ao mesmo tempo, como causa e como efeito de um novo capítulo na vida artística, cultural e religiosa do Alentejo, o Festival Terras sem Sombra tem, na sua génese, uma reunião de sinergias, pouco vulgar entre nós, que permite muitas formas de ver e, principalmente, de sentir o seu território – um espaço onde marcam presença idiossincrasias e patrimónios diversos, mas complementares. Tanto a multiplicidade como a pluralidade de perspectivas são, de resto, esteios fundamentais de uma proposta que, independentemente de se haver tornado já um dos rostos mais conhecidos da região, não existe só por si, nem se centra exclusivamente no universo da Ars Sacra. Pelo contrário, abre-se a causas relevantes para a sociedade actual, onde o voluntariado possa despertar pequenos gestos que ajudem a “marcar a diferença”. Possuidor de um formidável conjunto de recursos biodiversos, o nosso país enfrenta neste momento grandes responsabilidades, a nível global, para conservá-los e valorizá-los adequadamente, tarefa – nunca é demais lembrá-lo – que assume a maior relevância no Alentejo, um dos territórios com mais altos índices de preservação do Sul da Europa, mas onde a desertificação do interior rural e a concentração de habitantes e actividades no litoral levantam grandes desafios. Ao abrigo de um protocolo de cooperação com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Ministérios da Agricultura e do Mar, e Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e da Energia), os municípios e outras instituições presentes no terreno, o FTSS promove, no dia seguinte a cada concerto, acções-piloto para a salvaguarda da biodiversidade. Estas iniciativas permitem que voluntários de origens ou perfis muito diversos – músicos, espectadores, staff, membros das comunidades locais, etc. – colaborem, ombro com ombro, em actividades úteis à conservação da natureza, actividades simples, mas que encerram toda uma mensagem dirigida aos decisores e à opinião pública. O Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e o Festival Terras sem Sombra são parceiros do Ano Internacional da Luz, uma iniciativa da UNESCO, a organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura.
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15 de Março 2015 10H00 ALMODÔVAR COLABORAÇÃO:
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Parque Natural do Vale do Guadiana) Liga para a Protecção da Natureza APOIO:
Câmara Municipal de Almodôvar
PELAS MARGENS DO VASCÃO Como é norma em cada edição do festival, as acções no âmbito da biodiversidade iniciam-se pela Ribeira do Vascão. Este curso de água, que assinala a fronteira entre o Alentejo e o Algarve e, simultaneamente, estabelece a ligação entre morfologias (Serra do Caldeirão e Peneplanície alentejana), é um dos poucos cursos de água relevantes em Portugal sem qualquer interrupção no seu trajecto (barragens ou represas). Este facto singular constitui um dos critérios mais relevantes para a classificação da área como Sítio Ramsar. Ao longo de um percurso pedestre, analisaremos a biodiversidade do Vascão nas suas múltiplas facetas e indicaremos pistas para a sua valorização. A iniciativa associa-se ao projecto LIFE Saramugo – Conservação do Saramugo (Anaecypris hispanica) na Bacia do Guadiana, da Liga para a Protecção da Natureza, recentemente iniciado e que tem actuações previstas neste curso de água.
29 de Março 2015 10H00 ODEMIRA COLABORAÇÃO:
Escola Secundária Manuel Candeias Gonçalves
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina) Liga para a Protecção da Natureza APOIO:
Câmara Municipal de Odemira
A BIODIVERSIDADE DOS CHARCOS TEMPORÁRIOS Os Charcos Temporários Mediterrânicos são habitats notáveis. Apesar da sua raridade, encontram-se com relativa frequência no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Considerados prioritários pela Directiva Habitats, albergam uma biodiversidade deveras significativa, adaptada às condições ecológicas extremas que alternam entre o encharcamento e a secura estival. Não obstante isto, encontram-se seriamente ameaçados por um conjunto de actividades humanas, desde a intensificação agrícola e da drenagem até à deposição de entulho e à pressão turística. Numa actividade pioneira, vamos levantar o véu em relação à biodiversidade destes sistemas, através de
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um passeio pedestre em torno de charcos temporários da Costa Sudoeste que estão a ser alvo do projecto Life – Charcos, coordenado pela Liga para a Protecção da Natureza.
