Fundado em 2003, o Fe stiv al Te rras se m So mbra tem vindo a afirmar-se como o mais destacado do seu género em Portugal.
a É uma iniciativa da sociedade
civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, os monumentos religiosos da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra.
a Resulta da parceria entre o
Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas locais e as
a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo. a Tem uma
famílias.
programação de qualidade internacional de que fazem parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística.
aO
diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras.
a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que
sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.
a A valorização dos recursos
naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o
a Da carta mag na do Festival, fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade. a Os concertos e demais actividades são de
Festival percorre.
acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.
TERRAS SEM SOMBRA | 10.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2014
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FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO
terras sem sombra Metáforas do Infinito A Espiritualidade nas Polifonias dos Séculos XI-XX
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Sob o Alto Patrocínio de Sua Ex.ª o Presidente da República Portuguesa, Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, e de
Sua Ex.ª o Presidente da Comissão Europeia, Dr. José Manuel Durão Barroso
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terras sem sombra 10.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO 2014
Metáforas do Infinito A Espiritualidade nas Polifonias dos Séculos XI-XX
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DIRECÇÃO-GERAL
FOTOGRAFIA*
José António Falcão1
Francisco Borba António Cunha Sara Fonseca Miguel Gaspar Imagens de Luz Sofia Perestrello
DIRECÇÃO ARTÍSTICA
Paolo Pinamonti COORDENAÇÃO
Sara Fonseca DESIGN COMISSÃO ORGANIZADORA
José António Falcão1 Sara Fonseca João Líbano Monteiro Miguel de Pape Paolo Pinamonti José Duarte Lobo de Vasconcellos CONSULTORES
Beatriz Horta Correia REVISÃO
António José Massano IMPRESSÃO
M-2 Artes Gráficas DEPÓSITO LEGAL
Paula Brito (Produção) Paulo Laureano (Enologia) Pedro Azenha Rocha (Conservação da Natureza) COMUNICAÇÃO
Isaura Costa/AquiàBeira TEXTOS
Luís Araújo Filipe Carvalheiro José António Falcão Cristina Fernandes Bernardo Mariano Rui Cabral Lopes Afonso Miranda Paolo Pinamonti Luís Miguel Santos Diogo Alte de Veiga TRADUÇÃO
© Departamento do Património Histórico e Artístico
Marta Caeiro Maria das Dores Galante de Carvalho José António Falcão Antoinette Lukacs Aires A. Nascimento
da Diocese de Beja e Pedra Angular – Associação dos
1
Amigos do Património da Diocese de Beja Imagem da capa: Retábulo da capela-mor (pormenor) | Beja, Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres
Até 18 de Fevereiro de 2014.
* As demais fotografias são da responsabilidade dos artistas e grupos convidados.
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COMISSÃO DE HONRA Secretário de Estado da Cultura S.A.R. a Duquesa de Bragança Núncio Apostólico Bispo de Beja Presidente da Câmara Municipal de Almodôvar Presidente da Câmara Municipal de Beja Presidente da Câmara Municipal de Castro Verde Presidente da Câmara Municipal de Grândola Presidente da Câmara Municipal de Moura Presidente da Câmara Municipal de Santiago do Cacém Presidente da Câmara Municipal de Sines Presidente do Turismo de Portugal, I.P. Presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo Presidente do Conselho da Região do Alentejo Presidente da Administração do Porto de Sines Presidente da Turismo do Alentejo, E.R.T. Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian Presidente da Academia Nacional de Belas-Artes Presidente da Academia Portuguesa da História Presidente da Academia das Ciências de Lisboa Reitor da Universidade de Évora Presidente do Instituto Politécnico de Beja Presidente do Conservatório Regional do Baixo Alentejo Reitor do Seminário de Beja
CONSELHO DE CURADORES Armando Sevinate Pinto, Pre sid e nte João Lopes Baptista Pedro Canavarro Joaquim José Galante de Carvalho António Ressano Garcia Lamas Eduardo de Arantes e Oliveira
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Homenagem a D. Fr. Manuel do Cenáculo [✴ Lisboa, 1724 – X Évora 1814], Primeiro Bispo de Beja, nas comemorações do 200.º aniversário da sua morte
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ÍNDICE 11
To d o s o s A no s, p e la Primav e ra | Presidente da República
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Um V alio so Co ntrib uto – José Manuel Durão Barroso
15
O Fascínio d a Be le za | † António Vitalino Dantas
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Bre v e Intro d ução à Ete rnid ad e – José António Falcão
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A M úsica no Te mp o – Paolo Pinamonti
40
PROGRAMA
43
Concerto de Abertura | ALMODÔVAR Um Requiem pelos Vivos
44
Ig re ja M atriz d e Santo Ild e f o nso – José António Falcão
46
E a Fé Re sg atará To d a a Do r – Bernardo Mariano BIOGRAFIAS
53
Raquel Alão
55
Luís Rodrigues
57
Coro do Teatro Nacional de São Carlos
58
João Paulo Santos
59
Kodo Yamagishi
60
Giovanni Andreoli
63
Concerto II | GRÂNDOLA Liturgia da Esperança: Misterio del Cristo de los Gascones
64
Ig re ja Matriz de No ssa Se nho ra da A ssunção – José António Falcão
68
Da Gasconha a Segóvia: Morte e Ressurreição de um Cristo V iajante Rui Araújo & Diogo Alte da Veiga Biografias
83
Nao d’amores
85
Ana Zamora
87
Concerto III | SANTIAGO DO CACÉM Vozes que Brotam do Céu: Entre o Românico e o Maneirismo
88
Ig re ja M atriz d e Santiag o M aio r – José António Falcão
90
Itinerários da Música Europeia: Monodias e Polifonias do Medievo ao De sp e rtar d o M ane irismo – Rui Cabral Lopes Biografias
105
The Hilliard Ensemble
107
Conferência | BEJA A Violeta: Perenidade de um Instrumento Injustiçado Alexandre Delgado
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108
Ig re ja Matriz de No ssa Se nho ra do s Praze re s – José António Falcão BIOGRAFIA
112
Alexandre Delgado
115
Concerto IV | BEJA O Sagrado e o Profano: Aliterações Húngaro-Portuguesas
116
Ig re ja M atriz d e Santa M aria d a Fe ira – José António Falcão
121
A Música Co ral, e ntre o Sag rado e o Pro f ano – Luís Miguel Santos BIOGRAFIAS
129
Capella Duriensis
130
Jonathan Ayerst
133
Concerto V | CASTRO VERDE
134
Basílica Re al de No ssa Se nho ra da Co nce ição – José António Falcão
136
Liçõ e s d as Tre v as d o Barro co Nap o litano – Cristina Fernandes
Theatrum Sacrum: Obras-Primas do Barroco Napolitano
BIOGRAFIAS
144
I Turchini di Antonio Florio
145
Valentina Varriale
147
Concerto VI | SINES Espaço, Ritmo, Tempo: Feldman versus Bach
148
Ig re ja M atriz d o Santíssimo Salv ad o r – José António Falcão
150
Do Se ntir ao Se r – Afonso Miranda BIOGRAFIAS
161
Filipa Palhares
162
Jonathan Brown
163
Coro Terras sem Sombra
164
Sond’Ar-te Electric Ensemble
165
Concerto de Encerramento | Moura Instantes Infinitos: Mozart, Feldman & Mozart
166
Ig re ja M atriz d e São Jo ão Bap tista – José António Falcão
168
A Fle cha e o se u Eco – Teresa Cascudo BIOGRAFIAS
172
Orquestra Gulbenkian
173
Vera Martínez
174
Paul McCreesh
175
Pedro Neves
177
Salvaguarda da Biodiversidade do Alentejo Meridional
184
Prémio Internacional Terras sem Sombra Moura, igreja de São Pedro.>
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Todos os Anos, pela Primavera
Todos os anos, pela Primavera, há já uma década, o Fe stiv al Te rras se m So mb ra leva ao Alentejo os sons da melhor música, executada pelos melhores intérpretes, em algumas das magníficas igrejas que são património da região. Organizado pela Diocese de Beja, a partir do seu Departamento do Património Histórico e Artístico, o Festival tem o raro condão de pôr as populações de muitos lugares isolados em contacto com a música erudita, ao mesmo tempo que dá a conhecer aos visitantes, nacionais e estrangeiros, que ali se deslocam para ouvir os concertos, uma paisagem e um património, quer material quer imaterial, de enorme riqueza. Além disso, o Festival tem vindo também a chamar a atenção para a importância do património natural, numa região com elevados índices de preservação da biodiversidade, mas onde a desertificação, à semelhança do que acontece em quase todo o interior rural, constitui uma ameaça que temos todos a obrigação de combater. A cidade e o campo, o passado e o futuro cruzam-se, deste modo, num encontro anualmente proporcionado pela arte, que é decerto muito gratificante para as populações do Alentejo, sempre ciosas do reconhecimento da sua forte identidade cultural, ao mesmo tempo que se criam novos incentivos para o turismo e o desenvolvimento sustentado da região. Neste ano em que o Festival Terras sem Sombra comemora dez anos, endereço as minhas felicitações à Diocese de Beja, que soube criar e manter uma tão frutuosa iniciativa, em torno da qual conseguiu agregar o entusiasmo das autarquias, das empresas e das populações locais. Faço votos para que esta edição do Festival seja um êxito, tal como foram as anteriores e como o seu programa deixa antever, e, sobretudo, que contribua para o reforço da coesão social e da crença nas potencialidades de um território onde a natureza e a história se aliaram, dando origem a uma cultura a todos os títulos singular. ANÍBAL CAVACO SILVA Presidente da República Portuguesa
< Igreja de São Pedro de Pomares. Beja, Baleizão.
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Um Valioso Contributo
É com muito gosto que me associo, pela quarta vez consecutiva, ao Festival de Música Sacra do Baixo Alentejo – Terras sem Sombra. Este nome aplica-se-lhe perfeitamente. Na província portuguesa do Baixo Alentejo a temperatura máxima diária é de 25°C durante um terço do ano, e muito superior no pico do Verão, quando o termómetro pode chegar facilmente aos 40°C. As árvores são amiúde escassas ou mesmo inexistentes nas vastas extensões de terras agrícolas. Para encontrar uma sombra compacta, temos de nos deslocar às cidades e vilas onde o reduzido número de habitantes da província prefere viver. As igrejas e os antigos conventos ou mosteiros são os maiores edifícios existentes nessas localidades, e a música sacra era aí interpretada em muitos rituais. Durante séculos, essa constituiu quase a única música que a população das Terras sem Sombra podia ouvir. Alguns camponeses – homens, mulheres e crianças –, cantavam e tocavam nas festas religiosas. Ocasionalmente, contadores de histórias itinerantes divulgavam as novas através do canto. Mais importante, coros informais compostos por trabalhadores rurais sem formação musical actuavam em festas locais, mantendo viva a tradição. O Festival Terras sem Sombra representa, desde há uma década, um valioso contributo, vindo complementar o conhecimento e a divulgação da música sacra no Alentejo. Neste Ano Internacional da Agricultura Familiar, promove uma ligação ao tema e coloca o seu prestígio e a sua popularidade ao serviço de uma melhor gestão dos recursos naturais, da protecção do ambiente, do desenvolvimento rural sustentável e da biodiversidade. O programa prevê várias actividades especializadas, relevantes para os temas supracitados, que irão articular-se com os eventos musicais. Congratulo-me com este ensejo, que complementa de forma interessante e útil o já considerável impacto do festival nos hábitos e no ambiente musical do povo alentejano. JOSÉ MANUEL DURÃO BARROSO Presidente da Comissão Europeia
< Hugo Huber???????????. leg.
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O Fascínio da Beleza
Num dos seus romances, Dostoievski diz que a beleza nos salvará. Tenho ouvido esta afirmação muitas vezes e em diversos contextos, mas aflora-me à mente ao tentar escrever umas linhas sobre vários acontecimentos comemorados, ao longo de 2014, na Diocese de Beja: os 200 anos da morte de D. Fr. Manuel do Cenáculo, primeiro bispo da Diocese restaurada em 1770; os 30 anos da criação do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja; e os 10 anos do Festival Terras sem Sombra, promovido pelo mesmo Departamento e superiormente dirigido, desde a sua fundação, pelo Prof. Doutor José António Falcão. Trata-se de um bispo que promoveu e salvou para a posteridade o património cultural da Diocese e de um Departamento que, desde há vários anos, tem dado continuidade à visão desse primeiro bispo, inventariando, restaurando, dando a conhecer, dentro e fora dos limites da Diocese, o seu rico acervo patrimonial e trazendo até nós os melhores executantes da arte, em particular da arte musical – para mim, a melhor expressão da beleza incriada. Deixo aos entendidos a apresentação da 10.ª edição do Festival Terras sem Sombra, este ano com o expressivo título de Me táf o ras do Inf inito : A Espiritualidade nas Po lif o nias do s Sé culo s XI a XX, assim como a explicação da beleza dos monumentos e espaços ideais em que vão ter lugar os diversos concertos, para simplesmente manifestar a minha gratidão ao meu primeiro antecessor como bispo de Beja, cujo 200.º aniversário da morte comemorámos a 26 de Janeiro, em Sines. Agradecer também ao meu directo antecessor na cátedra de Beja, D. Manuel Franco Falcão, fundador do Departamento do Património, em 1984, e que há dois anos nos deixou. E, sobretudo, agradecer aos vivos que fomentam entre nós a fruição estética de tão variadas expressões da arte, muito especialmente ao Prof. José António Falcão que, desde há trinta anos, tem sido incansável na direcção do Departamento, ao Prof. Paolo Pinamonti, director artístico do Festival e grande amigo do Alentejo, e à equipa que leva a cabo esta iniciativa, coordenada pela Dr.ª Sara Fonseca. Na expressão habitual e bela do povo português, também eu digo: Q ue De us lhe s p ag ue ! Àqueles que virão visitar-nos para realizar os diversos concertos musicais ou para neles participar, assim como aos que cá estão e amam a beleza da sua terra, desejo momentos inesquecíveis da fruição da beleza que nos eleva e enriquece com os tesouros que a traça não corrói e por isso nos salva do materialismo reinante. † ANTÓNIO VITALINO DANTAS Bispo de Beja < Almodôvar, igreja matriz de Santo Ildefonso.
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Breve Introdução à Eternidade
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO* Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja
Quem sonhou que a beleza passa como um sonho? Por estes lábios vermelhos, com todo o seu magoado orgulho, Tão magoado que nem o prodígio os pode alcançar, Tria desvaneceu-se em alta chama fúnebre, E morreram os filhos de Usna. Nós passamos e passa o trabalho do mundo: Entre humanas almas, que se agitam e quebram Como as pálidas águas em seu fluxo invernal, Sob as estrelas que passam, sob a espuma do céu, Vive este solitário rosto. Inclinai-vos, arcanjos, em vossa incerta morada: Antes de vós, ou de qualquer palpitante coração, Fatigado e gentil alguém esperava junto ao seu trono; Ele fez do mundo um caminho de erva Para os seus errantes pés. W. B. Yeats, A Ro sa d o M und o
1. Tempo temporal, intemporal tempo Inte rminab ilis v itæ to ta simul e t p e rf e cta p o sse sio . “Plenitude simultânea de uma vida sem começo, nem termo.” Boécio definiu assim a Eternidade (do latim Æte rnitas, por sua vez resultante de Æv ite rnitas), sintetizando longa tendência que nela vislumbrou a manifestação de uma vida não só imutável, infinita e uniforme, mas também simultaneamente perfeita e total, fora dos limites do espaço e do tempo. De acordo com A. Lanteri, há que realçar três das suas características fundamentais: não ter princípio; não ter mutação; não ter fim. Constitui, portanto, um instante que nunca
< Pia de água benta. Século XVI. Vila Ruiva, igreja matriz de Nossa Senhora da Expectação.
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passa, um instante que está e permanece, um instante apto a condensar, em si, vários momentos que se sucedem no tempo. Algo impossível de ser medido pelo tempo, porque transcende o tempo. Se este sugere uma duração com alterações, logo, uma sequência de momentos, a Eternidade revela, ante os nossos olhos deslumbrados e inquietos, embora cheios de esperança, uma duração sem metamorfoses, nem sucessões. “Absoluta permanência, no ser, do que é absolutamente necessário”, explicou Roque Cabral, enfatizando a sua feição deveras abstracta. Por outro lado, se – de acordo com o conceito clássico – tal Eternidade significa a “propriedade do que é isento de qualquer sucessão ou limite na sua sucessão”, vista na perspectiva das culturas tradicionais representa a infinitude do tempo, para lá de contingências que a possam limitar. Isto acaba por conduzir a uma espécie de negação do próprio tempo. Os antigos irlandeses, por exemplo, justapunham o tempo humano, fixo e irrevogável, definido pela regularidade cíclica, ao tempo divino, de fronteiras indefinidas e ilimitadas. Séculos e milénios equivaliam facilmente a um ano, ou vice-versa. Para romper o ciclo temporal, procedia-se à adição de uma unidade: v . g . , um ano e um dia ou um dia e uma noite, iguais a “mil e uma noites”, convertiam-se, pois, em símbolos da Eternidade. Poderíamos aduzir, também nós, mil e um exemplos dignos de atenção, mas não se devem esquecer as observações de Mircea Eliade a respeito do que singulariza o tempo hierofânico: heterogeneidade; solidariedade; contiguidade; periodicidade; renovabilidade… Os fundamentos de uma assumida diferenciação entre tempo finito e tempo infinito ascendem à etapa arcaica do pensamento grego. Anaximandro mencionou a existência de gerações e corrupções cíclicas que obedeceriam a uma duração eterna, indeterminada. O eco disto soa na existência, defendida por Anaxímenes, de um movimento da Eternidade, depois considerado atributo do universo pelo Pseudo-Filolau. Heraclito imputou essa existência ao Logos. Euclides ocupou-se da infinitude dos números primos. Para Platão, a Eternidade representou um predicado das ideias imóveis, e o tempo a imagem variável da invariável Eternidade, vinculado ao movimento do céu e ao número: “imitação móvel da Eternidade [...], progride segundo o número das revoluções dos astros”; isto fê-lo ligar o carácter necessário das Formas, incluindo os objectos matemáticos, à Eternidade. Para Aristóteles, pelo contrário, esta era duração isenta de princípio e fim, capaz de compreender em si mesma – à semelhança da infinitude do cosmos – um tempo ilimitado, distinto do tempo comum, que mede o movimento de acordo com um antes e um depois. Tempo composto por um passado que “já não é” e um futuro que “ainda não é”. Tempo de que o presente constitui um “limite”, sem o integrar deveras. Tempo sem limites, embora a ele esteja ligado.
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BREVE INTRODUÇÃO À ETERNIDADE
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Fílon de Alexandria esteve entre os primeiros pensadores que atribuíram uma condição intemporal a Deus. No entanto, foi Plotino, figura maior do Neoplatonismo, quem estudou de modo profundo a dependência intrínseca do tempo e da Eternidade, revelando que, ao fluir, ele incide, não no mundo físico, mas na alma do mundo: “uma vida que persiste na sua identidade, sempre presente em si mesma na sua totalidade”; consequentemente, a Eternidade manifestar-se-ia como a estabilidade absoluta do mundo inteligível e seria similar a Deus. A presente alternativa, no entanto, foi abandonada por Proclo, que a viu enquanto hipóstase p e r se , da qual manariam todas as coisas eternas, tal como as coisas temporais participariam, na sua temporalidade, do tempo; isto levou-o a uma separação, especiosa sem dúvida, entre o que é eterno, a sua Eternidade e, por fim, a Eternidade em si. A elevação da Eternidade a uma hipóstase divina triunfaria nas cosmogonias dos sistemas gnósticos, cada um deles dotado do respectivo “pleroma” ou sistema inteligível. Simbolizando o que está privado de limites, a Æte rnitas costuma ser figurada por uma divindade alegórica, sob a forma de mulher formosa e distinta, com cabelos compridos, louros, soltos. Ostenta diversos atributos: um Sol e uma Lua, um ceptro, uma cornucópia ou esferas de ouro, alusões ao princípio e ao fim, ou seja, à totalidade, ao domínio sobre esta e à abundância infinita. Pode também aparecer sentada num globo circundado de estrelas ou envolta por um cíngulo formado pelas mesmas estrelas. Graças à fabulosa longevidade de que gozam, tornaram-se animais emblemáticos da Eternidade o elefante, o cervo, o leão. A ave fénix, capaz de renascer das próprias cinzas, é outra das suas metáforas, mas, entre as criaturas fantásticas, nenhuma gozou de maior celebridade, para a figurar, devido à forma circular, do que a o uro b o ro s, serpente que morde a própria cauda. Não é o anel da circunferência a imagem, por antonomásia, de um mítico eterno retorno? Dir-se-ia que, em termos cósmicos, por analogia ao que sucede no plano espiritual, a Eternidade coincide com a ausência ou a resolução de conflitos, permitindo uma superação das contradições. Evidencia, pois, a integração perfeita do Ser no seu princípio ou na sua essência. Mas é também o reflexo da intensidade absoluta e permanente da vida verdadeira, aquela que está isenta de todas as vicissitudes das mudanças, em particular das impostas pelo tempo. Cogitar-se-á, pois, que o desejo de durar eternamente significa, para a condição humana, a luta sem tréguas contra o tempo, de modo a conquistar uma vida tão completa que triunfe, para sempre, sobre a morte. Por isso, a Eternidade reside mais no turbilhão da existência do que no imobilismo, é um acto vital de uma intensidade infinita, expressa na duração do vivente. A escatologia da vida eterna conduz ao imperativo de uma ética existencial. “Quando souberes o que é eterno,
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saberás o que é recto”, pode ler-se n’O Liv ro d o Caminho e d a V irt ud e , fonte primordial do Taoísmo.
2. O Senhor da Eternidade Já sob o signo do Cristianismo, não faltarão interpretações que apontam Jesus como “o advogado da Eternidade futura”, segundo a conhecida expressão de Clemente de Alexandria. O conceito cristão permaneceria fiel ao significado cósmico da duração sempiterna, o evo (do grego aiô n, pelo latim æv um), duração sem princípio, nem fim, e à oposição entre uma extensão temporal indefinida e uma eterna contemporaneidade. Conceder à Eternidade, ainda por cima de maneira absoluta, as características da temporalidade humana revelava-se pouco adequado ao Altíssimo, algo perfeitamente intuído pelo Judaísmo. O pensamento cristão foi no seu encalce, valorizando, também ele, a ideia de um Deus estranho – ainda que não alheio – ao espaço humano e à temporalidade que o determina, mas um Deus que se associa, de forma íntima, a estas realidades, mercê da Aliança estabelecida com os homens. Um pacto que se desenvolve no tempo e introduz o “sinal” da mão divina na História. Efectivamente, os autores do Antigo Testamento não se interessaram pela subtil distinção entre o Devir, mutável e perceptível pelos sentidos, e o Ser imutável. Abundariam, contudo, na existência de um Deus dotado de assumido perfil espiritual, fora dos limites do tempo e das alterações que lhe pautam o curso. Yahweh, “aquele que é” (Ex . , 3,14), “reinará eternamente e para sempre” (Ex . , 15,18; cf r. Dt. , 32,40; Ps. , 90,2, e 93,2). Ele constitui, salientou o profeta Baruc, “o Eterno” (4,14; cf r. 20,22,24). Todavia, conhecemo--Lo apenas por intermédio da tradução grega, onde as palavras aiô no s e aiô n encontraram, na linguagem dos filósofos, ressonâncias de Eternidade. Os textos hebreus fizeram uso do termo o lam, que traduz a ideia de tempo, sem indicação da duração e sem relação directa com o presente, pois pertence tanto ao passado como ao futuro. Compreende-se, portanto, que a expressão El-o lam (“Deus da Eternidade”) do Liv ro do Gé ne sis (21,35) e das profecias de Isaías (40,28) e Jeremias (10,10) tenha sido vertida, pelos Setenta, para o equivalente grego aiô no s; e que a palavra o lam, surgida num contexto já de si muito vinculado a uma evocação da existência de Deus – ou da actividade divina –, adquirisse frequentemente o sentido de “Eternidade”, consoante o equívoco aiô n transmite, designando a duração permanente, sem início e sem ocaso, própria de Deus. Eterna é a Sua palavra: de acordo com a proclamação de Isaías (40,8), ela “permanece para sempre”. São eternas a Sua salvação (Is. , 51,6) e a Sua vitória (Is. , 51,8). Dois trechos
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BREVE INTRODUÇÃO À ETERNIDADE
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célebres explicam a participação dos justos nesta vitória e nesta salvação “na vida eterna”. Um deles consta do Se g undo Liv ro do s Macabe us e relata como, durante a perseguição movida por Antíoco IV Epifânio aos judeus, no intuito de os helenizar, após a conquista de Jerusalém, um dos sete irmãos condenados ao martírio por não abjurarem da sua fé interpelou o crudelíssimo soberano (7,9): “Ó malvado, tu arrebata-nos a vida presente, mas o Rei do Universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às Suas leis.”
O outro prende-se com o anúncio, pelo profeta Daniel, da libertação de Israel, quando revelou que esse período sanguinolento iria terminar, e opõe sem hesitações a doutrina da ressurreição da carne, tipicamente bíblica e semita, à da imortalidade da alma, de sabor mais helénico (12,2-3): “Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, outros para a ignomínia, para a reprovação eterna. Os que tiverem sido sensatos resplandecerão como a luminosidade do firmamento, e os que tiverem levado muitos aos caminhos da justiça brilharão como estrelas com um esplendor eterno.”
Vem a propósito assinalar, na esteira de Jorge Luis Borges, que a noção de que o tempo dos homens não pode ser comparado com o tempo de Deus surge bem patente no Islão, em particular numa das tradições do ciclo da mirag e m de Maomé. O autor da extraordinária Histó ria d a Ete rnid ad e sintetizou-a assim: “Sabe-se que o Profeta foi arrebatado até ao sétimo céu pela resplandecente égua A lb urak e que conversou com cada um dos patriarcas e dos anjos que o habitam e que atravessou a Unidade e sentiu um frio que lhe gelou o coração quando a mão do Senhor lhe deu uma palmada no ombro. O casco de A lb urak , ao deixar a terra, derrubou um jarro cheio de água; no seu regresso, o Profeta levantou-o e não se tinha entornado nem uma só gota.”
3. Interpretatio Christiana A realização histórica da Aliança de Deus com a humanidade viria a cumprir-se em Jesus Cristo. Este é Filho de Deus ab æte rno , que partilha com o Pai a Eternidade, e Filho do Homem, que partilha com os demais homens a temporalidade. A Sua Ressur-
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reição de entre os mortos concilia esta história com a Sua presença eterna, pois Ele encerra, em Si, a chave dos tempos. São João lembrou-o, de forma altíloqua, no prólogo do respectivo Evangelho (1,1-5): “No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, E o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio, com Deus. Tudo começou a existir por meio d’Ele, e, sem Ele, nada foi criado. N’Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a admitiram.”
Sinónimo de graça e de salvação, a temporalidade do Filho encarnado não poderia deixar, conforme notou Adalbert Hamman, de obedecer ao desígnio eterno de Deus. Tirando partido de categorias que devem ser entendidas, numa lógica mais física do que metafísica, em obediência aos parâmetros coevos, os Evangelistas fizeram recuar o curso do tempo até à esfera da criação. A Eternidade aparece aí enquanto tempo sem limites, o tempo de Deus, face ao qual o tempo do homem não passa de um fragmento, parcela mais ou menos ínfima desse tempo completo. São João serviu-se de um aoristo – tempo da flexão verbal grega que exprime uma acção passada, sem noção de duração – para aludir ao tempo da história, o tempo da Revelação, e usou o imperfeito para evocar o tempo original, o tempo de Deus, que precede a História da Salvação. Um tempo em que o Logos habita já no Pai, deixando transparecer a vontade desse mesmo Pai, salvo-conduto para a v ita æte rna, cuja sublimidade o Filho há-de revelar. Na época de Cristo, as alusões à vida eterna eram uso corrente, como as referências às chamas ou aos castigos do Inferno, também eles ditos “eternos”, reservados aos malditos. Os ensinamentos do Novo Testamento que opõem os valores temporais (perecedores) às riquezas extratemporais (duradouras), entesouradas “para o Céu”, visam preparar a entrada triunfal da humanidade, seguidora de Cristo, nessa Æte rnitas cuja noção se tornara familiar a muitos. Aí reina o Deus invariável, “no Qual não há mudança, nem sombra de variação” (Iac. , 1,17), isto “pelos séculos dos séculos” (A d Ro m. , 16,27; A d Gal. , 1,5; A p . , 1,6; 4,9; 5,13; cf r. Dan. , 7,18). Eis um plural de intensidade, transcrito do s æcula s æculo rum da Vulgata, mas que se pode ler na condição de “eternidades de eternidades”. Deus é “o único que goza de imortalidade” (I Tim. , 6,6).
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Santo Isidoro explicou-o assim: “É imortal […] porque na Sua natureza não se produz mudança alguma. Podemos dizer com toda a propriedade que toda a mutabilidade implica ser mortal. De acordo com isto, diz-se também que a alma morre, não porque se converta ou transforme em corpo ou noutra substância, mas porque há ou houve algo na sua própria substância que se modificou; por isso, se deixa de existir algo que existia, conclui-se que é mortal. Precisamente por isto, diz-se que Deus é imortal, porque é o único que é imutável.”
A conjugação da Eternidade e do tempo imprime solidez a um dos alicerces da fé cristã. Ela permite esclarecer, à sua maneira, o evento misteriosíssimo da Encarnação do Verbo e a esperança da ressurreição da carne, retirando-os de uma materialidade ambígua e incoerente, aos olhos inspirados das Sagradas Escrituras, embora sem lhes dissolver a realidade. Se a Eternidade é um atributo de Deus, o tempo é um atributo da criação, não do Criador. Cingindo todas as coisas, a Eternidade pode abraçar, igualmente, tudo o que se desenvolveu, desenvolve e desenvolverá no tempo. Santo Agostinho sublinhou, a este respeito, a ideia da heterogeneidade entre a Eternidade e o tempo, reflexo da heterogeneidade existente entre o Criador e as criaturas. Com efeito, o mo d us da vida temporal, que abrange a existência de todas as coisas reais, desde o “nascimento” à “morte”, integra o mo dus da vida eterna, pelo que permite a participação na vida do próprio Criador. Esta dicotomia não deixaria de causar embaraços e até incertezas, nos primeiros séculos da vida da Igreja, face ao papel reservado a Deus, o Eterno por antonomásia. Por isso mesmo, Santo Agostinho sentiu-se também compelido a elucidar – e fê-lo com o brilho de um excepcional retórico – as contingências que dela procedem, tornando muito perceptível a diferença ontológica entre o paradigma da Eternidade e o paradigma do tempo: “O tempo não pode medir a Eternidade […]. Na Eternidade […] nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente […]. Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas Eternidade […]. Quando se diz que se vêem os acontecimentos futuros, não se vêem os próprios acontecimentos ainda não existentes – isto é, os factos futuros –, mas sim as suas causas ou, talvez, os seus prognósticos já dotados de existência […], o futuro já preconcebido na alma.”
A Escolástica debateu largamente o problema de poderem confluir, em abstracto, a
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criação e a existência do mundo ab æte rno . Esta hipótese, repudiada pelas escolas de inspiração platónica e agostiniana, foi defendida por São Tomás de Aquino, para o qual não havia incompatibilidade metafísica entre as duas realidades. Mesmo que existisse “desde a Eternidade”, o mundo comportaria sempre, no seu desenvolvimento, a temporalidade, pelo que a Eternidade residiria, não nele, mas na vontade de o criar ab æte rno , tal como se manifesta em fazê-lo perdurar in æte rno . Chegou a distinguir-se entre Æte rnitas a p arte ante , o tempo infinito que passou desde a criação até hoje, um fenómeno “histórico”, e Æte rnitas a parte po st, o tempo infinito que ainda há-se ocorrer. Segundo tal tese, o âmbito da Eternidade “integral” diz respeito apenas a Deus, enquanto a Eternidade “posterior” concerne às criaturas que Ele quis preservar infindavelmente. Séculos andados, Cornelio Fabro, grande perito do Tomismo que tem vindo a servir-nos de cicerone na visita às fontes da trad itio cristã, chamou de novo a atenção para a realidade de que, de acordo com a essência da doutrina católica, a Eternidade é, por natureza, um apanágio de Deus. Daí que, embora se fale, na linguagem quotidiana – ou na nomenclatura mais intrincada dos teólogos –, do carácter eterno da matéria, do mundo ou, inclusivamente, das penas dos que foram lançados ao Inferno, a palavra deve aplicarse, em boa verdade, somente ao Altíssimo. No entanto, registemo-lo, as criaturas por Ele engendradas podem participar dessa condição, desde que guardem – conforme afirmam os tomistas – alguma perenidade, do ponto de vista da respectiva existência. Isto estende-se, de resto, ao conjunto do mundo físico, a p arte p o st. Embora os simples seres materiais, dos mais humildes aos mais gloriosos, se mostrem “corruptíveis”, o destino final do mundo estaria, não na aniquilação da matéria, mas numa transformação global que conduz a “novos céus e uma nova terra”, como lembrou São Pedro (II Pe t. , 3,13). Quanto aos seres dotados de um maior grau de perfeição e imortais – os que tiveram princípio, ainda que não tendo fim –, nomeadamente os homens, possuidores de anima, em rigor poderá afirmar-se que são partícipes, não da Eternidade, mas da Eviternidade, o domínio do evo. Porém, o grau superlativo de participação é o que São Tomás associou ao pleno domínio da vida eterna: “Outros participam em maior grau do conceito de Eternidade por serem imutáveis em relação ao ser e também em relação à operação, como sucede com os anjos e os santos que já gozam da Palavra, porque, pelo que diz respeito à contemplação da Palavra, nos santos não há pensamentos mutáveis […].”
São Boaventura, ao tratar do complexíssimo mistério da Santíssima Trindade, assinalou que a simplicidade e a invisibilidade, características dos “mundos do centro”, pertencem
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à Eternidade. Tal como Alexandre de Hales ou Santo Alberto Magno, ele tornou clara a separação entre Eternidade, evo e tempo. Santo Anselmo propôs, pela primeira vez, uma “gramática” dos poderes do Padre Eterno que O apresentam na qualidade de o mais perfeito dos seres, incluindo, entre tais poderes, o da intemporalidade. Dante Alighieri, por seu turno, lembrado das elucubrações dos antigos, fez referência, na Div ina Co mé d ia, a um to p o s excelso, no qual todos os tempos afluem; eis, traduzido por Vasco Graça Moura, esse trecho do Paraíso : “Assim vês tu as cousas contingentes mirando, antes de haverem ser assunto, ponto que os tempos todos tem presentes; enquanto com Virgílio andava eu junto, por sobre o monte que é das almas cura e descendo no mundo que é defunto, ditas ouvi da vida a mim futura palavras graves, mas meu ser sustenta tetrágono tais golpes da ventura.”
Eternos seriam também, já o ponderámos, todos os castigos que esperam os demónios e os réprobos no Inferno, apesar da tese de Orígenes de que existirá uma “restituição” ou reintegração final, destinada a trazê-los de novo à felicidade e a extinguir esse lugar de condenação. No entanto, para os modernos caudilhos do Imanentismo, a doutrina da existência do Inferno enquanto perene lo cus ho rrib ilis constitui, não um dogma, mas uma “questão pueril” (e ine Kind e rf rag e ). 4. No Âmago do Tempo Como se vê, perspectivar a duração infinita da Eternidade não representa, para o homem, um exercício livre de obstáculos. Segundo a le ctio tomista, visto que esse mesmo homem só pode lobrigar a natureza divina – e os seus atributos – através de uma analogia com a realidade material, ele é levado, amiúde, a conceber a duração imóvel que caracteriza o Eterno dentro dos moldes de uma presencialidade absoluta, estática, em contraponto quer ao fluxo e à metamorfose ininterruptos dos fenómenos físicos, quer à sequência dos processos mais elaborados das substâncias espirituais. Do e u humano ao Tu divino, há um salto avassalador. Para São Tomás de Aquino (e para o exército de leitores da Summa The o lo g ica), nas substâncias materiais, o instante limita-se a uma fracção do ser e está em contínuo
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movimento para diante; nas substâncias espirituais, o instante, embora permaneça fiel ao Ser, encontra-se sujeito, quanto ao agir, a uma evolução – descontínua, pois depende, fundamentalmente, do livre-arbítrio do espírito. Todavia, em relação a Deus, ente omnipotente e omnisciente por excelência, deve falar-se de uma realidade distinta, considerando que o instante assenta já num exercício de autodomínio de Si e do Ser. Não surpreende, pois, a tendência para, no processo do devir histórico, se imaginar a Eternidade como uma espécie de actualidade do instante, expandida até ao infinito. Contudo, o que se pode perceber de actual no instante temporal é apenas a manifestação do seu devir, algo que corresponde, afinal, à imperfeição do seu ser. Pelo contrário, a Eternidade constitui, já ficou dito, uma plenitude imóvel; quando o instante transita do tempo para ela, modifica a sua qualidade ontológica. O Doutor Angélico esclareceu-o com meridiana clareza: “De acordo com a nossa forma de entender, o agora pe rmane nte gera a Eternidade. Assim como a nossa noção do tempo é causada pela nossa percepção do fluir do agora, a noção de Eternidade é causada pela nossa ideia do agora permanente.”
São Tomás também admitiu que o homem possa alcançar uma percepção da Eternidade, mas esta ocorre, geralmente, sempre dentro do quadro de uma experiência muito particular, a da máxima concentração interior na esfera superior da inteligência e do amor, quando a alma se situa fora do seu habitual contacto com o mundo visível e ascende, simp licite r, em abandono, na direcção a Deus, que a atrai à maneira de um íman. Exemplo assaz eloquente disto é, pela intuição da Transcendência, a “visão de Óstia”, em que Santo Agostinho descreveu magnificamente, nas Co nf issõ e s, o arrebatamento místico aí sentido por ele e por sua mãe, Santa Mónica, já de idade avançada. Consideremos o trecho que, a propósito do êxtase, evoca um mundo de silêncio e de gozo, situado para além do tempo e da fantasia dos sentidos “Falávamos a sós, muito docemente «esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro». Na presença da verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, «que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou». Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste «da Vossa fonte, a fonte da Vida», que está em vós, para que, aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.
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Encaminhámos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção. Elevando-nos em afectos mais ardentes por essa felicidade, divagámos gradualmente por todas as coisas corporais até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra. Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as Vossas obras. Chegámos às nossas almas e passámos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há-de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela te r sid o , nem hav e r d e se r, pois simplesmente «é », por ser eterna. Ter sido e haver de ser não são próprios do Ser eterno. Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momenta neamente num ímpeto completo do nosso coração. Suspirámos e deixámos lá agarradas «as primícias do nosso espírito». Voltámos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao Vosso verbo que subsiste por si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando? Dizíamos pois: – Suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu. Suponhamos que ela guarda silêncio consigo mesmo, que passa para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente. Imaginemos que nessa mesma alma existe o silêncio completo porque, se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: «Não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos O que permanece eternamente». Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Deus sozinho fala, não por estas criaturas, mas directamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem, por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.”
Chamando a si o eco destas ideias, notavelmente sistematizadas por Aquino, Tommaso Campanella vislumbrou na identidade a razão final da Eternidade. Porém, com a emergência da cultura moderna, esta noção tendeu a perder consistência metafísica
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e a tornar-se um atributo da realidade, do mundo ou da substância; em suma, de tudo o que diz respeito à qualidade do absoluto na esfera do Ser. Ainda entre os metafísicos, Bento Espinosa foi quem mais rigorosamente associou o conceito de Eternidade, “sub quo infinitam Dei existentiam concipimus”, ao conceito de Ser absoluto ou de substância, os quais se amalgamam, para ele, com a ideia de Deus; ao situar a substância fora do tempo, contribuiu, de forma decisiva, para distinguir a Eternidade das modalidades da duração temporal. Tanto John Locke como Étienne Bonnot de Condillac puseram a tónica na explicação da ideia de Eternidade, à luz de uma redutora perpetuidade. Indo mais longe, Immanuel Kant entendeu-a como substância nouménica, apta a “temporalizar”, não obstante estar “fora” do tempo, o que significa que tanto pode haver ou não Eternidade, pois, segundo ele, o tempo faz parte da estrutura me nte , sempre limitada, ao não poder conceber nada que esteja fora da sua organização cognitiva… E a célebre Encyclo pé die , dirigida por Jean Le Rond d’Alembert e Denis Diderot, não hesitará em pôr de lado os argumentos escolásticos, enfatizando, no artigo correspondente a Ete rnité , o risco de entrar num labirinto quando se pretende descobrir a razão do que não se conhece.
5. Angústias e Esperanças Estas e outras hesitações acabariam por consumar-se na intensa actividade crítica de grandes pensadores do século XIX. Regressou, desta forma, a primordial controvérsia acerca dos dois significados que atravessam a história da noção de Eternidade, a vitalista e a temporal, tal como emergiram os ideais correlativos de perpetuidade e sempiternidade, que enaltecem a coexistência dessa Eternidade, abstracta e imaterial, com a duração do tempo. Jorge Luis Borges insistiu noutras duas noções, a realista e a nominalista, não muito distantes das enunciadas. Tarefa árdua, a de discernir entre conceitos aparentemente muito próximos mas, na verdade, cheios de matizações que derivam da especulação em torno dos limites do tempo e da sequência ou sucessão dos acontecimentos nesse tempo. Para o Idealismo Objectivo de Friedrich Hegel, a Eternidade não significava mais do que o resultado da extensão do tempo, exactamente como o Espírito Absoluto, isto é, Deus, constituía o resultado da sua actividade na história do mundo. Para o Fenomenismo de Charles Renouvier, este mundo não poderia ser concebido, em si mesmo, eterno, a não ser por absurdo. Para o Empirismo de John Stuart Mill, afigurava-se pouco admissível um tempo infinito, pois nada há que possa nascer que não esteja condenado a fenecer. Para o Materialismo de muitos outros, a matéria passou a ser entendida como uma
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realidade eterna e a preencher o espaço até ao infinito. Ainda assim, permanecia em aberto a magna questão posta por Goethe na boca de Fausto: “De que serve o Eterno criar, se a criação em nada findar?” Com efeito, o problema do papel de Deus, enquanto origem e fim de todas as coisas, e, devido a isso, o problema do encadear desse papel divino no ciclo vital da humanidade continuaria a marcar, fatalmente, os avatares do pensamento oitocentista. Reagindo contra os exageros do sistema hegeliano e aguilhoado pelo ímpeto de desenvolver uma filosofia cristã autónoma, Søren Kierkegaard elaborou uma teoria fundada sobre a existência real. De acordo com esta visão, Deus, embora constitua a referência primordial do homem, situa-se num plano distinto dele, o plano da Eternidade: “Deus não pensa (em abstracto), Ele cria; Deus não existe, Ele é eterno. O homem pensa e existe, e a existência separa o pensamento e o ser, mantém-nos sucessivamente afastados um do outro.”
Friedrich Nietzsche ocupou-se da temática da Eternidade em diversas vertentes da sua obra, sendo indubitável que, entre os aspectos mais interessantes que glosou, além da portentosa teoria do Eterno Retorno, se destaca um assumido regresso à dimensão existencial – e, por conseguinte, de forte pendor ético – que dela procede. Segundo escreveu, algo provocatoriamente, em A V o ntad e d o Po d e r, ou seja, “a vontade de potência” que advém da própria realidade das coisas e é, não somente essência, mas verdadeira necessidade da vida, “Imprimamos à nossa própria vida o selo da Eternidade. Este pensamento tem mais peso de conteúdo do que todas as religiões, que desprezam esta vida como fugidia e nos instigam a olhar para a «outra» vida, assaz mal definida...”