12 de Abril 2015 10H00 SINES COLABORAÇÃO:
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha) APOIO:
Câmara Municipal de Sines
ESPÉCIES ALIENÍGENAS TERRESTRES DO ALENTEJO LITORAL A invasão por espécies exóticas é um tema muito presente nas actividades do Festival Terras sem Sombra. De facto, constituindo um dos maiores problemas globais ao nível da conservação da natureza: na Europa existem cerca de 10 000 espécies exóticas, das quais cerca de 15% têm um impacto negativo ao nível da ecologia ou da economia (estima-se um prejuízo anual de 12 biliões €/ano só no território europeu). Das 395 espécies listadas como criticamente ameaçadas na Europa, 110 estão em perigo, devido ao efeito das espécies exóticas invasoras. É importante conhecer as espécies exóticas, compreender quando assumem um papel invasor e desenvolver métodos eficazes para a sua erradicação. Ao longo de um percurso na zona da Lagoa da Sancha, será desenvolvida uma oficina de espécies exóticas e lançado o desafio de localizar e controlar núcleos pioneiros invasores.
19 de Abril 2015 10H00 GRÂNDOLA COLABORAÇÃO:
Centro Ciência Viva do Lousal
Comité Nacional para o Programa Internacional de Geociências, International Geoscience Programme, UNESCO Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do Guadiana) Laboratório Nacional de Energia e Geologia APOIO:
Câmara Municipal de Grândola
GEODIVERSIDADE – O PATRIMÓNIO GEOLÓGICO E A FAIXA PIRITOSA O património natural não se encerra apenas na diversidade de formas de vida. Nesta actividade, convidamos os participantes a mergulhar nos tempos geológicos, ao longo de uma visita muito particular ao Centro Ciência Viva do Lousal. Compreender a Faixa Piritosa Ibérica, uma das principais regiões mineiras da Europa, e de que forma a mesma
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estruturou a ocupação humana de um vasto território, é um dos objectivos da acção. Por outro lado, está na ordem do dia a preservação do riquíssimo património geológico português, nas suas múltiplas vertentes (mineralogia, sequências geológicas, paleontologia). Para além da realização de um percurso na área envolvente do Lousal, serão observadas a antiga corta (escavação a céu aberto) e uma galeria mineira. As vivências do quotidiano dos antigos mineiros e das suas famílias constituem também um filão a explorar.
10 de Maio 2015 10H00 SANTIAGO DO CACÉM COLABORAÇÃO:
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha) APOIO:
Câmara Municipal de Santiago do Cacém
Zonas Húmidas: Sistemas Biodiversos e Frágeis As zonas húmidas são sistemas extremamente ricos, mas, simultaneamente, muito vulneráveis aos impactos causados por actividades humanas. Estas zonas fornecem inúmeros serviços de ecossistemas, entre eles o controlo de cheias, a recarga de aquíferos, a mitigação das alterações climáticas, a preservação da biodiversidade e a depuração de poluentes. Fornecem ainda alimento e habitat a inúmeras aves aquáticas e outros animais selvagens, além de constituírem “maternidades” e pontos de abrigo privilegiados para uma grande diversidade de peixes, crustáceos e moluscos. Ao longo de um percurso pedestre na Lagoa de Santo André e espaços dunares adjacentes serão discutidos os factores que ameaçam esta área protegida: a poluição, o assoreamento, a pesca intensiva e a pressão turística. O percurso termina num ponto de observação de aves aquáticas (patos e limícolas).