Já na transição do século XIX para o XX, Henri Bergson entendeu o tempo como duração psicológica no Ensaio so bre o s Dado s Ime diato s da Co nsciência, como tempo criador na Ev o lução Criado ra, como memória ontológica em Maté ria e Me mó ria. Tempo que é, principalmente, duração, ou seja, movimento constante e contínuo de mudanças essenciais. Não há imobilidade; por detrás do movimento há apenas movimento, ou seja, por detrás das coisas que mudam há uma essência que é, ela própria, também movimento. Atente--se na radicalidade da visão bergsoniana de realidade, para a qual não existe imobilidade nem na superfície, nem na essência. Logo, não há a co isa q ue mud a, há só mudança, porque a co isa, toda ela, é movimento.
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Senhor de uma das mais poderosas realizações do pensamento teológico protestante contemporâneo, centrada no regresso aos valores fundamentais do Evangelho, sem aceitar a ideia vulgar da predestinação, Karl Barth levou quase até ao limite este percurso dialéctico. Realmente, concebeu a Eternidade nos moldes de um tempo absoluto, muito mais amplo do que o compreendido pelo tempo da história humana, e de uma síntese dos diferentes momentos do tempo, destinada a redundar numa unidade integral, totalizadora: “A Eternidade não está, de facto, fora do tempo (ze itlo s). Esta é, acima de tudo, o lugar de origem do tempo, em particular do tempo eminente, absoluto, ou seja, a unidade imediata do presente, do passado e do futuro, primeiramente, e, depois, do meio, do princípio e do fim, do movimento, da origem e do objectivo.”
Esta genial visão da Eternidade como tempo perfeito e do próprio tempo como uma perfeição, tão distinta das correntes metafísicas tradicionais, não podia deixar de receber vigorosas reacções por parte das hostes católicas, mormente dos próceres do Neotomismo, sendo o autor muitaz vezes acusado de permanecer na esfera de um empirismo teológico. A ideia de uma unidade essencial do tempo que resolve o problema da alteridade radical dos seus diferentes momentos – passado, presente, futuro – foi criticada por ser algo que implicaria a “destruição” da realidade do próprio tempo; chegou mesmo a afirmar-se que, por causa da sequência que tal alteridade inevitavelmente envolveria, defendê-lo constituiria uma imperfeição não purificável no plano metafísico. O conceito barthiano de tempo único, porém, situa-se além do tempo e não entra em contradição, em rigor, com o facto de a Eternidade, o evo e o tempo representarem atributos do ser, dele manarem e estarem a ele unidos pela sua própria natureza. Segundo acentuou Cornelio Fabro, aquilo que é criado constitui o ente por participação. Este pode afirmar-se quer no evo, quer no tempo. Ora, evo e tempo estão visceralmente associados ao ser e às perfeições do ente por participação; tal ser e tais perfeições desfrutam, portanto, da positividade ontológica de que participa o finito – e da qual o intelecto sai para conceber o infinito. Abraçando um rumo não muito distante do de Barth, Emil Brunner entendeu também a Eternidade como uma “plenitude do tempo” (Erf üllung se r Ze it) e uma “temporalidade plena” (V o llze itlichk e it). “Viver é perder tempo: nada podemos recuperar, nem conservar, senão sob a forma de Eternidade”, advertira já George Santayana. Contudo, onde principiaria esta omnipresente – para não dizer omnipotente – Eternidade, tão absoluta e completa, tão inteira e tão úbere? Se a crença comum, segundo lembrou Jorge Luis Borges, é a de que jorra do
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passado para o porvir, afigura-se igualmente lógica a hipótese contrária, evocada por Miguel de Unamuno em versos que reiteram, sob roupagens modernas, o conceito escolástico do tempo enquanto fluência do potencial no actual: “Nocturno o rio das horas flui da sua nascente que é o amanhã eterno…”
Tão fortes argumentos não deixaram de colidir – mas também de se entrosar – com a consciência dramática de um século XX que, cindido entre dor e esperança, conheceu o horror de duas guerras mundiais, a infâmia dos campos de extermínio ou as chamas de Hiroshima e Nagasaki, mas também a descoberta da penicilina, a estética modernista ou o lançamento do homem no espaço. Uma das mais cativantes sínteses deste período deve-se ao jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin, notável paleontólogo, filósofo e teólogo, e é o fruto do diálogo da Ciência e da Fé, cujos representantes viviam, até aí, quase sempre, em clima de mútua desconfiança. A sua doutrina fundamenta-se essencialmente na convicção de que o universo inteiro está empenhado, desde a origem, num movimento evolutivo que se dirige da matéria inanimada para um objectivo último. Soube expô-la com o brilho de um verdadeiro artista. Interpretando de forma confiante, cheia de optimismo, destacadas correntes do mundo moderno, Teilhard considerou que a matéria-prima do cosmos, a substância do universo (W e ltsto f ), apresenta duas faces: uma exterior, de ordem material e energética; e uma interior, de ordem psíquica e espiritual. Todo o processo evolutivo, do átomo ao ser humano, passando pela molécula, a célula, os vegetais e os animais, assenta numa organização progressiva da matéria, fenómeno de complexificação de que é correlativa a manifestação, sempre mais vincada, de um psiquismo que, latente de início, se torna pensamento e, depois, pensamento reflexivo, um fenómeno de hominização. Surge em seguida a noosfera, camada pensante que envolve a terra e reúne os homens numa completude transumana, anunciadora do po nto Óme g a, ou seja, Deus, ao qual tudo aflui. As tentativas do P.e Teilhard de Chardin para estabelecer pontes entre a vanguarda da ciência e a reflexão teológica não alcançaram, em vida do autor, os melhores resultados. Muitos negaram o valor científico da sua obra, acusando-a de estar impregnada de um misticismo e de uma linguagem estranhos à prática da ciência. A Igreja Católica foi ainda mais severa. Proibido pelos superiores da Companhia de Jesus, em obediência a orientações da Congregação do Santo Ofício, de ensinar e de publicar os seus estudos filosóficos e teológicos, cuja meticulosa preparação nunca abandonara, viu-se submetido
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a um quase-exílio na China, primeiro, e nos Estados Unidos da América, depois. Nada disto impediu que o legado espiritual deste pensador, sintetizado na autobiografia O Co ração d a M até ria, perdurasse como um farol, iluminando sucessivas gerações. 6. No Fio da Navalha “Ó Deus, Tu que nos fizeste para morrer, porque infundiste a sede de Eternidade, de que é feito o poeta?”, perguntou-se Luis Cernuda, o mestre do desejo, esta ânsia sempre fugitiva, mas sempre procurada, que ele viveu numa espiritualidade acolhedora e íntima. Talvez sejam os artistas, criadores e intérpretes, afinal, elementos-chave para se lograr intuir, mais do que compreender, o cerne dessa magna, transcendente realidade. Sem o poder da imaginação, tanto o acto científico como o acto de Fé arriscar-se-iam a cair numa repetição estéril. Daí que a fascinante interpelação lançada ao vento por Guillaume Apollinaire, em La jo lie ro usse , com a grandeza de quem dispara cordialmente um tiro de saudação para a fortaleza da ortodoxia, continue a visitar-nos, perturbadora, à maneira de um apelo que se transforma em prece: “Vós cuja boca é feita à imagem da de Deus Boca que é a ordem em si Sede indulgentes ao comparar-nos Com aqueles que foram a perfeição da ordem Nós que, por toda a parte, procuramos a aventura
Não somos vossos inimigos Queremos dar-vos territórios vastos e estranhos Onde o mistério em flor se oferece a quem quer colhê-lo Com fogos novos e cores nunca vistas Com mil fantasmas imponderáveis Aos quais é necessário infundir realidade […] Piedade por nós que combatemos sempre nas fronteiras Do ilimitado e do futuro Piedade pelos nossos erros, piedade pelos nossos pecados […] Há tantas coisas que não ouso dizer-vos Tantas coisas que não me deixaríeis dizer Tende piedade de mim”
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Filhas ou netas de quem proclamara “Deus está morto”, as gerações contemporâneas vivem uma dimensão marcadamente antropológica da Eternidade, que redundou, amiúde, em manifestações de tirania antropocêntrica. Persegue-as, no entanto, um sentimento trágico de nostalgia, em que ainda soam os passos de Martin Heidegger ao explorar Caminho s de Flo re sta, conduzindo os leitores por trilhos nos quais medita sobre a problemática da essência e da origem da obra de arte, os fundamentos metafísicos das “concepções do mundo”, o conceito de experiência em Hegel, a temática da “morte de Deus” em Nietzsche, a pergunta holderliana acerca da raiso n d ’ être da poesia em tempos atribulados, o regresso à origem do pensamento acerca do Ser a partir do “dito de Anaximandro”. Os ecos desse mundo novo, afinal não tão admirável, retumbam na resposta de um poeta a outro poeta, a Ex p licação d a Ete rnid ad e , de José Luís Peixoto: “devagar, o tempo transforma tudo em tempo. o ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo.
os assuntos que julgámos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo.
por si só, o tempo não é nada. a idade de nada é nada. a eternidade não existe. no entanto, a eternidade existe.
os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. os instantes do teu sorriso eram eternos. os instantes do teu corpo de luz eram eternos.
foste eterna até ao fim.”
O debate filosófico actual continua a ser intensamente animado pela polémica entre os partidários do Eternalismo e os do Temporalismo, cujas raízes Sir Anthony Kenny, luminária do Tomismo Analítico, dissecou com brilhantismo em The Go d o f t he Philo so p he rs. Da bateria de argumentos esgrimidos, mais tarde, de um e de outro lado, salientaram-se novas respostas para velhas perguntas, reexaminadas nas últimas
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décadas sob distintas perspectivas, sem esquecer a interacção do tempo com a Eternidade, o que levou a repensar, nomeadamente, os conceitos de intemporalidade como duração, como não-duração ou como Eternidade quase-temporal. Em defesa das teses acerca da intemporalidade de Deus, têm vindo à liça as questões relacionadas com a sup e ra b und antia do Ser divino, o Seu protagonismo na criação do universo e o Seu conhecimento do futuro; no âmbito das teses proclives à te mp o ralitas de Deus, sobressai a problemática alusiva à acção do Criador no mundo e ao Seu conhecimento do presente. Algumas opiniões intermédias valorizam igualmente a “intemporalidade relativa” de Deus ou, até, o Seu papel duplo, intemporal fora da criação, mas temporal na criação. Estas perplexidades reconduzem-nos ao âmago da compreensão da Æte rnitas. Deixando o cerne da anfibologia da temporalidade v e rsus intemporalidade, já abundantemente revisitada, cumpre frisar que as duas existências por ela transmitidas – duas existências distintas, embora complementares – são melhor compreendidas através de uma analogia musical muito simples. Na realidade, poderá dizer-se, com Fernand Comte, que isso é precisamente o que sucede a uma melodia. Uma dessas vidas – chamemos-lhe assim, para simplificar – repousa na partitura, tendo sido aí fixada, após a sua criação, pelo compositor; está “terminada”, mas revela-se apenas a alguém, um especialista, que saiba lê-la sob a forma escrita. Porém, não estará verdadeiramente “completa”, não será ela própria até que alguém (um solista, um coro, uma orquestra) a interprete através do recurso a uma ou mais vozes, a um ou mais instrumentos. O mundo temporal, como a obra do compositor, assemelha-se a esta construção do Ser que só se realiza, em plenitude, na Eternidade. Para a compreender, há que ter a coragem de superar os lo ci classici do Teísmo.
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BREVE INTRODUÇÃO À ETERNIDADE
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BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA
CORNELIO FABRO, “Eternità”, s. v . , em Enciclo p e d ia Catto lica, V, Cidade do Vaticano, Ente per l’Enciclopedia Cattolica e per il Libro Cattolico, 1950, cols. 668-671; id . , “Immortalità dell’Anima Umana”, s . v . , em Enciclo p e d ia Catto lica, VI, Cidade do Vaticano, Ente per l’Enciclopedia Cattolica e per il Libro Cattolico, 1951, cols. 1682-1694; ROBERTO M ASI , “Tempo”, s . v . , em Enciclo p e d ia Catto lica, XI, Cidade do Vaticano, Ente per l’Enciclopedia Cattolica e per il Libro Cattolico, 1953, cols. 1896--1902; A. L[ANTERI], “Eternità”, s. v . , em ANGELO MERCATI & AUGUSTO PELZER (dir. de), Dizio nario Eccle siastico , I, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1953, pp. 1019, col. B-1020, col. A; A[GOSTINO] GA[NDOLFO], “Immortalità dell’Anima”, s. v . , em ANGELO MERCATI & AUGUSTO PELZER (dir. de), o p . cit. , II, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1955, pp. 395, col. B-396, col. B; B[ENVENUTO] R[EYNALDI], “Tempo. I. Filosofia”, s. v . , em ANGELO MERCATI & AUGUSTO PELZER (dir. de), o p . cit. , III, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1958, pp. 1063, col. B-1064, col. A; EUG[ÈNE] DROULERS, Dictio nnaire d e s A ttrib uts, A llé g o rie s, Emb lème s e t Symb o le s, Turnhout, Établissements Brepols, [s.d.], p. 70, s. v . “Éternité”; ANTHONY KENNY, The Go d o f the Philo so p he rs, Oxford, Clarendon Press, 1979; ELEONORE STUMP & NORMAN KRETZMANN, “Eternity”, em J o urnal o f Philo s o p hy , LXXVIII, 8, Nova Iorque, 1981, pp. 429-458; NICHOLAS WOLTERSTORFF, “God Everlasting”, em STEVEN M. CAHN AND DAVID SHATZ (dir. de), Co nte mp o rary Philo so p hy o f Re lig io n, Nova Iorque, Oxford University Press, 1982, pp. 77-89; HANS URS VON BALTHASAR, “El Camino de Acesso a la Realidad de Dios”, em JOHANNES FEINER & MAGNUS LÖHRER (dir. de), Mysterium Salutis. M anual d e Te o lo g ía co mo Histo ria d e la Salv ació n, II, La Histo ria d e la Salv ació n ant e s d e Cris t o [=M S, II], versão castelhana, 2.ª ed., Madrid, Ediciones Cristiandad, 1977, pp. 29-54; A LFONS D EISSLER , “La Revelación Personal de Dios en el Antiguo Testamento”, em M S, II, pp. 195-232; MAGNUS LÖHRER, “Propiedades y Formas de Actuación de Dios. Observaciones Dogmáticas”, em M S, II, pp. 249-268; WALTER KERN, “Interpretación Teológica de la Fe en la Creación”, em M S, II, pp. 387-456; E[LMAR] KLINGER, “Cristo en la Fe y en la Historia”, em JOHANNES FEINER & MAGNUS LÖHRER (dir. de), Mysterium Salutis. M anual d e Te o lo g ía co mo Histo ria d e la Salv ació n, III, El A co nte cimie nto Cristo [=M S, III], versão castelhana, 2.ª ed., Madrid, Ediciones Cristiandad, 1980, pp. 27-54; R[APHAEL] SCHULTE, “El Acontecimiento Cristo, Acción del Padre”, em M S, III, cit. , pp. 55-81; A[DALBERT] HAMMAN, “El Acontecimiento Cristo, Acción del Hijo”, em MS, III, cit. , pp. 82-92; N[OTKER] FÜGLISTER, “Fundamentos Veterotestamentarios de la Cristología del Nuevo Testamento”, em M S, III, pp. 94-185; D[IETRICH] WIEDERKEHR, “Esbozo de Cristología Sistemática”, em M S, III, pp. 382-504; J[UAN] ALFARO, “Las Funciones Salvíficas de Cristo como Revelador, Señor y Sacerdote”, em M S, III, pp. 507-569; H[EINRICH] GROSS, “Escatología del Antiguo Testamento y del Judaísmo Primitivo”, em JOHANNES FEINER & MAGNUS LÖHRER (dir. de), Mysterium Salutis. M anual d e Te o lo g ía co mo Histo ria d e la Salv ació n, V, El Cristiano e n e l Tie mp o y la Co nsumació n Escato ló g ica, versão castelhana, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1984 [=M S, V], pp. 665-685; K[ARL] H[ERMANN] SCHELKLE, “Escatología del Nuevo Testamento”, em M S, V, pp. 686-739; W[ILHELM] BREUNING, “Elaboración Sistemática de la Escatología”, em M S, V, pp. 741-845; CAMILLE DUMOULIÉ, “L’Éternel Retour: La «Grande Pensée» de Nietzche”, s. v . , em PIERRE BRUNEL (dir. de), Dictio nnaire d e s M ythe s Litté raire s, Mónaco, Éditions du Rocher, 1988, pp. 574-579; M[ARIE]-M[ADELEINE] DAVY, [FRANÇOISE] LE ROUX-[CHRISTIAN-JOSEPH] GUYONVARC’H e t al. , “Eternidad”, s. v . , em JEAN CHEVALIER (dir. de) & ALAIN GHEERBRANT (colab. de), Diccio nario d e lo s Símb o lo s, versão castelhana, 2.ª ed., Barcelona, Editorial Herder, 1988, p. 489; V[ITORINO] DE SOUSA ALVES, “Duração”, s. v . , em ROQUE CABRAL e t al. , Logos. Enciclo p é dia Luso -Brasile ira de Filo so f ia [= L], I, Lisboa, Editorial Verbo, 1990, cols. 1491-1495; R[OQUE] CABRAL, “Eternidade”, s. v . , em L, II, Lisboa, Editorial Verbo, 1992, cols. 331-333; M[ANUEL] ANTUNES, “Eterno Retorno”, s. v . , em L, II, col. 334; CARLOS HENRIQUE DO CARMO SILVA, “Tempo”, s. v . , em L, V, Lisboa, Editorial Verbo, 1992, cols. 58-
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93; JOAQUIM DE SOUSA TEIXEIRA, “Temporalidade”, s. v . , em L, V, Lisboa, Editorial Verbo, 1992, pp. 9397; JOSEF WOHLMUTH, “Beleza/Glória”, s. v . , em PETER EICHER (dir. de), Dicio nário d e Co nce ito s Fundame ntais de Te o lo g ia, versão portuguesa, São Paulo, Paulus, 1993, pp. 51, col. B-55, col. B; WILHELM BREUNING, “Deus/Trindade”, s. v . , em PETER EICHER (dir. de), o p . cit. , pp. 149-162; JOSEF BLANCK, “Jesus Cristo/Cristologia. A. Ponto de Vista da Teologia Bíblica”, s. v . , em PETER EICHER (dir. de), o p . cit. , pp. 418-424; BERND JOCHEN HILBERATH & THEODOR SCHNEIDER, “Jesus Cristo/Cristologia. B. Ponto de Vista Sistemático”, s. v . , em PETER EICHER (dir. de), o p . cit. , pp. 424, col. B-432, col. B; MARIE-LOUISE VON FRANZ, Time . Rhythm and Re p o se , 2.ª ed., Londres, Thames and Hudson, 1997; G UY M ONNOT, “Dios en el Islam”, s . v . , em PAUL P OUPARD (dir. de), Diccio nario d e las Re lig io ne s, versão castelhana, 2.ª ed., Barcelona, Editorial Herder, 1997, pp. 464, col. B-466, col. A; ANDRÉ MANARANCHE & ÉDOUARD COTHENET, “Dios en la Biblia”, s. v . , em PAUL POUPARD (dir. de), o p . cit. , pp. 466-478; ERIKA CRUIKSHANK-DODD, “Logos Word”, s. v . , em HELENE E. ROBERTS (dir. de), Encyclo p e dia o f Co mp arativ e Ico no g rap hy – The me s De p icte d in W o rk s o f A rt, I, Chicago, Fitzroy Dearborn Publishers, 1998, pp. 515-517; FERNAND COMTE, Dictio nnaire d e la Civ ilisatio n Chré tie nne , Paris, Larousse, 1999, pp. 433, col. B-434, col. A s. v . “Éternité”; MIRCEA ELIADE, Tratado d e Histó ria d as Re lig iõ e s, versão portuguesa, 4.ª edição, Porto, Edições ASA, 2004, pp. 481505; GIANNI AMBROSIO (dir. de), Christos. Enciclo p é d ia d o Cristianismo , versão portuguesa, Lisboa, Editorial Verbo, 2004, p. 335, s. v . “Eternidade”; ENRICO COLOMBO, “Tempo”, s. v . , em GIANNI AMBROSIO (dir. de), o p . cit. , pp. 823, col. B-824, col. A; JOSEPH R ATZINGER, Escato lo g ía. La M ue rte y la V id a Ete rna, versão castelhana, 2.ª ed., Barcelona, Herder Editorial, 2007, mormente pp. 87-255; FRANÇOIS BŒSPFLUG, Die u e t se s Imag e s. Une Histo ire de l’ Éte rne l dans l’ A rt, Bruxelas, Éditions Luc Pire, 2008; UMBERTO ECO, A V e rtig e m d as Listas, versão portuguesa, Lisboa, Difel, 2009, pp. 49-62; JORGE LUIS BORGES, Histó ria d a Ete rnid ad e , versão portuguesa, Lisboa, Quetzal Editores, 2012; PIERRE TEILHARD DE CHARDIN, A uto b io g rap hie Sp iritue lle , ed. org. por MARIE-JEANNE COUTAGNE, 2.ª ed., Paris, Éditions du Seuil, 2013; GREGORY E. GANSSLE, “God and Time”, s. v . , em Inte rne t Encyclo p e dia o f Philo so p hy, http://www.iep.utm.edu (acesso em 1 de Janeiro de 2014). As versões portuguesas das obras de W. B. YEATS, DANTE ALIGHIERI, MIGUEL DE UNAMUNO e GUILLAUME APOLLINAIRE foram publicadas, respectivamente, por MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO (dir. de), MANUELA CORREIA (org. de) & SARA OLIVEIRA (coord. de), Ro sa d o M und o . 2001 Po e mas p ara o Futuro , Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 1163-1164; VASCO GRAÇA MOURA, A Divina Comédia d e Dante A lig hie ri, Lisboa, Bertrand Editora, 2006, pp. 31 e 741; JORGE LUIS BORGES, o p . cit. , p. 12, nota 1 (tradução de José Colaço Barreiros); e UMBERTO ECO, o p . cit. , p. 398 (tradução de Virgílio Tenreiro Viseu) – esta última, apresentamo-la com breve revisão. Os demais textos citados foram por nós traduzidos, a partir da bibliografia mencionada, com excepção de SANTO AGOSTINHO, Co nf issõ e s, 11.ª ed., Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1984, pp. 227-229; a versão de SANTO ISIDORO DE SEVILHA, também da nossa responsabilidade, segue a le ctio de Etimo lo g ías, ed. org. por JOSÉ OROZ RETA & MANUEL-A[NTONIO] MARCOS CASQUERO, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2004, pp. 616-619. O poema de JOSÉ LUÍS PEIXOTO foi publicado em A Casa, a Escurid ão , Lisboa, Temas e Debates, 2002, p. 66.
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A Música no Tempo
PAOLO PINAMONTI Director Artístico do Festival Terras sem Sombra
“Se queremos pensar o eterno, pensemo-lo como um presente desprovido de sequência, enquanto o tempo é a sequência que permanece, o passar. Se queremos representá-lo, o eterno é um andar para diante que, ao mesmo tempo, não se move. Na representação, o eterno constitui um presente infinitamente repleto de conteúdo. Deixou de ser possível encontrar nele a distinção entre o passado e o futuro, porque o seu presente é definido, efectivamente, pela ausência da sequência. […] O instante, […] que se encontra entre o passado e o futuro, pensado na sua abstracção, não possui nenhuma realidade. O átimo, na realidade, não é um átomo do tempo mas, acima de tudo, o átomo da eternidade. É o primeiro reflexo da eternidade no tempo, a sua primeira tentativa, num certo sentido, de fechar o tempo. […] O átimo é a ambiguidade na qual se tocam a temporalidade e o eterno.”
Retomando temáticas muito gratas a Platão e a Santo Agostinho, Kierkegaard cogitava assim, no seu famoso ensaio O Co nce ito da A ng ústia (1844), sobre a ide a do instante. Um instante privado de passado e de futuro, lídima metáfora da eternidade, remetendo para uma dimensão da temporalidade que nega a direccionalidade do passar, ou seja, a prospectiva do devir, e materializando-se, principalmente, através da repetição, da ciclicidade, da circularidade dos fenómenos. Estas imagens da temporalidade têm amplo eco na música que marca a cadência da 10.ª edição do Festival Terras sem Sombra. As primeiras composições polifónicas da escola de São Marcial de Limoges ou de Notre-Dame de Paris (séculos XII-XIII), que ouviremos no concerto de The Hilliard Ensemble, em Santiago do Cacém, a 26 de Abril, não conhecem o devir do tempo, fundamentando-se, essencialmente, numa ideia circular, repetitiva, desse mesmo tempo. Sucede algo de similar com os cantos populares da
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tradição rural húngara, harmonizados por Béla Bartók, onde transparece a concepção cíclica da progressão das estações que definem a cadência da vida nos campos, tendo por contraponto a noção de Æte rnitas patente na polifonia portuguesa de Seiscentos. A reflexão sobre a estrutura circular do tempo encontra outros momentos assaz significativos nos dois concertos, de Sines, a 7 de Junho, e Moura, a 28 de Junho, em que se revelam, pela primeira vez em Portugal, as quatro versões de The V io la in M y Lif e (1970-1972), de Morton Feldman, autor já apresentado por ocasião da nossa primeira edição do Festival, em 2011. Nessa magnífica obra, a violeta solista dialoga com várias combinações instrumentais, do piano a so lo à orquestra. São dois concertos destacados na programação de 2014 e em que a música de Feldman alterna, respectivamente, com alguns motetes e com duas célebres páginas sinfónicas de Johann Sebastian Bach. O Festival Terras sem Sombra acolhe, pela primeira vez, a representação de um drama sacro, M is te rio d e l Cris to d e lo s Gas co ne s , realizado por Ana Zamora, grande conhecedora do antigo teatro ibérico, que recria livremente uma cerimónia litúrgica que teve lugar, desde a Idade Média, na igreja de São Justo, de Segóvia, utilizando o famoso Cristo d e lo s Gasco ne s, uma escultura de madeira polícroma, com braços articulados (Grândola, 12 de Abril). Em contraponto, I Turchini, sob a direcção de Antonio Florio, evocarão páginas notáveis da música vocal e instrumental da le ctio napolitana nos finais do século XVII, sob a égide do Barroco (Castro Verde, 17 de Maio). Testemunho da sólida colaboração iniciada em 2011 com o Teatro Nacional de São Carlos, de Lisboa, o Festival abrirá, este ano, em Almodôvar, a 29 de Março, com o Coro do Teatro, dirigido por Giovanni Andreoli – presença habitual do Terras sem Sombra, de que se tornou uma referência –, que interpreta o Re q uie m A le mão , de Johannes Brahms, na versão para piano a quatro mãos. Como regista a história, este foi estreado, numa sessão que o próprio autor preparou com todo o cuidado, em Londres, a 10 de Julho de 1871, na casa de Sir Henry Thompson, pela esposa deste, Kate Loder, e por Cipriani Potter, dois famosos pianistas da época. Um momento que evocamos com particular emoção.
Portal (pormenor). Moura, igreja matriz de São João Baptista. >
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A MÚSICA NO TEMPO
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PROGRAMA
Terras sem Sombra 2014
29 de Março [21H30]
ALMODÔVAR Igreja Matriz de Santo Ildefonso Um Requiem pelos Vivos Johannes Brahms [1833-1897] EIN DEUTSCHES REQUIEM o p. 45 para soprano, barítono, coro e piano a quatro mãos (1868) Soprano Raquel Alão Barítono Luís Rodrigues Coro do Teatro Nacional de São Carlos Piano João Paulo Santos, Kodo Yamagoshi Direcção musical Giovanni Andreoli
12 de Abril [21H30]
GRÂNDOLA Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção Liturgia da Esperança: Misterio del Cristo de los Gascones Nao d’amores Dramaturgia e direcção Ana Zamora Interpretação dramática Elena Rayos/Elvira Cuadrupani, David Faraco/Juan Pedro Schwartz, Alejandro Sigüenza, Nati Vera V io la d a g amb a Sofía Alegre/Alba Fresno V ihue la e sanfona Alicia Lázaro Flautas, cromorno e charamela Eva Jornet Espineta e gaita-de-foles Isabel Zamora
26 de Abril [21H30]
SANTIAGO DO CACÉM Igreja Matriz de Santiago Maior Vozes que Brotam do Céu: Entre o Românico e o Maneirismo The Hilliard Ensemble Contratenor David James Tenor Rogers Covey-Crump Tenor Steven Harrold Barítono Gordon Jones
10 de Maio [21H30]
BEJA Igreja Matriz de Santa Maria da Feira O Sagrado e o Profano: Aliterações Húngaro-Portuguesas Capella Duriensis Direcção musical Jonathan Ayerst
17 de Maio [21H30]
CASTRO VERDE Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição Theatrum Sacrum: Obras-Primas do Barroco Napolitano I Turchini Direcção musical Antonio Florio Soprano Valentina Varriale Primeiro-violino Alessandro Ciccolini Segundo-violino Marco Piantoni Violeta Rosario Di Meglio Violoncelo Rebeca Ferri Contabaixo Giorgio Sanvito
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PROGRAMA
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31 de Maio [17H00]
Beja Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres A Violeta: Perenidade de um Instrumento Injustiçado Conferência por Alexandre Delgado
7 de Junho [21H30]
SINES Igreja Matriz do Santíssimo Salvador Espaço, Ritmo, Tempo: Feldman versus Bach Coro Terras sem Sombra Direcção artística Filipa Palhares Violeta Jonathan Brown Sond’Ar-te Electric Ensemble
28 de Junho [21H30]
MOURA Igreja Matriz de São João Baptista Instantes Infinitos: Mozart, Feldman & Mozart Orquestra Gulbenkian Violino Vera Martínez Violeta Jonathan Brown Direcção musical Paul McCreesh, Paulo Neves
5 de Julho [18H30]
SINES Entrega do Prémio Internacional Terras sem Sombra
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Concerto de Abertura
ALMODÔVAR
29 de Março 21H30
UM REQUIEM PELOS VIVOS
soprano,
Johannes Brahms [1833-1897] EIN DEUTSCHES REQ UIEM (Um Re q uie m A le mão ) o p . 45 para barítono, coro e piano forte a quatro mãos (1868) Soprano Raquel Alão Barítono Luis Rodrigues Coro do Teatro Nacional de São Carlos Piano João Paulo Santos e Kodo Yamagoshi Direcção musical Giovanni Andreoli
< Lavabo. Século XVI. Rosário (Almodôvar), igreja paroquial de Nossa Senhora do Rosário.
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ALMODÔVAR
Igreja Matriz de Santo Ildefonso
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo e, depois, bispo da mesma cidade, que faleceu em 667) como orago da paróquia de Almodôvar constitui um interessante reflexo da presença, no Baixo Alentejo, da espiritualidade monástico-militar, difundida pelos freires da Ordem de Avis, que seguia a regra de São Bento. Porém, a primitiva igreja matriz da vila, pertencente em tempos ao padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Esta teve aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três beneficiados. Embora seguindo outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários valorizaram a devoção ao santo toledano. O edifício actual, traçado em 1592 pelo arquitecto Nicolau de Frias, é um exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (Halle nk irche ), com três naves de quatro tramos cobertas por abóbadas, evidenciando grande sentido de unidade espacial e notável acústica. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo compositivo dos alçados e o destaque outorgado ao tratamento dos pormenores, como as seis colunas toscanas em que descansam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do depurado sentido classicizante atingido, em finais do século XVI, por este modelo, fiel à austeridade preconizada pela Contra-Reforma. D. João V, como grão-mestre da Ordem de Santiago, mandou proceder à remodelação parcial do monumento, intervenção descrita pelo P.e Luís Cardoso no Diccio nario Ge o g raf ico (1747): “porque a capela-mor se achava arruinada, e por sua pequenhez fica imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo desta comarca, foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência, e Ordens, se
Anjo tenente. Pormenor de retábulo. Escola portuguesa. Século XVIII (terceiro quartel). Almodôvar, igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição.>
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ALMODÔVAR . IGREJA MATRIZ DE SANTO ILDEFONSO
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derrubasse, e fizesse regular ao restante da igreja, e se acrescentasse tribuna, que de presente se anda fazendo”. Estas obras vieram a ser rematadas, ca. 1769, com a encomenda, à oficina do mestre entalhador eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das diversas confrarias e irmandades existentes na matriz. Nos séculos XIX e XX, realizaram-se outras intervenções de vulto que modificaram substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de 1950. Data de então a campanha de pintura mural do baptistério renovado, da autoria de Severo Portela [S Coimbra, 1898 – X Lisboa, 1985], em que sobressai a figuração d’O Bap tis mo d e Cris to no Rio Jo rd ão (1954-1955). Formado em Escultura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, este artista destacou-se como um dos mais notáveis pintores do período do Estado Novo. Devido à ligação a Almodôvar por laços de casamento, fez do Baixo Alentejo um epicentro da sua fecunda obra. A paróquia de Santo Ildefonso conserva um importante acervo de alfaias litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição da mesma vila, fundado em 1680 pela Ordem Terceira Regular de São Francisco.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
LUÍS CARDOSO, Diccio nario Ge o g raf ico , o u No ticia Histo rica d e To d as as Cid ad e s, V illas, Lug are s, e A ld e as, Rio s, Rib e iras, e Se rras d o s Re yno s d e Po rtug al, e A lg arv e , co m To d as as Co usas Raras, q ue Ne lle s se Enco ntraõ , assim A ntig as, co mo M o d e rnas, I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747; JOSÉ MARIA AFONSO COELHO, Fo ral de A lmo dô v ar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de Almodôvar, 2004; VÍTOR SERRÃO, Histó ria d a A rte e m Po rtug al. O Re nascime nto e o M ane irismo (1 500-1 620), Lisboa, Editorial Presença, 2002; FRANCISCO L AMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Re táb ulo s na Dio ce se d e Be ja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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E a Fé Resgatará Toda a Dor
BERNARDO MARIANO
O Re q uie m A le mão é um unicum na produção de Johannes Brahms [S 1833 – X 1897]. Jamais o compositor afrontara uma obra de tais dimensões, jamais o repetiria. E, mesmo em termos de conteúdo emocional e pungência espiritual, só por uma vez voltaria a visitar tais territórios: nas Q uatro Cançõ e s Sé rias, o p . 1 21 , bizarros Lie d e r sobre textos bíblicos, escritos sob o “jugo” causado pela morte próxima, pressentida de Clara Schumann – figura feminina máxima por toda a vida de Brahms –, em 1896. Clara, que, refira-se, foi confidente epistolar do processo criativo, rodeando o que viria a ser o Re q uie m logo desde a génese, quando, sob o trauma do resvalar mental de Robert Schumann, em 1854 (tentativa de suicídio e imediato internamento), Brahms, o jovem amigo do casal, primeiro idealizou uma estela em honra do amigo, mentor e ídolo. E quem sabe se não foi até ela quem mostrou a Johannes os planos do marido de escrever um Re quie m em alemão, ele (Robert) que já na Primavera de 1852 compusera um latino. Esta última obra, o seu o p . 1 48, na tonalidade de réb M (tão cara a Schumann), já Brahms a conhecia bem desde pelo menos 1854, quando a tocou com Clara e Julius Grimm, e não pode ter deixado de guardar na memória a atmosfera apaziguadora que ali reina, tendo em conta tema e tradição. Seja como for, a doença e a morte de Schumann determinaram em Brahms o projecto de um monumento fúnebre condigno. Mas faltavam-lhe, na época, os meios, técnicos e práticos, para levar a cabo tão ambiciosa empresa. Adquiri-los-ia nos anos seguintes, por meio da sua prática enquanto maestro coral, que o levou, concomitantemente, a descobrir e estudar inúmeras obras dos séculos XVI a XVIII. Até que, em 1865, uma outra morte o atinge: a de sua mãe, Johanna. E será esse renovado luto que desencadeará nele, em definitivo, a composição da projectada obra, que se processa em várias etapas: os n.os 1, 2 e 4 na primeira metade de 1865, o n.os 3 no Inverno seguinte, os n.os 6 e 7 na Primavera de 1866. Em Dezembro desse ano, Clara recebia de Brahms a redução da partitura para piano.
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A obra seria estreada, na versão original em seis números, na catedral de Bremen, na Sexta-Feira Santa de 1868 (10 de Abril), dirigida pelo compositor, diante de mais de duas mil pessoas. Significativamente, Brahms percorreu a nave da catedral de braço dado com Clara, deixando claro quem presidira espiritualmente à composição da obra... Foi um imenso sucesso, o maior que Brahms experimentara até então: de um dia para o outro, tornou-se um compositor de dimensão alargada a todo o espaço germanófono (lembremos que faltavam ainda quase três anos para a unificação alemã). O n.º 5 seria composto um mês depois e teria uma primeira audição privada no mês de Setembro seguinte. A estreia do Re q uie m A le mão , tal como hoje o conhecemos, dar--se-á a 18 de Fevereiro de 1869, em Leipzig, pela Orquestra do Gewandhaus, sob a direcção de Carl Reinecke [S 1824 – X 1910], que convivera com Schumann e Brahms nos tempos de Düsseldorf. Mas já a 3 de Janeiro houvera em Dessau uma execução privada desta versão final, na redução para piano, coro de câmara e solistas. Quando, no início, usámos o termo unicum para designar esta obra, não dissemos que essa unicidade se estende aos precedentes. Porque, justamente, eles não existem! Quando se buscam aproximações ou possíveis modelos inspiradores, são em geral referidas duas obras: as M usik alische Ex e q uie n (1636, subtituladas na forma de uma missa fúnebre alemã), de Heinrich Schütz [S 1585 – X 1672], e a Cantata 1 06, A ctus Trag icus (de 1707-1708), de Johann Sebastian Bach, obras que Brahms certamente conhecia muito bem. Mas essa unicidade é também consequência óbvia do grandioso híbrido que Brahms criou, efusão eminentemente pessoal e demonstrativa da independência de espírito, que seria uma das suas marcas enquanto homem e criador. Esta hibridez começa logo pelo título: e in assume a subjectividade da proposta e dissipa qualquer pretensão normativa; d e utsche s remete, obviamente, para a língua em que é cantado, mas igualmente para a especificidade alemã e para aqueloutra luterana (é famosa, todavia, a frase de Brahms, declarando que de utsche s podia ser perfeitamente substituído por me nschliche s, isto é, “humano”...); e Re quie m, no final, vem complicar tudo: como é que, após a afirmação do de utsche s, aparece uma palavra latina, conotada com a Igreja Romana e com uma tradição compositiva da qual a obra de Brahms manifestamente se afasta? Mais: os textos de Brahms nada têm a ver com os do Ofício de Defuntos, seja em termos estritos, seja nos de conteúdo. Mas o compositor talvez tenha querido preservar o sentido etimológico da palavra, que significa “repouso”, “descanso”, com a diferença de que, na sua obra, o termo se aplica mais aos que ficam do que aos que partiram. Os textos são, por si só, uma das características notáveis desta obra. Trata-se de escolhas do próprio Brahms – diríamos mesmo “a dedo”! –, a partir do Antigo e do Novo
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Testamentos (da Bíblia de Lutero, editada em 1534), que atestam, por um lado, o seu vasto conhecimento das Sagradas Escrituras e, por outro, a profunda reflexão que operou sobre o conteúdo do Livro Sagrado, o qual era, para Brahms, antes de mais, um repositório poético de experiências profundamente humanas. São as seguintes as proveniências: dos Ev ang e lho s (São Mateus e São João), das Ep ísto las (São Pedro, Santiago, São Paulo e anónimo), do Liv ro d o s Salmo s (n.os 39, 84, 126), do A p o calip se de São João e de três livros do Antigo Testamento (Isaías, Be n Sira/ Ecle siástico e Liv ro d a Sab e d o ria/ Sab e d o ria d e Salo mão ). Tipicamente, Johannes Brahms vai conjugando, alternando as fontes no interior de cada número. Temos assim, g ro sso mo d o : alternância de Novo e Antigo Testamentos (n.os 1, 2 e 5), predomínio dos Salmos (n.os 3 e 4), apenas Novo Testamento (n.os 6 e 7), com especial ênfase no Liv ro d o A p o calip se (final de VI e todo o VII). Atentemos nos dois pequenos excertos dos Evangelhos que ele foi buscar: o primeiro é de São Mateus e é a frase inicial da obra, retirada do Sermão da Montanha (trata-se, especificamente, da Segunda Bem-aventurança); o outro é de São João e evoca a frase inicial do n.º 5, retirada das últimos ensinamentos que Jesus transmitiu aos discípulos, durante a Última Ceia. É também a única vez em toda a obra em que o “Eu” do texto designa Jesus Cristo. De resto, Jesus é o ilustre ausente desta obra: em nenhum passo, Brahms, tratando-se de uma obra que lida com o mistério da graça, clemência e misericórdia divinas e com o da Redenção, identifica Cristo com o Redentor, aquele que abriu a Salvação aos homens, por meio da Sua Morte e Ressurreição. Os textos apontam sempre para uma mediação directa entre o Homem e Deus, prescindindo, por assim dizer, de qualquer dimensão cristológica. Outro pormenor interessante é a frase conclusiva (já utilizada na obra acima referida de Schütz), retirada do Apocalipse, ser demonstrativa da Doutrina da Justificação pela Fé (o princípio s o la f id e ), fundamento da Fé luterana, que Brahms professava (a seu modo...). Pelo que os temas que Brahms erige como protagonistas são a consolação da dor e o luto dos vivos (ou dos que ficam) e a fé inabalável na misericórdia divina e na Redenção última, quando chegar o nosso tempo, que, enfim, nos conduzirá à paz. Em termos musicais, a composição estrutura-se numa forma simétrica, com centro no n.º 4 (que é uma visão da morada celeste), sendo que o n.º 1 e o n.º 7 começam ambos por Se lig sind (“bem-aventurados”), havendo ainda afinidades propriamente musicais entre eles. Aos n. os 2 e 6 subjaz uma concepção dramática (em vez de contemplativa), e os n.os 3 e 5 apresentam as intervenções mais importantes dos solistas vocais.
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O plano tonal afirma Fá M (n.º 1 e n.º 7), no n.º 2 vai para sib m/M (subdominante/ /dominante inferior), com solb M central (relação mediântica); o n.º 3 é o único que apresenta o ré m tradicional dos Re quie m, mas, tal como no n.º 2, majoriza a tonalidade de partida; as tonalidades maiores dos números 4 (mib) e n.º 5 (sol) – nova relação mediântica – ilustram a visão celeste (n.º 4) e a consolação que nos chega de Deus (n.º 5). Por outro lado, mib M é a Dominante secundária inferior face a fá M, ao passo que o sol M do n.º 5 instaura uma nova relação tonal por 5.as inferiores, expressa depois no n.º 6 (dó m, majorizado no final) e no n.º 7 (fá M). Dois apontamentos finais: a ida, no n.º 6, ao antípoda tonal fá# m (distância de trítono ao dó m/M circundante) quando o apóstolo São Paulo fala na Transfiguração; e a “excursão” a lá M na parte central do n.º 7, instaurando a sucessão tonal (na notação alemã) FAF, acrónimo de Fre i, ab e r f ro h (Liv re , mas f e liz), divisa pessoal de Johannes Brahms. Tratando-se da sua primeira obra para grande orquestra, coro, solistas (e órgão ad lib itum), o Re q uie m deu ao autor, enfim, a confiança de que ele saberia abordar com êxito a sinfonia (mesmo assim, só em 1876 estrearia a Primeira). Quer a escrita para as vozes corais, quer a escrita para a orquestra (sem falar da escrita belíssima – tão lírica e expressiva – que consigna a soprano e barítono solistas!) dão mostras de enorme mestria no manejo das grandes massas. Este “manejo” tem um ingrediente fundamental: a ciência contrapontística. Na verdade, o Re q uie m A le mão é quase uma súmula de quantas técnicas existem de combinação polifónica! Mais: Brahms sabe ordenar o texto à música e vice-versa, consoante o requeiram, em cada momento específico, a hermenêutica ou o princípio puramente musical. Momentos máximos desta mestria compositiva são certamente as fugas conclusivas dos n.os 3 e 6, sendo que a primeira repousa, de fio a pavio, sobre uma pedal da Tónica (ré) – de novo um unicum na história da música –, e a segunda, com os seus 142 compassos e grandiosa organização interna, será o maior monumento que Johannes Brahms deixará à forma fugada! O uso variado da orquestra, desde o emprego expressivo do instrumento solista às sonoridades camarísticas e até ao grande fresco sinfónico, a par da concatenação perfeita das texturas orquestrais com o denso tecido vocal, é um dos grandes trunfos do Re quie m A le mão e uma das principais razões explicativas do sucesso quase unânime e universal que a obra granjeou logo desde os primeiros tempos.
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Selig sind, die da Leid tragen, denn sie sollen getröstet werden.
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. (São M ate us, 5,4)
Die mit Tränen säen, werden mit Freuden ernten. Sie gehen hin und weinen und tragen edlen Samen, und kommen mit Freuden und bringen ihre Garben.
Os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria. À ida, vão a chorar, levando as sementes; à volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas. (Salmo s, 125 [126],5-6)
Denn alles Fleisch, es ist wie Gras und alle Herrlichkeit des Menschen wie des Grases Blumen. Das Gras ist verdorret und die Blume abgefallen.
Todo o ser mortal é como a erva, e todo o seu esplendor como a flor da erva. A erva seca e a flor cai.
So seid nun geduldig, liebe Brüder, bis auf die Zukunft des Herrn. Siehe, ein Ackermann wartet auf die köstliche Frucht der Erde und ist geduldig darüber, bis er empfahe den Morgenregen und Abendregen. So seid geduldig.
Esperai com paciência a vinda do Senhor. Vede como o agricultor espera pacientemente o precioso fruto da terra, aguardando a chuva temporã e a tardia.
Aber des Herrn Wort bleibet in Ewigkeit.
Mas a palavra do Senhor permanece eternamente.
(I Ep ísto la d e São Pe d ro , 1,24)
(Ep ísto la d e Santiag o , 5,7)
(I Ep ísto la d e São Pe d ro , 1,25)
Die Erlöseten des Herrn werden wieder kommen und gen Zion kommen mit Jauchzen. Freude, ewige Freude wird über ihrem Haupte sein; Freude und Wonne werden sie ergreifen, und Schmerz und Seufzen wird weg müssen.
Voltarão os que tiver libertado o Senhor. Hão-de chegar a Sião com brados de alegria, com eterna felicidade a iluminar-lhes o rosto. Reinarão o prazer e o contentamento e acabarão a dor e os gemidos.
Herr, lehre doch mich, daß ein Ende mit mir haben muß, und mein Leben ein Ziel hat,
Dai-me a conhecer, Senhor, o meu fim e qual é o número dos meus dias, para que veja como é efémera a minha vida.
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(Isaías, 35,10)
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und ich davon muß. Siehe, meine Tage sind einer Handbreit vor dir, und mein Leben ist wie nichts vor dir. Ach, wie gar nichts sind alle Menschen, die doch so sicher leben. Sie gehen daher wie ein Schemen, und machen ihnen viel vergebliche Unruhe; sie sammeln, und wissen nicht, wer es kriegen wird. Nun, Herr, wes soll ich mich trösten? Ich hoffe auf dich.
Der Gerechten Seelen sind in Gottes Hand, und keine Qual rühret sie an.
De poucos palmos é a duração dos meus dias, diante de Vós a minha vida é como nada. Todo o homem não é mais que um sopro. O homem é como sombra que passa e é em vão que se agita: amontoa riquezas, sem saber para quem. Agora, Senhor, que posso eu esperar? Em Vós está a minha esperança. (Salmo s, 38 [9], 5-8)
As almas dos justos estão na mão de Deus e nenhum tormento os atingirá. (Sab e d o ria, 3,1)
Wie lieblich sind deine Wohnungen, Herr Zebaoth! Meine Seele verlanget und sehnet sich nach den Vorhöfen des Herrn; mein Leib und Seele freuen sich in dem lebendigen Gott. Wohl denen, die in deinem Hause wohnen, die loben dich immerdar.
Como é agradável a vossa morada, Senhor dos Exércitos! A minha alma suspira ansiosamente pelos átrios do Senhor. O meu coração e a minha carne exultam no Deus vivo. Felizes os que moram em vossa casa: podem louvar-Vos continuamente. (Salmo s, 84 [83], 2,3,5)
Ihr habt nun Traurigkeit; aber ich will euch wiedersehen und euer Herz soll sich freuen, und eure Freude soll niemand von euch nehmen.
Também vós agora estais tristes; mas Eu hei-de ver-vos de novo e o vosso coração se alegrará e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria.
Ich will euch trösten, wie einen seine Mutter tröstet.
Como a mãe que anima o seu filho, também Eu vos confortarei.
(São Jo ão , 16,22)
(Isaías, 66,13)
Sehet mich an: Ich habe eine kleine Zeit Mühe und Arbeit gehabt und habe großen Trost funden.
Vede com os vossos olhos o pouco que trabalhei, e como adquiri grande paz. (Ecle siástico , 51,35)
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Denn wir haben hie keine bleibende Statt, sondern die zukünftige suchen wir.
Não temos aqui cidade permanente, mas vamos em busca da cidade futura. (Ep ísto la ao s He b re us, 13,14)
Siehe, ich sage euch ein Geheimnis: Wir werden nicht alle entschlafen, wir werden aber all verwandelt werden; und dasselbige plötzlich, in einem Augenblick, zu der Zeit der letzen Posaune. Denn es wird die Posaune schallen, und die Toten werden auferstehen unverweslich, und wir werden verwandelt werden. Dann wird erfüllet werden das Wort, das geschrieben steht: Der Tod ist verschlungen in den Sieg. Tod, wo ist dein Stachel? Hölle, wo ist dein Sieg?
Vou dar-vos a conhecer um mistério: Nem todos havemos de morrer, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final. Porque a trombeta soará: os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Então se realizará a palavra da Escritura: “A mo rte f o i ab so rv id a na v itó ria. Ó mo rte , o nd e e stá a tua v itó ria? O nd e e stá, ó mo rte , o te u ag uilhão ? ”
Herr, du bist würdig, zu nehmen Preis und Ehre und Kraft, denn du hast alle Dinge geschaffen, und durch deinen Willen haben sie das Wesen und sind geschaffen.
Sois digno, Senhor, nosso Deus, de receber a glória, a honra e o poder, porque fizestes todas as coisas e pela Vossa vontade existem e foram criadas.
Selig sind die Toten, die in dem Herren sterben, von nun an. Ja der Geist spricht, daß sie ruhen von ihrer Arbeit; denn ihre Werke folgen ihnen nach.
Felizes os que, desde agora, morrem no Senhor. Sim – diz o Espírito –, descansem dos seus trabalhos, porque as suas obras os acompanham.
(I Ep ísto la ao s Co ríntio s, 15,51-52,54-55)
(A p o calip se , 4,11)
(A p o calip se , 14,13)
Tradução: José António Falcão
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Raquel Alão So p rano co lo ratura
Natural de Lisboa, licenciou-se em Pedagogia Musical na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal. Concluiu, em 2004, o Curso de Canto da Escola de Música do Conservatório Nacional, onde estudou sob a orientação de Filomena Amaro, com a classificação máxima. Foi coralista do Coro do Teatro Nacional de São Carlos entre 2001 e 2006. Participou, em 2007, no Concurso Nacional de Canto Luísa Todi, onde foi galardoada com o 3.º Prémio para Voz Feminina, e esteve integrada no Programa Jovens Intérpretes do Teatro Nacional de São Carlos durante a temporada de 2009/2010. Participou em maste rclasse s e cursos, com destaque para os dirigidos por Sarah Walker, Mara Zampieri, José Oliveira Lopes, Elisabete Matos, Elena Nentwig, Dieter Schweickard, Helen Kwon e Lucetta Bizzi. Actuou como solista na M issa e m So l, de Caldara; M issa Bre v is e m So l M , Sp atze n-M e sse e Be ne d ictus sit De us, de Mozart; In Nativ itate m Canticum, de Charpentier; Christus Natus Est, de Du Mont, com o Coro de Santa Maria de Belém; Glo ria, de Vivaldi, com o Opus 21; Laud a Sio n, de Mendelssohn, Ex ultate Jub ilate e M issa Bre v is e m Fá M , de Mozart, com o Coro da Universidade Nova de Lisboa; na cantata Nulla in Mundo Pax Since ra, de Vivaldi, com a Orquestra Divino Sospiro; A Se a Symp ho ny, de Vaughan Williams, com o Coral Lisboa Cantat; e, na cantata Carmina Burana, de Carl Orff, com Leonardo Neiva e Carlos Guilherme, a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos. Gravou para Mezzo, em 2008, Glo ria, de Vivaldi e a cantata BWV 63, Christe n, ätzte t d ie se n Tag , com a orquestra Divino Sospiro, sob a direcção de Enrico Onofri. Em Julho de 2011, foi solista no concerto de inauguração do chale t da Condessa de Edla, Sintra, com a Orquestra Filarmonia das Beiras, sob a direcção de Giovanni Andreoli, num programa dedicado ao reportório de coloratura
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da cantora Elise Hensler, com árias de Rig o le tto , Lucia d e Lamme rmo o r e Ballo in M asche ra, entre outras. Recentemente, em 2012, foi Giuditta na estreia moderna da oratória La Be tulia Lib e rata, de Gaetano Pugnani, sob a direcção de Donato Renzetti, com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, no Festival Terras sem Sombra (2012). Em ópera, foi Amor em O rf e o e d Eurid ice , de Glück; Flamínia, na estreia moderna de Il M o nd o de lla Luna, de Pedro Avondano; Eurídice, em La De sce nte d’ O rp hé e aux Enf e rs, de Charpentier, sob a direcção de António Carrilho. Em 2005, interpretou os No tturni a três vozes e três Co rni d i Basse tto , de Mozart, com o Trio Stadler, Maria Luísa Tavares e Hugo Oliveira, no IX Festival de Música de Mafra. Em 2006, foi Rainha da Noite em Die Zaub e rf lö te , no Festival Rota dos Monumentos na Cidadela de Cascais, sob a direcção de Jean-Bernard Pommier, com Keel Watson; e, em 2008, retomou o papel n’A Flauta M ág ica p ara Jo v e ns, no Teatro Nacional de São Carlos, sob a direcção de Cesário Costa, com Dieter Schweikard. Durante a temporada de 2009/2010, foi Berenice em L’ O ccas io ne f a il Lad ro , de Rossini, e Fada Azul em A Be la A d o rme cid a, de Respighi no Teatro Nacional de São Carlos; e Jovem Suicida/Ofélia em O s M o rto s V iajam d e M e tro , de Hugo Ribeiro, no Teatro Municipal São Luiz. Em 2011, foi novamente Rainha da Noite, no Festival Seefestspiele Berlin, na ópera Die Zaub e rf lö te , encenada por Katharina Talbach e dirigida por Judith Kubitz, com a Kammerakademie Potsdam e o Neuer Kammerchor Potsdam. Membro fundador do Banchetto Musicale Lusitania, apresentou-se com este agrupamento, no ano de 2004, em concertos no território nacional. Esteve, também, sob o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, no Rio de Janeiro, em Juiz de Fora e em Tiradentes, em concertos integrados no XV Festival de Música Colonial e Música Antiga de Juiz de Fora. Em 2006, participou, a convite de Maria Cristina Khier, no Festival de Musique du Haut-Jura. O grupo realizou igualmente o concerto de abertura do X Festival Internacional de Música de Mafra. Raquel Alão tem apresentado um programa dedicado à música no tempo de D. João V, em conjunto com o organista Daniel Oliveira, em vários concertos e festivais, dos quais se destaca a participação no V Festival internacional de Música de Ourense. Actualmente, a par da sua actividade como solista, lecciona a disciplina de Canto na Escola de Danças Sociais e Artes de Espectáculo, em Lisboa, e é maestrina do Coral Infantil Luísa Todi, em Setúbal.
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Luís Rodrigues Barítono
Estudou no Conservatório Nacional de Lisboa com José Carlos Xavier e na Escola Superior de Música de Lisboa com Helena Pina-Manique. Em 1995, obteve o 1.º Prémio no II Concurso de Interpretação do Estoril e ganhou, com o pianista David Santos, o Prémio Jovens Músicos da RDP (Música de Câmara). Em 1996, foi vencedor do 4.º Concurso de Canto Luísa Todi e recebeu o 2.º Prémio no Concours-Festival de la Mélodie Française, em Saint-Chamond (França). Três anos depois, foi o vencedor e x æq uo do concurso PoulencPlus (Mélodies de Poulenc), em Nova Iorque. Intérprete de reconhecida versatilidade, tem-se afirmado no domínio da ópera com papéis como Harlekin (A riad ne auf Nax o s), Ping (Turand o t), Figaro (Il Barb ie re d i Siv ig lia), Guglielmo (Co sì Fan Tutte ), Gianni (Gianni Schicchi) e Escamillo (Carme n) no Teatro Nacional de São Carlos, Mr. Gedge (A lb e rt He rring ) e Eduard (Ne ue s v o m Tag e ) no Teatro Aberto, Semicúpio (Gue rras d o A le crim e M anje ro na) no ACARTE, Teatro da Trindade e Teatro Nacional D. Maria II (Prémio Bordalo da Imprensa 2000 para Música Erudita), Marcello (La Bo hème ) com o Círculo Portuense de Ópera e a Orquestra Nacional do Porto, no Coliseu desta cidade, e com o Teatro Nacional de São Carlos, na Figueira da Foz, Tom (The Eng lish Cat) com a Cornucópia e a Orquestra Nacional do Porto no Teatro Rivoli e no Teatro de São Carlos, Guarda Florestal (A Rap o sinha Matre ira) com a Casa da Música no Teatro Rivoli, Papageno (A Flauta Mág ica) e Sumo Sacerdote (Sansão e Dalila) na Fundação Calouste Gulbenkian, Yoshio (Hanjo ) na Culturgest, Arsénio (La Sp inalb a) e Marcaniello (Lo Frate ‘ namo rato ) com os Músicos do Tejo no Centro Cultural de Belém,
Giorgio
Germont
(La Trav iata), Iago (O te llo ) e o papel titular de D. Gio v anni com a Orquestra do Norte e Belcore
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(L’ Elisir d ’ A mo re ), Figaro, Escamillo e Carmina Burana com a ONP. Participou na estreia absoluta das óperas de António Pinho Vargas Éd ip o , Trag é d ia d e Sab e r, O s Dias Le v antad o s e O utro Fim e, também, em So l d e Inv ie rno , de David del Puerto, com o agrupamento Drumming, M e lo d ias Estranhas, de António Chagas Rosa (co-produção Roterdão e Porto 2001), A Mo ntanha, de Nuno Côrte-Real com a OrchestrUtopica (Gulbenkian), O De f unto , de Daniel Schwetz, com o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (Teatro Municipal de Almada), e Je rusalé m, de Vasco Mendonça (Culturgest). Estreou também obras de Jorge Peixinho, Fernando Lapa, Luís Tinoco e Pedro Faria Gomes. Como solista de Oratória, participou em programas com a Orquestra Metropolitana de Lisboa e o coro Lisboa Cantat, o Coral de São José (Ponta Delgada), a ONP, o Coro da Sé do Porto e o Coro e a Orquestra Gulbenkian – com os quais gravou, sob a direcção de Michel Corboz, Re q uie m, de Suppé (Virgin Classics), e Glo ria, de Bomtempo (Strauss-Portugalsom). Interpretando música de câmara, tem colaborado com os pianistas David Santos, Nuno Vieira de Almeida, Jaime Mota e João Paulo Santos e os agrupamentos Drumming e Remix Ensemble, apresentando-se também nos ciclos orquestrais Kind e rto te nlie d e r, com a ONP, e Lie d e r e ine s f ahre nd e n Ge se lle n e Po ème d e l’ A mo ur e t d e la M e r, com a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Cantou a parte de Biagio na gravação da ópera, de Marcos Portugal, Le Do nne Camb iate (Marco Pólo). Gravou igualmente para a editora AboutMusic a V iag e m de Inv e rno , de Schubert, com o pianista David Santos, e O p e ra Pre mium, com a soprano Dora Rodrigues e o tenor Mário Alves, acompanhados pela OML, sob a direcção de João Paulo Santos. Gravou ainda canções de compositores do Porto com o pianista Jaime Mota (Fermata) e Cançõ e s d e Ne g ro e d e Sal, um ciclo orquestral de Fernando Lapa com poemas de Alexandre Pinheiro Torres, encomenda do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim (Numérica).
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Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Criado em condições de efectividade em 1943, sob a direcção de Mario Pellegrini, entre 1962 e 1975 colaborou com a Companhia Portuguesa de Ópera (Teatro da Trindade), com a qual se deslocou à Madeira, Açores, Angola e Oviedo (1965), e obteve o Prémio de Música Clássica, conferido pela Casa da Imprensa. Participou em estreias mundiais de Lopes-Graça (D. Duard o s e Flé rid a) e Victorino d’Almeida (Canto d a O cid e ntal Praia). A profissionalização do Coro foi consumada em 1983, sob a direcção de Antonio Brainovitch. A plena afirmação artística do conjunto será creditada a Gianni Beltrami, em 1985. Nesta fase, assinalam-se O e d ip us Re x (Stravinski); A sce nsão e Q ue da da Cidade de Mahag o nny (Weill); Kiú (De Pablo); L’ Enf ant e t le s So rtilèg e s (Ravel); e Did o and A e ne as (Purcell). Registe-se a participação em Grand e M e sse d e s M o rts (Berlioz), em Turim, a convite da RAI. Depois da morte de Gianni Beltrami, João Paulo Santos assumiu a direcção, constituindo-se como o primeiro português no cargo em toda a história do Teatro Nacional de São Carlos. Sob a sua responsabilidade, registaram-se êxitos, tais como M e f is to f e le (Boito); Blimund a e Div ara (Corghi); Sinf o nia n. º 2 (Mahler); Die Schö p f ung (Haydn); Faus t e Re q uie m (Schnittke); Pe rsé p ho ne e Le Ro ssig no l (Stravinski); Ev g ue ni O ne g uin (Tchaikovski); Le s Tro ye ns (Berlioz); M issa Glag o lítica (Janáãek); Tannhäuse r e Die M e iste rsing e r v o n Nürnb e rg (Wagner); e Le Grand M acab re (Ligeti). Com o Re q uie m, de Verdi, o Coro deslocou-se a Bruxelas (Europália, 1991). No âmbito da Expo’98, actuou no concerto de encerramento. O Coro tem sido dirigido por prestigiados maestros estrangeiros, nomeadamente Antonino Votto, Tullio Serafin, Vittorio Gui, Carlo Maria Giulini, Oliviero de Fabritiis, Otto Klemperer, Molinari-Pradelli, Franco Ghione, Alberto Erede, Alberto Zedda, Georg Solti, Nello Santi, Nicola Rescigno, Bruno Bartoletti, Heinrich Hollreiser, Richard Bonynge, García Navarro, Rafael Frühbeck de Burgos, Franco Ferraris, James Conlon, Harry Christophers, Michel Plasson e Marc Minkowski, entre outros. Também foi dirigido pelos
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João Paulo Santos Piano
Nascido em Lisboa em 1959, concluiu o curso superior de Piano no Conservatório Nacional desta cidade na classe de Adriano Jordão. Trabalhou ainda com Helena Costa, Joana Silva, Constança Capdeville, Lola Aragón e Elizabeth Grümmer. Na qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, aperfeiçoou-se em Paris com Aldo Ciccolini (1979-1984). A sua carreira atravessa os últimos 36 anos da biografia do Teatro Nacional de São Carlos onde principiou como correpetidor (1976), função que manteve durante a permanência em Paris. Seguiu-se o cargo de Maestro Titular do Coro (1990-2004); desempenha actualmente as funções de Diretor de Estudos Musicais e Diretor Musical de Cena. Estreou-se na direção musical, em 1990, com The Be ar (W. Walton), encenada por Luís Miguel Cintra, para a RTP. Tem dirigido obras tão diversas quanto óperas para crianças (Menotti, Britten, Henze e Respighi), musicais (Sondheim), concertos e óperas. Estreou em Portugal, entre outras, as óperas Re nard (Stravinski), Hanjo (Hosokawa), Po llicino (Henze), A lb e rt He rring (Britten), Ne ue s v o m Tag e (Hindemith), Le V in He rb é (Martin) e The Eng lish Cat (Henze), cuja direção musical foi reconhecida com o Prémio Acarte 2000. Destacam-se ainda as estreias absolutas de obras de Chagas Rosa, Pinho Vargas, Eurico Carrapatoso e Clotilde Rosa. Como pianista apresenta-se a solo, em grupos de câmara e em duo, nomeadamente, com Irene Lima e Bruno Monteiro. Concertos e recitais por todo o país com cantores portugueses preenchem regularmente o seu calendário. A recuperação e reposição do património musical nacional ocupam um lugar significativo na sua carreira, sendo responsável pelas áreas de investigação, edição e interpretação de obras dos séculos XIX e XX.
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Kodo Yamagishi Piano
Nascido no Japão em 1971, estudou na Universidade de Música de Viena, na classe de Direcção Musical de U. Lajovic, onde obteve o mestrado. Trabalhou então como co-repetidor e maestro em produções de óperas e dirigiu a Orquestra Pró-Arte de Viena. Participou ainda nas maste r classe s de direção, piano e interpretação de Lie d e r em Viena, no Cairo, em Weimar e, com Dietrich Fischer-Dieskau, em Estugarda. Desde 1997 que actua como assistente nas maste rclasse s do maestro E. Acel. Foi maestro assistente em produções de óperas no Festival de Verão de Klosterneuburg, no Festival Haydn, de Eisenstadt, e no Opern Air, em Gars am Kamp. Em 2002, dirigiu L’ Enf ant e t le s So rtilèg e s, de Maurice Ravel, na Alemanha, e também a Orquestra de Salão de Merano (Itália). De 2002 a 2004, trabalhou como maestro co-repetidor e Kap e llme is te r no Pfalztheater em Kaiserslautern (Alemanha), onde teve oportunidade de dirigir 22 récitas de óperas. Em 2004, dirigiu a Orquestra Nacional da Cidade de Oradea, na Roménia, e desde a temporada 2004/2005 é maestro assistente do Coro do Teatro Nacional de São Carlos. Foi vencedor do Prémio “Finalista” (2.º lugar) do II Concurso Internacional de Direcção de Orquestras e Prémio “Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo” (Brasil).
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Giovanni Andreoli Direcção musical
Estudou composição, piano, música coral, direcção de coro, flauta e percussão. Iniciou, muito jovem, a actividade no âmbito teatral, primeiro como co-repetidor, depois como director dos estudos musicais, finalmente como responsável pela preparação musical das companhias de canto. Foi maestro substituto em importantes teatros italianos e festivais líricos (Rossini Opera Festival, Torre del Lago, Maggio Musicale Fiorentino, etc.). Tem desempenhado as funções de maestro de coro em importantes instituições, como a RAI, de Milão, o Teatro la Fenice, de Veneza, o Teatro Carlo Felice, de Génova, e a Arena, de Verona. De 2004 a 2008, foi maestro titular do Coro do Teatro Nacional de São Carlos de Lisboa, cargo ao qual regressou na temporada de 2010-2011 – nele permanecendo. Colaborou com a Biennale Musica di Venezia, onde assegurou a estreia mundial de obras de autores como Guarnieri, De Pablo, Clementi, Manzoni ou Nono. Em 1996, principiou um intenso labor como director de orquestra em numerosos concertos sinfónico-corais, interpretando, nomeadamente, Carmina Burana, de Orff, e Pe tite M e s s e So le nne lle , de Rossini, com os recursos artísticos do Teatro La Fenice, de Veneza. No ano seguinte, dirigiu a Pe tite M e s s e So le nne lle de Rossini no Teatro Municipal de São Paulo. Com o Coro della Fenice, realizou o projecto L’ Esp e rie nza co rale d e l 900 italiano , com músicas di Dallapiccola, Rota, Petrassi. Em 1998, dirigiu L’ Elisir d ’ A mo re , de Donizetti, em Reiquiavique, L’ Inco ro nazio ne , de Mozart, e a Ne lso n Me sse , de Haydn, em São Paulo. Dirigiu igualmente a V ia Crucis, de Liszt, com o e nse mble da Fenice no Festival di Orvieto. À frente do mesmo e nse mb le , retomou a Carmina Burana e dirigiu obras de Remacha e Falla, o Die s Iræ, de Fellegara, e Le s No ce s, de Stravinsky, no Festival
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de Granada. A convite do Festival Klangbogen Wien, dirigiu O te llo , de Rossini, no Theater an der Wien, com a Orquestra Sinfónica de Varsóvia. No mesmo ano, dirigiu o Coro e a Orchestra del Teatro La Fenice numa primeira execução, em tempos modernos, da M issa A mab ilis e da M issa Do lo ro sa, de Caldara. Em 1999, dirigiu La Bo hème , de Puccini, no Teatro Grande di Brescia e em Lanciano, com a Orchestra Giovanile Italiana, e a M e s s a in Do , de Beethoven, em Porto Alegre. Dirigiu, seguidamente, os Archi della Scala e o Coro del Teatro La Fenice num programa de música sacra em Brescia, Il Barb ie re d i Siv ig lia, de Rossini, no Teatro degli Italiani em Gardone Riviera, Una Co sa Rara, de Martin y Soler, no Teatro Goldoni de Venezia, com o Coro e a Orquestra de La Fenice. Dirigiu igualmente as massas corais do Teatro Carlo Felice, de Génova, em numerosos concertos que abrangiam repertório do sacro ao musical e às músicas de filmes. Como maestro titular do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, dirigiu programas dos autores portugueses mais significativos. Colaborou também com a Companhia Portuguesa de Ópera e foi director principal da Orquestra Sinfónica da Op-Companhia Portuguesa de Ópera. Possui vasta discografia, com destaque para O rf e o Cantand o . . . To lse , de Guarnieri (gravada no Auditorium RAI, de Florença, em 1996), e para Carmina Burana (gravada com o Coro e a Orquestra do Teatro La Fenice, de Venezia). De 1994 a 2005, foi director artístico da Stagione Lirica do Teatro Grande, de Brescia.
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Concerto II
GRÂNDOLA
12 de Abril 221H30
LITURGIA DA ESPERANÇA: MISTERIO DEL CRISTO DE LOS GASCONES Pre se ntació n Lle g ad a d e l Cristo Lame ntació n d e la V irg e n El Nacimie nto El Bautismo . Prime ra A ng ustia El inicio d e l v iaje : Cristo M ae stro . Se g und a A ng ustia Las Te ntacio ne s: M aría M ag d ale na. Te rce ra A ng ustia V id a Púb lica y Entrad a e n Je rusalé m. Cuarta A ng ustia La Última Ce na. Q uinta A ng ustia El Be so d e Jud as. Se x ta A ng ustia Las Ne g acio ne s d e Pe d ro . Sé p tima A ng ustia La Sub id a al Calv ario La Crucif ix ió n, e l De sce nd imie nto y la Pie d ad La Re surre cció n La A sce nsió n Nao d’amores Dramaturgia e direcção Ana Zamora Interpretação dramática Elena Rayos/Elvira Cuadrupani, David Faraco/Juan Pedro Schwartz, Alejandro Sigüenza, Nati Vera Interpretação musical V io la d a g amb a Sofía Alegre/Alba Fresno V ihue la e sanfona Alicia Lázaro Flautas, cromorno e charamela Eva Jonet Espineta e gaita-de-foles Isabel Zamora
< Retábulo da capela de São Miguel e das Almas (pormenor). Escola portuguesa. Século XVIII (meados). Grândola, igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção.
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GRÂNDOLA
Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
A igreja matriz de Grândola é, tal como a vemos hoje, o resultado de um longo percurso histórico. Fundada nos finais da Idade Média, desconhece-se com rigor a data da sua primeira construção. Terá começado por ser uma capela curada, dependente da paróquia de Santa Maria, de Alcácer do Sal. A povoação, sita numa encruzilhada de caminhos e rodeada por terras férteis, conheceu assinalável desenvolvimento no século XV, levando a Ordem de Santiago, senhora de grande parte do Alentejo litoral, a escolhê-la para cabeça de uma importante comenda. Datará sensivelmente deste período a elevação da igreja a sede paroquial. Santa Maria de/da Bendada ou Abendada, a sua invocação primitiva, é algo enigmática. Tratar-se-á da reminiscência, como era frequente na época gótica, de um qualificativo da Virgem, Santa Maria-a-Bem-Dada, ou seja, a protectora generosa? Esta hipótese lembra outra invocação, Santa Maria-a-Bela, padroeira da aldeia de Abela, no vizinho concelho de Santiago do Cacém. Há igualmente quem admita ser aquele um termo associado à riqueza da terra, ela, sim, “bem-dada”. Porém, afigura-se mais provável que faça parte da extensa lista de topónimos de origem berbere, alusivos a um dos impor tantes clãs ou tribos que colonizaram o Sudoeste Peninsular, estando na origem do nome de muitos locais que começam por be n- (forma ibérica de banu-). D. Jorge, mestre das ordens de Santiago e Avis e duque de Coimbra, frequentou assiduamente Grândola, instalando aqui um paço. A tradição registou a predilecção que lhe mereceu a actividade venatória nos matos e serranias da zona, em que abundava a caça grossa, mas não oculta um interesse mais profundo em apoiar o desenvolvimento
São José e o Menino. Escola Portuguesa. Século XVIII (segundo quartel). Grândola, Museu de Arte Sacra, Inv.º n.º Esc. 9 Dep.>
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de uma povoação dotada de grande valor estratégico, em termos económicos e sociais, para a milícia espatária. As temporadas de vilegiatura do mestre e da respectiva corte ajudaram a chamar moradores à terra, imprimindo-lhe a feição senhorial que perduraria até tarde. Não surpreende, por isso, que uma das filhas ilegítimas de D. Jorge, de seu nome D. Joana de Lencastre, tenha sido criada pelo almoxarife de Grândola, Heitor Nunes. Em 1492, já existiam 135 residentes na aldeia, enquanto a área da comenda totalizava 810, distribuídos por cerca de 180 fogos, número considerável para a época. Com o aumento da população, a igreja medieval tornou-se exígua. Além disso, apresentava deficiências. A visitação efectuada por D. Jorge, em 1513, mostra que estava por ladrilhar e com diversos problemas de conservação. O mestre determinou então ao prior, Fr. Martim Nunes, que fosse “corrigida” com a colaboração do comendador, D. Simão de Meneses, e dos homens-bons da terra. O contributo da comenda para a fábrica da igreja, porém, não era pago desde que esse comendador assumira a posse do cargo, pelo que D. Jorge fê-lo advertir, em 1514, para que cumprisse o que era de direito. Mesmo assim, as obras só arrancaram em 1525. O atraso pode ser explicado pelo facto de estar em causa, afinal, não uma simples “correcção”, mas a reconstrução integral, ou quase, do edifício. Três anos mais tarde, embora ainda incompleto, este encontrava-se já em condições de ser usado. Um alvará de D. Jorge, em 1532, alude a problemas administrativos que impediam a finalização dos trabalhos, devido ao falecimento do pedreiro responsável, salientando que a igreja “se feez de novo”. Para tornar exequível o encerramento das contas, mandou os responsáveis da fábrica reunirem com Rodrigo Afonso, pedreiro de Santiago do Cacém – vila celebrada pela perícia dos seus mestres construtores –, que terá sucedido àquele profissional à frente das obras. No entanto, a visitação realizada em 1533 por Álvaro Mendes, cavaleiro da Ordem, e Fr. Afonso Rodrigues, prior de São Pedro de Palmela, indica que a igreja permanecia destelhada e não existia sino no campanário, além de outras lacunas. Os visitadores ordenaram a pronta resolução das falhas. O rei D. João III, a pedido de D. Jorge, concedeu, em 22 de Outubro de 1544, carta de foral a Grândola, elevando-a a vila e sede de concelho, sinal inequívoco de reconhecimento do progresso atingido pela terra. Cerca de uma década mais tarde, deu-se um passo importante para a valorização da matriz, a instituição da Confraria do Santíssimo Sacramento, formalizada por decreto, com data de 4 de Dezembro de 1554, do cardeal Marcello Cervino, patrono da confraria-mãe da mesma invocação, na igreja de Santa Maria sobre Minerva, de Roma. O documento original, magnificamente iluminado,
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guarda-se no arquivo da paróquia grandolense. A igreja consta nele ainda com o título de Santa Maria da Bendada. Ao longo da segunda metade do século XVI, optou-se por outro, mais “especializado”, o de Nossa Senhora da Assunção, comum a muitas igrejas alentejanas. As obras da primeira metade do século XVI deixaram marcas penetrantes na estrutura do imóvel, que se caracteriza pela planta longitudinal, com nave única e capela-mor profunda. Este conjunto, de grande coerência formal, tem adossados os volumes da sacristia, da torre sineira e das antigas dependências da Confraria do Santíssimo Sacramento. Nas centúrias seguintes ocorreram outras transformações de vulto, embora respeitando, quanto ao essencial, a solução quinhentista. Uma das empreitadas mais significativas teve lugar durante a segunda metade do século XVII, quando se executou a abertura, na nave, de quatro capelas laterais, três das quais foram revestidas, a breve trecho, tal como a própria nave, por azulejaria de padrão. A capela da confraria das Almas conserva uma inscrição, também em azulejos, que data esta intervenção de 1657. Pouco mais de vinte anos depois, procedeu-se à remodelação da capela-mor, incluindo a feitura de um retábulo de talha dourada e policromada, já sob a vigência do Barroco de “estilo nacional”. Construído em 1680-1684 pelo mestre entalhador Francisco Álvares, de Setúbal, dele fez parte o túmulo para a imagem do Se nho r M o rto , projectado em 1680 ou 1681 por Francisco Coelho, mestre carpinteiro e entalhador de Beja. Três capelas laterais viriam a receber igualmente retábulos de talha. Nos finais do século XVIII registaram-se novas modificações, certamente destinadas a solucionarem os estragos causados pelo terramoto de Lisboa (1 de Novembro de 1755). Entre estas campanhas, sobressai a da remodelação da fachada principal e da torre sineira, seguindo fórmulas tectónicas e decorativas, ao gosto pombalino, largamente utilizadas, pela mesma época, em diversas igrejas da faixa costeira do Alentejo que foram alvo de reconstrução após o sismo. Outra obra de vulto consistiu na erecção de um novo retábulo para a capela-mor, de pendor neoclássico. Ao longo dos séculos XIX e XX, houve diversas intervenções complementares que acabaram por sublinhar, nem sempre da maneira mais afortunada, o pendor ecléctico do edifício. A matriz de Grândola possui um notável acervo de pintura, escultura e artes decorativas, com destaque para a ourivesaria e os têxteis litúrgicos. Sobressai o painel que figura o Pentecostes, executado ca. 1610 por Fernão Gomes, pintor do mestrado da Ordem de Santiago. É também digna de particular nota a custódia em prata dourada, obra de um importante mestre ourives de Lisboa, cuja realização data dos finais do século XVII ou dos inícios do século XVIII, por encomenda de D. Nuno Álvares Pereira de Mello,
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1.º duque de Cadaval, 4.º marquês de Ferreira e 5.º conde de Tentúgal, na qualidade de comendador de Grândola. Estas e outras obras encontram-se patentes ao público no Museu de Arte Sacra local, instalado, em 2011, na igreja de São Sebastião. A paróquia de Nossa Senhora da Assunção preserva grande parte dos fundos documentais do seu arquivo, um dos mais completos, no género, do Alentejo.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
GERMESINDO SILVA, O Me stre de Sant’ Iag o D. Jo rg e e as V isitaçõ e s ao Lug ar da Grando lla, Lisboa, [edição do autor], 1991; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, O Entalhado r Francisco Á lv ares e a Co nstrução do Retábulo -Mo r da Igreja Matriz de Grândo la em 1 680-1 684, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 1995; MANUEL COSTA GAIO TAVARES DE ALMEIDA, Ro te iro Se te ce ntista da V ila de Grândo la. Sub sídio s p ara uma Mo no g raf ia, I-III, Grândola, Câmara Municipal de Grândola, 1998; J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da A zule jaria Po rtug ue sa, IV, A zule jaria e m Po rtug al no Sé culo XV II, 1-2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), Entre o Cé u e a Te rra. A rte Sacra d a Dio ce se d e Be ja [Catálogo da Exposição, Beja, Pousada de São Francisco, 1998-1999 – Lisboa, Panteão Nacional, 20002001], I-III, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2000.
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Da Gasconha a Segóvia: Morte e Ressurreição de um Cristo Viajante
RUI ARAÚJO & DIOGO ALTE DA VEIGA
Diz a lenda que a imagem conhecida por El Cristo d e lo s Gasco ne s viera, pela mão de viajantes gascões, numa égua cega que morrera às portas da igreja segoviana de São Justo. Nesta igreja, classificada como Bem de Interesse Cultural, em 1996, e onde se pode apreciar um notável conjunto de pinturas murais da época românica, conserva-se ainda hoje aquela imagem, uma interessante escultura românica, em madeira policromada, cujos braços são articulados. Pode situar-se a origem da lenda, com legitimidade, no contexto histórico da repovoação de Segóvia, iniciada no século XI, e que no seu auge, entre meados do século XII e inícios do século XIII, correspondeu a um período de prosperidade económica, que motivou, nomeadamente, a construção de um grande número de igrejas românicas. Como escreveu Garci Ruiz de Castro no Co me ntario so bre la prime ra y se g unda po blació n d e Se g o v ia, publicado em 1551, “[…] El Santo Cruçifixo de Sathiuste es un cruçifixo que le truxo una yegua blanca, quebrados los hojos. En su seguimiento venían unos gascones de tierra de Gascuña, que como en aquellas partes oviese siete lugares, cada cual lo quería para sí. Acordaron de ponelle ençima desta yegua y ponelle a do parase, y vino la yegua a parar en Santhiuste, iglesia do hizieron esta parrochia. Mucho tienpo estuvieron las herraduras señaladas a la entrada en una losa. El Cruçifixo, según dió testimonio un clérigo que le vió y murió dende a tres días, está echado con una mano en el costado y el otro brazo tendido [...].”1
1 GARCI RUIZ DE CASTRO, Co me ntario so b re la p rime ra y se g und a p o b lació n d e Se g o v ia, ed. dir. por JOSÉ
ANTONIO RUIZ HERNANDO, Segóvia, Excma. Diputación Provincial de Segovia, 1988, p. 7.
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O Cristo d e lo s Gasco ne s insere-se num modelo iconográfico oriundo das tradições centro-europeias para a comemoração do ciclo da Paixão. Estas esculturas articuladas destinavam-se às cerimónias litúrgicas da Semana Santa, sendo as mais impressionantes e dramáticas a do Enterro do Senhor (De p o sitio Crucis) e a da Ressurreição (Ele v atio Crucis). Muito provavelmente, a imagem da igreja de São Justo terá sido utilizada em cerimónias desta natureza; as articulações nos ombros e braços teriam permitido descê-la da abóbada do presbitério, onde ainda hoje podem ver-se os orifícios utilizados para pendurar a figura. Data de 1628 o documento mais antigo que descreve a procissão do Cristo d e lo s Gasco ne s, subsistindo, a partir de então, vários outros testemunhos escritos. Destes, apenas um faz menção a uma cerimónia de cariz propriamente dramático.2 Modesto e, pelas dúvidas que suscita, deixando na obscuridade a história que envolve o Cristo d e lo s Gasco ne s, este testemunho, quando associado às evidências iconográficas e arquitectónicas chegadas até nós, parece oferecer um claro indício de que, na referida igreja segoviana, se realizava uma destas cerimónias. Damos de novo a palavra a Ruiz de Castro: “En esta çiudad hay una calle que nonbramos Cal de Gascos. Esta calle poblaron gascones y dellos tomó el nonbre. Eran obligados a representar cada año la pasión de Nuestro Señor.”3
A prática de procissões, enquanto tradição universal e nas suas manifestações mais diversas, está documentada desde o período romano. Dessa época, há evidências de uma tradição de procissões ou desfiles relacionados com momentos marcantes, por exemplo os desfiles triunfais, que envolviam alguns elementos dramáticos. No ritual cristão, podemos considerar que as procissões representam “quadros vivos” que descrevem a história da salvação através de episódios do Antigo Testamento, através do relato da vida de santos (Histo riæ) de devoção menos ou mais localizada e, principalmente, através da Paixão de Cristo. Este género de procissões continuou a ser realizado muito para além do período medieval, nomeadamente em Inglaterra e na Península Ibérica, aqui particularmente através dos autos sacramentais. Existiram diversos tipos de procissões sacras ao longo da Idade Média, que podem ser
2 JOSÉ LUIS HUERTAS, ANA ZAMORA & ALICIA L ÁZARO, M iste rio d e l Cristo d e lo s Gasco ne s, Segóvia, Nao d’amores-
Junta de Cofradías de Segovia, [s.d.], pp. 7 e 9. 3 GARCI RUIZ DE CASTRO, o p . cit. , ib id .