24 de Maio 2015 10H00 CASTRO VERDE COLABORAÇÃO:
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Parque Natural do Vale do Guadiana) Liga para a Protecção da Natureza APOIO:
Câmara Municipal de Castro Verde
DE OLHO NAS ÁGUIAS De volta ao Campo Branco, esta acção incide na ermida de Nossa Senhora de Aracœli (“altar dos céus”). Sita numa elevação em torno de vasta planície, diz a lenda que dela
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se avistam outras seis ermidas, constituindo as “sete irmãs”. O santuário, estrategicamente localizado nas rotas da transumância, está associado a velhos cultos agrícolas e pastoris. Ainda hoje aqui se realizam romarias dos habitantes das freguesias de Alcaria Ruiva (Mértola) e São Marcos da Atabueira (Castro Verde), sobretudo em períodos de seca prolongada. O local é privilegiado para a observação de aves, muito particularmente a águia imperial ibérica, espécie desaparecida como nidificante, por mais de 30 anos, em Portugal – e alvo de um esforço dirigido para a sua conservação, tanto do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (que coordena um grupo de trabalho desde 2008) como da Liga para a Protecção da Natureza (projecto Life Natureza). Para além da observação das águias, será desenvolvida uma Oficina de Cante Alentejano, celebrando a elevação deste a Património Cultural da Humanidade. A iniciativa terminará com um piquenique, acompanhado pelo pão caseiro da aldeia do Salto, trazendo cada participante o respectivo “conduto”.
7 de Junho 2015 10H00 MOURA COLABORAÇÃO:
Empresa Municipal Herdade da Contenda
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Parque Natural do Vale do Guadiana) Liga para a Protecção da Natureza APOIO:
Câmara Municipal de Moura
EM TORNO DA HERDADE DA CONTENDA – BIODIVERSIDADE NA ÁREA RAIANA A designação de Contenda remonta aos tempos da Reconquista cristã do Alentejo (século XIII). Esta herdade pertence à Câmara Municipal de Moura desde 1893, quando da assinatura do Tratado de Madrid, que definiu a fronteira local. Com 5270 hectares, é uma zona de caça nacional, caracterizada pela abundância excepcional de espécies da caça maior. A Contenda distinguiu-se, desde sempre, por ter elevada diversidade faunística; isto deriva não só do seu isolamento, mas também do contacto das espécies da Serra Morena com a planície alentejana. Salientam-se, entre os valores existentes, os habitats, a comunidade piscícola (incluindo a presença do raríssimo saramugo) e as aves (abutres, cegonha-preta, águias). É, ainda, uma propriedade de usos associados à floresta, plasmados num Plano de Gestão Florestal. Será realizado um percurso de descoberta da herdade, culminando num passeio pedestre ao longo da Ribeira do Murtigão, para exemplificação de técnica de remoção de espécies piscícolas não-nativas, no âmbito do projecto Life Saramugo, da LPN, e para estudo das ruínas do convento de Nossa Senhora das Necessidades (Tomina).
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21 de Junho 2015 10H00 BEJA COLABORAÇÃO:
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas
(Parque Natural do Vale do Guadiana) APOIO:
Câmara Municipal de Beja
AO LONGO DO CAMINHO DE SANTIAGO – PERCORRENDO A GRANDE VIA DE BEJA AO MAR Mértola foi, quase até ao final da Idade Média, o porto de Beja. O caminho que liga estas duas localidades, cuja origem se perde no tempo, atravessou os períodos de ocupação romana e muçulmana da Península Ibérica. Partindo de Mértola, passava pela Corte Gafo, Amendoeira-Mosteiro e Salvada, de onde seguia para Beja ou, em alternativa, para aos vaus do Guadiana em direcção a Serpa. É precisamente ao redor do “porto da Salvada”, passagem na ribeira de Terges-Cobres, fronteira entre concelhos e em pleno coração do Parque Natural do Vale do Guadiana, que se desenvolve esta actividade. Ao longo de um percurso pedestre de 4 km, vamos explorar a biodiversidade de uma área singular, com realce para os anfíbios, mamíferos e aves. Estará igualmente presente a evocação da passagem dos peregrinos, antigos e modernos, em direcção a Compostela.