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enquadradas em dois grandes grupos, segundo dizem respeito ao ciclo anual litúrgico ou a eventos ocasionais. No último caso, os eventos consistiam, mormente, em funerais, consagração de igrejas, cemitérios e outros locais sagrados, trasladação e exposição de relíquias, peregrinações, coroações e outras celebrações de cariz político-religioso, autos-de-fé, ordenações e consagrações de clérigos. Já o ciclo anual litúrgico celebrava, ao longo do ano, os vários santos, dado que as respectivas festas possuem dias fixos, e os diferentes episódios da vida de Cristo, tais como o Advento, o Natal, a Epifania e o Co rp us Christi, entre outros. Mas era durante a Semana Santa, com toda a sua carga simbólica e espiritual, que o ciclo litúrgico contribuía com maior relevância para essas procissões, sendo os momentos de culminante intensidade dramática a “Via-Sacra” e a já mencionada cerimónia da deposição do corpo de Cristo no sepulcro. Nestes rituais sacros, a personificação, ou representação, constitui um elemento fundamental para uma concepção dramática da procissão. Os participantes podiam ser, eles mesmos, os “actores” dessa representação, personificando os diversos intervenientes da história a ser apresentada. Tal personificação podia ainda materializar-se através de uma estátua, simples ou articulada (como é o caso do Cristo d e lo s Gasco ne s), ou de maquetes, conservando-se exemplares de ambas as tipologias em diversos museus, na Europa e em outras partes do mundo. A representação dramática medieval, para a qual o repertório subsistente é vastíssimo, consistia, essencialmente, em dois tipos de drama religioso: no primeiro, tradicionalmente conhecido pela designação de Drama Litúrgico, o texto era integralmente cantado, sendo a língua o Latim, e as composições musicais monódicas (destas, o Canto Gregoriano oferece a nossa principal referência); o segundo tipo de drama religioso desenvolvia a acção principal através de texto falado, em língua vernácula, sendo introduzidas, na medida que se considerasse apropriado, canções, música instrumental, monodia e polifonia. Além do drama religioso, conhecem-se algumas peças isoladas de temática profana desde o século XIII, embora tradições coerentes do género sejam identificáveis somente a partir de finais da Idade Média. Da diversidade de tradições musicais líricas que povoam as peças dramáticas medievais, são especialmente relevantes a canção de dança, nomeadamente nas peças de origem germânica para a Paixão, e, em especial, o Planctus latino. Na cena do Pranto de Maria aos pés da Cruz, alguns historiadores viram mesmo a génese do drama medieval como um todo. Este Planctus desenvolveu-se como um diálogo cantado (Maria e o apóstolo São João; Raquel e aqueles que a consolam). À Canção d a Sib ila, a profecia dos sinais que precedem a segunda vinda de Cristo, deve também reconhecer-se um papel importante na formação do drama medieval. O texto da Profecia data dos inícios da
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Cristandade, podendo ser identificado, como elemento musical da liturgia de Natal, a partir do século VIII. Fontes litúrgicas que constam do Se rmo d e Symb o lo , como ficou conhecida a Profecia após os meados do século V, subsistem maioritariamente na Península Ibérica, onde se sabe que a Canção d a Sib ila era dramatizada, em língua vernácula, pelo menos nos séculos XV e XVI. Mercê de tudo isto, a forma dramática medieval mais impressionante acabou por coincidir, assim, com a própria Liturgia. Exemplos paradigmáticos do que dizemos são a Missa, descrita por Honório de Autun, em Ge mma A nime (ca. 1100), como um drama análogo à tragédia antiga, e as cerimónias da Semana Santa, onde as procissões eram parte da acção em inúmeros dramas litúrgicos. A denominação de Drama Litúrgico advém, basicamente, do facto de o repertório se encontrar quase sempre em livros litúrgicos, repertório esse cuja raiz é, acima de tudo, o espírito da Liturgia. Dos primeiros centros medievais de drama litúrgico cujas fontes subsistem hoje em dia, um dos principais foi a abadia beneditina de São Marcial de Limoges, no Sul de França, seguida pelas de Saint-Gall (Suíça), Winchester (Inglaterra) e, ainda, por algumas casas religiosas situadas no Norte de França, no Sudeste da Alemanha, no Norte de Itália, na Sicília normanda, na Catalunha e na ilha de Maiorca. Para o drama litúrgico, as fontes mais relevantes são datáveis entre os séculos IX e XI, podendo encontrar-se nelas diversos elementos dramáticos: Planctus, peças sobre diferentes temas bíblicos e para diversas ocasiões litúrgicas (num ou noutro caso incluindo estrofes e refrães em língua vernácula), hinos, adições textuais e musicais a textos e melodias preexistentes, de que são exemplo, entre outros, as prosas e os tropos, e a Canção d a Sib ila. No segundo tipo de drama religioso, em língua vernácula, a representação do tempo e do espaço, ao contrário do drama litúrgico, não pretendia ser realista, apresentando, ao invés, os espaços e personagens históricos de uma perspectiva totalmente contemporânea. Esta constitui-se como a principal característica do drama em língua vernácula, a par do facto de que as representações do género eram realizadas sobretudo no exterior, estando os actores em iminente proximidade física com a audiência. Do repertório para este género dramático, existe uma extraordinária variedade de peças em inúmeros países europeus, suplantando de longe o drama litúrgico. Na Península Ibérica medieval, o espaço geográfico que importa aqui explorar, as evidências de tradições de drama religioso são diminutas, concentrando-se fundamentalmente em centros dramáticos da Catalunha. Afigura-se provável que muitas peças se tenham perdido. Desta época, fora do espaço catalão, os documentos mais relevantes que chegaram
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aos nossos dias são um ou outro breve texto religioso latino, de carácter discutivelmente dramático, e, ainda, o A uto d e lo s Re ye s M ag o s, peça religiosa em língua vernácula, fragmentária, de finais do século XII, com provável autoria de um religioso oriundo da Gasconha, que se terá estabelecido em Toledo. Este A uto e as prováveis circunstâncias relativas à sua autoria não deixam de constituir uma referência para o verosímil contexto histórico da lenda do Cristo d e lo s Gasco ne s, não só pela proximidade geográfica de Segóvia a Toledo, mas também face à história da Península nos séculos XI e XII, pois algumas casas religiosas do Sul de França, Gasconha incluída, tiveram um papel determinante na reorganização eclesiástica e litúrgica das dioceses ibéricas. Após uma lacuna de mais de dois séculos, só a partir do século XV podem mapear-se evidências de actividade dramática religiosa na Península Ibérica; desde então, são várias as cidades que o atestam, nomeadamente através da presença de um co rp us significativo de peças religiosas em língua vernácula. Aliás, a ligação entre o drama litúrgico e a língua vernácula parece manifestar-se, muito particularmente, em testemunhos históricos do espaço ibérico. Ambas as tradições dramáticas religiosas, a litúrgica e a vernácula, estão na base da concepção do Miste rio de l Cristo de lo s Gasco ne s, cuja elaboração utilizou e articulou ainda várias obras específicas do drama religioso ibérico de finais de Quatrocentos e de Quinhentos. “Misterio”, a par de termos como “Auto” e “Milagre”, oferece uma referência específica ao drama em língua vernácula, língua que predomina na peça hoje apresentada. Quanto ao repertório musical que podemos ouvir no M is te rio d e l Cris to d e lo s Gasco ne s, os eventuais elementos monódicos provêm do Passio nário To le d ano , do século XV, onde estão recolhidas as leituras, na sua forma musical monódica, para a celebração da Paixão segundo o rito de Toledo. De livros de polifonia, cujo repertório é o que predomina no M iste rio , duas fontes musicais de vulto de inícios do século XVI, entre outras, foram utilizadas: o Cancio ne iro d e Se g ó v ia e o Cancio ne iro M usical d o Palácio . Este constitui o maior cancioneiro ibérico com música polifónica renascentista. Constando de mais de 400 peças (sacras e profanas), escritas por vários copistas em diferentes períodos do século XVI, reflecte parte da evolução do vilancico espanhol, desde o período inicial, onde está patente uma influência da polifonia franco-flamenga mais elaborada, até a um período intermédio, caracterizado por um estilo mais simples e tradicional, homofónico, e por um contraponto menos elaborado. O Cancio ne iro d e Se g ó v ia, por sua vez, é um manuscrito elaborado nos inícios do século XVI (entre 1502-1506) e que, segundo estudos recentes, terá pertencido ao
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círculo de Isabel, a Católica. Compõe-se de duas partes distintas. A primeira, a mais extensa, consta maioritariamente de composições polifónicas franco-flamengas (com a excepção de Juan de Anchieta [S 1462 – X 1543]), escritas de forma irrepreensível. Este estilo composicional indica que tais peças terão sido realizadas sob a supervisão de um músico flamengo, mas, neste caso, em território castelhano. A presença de músicos flamengos na corte espanhola e a sua influência na música espanhola renascentista foram já alvo de diversos trabalhos académicos. A segunda parte, encontrando-se num caderno separado, é composta por peças polifónicas castelhanas. Através da análise destas fontes, tornam-se patentes algumas características da música polifónica sacra espanhola do último quartel do século XV e de inícios do século XVI. Aparentemente, os compositores espanhóis eram indiferentes à mistura de elementos sacros e profanos nas suas obras destinadas à Missa. A utilização de um Cantus Firmus (monodia) profano, como Nunca Fue Pe na M ayo r, na base de uma Missa polifónica de Francisco de Peñalosa [S 1470? – X 1528], e cujo Kyrie é cantado no M iste rio a que assistimos, será a prova disso mesmo. Aliás, essa prática correspondia a algo frequente na música franco-flamenga. Por outro lado, o estilo polifónico sacro espanhol evita jogos mais complexos ao nível do contraponto e da mensuração, tão típicos da música sacra renascentista dos Países Baixos. Este elemento parece ser um forte comprovativo da função litúrgica das composições sacras espanholas, ou seja, de que se destinavam a momentos específicos do serviço religioso. Existem ainda diferenças estilísticas que revelam estilos pessoais nos compositores espanhóis. Mencionando, a título de exemplo, Anchieta e Peñalosa, o primeiro preferiu utilizar sonoridades mais estáveis ao nível da polifonia e combinações contrapontísticas mais características do repertório ibérico. Peñalosa, por seu turno, reflectiu mais a influência de Obrecht do que de Josquin des Prés, utilizando um maior número de motivos e um contraponto mais imitativo. No Cancio ne iro d e Se g ó v ia, algumas peças não têm correspondências em outras fontes musicais. Uma delas, o motete Do mine , no n Se cund um, de Anchieta, tem como texto os primeiros dois versos do tracto para a Quarta-Feira de Cinzas (início da Quaresma). A generalidade das versões polifónicas deste tracto, compostas por outros autores, são bastante semelhantes entre si, quase todas datadas entre finais do século XV e meados do século XVI. Nelas, a colocação de f e rmatas, pausas e separação de frases é um indício de influência do cerimonial pontifício. A versão de Anchieta, por sua vez, não segue de forma rigorosa a versão mais corrente, sugerindo tratar-se de uma tradição local (ainda que de curta duração, dado que, a partir de meados do século XVI, a polifonia foi suprimida do Tempo da Quaresma).
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Partindo de todas estas referências dramáticas e musicais e articulando diversos recursos históricos textuais, cénicos e musicais, o Miste rio de l Cristo de lo s Gasco ne s contribui, antes de mais, para a preservação e divulgação de uma herança que merece ser acarinhada e difundida. Ainda assim, não pretende ser uma reconstrução “arqueológica” de uma representação medieval, nem tão-pouco uma peça de carácter realista, preocupação evidente, em particular, no recurso específico a uma escultura articulada, uma marioneta, onde se concentram todas as inverosimilidades possíveis. Pretende, sim, constituir-se como uma recriação livre do drama da Paixão, através de um modo de expressão original animado pela rica herança que reflecte, procurando transmitir uma mensagem e responder a anseios que permanecem actuais.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
HUERTAS, JOSÉ LUIS, ZAMORA, ANA & LÁZARO, ALICIA, M iste rio d e l Cristo d e lo s Gasco ne s, Segóvia, Nao d’amores-Junta de Cofradías de Segovia, [s.d.]. OLMOS, ÁNGEL MANUEL, La Transmissio n O rale d e la Po ly p ho nie e n France e t e n Esp ag ne p e nd ant le X V ème e t X V I ème siècle s: Essai d ’ Inte rp ré tatio ns Philo lo g iq ue s d e la No tatio n d e la M usiq ue e n Lang ue V e rnaculaire (Dissertação de Doutoramento), Université Paris IVSorbonne, 2006. PLANCHART, ALEJANDRO ENRIQUE, “La música sacra española en tiempos de Isabel la Católica: contexto de su época e historiografía moderna” , em A cta M usico lo g ica, LXXXII, 2, Basileia, 2010, pp. 213-235. REYNOLDS, ROGER E., “The Drama of Medieval Liturgical Processions”, em Re v ue d e M usico lo g ie , LXXXVI, 1, Paris, 2000, pp. 127-42. STEVENS, JOHN, R ASTALL, RICHARD & SAGE, JACK, “Medieval Drama”, s. v . , em STANLEY SADIE & JOHN T YRRELL (dir. de), The Ne w Gro v e Dictio nary o f M usic and M usicians, XVI, 2.ª ed., Londres, Oxford University Press, 2001.
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PRESENTACIÓN
Llore comigo la gente
Te x to d e Lamentaciones fechas para la Semana Santa,
de todos los tres estados,
d e Gó me z M anriq ue
por labar cuyos pecados mataron al inocente,
Santa María
a mi fijo y mi señor,
¡Ay dolor, dolor,
mi redentor verdadero.
por mi fijo y mi señor!
¡Cuitada! ¿Cómo no muero con tan estremo dolor?
Todas ¡Ay dolor!
María Magdalena ¡Ay dolor!
Santa María Yo soy aquella María
(Canta Kyrie eleison de la Misa de Francisco de
del linaje de David.
Peñalosa)
Oíd, señores, oíd, la gran desventura mía. LLEGADA DEL CRISTO A mí dixo Gabriel
Te x to s d e Lamentaciones fechas para la Semana Santa,
qu’el Señor era comigo,
d e Gó me z M anriq ue , y Coplas en que pone la cena
y dexóme sin abrigo,
que Nuestro Señor hizo con sus discípulos cuando
amarga más que la hiel.
instituyó el sancto sacramento del su sagrado cuerpo,
Díxome qu’era bendita
d e Fray Íñig o d e M e nd o za
entre todas las nacidas, y soy de las afligidas
San Juan
la más triste y más aflicta.
¡Oh Virgen Santa María, madre de mi Salvador!
¡O vos, hombres que transistes
¡Qué nuevas de gran dolor,
por la vía mundanal,
si pudiese, vos diría!
decidme si jamás vistes
Mas, ¿quién las podrá decir,
igual dolor de mi mal!
quién las podrá recontar,
Y vosotras que tenéis
sin gemir, sin sollozar,
padres, fijos y maridos,
sin prestamente morir?
acorredme con gemidos si con llantos no podéis.
Santa María ¡Ay dolor!
Llorad comigo, casadas; llorad comigo, doncellas,
San Juan
pues que vedes las estrellas
¡O hermana Madalena,
escuras y demudadas,
amada del Redentor!
vedes el templo rompido,
¿Quién podrá con tal dolor
la luna sin claridad.
remediar tan grave pena?
Llorad comigo, llorad
¿Cómo podrá dar consuelo
un dolor tan dolorido.
el triste desconsolado que vido crucificado al muy alto Rey del cielo?
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María Magdalena
A las águilas combido,
¡Ay dolor!
que se precian de alto buelo, que pongan dolor al cielo
San Juan
y griten fuera del nido
Su corona tan penosa
mis lástimas con su zelo;
que visteis llena de espinas,
perded, cielos, el color,
ya se le tornó preciosa
y peñas, hazéos pedaços;
corona real ponposa;
¡o mar, brama con temor
sus espinas, clavellinas;
por mi vida y tu señor,
sus puntas ensangrentadas
como está muerto en mis brazos!
son tornadas rosicler, y sus llagas lastimadas,
Todos los quatro elementos
en dulçor son trastocadas
de tristes fagan mudança;
de plazer.
arda el fuego sin templança; de dolor bramen los vientos
Su cuerpo tan açotado
en muy áspera tardança;
con vergas, sin merecerlas,
la tierra y sus fundamientos
es hecho nuestro dechado
tiemblen por los daños míos;
por mano de Dios bordado
ábranse los movimientos
de cien mil piedras y perlas,
y queden secos y esentos
y la llaga del costado
de agua todos los ríos.
que sus entrañas passiona, es ya postigo dorado
EL NACIMIENTO
que nunca será cerrado
Te x to s d e Representación del nacimiento de Nuestro
a persona.
Señor, d e Gó me z M anriq ue y Coplas de Vita Christi, d e Fray Íñig o d e M e nd o za
(Canta Kyrie eleison de la Misa de Francisco de Peñalosa)
Santa María Adórote, rey del çielo,
LAMENTACIÓN DE LA VIRGEN
verdadero Dios e onbre;
Te x to s d e Lamentación a la Quinta Angustia, quando
adoro tu santo nombre,
Nuestra Señora tenía a Nuestro Señor en los braços, d e
mi salvaçión e consuelo.
Fray Íñig o d e M e nd o za
Adórote, fijo e padre, a quien sin dolor parí,
Santa María
porque quesiste de mí
Fijo mío, ya espirastes
fazer de sierva tu madre.
¡ay, que no puedo valeros! Yo, mi bien, me muero en veros;
Cantad todos los humanos
¡quán diferente quedastes,
con esta corte del çielo,
que no puedo conosceros!
pues tenéis entre las manos
Muy diferente de sí
el Paraíso en el suelo
está tu bendita cara,
en el cuerpo de un moçuelo
amarilla y no tan clara como cuando te parí y en mis braços te criara.
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Cantan: Si eres niño y has amor / qué farás
María Magdalena
cuando mayor (música sobre el Cancionero de
Con esta lança tan cruda
Upsala)
foradarán tu costado e será claro, sin duda,
San Juan
lo que fue profetizado.
Mas éste tu gran plazer en dolor será tornado,
Cantan: Niño que hoy nacido has / de amor
pues él ha sido enbiado
morirás (Anónimo del siglo XVI)
para muerte padeçer ¡O santo Niño, naçido
EL BAUTISMO. PRIMERA ANGUSTIA
para nuestra redençión!
Te x to s d e Invocación a Nuestra Señora, e n Tractado de
Mira el cáliz dolorido
Amores, y de La Pasión Trobada, amb as d e Die g o d e
de la tu cruda pasión
San Pe d ro
Sant Pedro
Santa María
E será con este astelo
Él era para querer,
tu cuerpo glorificado,
que nunca a nadie enojó;
poderoso rey del çielo,
a todos hazíe plazer
con estas sogas atado.
y siempre quiso correr por donde virtud corrió.
Músico 1
El cuerpo y rostro tenía
Con estos açotes crudos
más hermoso que las flores;
ronperán los tus costados
vida de sancto hazía,
los sayones muy sañudos
por cierto no merescía
por lavar nuestros pecados.
Él tan amargos dolores.
Músico 2
¡O fijo que el mundo guía!,
E después de tu persona
quiero ya dexarvos yo,
ferida con deçeplinas,
pues que por la dicha mía,
te pornán esta corona
non queréys la conpañía
de dolorosas espinas.
de la madre que os parió; mi querer será gemir,
Músico 3
mi bever será dolor,
En aquesta santa cruz
mi vivir será morir,
el tu cuerpo se porná,
mi fabla será dezir:
a la ora no avrá luz
nunca fue pena mayor
y el tenplo caerá. EL INICIO DEL VIAJE: CRISTO MAESTRO. Músico 4
SEGUNDA ANGUSTIA
Con estos clavos, Señor,
Te x to s d e La Pasión Trobada, d e Die g o d e San Pe d ro
te clavarán pies e manos, grande pasarás dolor
¡O imagen gloriosa,
por los míseros umanos.
o fijo! ¿para vivir, quál razón sufre tal cosa que viva yo dolorosa
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teniendo vos de morir?
nunca hombre fue nascido,
¡O, angustia en que me fundo,
nin fallado tan hermoso.
o cuerpo lleno de luz! más hérades bien profundo
VIDA PÚBLICA Y ENTRADA EN JERUSALEM.
para vivir en el mundo
CUARTA ANGUSTIA.
que para estar en la cruz!
Tex tos de Coplas de Vita Christi, de Fray Íñigo de Mendoza
¡Aquellas que no engendraron,
Santa María
qué tan benditas serán,
¡O castellana naçión,
y las tetas que gozaron
centro de avominaciones!
que fijos no mamantaron
¡O christiana religión,
después d’esto llorarán!
ya de casa de oraçión
¡oh vírgenes saludables,
hecha cueva de ladrones!
qué buen esposo perdístes!
Como muchas nueces vanas
Sus amores perdurables
se cubren de casco sano;
con lástimas inefables
como engañosas mançanas
farán vuestros días tristes
que muestran color de sanas y tienen dentro gusano.
LAS TENTACIONES: MARÍA MAGDALENA. TERCERA ANGUSTIA
¡O mundo caduco, breve,
Tex to s del Auto de la Pasión, de A lo nso del Campo , y de
peligrosa barca rota,
Invocación a Nuestra Señora, en Tractado de Amores, de
casa que toda se llueve,
Diego de San Pedro . Nunca fue pena mayor (Cancionero
dulçor que presto se beve
Musical de Palacio, anó nimo s de lo s siglo s XV y XV I)
y eternalmente se escota; falso canto de sirena
Santa María
con que el sentido se olvida;
¡Amigas, las que paristes,
hedificio sobre arena;
ved mi cuita desigual;
mançana de fuera buena,
las que maridos perdistes,
de dentro toda podrida!
las que amastes y quesistes, llorad conmigo mi mal;
LA ÚLTIMA CENA. QUINTA ANGUSTIA
mirad si mi alma es fuerte,
Te x to s d e Invocación a Nuestra Señora, e n Tractado de
mirad qué dicha la mía,
Amores, y d e La Pasión Trobada, amb as d e Die g o d e
mirad qué captiva suerte,
San Pe d ro
que le están dando la muerte a un Hijo que yo tenía!
Cantan: Amen dico vobis, quia unus vestrum me traditurus est (Pasionario Toledano)
María Magdalena (Cantando) Nunca f ué p e na mayo r
Santa María
nin to rme nto tan e x traño
Ahora la muerte presente y las ansias y temor
Santa María
que esta carne triste siente
En él tenía marido,
me aquexa muy bravamente,
fijo, hermano y esposo,
que te suplique, Señor,
de todos era querido;
que si hazerse pudiesse
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por consolar mi tristura,
mi devoción no es poca,
y que si possible fuesse,
luego quiero començar.
no gustase ni beviesse
Besarte quiero,Señor,
este cáliz de amargura.
qu’eres mi criador.
¡O muerte que siempre tienes
Sant Pedro
descanso quando destruyes!,
Plázale de te besar,
¡o enemiga de los bienes!,
él bien sabe tú falsía,
a quien te fuye le vienes,
que vienes a perturbar
a quien te quiere le fuyes.
la su santa compañía.
¡O cruel que syempre fuiste muy tenida sin letijo!
Judas (a los judíos)
pues ofenderme quesiste,
Amigos caede aquí
mataras la madre triste,
al cruel ombre tirano
dexaras vivir el fijo.
que por dineros vendí yo luego y echalde la mano;
EL BESO DE JUDAS. SEXTA ANGUSTIA
y de tal manera lo atad,
Te x to s d e l Auto de la Pasión, d e A lo nso d e l Camp o ;
que no se os pueda soltar,
Coplas en que pone la cena que Nuestro Señor hizo con
que si se os va d’entre manos
sus discípulos cuando instituyó el sancto sacramento del
non lo avrés d’aquí a çien años;
su sagrado cuerpo, Lamentación a la quinta angustia y
y dalde mala ventura,
Coplas a la Verónica, to d as e llas d e Fray Íñig o d e
que bien lo meresçe
M e nd o za; Pasión Trobada, d e Die g o d e San Pe d ro
por su locura.
Cantan: Quid vultis mihi dare et ego vobis eum
Santa María
tradam? Num quid ego sum Rabbi (Pasión según
Di traidor, ¿qué te movió
S. Mateo. Juan de Anchieta)
a hazer tan gran error? ¿cúal diablo te engañó?
Judas
¿quién jamás nunca pensó
Sienpre ayas Tú salud,
de vender a su Señor?
rabí santo de virtud.
Y ¿qué son treinta reales,
Viéneme a la voluntad
o ciego, perdido, necio,
que te querría besar;
ni todos nuestros metales,
besarte quiero, Señor, que eres mi Dios y criador.
Sant Pedro ni los cuerpos celestiales,
Sant Pedro
para poder ser su precio?:
Amigo, ¿esa tu color cómo la traes demudada?
Judas
Si tú vienes con amor,
No te muestres tan constante,
tu ánima es perturbada.
Pedro, que no lo serás, que yo te digo que ante
Judas
qu’esta noche el gallo cante,
Señor, yo te vengo a besar
tres veces le negarás.
y a darte paz en la boca,
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Santa María
Sant Pedro
¡O maestro muy agudo!
Nunca yo lo conosçí
¿Dónde tienes tu saber?
ni con él hube notiçia,
¿Cómo te tornaste mudo,
pero soy venido aquí
que en testimonio tan crudo
por mirar esta justiçia.
no curas de responder? ¿Cómo quieres fenescer,
Todos Cantan
o enamorado excelente?
No n sum
¿Por qué quesiste nascer para aber de padescer
María Magdalena
como inocente?
Yo te vi en el huerto quando sacaste el cuchillo,
Solíades me vos hablar
por ello devéis ser muerto
hijo mío, mi consuelo,
si curase de dezillo.
y solíades me alegrar, y solíades consolar
Sant Pedro
mi tristeza y desconsuelo
Agora vengo de Betania,
Si los abismos escuchas
así Dios sea por mí,
y el cerco del sol enciendes,
nunca anduve en su conpaña
¡o fijo! ¿por qué no entiendes
ni tal onbre consçí.
mis bozes grandes y muchas del dolor en que me prendes?
Todos Cantan No n sum
Cantan: Num quid et tu ex discipulis es hominis istius? (Pasión según San Juan. Juan de Anchieta)
Judas Yo t’é visto cada día este onbre acompañar,
LAS NEGACIONES DE PEDRO. SÉPTIMA
departiendo la eregía
ANGUSTIA
qu’él solía predicar.
Te x to s d e l Auto de la Pasión, d e A lo nso d e l Camp o , e Invocación a Nuestra Señora, e n Tractado de Amores,
Sant Pedro
d e Die g o d e San Pe d ro
Yo te juro por Dios bivo con tal onbre nunca anduve
Sant Pedro
y otra vez su nonbre juro,
Señora, por Dios os ruego
si no, él nunca me ayude.
me dedes algún lugar
Y por que nadie lo dubde,
a llegarme aqueste fuego,
quítame la vestidura
que me quiero calentar,
si queréis que me desnude como onbre sin ventura.
Santa María Tú d’aqueste onbre eras
Todos Cantan
que no lo puedes negar;
Num q uid e t tu e x d iscip ulis e s ho minis
yo lo veo en tus maneras,
istius?
yo te lo quiero provar;
No n sum
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(Aquí cantará el gallo)
y cómo le acoceavan,
Santa María
y cómo otros le tiravan
¡O sagrada hermosura
de aquellas barbas sagradas
que así se pudo perder! ¡O dolorosa tristura!
Santa María
¡O madre tan sin ventura,
Dexiste qu’era bendita
que tal has podido ver!
entre todas las mugeres; mira esta gente infinita.
¡O rostro abofeteado,
cómo me dizen maldita;
o rostro tan ofendido,
oye, si oirlo quieres
o rostro tan mesurado, más para ser adorado
María Magdalena
que para ser escopido!
¡Ay dolor!
¡O muerte que no me entierra, pues que della tengo hambre!
San Juan
¡O cuerpo lleno de guerra!
Provava se a levantar
¡O boca llena de tierra!
y sus miembros no podían;
¡O ojos llenos de sangre!
¡O cosa tan de llorar, que en quererse menear
LA SUBIDA AL CALVARIO
todos sus huesos cruxían!
Tex to s de La Passión Trobada, de Diego de San Pedro
Santa María MARÍA MAGDALENA
Dexiste Dios es contigo;
¡Ay, dolor!
antes es muy alongado; O ángel mi buen amigo,
San Juan
¿cómo diré qu’es conmigo,
Pues ya la sentencia dada
pues del todo m’ha dexado?
qu’el inocente muriesse, aquella gente dañada
María Magdalena
tuvo presto aparejada
¡Ay, dolor!
la cruz en que padesciese. (Canta Kyrie eleison de la Misa de Francisco de Santa María
Peñalosa)
O Arcángel Gabriel, en tu mensaje troxiste
CRUCIFIXIÓN, EL DESCENDIMIENTO Y LA
palabras como la miel
PIEDAD
háseme tornado en fel
Te x to s de La Passión Trobada, de Die g o de San Pe dro ,
todo cuanto me dexiste
y f rag me nto de l Romance: Tierra y cielos se quexaban y
María Magdalena
Palacio, anó nimo de lo s sig lo s XV y XV I)
de Pues es muerto el Rey del cielo (Cancionero Musical de
¡Ay dolor! Santa María San Juan
Entonces escuresció
Piensa cómo unos le davan
toda la lumbre del mundo;
en su rostro bofetadas,
el sol claro se eclipsó;
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toda la tierra tremió
Santa María
fasta el abismo profundo;
Avezillas que voláis
Y todos los elementos
animales que paçéis
curso natural mudaron;
dezid: ¿porqué no gritáis
las estrellas y los vientos
porque a mí me consoléis?
por diversos mudamientos gran sentimiento mostraron
Cantan Que soy sola e sin consuelo,
María Magdalena (Canta)
pues perdí
Tierra y cielos se quexaban
aquel alto Rey del çielo
el sol triste s’escondía
que parí.
y el mar sañoso bramando sus ondas turbias volvía RESURRECCIÓN Cantan
Frag me nto d e Magdalena en el sepulcro (Cancionero
Pues es muerto el Rey del çielo
Musical de Palacio, anó nimo d e lo s sig lo s X V y X V I)
que parí, será la muerte el consuelo
María Magdalena
para mí.
Al Señor crucificado, Redentor,
Santa María
yo lo vi resucitado
Las que vida y alegría
sin dolor
deseáis echar por suertes
Lleguéme junto cab’el,
repartí entre vos mis días,
por mejor asegurarme.
dadme todas vuestras muertes,
Començé de hablar con él y él a mí de consolarme;
Cantan
y díxome: “¿Quieres tocarme?”
que una muerte no es consuelo
¡Ay Señor!,
para mí,
¡Tú eres mi redentor!
pues es muerto el Rey del çielo que parí. LA ASCENSIÓN Santa María
Adoramos te Domine (Cancionero de Montecassino,
Pues que un su morir tan fuerte
sig lo X V )
muchos morires mató, razón es que por tal muerte
Cantan
muchas muertes muera yo,
Adoramos te Domine Jesuchriste et benedicamus tibi
Cantan
qui per sanctam crucem tuam
que una muerte no es consuelo
redemisti mundum
para mí, pues es muerto el Rey del çielo que parí.
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Nao d’amores
Companhia de profissionais oriundos do teatro clássico, das marionetas e da música antiga, Nao d’amores surgiu em 2001, sob a direcção de Ana Zamora, e desenvolve um importante trabalho de investigação e formação para a encenação, em palco, do teatro medieval e renascentista. O ponto de partida desta actividade nasceu do interesse por textos que, não fazendo parte dos repertórios habituais, são referências fundamentais para se compreender a evolução da história da dramaturgia, mas permanecem à margem dos palcos actuais, devido a um absurdo desajustamento entre o campo dos estudos filológicos e o campo da prática teatral. Longe de pretender uma reconstrução “arqueológica”, a sua proposta de representação articula técnicas cenográficas primitivas, a partir de uma óptica contemporânea, para reivindicar o carácter específico, único e irrepetível da actividade teatral. É este o repto que Nao d’amores leva a cabo, apostando no teatro clássico como bem cultural que se repercute directamente no desenvolvimento intelectual, criativo e lúdico dos cidadãos. Em 2008, mediante um protocolo com o Ayuntamiento de Segóvia, iniciou nova etapa da sua actividade, tornando-se a Compañía Residente en la Casa del Arco del Socorro, espaço em que desenvolve, actualmente, o seu trabalho de estudo, formação e criação, tendo como alvo o teatro primitivo da Península Ibérica. Neste mesmo ano, Ana Zamora e Nao d’ amo re s foram galardoados com o Prémio Ojo Crítico, da Radio Nacional de España, pela sua “imprescindível viagem às origens do nosso teatro, guiados por uma visão ao mesmo tempo respeitadora e imaginativa, culta e popular”. Co me d ia Llamad a M e tamo rf o se a, de Joaquín Romero de Cepeda, o primeiro espectáculo da companhia, estreado no XXIV Festival Internacional de Teatro Clásico de Almagro (2001), recebeu o Prémio José Luis Alonso, da Asociación de Directores de Escena de España, pela melhor ”dirección novel de la temporada”. O A uto d a Sib ila Cassand ra, de Gil Vicente, estreado igualmente no Festival de Almagro (2003), abriu a porta a participações nos principais festivais de teatro clássico: El Escorial, Medieval de
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Elche, Jornadas del Siglo de Oro de Almería, Arte Sacro de Madrid e Clásicos en Alcalá. Foi também incluído na programação da temporada do Teatro de La Abadía, de Madrid, obtendo grande êxito junto da crítica e do público. Considerado o primeiro texto feminista da história do teatro peninsular, itinerou, com o apoio da Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo, pelo Peru, Argentina, Uruguai e Chile. Em 2004, estreou-se o A uto d o s Q uatro Te mp o s, de Gil Vicente, espectáculo que aprofundou uma sólida linha de colaboração com o Teatro de La Abadía, tendo sido apresentado nos palcos mais prestigiados de Espanha e Portugal. Peça-chave do repertório de Nao d’amores, o Miste rio de l Cristo de lo s Gasco ne s foi apresentado em Segóvia, em 2007, em colaboração com a Junta de Cofradías de Semana Santa da cidade e o Teatro de La Abadía. Considerado o “Melhor e mais interessante espectáculo” desse ano pelo jornal El M und o , recebeu o Prémio ADE de Direcção 2008. Esteve presente em festivais de Espanha, Itália e Colômbia, e continua a inaugurar, anualmente, a Semana Santa de Segóvia. O A uto d e lo s Re ye s M ag o s foi, em 2008, a primeira experiência de co-produção com o Teatro de La Abadía, uma viagem às origens do teatro, através do mais antigo texto dramático escrito em castelhano. Recebeu o Pré mio a la M e jo r Dire cció n e n lo s Pre mio s Te atro d e Ro jas em 2010. Além de percorrer os circuitos habituais de Nao d ´amo re s em Espanha, foi representado no famoso Piccolo Teatro de Milão (Itália). Em 2010, estreou-se, em Lisboa, Dança d a M o rte / Dança d e la M ue rte , co-produção bilingue com o Teatro da Cornucópia, protagonizada por Luis Miguel Cintra, figura-chave do panorama teatral e cinematográfico português. Trata-se de um espectáculo estruturado a partir de textos dos séculos XV e XVI, em torno da temática das Danças M acab ras. Circulou pelos festivais de Almada, Almagro, Olmedo, Olite, Ribadavia e Gijón, tendo feito parte da programação da Compañía Nacional de Teatro Clásico na temporada de 2010/2011. Como equipa estável de trajectória reconhecida no domínio do teatro primitivo, os membros de Nao d’amores têm colaborado artisticamente com a Compañía Nacional de Teatro Clásico nos espectáculos V iaje de l Parnaso , de Miguel de Cervantes, sob a direcção de Eduardo Vasco (2005), e Trag ico mé d ia d e Do m Duard o s, de Gil Vicente, sob a direcção de Ana Zamora (2006). Em 2012, estreou-se a co-produção, com a Compañía Nacional de Teatro Clásico, de Farsas y Ég lo g as d e Lucas Fe rnánd e z, expoente do desenvolvimento técnico alcançado em 11 anos de investigação sobre a arte de representar o repertório mais antigo do teatro clássico castelhano. Nao d´amores conta com várias edições bibliográficas e discográficas e realiza habitualmente, na sua sede em Segóvia, cursos de formação, teóricos e práticos, sobre o teatro pré-barroco. A companhia colabora também, habitualmente, com grupos de investigação de diversas universidades espanholas e tem um protocolo de colaboração com a Real Academia de Historia y Arte de San Quirce.
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Ana Zamora
Diplomada em Direcção de Cena de Dramaturgia pela Real Escuela Superior de Arte Dramático, de Madrid (1996-2000), completou a formação com os directores Jacques Nichet, Massimo Castri e Stephan Schuske. Em 2001, fundou Nao d´amores, inaugurando uma nova via alternativa de representação: “navegando para o presente”. Como directora, encenou textos muito diversificados, entre os quais Lig azó n, de Valle-Inclán, em A v aricia, Lujuria y M ue rte , produzido pelo Centro Dramático Nacional (2009); Ho jas d e l Á rb o l Caíd as, a partir de textos de Espronceda, num trabalho de investigação para a ESAC (2008); e El A mo r al Uso , de Antonio de Solís, para a Compañía José Estruch (2002). Desempenhou as funções de director assistente dos dispositivos artísticos na Compañía Nacional de Teatro Clásico, sob a direcção de Eduardo Vasco (2005-2006), e no Teatro de La Abadía, sob a direcção de José Luis Gómez (2003-2004). No âmbito da gestão cultural, fez parte da equipa organizadora de Titirimundi – Festival Internacional de Teatro de Títeres de Segóvia (2000-1993) e do Festival Internacional Folk Segovia (2000-1990). Participou, como palestrante, em inúmeros encontros e conferências, orientou diversas oficinas de formação e publicou estudos em revistas especializadas nos âmbitos teatral e filológico. É académica correspondente da Real Academia de Historia y Arte de San Quirce. Ao longo da sua trajectória profissional, recebeu diversos prémios: Premio Fuente de Castalia 2012; Premio Nebrija a Escena 2011; Mejor Dirección Teatral en los Premios Teatro de Rojas 2010; Premio Ojo Crítico de Teatro 2008 (Radio Nacional de España); Premio ADE de Dirección 2008; Premio Clásicos 2007 de RTV Surco/TV La Mancha; Premio Segoviana Bien Vista – Categoría Cultura y Arte (2002); Premio José Luis Alonso, da Asociación de Directores de Escena de España (2001).
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Concerto III
SANTIAGO DO CACÉM
26 de Abril 21H30
VOZES QUE BROTAM DO CÉU: ENTRE O ROMÂNICO E O MANEIRISMO Três Hinos de São Godric [século XII] Sainte M arie V ie rg e ne Crist and Sainte M arie Sainte Nicho las, Go d e s d ruth
Anónimo [ca. 1340] Sancta M ate r/ Do u w ay Ro b in
Anónimo [fl. ca. 1300] Tho mas g e mma Cantuarie
Sheryngham [ca. 1500) A h, Ge ntle Je su!
Walter Frye [X 1475] A v e Re g ina
John Plummer [S ca. 1410 – X ca. 1483] To ta p ulchra e s
John Pyamour [X 1426] Q uam p ulchra e s
John Plummer A nna M ate r O p ulche rrima mulie rum
William Cornysh [X 1523] A v e M aria M ate r De i
Anónimo [século XIII] M und us v e rg e ns Pro curans o d ium
Pérotin [fl. ca. 1200] Be ata v isce ra
Anónimo [século XIII] De us mise rtus ho minis V e tus ab it litte ra
Anónimo [século XII] Stirp s le sse
Manuscrito de São Marcial de Limoges [século XII] Rad ix Ie sse
Pérotin [fl. ca. 1200] V id e runt o mne s
The Hilliard Ensemble Contratenor David James Tenor Rogers Covey-Crump Tenor Steven Harrold Barítono Gordon Jones < Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.
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SANTIAGO DO CACÉM
Igreja Matriz de Santiago Maior Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto de 16 de Junho de 1910 e pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a “Reconquista” ficava no interior do castelo, onde já existia uma mesquita, partilhando da posição altaneira da fortaleza, que impera, do alto de um monte – o Ce rro maio r do romance de Manuel da Fonseca –, sobre a planície costeira. Ao tomarem a terra, ao redor de 1217, os religiosos-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe o antropónimo árabe Q asim (da tribo dos Banu Q asim), elevado a topónimo. O antigo edifício viria a tornar-se pequeno quando a vila extravasou os limites da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV, sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça, neta do imperador Teodoro II Lascaris, parente e aia da rainha D. Isabel, a esposa de D. Dinis. Na posse de Santiago do Cacém e Panóias, mercê de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre senhora dotou as igrejas destes domínios com relíquias insignes – provavelmente oriundas do pecúlio familiar dos Lascaris, trazido de Niceia. À matriz de Santiago couberam, entre outros vestígios sagrados, vários fragmentos da Cruz de Cristo ou Lig num Crucis, a que se dá, localmente, o nome de Santo Le nho . Para o altar-mor do mesmo edifício, encomendou o retábulo de Santiag o co mb ate nd o o s M o uro s, obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um dos mestres da catedral de Lisboa. Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (nomeadamente em 1530, em 1704 e, sobretudo, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terramoto de 1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três naves separadas por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas São Gabriel (de um conjunto da Anunciação a Nossa Senhora). Escola portuguesa. Século XIV (inícios). Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.>
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perdurou um dos laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo dos capitéis e das impostas, alinha-se densa carga ornamental vegetalista e zoomórfica. Corresponde-lhe, no interior da igreja, a decoração que guarnece os capitéis e anima o perfil das arcadas em ogiva, com a introdução de figuras humanas, reflectindo a dominância naturalista da arte da época. O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por esguias frestas, define uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcossólio. Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em finais do reinado dionisíaco, quando se transfiguraram quase totalmente, sob o impulso de correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda metade da era ducentista, em que ainda preponderavam arcaísmos do período “experimental” do mesmo estilo. A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, constituída por um prior dotado de poderes quase-episcopais, o qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem, seis (oito no século XVII) beneficiados e um prioste, todos freires espatários, assumiu decisiva influência na vida da povoação. Sucedeu o mesmo com as importantes confrarias, irmandades e ordens terceiras agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversificado património artístico, boa parte do qual está patente ao público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi instalado, em 2002, na sala capitular e outras dependências do próprio monumento. Aqui se conserva, com o merecido destaque, o relicário do Santo Le nho . BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
BERNARDO FALCÃO, M e mo rias so b re a A ntig a M iro b rig a (Lisboa, Biblioteca dos Herdeiros do Prof. Doutor Eng.º Manuel António Falcão Beja da Costa, ms. s. n.º); ANTÓNIO DE MACEDO E SILVA, A nnae s d o M unicip io d e Sanct-Yag o d e Casse m d e sd e Re mo tas Eras até ao A nno d e 1 853, Beja, Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id . , A nnae s d o M unicip io d e Sant’ Iag o d e Cace m, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1869; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & JORGE M. RODRIGUES FERREIRA, “Marcas Lapidares da Igreja Matriz de Santiago do Cacém – I”, em A nais d a Re al So cie d ad e A rq ue o ló g ica Lusitana, 2.ª Série, I, Santiago do Cacém, 1987; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, O A lto -Re le v o d e Santiago combatendo os Mouros d a Ig re ja M atriz d e Santiag o d o Cacé m, Beja-Santiago do Cacém, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja-Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO (dir. de), No Caminho so b as Estre las. Santiag o e a Pe re g rinação a Co mp o ste la [Catálogo da Exposição, Santiago do Cacém, Igreja Matriz de Santiago Maior, 2007-2008], I-II, Santiago do Cacém-Beja, Câmara Municipal de Santiago do Cacém-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2012; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Re táb ulo s na Dio ce se d e Be ja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e SociaisDepartamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Itinerários da Música Europeia: Monodias e Polifonias do Medievo ao Despertar do Maneirismo
RUI CABRAL LOPES
Durante séculos, as práticas interpretativas baseadas na conjugação de partes vocais distintas coexistiram com o repertório monódico do cantochão, dando origem a manifestações criativas de grande variedade e beleza, adequadas aos ritos cultuais que se foram disseminando, um pouco por toda a Europa, no seio das igrejas e das catedrais medievais. São ecos longínquos que se perderam na noite dos tempos, mas que, nas vozes de agrupamentos especializados como The Hilliard Ensemble, podem, de facto, ser revividos, à luz de uma leitura atenta e imaginativa dos testemunhos documentais mais antigos dessas mesmas práticas. Embora os primeiros exemplos de polifonia passados a escrito remontem aos tratados “Enchiriadis”, de finais do século IX, só com o advento da era gótica se generalizaram os géneros típicos da polifonia inicial, entre eles o o rg anum melismático, o co nductus e o discante. A participação destes géneros polifónicos no Rito Romano moderno é uma constante ao longo do período medieval, acontecendo que, por vezes, secções mais ou menos extensas do cantochão oficial eram substituídas pelas suas homólogas polifónicas, como forma de embelezamento e diversificação da componente musical da Liturgia. O presente programa contempla uma selecção de monodias e polifonias muito antigas, provindas de dois quadrantes geográficos essenciais para a definição dos rumos políticos, culturais e religiosos da era gótica: o território franco, centro nevrálgico de uma das mais importantes reformas medievais do Co rp us Iuris romano e da liturgia, levada a efeito por vontade do imperador Carlos Magno [S 768 – X 814], e as não menos influentes Ilhas Britânicas, detentoras de uma tradição cultural identitária, com raízes ancestrais. Apesar de, em grande medida, ter sido dominada pela influência dos vectores sociais e culturais que emanavam do continente europeu a partir da conquista normanda de 1066, a Inglaterra preservou um conjunto de tradições literárias e musicais que
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acabariam, também elas, por desempenhar um papel de fundo na afirmação dos ideais renascentistas, a partir dos inícios do século XV. No campo da música, expedientes como o g yme l, o discante inglês e o f aburde n viriam a ser reconhecidos como sinónimos de um estilo característico, a afamada “contenance angloise” que o poeta Martin le Franc [S ca. 1410 – X 1461] opôs às rugosidades isorrítmicas dos seus compatriotas da A rs No v a, Philippe de Vitry [S 1291 – X 1361] e Guillaume de Machaut [S ca. 1300 – X 1377]. Do período da A rs A ntiq ua (ca. 1250 – ca. 1320), provém o motete votivo de autor anónimo, Tho mas Ge mma Cantuariae / Tho mas Cæsus in Do v e ria, um exemplo lídimo do estilo inglês, descoberto, por acaso, no seio de um manuscrito dos inícios do século XIV, adquirido pela Biblioteca da Universidade de Princeton, em torno de 1950. As duas vozes superiores possuem textos distintos, dedicados a mártires homónimos do santoral romano. Desta forma, o mo te tus enaltece São Tomás de la Hale, monge do priorado beneditino de Dover, martirizado em 1295 por um grupo de cavaleiros franceses, enquanto o trip lum se refere a São Tomás Becket de Cantuária [S 1118 – X 1170], assassinado na catedral desta cidade, a mando do rei Henrique II de Inglaterra. As duas vozes mantêm-se dentro do mesmo registo e invocam paralelos entre os dois mártires, partilhando ou parafraseando secções de texto. A estas, somam-se ainda duas outras vozes, tenor e segundo tenor, desprovidas de texto. Do ponto de vista musical, a principal particularidade da composição reside na chamada técnica do ro nd e llus, ou seja, a troca de segmentos melódicos entre as vozes participantes, sobrepondo-se uns aos outros de forma permanente. A interacção assim gerada firma a continuidade e a variedade do discurso musical, enriquecido, ademais, pelo típico ho q ue tus medieval, isto é, a alternância, em sucessão rápida, de sons e silêncios produzidos por vozes diferentes, como que a sugerir uma espécie de “soluço”. Já as vozes mais graves, tenor e segundo tenor, desempenham uma função importante de apoio rítmico e harmónico, mas não deixam, elas próprias, de incorrer no cruzamento de motivos melódicos, característico do ro nd e llus. Outro exemplo muito interessante de motete, Sancta M ate r/ Do u W ay Ro b in, pode ser datado de ca. 1340 e partilha da mesma concepção politextual da obra anterior. Neste caso, deparamos com duas vozes, tenor e duplum, a segunda das quais veiculando um texto latino de culto à Virgem Maria, ao mesmo tempo que o tenor desenha uma melodia popular, em inglês arcaico, que se vai repetindo sempre da mesma maneira, em jeito de o stinato . Trata-se, no fundo, de um equivalente do padrão isorrítmico característico dos motetes franceses, mas provido de uma secção melódica (co lo r) não apoiada no cantochão litúrgico, como era norma.
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As mais antigas peças em língua inglesa que subsistiram com notação musical são três breves hinos de São Goderico de Finchale [S ca. 1065 – X 1170], transmitidos, em notação quadrada, pelo seu biógrafo, o monge Reginaldo de Durham [X ca. 1190]. Nascido na cidade de Norfolk, Goderico dedicou os primeiros anos da juventude a actividades ligadas ao comércio marítimo, antes de enveredar pela vida religiosa, como eremita. Reginaldo de Durham deu a conhecer a génese destas peças diáfanas e contemplativas, relacionada com uma sequência de aparições celestes, por parte da Virgem Maria, da alma da sua falecida irmã, Burgwen, e de São Nicolau de Mira [S 270 – X 343], patrono dos marinheiros. Partindo das suas raízes medievais, o motete continuou a fazer as delícias dos compositores renascentistas, vindo a assumir proeminência entre os géneros de música sacra. Do compositor Walter Frye [X ca. 1475], escutaremos o motete a três vozes A v e Re g ina Cælo rum, herdeiro das já mencionadas sonoridades “contidas” da música inglesa, ou o mesmo é dizer dos encadeamentos triádicos frequentes, com amplo uso de terceiras e sextas paralelas, a que se junta uma estrutura mensural de grande equilíbrio. A h! Ge ntle Je su, de Sheryngham [f l. ca. 1500], é outro exemplo magnífico do estilo inglês, vertido a quatro vozes sob a forma de caro l, canção devocional ou natalícia dotada de refrão (b urd e n). O seu autor aparece nomeado no manuscrito Fayrf ax da British Library, uma fonte musical do início da dinastia dos Tudor. Do compositor John Pyamour [X ca. 1426], apenas se conhece a antífona mariana a três vozes Q uam Pulchra Es, baseada num texto do Cântico d o s Cântico s. Pyamour foi membro da Capela Real de Henrique V entre 1416 e 1420, tendo acompanhado as importantes campanhas militares contra a França ocorridas naquele período. Sucessor de John Pyamour na Capela Real inglesa, já no reinado de Henrique VI, John Plummer [S ca. 1410 – X ca. 1484] foi o primeiro músico nomeado para o cargo de M aste r o f Child re n, em 1444. Dele se conhecem apenas quatro motetes, três dos quais integram este programa: To ta Pulchra Es, a três vozes; A nna M ate r M atris Christi, a quatro vozes; e O Pulche rrima M ulie rium, a três vozes. As texturas de Plummer testemunham a suav itas do estilo inglês, mas apontam, ao mesmo tempo, para uma estética polifónica mais sofisticada, por via, sobretudo, da imitação e do contraponto invertível. De um período bastante posterior, provém o motete a quatro vozes, A v e M aria M ate r De i, de William Cornysh [X 1523]. Vulto de grande erudição e versatilidade, Cornysh desempenhou as mesmas funções de John Plummer na Capela Real de Henrique VIII, de 1509 à sua morte. Foi ainda reconhecido, no seu tempo, como poeta, dramaturgo e
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actor. Da música de Cornysh, desprendem-se, subtilmente, os gestos de inquietação maneirista associados às profundas alterações sociais e de mentalidades que sobrevieram com o ideário protestante, na sua vertente anglicana. Abandonando o eixo geográfico trilhado até aqui, o programa prossegue com um grupo de obras ilustrativas dos géneros musicais cultivados na catedral de Notre-Dame, de Paris, centro religioso e cultural de primeira importância, a partir de finais do século XII. Por um lado, ouviremos vários exemplos de c o nd uct i polifónicos de autores anónimos: M und us V e rg e ns, a quatro vozes; Pro curans O d ium, a três vozes; De us M ise rtus Ho minis, a quatro vozes; e V e tus ab it litte ra, a quatro vozes. O co nd uctus era uma composição processional ou paralitúrgica, com temáticas diversas inspiradas nas Escrituras, que detinha a particularidade de poder ser elaborada sobre melodias de composição nova, não pertencentes ao repertório fixo de cantochão. Outras obras de autores anónimos são a sequência Stirp s le sse e o tropo Rad ix le sse , este último da escola de São Martial de Limoges. Do grande expoente associado à catedral de Notre Dame, Pérotin [f l. ca. 1200], acresce ainda o co nductus – muito famoso – Be ata V isce ra, dedicado ao culto mariano, sendo, por isso, cantado na Festa da Natividade da Virgem Santa Maria, celebrada a 8 de Setembro. Igualmente atribuídos a Pérotin, os o rg ana A lle luia Nativ itas e V id e runt O mne s assinalam um ponto alto do legado polifónico de Notre-Dame. Nestes exemplos, são reproduzidas no tenor, como base de composição, melodias litúrgicas provindas do repertório de cantochão, às quais se adicionaram vozes suplementares mais agudas, como se de uma construção em vários pisos se tratasse. No primeiro caso, estamos perante uma estrutura de o rg anum trip lum, com tenor, dup lum e trip lum, enquanto, no o rg anum V id e runt O mne s, o compositor acrescentou uma voz às três anteriores, o quadrup lum. Em ambas as composições, Pérotin empregou diversos padrões rítmicos modais, baseados nos antigos pés métricos gregos, sobre a melodia litúrgica preexistente, distribuída em valores muito largos no tenor de sustentação. Ante tais monumentos do mais requintado artifício técnico e expressivo, somos convidados a fechar os olhos e a recuar ao tempo em que as vozes ecoavam nos recantos da ampla arquitectura catedralícia, fundindo-se com o brilho dos vitrais, num apelo irresistível à oração e aos sentidos.
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Sainte Marie viergene
Virgem Santa Maria
Sainte Marie viergene, moder Jesu Criste’s
Virgem Santa Maria, mãe de Jesus de Nazaré,
Nazarene,
Acolhe, protege, ampara o teu Godric;
Onfoo, schild, help thin Godrich;
Depois de o acolheres, leva-o solenemente ao
Onfange, bring heyliche with thee in Godes riche.
Reino de Deus.
Sainte Marie, Cristes bur, maidene clene,
Santa Maria, tabernáculo de Cristo, virgem pura,
moderes flur,
modelo das mães,
Dilie min sinne, ri in min mood;
Apaga o meu pecado, orienta o meu espirito,
Bring me to winne with the selfe God
Leva-me à plenitude da felicidade com Deus verdadeiro.
Crist and Sainte Marie
Cristo e Santa Maria
Kyrie eleison
Senhor, tende piedade,
Christe eleison
Cristo, tende piedade,
Crist and Sainte Marie swa on scamel me iledde,
Cristo e Santa Maria assim me trouxeram até ao
That on this erthene silde with mine bare footen
altar,
itredde.
Para que não pisasse esta terra com os meus pés nus.
Kyrie eleison Christe eleison
Senhor, tende piedade,
Kyrie eleison
Cristo, tende piedade.
Christe eleison
Senhor, tende piedade, Cristo, tende piedade.
Crist and Sainte Marie… Cristo e Santa Maria… Sainte Nicholas
São Nicolau
Sainte Nicholas, Godes druth,
São Nicolau, favorito de Deus,
Tymbre us faiere scoone hus.
Prepara para nós amorosamente belas moradas,
At thi burthe, at thi bare,
Graças ao teu nascimento, à tua existência,
Sainte Nicholas, bring us wel thare.
São Nicolau, leva-nos até lá em segurança. Tradução: Maria das Dores Galante de Carvalho
Sancta Mater/Dou way Robin1 Sancta mater gratiae, stella claritatis
Santa Mãe da Graça, estrela de claridade,
1 No ta d o trad uto r: Esta composição é dirigida a Maria, Mãe da Graça. Pode ver-se no final que o contexto é o da Adoração dos Pastores; o nome aparece nos Livros de Horas como Gobin (e não Robin): é um dos pastores dos Mistérios medievais, na Provença, caracterizado como “gay – alegre”, e toca flageolé (flauta) ou sanfona; é acompanhado por Roger, “belo rapaz” (que se limita a ajoelhar), ambos contrastando com as pastoras, Alison/Eylison e Mahaut. Justifica-se, assim, que a expressão vernácula, “Dou way”, no texto, seja entendida como advertência: “toma cuidado” ou “fica de fora / não entres”; aceitamos a proposta mais corrente e, por isso, vertemos por “pára”. No epíteto a Maria, entenda-se por “flor real” a açucena ou cecém, com as conotações que lhe são conhecidas e que são comentadas pelos pregadores, sobretudo a capacidade de se manter sem murchar, mesmo que arrancada do terreno de base.
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visita nos hodie plena pietatis.
Visita-nos neste dia, em toda a piedade.
Veni, vena veniae mox incarceratis,
Vem, canal de perdão para os degredados,
solamen angustiae, fons suavitatis.
sem demora, solaz de dor, fonte de suavidade.
Recordare, mater Christi, quam amare tu flevisti;
Recorda, Mãe de Cristo, quanta amargura choraste:
Juxta crucem tu stetisti, suspirando viso tristi
junto à cruz, de pé, olhar triste, suspirando tu
O, Maria, flos regalis, inter omnes nulla talis;
ficaste,
Tuo nato specialis nostrae carnis parce malis
Ó Maria, flor real, entre todas sem igual,
O, quam corde supplici locuta fuisti,
Por Teu Filho perdoa nossos males, tu especial,
Gabrielis nuncii cum verba cepisti.
da nossa carne: oh!, como de coração em prece
‘En ancilla Domini’, propere dixisti;
falaste,
verbum vivi gaudii post hoc perperisti.
quando do anjo Gabriel as palavras recebeste,
Gaude, digna, tam benigna caeli solio;
sem demora, “eis a serva do Senhor”, disseste;
tuos natos, morbo stratos, redde filio.
Verbo da vívida alegria a seu tempo à luz deste.
Dou way, Robyn, the child wile weepe;
Exulta, tão digna tão benigna, no trono do céu:
dou way Robyn.
os de ti nados, por doença prostrados, dá ao Filho Teu. Pára, Gobin, o Menino vai chorar; Pára, Gobin.
Thomas gemma Cantuarie2
Tomás, jóia de Cantuária
Trip lum
Tomás, jóia e primícias de Cantuária,
Thomas gemma Cantuarie primula
por guardares a fé assassinado na igreja,
fide pro tuenda cesus in ecclesia,
por pronta caridade de causar divina admiração,
a divine repentina mire caritate
fosse manhã fosse tarde fulgente da luz incriada,
fulgens matutina vespertina lucis increate
por nova graça a ti, luz largamente recobrada,
gratia late tibi nova reparate
estás sublimado na corte do rei; por tua
sublimaris curia regis pro fidelitate
fidelidade,
tua a ruina leti bina per te liberate
da dupla ruína, em alegria, são por ti libertadas
sunt a fece et ab amaro malo frivolo
do lodo e do mal amargo inconsistente,
a sentina serpentine gentes expiate
da fossa, as gentes astuciosas purificadas
et a viciis singulari nuncuparis gratia ditatus
e dos vícios, por graça singular dizem seres
super hinc perfectos et electos tu es sublimatus
beneficiado;
2 No ta d o trad uto r: São Tomás de Cantuária (também conhecido como Thomas Becket ou Tomás de Londres) [S ca. 1118 – X 29 de Dezembro de 1170] foi chanceler do reino e, depois, arcebispo de Cantuária entre 1162 e 1170; por se opor às pretensões do rei Henrique II de Inglaterra, foi assassinado na própria catedral por gente do rei, zelosa em eliminar os adversários deste; a sua morte causou muita emoção na Cristandade do tempo e foi canonizado, três anos depois, pelo papa Alexandre III, tendo-se espalhado, logo a seguir, uma colectânea de milagres de que o mosteiro de Lorvão guardou uma cópia primitiva, ao mesmo tempo que recebeu do cardeal Jacinto, de passagem por Portugal por aqueles anos, uma carta do próprio arcebispo. A composição musical é um moteto cujo tema tem por tema a figura do santo: na sua versão, é expressão de culto; pertence a uma compilação do século XIV (do pouco que subsiste do antigo Fundo da catedral de Cantuária, após a Reforma): Cambridge, Gonville & Caius College, Ms 512. O texto é formalmente perfeito dentro das convenções medievais; poeticamente, sugere e não descreve; o leitor deve estar informado da “história” hagiográfica que os termos deixam adivinhar: a tradução procura salvaguardar, tanto quanto possível, a correspondência com o original (não sendo possível, no entanto, manter todas as rimas, por exemplo, quando interiores).
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rivulo madido pie sanans egros
acima de perfeitos e eleitos daqui tu estás
preciosis generosis gemmis tumulatus
exaltado:
aureis modulo tumulo
em regato manso piedosamente os enfermos
cum decore vel honore pie laureatus.
sarando
in celis inter cives celicos digne veneratus
entre preciosas e abundantes gemas sendo
Thoma nunc pro populo stimulo
sepultado
tempestatis caritate fervida rogatus.
em túmulo com ouros modulado, com dignidade e honra piedosamente laureado. Nos céus entre os cidadãos celestes dignamente venerado, Tomás agora em favor do povo por estímulo da hora do dia, em férvido amor, és rogado.
Dup lum
Tomás caído em Dover, ferido por adversário,
Thomas cesus in Doveria emulo lesus
divinamente por pronta caridade admiravelmente
a divine repentina mire caritate
fulgente, manhã ou tarde, por graça de luz
fulgens matutina vespertina lucis increate
incriada;
gratia rivulo patulo
em rio alargado
sublimaris curia manens in eternitate
és exaltado na corte agora posto na eternidade
patris a ruina repentina per te liberate
do Pai: da súbita ruína por ti estão em liberdade;
sunt sane tu doctrine medicine serve sanitate
sim, tu, servidor dos saberes da medicina
tremulo subdolo
pela cura,
purga a sentina serpentina gentes expiate
ao trémulo que se escapa
dirige singularis nuncuparis gratia ditatus
limpa da sentina serpentina;
super Remo atque Romulo tremulo
as gentes resgatadas
tu per sanctos et electos pie sublimatus
dirige: singular tu és chamado, pela graça
merito peris in ecclesia decora tumulatus
beneficiado,
stimulo primulo
mais que Remo e Rómulo tremebundo,
de Sancto in honore et decore pie laureatus
tu por santos e eleitos piedosamente exaltado,
gaudiis inter cives celicos summe veneratus
em mérito morres, em igreja magnífica
querulo celo sine fine manens tam beatus.
sepultado: por primícia tomado de Santo em honra e magnificência piedosamente exaltado, pelas alegrias entre os cidadãos celestes venerado, tanta bem-aventurança tenhas para sempre no céu suspirado. Tradução: Aires A. Nascimento
Ah, Gentle Jesu!
Oh, gentil Jesus!
‘Ah, gentle Jesu!’
“Oh, gentil Jesus!”
Who is that, that doth me call?
Quem é aquele que por Mim clama?
‘I, a sinner, that oft doth fall.’
Eu, um pecador, sempre a cair.
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What would’st thou have?
O que é que pretendes?
‘Mercy, Lord, of thee I crave.’
“Piedade, oh Senhor, por Ti anseio.”
Why, lov’st thou me?
Porque é que Me amas?
‘Yea, my Maker I call thee.’
“Sim, chamo-Te o meu Criador.”
Then leave thy sin, or I nill thee,
Então renuncia ao teu pecado, ou aniquilar-te-ei,
And think on this lesson that now I teach thee.
E medita nesta lição que te vou dar.
‘Ah, I will, I will, gentle Jesu.’
“Oh, assim farei, assim farei, gentil Jesus.”
Upon the cross nailed I was for thee,
Por amor a ti fui pregado na cruz,
Suffered death to pay thy ransom;
A corações arrependidos concedo o perdão;
Forsake thy sin, man, for the love of me
Não desesperes, porque não sou vingativo;
Be repentant, make plain contrition;
Ao ganhares inimigos, pensa na Minha paixão;
To contrite hearts I do remission;
Porque estás ansioso, se sou misericordioso?
Be not despaired, for I am not vengeable;
“Oh, gentil Jesus!”
Gain’ ghostly en’mies think on my passion; Why are thou forward, sith I am mericable? ‘Ah, gentle Jesu!’
Usei de misericórdia para com Pedro e Madalena; E para contigo pelo teu arrependimento;
I had on Peter and on Mawdlen pity;
São Tomé das Índias, sem piedade
Forthi contrite of thy contrition;
Enfiou as mãos no Meu peito.
Saint Thomas of Indes in crudelity
Esquece este assunto; enterra-o no teu espírito!
He put his hands deep in my side a-down.
Se Eu sou tão generoso, porque és tu tão inseguro?
Roll up this matter; grave it in thy reason!
O Meu sangue é o melhor remédio para o teu
Sith that I am kind, why art thou unstable?
pecado;
My blood best treacle for thy transgression;
Não estejas ansioso, porque sou misericordioso!
Be thou not forward, sith I am merciable!
“Oh, gentil Jesus!”
‘Ah, gentle Jesu!’ Senhor, a todos os pecadores, aqui prostrados de Lord, on all sinful, here kneeling on knee,
joelhos,
The death remembering of humble affection,
Recordando a Vossa morte por puro amor,
O Jesu grant of thy benignity
Ó Jesus, concede, pela Tua misericórdia,
That thy five wells plenteous offusion,
Que as Tuas cinco chagas semelhantes
Called thy five wounds by computation,
A cinco fontes de abundante manancial,
May wash us all from surfeits reprovable.
Possam limpar-nos de actos pecaminosos.
Now for thy mother’s meek mediation,
Pela doce intercessão da Tua Mãe,
At her request be to us merciable.
E acedendo ao Teu pedido, tem piedade de nós.
‘Ah, gentle Jesu!’
“Oh, gentil Jesus!” Tradução: Maria das Dores Galante de Carvalho
Ave Regina
Ave Rainha dos Céus
Ave Regina cælorum, Mater Regis angelorum:
Ave Rainha dos Céus, Mãe do Rei dos anjos:
O Maria, flos virginum velut rosa velut lilium.
Ó Maria, flor das virgens, como a rosa como o lírio.
Funde preces ad Filium pro salute fidelium.
Derrama preces junto de teu Filho pela salvação dos fiéis.
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Tota pulchra es
Toda formosa és
Tota pulchra es amica mea,
Toda formosa és, amiga minha,
et macula non in te,
e mancha não há em ti,
favus distillans labia tua,
favo a escorrer os teus lábios,
mel et lac sub lingua tua.
mel e leite sob a tua língua;
odor unguentorum tuorum
suavidade dos teus unguentos
super omnia aromata.
acima de todos os aromas.
Iam enim hiems transiit,
Eia, já passou a invernia
et imber abiit et recésit;
e a chuva passou e retrocedeu:
Flores apparuerunt, vinee florentes
as flores apareceram, as vinhas em flor
odorem dederunt,
se tornaram rescendentes
et vox turturis
e a voz da rola
audita est in terra nostra.
se fez ouvir na nossa terra.
Surge, propera, amica mea;
Levanta-te, caminha, amiga minha;
veni de Libano,
vem do Líbano,
veni, coronaberis.
vem, uma coroa te espera.
Quam pulchra es
Como és formosa
Quam pulcra es et quam decora, carissima in
Como és formosa e como és bela,
deliciis.
muito querida em tudo quanto nos deleita.
Statura tua assimilata est palme, et ubera tua
Pela altura assemelhas-te à palmeira,
botris,
E os teus seios aos rebentos,
caput tuum ut carmelus, collum tuum sicut
A tua cabeça como o Monte Carmelo, o teu colo
turris eburnea.
como torre de marfim.
Veni dilecte mi; egrediamur in agrum et
– Vem, meu amado; saiamos para o campo e
videamus si flores fructus parturierunt,
vejamos se as flores já produziram fruto,
si floruerunt mala punica. Ibi dabo tibi ubera mea.
se floriram as romãs: aí te darei os meus peitos.
Alleluia.
Aleluia.
Anna mater
Ana, mãe
Anna mater matris Christi,
Ana, mãe da mãe de Cristo,
nos pie considera,
olha para nós com piedade,
que Marie meruisti
tu que mereceste a Maria
propinare ubera.
dar o teu seio.
O quam digne veneraris
Oh! Como és digna de ser venerada
ab humano germine,
Pela humana descendência,
que Mariam mundo paris
tu, que Maria ao mundo destes,
magno Dei munere.
por grande benemerência de Deus:
Nam tu confers spem medele
pois tu geras esperança de remédio
sacro puerperio;
pela sagrada maternidade,
esto memor clientele
lembra-te destes devotos
huius in exilio.
teus, longe da sua morada.
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Anna felix ascendisti
Ana, feliz subiste
supra cuncta sidera;
Acima de todos os astros;
tu in hora mortis tristi
Tu, na hora triste da morte
nos ab hoste libera.
livra-nos do inimigo.
Sic matrona singularis
Assim, senhor sigular,
digneris succurrere,
te dignes socorrer
extans mater salutaris,
tu que és mãe da salvação,
fac nos Christo vivere.
faz-nos viver com Cristo.
Amen. Amen.
Ámen. Ámen.
O pulcherrima mulierum
Ó mais bela das mulheres
O pulcherrima mulierum, vulnerasti cor meum,
Ó mais bela das mulheres, atingiste o meu coração,
soror mea, amica mea. Descende in hortum meum.
minha irmã, minha amiga. Desce até ao meu horto.
Veni, dilecta mea. Tota pulchra es, amica mea.
Vem, minha dilecta. Toda bela és tu, amiga
Veni et coronaberis.
minha. Vem e serás coroada.
Ave Maria, mater Dei
Ave, Maria, mãe de Deus
Ave Maria, mater Dei,
Ave, Maria, mãe de Deus,
regina caeli,
rainha do céu,
domina mundi,
senhora do mundo,
imperatrix inferni,
que mandas no inferno.
miserere mei
Tem piedade de mim
et totius populi Christiani;
e de todo o povo cristão;
et ne permitas nos
e não permitas que nós
mortaliter peccare;
pequemos mortalmente,
sed tuam sanctissimam voluntatem
mas a tua santíssima vontade
adimplere. Amen.
cumpramos. Ámen.
Mundus vergens
O mundo que caminha
Mundus vergens in defectum
O mundo que caminha para a ruína
casum probans per effectum,
que comprova a queda pelas consequências,
se fallacem exuit.
expõe-se a ser falhado.
Nam remota fraudis arte
Na verdade, deixando de parte da fraude a arte,
nos delere vi vel arte
perder-nos por força ou arte
quod iam patet astruit.
habilita-se a fazer o que está à vista.
Et dum hiis se applicat,
E enquanto a isso se aplica
quod explicit explicat.
o que termina endromina.
Mundus florens diu pace,
Mundo a florir, longo tempo em paz,
iam accensus belli face,
já aceso pelo facho bélico
Gallia præmoritur.
na Gália está a morrer.
Et iam navis mari data
E já o navio atirado ao mar
portu carens desperata
sem porto e desesperado
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procelis concitatur
é batido pelas procelas
et fractatur turbine,
e despedaçado fica pelo furacão,
non eget regimine.
não necessita de leme, não.
Procurans odium
Procurando ódio
Procurans odium
Procurando ódio,
effectu proprio
por efeito próprio,
vix detrahentium
dos que mal depreciam
gaudet intentio;
alegra-se a intenção;
nexus est cordium
prisão é dos corações
ipsa detractio:
a própria depreciação:
sic per contrarium
assim, pelo seu contrário
ab hoste nescio,
de inimigo néscio
fit hic provisio
se faz aqui provisão
in hoc amantium
daqueles que nisto se comprazem
felix conditio.
é feliz condição.
Insultus talium
Afronta que eles façam
prodesse sentio,
ser proveito pressinto,
tollendi tedium
de retirar enfado
fluxit occasio.
brotou ocasião.
Suspendunt gaudium
Suspendem a alegria
pravo consilio,
por néscio conselho.
sed desiderium
Mas o desejo
auget dilatio;
aumenta a dilação;
tali remedio
com tal remédio
de spinis hostium
de espinhos de inimigos
uvas vendemio.
uvas vindimo.
Beata viscera
Felizes as entranhas
Beata viscera
Felizes as entranhas
Marie virginis
de Maria Virgem
cuius ad ubera
a cujos seios
rex magni nominis;
o Rei de nome grandioso
veste sub altera
sob veste alheia
vim celans numinis
escondendo a força da divindade
dictavit federa
deu origem à aliança
Dei et hominis.
de Deus e do Homem.
O mira novitas
Oh! Maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e nova alegria
matris integritas
a integridade da Mãe
post puerperium.
depois de dar à luz.
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Populus gentium
Um povo de gentes
sedens in tenebris
que andava nas trevas
surgit ad gaudium
surgiu para a alegria
partus tam celebris:
de parto tão celebrado:
Iudea tedium
a Judeia ressentimento
fovet in latebris,
nutre na sombra,
cor gerens conscium
coração em manifesta consciência
delicet funebris.
entrega-se ao crime.
O mira novitas
Ó maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e alegria nova:
matris integritas
a integridade da mãe
post puerperium.
depois de ter dado à luz.
Fermenti pessimi
Do mais estragado fermento
qui fecam hauserant,
aqueles que haviam retirado os restos
ad panis azimi
para as promessas
promisa properant:
do pão ázimo se apressam:
sunt Deo proximi
ficam próximos a Deus
qui longe steterant,
aqueles que viviam longe
et hi novissimi
e são os últimos
qui primi fuerant.
aqueles que os primeiros haviam sido.
O mira novitas
Ó maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e alegria nova
matris integrita
a integridade da mãe
post puerperium.
depois de ter dado à luz.
Partum quem destruis,
Parto que destróis
Iudea misera!
Judeia miserável!
De quo nos argues,
Com ele nos invectivas,
quem docet littera;
por ele fica na letra;
si nova respuis,
se rejeitas a novidade,
crede vel vetera,
acredita ao menos o que vem de antigo
in hoc quem astruis
naquele que tu acusas
Christum considera.
descobre a Cristo.
O mira novitas
Ó maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e nova alegria:
matris integritas
a integridade da mãe
post puerperium.
depois de ter dado à luz.
Te semper implicas
Sempre te embrulhas
errore patrio;
no erro de teus pais;
dum viam indicas
já que indicas o caminho
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errans in invio:
vagueando pela perdição:
in his que predicas,
no que pregas
sternis in medio
deixas ficar no meio
bases propheticas
os fundamentos dos profetas
sub evangelio.
debaixo do Evangelho.
O mira novitas
Ó maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e nova alegria:
matris integritas
a integridade da mãe
post puerperium.
depois de ter dado à luz.
Legis mosayce
Da Lei moisaica
clausa misteria;
encerrados mistérios;
nux virge mystice
amêndoa da vara mística
nature nescia;
desconhecida para a natureza;
aqua de silice,
água da pedra
columpna previa,
coluna que vai à frente,
prolis dominice
dos filhos do Senhor
signa sunt propera.
estão disponíveis os sinais.
O mira novitas
Ó maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e nova alegria:
matris integrita
a integridade da mãe
post puerperium.
depois de ter dado à luz.
Solem, quem libere,
Ao sol, a quem livremente,
Dum purus oritur
quando ele, puro, se levanta,
In aura cernere
ver na sua limpidez
visus non patitur,
o olhar não suporta,
cernat a latere
veja-o indirectamente,
dum repercutitur,
quando é reflectido,
alvus puerpere,
o regaço da que deu à luz:
qua totus clauditur.
n’Ela todo Ele se encerra.
O mira novitas
Ó maravilhosa novidade
et novum gaudium,
e nova alegria:
matris integrita
a integridade da mãe
post puerperium.
depois de ter dado à luz.
Deus misertus hominis
Deus, compadecido do homem
Deus misertus hominis,
Deus, compadecido do homem,
lavit reatum criminis
lavou a culpa do pecado
Eve per partum virginis;
de Eva pelo parto da Virgem:
O quam dulce remedium,
Oh! Que doce remédio
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ut vitium
para o pecado
purgetur per contrarium;
purgar pelo seu contrário;
fit electis compendium,
torna-se breve a exposição
ne tedium
para que o cansaço não atinja
fiat currenti per studium,
aquele que se dedique ao estudo
si differatur bravium.
se o prémio demora.
Virgo concepit filium,
A Virgem concebe um filho
cui ferunt testimonium
de quem dão testemunho
Pater et evangelium,
o Pai e o Evangelho;
quos serpens nequam inficit,
aqueles a quem a iníqua serpente infecta
hic reficit,
aqui os refaz,
qui sanctus sanctos perficit;
Aquele que é santo santos os consuma;
sine fide non proficit,
sem fé não aproveita,
sed deficit,
mas tudo se desajeita,
quia, qui fidem abicit,
porque quem da fé abjura
non hunc fidelem efficit.
homem de fé ser não cura.
Non Elisei baculo
Não é pelo bastão de Eliseu
nec Giezi signaculo
nem pelo sinalzinho de Giezi
immo crucis umbraculo
nem tão-pouco pela sombra da cruz
infanti vita redditur.
que à criança a vida se restitui.
Hic creditur,
N’Este se crê:
a Patre natus mittitur,
pelo Pai é enviado quando nasce,
qui dum in cruce leditur
é Ele que na cruz é atormentado
et moritur,
e morre,
eclipsim luna patitur,
eclipse a lua sofre,
nam sol sub nube tegitur.
pois o sol debaixo de uma nuvem se esconde.
Vetus abit littera
Antiga se vai a Letra
Vetus abit littera,
Antiga se vai a Letra,
ritus abit veterum,
rito se vai dos Antigos,
dat virgo puerpera
quem dá à luz é a Virgem
novum nobis puerum,
novo é para nós o Menino,
munus salutiferum,
dom salutífero,
regem et presbyterum,
rei e sacerdote,
qui complanans aspera
ele aplana o que está enrugado,
firmat pacis federa,
firma alianças de paz,
purgator et scelerum.
também purificador de pecados.
Felicis puerpere
Da feliz parturiente
felix puerperium
feliz puerpério:
Babilonis misere
da mísera Babilónia
revocat exilium
traz de volta o exilado;
iam plebs ceca gentium,
já o povo cego dos pagãos,
videns lucis radium,
ainda que veja o raio de luz,
fracto mortis carcere,
quebrado que seja o cárcere da morte,
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non adheret littere
não adere à letra,
propter evangelium.
por causa do Evangelho.
Funis pene rumpitur
A corda quase se rompe
nato rege glorie,
ao nascer o Rei da Glória:
mortis torrens bibitur
bebe-se a torrente da morte;
data lege gratie,
ao ser dada a lei da Graça
dies est letitie,
é dia de alegria
lux iugis psallentie,
a luz do canto é sem fim:
munus festi solvitur,
o dom de festa vai-se.
gaudeamus igitur
Alegremo-nos, por isso:
culpa data venie.
a culpa recebeu perdão.
Stirps Iesse
Rebento de Jessé
Stirps Iesse de gremio,
Rebento do seio de Jessé
foret in aurora
brotará na aurora:
oritur ex thalamo,
nasce do tálamo
stella radiosa.
uma estrela radiosa.
Sol fulget in solio,
O sol refulge nas alturas,
fugans tenebrosa
pondo em fuga as trevas
et ex Christo filio,
e de Cristo Seu filho
sic miraculosa.
assim a miraculosa.
Mater regis exaltata
A Mãe do rei é exaltada
super omnia,
acima de tudo
et semper illuminata
e sempre iluminada
supra sydera.
acima das estrelas.
Amene nobis nosina,
Retira de nós a maldade
in hac patria
nesta terra
ne valeat perturbare
não tenha força para perturbar
nostra viscera.
os nossos corações.
Oves virgo decorata
Alegra-te, o Virgem toda bela,
lux in patria,
luz na pátria,
nobis testis vite data
para nós testemunha de vida,
luminaria.
feita lucernária. Estai para nós sempre preparada
Esto nobis preparata
entre os exércitos,
inter agmina,
para que, mesmo longe de nós, associada
ut ex nobis sociata
estejais na glória. Ámen.
sis in gloria. Amen. Viderunt omnes
Todos verão
Viderunt omnes fines terrae salutare Dei nostri.
Todos os confins da Terra verão a salvação do
Jubilate Deo omnis terra:
nosso Deus.
Notum fecit Dominus salutare suum:
Rejubilai para Deus, toda a Terra:
ante conspectum gentium revelavit justitiam
conhecida fez o Senhor a sua salvação:
suam,
Perante o olhar dos povos revelou a Sua justiça.
Alleluia.
Aleluia. Tradução: Aires A. Nascimento
104 SANTIAGO DO CACÉM . IGREJA DE SANTIAGO MAIOR
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The Hilliard Ensemble
Com uma reputação sem igual, tanto no campo da música antiga como no da contemporânea, The Hilliard Ensemble constitui um dos melhores grupos de câmara vocal. O seu estilo característico e a sua desenvolvida musicalidade aproximam do ouvinte quer os repertórios da Idade Média e do Renascimento, quer as obras escritas por compositores vivos. A formação do e nse mble como conjunto de música antiga remonta à década de 1980, concretizando então uma série de notáveis gravações para a EMI (muitas das quais foram reeditadas pela Virgin), além da sua própria etiqueta, Hilliard Live, agora disponível em Coro. Porém, desde o princípio da sua existência que o grupo prestou a mesma atenção à música actual. A gravação de Passio , de Arvo Pärt, em 1988, iniciou uma relação muito fecunda com o autor e com a companhia ECM, de Munique, seguindo-se a gravação de Litany , também de Pärt. The Hilliard Ensemble fez encomendas a outros compositores dos Países Bálticos, entre eles Veljo Tormis e Erkki-Sven Tüür, associando-os ao seu repertório, a par de Gavin Bryars, Heinz Holliger, John Casken, James MacMillan, Elena Firsova e muitos outros. Saliente-se que, além dos seus inúmeros registos a cap p e lla, as colaborações do grupo com a ECM incluem O f f icium e M ne mo syne , com o saxofonista norueguês Jan Garbarek, e M o rimur, com o violinista barroco alemão Christoph Poppen e a soprano alemã Monika Mauch. Desta última colaboração resultou, segundo a investigação de Helga Thoene, um trabalho único de interpretação da Partita e n Re M e no r para violino, de Bach, com uma selecção de versos corais rematada pela épica Ciaco nna, em que se unem instrumentistas e vocalistas. O grupo prossegue o seu afã de forjar relações de colaboração com compositores vivos, nomeadamente em contexto orquestral. Em 1999, estreou M iro irs d e s Te mp s, de Unsuk Chin, com a London Philharmonic Orchestra e Kent Nagano. No mesmo ano, Q uick e ning , de James MacMillan, uma encomenda da BBC e da Philadelphia O rche stra, estreou-se nas BBC Proms. Com Lorin
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Maazel e a New York Philharmonic Orchestra, estrearam, a nível mundial, a Te rce ira Sinf o nia, de Stephen Hartke, apresentada seguidamente na Europa pela Deutsche Radio Philharmonie Saarbrücken Kaiserslautern, sob a direcção de Christoph Poppen. Colaboraram igualmente com a Münchener Kammerorchester numa obra nova de Erkki-Sven Tüür. Em 2007, uniram-se à Dresdner Philharmonie para a estreia de Nunc Dimittis, de Alexander Raskatov, gravada para ECM. Em 2009, trabalharam com o Cuarteto Arditti na última obra de Wolfgang Rihm, Et Lux . Em Agosto de 2008, iniciou-se uma nova etapa da vida do e nse mb le , com a estreia, no Festival Internacional de Edimburgo, de um projecto de teatro musical escrito por Heiner Goebbels, numa produção do Théâtre Vidy, de Lausanne: I W e nt t o t he Ho us e b ut Did no t Ent e r. Foi seguidamente apresentada em sucessivos palcos europeus e norte-americanos, culminando no Lincoln Center for Performing Arts, de Nova Iorque, em Novembro de 2012. O ano de 2014 testemunha a celebração do 40.º aniversário de The Hilliard Ensemble, que principiou, de forma espectacular, com um concerto especial em Londres, no qual o grupo actual se reuniu com quatro dos seus antigos elementos para interpretar um programa de que fazia parte uma encomenda de Roger Marsh.
106 SANTIAGO DO CACÉM . IGREJA DE SANTIAGO MAIOR
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Conferência
BEJA
31 de Maio 17H00
A VIOLETA: PERENIDADE DE UM INSTRUMENTO INJUSTIÇADO Alexandre Delgado
O contralto do violino carrega consigo longos séculos de incompreensão. Apesar das mil anedotas sobre violetistas que divertem o meio musical, a violeta continua a ser o parente mais desconhecido da família das cordas, especialmente em Portugal, onde se chega ao ponto de a maior parte da população lhe ignorar quer o nome, quer a existência. Habitualmente designada viola de arco (ou, simplesmente, viola, um anglicismo desnecessário), surgiu ao mesmo tempo que o violino, no século XVI, mas só no século XVIII lhe começaram a explorar a veia solística, algo em que Telemann e Bach foram precursores. Mozart adorava este instrumento, e Schumann revelou-se um amigo compreensivo. Instrumento de compositores, a violeta foi tocada e preferida em música de câmara por Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert e Mendelssohn. No repertório sinfónico, Brahms, Tchaikovski, Strauss e Mahler confiaram-lhe temas que lhe revelam a alma poética e original. Hindemith fez dela o seu instrumento principal e, secundado por Bartók e Chostakovitch, deu-lhe novo protagonismo no século XX, tendência que se prolongou até aos nossos dias com Schnittke e Feldman, entre muitos outros.
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BEJA
Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 129/77 (Diário da Re pública de 29 de Setembro de 1977)
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
Longamente meditado pelas autoridades concelhias, o propósito de facilitar o acesso à Praça Grande de Beja levou à abertura, em finais do século XVI (ou já em inícios do seguinte), de uma porta na muralha medieval, perto da Corredoura. Foi junto a este postigo que se construiu, poucas décadas mais tarde, encostada ao pano da fortaleza, a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. A escolha do sítio, contíguo à velha ermida de Santo Estêvão, cujo adro passou a partilhar, explica-se não só por ser um dos mais frequentados da urbe, mas também pelo costume – usual em terras do Sul – de se assinalar a protecção simbólica de cada uma das principais entradas das povoações com a presença de uma capela. O título escolhido, por seu turno, atesta uma devoção muito comum entre nós na época pós-tridentina, precisamente quando o culto da Virgem atingiu o clímax. De facto, a veneração tributada a Nossa Senhora dos Prazeres constitui um reflexo do intensificar da piedade mariana em finais da Idade Média e, à semelhança da elaboração dos Mistérios Dolorosos e Gozosos do Rosário, assenta no paralelismo entre as Sete Dores e as Sete Alegrias da Mãe de Deus, tendo alcançado notáveis ressonâncias litúrgicas e devocionais. Conheceu depois acréscimo significativo nos meados do século XVI, devido a um acontecimento milagroso que provocou grande comoção em todo o mundo português. Junto à fonte de certa quinta do vale de Alcântara, no termo de Lisboa, foi encontrada uma imagem de Maria, que comunicou virtudes curativas às águas deste manancial. Na mesma ocasião, a própria Virgem apareceu a uma menina e mandou-a dizer aos pais e aos vizinhos para aí fazerem uma capela em Sua honra.
Visita das Santas Mulheres ao Sepulcro Vazio. Escola italiana. Século XVIII (segundo quartel). Beja, Museu Episcopal, Inv.º n.º Pint 22.>
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Construída a ermida e posta no altar a dita imagem, multiplicaram-se os milagres, atraindo a Alcântara inúmeros fiéis. O fenómeno despertou um intenso surto devocional e em vários pontos do país viriam a ser levantadas erguidas igrejas e capelas sob a mesma invocação. Referência cimeira de tão impressionante série de fundações, o monumento bejense espelha a implantação local do culto de Nossa Senhora dos Prazeres. São pouco conhecidas as circunstâncias que rodearam a sua erecção, talvez nascida da iniciativa de particulares. Em 1672, o grosso da obra já se encontrava concluído, a ajuizar pela data inscrita na verga do portal. Tipologicamente falando, o edifício segue um modelo característico da arte maneirista portuguesa, com planta longitudinal, de uma só nave, coberta por abóbada de berço, capela-mor mais estreita e mais baixa, com paredes perpendiculares ao arco cruzeiro e abside semicircular, rematada por cúpula e lanternim, e, ainda, sacristia quadrangular adossada, também coberta por abóbada. À circunspecção dos alçados exteriores, própria da arquitectura chã, dominante no panorama nacional, corresponde um interior de sumptuosa cenografia, verdadeira obra de arte total (g e samtk unstw e rk ). A azulejaria, a escultura e a pintura afluem aqui, mediante um sistema muito coerente, em termos teológicos e plásticos, na criação de um “teatro sagrado” que permite antever as glórias do Céu. Iniciado, quanto ao essencial, por volta de 1680, este ciclo decorativo alongou-se, pelo que as fontes escritas mostram, durante mais de duas décadas, contando com a colaboração de mestres de renome. Entre eles, avultam os entalhadores João de Touro Freitas, Manuel João da Fonseca e Francisco da Silva, os pintores Pedro Figueira e António de Oliveira Bernardes, o pintor-dourador João Pereira Pegado e o pintor de azulejos Gabriel del Barco. A qualidade dos artistas escolhidos põe em destaque a crescente influência, dentro dos círculos bejenses, da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Tiveram nisso papel destacado duas figuras da sociedade local, Manuel Álvares Azeitado, opulento e prestigiado mercador, que ocupou importantes cargos públicos, com realce para a vereação da Câmara, e o P.e Manuel Ledo Gago. O seu desempenho, ao longo de sucessivos mandatos, respectivamente como reitor e como escrivão da confraria, foi decisivo para a fazer brilhar, trazendo-lhe outrossim desafogo económico, graças à multiplicação das esmolas dos fiéis e à obtenção de alguns legados pios. Mercê deste florescimento, o santuário dos Prazeres tornou-se um dos principais centros de piedade da grei pacense na época barroca, como o atestam as ofertas votivas que recebeu, incluindo um notável núcleo de exemplares de joalharia. Alguns ornamentam, rotativamente, a imagem seiscentista da Virgem, escultura “de vestir” que a devoção das gentes da cidade dotou com rico enxoval.