Sensibilização para a preservação dos morcegos cavernícolas numa antiga mina da Serra de Adiça (Moura). >
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A Aguardente de Medronho, Património do Sul
São Barnabé, uma freguesia de Almodôvar, nas serranias entre o Alentejo e o Algarve, tem todas as características de regiões rurais em decrescimento, sendo disso provas o envelhecimento da população, a crescente emigração, a desertificação e a degradação dos solos. Desde sempre que, nesta região, o rendimento familiar se funda na agricultura. A produção de aguardente de medronho representa uma contribuição muito forte para o sector económico. Trata-se de uma actividade tradicional que faz parte da nossa herança cultural e está a conseguir sobreviver ao declínio do interior, o que oferece um sinal de esperança digno de nota. A aguardente de medronho (Arbutus Spiritus) é uma bebida muito conhecida em todo o país, em especial no Sul. Toma-se quase sempre após a refeição, com o café, como digestivo. O medronheiro (Arbutus unedo L.), por seu turno, é uma das espécies mais comuns de frutos carnudos na região do Mediterrâneo. Árvore de pequeno porte, existe também na Macaronésia e em algumas localidades do Atlântico, mormente em França e na Irlanda. Embora cresça em Portugal, é mais frequente nas regiões meridionais, onde abundam o sobreiro e a azinheira. Na zona de Almodôvar, o clima continental proporciona que a Primavera esteja cheia de flores e o Verão se revele amiúde quente e seco, sendo, pois, um lugar perfeito para os medronheiros, que crescem espontaneamente ao longo da vasta faixa montanhosa em que se destaca a Serra do Caldeirão. Surpreendem-nos aqui um território único, com uma mancha vegetal pouco tocada pelo homem, e sucessivos espaços onde a agricultura tradicional permanece inalterada, em equilíbrio com a natureza. O medronheiro constitui um elemento importante nesta paisagem única. O fruto desta árvore tem sido tradicionalmente empregue no consumo humano e corresponde a uma das mais importantes espécies frutíferas silvestres de Portugal. Os seus frutos são, em geral, consumidos crus in situ, logo depois de apanhados, ou levados para casa, de modo a servirem de sobremesa. Existem também algumas técnicas antigas
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de preservação, de resto muito eficientes, que visam prolongar a sua vida para além do período de colheita. Conhecem-se notáveis receitas de doces caseiros com medronhos. O Arbutus Spiritus (medronheiro) cultiva-se, entre nós, pelo menos desde o século IX. Em Outubro, Novembro e Dezembro, ocorre a colheita à mão dos medronhos, sendo, depois, alvo de processamento em pequena escala, sem aditivos, de modo a obter-se um sabor perfeito. Permanecem em repouso, para fermentação, durante um período de 40 dias. Quando em estágio avançado de maturidade, contêm mais de 20% de açúcar e 0,05% de álcool, permitindo que a fermentação seja um processo natural. Devido ao seu alto teor de açúcar em fermentação, diz-se que comer muitos medronhos pode causar sinais de embriaguez. Tem-se conjecturado que a tecnologia de destilação do medronho terá vindo para a Península Ibérica com os muçulmanos. Em bom rigor, até hoje, foi muito pouco o que mudou desde a época medieval. Não existe uma indústria em grande escala de produção da aguardente de medronho no país. Tudo costuma ser feito localmente, sob a forma de pequenos negócios familiares, o que assume uma dimensão cultural e social muito importante, nem sempre bem compreendida. Há poucos anos, um excesso de zelo na interpretação da legislação comunitária lançou o caos entre as modestas destilarias alentejanas e algarvias. O bom senso acabou por imperar. Na actualidade, jovens empresários estão a dar cartas no sector, cujo futuro se adivinha risonho. Após uma grave crise que afectou muitas explorações agrícolas e industriais do Grande Sul, é com orgulho que a região assiste à fecunda transmissão de artes e saberes entre gerações, ao serviço de um produto de qualidade: a aguardante de medronho, um dos símbolos da identidade nacional.