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Formando uma oval irregular ao gosto seiscentista, a capela-mor recebeu vultuosas modificações para a sagração do novo altar, em 12 de Abril de 1779, por D. Fr. Manuel do Cenáculo Villas Boas, primeiro bispo de Beja após a refundação da diocese (1770). Devoto de Nossa Senhora dos Prazeres, o prelado contribuiu para reforçar a notoriedade de que a igreja gozava. Vincula-se ao seu mecenato a oferta, além de outras peças, da cadeira e do par de credências pertencentes ao acervo da Irmandade, valiosos testemunhos do mobiliário meridional da segunda metade do século XVIII. Por esta data, as celebrações já ultrapassavam, em esplendor e em repercussão pública, as do santuário “rival”, Nossa Senhora ao Pé da Cruz, sito no bairro dos Pelames, então periférico em relação à cidade intramuros, e cujas raízes ascendem ao crepúsculo da Idade Média. Na sacristia, continua a preponderar a fisionomia das campanhas de obras dos finais de Seiscentos, distinguindo-se o arcaz-altar, de talha dourada e acharoada, e o lavabo, de pedra de Trigaches, com registos em forma de carrancas. Das pinturas murais que guarneciam primordialmente este espaço, restam alguns vestígios, como um medalhão com a figura de São Jo ão Ev ang e lista e um trecho de revestimento de um arco que imita azulejos de “figura avulsa”. Com o advento do Liberalismo, a Irmandade viu-se esbulhada de grande parte dos capitais e bens de raiz que lhe pertenciam, devido à legislação desamortizadora. Logrou, no entanto, vencer sem problemas de maior esta conjuntura de aperto, mercê da protecção de famílias gradas. Tal como sucedera na época barroca, a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres foi um lugar-chave da Beja romântica, frequentado pela aristocracia e pela burguesia chic. O seu espólio enriqueceu-se com alfaias oriundas de casas religiosas extintas. Ao convento de Nossa Senhora da Conceição pertenceu o Cristo e m O ração no Ho rto , imagem de marcado pendor bidimensional, típico da produção dos entalhadores regionais na segunda metade do século XVII. Particular interesse iconográfico possui o Se nho r d o Triunf o , escultura do primeiro quartel do século XVIII que evoca a Ressurreição de Jesus e a Sua vitória sobre a Morte, simbolizada por uma caveira em hipertrofia. A imagem de São Se b astião , santo muito venerado no Alentejo como protector contra as doenças infecciosas, remonta também ao período barroco e destaca-se pelo ambíguo naturalismo da figura – tendência que é exaltada, no tratamento da árvore a que está preso, graças a um gosto ornamental arcaizante. O edifício anexo à igreja, que ostenta na frontaria um fecho de abóbada da época manuelina, albergava a casa do despacho e outras dependências da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Mais tarde, serviu de residência do capelão. Hoje, tem um uso museológico e constitui o núcleo primordial do renascido Museu Episcopal. Este nome
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invoca a memória da instituição fundada em 1892 por Mons. Amadeu Ruas, sob a égide do bispo D. António Xavier de Sousa Monteiro, para evitar a dispersão das obras de arte pertencentes aos últimos conventos e mosteiros femininos de Beja que se foram extinguindo, em penosa agonia, ao longo da segunda metade do século XIX. O Museu Episcopal desapareceu com o advento da República, e o respectivo acervo acabaria por ficar parcialmente integrado no Museu Regional, mas o ideal que esteve na sua génese (preservar, estudar e divulgar o património religioso pacense) continua vivo.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Co rpus da A zule jaria Po rtug ue sa, IV, A zule jaria e m Po rtug al no Sé culo XV II, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id. , Corpus da A zule jaria Po rtug ue sa, V, A zule jaria e m Po rtug al no Sé culo XV III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; TÚLIO ESPANCA, Inv e ntário A rtístico d e Po rtug al, XII, Distrito d e Be ja. Co nce lho s d e A lv ito , Be ja, Cub a, Fe rre ira d o A le nte jo e V id ig ue ira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; VÍTOR SERRÃO, “O Conceito de Totalidade nos Espaços do Barroco Nacional: A Obra da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (1672-1698)”, em Re v ista d a Faculd ad e d e Le tras, 5.ª Série, XXI-XXII, Lisboa, 1996-1997; id . , FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, A Ig re ja d e No ssa Se nho ra d o s Praze re s e m Be ja. A rte e Histó ria d e um Esp aço Barro co (1 672-1 698), Lisboa, Alêtheia Editores, 2007; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Re táb ulo s na Dio ce se d e Be ja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Alexandre Delgado
Compositor e violetista, nasceu em Lisboa em 1965. Estudou na Fundação Musical dos Amigos das Crianças e foi aluno de composição de Joly Braga Santos e de Jacques Charpentier, tendo-se diplomado em violino e composição no Conservatório Nacional, em 1983. Aluno particular de Joly Braga Santos, o seu Pre lúd io para cordas foi estreado pela Orquestra Sinfónica da RDP, em 1982. Prosseguiu a formação com Jacques Charpentier, em França, como bolseiro da Secretaria de Estado da Cultura, diplomando-se com o 1.º Prémio de Composição do Conservatório de Nice, em 1990. Aluno em violeta de Barbara Friedhoff, foi vencedor do Prémio Jovens Músicos em 1987 e membro da Orquestra Juvenil da União Europeia – onde tocou sob a direcção de Claudio Abbado e Zubin Mehta – e da Orquestra Gulbenkian. Gravou a So natina de Armando José Fernandes (com o pianista Bruno Belthoise). Entre as obras mais conhecidas de Alexandre Delgado, destacam-se A ntag o nia, seleccionada para os World Music Days na Cidade do México, em 1993; Q uarte to d e Co rd as, gravado pelo Quarteto Arditti; e Lang ará para clarinete solo (1992), peça de repertório a nível internacional, que já teve múltiplas gravações. Com encomendas regulares de Portugal e do estrangeiro, a sua abundante produção instrumental e vocal inclui a ópera de câmara O Do id o e a M o rte , cuja estreia dirigiu no Teatro Nacional de São Carlos, em 1994, e no Theater Am Halleschen Ufer, de Berlim, em 1996; Co nce rto p ara V io le ta e O rq ue stra, que estreou como solista em Portugal, Espanha e Holanda; a ópera A Rainha Lo uca, que estreou e dirigiu no Centro Cultural de Belém, em 2011; e a lenda Santo A sinha para barítono e orquestra, que estreou em Alcobaça, em 2011. Das obras mais recentes, sobressaem o ciclo Cinco So ne to s Q uinhe ntistas (encomenda do
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Festival Terras sem Sombra, estreada pelo soprano María Bayo, em 2011, na 7.ª edição deste festival); Tríp tico Camo niano (para soprano e trio com piano); e V e rd iana para orquestra (encomenda do Centro Cultural de Belém para a comemoração do centenário de Verdi). Fez igualmente elogiadas versões portuguesas de óperas para a Fundação Calouste Gulbenkian e o Teatro Nacional de São Carlos (Hänse l und Gre te l, Die Zaub e rf lö te , The Little Sw e e p , La Be la Do rme nte ne l Bo sco ). Crítico musical do Público entre 1992 e 2002, assina o programa A Pro pó sito da Música na Antena 2, desde 1996, e é autor dos livros A Sinf o nia e m Po rtug al, A Culp a é d o M ae stro (crítica musical) e Luís d e Fre itas Branco , publicados na Editorial Caminho. Director do Festival de Música de Alcobaça desde 2002, integra desde 2005 o Quarteto com Piano de Moscovo, com o qual fez, em 2012, a primeira gravação mundial do Q uarte to co m Piano , de Anton Rubinstein. Dirige a Orquestra da Fundação Musical dos Amigos das Crianças desde 2013 e prossegue a sua carreira de f re e lance r como instrumentista, maestro, tradutor de óperas e comentador de concertos.
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Concerto V
BEJA
10 de Maio 21H30
O SAGRADO E O PROFANO: ALITERAÇÕES HÚNGARO-PORTUGUESAS Béla Bartók [1881-1945] Gajd uite
João Lourenço Rebelo [1610-1661] Lame ntatio ne s
Béla Bartók Sag mir d o ch d e n W e g
Pêro de Gamboa [1563?-1638] (Mestre da Capela da Sé de Braga ca. 1585-ca. 1594) Motetos: O crux av e , O b o ne Je su
Béla Bartók Ge h nicht, v e rlaß mich nicht
Fr. Manuel Cardoso [1566-1650] M ag nif icat To n. 1
Béla Bartók Hab nie mand auf d e r W e lt Ein Fe lse n Icca ricca tu
João Lourenço Rebelo Panis A ng e licus
Capella Duriensis Sopranos Leonor Barbosa de Melo, Marta Brandão, Inês Borges, Paula Ferreira Altos Ana dos Santos, Joana Vieira, Joana Guimarães, Sara Amorim Tenores Jorge Barata, Vitor Sousa, André Lacerda, Miguel Leitão Baixos Ricardo Torres, Pedro Ferreira, Luís Neiva, Tiago Ribeiro Direcção musical Jonathan Ayerst
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BEJA
Igreja Matriz de Santa Maria da Feira Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 42 255 (Diário d o Go v e rno n.º 105, de 8 de Maio de 1959)
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
A igreja de Santa Maria da Feira, matriz de Beja, ocupa um sítio emblemático no centro histórico da cidade, sítio que antes pertencera – segundo a tradição, corroborada por explícitos achados arqueológicos – à primitiva catedral, cujas fundações devem ascender ao século VI. Outros relatos afirmam ter sido adaptada a mesquita na época do domínio islâmico, o que pressupõe a sua reconciliação com o culto cristão, após a “Reconquista” da cidade, só tornada definitiva em 1232 ou 1234 (e só verdadeiramente segura após a expugnação de Mértola, em 1238). Aliás, não falta quem veja na torre do solar que lhe fica fronteiro, a Casa da Torrinha, a reminiscência da antiga almádena, do alto da qual, nas horas costumeiras, manhã, meio-dia, tarde, crepúsculo, anoitecer, um religioso muçulmano chamava os crentes à oração. Túlio Espanca datou esta torre já do século XIX, mas está ainda por averiguar de modo definitivo se não terá resultado da transformação de uma estrutura mais antiga. D. Afonso III autorizou, em 1259, a feitura de uma nova igreja, sob a invocação de Santa Maria, medida importante para o repovoamento de uma terra que, tomada e perdida várias vezes pelas hostes portuguesas, sofrera grandes prejuízos. Aquele título correspondia a uma escolha usual numa época de profunda devoção à Virgem, sendo também o mais preferido para a dedicação de antigas mesquitas. João Moniz, o seu primeiro prior, contribuiu decisivamente para o arranque da obra. No rossio vizinho, começou a realizar-se em 1261, com licença régia, a feira de Beja, que acabaria por ficar associada ao título do lugar de culto. Esta foi entregue pelo mesmo monarca, em 1259, à Ordem militar dos freires de Évora ou de Avis, que aí instalou uma colegiada. Seguidamente, tornar-se-ia também a sede Árvore de Jessé. (capela de Nossa Senhora do Rosário). Manuel João da Fonseca. Ca. 1677. Beja, igreja matriz de Santa Maria da Feira. >
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da sua comenda de Beja. Os limites da paróquia alargavam-se a uma vasta faixa rural, em que abundavam as terras férteis, incluindo Cuba e Selmes (hoje no concelho de Vidigueira). Quanto ao âmbito urbano, muitos dos seus fregueses estiveram tradicionalmente vinculados aos mesteres e ao comércio, mas não escasseavam também as casas nobres. Um aspecto digno de referência na história da igreja de Santa Maria da Feira é o facto de ter sido escolhida por D. João II, em 1495, para se efectuar a cerimónia do solene baptismo de Caçuta, o embaixador do Congo, e dos demais membros da sua comitiva. Garcia de Resende descreveu assim estes acontecimentos na Chro nica [...] d o Chris tianissimo Do m Jo am o Se g und o (1545): “El-Rei do Congo mandou a El-Rei (D. João II) por seu embaixador Caçuta, homem muito importante que depois de ser cristão teve o nome de D. João da Silva, e alguns moços [...]. El-Rei D. João [...] estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia baptismal para o fazer cristão e assim aos moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-se ela e El-Rei de festa.”
Favorecida pelos monarcas, pelos bispos de Évora e pelos prelados da Ordem de Avis, a igreja-mãe de Beja possuiu, desde cedo, uma fábrica abastada, a que se juntaram outros patrimónios. De entre os seus muitos rendimentos, sobressaíam os provenientes de capelas de missas. No tempo em que o cardeal infante D. Afonso deteve a cátedra eborense, eram cerca de 30 e estavam vinculadas a bens que, além de cobrirem boa parte do território alentejano, se estendiam até Sintra. Existiam mais de 20 propriedades foreiras, entre prédios urbanos e rústicos, além dos próprios do comendador, do prior e dos beneficiados. Um inventário realizado na segunda metade do século XVIII mostra que, apesar de sucessivas incorporações de capelas no erário régio, perdurava ainda um património impressionante. Entre os beneficiados que faziam parte do clero ao serviço de Santa Maria, contava-se, então, Luís António Verney, autor de O V e rd ad e iro M é to d o d e Estud ar (1746-1747); retirado em Roma, a colegiada fazia-lhe chegar os estipêndios correspondentes ao seu cargo. Grandes transformações alteraram a fisionomia do monumento ao longo dos tempos e deram-lhe o aspecto híbrido que hoje ostenta. Da estrutura medieva, com três naves, permanece a cabeceira de abside poligonal, rodeada por absidíolos. Os seus cinco panos, divididos por contrafortes escalonados, são rasgados por esguias janelas bífores de verga em arco quebrado e lunetas quadrifoliadas. Embora se tenha perdido a cortina de ameias que fechava o conjunto, persiste quase íntegra a sequência de modilhões e
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gárgulas zooantropomórficas. Remontando à transição do século XIII para o XIV, este sector constitui um notável testemunho da delicada elegância então atingida pela arquitectura gótica no Sul. Em finais do século XV, procedeu-se à construção da galilé, o que permitiu uma articulação mais funcional com o terreiro envolvente, lídimo coração da terra. Rasgado por arcos quebrados, separados por botaréus cilíndricos, sobrepujados por cones envoltos por merlões chanfrados, este nártex resolve-se internamente numa abóbada de cruzamento de ogivas, com três tramos, cujas nervuras arrancam de mísulas de ornamentação vegetalista. Trata-se de uma solução típica do Tardo-Gótico alentejano em que avulta a influência da arte mudéjar. O corpo central do edifício, por seu turno, foi reconstruído na segunda metade do século XVI, correspondendo à tipologia de igreja-salão (Halle nk irche ) largamente utilizada no Alentejo durante a época da Contra-Reforma, com três naves, de igual altura, formadas por quatro tramos de abóbadas nervuradas, assentes em colunas de fuste cilíndrico e capitéis toscanos. Seguiu-se nisto o severo modelo maneirista da igreja de Santo Antão de Évora, traçado por Miguel de Arruda em 1548. Datam do mesmo período as duas sacristias, de planta em quadrilátero, cobertas por abóbadas de cúpulas assentes em trompas. Ciclo de pinturas parietais quinhentistas e seiscentistas, de que ainda persistem vestígios, remataram o espaço interior, dando outra vibração à sua harmoniosa austeridade. Uma associação estratégica entre a munificência da colegiada, o mecenato de famílias piedosas e a intervenção de irmandades (que gozavam de prestígio e recursos apreciáveis) tornaram Santa Maria uma das igrejas mais opulentas de Beja, centro de intensa vida litúrgica e devocional. É notável a sequência de retábulos dos séculos XVII, XVIII e XIX. Do lado do Evangelho, avulta a capela de Nossa Senhora do Rosário, cuja estrutura escultórica, característica da talha de “estilo nacional”, foi encomendada, em 1677, ao mestre lisboeta Manuel João da Fonseca. No seu vão central, ergue-se uma extraordinária Á rv o re de Je ssé , alusiva à genealogia de Cristo, enquanto os painéis das ilhargas e da predela são preenchidos por símbolos das Litanias da Virgem. Do lado da Epístola, o realce pertence à capela de Nossa Senhora da Coroa e das Almas, de grande devoção bejense. Avulta aqui a sumptuosa máquina retabular construída nos finais do reinado de D. Pedro II e que integra a imagem de São Mig ue l em glória, acolitado por outros anjos. Atribuiu-se ao terramoto de 1755, além de outros danos na igreja, o desequilíbrio das colunas dos primeiros tramos. Terá sido o intuito de corrigir os seus efeitos que levou a uma nova campanha de obras na década de 1790, com a remodelação da capela-mor e das capelas colaterais: a da parte do Evangelho, consagrada a São Crispim e São
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Crispiniano e pertencente à Confraria dos Sapateiros, foi demolida nesta ocasião; a do Santíssimo Sacramento, na banda oposta, ganhou maior amplitude, tendo a abóbada revestida por estuques e acolhendo um retábulo de mármore branco e róseo em que se inscreve o painel da Última Ce ia, de Pedro Alexandrino de Carvalho, o mais conhecido pintor lisboeta da época. Sagrado em 1792, este altar recebeu os privilégios de indulgência plenária por concessões de Pio VII em 1800 e 1803. Os trabalhos no edifício prolongaram-se, todavia, até 1794. Embora grande parte do tesouro paroquial se tenha dispersado, a igreja conserva ainda espécimes artísticos de muito interesse. Merece particular atenção o painel a óleo sobre madeira que representa A De scid a d a Cruz, da autoria de um mestre do círculo do pintor eborense Francisco João, obra datada do último quartel de Quinhentos. Do faustoso aparato litúrgico da antiga colegiada, remanesceu um precioso núcleo de artes decorativas, incluindo espécimes de paramentaria, ourivesaria e mobiliário dos séculos XVI a XIX. A meio da fachada virada a poente, está adossado o campanário, edifício de raiz medieval que sofreu ampliações nos séculos XVII e XVIII. Tendo em conta a sua implantação e a sua estrutura, já se vislumbrou nele outra alternativa para a continuidade do minarete. Possui dois coroamentos diferentes, destinados aos sinos da paróquia e do concelho – o que evidencia a convergência, em ponto estratégico, perto das antigas casas da Câmara, dos poderes eclesiástico e civil, acabando este por ter, graças às obras realizadas em 1760-1763, maior destaque. A face orientada para o Largo de Santa Maria ostenta, entre outras peças escultóricas dignas de atenção, a cabeça de um touro da época romana, insígnia da antiga Pax Iulia, e as armas medievais de Beja. Uma inscrição liga a sua presença ao passado glorioso da cidade: CO LO NIA / PA Z JV LIA / FESCE NO A NO DE 1 763 / SENDO J V IZ DE FO RA / O D. o r A NT. o J O RGE DE C A RV . o Instituição confraternal datada de amplos recursos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário ergueu, em inícios do século XVIII, no espaço entre a igreja e a torre sineira, a respectiva casa consistorial, incluindo uma capela destinada aos irmãos. Poucos anos depois, juntou-se à frontaria do edifício uma das estações da Via-Sacra, pertencente à Irmandade do Senhor Jesus dos Passos. Retirado à posse da confraria durante a I República, o edifício do Consistório foi entregue à Caixa Geral de Depósitos para nele instalar o seu balcão em Beja. Em 1922-1923, construiu-se um novo imóvel de linhas eclécticas, a meio-termo entre o revivalismo e o modernismo, sob projecto do Arqt.º Porfírio Pardal Monteiro. A intervenção preservou a estrutura da capela e o ciclo de azulejaria nela existente, notável conjunto do terceiro quartel do século XVIII no qual são postos em diálogo momentos culminantes da vida de Maria e de Cristo.
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Menos sorte teve a pequena capela de Nossa Senhora da Luz, já existente em 1680, que ficava encaixada num dos contrafortes da cabeceira da igreja. De planta circular, à semelhança das coevas capelas do Calvário, foi demolida, por intermédio da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1970, com o pretexto de que prejudicava a leitura da estrutura medieval.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da A zule jaria Po rtug ue sa, V, A zule jaria e m Po rtug al no Sé culo X V III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; JACQUES MARCADÉ, Fre i M anue l d o Ce náculo V ilas Bo as – Év êq ue d e Be ja, A rche v êq ue d ’ Ev o ra (1 770-1 81 4), Paris, Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 1978; TÚLIO ESPANCA, Inv e ntário A rtístico d e Po rtug al, XII, Distrito d e Be ja. Co nce lho s d e A lv ito , Be ja, Cub a, Fe rre ira d o A le nte jo e V id ig ue ira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; LEONEL BORRELA, “A Igreja de Santa Maria. I-III”, em Diário d o A le nte jo , Beja, 25 de Agosto e 1 e 8 de Setembro de 1995; HERMÍNA VASCONCELOS VILAR, A s Dime nsõ e s d e Um Po d e r. A Dio ce se d e Év o ra na Id ad e M é d ia, Lisboa, Editorial Estampa, 1999; [MANUEL LOURENÇO] CASTELEIRO DE GOES, Be ja. X X Sé culo s d e Histó ria d e Uma Cid ad e , I-II, Beja, Câmara Municipal de Beja, 1998 [1999].
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A Música Coral, entre o Sagrado e o Profano
LUÍS MIGUEL SANTOS
Ecos da Alma Popular na Música Coral de Béla Bartók Béla Bartók [S 1881 – X 1945] foi, indubitavelmente, um dos compositores mais originais e mais versáteis da primeira metade do século XX, tendo-se assumido como uma figura de grande relevo no contexto da cultura musical húngara. Durante a Primeira Guerra Mundial, Bartók, declarado inapto para o serviço militar, estaria presente no esforço de guerra para, juntamente com Zoltán Kodály, recolher canções populares entre os soldados, consistindo o essencial da sua actividade composicional, durante esses anos, sobretudo em arranjos desses repertórios. Com o final do conflito e devido às tensões políticas criadas com o desmembramento do território austro-húngaro, acabaria por abandonar a recolha de canções, dedicando-se, agora, à análise do material que já havia recolhido. As suas primeiras séries de canções populares para coro, compostas entre 1910 e 1917, apresentam características técnicas similares: a conservação da melodia original, atribuída à voz superior, mas arranjada com uma harmonia simples. As Q uatro Cançõ e s Po p ulare s Eslo v acas, BB 78, Sz. 70, para coro misto a quatro vozes com piano, publicadas em 1924, foram compostas, provavelmente, em 1916, tendo sido recolhidas entre os soldados estacionados no condado de Zolyom, na região central da actual Eslováquia. Trata-se de um conjunto de peças corais em que as melodias populares são envolvidas numa textura geralmente homofónica ou, até, apresentadas simplesmente em uníssono, com uma dimensão harmónica relativamente simples e um emprego muito circunspecto do contraponto. O andamento acelera durante as três primeiras peças, abrandando apenas na última – um plano formal geral que, aliás, pode ser observado em inúmeras obras suas. A canção n.º 4, Tanzlie d aus Po nik i: Gajdujte , g ajd e nce , é oriunda da povoação de Poniki. Trata-se de uma breve canção de dança, um A lle g ro mo d e rat o em torno do centro tonal Si bemol, num ambiente de divertimento pontuado pelos bordões que evocam as gaitas-de-foles camponesas, constituindo como que um convite à participação nas festividades da aldeia.
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Em 1934, deu-se uma mudança importante na carreira do compositor, ao abandonar o cargo de professor de piano na Academia de Música de Budapeste para, a convite da Academia Húngara das Ciências, se dedicar a um projecto científico de recolha, catalogação e publicação de canções e textos poéticos do folclore húngaro. Este seu contacto com a literatura oral servir-lhe-ia directamente de fonte de inspiração para a composição de música vocal. Uma selecção de textos que considerou particularmente apropriados daria origem aos 27 Co ro s a Duas o u Três V o ze s, BB 111, Sz. 103, para coro infantil (vols. 1-6) e coro feminino (vols. 7-8), uma série de breves peças para coro, compostas num rasgo de criatividade, no Verão de 1935 – o seu ciclo de obras corais mais célebre a nível internacional. O interesse de Bártok em compor peças desta índole, cuja interpretação suscita reduzido grau de dificuldade, foi estimulado pelo movimento coral infantil que Kodály desenvolvia, desde meados dos anos 20, insistindo na premência da criação de um repertório coral húngaro, que considerava de uma importância central na educação infantil. Mas a principal motivação para a composição destas peças foi dada pela possibilidade de condensar a essência intelectual da sua música em obras miniaturais, que submeteu voluntariamente a uma economia de recursos, mas sem abandonar dispositivos característicos da sua escrita, nomeadamente a nível rítmico, melódico e harmónico. A atracção de Bartók pela polifonia – que o levou ao estudo de Palestrina, Lassus e outros compositores dos séculos XV e XVI, sempre na procura de um estilo próprio – remonta ainda ao seu primeiro período, intensificando-se a partir dos anos 20 e alcançando uma importância central nas últimas obras. Esta série de peças corais é também exemplo desse interesse, fazendo uso não só de técnicas contrapontísticas, imitativas e canónicas, mas também dos modos antigos, recorrendo, inclusivamente, à polimodalidade. Com um contorno melódico que remete para o folclore da Europa Central e de Leste, a linguagem musical é predominantemente diatónica e as harmonias triádicas, apesar de a condução melódica e o contraponto frequentemente originarem dissonâncias ásperas e inesperadas, que constituem momentos expressivos poderosos. Em termos formais, o compositor emprega várias estruturas (estrófica, binária, ternária, desenvolvida), combinando-as, por vezes, com técnicas de variação. Saliente-se o papel fundamental que as palavras assumem no contexto da peça, pelo seu significado e pela sua centralidade na modelação do ritmo e do timbre. De facto, Bartók refinou, no processo de composição, algumas passagens dos textos originais, procurando acentuar o efeito das diferentes consoantes, bem como de onomatopeias, aliterações, repetições e ressonâncias, com a ambição de sugerir os sons das cordas e da percussão, tão característicos da sua maturidade criativa.
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Extremamente variado em termos de carácter e de conteúdo, este ciclo apresenta uma sequência de cenas e imagens musicais tocantes, evocando recorrentemente elementos da Natureza e, em particular, da temática da separação e do próprio sentimento de abandono. Disso é exemplo o n.º 2, Sag mir d o ch d e n W e g , uma peça melancólica com a sua melodia extraordinariamente expressiva, apresentada, primeiro, a duas vozes e, depois, num ambiente ainda mais intenso, com as notas longas de uma terceira voz. O n.º 8, Ge h nicht, v e rlaß mich nicht, transmite igualmente essa ideia de abandono, estando concebida como um cânone a duas vozes. O ambiente nostálgico mantém-se no n.º 10, Hab nie mand auf d e r W e lt, mas agora em estilo imitativo. Já o n.º 22, Ein Fe lse n, numa textura homofónica a três vozes, é particularmente doloroso e expressivo. Finalmente, o n.º 9, Icca ricca tu / Hab e in runde s Ring e le in, decorre numa atmosfera mais ligeira, para o que contribui a sua elaboração contrapontística.
O Esplendor da Polifonia Portuguesa no Fim do Maneirismo João Lourenço Rebelo [S 1610 – X 1661] foi um dos compositores mais destacados no panorama da música portuguesa da primeira metade do século XVII. Quando concluiu os estudos na Capela do Palácio Ducal de Vila Viçosa, onde tinha sido admitido em 1624 como menino de coro, foi prontamente nomeado seu mestre. O estatuto de protegido de D. João IV permitiu-lhe, para além do apoio na publicação de um volume, em Roma, no ano de 1657, usufruir de excelentes condições de trabalho, designadamente com o acesso à formidável biblioteca musical que desapareceria com o terramoto de 1755. Foi dessa forma que tomou contacto com técnicas e estilos que então floresciam entre os compositores estrangeiros, o que teve implicações no seu próprio desenvolvimento estilístico. De facto, a sua obra constitui um exemplo interessante da justaposição entre tradição e inovação, uma vez que, a par do respeito pelo refinamento da tradição contrapontística portuguesa, revela a ascendência do estilo da música italiana da época, particularmente da escrita opulenta da policoralidade veneziana. Para tal, João Lourenço Rebelo valorizou grandes contrastes em termos de som e textura, produzindo efeitos sonoros que oscilam entre o denso e o límpido, jogando por vezes com combinações assimétricas de vozes e/ou instrumentos. No entanto, não deixava de prestar culto também à escola romana, como é evidente tanto nas Lame ntatio ne s , marcadas pelo recurso significativo a harmonias cromáticas pungentes, como no motete Panis A ng e licus, caracterizado pelo equilíbrio da elaboração polifónica a sete vozes. Pêro de Gamboa [S 1563? – X 1638], compositor sobre o qual restam escassos dados biográficos, foi um dos principais representantes da geração de polifonistas que floresceu
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em Portugal a partir do final do século XVI. Numa época em que a prática polifónica vocal se generalizava nas catedrais portuguesas, actuou, entre ca. 1585 e 1594, como Mestre de Capela na Sé de Braga, instituição que, a par das congéneres de Coimbra e, particularmente, de Évora, se destacava no referido processo, nomeadamente pela liturgia imponente, associada ao seu estatuto de Sé Primaz. Da obra que Gamboa produziu nesse contexto, terão sobrevivido apenas 16 peças, 11 das quais motetes. Na aparência convencionais, estes patenteiam uma habilidade retórica assinalável que, associada ao rigor e à clareza das texturas predominantemente imitativas, contribui para que possam ser colocados entre as maiores obras-primas da polifonia quinhentista portuguesa. Os motetes O Crux A v e e O Bo ne Je su são bons exemplos dessa transparência contrapontística e desse poder expressivo, bem como da qualidade com que o estilo polifónico era praticado em Portugal nessa época. No quadro da Escola de Évora, Fr. Manuel Cardoso [S 1566 – X 1650] foi, provavelmente, o mais original dos polifonistas da sua geração, com um estilo que se destaca pela intensidade emocional. Nele, a ciência contrapontística (herdada do mestre, Manuel Mendes) aliava-se a uma linguagem expressiva bastante individual, patente, por exemplo, no gosto pelos intervalos aumentados e diminutos, bem como pelas dissonâncias não preparadas e pelo cromatismo. Mestre de Capela no Convento de Nossa Senhora do Carmo, durante mais de 60 anos, foi o compositor português da época que maior número de livros fez imprimir em vida, deixando publicados cinco volumes de obras polifónicas. O primeiro desses volumes, os Cantica Be atæ M ariæ V irg inis Q uate rnis e t Q uinis V o cib us (Cântico s e m Ho nra d a Be m-A v e nturad a V irg e m M aria, a 4 e 5 vozes), de 1613, contém 16 composições sobre o texto literário do M ag nif icat (oito a 4 vozes e outras oito a 5 vozes). Trata-se de um conjunto de composições polifónicas sobre os oito tons salmódicos, destinadas ao serviço da liturgia na Hora de Vésperas. A melodia litúrgica assume uma função estrutural, estando presente como canto dado, sobre o qual as diferentes vozes elaboram um contraponto que se distingue pela sua inventividade. O M ag nif icat Primi To ni constitui um exemplo da maturidade e autonomia do compositor na manipulação do género.
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Gajduite
Gajduite
Gajduite, gajdence, pojdemek fra jerce:
Deixem tocar as gaitas,
Ej, gajduite vessele, ej, že pojdeme smele!
todos querem dançar. Que toque uma música mexida
Zagajduj gajdoše! Ešte mam dwagroše:
Para convidar todos a dançar.
Ej jeden gajdo šovi, a druhy krčmarovi. Sopra com mais alegria, Tobola kosička, co predok vodila, ej,
ainda tenho duas moedas para gastar.
ale už nebude,ej, nožky si zlomila!
Uma é para o taberneiro, A outra fica para o músico. Em vida era um cabrito, pulava, brincava. Mas deixou de dançar, Pois partiram-lhe as pernas.
Sag mir doch den Weg
Diz-me qual o caminho
Sag mir doch den Weg,
Diz-me, amor, qual o caminho
Lieb, wo du von mir scheidest, sag mir’s,
Onde te queres separar de mim. Diz-me,
und ich pflüge ihn mit goldner Pflugschar;
para eu o arar com uma relha dourada;
säen will ich auch, mit Perlen ihn basäen,
e quero semeá-lo, semeá-lo com pérolas,
und mit Tränen netzen, kummervolen Tränen,
banhá-lo em lágrimas, com lágrimas de tristeza
ach wull den Weg mit kummervolen Tränen
semeá-lo.
netzen
Geh nicht, verlaß mich nicht
Não te vás embora, não me deixes
Geh nicht, verlaß mich nicht,
Não te vás embora, não me deixes,
geh nicht, o bleibe doch,
Não te vás embora, fica.
denn wenn du fortgehst,
Se te fores embora,
so drückt mich Kummer nieder,
A tristeza vai abater-se sobre mim.
Traurig vor Sehnsucht und einsam im Herzen,
Ficarei triste com saudades e solitário no coração,
wie könnte ich, ohne dich denn leben.
Como poderia eu viver sem ti?
Solang ich leb’, wirst auch du in mir leben,
Enquanto eu viver, também tu viverás dentro de
und kehrst du zurück erst, so wirst du allzeit
mim.
bleiben.
E, se voltares, ficarás para sempre.
Hab niemand auf der Welt
Não tenho ninguém no mundo
Hab niemand auf der Welt, einsam bin ich, allein
Não tenho ninguém no mundo, sinto-me só,
Nur der Flusses leises Rauschen dringt zu mir
Apenas o murmurar do rio chega até mim.
herein.
No Verão o rio murmura, mas ele gela no
Sommerlich rauscht der Fluß friert dann im
Inverno.
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Winter zu.
Contudo, o meu triste coração jamais encontra
Aber mein trauriges Hertz kommt nie zur Ruh.
paz.
Ein Felsen
Uma rocha
Ein Felsen würd’weit eher schmelzen und
Mais depressa uma rocha se poderia derreter e
zerfließen
desfazer
als daß zwei, die sich lieben von einander ließen
do que duas pessoas que se amam separarem-se.
Erst wenn zwei, die sich treu, nicht beisammen
Quando duas pessoas que se são fiéis se
stehen,
separam,
muß auch süßer Honig in Bitterkeit vergehen,
o mel doce também tem de se transformar em fel.
Icca ricca tu
Haj, ica rica tu
Haj, icca tu ricca tu, icca ricca tu!
Haj, ica tu rica tu, ica rica tu!
Hab ein rundes Ringelein
Tenho um anel
kaufte Janika mir ein.
Que o Janika ontem me comprou.
Kauft er mir noch eins dazu,
Se ele me comprar mais um,
hab zwei Ringlein ich im Nu.
terei dois anéis num instante.
Hab ein Tuch von Seide fein, kaufte Pista für mich ein.
Haj, ica tu, ica tu, ica rica tu,
Kauft er mir noch eins dazu, hab zwei Tüchlein ich im Nu,
Tenho um lenço de seda fina, foi o Pista que ontem mo comprou.
Haj, icca tu, icca tu, icca ricca tu,
Se ele me comprar mais um, terei dois lenços
Habnen Pelz aus Astrachan,
num instante.
schaffte mir mein Liebster an, Kauft er einen noch dazu,
Haj, ica tu, ica tu, ica rica tu,
hab zwei Pelze ich im Nu, Tenho um casaco de astracã, Oferecido pelo meu namorado. Se ele comprar mais um, terei dois num instante. Tradução: Antoinette Lukacs
Lamentationes
Lamentações
Incipit lamentatio Ieremiæ prophetæ
Começam aqui as Lamentações do profeta
ALEPH
Jeremias.
Quomodo sedet sola civitas plena populo!
ALEPH
Facta est quasi vidua domina gentium;
Como está solitária
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princeps provinciarum facta est sub tributo.
a cidade outrora tão populosa!
BETH
Tornou-se como uma viúva
Plorans ploravit in nocte, et lacrimæ ejus in
a que era grande entre as nações;
maxillis ejus:
a princesa entre as províncias
non est qui consoletur eam, ex omnibus caris
ficou sujeita ao tributo.
ejus;
BETH
omnes amici ejus spreverunt eam, et facti sunt ei
Passa as noites a chorar,
inimici.
e as lágrimas correm-lhe pelas faces.
GHIMEL
Não há ninguém que a console
Migravit Judas propter afflictionem, et
entre todos os que a amavam;
multitudinem servitutis;
todos os seus amigos a traíram,
habitavit inter gentes, nec invenit requiem:
tornaram-se seus inimigos.
omnes persecutores ejus apprehenderunt eam
GUIMEL
inter angustias.
Judá partiu para o exílio,
DALETH
sob o peso da miséria e de uma dura escravidão;
Viæ Sion lugent, eo quod non sint qui veniant ad
habita no meio das nações,
solemnitatem:
sem encontrar descanso.
omnes portæ ejus destructæ, sacerdotes ejus
Todos os seus perseguidores se apoderaram dela
gementes;
no meio das suas angústias.
virgines ejus squalidæ, et ipsa oppressa
DALETH
amaritudine.
Os caminhos de Sião estão de luto,
Ierusalem convertere ad Dominum Deum tuum
porque já não há quem venha às solenidades. Todas as suas portas se encontram destruídas, gemem os seus sacerdotes, as suas virgens estão desoladas, e ela vive oprimida de amargura. Jerusalém, converte-te ao Senhor, teu Deus Tradução: José António Falcão
O crux ave
Avé, ó Cruz
O Crux ave, spes unica,
Avé, ó Cruz, esperança única,
hoc passionis tempore,
Neste tempo de Paixão,
auge piis iustitiam,
À gente piedosa aumenta a salvação
reisque dona veniam.
Aos culpados dá o perdão.
O bone Jesu
Ó Bom Jesus
O bone Jesu, ilumina oculos meos,
Ó Bom Jesus, ilumina os meus olhos,
ne unquam obdormiam in morte,
para que nunca adormeça na morte,
ne quando dicat inimicus meus:
não aconteça alguma vez dizer o meu inimigo:
prevalui adversus eum.
levei de vencida na luta. Tradução: Aires A. Nascimento
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Magnificat
Magnificat
Magnificat anima mea Dominum
A Minha alma glorifica o Senhor
Et exsultavit spiritus meus in Deo salvatore meo,
e o Meu espírito se alegra em Deus, meu
quia respexit humilitatem ancillae suae.
Salvador.
Ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes
Porque pôs os olhos na humildade da Sua serva:
generationes,
de hoje em diante Me chamarão bem-aventurada
quia fecit mihi magna, qui potens est, et
todas as gerações.
sanctum nomen eius,
O Todo-poderoso fez em mim maravilhas, Santo
et misericordia eius in progenies et progenies
é o Seu nome.
timentibus eum.
A Sua misericórdia se estende de geração em
Fecit potentiam in brachio suo, dispersit
geração sobre aqueles que O temem.
superbos mente cordis sui;
Manifestou o poder do Seu braço e dispersou os
deposuit potentes de sede et exaltavit humiles;
soberbos.
esurientes implevit bonis et divites dimisit
Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou
inanes.
os humildes.
Suscepit Israel puerum suum, recordatus
Aos famintos encheu de bens e aos ricos
misericordiae,
despediu de mãos vazias.
sicut locutus est ad patres nostros, Abraham et
Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua
semini eius in saecula
misericórdia,
Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto.
como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e
Sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in
à sua descendência para sempre.
sæcula sæculorum. Amen.
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Ámen. Tradução: José António Falcão
Panis angelicus
Pão dos anjos
Panis angelicus
Pão dos anjos
fit panis hominum;
torna-se pão dos homens;
Dat panis cœlicus
o pão do céu
figuris terminum:
põe termo às figurações:
O res mirabilis!
Coisa admirável!
Manducat Dominum
Come o Senhor
Pauper, servus et humilis.
o pobre, o servo e o que se humilha. Tradução: Aires A. Nascimento
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Capella Duriensis
Fundada em 2011, a Capella Duriensis é o e nse mb le residente na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa e inclui, na sua agenda, a preparação de jovens cantores portugueses para o nível profissional da p e rf o rmance musical. Cumpre uma agenda regular de ensaios, concertos e gravações ao longo de todo o ano, preparando repertórios, desde os mais antigos manuscritos de música medieval até à vanguarda coral dos dias de hoje. Nos primeiros anos de actividade, interpretou ca. 40 obras em actuações públicas, recebendo convites para o Festival de Música em Leiria, Cistermúsica – Festival de Música de Alcobaça, Festival de Música dos Açores e Festival de Música em São Roque (Lisboa). Foi ainda residente, durante duas semanas, nas catedrais de Wells e Bristol (um prémio do Instituto Camões). Mantém uma estreita relação com a RDP Antena 2, tendo gravado para a European Broadcasting Union vários concertos, difundidos em estações de referência, com destaque para a BBC Radio 3 e a Bayerischer Rundfunk.
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Jonathan Ayerst
Após os estudos na Escola da Catedral de Wells e na Royal Academy of Music com Nellie Akopian, Alesandre Kelly e Hamish Milne, ganhou vários prémios do Munster Trust, da Fundação Hattori e da English Speaking Union, bem como a prestigiada bolsa Carnwath Scholarship. Obteve um prémio no Concurso de Ettlingen, na Alemanha (1985), e a bolsa da Crysalis Foundation, em 1989, no Concurso Van Cliburn de 1989. Em 2000, foi nomeado como pianista principal do Remix Ensemble, tocando solos que incluíram O ise aux Ex o tiq ue s, de Olivier Messiaen, e um ciclo dedicado à música de câmara francesa. Paralelamente, deu vários recitais em Portugal, Espanha e Reino Unido, em salas como Wigmore Hall, Purcell Room (Londres), Museu Gulbenkian, Teatro Nacional de São Carlos, Teatro Nacional São João e Museu de Serralves. Gravou o repertório integral para violino e piano de Franz Liszt para a Hyperion. Foi organista principal na igreja de St. Benet Finch, em Londres, e realizou concertos de órgão na Alemanha, Reino Unido e em várias igrejas do Porto. Com um repertório verdadeiramente ecléctico, também inclui nos recitais composições suas, editadas pela Warwick Music. Tem dedicado muita atenção ao trabalho com jovens, efectuando seminários de música de câmara, piano e leitura à primeira vista na Escola Superior de Música do Porto. O seu trabalho com jovens cantores valeu-lhe um prémio da National Federation of Music Societies, em 1995. É professor de improvisação na Academia de Música de Espinho.
> Salva (pormenor). Trabalho português. Século XVIII (segundo quartel). Beja, Museu Episciopal.
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Concerto V
CASTRO VERDE
17 de Maio 21H30
THEATRUM SACRUM: OBRAS-PRIMAS DO BARROCO NAPOLITANO Cristofaro Caresana [1640-1709] Le tio ne se co nd a para soprano com violinos (Nápoles, 1685)
Pietro Marchitelli [1643-1729] So nata p ara d o s v io line s y co ntinuo e n so l me no r (Nápoles, ca. 1690)
Gaetano Veneziano [1656-1716] Jub e Do mine b e ne d ice re , motete para soprano e cordas (Nápoles, 1695)
Cristofaro Caresana Le tio ne te rza para soprano com violinos (Nápoles, 1686)
Gaetano Veneziano So nata a tre s e n so l maio r (Nápoles, ca. 1690) Le tio ne p rima para soprano e cordas (Nápoles, ca. 1695)
I Turchini Direcção musical Antonio Florio Soprano Valentina Varriale Primeiro violino Alessandro Ciccolini Segundo violino Marco Piantoni Violeta Rosario Di Meglio Violoncelo Rebeca Ferri Contrabaixo Giorgio Sanvito Órgão Patrizia Varone
< Cabeça-relicário de São Fabião. Escola aragonesa. Século XIV (inícios) Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde.
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CASTRO VERDE
Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro (Diário d a Re p úb lica n.º 280, de 30 de Novembro de 1993)
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
Terminada a “Reconquista” definitiva do Sul de Portugal, na primeira metade do século XIII, Castro Verde foi entregue à Ordem de Santiago, que aqui estabeleceu uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, situada numa colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores da vila. Teve ao seu serviço uma colegiada, presidida por um prior com as funções de pároco. Em 1573, após ter visitado a terra, D. Sebastião, o monarca visionário, mandou reerguer esse edifício, em lembrança de um facto decisivo para que Portugal se tornasse nação independente: a batalha de Ourique, travada nas elevações de São Pedro das Cabeças, a pouca distância de Castro Verde, em 25 de Julho de 1139 (festa litúrgica do apóstolo Santiago Maior), correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus Cristo, na véspera da peleja, ao nosso primeiro rei. O edifício actual, que ocupa aproximadamente o mesmo local dos anteriores, ficou a dever-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível ao significado patriótico e escatológico do “Milagre de Ourique”. Iniciados ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram sem delonga. A sua traça segue um modelo derivado da arquitectura chã da época da Restauração e que o mestre régio João Antunes [X 1712] aplicou na concepção de vários imóveis para a milícia espatária, como a igreja paroquial de Santiago, de Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a igreja matriz de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou a planta longitudinal composta, formada por uma nave rectangular em que se inscrevem duas torres sineiras quadradas e a capela-mor, mais estreita, ladeada por dependências. Na frontaria, com três corpos delimitados por pilastras e empena rectilínea, avulta o portal, sobrepujado por um frontão curvo quebrado, com a insígnia da Ordem. Custódia. Trabalho português. Ca. 1715. Castro Verde, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Inv.º n.º Our 1.>
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Se a estrutura arquitectónica do monumento acompanha a tradição seiscentista, a decoração interior corresponde já à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo uma notável visão integradora das artes da época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a A p arição d e Cristo a D. A f o nso He nriq ue s. Este conjunto foi levado a cabo, em 1728-1731, mediante uma parceria entre os pintores lisboetas António Pimenta Rolim e Manuel Pinto e os pintores bejenses Manuel e José Pereira Gavião – parceria que também se terá ocupado do revestimento mural de outros sectores. As paredes estão guarnecidas por painéis azulejares. No corpo da igreja, sobressaem os alusivos ao ciclo da batalha de Ourique e aos seus reflexos na história nacional, enquadrados por composições características das oficinas lisboetas de ca. 1730. Ao longo dos paramentos da capela-mor, destaca-se uma série evocativa da vida, paixão e milagres de Santiago, integrada numa amálgama de mísulas, molduras e outros elementos de arquitectura “fingida”, em obediência ao gosto de tro mp e -l’ œil vigente na época. José Meco atribuiu a feitura do conjunto ao pintor P.M.P., uma das principais figuras do ciclo dos “Grandes Mestres”. O recurso aos artistas de Lisboa evidencia-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas referentes à Monarquia e à própria Ordem de Santiago. Proclive ao enobrecimento da matriz de Castro Verde, D. João V conseguiu que lhe fosse concedida, pela Santa Sé, a dignidade de basílica menor, depois completada, v o x p o p uli, pelo título de real. Mas o soberano empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as quais sobressai a custódia de aparato executada, em Lisboa, ao redor de 1715. O Tesouro instalado em 2004 na antiga sacristia, por iniciativa do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, dá a conhecer este acervo, além de outras obras provenientes de várias igrejas do concelho. Cabe aqui um lugar especial à cabeça-relicário de São Fabião, peça de origem aragonesa, oferecida pela princesa D. Vataça a Panóias (e transferida, no século XVI, para Casével). Bibliografia fundamental J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus da A zule jaria Po rtug ue sa, V, A zule jaria e m Po rtug al no Sé culo X V III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; VÍTOR SERRÃO, Histó ria d a A rte e m Po rtug al. O Barro co , Lisboa, Editorial Presença, 2003; JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Te so uro d a Basílica Re al de No ssa Se nho ra da Co nce ição , Castro Verde, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004; LOURDES CIDRAES, A Trad ição Le nd ária d e A f o nso He nrique s e as Me mó rias do Re i Fundado r e m Castro V e rde , Castro Verde, Câmara Municipal de Castro Verde, 2008; FRANCISCO LAMEIRA & JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, Re táb ulo s na Dio ce se d e Be ja, 2.ª ed., Faro-Beja, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2013.
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Lições das Trevas do Barroco Napolitano
CRISTINA FERNANDES
No plano musical e artístico, o período barroco corresponde à “Idade de Ouro” de Nápoles, nessa época uma das principais capitais da Europa. Com uma situação geográfica e circunstâncias históricas propícias ao encontro de culturas, nela se cruzam influências árabes, italianas, gregas, espanholas e francesas, contribuindo para dar à sua música um carácter singular, pleno de cores e contrastes. Os conservatórios napolitanos eram procurados por alunos de toda a Europa, os coros e agrupamentos instrumentais das várias capelas e igrejas napolitanas, dirigidos por importantes compositores, rivalizavam entre si, e a música e os músicos napolitanos dominaram o panorama europeu nos séculos XVII e XVIII. Mas Nápoles constitui também um dos símbolos da fusão entre a música e o teatro, não só pelas ricas tradições dramáticas e operáticas, mas também pela dimensão cenográfica do próprio espaço urbano e do seu enquadramento natural. Esta combinação repercutiu-se numa tradição musical de excepcional vitalidade, que tem sido revelada por intérpretes e musicólogos ao longo das últimas décadas e que configura um quadro muito mais amplo do que o que emergia dos antigos compêndios e das obras generalistas dedicados à História da Música, os quais se limitavam a referir figuras como Alessandro Scarlatti ou Pergolesi. Durante a época em que era a capital aragonesa (1443-1501), Nápoles possuía a melhor capela musical de Itália e, no século XVI, foi palco de importantes experiências no campo da música instrumental, do teatro académico e do madrigal, com destaque para a v illane lla. No século XVII, impôs-se como grande centro no domínio da música religiosa (a cidade contava com 500 igrejas e 30 000 religiosos, numa população de 400 000 habitantes, apenas superada por Paris e Londres) e viu nascer os primeiros conservatórios europeus (Santa Maria di Loreto, San Onofrio a Capuana, Pietà dei Turchini e Poveri di Gesù Cristo) a partir de quatro orfanatos que se especializaram no ensino da música.
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Entre Quinhentos e Setecentos, a transmissão da arte da composição foi assegurada por uma cadeia ininterrupta de mestres e discípulos que incluiu personalidades como os irmãos Sabino, “Padre Raimo”, Giovanni Salvatore, Gaetano Veneziano, Cristofaro Caresana, Gaetano Greco, Francesco Fago e Francesco Provenzale. Depois da chegada de Roma de Alessandro Scarlatti, em 1684, destacaram-se, ao longo das décadas seguintes, as figuras de Leonardo Leo, Francesco Durante, Leonardo Vinci, Gaetano Latilla, Nicola Porpora, Niccolò Jommelli, Nicola Sabatino, Tomaso Traetta, Giovanni Paisiello e Domenico Cimarosa, entre outros. Capital do vice-reino espanhol em Itália entre 1505 e 1707, Nápoles tinha como instituição musical de topo a Capela Real, que empregava prestigiados compositores, cantores e instrumentistas, vários deles igualmente activos no âmbito de outras redes musicais da cidade, tanto ao nível da composição e da interpretação como do ensino. Como era habitual nas cortes do Antigo Regime, o calendário litúrgico e o cerimonial áulico estavam estreitamente interligados, e a actuação dos músicos ao serviço do vice-rei abrangia tanto as solenidades oficiais nas residências reais como as apresentações em igrejas e conventos de diversos pontos da cidade. Unindo as fortes tradições do Sul de Itália e a tradição espanhola, o período da Quaresma, e em especial a Semana Santa, era uma época alta em matéria de rituais religiosos, quer da liturgia oficial, quer de devoções populares, com reflexos numa ampla variedade de repertórios musicais. Cantores e instrumentistas da Capela Real seguiam o vice-rei ao longo de diversos itinerários devocionais integrados na estrita etiqueta de corte, incluindo procissões e cerimónias em locais como o Oratorio di San Giovanni dei Fiorentini e várias igrejas. Em Quinta-Feira Santa, o vice-rei procedia ao rito do LavaPés, contemplando 12 pobres que, depois, convidava a jantar no seu palácio. Além da Capela Real, estruturas musicais como a Capela do Arcebispo e conjuntos de cantores ligados a outras igrejas (v . g . , Annunziata, Gesù Nuovo e San Paolo Maggiore) e a um grande número de irmandades e confrarias participavam nas cerimónias da Semana Santa, integrando procissões monumentais revestidas de grande aparato cenográfico e contribuindo para um grande ritual colectivo que adquiria um forte pendor teatral e cruzava várias classes sociais. No âmbito da Semana Santa, o Ofício de Matinas, cantado durante as noites do Triduum Sacrum (Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado de Aleluia), revestia-se de especial significado, tendo dado origem a um repertório riquíssimo ao longo da História da Música. Era também conhecido como Ofício de Trevas (ou Te ne b ræ), uma vez que tinha inicialmente lugar de madrugada e previa o apagar, gradual e simbólico, das 15 velas de um candelabro triangular. Mais tarde, começou a antecipar-se para o final da
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tarde anterior, passando a realizar-se entre Quarta-Feira Santa e Sexta-Feira Santa, o que constituía também um meio de captar mais fiéis. Os viajantes estrangeiros elogiavam frequentemente a música associada à Semana Santa praticada em Nápoles no século XVII, como é o caso do francês Jean-Jacques Bouchard (Jo urnal du V o yag e au Ro yaume d e Nap le s), que terá assistido à interpretação de um Ofício de Trevas pelos músicos da Capela Real no palácio do vice-rei, em 1632. O programa do concerto de hoje centra-se em algumas das composições escritas para essa cerimónia nos finais de Seiscentos, com destaque para as Lições de Trevas (Te ne bræ) para soprano solista e conjunto instrumental, criadas por dois compositores que estiveram ao serviço da Capela Real de Nápoles e desempenharam um importante papel na vida musical da cidade: Gaetano Veneziano e Cristoforo Caresana. Nascido em Bisceglie (Puglia), Gaetano Veneziano [S 1665 – X 1716] estudou no Conservatorio de Santa Maria di Loreto, vindo mais tarde a leccionar na mesma instituição. Foi o discípulo favorito de Francesco Provenzale, o mais importante compositor napolitano do século XVII, tornando-se seu assistente e copista. Em 1704, ascendeu a mestre da Capela Real, mas acabou por ser afastado desta função, em 1707, na sequência da dominação austríaca. A sua produção, quase toda de natureza religiosa, sobreviveu, em forma manuscrita, na biblioteca do Oratorio dei Filippini, em Nápoles, tal como a do seu colega Cristoforo Caresana. Entre os vários géneros músico-litúrgicos que cultivou, destacam-se as Lições para os Nocturnos das Matinas da Semana Santa, várias delas para voz solista e instrumentos, diversas séries de Salmos e Motetes. Cristoforo Caresana [S ca. 1640 – X 1709] nasceu em Veneza, mas instalou-se em Nápoles a partir de 1658. No ano seguinte, tornou-se tenor da Capela Real e, de 1667 em diante, ocupou o lugar de organista da mesma instituição, exercendo este cargo até à morte. Foi ainda mestre do Conservatorio de San Onofrio a Capuana (1688-1690). Em 1699, sucedeu a Provenzale como Mestre de Capela do Tesouro de San Gennaro e leccionou noutros conservatórios e igrejas da cidade. Autor de oratórias e música sacra, distinguiu-se também através das suas peças didácticas: os Solfejos de Caresana permaneceram em uso durante muitos anos e foram objecto de reimpressão para o Conservatório de Paris em 1819. O programa inclui ainda a Sonata para dois violinos baixo contínuo, em Sol menor, de Pietro Marchitelli [S 1643 – X 1729]. Originário de Villa Santa Maria (perto de Chieti), desenvolveu a carreira em Nápoles, na qualidade de violinista e compositor. Estudou no Conservatorio de Santa Maria di Loreto e foi aluno de Carlo de Vicentiis, tendo-lhe sucedido no posto de violinista da Capela Real, em 1677. Entre 1693 e 1706, actuou também como violinista no Teatro de San Bartolomeo e, em 1707, pouco depois da
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chegada dos austríacos a Nápoles, foi nomeado governador e tesoureiro da Congregação dos Músicos do Palácio Real. O inventário dos seus bens mostra que tinha ligações pessoais com vários artistas e prestigiadas famílias nobres. Entre os alunos que formou, salientam-se Michele Mascitti e Giovanni Sabatino. As Sonatas de Marchitelli seguem o modelo estabelecido por Corelli no plano formal, mas distinguem-se pela inventividade dos fraseados, por vezes com métricas irregulares, e pelo hábil recurso ao estilo contrapontístico. No que diz respeito às obras vocais, as Lições de Trevas não eram peças isoladas, mas integravam-se numa estrutura cerimonial elaborada. Para cada um dos três Nocturnos que compõem o Ofício das Matinas, a liturgia prevê o canto de três Salmos, acompanhados pelas respectivas Antífonas e de três Lições, cada uma seguida, por sua vez, de um Responsório. As Lições do Primeiro Nocturno de cada dia são extraídas do texto das Lame ntaçõ e s do profeta Jeremias, uma imensa elegia sobre a destruição do Templo de Jerusalém. O poema é acróstico, ou seja, cada versículo começa por uma letra do alfabeto hebraico que serve, simultaneamente, de numeração e constitui um antigo processo mnemónico. A tradução latina da Bíblia manteve esta numeração por letras. A tradicional melodia gregoriana destinava um longo melisma a cada um desses caracteres, um processo frequentemente retomado pelos compositores que trataram o texto musicalmente. Cada estrofe começa, portanto, pelos caracteres alfa, beta, gama, delta, etc., aos quais se segue o texto em latim. Pela sua grandeza e potencial expressivo, o texto das Lame ntaçõ e s de Jeremias exerceu desde sempre um grande fascínio sobre os compositores, sobretudo a partir do século XV. Dufay, Arcadelt, Crequillon, La Rue, Sermisy, Morales, Victoria, Lassus, Palestrina, Byrd, Tallis e tantos outros construíram, a partir dele, esplêndidas obras polifónicas. Depois de 1600, após a generalização da se co nda p rattica e da monodia acompanhada pela Camerata Fiorentina, começam a aparecer lamentações monódicas, entre as quais se destacam os exemplos de Carissimi, Frescobaldi ou Stradella. No século XVII, em França, estabeleceu-se também uma rica tradição de Lições de Trevas, que contou com cultores como Michel Lambert, Charpentier, Couperin, Brossart, De Lalande ou Bernier. Vários compositores activos em Nápoles na época seiscentista e setecentista legaram-nos também tocantes versões musicais das Lições das Trevas para voz solista com acompanhamento de cordas e baixo contínuo, como Gaetano Veneziano e Cristoforo Caresana. São composições percorridas por uma intensa expressividade, umas vezes revelando um forte pendor introspectivo (de acordo com a atmosfera penitencial da ocasião), outras um carácter mais leve e optimista, até com recurso a influências da dança e da música pastoral, à semelhança do que sucede em algumas secções das obras
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de Veneziano. No entanto, este compositor soube também manipular a retórica musical em efeitos mais pungentes, por exemplo na descida cromática que acompanha a letra hebraica “Ghimel” na “Lectio I” para Quarta-Feira Santa. Passagens que se aproximam do stile re citativ o e texturas que recordam o stile antico contribuem também para enriquecer o discurso musical. Enquanto as Lamentações de Caresana são, em geral, mais concisas, as composições de Veneziano apresentam estruturas mais elaboradas e divididas em secções contrastantes, mas em ambos os casos é notória a inspiração melódica e a sua estreita relação com texto. Os instrumentos assumem também, pontualmente, um eloquente papel expressivo, como é o caso da linha concertante do baixo, normalmente atribuída ao violoncelo, em Jub e Do mine Be ne d ice re , a bênção introdutória das Matinas que Veneziano transformou num belo Motete.
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ALEPH
ALEPH
Ego vir videns paupertatem meam in virga
Eu sou o homem que sentiu a miséria
indignationis ejus.
sob a vara da ira do Senhor.
Me minavit, et adduxit in tenebris et non in
Ele me conduziu
lucem.
e me fez andar nas trevas e sem luz.
Tantum in me vertit et convertit manum suam
Contra mim volve e revolve
tota die.
a sua mão o dia inteiro.
BETH
BETH
Vetustam fecit pellem meam, et carnem meam
Consumiu a minha carne e a minha pele,
contrivit ossa mea.
quebrou-me os ossos;
Ædificavit in gyro meo, et circumdedit me felle
ergue contra mim
et labore.
um cerco de fel e amargura.
In tenebrosis collocavit me, quasi mortuos
Fez-me habitar nas trevas,
sempiternos.
como os mortos de há muito tempo.
GHIMEL
GUIMEL
Circumædificavit adversum me, ut non egrediar:
Cercou-me com um muro para eu não poder sair,
adgravavit compedem meam.
carregou-me de pesados grilhões.
Sed et, cum clamavero et rogavero, exclusit
Por mais que eu grite e implore,
orationem meam.
Ele abafa a minha prece.
Conclusit vias meas lapidibus quadris semitas
Vedou-me os caminhos com pedras de cantaria,
meas subvertit.
confundiu as minhas veredas.
Jerusalem, Jerusalem, convertere ad Dominum
Jerusalém, Jerusalém, converte-te ao Senhor, teu
Deum tuum.
Deus
Incipit Oratio Geremiæ Prophetæ.
Começam aqui as Lamentações do profeta
Recordare, Domine, quid acciderit nobis; intuere
Jeremias.
et respice opprobrium nostrum.
Lembrai-Vos, Senhor, do que nos aconteceu,
Hæreditas nostra versa est ad alienos, domus
olhai e vede a nossa humilhação.
nostræ ad extraneos.
A nossa herança passou para as mãos de
Pupilli facti sumus absque patre, matres nostræ
estranhos,
quasi viduæ.
as nossas casas foram entregues a
Aquam nostram pecunia bibimus, ligna nostra
desconhecidos.
pretio comparavimus.
Ficámos órfãos de pai,
Iugum in cervicibus nostris minamur; lassis non
e nossas mães são como viúvas.
datur requies.
A água que bebemos custa-nos dinheiro,
Ægypto dedimus manum et Assyriis, ut
temos de pagar a nossa lenha.
saturaremur pane.
Levando o jugo ao pescoço, somos perseguidos;
Patres nostri peccaverunt et non sunt, et nos
estamos esgotados e não temos descanso.
iniquitates eorum portavimus.
Estendemos a mão ao Egipto e à Assíria,
Servi dominante sunt nostri; non fuit qui
para sermos saciados de pão.
redimerett de manu eorum.
Os nossos pais pecaram, deixaram de existir,
In animabus nostris afferebamus panem nobis, a
e nós suportamos o peso das suas faltas.
facie gladii in deserto.
Somos governados por escravos,
Pellis nostra quasi clibanus exusta est, a facie
ninguém nos arranca às suas mãos.
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tempestatum famis.
Com risco da nossa vida procuramos o pão,
Mulieres in Sion humiliaverunt, et virgines in
enfrentando a espada do deserto.
civitatibus Juda.
A nossa pele abrasa como um forno,
Jerusalem, Jerusalem, convertere ad Dominum
sob os ardores da fome.
Deum tuum.
Violentaram mulheres em Sião e jovens nas cidades de Judá. Jerusalém, Jerusalém, converte-te ao Senhor, teu Deus.
Jube Domine benedicere.
Senhor, dá-me a Tua bênção.
Consurge induere fortitudine tua, Sion. Induere
Levanta-te, levanta-te, reveste-te da tua
vestimentis gloriæ tuæ, Jerusalem, civitas sancti.
fortaleza, Sião!
Quia non adiciet ultra ut pertranseat per te
Reveste-te dos teus trajes de gala, Jerusalém,
incircumcisus et inmundus.
cidade santa,
Excutere de pulvere consurge sede Jerusalem
porque já não entrarão mais dentro de ti nem
solve vincula colli tui captiva filia Sion.
incircuncisos nem impuros.
Quia hæc dicit Dominus gratis venundati estis et
Sacode a poeira que te cobre, levanta-te,
sine argento redimemini.
Jerusalém cativa!
Quia hæc dicit Dominus Deus in Ægyptum
Desata as cadeias do teu pescoço, Sião cativa!
descendit populus meus in principio ut colonus
Eis o que diz o Senhor:
esset ibi. Et Assur absque ulla causa calumniatus
Vós fostes vendidos por nada,
est eum.
sereis resgatados sem preço.
Et nunc quid mihi est hic dicit Dominus quoniam
Eis o que diz o Senhor:
ablatus est populus meus gratis. Dominatores
O Meu povo desceu outrora ao Egipto,
ejus inique agunt dicit Dominus et jugiter tota
para ali habitar como peregrino,
diæ: nomen meum blasphematur.
depois a Assíria oprimiu-o sem motivo.
Propter hoc sciet populus meus nomen meum in
E agora que faço eu aqui? – diz o Senhor.
die illa. Quia ego ipse qui loquebar ecce adsum.
Levam o Meu povo gratuitamente,
Tu autem Domine miserere nobis.
Os seus opressores soltam brados de triunfo – diz o Senhor, – e todo o dia, sem cessar, ultrajam o Meu nome. Por isso o Meu povo conhecerá o Meu nome; nesse dia compreenderá que sou Eu quem diz: “Eis-me aqui!” Tu, Senhor, tem piedade de nós.
Incipit Lamentatio Geremiæ Prophetæ.
Começam aqui as Lamentações do Profeta
ALEPH
Jeremias.
Quomodo sedet sola civitas plena populo: facta
ALEPH
est quasi vidua a domina Gentium; princeps
Como está solitária
provinciarum facta est sub tributo.
a cidade outrora tão populosa!
BETH
Tornou-se como uma viúva
Plorans plorat in nocte, et lacrimæ eius in
a que era grande entre as nações;
maxillis eius; non est qui consoletur eam ex
a princesa entre as províncias
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omnibus caris ejus: omnes amici ejus spreverunt
ficou sujeita ao tributo.
eam, et facti sunt ei inimici.
BETH
GHIMEL
Passa as noites a chorar,
Migravit Judas prae afflictionem, et
e as lágrimas correm-lhe pelas faces.
multitudinem servitutis: habitat inter gentes nec
Não há ninguém que a console
invenit requiem: omnes persecutores ejus
entre todos os que a amavam;
apprehenderunt eam inter angustias.
todos os seus amigos a traíram,
DALETH
tornaram-se seus inimigos.
Viæ Sion lugent, eo quod non sint qui veniant ad
GUIMEL
sollemnitatem; omnes portæ ejus destructæ:
Judá partiu para o exílio,
sacerdotes eius gementes: virgines eius
sob o peso da miséria e de uma dura escravidão;
squalidæ, et ipsa oppressa amaritudine.
habita no meio das nações,
HE
sem encontrar descanso.
Facti sunt hostes eius in capite, inimici ejus
Todos os seus perseguidores se apoderaram dela
locupletari sunt: quia Dominus locutus est super
no meio das suas angústias.
eam propter multitudinem iniquitatum eius;
DALETH
parvuli eius ducti sunt in captivitatem ante
Os caminhos de Sião estão de luto,
faciem tribulantis.
porque já não há quem venha às solenidades.
Jerusalem, Jerusalem, convertere ad Dominum
Todas as suas portas se encontram destruídas,
Deum tuum.
gemem os seus sacerdotes, as suas virgens estão desoladas, e ela vive oprimida de amargura. HE Os seus opressores dominam, os seus inimigos prosperam; foi o Senhor que a afligiu por causa dos seus muitos crimes. Os seus filhinhos foram levados cativos diante do opressor. Jerusalém, Jerusalém, converte-te ao Senhor, teu Deus. Tradução: José António Falcão
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I Turchini di Antonio Florio
O e nse mb le I Turchini foi fundado, em 1987, por Antonio Florio, sob o nome de Cappella della Pietà de’ Turchini, optando, em 2010, pela actual denominação. É formado por cantores e instrumentistas especializados na interpretação da música napolitana dos séculos XVII e XVIII, valorizando a descoberta de compositores desconhecidos. A originalidade dos programas e a adesão a uma estrita prática do desempenho barroco faz de I Turchini uma das vanguardas da cena musical italiana e europeia. Tem sido convidado a actuar em palcos de renome, como a Accademia di Santa Cecilia, de Roma; o Teatro San Carlo, de Nápoles; o Palau de la Musica, de Barcelona; a Berlin Philharmonie; a Vienna Konzerthaus; o Teatro Lope de Vega, de Sevilha; o Teatro Colón, de Buenos Aires; La Monnaie, de Bruxelas. Tem, igualmente, participado nos principais festivais europeus: Monteverdi Festival, de Cremona; Versalhes; Beaune; Nancy; Nantes; Metz; Caen; Ambronay; Festival de Otoño de Madrid; Telavive; Barcelona; Potsdam; Cracóvia; BBC; Cité de la Musique; Fondation Royamount; Festival Mozart (Coruña). As suas produções recentes incluem Il Disp e rato Ino ce nte , de Francesco Boerio; Did o and Æne as e The Fairy Q ue e n, de Henry Purcell; Fe sta Nap o litana; La Statira, de Francesco Cavalli; M o t e zuma, de Francesco de Majo; La Part e no p e , de Leonardo Vinci; La Fint a Giard inie ra, de Pasquale Anfossi; L’ O ttav ia Re stituita al Tro no , de Domenico Scarlatti; La Salustia, de Giovanni Battista Pergolesi; A ci, Galate a e Po lif e mo , de George Friedrihc Händel. I Turchini gravou para a Rádio França, a BBC e várias rádios espanholas, alemãs, austríacas e belgas. Em 1998, destacou-se num documentário realizado pela televisão belga e num filme inteiramente dedicado à ópera b uf f a para a companhia franco-alemã ARTE (prémio da UNESCO).
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Valentina Varriale
Graduada pelo Conservatorio di San Pietro a Majella, em Nápoles, foi uma aluna brilhante. Teve maste rclasse s no estilo barroco com Roberta Invernizzi e, em canto lírico, com Mirella Freni. Frequentou igualmente a academia de alta especialização, com Lella Cuberli e June de Anderson. Iniciou cedo a carreira a solo, tendo participado, no ano de 2001, em duas produções do Autunno Musicale do Teatro di San Carlo, de Nápoles. Desempenhou o papel de Statira, Princip e ssa d i Pe rsia, de Cavalli, na primeira produção da Pietà de’ Turchini, sob a direcção de Antonio Florio. Colaborou também com Rinaldo Alessandrin durante a série de concertos de Ambronay. Em 2004, venceu a primeira edição do Concurso Internacional de Música Barroca Francesco Provenzale e cantou o papel de Armindo em Parte no p e , de Handel (Festival de Beaune e La Cité de la Musique, de Paris). Em 2005, colaborou com os Sonatori de Gioiosa Marca em Stab at Mate r, de Pergolesi, que voltou a interpretar, sob a direcção de Ottavio Dantone, no Festival Pergolesi-Spontini de 2006. Com a Cappella della Pietà de’ Turchini apresentou La Be tulia Lib e rata, de Mozart, nos festivais em Beaune e Santiago de Compostela. Foi Barbarina em Le No zze d i Fig aro , de Mozart, no Théâtre des Champs-Élysées; Rosilda, em O ttav ia Re stituita al Tro no , de Scarlatti; Zeza, em A lid o ro , de Leo, no Teatro Valli, em Reggio Emilia, e no Teatro Mercadante, em Nápoles; Albina, em Salustia, de Pergolesi, no Festival de Montpellier; Armindo, em Parte no p e , de Handel, apresentada de novo em Ferrara e Modena. Colheu, nestas ocasiões, o entusiasmo da crítica e do público. Trabalhou com Jordi Savall – mormente nos projectos de L’ O rf e o e V e sp ri d e lla Be ata V e rg ine , de Monteverdi – e com Peter Kopp, participando em vários festivais europeus (Edimburgo, Salzburgo,
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Dresden, etc.) e nacionais (Jesi Festival, Festival Monteverdi Cremona, Stagione dell’ Associazione Alessandro Scarlatti di Napoli, MITO, etc.). É colaboradora habitual de I Turchini. Venceu diversos certames líricos, entre os quais os primeiros prémios do Concurso Benvenuto Franci, de Pienza (2010), do Concurso Vincenzo Bellini, de Caltanissetta (2011), e da Puccini International Competition, de Torre del Lago (2012). Tem realizado gravações para etiquetas como Eloquentia, Glossa, Naive, Stradivariu, Brillant Classic e Berlin Classic.
146 CASTRO VERDE . BASÍLICA REAL DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO
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Concerto VI
SINES
7 de Junho 21H30
ESPAÇO, RITMO, TEMPO: FELDMAN VERSUS BACH Morton Feldman [1926-1987] THE V IO LA IN M Y LIFE I para violeta e ensemble
Johann Sebastian Bach [1685-1750] Je su, me ine Fre ud e BMW227 moteto para coro
Morton Feldman THE V IO LA IN M Y LIFE III para violeta e piano
Johann Sebastian Bach Se i Lo b und Pre is mit Ehre n BMW231 moteto para coro
Morton Feldman THE V IO LA IN M Y LIFE II para violeta e e nse mb le
Johann Sebastian Bach Lo b e t d e n He rrn, alle He id e n BMW230 moteto para coro
Coro Terras sem Sombra Direcção artística Filipa Palhares Violeta Jonathan Brown Sond’Ar-te Electric Ensemble
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SINES
Igreja Matriz do Santíssimo Salvador
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO & RICARDO PEREIRA
Implantada no alto de uma falésia, em posição dominante sobre a baía de Sines, a igreja matriz de São (Santíssimo) Salvador data de 1730, tendo substituído uma igreja gótica, de três naves separadas por arcos de cantaria e capelas laterais profundas. Esta, por seu turno, foi erguida no local de uma basílica visigótica do século VI, de que chegou aos nossos dias um notável conjunto de cantarias lavradas, extraídas na maior parte das muralhas do vizinho castelo, mas de que se conserva ainda um fragmento de friso no actual baptistério, além dos vestígios encastrados em diversos outros pontos do edifício. A actual estrutura caracteriza-se pela clareza e pela austeridade, aliadas a uma excepcional solidez, revelando claras analogias com os modelos mais eruditos da arquitectura da Ordem de Santiago, em particular os concebidos por João Antunes, nomeado arquitecto das ordens militares em 1697. Daí resulta um “ar de família” que a aproxima das igrejas de Santiago, de Alcácer do Sal, e de Nossa Senhora da Conceição, de Castro Verde, imóveis de que repete muitos pormenores, como as torres sineiras ou os portais laterais, numa composição adaptada à escala mais reduzida. Quanto ao interior, destaca-se o revestimento de azulejos da capela-mor, uma sofisticada e complexa composição a azul e branco, que integra os vãos de janelas, portas e nichos, enquadrados por molduras de gosto rococó, e foi realizada, em torno de 1750, por uma das melhores oficinas de Lisboa. O programa iconográfico centra-se na evocação de Cristo, orago da paróquia, apresentando do lado do Evangelho, ao centro, a Transf i g uração , e do outro São J o ão Bap tis ta Pro s trad o ante o M e nino J e s us co mo Salv ad o r d o M und o . Estes painéis são flanqueados pelas imagens dos Q uatro Ev an g e listas, enquanto num registo inferior sobressaem medalhões de temática eucarística.
Nossa Senhora da Assunção. Escola portuguesa. Século XVIII (meados). Sines, igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção. >
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O ciclo dos Evangelistas aparece reiterado em quatro notáveis pinturas a óleo sobre tela, já do tempo de D. José i. Merece igualmente referência o painel da Última Ce ia, de factura finisseiscentista, que pertenceu ao desaparecido retábulo do altar principal. No espaço da nave abrem-se seis capelas laterais com retábulos de talha, tendo outrora cada uma a sua confraria ou irmandade próprias. Juntamente com a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a mais influente e a mais rica, responsável pela capela-mor, estas instituições rivalizavam entre si no esplendor que imprimiam às respectivas festas, na sumptuosidade das decorações, no número de velas, na eloquência dos pregadores e, ainda, no brilho da música que acompanhava a liturgia. Em paralelo ao culto mais institucional, fortemente regrado pela Ordem de Santiago e garantido por um prior e três beneficiados, todos freires da Ordem, floresciam interessantes manifestações da religiosidade popular. Algumas desapareceram por imposição da hierarquia, como a corrida de touros nas festas da ermida de São Marcos, em que um boi era conduzido ao altar, durante a missa (25 de Abril). Outras foram-se simplesmente perdendo com o correr dos tempos, como a tradição de os pescadores virem à igreja matriz cantar a Santo Amaro, no dia da sua festa (15 de Janeiro), costume de que não subsiste qualquer registo para além de memórias vagas de pessoas mais antigas. Francisco Luís Lopes descreveu pormenorizadamente, nos meados do século XIX, a atmosfera destas celebrações tradicionais e o papel de relevo que a música nelas assumia, desde a presença dos tocadores galegos que vinham de Lisboa em Agosto, com tambor e gaita-de-foles, para acompanhar a recolha das esmolas destinadas a Nossa Senhora das Salas, até às ruidosas festas de São João (24 de Junho) e São Pedro (29 de Junho), nas quais se cantava e tocava ao redor dos mastros ou em turmas pelas ruas.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
FRANCISCO LUÍS LOPES, Bre v e No tícia d e Sine s, Patria d e V asco d a Gama, Lisboa, Typographia do Panorama, 1850 [ed. fac-simil., Sines, Câmara Municipal de Sines, 1985]; ARNALDO SOLEDADE, Sine s, Te rra d e V asco d a Gama, Setúbal, Junta Distrital de Setúbal, 1973 (4.ª ed., Sines, Câmara Municipal de Sines, 1999); JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO, M e mó ria Paro q uial d o Co nce lho d e Sine s e m 1 758, Santiago do Cacém, Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 1987; ANTÓNIO MARTINS QUARESMA, “Sines Medieval e Moderna (Séculos XIV-XVIII)”, em SANDRA PATRÍCIO (dir. de), O Co nce lho d e Sine s. Da Fund ação à Ép o ca M o d e rna, Sines, Câmara Municipal de Sines, Arquivo Municipal Arnaldo Soledade, [s.d.].
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Do Sentir ao Ser
AFONSO MIRANDA
J. S. Bach: Ciência e Devoção “Sem Bach, a teologia seria desprovida de objecto, a Criação fictícia, o nada definitivo. Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus.” E. M. CIORAN
O legado monumental de Johann Sebastian Bach [S Eisenach, 1685 – X Leipzig, 1750] representa, simultaneamente, o apogeu e a síntese do período barroco. A sua obra tem uma dimensão enciclopédica e científica e resulta num compêndio de práticas musicais que abrangem e sintetizam os 150 anos de vida musical que constituem este mesmo período. À excepção da ópera, todos os géneros dessa época proteica foram por ele abordados com insuperável mestria. O seu engenho e competência, bem como a inteligência e a erudição musicais, expressos no domínio das técnicas contrapontísticas, são tanto mais notáveis se pensarmos que a sua instrução musical se realizou num modesto âmbito caseiro. Ao contrário de um ilustre contemporâneo, Georg Friedrich Handel, músico viajado e cosmopolita, Bach nunca saiu da Alemanha e aprendeu o ofício em família, com o pai e com o irmão, e, sobretudo, sozinho, estudando e copiando avidamente todas as partituras a que tinha acesso, apropriando-se e assimilando, deste modo, toda a variedade de estilos nacionais – italiano, francês e alemão – que deram origem ao seu próprio estilo, coerente e cosmopolita. Apesar de o seu génio e erudição serem reconhecidos no meio musical, o seu trabalho era, à época, considerado algo extravagante e antiquado, e, em geral, foi recebido com desinteresse pelos contemporâneos. A sua vida decorreu nesse período de transição em que a sensibilidade ganhou terreno em relação à razão e o gosto galante clamou por simplicidade, sensualidade e inovação. À medida que o Barroco se diluiu nesta nova sensibilidade, Bach, em sentido contrário, mergulhou progressivamente nas formas do passado e, penetrando na essência da suprema ciência do contraponto, levou a cabo,
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na última década da vida, uma série de composições nas quais é manifesta uma dimensão especulativa e sistemática. Desse legado fazem parte obras como O Crav o b e m Te mp e rad o , as V ariaçõ e s Go ld b e rg , a O f e re nd a M usical e A A rte d a Fug a. Esta série de obras, às quais poderíamos acrescentar tantas outras, são inspiradas por considerações pedagógicas, por um zelo científico e por uma vontade de sistematização do saber que é tão característica do seu tempo. Estamos na época das grandes construções racionalistas. Pense-se, por exemplo, nos sistemas de Leibniz ou Newton. Além disso, há que ter em conta que o conceito de música como mathe sis, regida por fundamentos matemáticos, e a concepção do labor compositivo como equivalente a uma actividade científica eram ideias comuns naquele tempo. Saliente-se que não devemos olhar para a obra de Bach segundo os critérios da estética moderna, que se desenhará somente a partir do final do século XVIII. Conceitos como originalidade, expressão subjectiva, inovação e até o conceito de obra de arte não existiam ainda, pelo menos na acepção romântica que ainda vigora. Temporalmente, ele encontra-se nesse limiar entre o antigo e o moderno. A sua arte tem ainda vestígios da ars medieval, no sentido de ofício artesanal e simultaneamente de ciência. A música é concebida como uma matemática sensível, dotada da capacidade de representar os afectos e as emoções. A partir do período barroco, com o advento da ópera e da teatralidade, e o progressivo desvio da música do domínio do sagrado para o do profano, assiste-se a uma passagem gradual de uma simbólica do número para uma simbólica do sensível. Ao virar-se para as velhas formas polifónicas, Bach inscreveu-se numa tradição em que arte é concebida como co sa me ntale , como equivalente da ciência, e, neste sentido, a perfeição da obra advém da sua adequação às regras estabelecidas, e a beleza surge como equivalente da verdade. Mas se, nas suas obras especulativas, o compositor foi movido por considerações científicas, ou seja, mais pela busca da verdade do que pelo prazer dos sentidos, é necessário frisar que a sua música consegue, como nenhuma outra, aliar à poderosa racionalidade das construções polifónicas um forte sentido poético e expressivo. Não é, portanto, a ideia de originalidade que está por detrás do labor sistemático que Bach demonstrou em tantas das suas obras. É antes a inv e ntio , um princípio da retórica que, mais do que invenção, significa a capacidade de desenvolver e explorar determinado tema, descobrir – no sentido de desvelar, trazer à luz – as propriedades e as potencialidades que em cada coisa jazem ocultas. Esse trabalho de profundidade, de busca de perfeição e acabamento, não é exclusivo das obras de pendor mais abstracto realizadas no final da sua vida, mas antes uma característica que abrange toda a sua produção, desde a música instrumental, composta para deleite e recreação do espírito, à música sacra, composta para integrar o culto religioso.
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Apesar da propensão racionalista, a música de Bach é indissociável do universo espiritual e da vivência religiosa do autor. Homem de profundas convicções luteranas, faz coexistir na sua obra a demanda científica com os mistérios inefáveis e místicos da fé. Dir-se-ia que a própria ideia de perfeição que orienta o seu trabalho se inscreve numa matriz religiosa. Enquanto luterano, viu a música como uma dádiva de Deus e buscou na perfeição da sua arte um espelho da harmonia e da perfeição divina. O objectivo último da sua ciência musical será honrar a Deus, como, aliás, comprova a divisa So li De o Glo ria (glória só a Deus) que inscreveu frequentemente no final das partituras, religiosas ou não. A música sacra ocupa um lugar central na obra de Bach. Em várias fases da sua carreira, ocupou cargos ligados à igreja, os quais o obrigavam a compor música para o serviço litúrgico, sobretudo música vocal ou peças para órgão. Após os lugares que ocupou em Weimar (1708-1717), como organista e músico de câmara, e na corte de Köthen (1717-1723), como mestre de capela, chegou a Leipzig, em 1723, para desempenhar o cargo de Kanto r da Escola e Igreja de São Tomé. Este prestigiado posto, que acumulou com o de director musical do município, tornou-o responsável pela organização da vida musical da cidade, cabendo-lhe fornecer música para as duas igrejas principais e formar alunos músicos. Apesar de já ter experiência na composição de música vocal sacra, em particular durante a época de Weimar, será neste período de Leipzig que esse género florescerá em toda a sua riqueza e diversidade. É inevitável mencionar aqui esse co rp us nuclear da sua produção sacra que são as cantatas de igreja. Fazia parte das funções do Kanto r compor semanalmente uma nova cantata para ser interpretada aos domingos durante o serviço religioso. Bach terá composto cinco ciclos anuais completos, segundo o calendário litúrgico, mas só três chegaram até nós, isto é, cerca de 200 cantatas, a grande maioria das quais composta nos primeiros anos de Leipzig. Pelo número, pela importância artística, pelo poder expressivo, constituem um testemunho privilegiado do engenho musical e da profundidade espiritual do compositor. Se, pela natureza funcional litúrgica, cumprem um mero papel de música corrente, dum ponto de vista pragmático servem como um laboratório de ensaio e experimentação que permitirá ao compositor evoluir e aperfeiçoar-se. Será a partir da experiência e do domínio técnico proporcionados pelas cantatas que Bach atingirá os cumes da sua arte devocional com as monumentais Paix ão se g und o São Jo ão (1724), Paix ão se g und o São M ate us (1729) e a grande M issa e m Si M e no r (1740), obras de envergadura excepcional que permanecem até hoje exemplos inelutáveis da arte, do saber e da fé humana. Aqui, tal como na restante produção vocal sacra, a abordagem musical dos mistérios e da grande narrativa cristã está impregnada de uma espiritualidade pietista, reflectindo
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uma visão muito centrada na paixão, na morte e na ressurreição. Dir-se-ia que há uma forte consciência teológica que se manifesta nos diversos elementos da escrita musical como a estrutura, o estilo ou o tratamento dos textos. Por detrás do rigor polifónico, a música incorpora uma teia de elementos semânticos e simbólicos, explícitos ou codificados, que se estendem a todos os componentes musicais, da harmonia à instrumentação, passando pela escolha das tonalidades, dos ritmos, dos compassos e das melodias. Se é certo que a utilização de madrigalismos, de figuras de retórica ou de simbologia numérica constitui um fenómeno característico do período barroco, em Bach assume uma significação verdadeiramente teológica. Dentro de tão vasta produção, o pequeno grupo de seis motetos (BWV 225-230) constitui um legado discreto, sobretudo quando comparado com o das cantatas. Mas, apesar do seu número reduzido, estas obras constituem, do ponto de vista artístico, exemplos marcantes e insuperáveis no respectivo género. À época da sua composição, o moteto era já considerado como um exemplo de escrita e estilo arcaicos. Considerado o mais antigo e venerável género de composição vocal polifónica, cuja história e contínua evolução remontam ao século XII, foi, desde o final do século XVII, perdendo gradualmente importância dentro da liturgia luterana, em favor da cantata, género mais apelativo e que, ao contrário do outro, incluía solistas e partes instrumentais independentes. Na verdade, o moteto continuou a ser cantado, mas foi remetido para um modesto lugar, no início do serviço religioso, e, para preencher essa função, Bach recorreu a peças de compositores mais antigos. Os seus motetos, pelo contrário, revestem-se de um carácter excepcional e foram compostos para ocasiões especiais, sobretudo cerimónias fúnebres de altas personalidades de Leipzig. Apesar de se manterem fiéis à tradição germânica, estas peças revelam um nível de sofisticação musical que invalida qualquer comparação possível com o género tradicional. Bach alargou significativamente o conceito de moteto e renovou-o, aplicando-lhe técnicas tomadas de outros géneros musicais. Esse espírito de síntese entre o antigo e o moderno, essa fusão de formas e géneros foram, aliás, traços fortes de toda a sua obra. Os três motetos que aqui nos ocupam são muitos diferentes entre si, quer pela estrutura formal, quer pela dimensão. Esta diferença é, em grande parte, resultante da escolha dos textos. Nisto, Bach seguiu a tradição e recorreu aos textos da Bíblia em vernáculo ou usou a poesia religiosa dos corais luteranos. Saliente-se que estes hinos corais representam o pilar central de toda a música litúrgica protestante, e Bach foi um mestre na utilização, harmonização e variação dessas melodias. Todos os seus motetos fazem uso dos corais, exceptuando o BWV 230, que utiliza o Salmo 117, na tradução de Lutero.