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4 de Julho 18H30
Prémio Internacional Terras sem Sombra Sines
Na sequência de uma decisão tomada, na sua primeira reunião, pelo Conselho de Curadores, a organização do Festival Terras sem Sombra instituiu, em 2011, o Prémio Internacional com o mesmo nome, destinado a homenagear uma personalidade ou uma instituição que se tenham salientado, ao nível global, em cada uma das seguintes categorias: a promoção da Música; a valorização do Património Cultural; e a salvaguarda da Biodiversidade. A escolha dos recipiendários é da responsabilidade de um júri internacional, designado pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, como entidade promotora do Festival, e uma vez ouvido o parecer das diversas instâncias deste. O Prémio consta de um diploma e de uma obra de arte encomendada a um artista contemporâneo, sendo entregue num momento culminante da temporada musical no Alentejo. Com periodicidade anual, esta distinção foi entregue pela primeira vez por S.A.R. o Príncipe Pavlos da Grécia, a 7 de Maio de 2011, em sessão solene realizada na igreja matriz de Santiago do Cacém. Por decisão unânime, a escolha do júri contemplou a soprano norte-americana Cheryl Studer (Música), a Pontificia Accademia Romana di Archeologia, com sede na Cidade do Vaticano (Património Cultural), e o oceanólogo português Mário Ruivo (Biodiversidade). Em 2012, o Prémio distingiu a soprano grega Dimitra Theodossiou (Música), a museóloga e historiadora de arte portuguesa Maria Helena Mendes Pinto (Património Cultural), e o biólogo espanhol Miguel Ángel Simón (Biodiversidade). A cerimónia de entrega destes galardões realizou-se no Auditório Municipal de Grândola, em 7 de Julho, e foi presidida pelo Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Carlos Moedas, em representação do Primeiro-Ministro. A Casa da Cultura de Comporta, no concelho de Alcácer do Sal, acolheu a cerimónia do Prémio Terras sem Sombra em 2013, tendo por presidente S.A.R. a Infanta D. Pilar de Borbón, Duquesa de Badajoz. Foram premiados o baixo italiano Enzo Dara (Música), a Associação dos Arqueólogos Portugueses (Património Cultural), que celebrou em 2013 o 150.º aniversário da sua fundação, e o investigador angolano Pedro Vaz Pinto (Biodiversidade).
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Premiados em 2014: Angelo Oswaldo de Araújo Santos (Património Cultural), Teresa Berganza (Música) e Serafim Freitas Riem (Biodiversidade).
No ano de 2014, a cerimónia decorreu no Auditório do Centro das Artes, de Sines, sob a presidência do Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro. O Prémio Internacional Terras sem Sombra distinguiu, nesta ocasião, a soprano espanhola Teresa Berganza (Música), o estadista e homem de letras brasileiro Angelo Oswaldo de Araújo Santos (Património Cultural) e o ambientalista português Serafim Freitas Riem (Biodiversidade).
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Agradecimentos Alda Giesta Aires Augusto do Nascimento Francisco Vicente Maria das Dores Galante de Carvalho Nuno Pólvora Patrícia Bernardo Pedro Lourenço Ferreira Pedro Martins Liga para a Protecção da Natureza Quercus
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CO-FINANCIAMENTO
UE FEDER
APOIO INSTITUCIONAL
MECENAS
COLABORAÇÃO
APOIOS
MEDIA PARTNER
APOIO À DIVULGAÇÃO
O Festival Terras sem Sombra é membro de
Fundado em 2003, o Fe stiv al Te rras se m So mbra tem vindo a afirmar-se como o mais destacado do seu género em Portugal.
a É uma iniciativa da sociedade
civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, as igrejas da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra. a Resulta da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo e Ribatejo, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas locais e as famílias, sem esqueçer as instituições nacionais e internacionais aqui radicadas. a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo.
a Tem uma programação de qualidade internacional de que fazem
parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística. a O diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras. a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.
a A valorização
dos recursos naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o Festival percorre. a Da carta mag na do Festival, fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade.
a Os concertos e demais actividades são de
acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.
TERRAS SEM SOMBRA | 11.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2015
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FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO
terras sem sombra O Magnum Mysterium Diálogos Musicais no Sul da Europa (Séculos X-XXI)