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O moteto a 5 vozes BWV 227, Je sus, me ine Fre ud e (“Jesus, minha alegria”), oferece um exemplo extraordinário de arquitectura musical. De uma dimensão invulgar e de um perfeito equilíbrio, este moteto fúnebre em mi menor está construído a partir da alternância entre os versos do coral de J. Franck e os versículos da Epísto la ao s Ro mano s de São Paulo. As onze secções formam uma construção perfeitamente simétrica que, segundo o sistema simbólico de Bach, sugere uma disposição em cruz. No centro da estrutura (n.º 6) impera uma fuga a 5 vozes, na qual se canta a vitória do espírito sobre a carne. O coral inicial é musicalmente idêntico ao coral final (1 = 11), e os dois motetes versiculares a cinco vozes, n.os 2 e 10, são semelhantes entre si (2 = 10). Por sua vez, os n.os 4 e 8 correspondem-se pela utilização comum da escrita a 3 vozes. Note-se ainda que há uma intenção sistemática na utilização de diversas técnicas de escrita e no modo como a melodia coral vai sendo variada e harmonizada. Há mesmo quem tenha chamado a esta obra-prima “as Variações Goldberg do moteto”. O moteto a 4 vozes BWV 230, Lo b e t d e n He rrn alle He id e n (“Louvai o Senhor, todas as nações”), é, como vimos, baseado no Salmo 117, ao qual o compositor juntou um A le luia. Este constitui o único moteto que tem uma linha de baixo contínuo independente da linha vocal grave. Está escrito no estilo antigo e articula-se em três partes: a primeira secção é uma fuga dupla, a segunda privilegia uma escrita mais homofónica, e a última é uma dança festiva sobre a palavra A lle luja. Esta composição aborda um tema recorrente na obra de Bach: a morte como libertação dos sofrimentos e das penas da vida. O moteto a 4 vozes BWV 231, Se i Lo b und Pre is mit Ehre n (“Louvor, honra e glória sejam prestados”), tem sido descartado pelos investigadores como uma obra de autenticidade duvidosa. É certo que não pertence ao conjunto dos seis motetos (BWV 225-230) designados como tal e cuja autenticidade está comprovada. Na verdade, Bach escreveu mais motetos, mas designou-os de outro modo, como, aliás, era usal na época. Além disso, há que ter em conta que muitas das cantatas contêm motetos ou fazem uso da sua técnica de escrita e, de facto, vários comentadores consideraram este moteto um andamento de uma cantata perdida. Seja como for, está escrito no estilo antigo e articula-se num só bloco.
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Feldman: A Escuta do Silêncio “Quando a música era rara, a sua convocação era perturbadora, e a sua sedução vertiginosa. Quando a convocação é incessante, a música torna-se repugnante e é o silêncio que vem chamar e passa a ser solene. O silêncio tornou-se a vertigem moderna.” PASCAL QUIGNARD
O compositor nova-iorquino Morton Feldman [S 1926 – X 1987] é uma das figuras mais singulares da música norte-americana da segunda metade do século XX. Personalidade inconformista e irreverente, espírito heterodoxo e independente, Feldman operou sempre à margem das correntes estéticas dominantes, recusando todos os sistemas e todas as ideologias, e, obedecendo apenas à sua intuição artística, criou um mundo sonoro próprio, de rara delicadeza e fragilidade, que desafia as categorias tradicionais da escuta musical. Há qualquer coisa de místico, de profundamente espiritual nessa música rarefeita, lenta, de sonoridades débeis, uma música balbuciante e tranquila, em que o som se refugia no silêncio, liberto de toda a intenção discursiva ou retórica. Começou, nos anos 50, a compor pequenas peças de música aleatória e, nesse domínio, foi pioneiro da notação gráfica, mas gradualmente foi regressando à notação tradicional e a grupos instrumentais mais ricos e diversos, acabando, já na década de 80, a compor obras de vastas durações, como a peça Fo r Philip Gusto n, com mais de quatro horas de duração, ou String Q uarte t II, que ultrapassa mesmo as cinco horas. Paralelamente à composição, escreveu inúmeros ensaios, nos quais se mostrou um defensor incondicional da liberdade criativa e uma voz crítica – por vezes até mordaz – em relação à arrogância teórica e intelectual das vanguardas europeias. Ao contrário de Boulez e Stockhausen, os principais representantes da corrente serial, não manifestou interesse em saber como a música é feita, mas sim como soa. O som está no centro do seu pensamento musical. “O som é o mais importante para mim; sinto que estou subordinado a ele; sinto que escuto os meus sons e que faço o que eles me pedem”. Para ele, o som tem um valor independente, tem vida própria, é a matéria essencial e nunca um elemento secundário no processo compositivo. Numa postura absolutamente oposta ao pensamento estruturalista de Darmstadt, o compositor americano mostrou-se indiferente aos aspectos construtivos da música e recusou qualquer sistema composicional. A sua poética musical baseia-se unicamente no instinto e na percepção. Como ele próprio escreveu, “a nota certa, no lugar certo, no momento certo”. As suas composições consistem nessa escuta concentradíssima do som e nas
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infinitas facetas do seu modo de ser sensível. Um dos acontecimentos decisivos na vida artística de Morton Feldman foi o encontro com John Cage em 1950. Os dois músicos partilharam a mesma determinação em se libertarem do imperialismo artístico europeu e procuraram uma alternativa à retórica dogmática da estética serial. Quiseram libertar o som e, assim, libertar a música do espartilho estruturalista e da obsessão do controlo. A música aleatória, um método inovador que introduzia o acaso e a indeterminação como procedimentos fundamentais, surgiu como uma resposta ao hiperdeterminismo da música serial. A propósito da peça Pro je ctio ns, o compositor afirma: “o meu desejo não é «compor» mas projectar os sons no tempo, livres da retórica composicional”. Apesar da influência de Cage, nesta primeira fase mais experimental, do ponto de vista artístico Feldman soube manter as distâncias e permanecer independente; a sua música evoluirá numa direcção diferente. De facto, a verdadeira importância de Cage para ele, como repetidamente afirmou nos seus ensaios, foi tê-lo posto em contacto com os artistas do Expressionismo Abstracto. Pintores como Pollock, Rothko, de Kooning, Rauschenberg e Philip Guston, dos quais se tornou amigo próximo, constituem a sua verdadeira e insólita genealogia artística. A estes nomes podemos juntar os dos compositores Varèse e Satie. Mas foi nas vastas telas de densos nevoeiros cromáticos, nessas brumas de luz e sombra, nesses quadros freneticamente salpicados, que encontrou a resposta para a música que persegue. “A nova pintura, fez-me desejar um mundo sonoro mais directo, mais imediato, mais físico do que qualquer outro que tenha existido até agora”. Segundo ele, os pintores não querem saber como se faz uma coisa, simplesmente fazem-na. O compositor procura então transplantar para sons a plasticidade e a espontaneidade características da pintura abstracta, explorando o novo conceito de música como superfície, uma música que se situa “entre categorias, entre tempo e espaço, entre pintura e música”. A arte que daqui resulta resiste a qualquer forma de objectivação conceptual ou de análise tradicional e parece pensada, precisamente, para escapar à própria ideia de forma: não há composição, não há uma estrutura perceptível, não há frases ou desenvolvimentos, nem direcção ou um sentido de progresso. O tempo não é utilizado como princípio construtivo, tudo se passa no instante, num presente sem passado ou futuro. Os sons emergem do silêncio e a ele retornam. A partir da segunda fase criativa, nos anos 70, em peças como Ro thk o Chap e l (1971) ou nas obras orquestrais, como Ce llo and O rche stra (1972) e String Q uarte t and O rche stra (1973), a escrita tornase mais contínua, a textura ligeiramente mais densa, e a dimensão melódica começa a surgir mais abertamente. Porém, a sua música nunca perdeu esse pudor sonoro, esse despo jamento manifesto na preferência pelos tempos lentos, pelas sonoridades
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pianíssimo e pelo minimalismo dos recursos. Inclassificável, inefável e inapreensível, a experiência musical de Feldman assenta numa mística da escuta, num contacto íntimo com o som e com o silêncio, e na medida em que não é uma música centrada sobre si própria, aponta para o invisível e abre para espaços espirituais… algures a Oriente. Composta em 1970, numa fase de transição, a obra The V io la in my Lif e (I-III) assinala o regresso do compositor à notação convencional, após duas décadas de utilização de várias espécies de notação indeterminada. Aqui, tudo é prescrito: as notas, as durações e o tempo, os instrumentos que as tocam e a sua gradação dinâmica. Feldman explicou que “precisava de contar com uma medida temporal exacta subjacente ao crescendo gradual e subtil que caracteriza os sons em surdina da viola; é este aspecto que determina a sequência rítmica de eventos”. A viola tem um papel solista e surge acompanhada, em cada uma das três peças, por uma combinação instrumental diferente, que pode ir de dois até sete instrumentos. Por outro lado, a escrita é destituída de qualquer intenção virtuosística ou de exploração idiomática do instrumento solista. O subtil cre sce nd o /d e cre sce nd o da viola sobre a mesma nota é um gesto recorrente nas três peças e introduz uma expressividade e um relevo novos na superfície habitualmente plana da música do compositor. A escolha dos sons, determinada em função da experiência perceptiva, permite ao compositor não excluir nenhum intervalo – nem os mais consonantes, nem os mais dissonantes. Tal como em outras obras deste período, o silêncio assume na partitura uma importância fundamental. Dir-se-ia que o silêncio é o oxigénio que a viola respira. A escrita oscila entre a descontinuidade e a continuidade. Na primeira peça, sons isolados emergem e extinguem-se no silêncio antes de aparecer o próximo. Na segunda, a escrita já é mais contínua e aparecem pequenos fragmentos de melodia. As repetições do mesmo gesto, por vezes com ligeiras alterações, não conduzem a lado algum, e a música parece planar, imóvel. Refira-se, a terminar, que há uma quarta peça da mesma série (The V io la in my Lif e IV ) composta em 1971.
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Jesu, meine Freude
Jesus, minha alegria
Jesu, meine Freude,
Jesus, minha alegria,
Meines Herzens Weide,
refúgio do meu coração.
Jesu, meine Zier,
Jesus, meu tesouro,
Ach wie lang, ach lange
oh, há quanto, quanto tempo
Ist dem Herzen bange
o meu coração sofre
Und verlangt nach dir!
e anseia por Ti!
Gottes Lamm, mein Bräutigam,
Cordeiro de Deus, meu noivo,
Außer dir soll mir auf Erden
Nada na terra me é
Nichts sonst Liebers werden.
mais precioso do que Tu. Trad ução : M aria d as Do re s Galante d e Carv alho
Es ist nun nichts Verdammliches an denen, die in
Nenhuma condenação existe agora para aqueles
Christo Jesu sind, die nicht nach dem Fleische
que estão em Cristo Jesus, porque vivem, não
wandeln, sondern nach dem Geist.
segundo a carne, mas segundo o Espírito. (A d Ro m. , 8,1-2)
Trad ução : Jo sé A ntó nio Falcão
Unter deinem Schirmen
Sob o Teu escudo
Bin ich vor den Stürmen
Estou ao abrigo de tormentas
Aller Feinde frei.
E de todos os inimigos.
Laß den Satan wittern,
Não importa a ira de Satanás
Laß den Feind erbittern,
ou a fúria do inimigo,
Mir steht Jesus bei.
pois Jesus está comigo.
Ob es itzt gleich kracht und blitzt,
Mesmo no auge da tempestade,
Ob gleich Sünd und Hölle schrecken:
ainda que o pecado e o inferno aterrorizem:
Jesus will mich decken.
Jesus protege-me. Trad ução : M aria d as Do re s Galante d e Carv alho
Denn das Gesetz des Geistes, der da lebendig
Porque a lei do Espírito, que dá a vida em Cristo
macht in Christo Jesu, hat mich frei gemacht von
Jesus, me libertou da lei do pecado e da morte.
dem Gesetz der Sünde und des Todes.
(A d Ro m. , 8,2)
Trad ução : Jo sé A ntó nio Falcão
Trotz dem alten Drachen,
Apesar do velho dragão,
Trotz des Todes Rachen,
apesar das garras da morte,
Trotz der Furcht darzu!
apesar de todas as inquietações!
Tobe, Welt, und springe,
Ergue-te, ó mundo, e levanta-te,
Ich steh hier und singe
que eu estou aqui e canto
In gar sichrer Ruh.
cheio de serenidade!
Gottes Macht hält mich in acht;
O poder de Deus mantém-me vigilante;
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Erd und Abgrund muss verstummen,
Terra e abismo devem calar-se,
Ob sie noch so brummen.
Embora ainda resmoneiem. Trad ução : M aria d as Do re s Galante d e Carv alho
Ihr aber seid nicht fleischlich sondern geistlich,
Vós não estais sob o domínio da carne, mas do
so anders Gottes Geist in euch wohnet. Wer aber
espírito, se é que o Espírito de Deus habita em
Christi Geist nicht hat, Der ist nicht sein.
vós. Mas, se alguém não tem o espirito de Cristo, não Lhe pertence. (A d Ro m. , 8,9)
Trad ução : Jo sé A ntó nio Falcão
Weg mit allen Schätzen!
Afastem-se todas as riquezas!
Du bist mein Ergötzen,
Tu és o meu deleite,
Jesu, meine Lust!
Jesus, minha alegria!
Weg ihr eitlen Ehren,
Afastem-se glóorias vãs,
Ich mag euch nicht hören,
eu não vos quero ouvir,
Bleibt mir unbewusst!
ficai longe de mim!
Elend, Not, Kreuz, Schmach und Tod
Miséria, necessidade, cruz, ignominia e morte,
Soll mich, ob ich viel muss leiden,
ainda que eu tenha de sofrer muito,
Nicht von Jesu scheiden.
não me afastarão de Jesus. Trad ução : M aria d as Do re s Galante d e Carv alho
So aber Christus in euch ist, so ist der Leib zwar
Se Cristo está em vós, embora o vosso corpo seja
tot um der Sünde willen; der Geist aber ist das
mortal por causa do pecado, o espírito
Leben um der Gerechtigkeit willen.
permanece vivo por causa da justiça. (A d Ro m. , 8,10)
Trad ução : Jo sé A ntó nio Falcão
Gute Nacht, o Wesen,
Adeus, ó criaturas,
Das die Welt erlesen,
que preferis o mundo,
Mir gefällst du nicht.
a mim, tu não me agradas.
Gute Nacht, ihr Sünden,
Adeus, ó pecados.
Bleibet weit dahinten,
Permanecei bem longe.
Kommt nicht mehr ans Licht!
Não venhais mais para a luz!
Gute Nacht, du Stolz und Pracht!
Adeus, orgulho e ostentação!
Dir sei ganz, du Lasterleben,
De ti me despeço,
Gute Nacht gegeben.
vida de iniquidade.
So nun der Geist des, der Jesum von den Toten
E se o Espírito d’Aquele que ressuscitou Jesus de
auferwecket hat, in euch wohnet, so wird auch
entre os mortos habita em vós, Ele que
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der selbige, der Christum von den Toten
ressuscitou Cristo Jesus de entre os mortos,
auferwecket hat, eure sterbliche Leiber lebendig
também dará vida aos vossos corpos mortais,
machen um des willen, dass sein Geist in euch
pelo seu Espírito que habita em vós.
wohnet.
(A d Ro m. , 8,11)
Trad ução : Jo sé A ntó nio Falcão
Weicht, ihr Trauergeister,
Retirem-se, espíritos lúgubres,
Denn mein Freudenmeister,
Pois, aproxima-se Jesus,
Jesus, tritt herein.
o meu Senhor da alegria.
Denen, die Gott lieben,
Aqueles que amam a Deus,
Muß auch ihr Betrüben
receberão consolo
Lauter Zucker sein.
na sua amargura.
Duld ich schon hier Spott und Hohn,
Embora eu aqui suporte escárnio e desprezo,
Dennoch bleibst du auch im Leide,
Tu estás comigo no sofrimento,
Jesu, meine Freude.
Jesus, minha alegria.
Sei Lob und Preis mit Ehren
Louvor, honra e glória sejam prestados,
Sei Lob und Preis mit Ehren
Louvor, honra e glória sejam prestados,
Gott Vater, Sohn und Heil’gem Geist,
a Deus Pai, Filho e Espírito Santo,
der woll in uns vermehren,
que em nós quer fortalecer,
was er aus Gnaden uns verheißt,
o que nos concede por Sua graça,
daß wir ihm fest vertrauen,
que confiemos plenamente n’Ele,
gänzlich verlassen auf ihn,
que acreditemos sinceramente,
von Herzen auf ihn bauen,
que o nosso coração, coragem e espírito,
daß uns’r Herz, Mut und Sinn
o sigam confiadamente,
ihm tröstlich soll’n anhangen,
isso celebremos agora cantando:
drauf singen wir zur Stund:
Ámen, nós conseguiremos,
Amen, wir werd’ns erlangen,
acreditamos do fundo do coração.
gläub’n wir aus Herzensgrund. Trad ução : M aria d as Do re s Galante d e Carv alho
Lobet den Herrn, alle Heiden
Louvai o Senhor, todas as nações,
Lobet den Herrn, alle Heiden,
aclamai-O, todos os povos.
und preiset ihn, alle Völker!
É grande a Sua misericórdia para connosco,
Denn seine Gnade und Wahrheit
a fidelidade do Senhor permanece para sempre.
waltet über uns in Ewigkeit.
Aleluia.
Alleluja.
Salmo 1 1 6 (1 1 7), 1-2
Trad ução : Jo sé A ntó nio Falcão
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Filipa Palhares
Iniciou a formação musical, aos nove anos, no Instituto Gregoriano de Lisboa, onde estudou até 1990, ingressando seguidamente na Escola Superior de Música de Lisboa, onde obteve a licenciatura em Direcção Coral. Nesta escola, estudou com Christopher Bochmann, Sibertin-Blanc, Roberto Pérez, Luís Madureira, Gerhard Doderer, Cremilde Rosado Fernandes e Vasco Azevedo, entre outros. Frequentou cursos de Direcção Coral com Bernard Tétu (Lyon), Herbert Breuer (Hamburgo) e José António Sainz Alfaro (San Sebastián). Em 1995-1997, estudou com Max von Egmond, Marius Altena (Canto) e Jacques Ogg (Cravo) nos cursos de Música Barroca da Casa de Mateus. Em 1998-1999, frequentou o curso de aperfeiçoamento artístico em Direcção Coral no Real Conservatório Superior de Música de Madrid. Iniciou a actividade docente, em 1990, com as disciplinas de Coro e Formação Musical, assim como Música para Bailarinos. Foi professora na Academia de Amadores de Música, na Academia de Música de Santa Cecília e na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal; de 1994 a 2010, leccionou no Conservatório Regional de Setúbal, onde exerceu o cargo de directora pedagógica, e, a partir de 2006, no Instituto Gregoriano de Lisboa, onde tem a seu cargo o coro infantil, com que regularmente faz concertos, obtendo com este mesmo coro a Medalha de Ouro no Festival Coral de Verão de Lisboa em 2012 e 2013. Integrou a Camerata Vocal de Lisboa e o Coro Feminino Cantata. Dirigiu o Orfeão da Covilhã, o Conductus Ensemble, o Grupo Coral de Lagos, com o qual gravou Te rra M o re na, e o Grupo Coral Encontro, com o qual gravou 25 A no s d e Canto . Fundou e dirigiu o Coro do Tejo. Dirige presentemente o Grupo Coral da Sociedade Filarmónica Palmelense Loureiros, em Palmela. Na área da ópera, tem colaborado em diversas produções, como coralista e maestrina de coros.
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Jonathan Brown
Iniciou a formação musical aos quatro anos, principiando, cedo, a tocar viola em e nse mb le s de música de câmara. Estudou com Heidi Castleman, Martha Strongin Katz e Victoria Chiang, concluindo o mestrado na Juilliard School, com Karen Tuttle. Premiado com a Beebe Grant, passou a residir em Salzburgo, onde estudou, na Universität Mozarteum, com Thomas Riebl e Veronika Hagen. Participou em maste rclasse s com Diemut Poppen, Sylvia Rosenberg e Donald Weilerstein, e foi profundamente influenciado por Ferenc Rados e György Kurtág. Em 2002, integrou o Cuarteto Casals, com o qual se tem apresentado nas salas de concerto mais importantes e em festivais de todo o mundo. Este e nse mb le gravou, para a etiqueta Harmonia Mundi, uma ampla gama de repertórios, de Boccherini a Kurtág. Tem sido convidado de destaque de outros grupos de música de câmara, entre eles Tokyo, Kuss, Miro, Quiroga e Zemlinsky Quartetos e Kandinsky Trio. Profundamente interessado pela música nova, é membro fundador de Funktion e tocou amiúde, como solista, com BCN216, executando obras de Morton Feldman e Luciano Berio. Actualmente, é professor de viola e música de câmara na Escola Superior de Música de Catalunya, de Barcelona, e professor assistente de viola na Escuela Superior de Música Reina Sofía, de Madrid, sendo frequentemente convidado para dar maste rclasse s em diversos países da Europa e da América.
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Coro Terras sem Sombra
É constituído por cantores com sólida experiência coral, todos formados pelas principais escolas de música nacionais, que se juntam para a execução de obras corais de diferentes épocas. Fazem parte deste coro Ariana Russo, Margarida Pinheiro e Mariana Cardoso (sopranos), Diana Afonso e Rita Tavares (me zzo s), João Afonso e João Barros (tenores) e Luís Pereira e Sérgio Silva (baixos).
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Sond’Ar-te Electric Ensemble
Fundado em Julho de 2007, apresenta uma proposta inovadora no panorama musical europeu contemporâneo, valorizando a articulação, de forma estruturante, dos instrumentos acústicos com os meios electrónicos. Ao elevado padrão de qualidade dos músicos que integram este e ns e mb le , vem associar-se a tecnologia musical de ponta que, ao longo de muitos anos de investigação e experiência, tem sido desenvolvida pela Miso Music Portugal no Miso Studio. Paralelamente ao desenvolvimento e à interpretação de um novo repertório, assenta a sua prática no repertório do século XX, com a interpretação de algumas das obras emblemáticas que atravessam a história musical deste período. Outros pontos fulcrais da actividade do e nse mb le são o programa de encomendas de obras musicais, o concurso internacional de composição, o f o rum para jovens compositores, o desenvolvimento de projectos “New Op-Era” e, ainda, projectos pedagógicos e de sensibilização de novos públicos. O Sond’Ar-te Electric Ensemble estreou-se no Festival Música Viva 2007. Tem realizado, desde então, múltiplas apresentações, em locais tão diversos como Lisboa (Centro Cultural de Belém), Porto (Casa da Música), Coimbra, Leiria, Guimarães, Galiza (digressão), Varsóvia (Festival Outono de Varsóvia), Paris, Berlim, Bilbau (Museu Guggenheim), Cuenca, Toulouse, Londres (Festival City of London), Açores, Tóquio e Seul. É e nse mb le residente da Câmara Municipal de Cascais.
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Concerto VII
MOURA
28 de Junho 21H30
INSTANTES INFINITOS: MOZART, FELDMAN & MOZART Wolfgang Amadeus Mozart [1756-1791] SINFO NIA e m so l me no r K1 83 para orquestra
Morton Feldman [1926-1987] THE V IO LA IN M Y LIFE IV para violeta e orquestra
Wolfgang Amadeus Mozart SINFO NIA CO NCERTA NTE e m M i b e mo l maio r K364 para violino, violeta e orquestra
Orquestra Gulbenkian Violino Vera Martínez Violeta Jonathan Brown Direcção musical Paul McCreesh, Pedro Neves
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MOURA
Igreja Matriz de São João Baptista Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto n.º 21 355, de 13 de Junho de 1932
JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO
O florescimento de Moura, nos finais da Idade Média, tornou insuficiente a primitiva igreja matriz, situada dentro dos muros do castelo, pelo que D. Afonso V autorizou, em 1455, a transferência da sede desta paróquia, sob a jurisdição da Ordem militar de São Bento de Avis (como todo o território da margem esquerda do rio Guadiana), para a zona urbana em expansão, onde se levantou um novo edifício. Todavia, a população da vila aumentou tanto, ao longo das décadas seguintes, que ele veio a revelar-se, também, exíguo. Nos inícios do século XVI, ergueu-se a actual igreja, que aproveitou parte das estruturas da anterior, incluindo a anexa capela das Almas. A autoria da sua traça foi atribuída a Cristóvão de Almeida, Diogo de Boutaca e Diogo de Arruda, mas o problema continua em aberto. Do ponto de vista planimétrico, este poderoso edifício é fiel a um esquema tradicional, de raiz gótica, com três naves, cinco tramos, pilares octogonais, abóbadas de berço – inicialmente, as coberturas seriam de madeira –, ausência de transepto e cabeceira quadrangular. Na frontaria, rasga-se um portal trilobado e de arco canopial, guarnecido pelas empresas reais. A torre sineira destaca-se pelo altar exterior nela existente, protegido por um balcão de dossel, obra concebida pelo arquitecto João de Moraes em 1609, sendo prior Fr. Luís Lopes, com a finalidade de se poder celebrar a missa para os presos da antiga cadeia, que lhe fica fronteira. Visitando o seu interior, é de salientar o notável revestimento de azulejos policromados da capela-mor e das capelas laterais, encomendado nos meados do século XVII a oficinas de Lisboa, beneficiação que ficou a dever-se, em larga medida, ao mecenato de Rui Lourenço da Silveira, instituidor da capela de Nossa Senhora das Almas. Esta ostenta
Nossa Senhora da Conceição. Escola portuguesa. Século XVIII (segundo quartel). Moura, Museu de Arte Sacra, Inv.o n.o Esc 9.>
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um sumptuoso ciclo de painéis com a representação das V irtud e s, enquanto a outra capela colateral possui um ciclo de painéis cronografados de 1651. Embora despojada do acervo de talha e de outros elementos decorativos, no âmbito das severas obras de reintegração estilística levadas a cabo pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1945-1946, a igreja de São João Baptista conserva ainda um vasto conjunto de pinturas, esculturas e alfaias litúrgicas. Os antigos altares foram distribuídos por vários monumentos da cidade, como é o caso da igreja de São Pedro (Museu de Arte Sacra de Moura).
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
J ORGE S EGURADO , A Ig re ja d e S. J o ão d e M o ura, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1919; I D . , “Christovam de Almeida e a Igreja de São João de Moura”, em Be las-A rte s, 2.ª Série, XXXI, Lisboa, 1975; I D . , “Da Génese da Igreja de S. João de Moura”, em Be las-A rte s, 2.ª Série, XXXI, Lisboa, 1975; I D . , “Data da Igreja Manuelina de São João de Moura”, em Be las-A rte s, XXXII, Lisboa, 1978; “Igreja Matriz de S. João Baptista, Moura”, Bo le t im d a Dire cção -Ge ral d o s Ed if ício s e M o nume nto s Nacio nais, XLV, Lisboa, 1946; JOSÉ CUSTÓDIO VIEIRA DA SILVA, O Tard o -Gó tico e m Po rtug al. A A rq uite ctura no A le nte jo , Lisboa, Livros Horizonte, 1989; J[OÃO] M[IGUEL] DOS SANTOS SIMÕES, Corpus d a A zule jaria Po rtug ue sa, IV, A zule jaria e m Po rtug al no Sé culo X V II, 2, Ele nco , 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; JOÃO ROSADO CORREIA (dir. de), V asco d a Gama e o s Humanistas no A le nte jo – De D. Jo ão II (1 481 -1 495) a D. Jo ão III ( 1 521 -1 557) . O Pe ns ame nt o e a Té cnica: Do Tard o -Gó t ico ao M ane iris mo , Monsaraz, Fundação Convento da Orada, 2002; PEDRO DIAS (dir. de), M anue lino : À De sco b e rta d a A rte d o Te mp o d e D. M anue l I, [Porto], Civilização, 2002; I D . , A rt e Po rt ug ue s a: A rq uit e ct ura M anue lina, 2.ª. ed., Vila Nova de Gaia, A. Alves – Arte e Edições, 2009.
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A Flecha e o seu Eco
TERESA CASCUDO
Na Te o ria Ge ral d as Be las-A rte s, várias vezes publicada ao longo do último terço do século XVIII, o influente teórico suíço Johann Georg Sulzer [S 1720 – X 1779] abordou a música instrumental, apresentando-a da seguinte maneira: “Em último lugar colocamos a aplicação da música nos concertos, os quais são apenas apresentados como meros passatempos, e, talvez, como prática instrumental. A esta categoria pertencem os concertos, as sinfonias, as sonatas e os solos instrumentais, os quais são geralmente um barulho animado e agradável, ou uma chalreada cortês e divertida, mas que raramente conseguem comover o coração”.
Posteriormente, esta opinião foi criticada por pensadores, e também por compositores da craveira de Joseph Haydn, o qual procurava imprimir um carácter moral determinado a cada um dos andamentos das suas sinfonias. No entanto, a descrição de Sulzer não está tão longe de caracterizar a hierarquia das artes e, em particular, dos géneros musicais, durante uma boa parte do século XVIII. As sinfonias eram peças musicais sem grande importância, que não tinham o prestígio de outros géneros. Com efeito, era um tipo de obras que se diferenciava claramente das vocais e instrumentais destinadas a uma elite internacional de co nnaisse urs. Esta situação pouco tinha a ver com o respeito de que o género viria a gozar já no século XIX. Na época de Haydn e Mozart, portanto, as sinfonias, e também os concertos para solista e orquestra, eram géneros funcionais, fruídos pontualmente, que impunham a rápida substituição das obras velhas por outras novas. Isto explica o elevadíssimo número de peças que, sob esses títulos, encontramos nos seus respectivos catálogos e nos dos seus contemporâneos, e também esclarece o facto de não termos apenas testemunhos contemporâneos acerca das suas execuções. Mozart e Haydn, porém, foram reconhecidos
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como os maiores criadores de música orquestral da época. Encontramos um testemunho disto num célebre artigo sobre o género sinfonia de Charles Burney, onde se diz que as sinfonias do “imortal Haydn” encerravam todas as “perfeições que tornavam a música orquestral interessante e sublime: invenção, ciência, conhecimento dos instrumentos, majestade, fogo, graça e, por vezes, patetismo, com novas modulações, e novas harmonias, sem crueza nem afectação”. Para Burney, Mozart era o único compositor contemporâneo comparável. Aliás, a Sinf o nia e m so l me no r incluída neste programa foi composta sob a influência de três obras no mesmo género escritas por Haydn entre 1770 en 1773: as n.os 39, 44 – de sobrenome “Fúnebre” – e 45, conhecida como “Sinfonia do Adeus”. Todas elas foram escritas em modo menor, sendo que a n.o 39, tal como a K. 183, apresenta a tonalidade de sol menor. A raridade do uso deste modo na música orquestral da época sublinha a relação existente entre estas obras. A Sinf o nia e m so l me no r K. 183 foi composta e estreada, em Salzburgo, em 1773. O ascendente que Haydn, nascido em 1732, teve sobre Mozart, o qual, em 1773, era um adolescente de 17 anos de idade, manifesta-se, não apenas no mencionado uso do modo menor, mas também na utilização, tal como faz Haydn na 39. ª Sinf o nia, de um quarteto de trompas que contribuem para a especial sonoridade desta obra, tanto do ponto de vista da instrumentação, como da harmonia. A imaginação do então jovem compositor mostra-se, ainda, no ritmo e na invenção melódica. Quanto a esta última, é notável o grau de coesão que atinge, sendo possível estabelecer ligações motívicas entre todos os andamentos, um aspecto que, de facto, também se pode relacionar com a influência de Haydn. O A lle g ro co n b rio introduz-nos numa obra que revela uma concepção que podemos qualificar de dramatúrgica e uma gravidade que, indubitavelmente, marca a diferença, quando avaliada do ponto de vista de Sulze. Sem deixar de ser agradável, cortês e, por momentos, divertida (repare-se, por exemplo, no Trio terceiro andamento, em que se ouvem apenas os sopros), a obra apresenta uma face séria que tem sido habitualmente salientada. Inicia-se com uma dupla sonoridade dissonante (na harmonia, no marcado uso das síncopas que, na altura, eram consideradas dissonâncias rítmicas). O seu tom sublime vem ainda dado pelo magistral uso do contraste como elemento de organização do discurso musical no ritmo, na dinâmica e na textura, que reaparece no último andamento. Uma evidência é o lírico A nd ante , em forma de ária, ou, ainda, o M e nue tto , também em modo menor e cuja intensidade transgride a amabilidade cortês que se identifica com esta dança e, até, com esta época. A Sinf o nia Co nce rtante K. 364 também foi escrita em Salzburgo, seis anos depois. Pertence a um género musical que resultou da fusão do concerto a so lo , do concerto
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grosso, do divertimento e da sinfonia. O nome surgiu em 1767, mas a sua época de esplendor começou na década de 70 do século XVIII. Destacou-se sobretudo em Paris entre 1778 e 1789. Nestes anos, acentuou-se a tendência para a síntese que já se encontrava no período anterior, tendo sido introduzidos novos elementos que conferiam ao género uma maior profundeza e sobriedade. Esta mudança coincidiu com a chegada ao mercado parisiense de obras sinfónicas de Haydn, com o qual os compositores franceses preferiram não entrar em concorrência, refugiando-se na produção destas sinfonias concertantes, as quais, aliás, compensavam também o grande interesse pela música vocal que tinha o público nesta altura. Nesta cidade, existia um intenso comércio musical, desenvolvido pelos músicos profissionais locais para os quais a participação nos grupos solistas das sinfonias concertantes supunha uma importante publicidade. Cabe destacar, ainda, que o mercado da música parisiense era muito competitivo: a presença de excelentes instrumentistas favorecia o surgimento de um género musical que, como este, lhes permitia mostrar o seu virtuosismo. De facto, Mozart tentou a sorte nesse mercado em 1778, justamente um ano antes da composição da K. 364, pelo que é possível ligar a partitura com este episódio biográfico. A K. 364 reflecte, ainda, a passagem de Mozart por Mannheim, cuja fabulosa orquestra modificou a sua maneira de conceber a sonoridade sinfónica, exigindo um virtuosismo técnico dos músicos que se tornou numa das características principais da sua produção instrumental. As violas têm uma especial importância, impregnando com uma particular luminosidade a obra. Mozart, que tocava este instrumento, pede que a viola solista seja afinada um meio-tom acima (o processo chama-se sco rd atura): o resultado é uma espécie de aproximação da sonoridade dos dois instrumentos solistas, mantendo, no entanto, cada um o seu colorido peculiar. A obra tem três andamentos que respondem às convenções do género: o primeiro devia ser majestoso; o segundo, mais emocionante, patético e agradável; e o terceiro, mais vivo e mais alegre do que os anteriores. Talvez seja o segundo o mais admirável desta partitura, antecipando o grave lirismo que se reencontra nos concertos para piano do compositor. A cadência e a coda deste andamento, valorizadas pelo contraste com o magnífico ro nd o (p re s to ) com que conclui a obra, é um dos muitos momentos mágicos que nos depara o catálogo do compositor. É, finalmente, um desafio para a escuta a forma como as duas obras mozartianas dialogam com a peça de Morton Feldman incluída neste programa, a qual faz parte do ciclo The V io la in M y Lif e , iniciado em 1970 e concluído no ano a seguir. Se, na história da música, Mozart é o compositor “rítmico” por excelência, poderíamos dizer que Feldman é o compositor “contemplativo”. A noção de tempo destes dois mestres não
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podia ser mais contrastante: enquanto Mozart concebe o discurso musical como uma “flecha” – uma poderosa metáfora acunhada por Karol Berger, professora da Universidade de Stanford –, Feldman imagina uma temporalidade estática. De facto, a audição completa dos quatro andamentos de The V io la o f M y Lif e apresenta-nos uma sucessão de eventos sonoros, “suspensos”, aparentemente “inconexos” ou “flutuantes”, “etéreos”, termos habituais quando se tenta descrever a música de Feldman. Nesta, à semelhança do que sucede em outras obras, o compositor apresenta-se como “reunidor” ou “ensamblador” de sons. A viola assume um papel quase rapsódico: na sua parte, são evidentes os fragmentos melódicos e motívicos que remetem para o expressionismo de inícios do século XX. A sua linha é uma espécie de traço que, usando os termos do próprio Feldman, se sobrepõe ao “mundo sonoro estático” criado pelo conjunto instrumental, este, sim, mais próprio do universo criativo posterior à década de 50. Tal “traço”, juntamente com as imagens e memórias históricas ou emocionais que origina, foi comparado por Feldman com o uso que o pintor Robert Rauschenberg fazia da fotografia nas suas “combine paintings”. Ambos os artistas são representativos do as s e mb lag e como processo artístico. Por outro lado, Feldmam propõe, com a sua música, uma espécie de ética da escuta. “Ter tempo” era, na sua opinião, uma arte passada de moda. A velocidade, tornada num valor supremo e positivo, impede, na nossa era, a concentração. A escuta atenta, pelo contrário, está dependente da sensação de “ter tempo, todo o tempo do mundo”, de, nas suas palavras, “entregar-se ao ritmo interior” e, também, de “chegar a esquecê-lo e, em lugar dele, adaptar-se ao ritmo do outro.” O programa resume-se na seguinte frase: “O afecto, a participação e também a escuta requerem ante tudo um silêncio expectante e livre da cronometria.” A sua música significa, acima de tudo, uma partilha da escuta que ele próprio dedicou aos sons que foram guiando o seu processo criativo. Aparecem e desaparecem, ficando atrás deles o eco do momento singular em que foram ouvidos.
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Orquestra Gulbenkian
Em 1962, a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu estabelecer um agrupamento orquestral permanente. Constituído, no início, por apenas doze elementos, foi originalmente designado por Orquestra de Câmara Gulbenkian. Na temporada de 2012-2013, a Orquestra Gulbenkian (denominação adoptada desde 1971) celebrou 50 anos de actividade, período ao longo do qual foi sendo progressivamente alargada, contando hoje com um efectivo de sessenta e seis instrumentistas, que pode ser pontualmente expandido de acordo com as exigências dos programas executados. Esta constituição permite-lhe interpretar um amplo repertório, desde o Barroco até à música contemporânea. Obras pertencentes ao repertório corrente das formações sinfónicas tradicionais, nomeadamente a produção orquestral de Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Mendelssohn ou Schumann, podem ser dadas em versões mais próximas dos efectivos orquestrais para que foram originalmente concebidas, no que respeita ao equilíbrio da respectiva arquitectura sonora interior. Em cada temporada, a Orquestra realiza uma série regular de concertos no Grande Auditório Gulbenkian, em Lisboa, em cujo âmbito tem tido ocasião de colaborar com alguns dos maiores nomes do mundo da música (maestros e solistas). Actuando igualmente em diversas localidades do país, cumpre uma significativa função descentralizadora. No plano internacional, por sua vez, a Orquestra Gulbenkian tem vindo a ampliar gradualmente a sua actividade, tendo até agora efectuado digressões na Europa, Ásia, África e Américas. No plano discográfico, o nome da Orquestra Gulbenkian encontra-se associado às editoras Philips, Deutsche Grammophon, Hyperion, Teldec, Erato, Adès, Nimbus, Lyrinx, Naïve e Pentatone, entre outras, tendo sido distinguida, desde muito cedo, com diversos prémios internacionais de prestígio. Na temporada de 2013-1014, Paul McCreesh iniciou as suas funções como maestro titular da Orquestra Gulbenkian. Susanna Mälkki é maestrina convidada principal, e Joana Carneiro e Pedro Neves são maestros convidados. Claudio Scimone, titular entre 1979 e 1986, é maestro honorário, e Lawrence Foster, titular entre 2002 e 2013, foi nomeado maestro emérito.
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Vera Martínez Violino
Nasceu em Madrid, onde começou a estudar violino aos cinco anos. Aos doze, entrou na Escuela Superior de Música Reina Sofía, da capital espanhola, onde estudou com Serguei Fatkouline e Zakhar Bron, os mesmos professores com quem terminou os seus estudos na Hochschule für Musik Köln. Premiada em vários concursos, ganhou o primeiro prémio e o prémio especial de interpretação de obras clássicas no concurso Kloster Schöntal, em 1995, e o segundo prémio no concurso Wieniawsky na Polónia, em 1997. Como solista, tocou com várias orquestras, incluindo as Sinfónicas de Palma de Mallorca e Santo Domingo e de Câmara Andrés Segovia e da Escuela Superior Reina Sofía, sob as batutas de maestros como Zubin Mehta, Yehudi Menuhin, James Judd, Victor Pablo e Antoni Ros Marbá. Também tocou na Deutsche Kammerphilharmonie Bremen e colaborou em concertos de música de câmara com Gérard Caussé, Harald Schoneweg, Marta Gulyás, Christoph Coin e Claudio Martínez Mehner. Aos 18 anos, foi um dos membros fundadores do Cuarteto Casals, com o qual viria a tocar nas mais relevantes salas de concertos da Europa, América do Norte, América Latina e Japão, interpretando quartetos de Arriaga, Debussy, Zemlinsky, Mozart, Ravel, Toldrá, Turina, Brahms, Bartok, Ligeti, Kurtag, Boccherini e Schubert, entre outros compositores. É professora de Música de Câmara e Violino na Escola Superior de Música de Catalunya, em Barcelona, e ensinou no Conservatorio Superior de Música de Aragón, em Saragoça, e no Musikene (Centro Superior de Música del País Vasco), em San Sebastián.
Jonathan Brown | Violeta (v . p. 162)
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Paul McCreesh Direcção musical
Na temporada de 2013-14, o maestro inglês Paul McCreesh iniciou funções como maestro titular da Orquestra Gulbenkian. Músico empolgante e inovador, destacou-se à frente do Gabrieli Consort & Players, agrupamento que fundou em 1982 e do qual é director artístico. A energia e a paixão que coloca no seu trabalho levaram-no a dirigir também muitas das maiores orquestras e coros mundiais, apresentando-se, na presente temporada, como maestro convidado da Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, da Orquestra do Konzerthaus de Berlim e da Sinfónica da Sydney. No domínio das grandes obras corais, é de salientar a sua revisão da versão, em inglês, da oratória A s Estaçõ e s, de J. Haydn, que foi apresentada, em 2011, em Schleswig-Holstein e na Fundação Calouste Gulbenkian. Nos últimos anos, importa referir, ainda, a direcção de Elias, de Mendelssohn, com a Filarmónica de Bergen, Um Re q uie m A le mão , de Brahms, com a Sinfónica Nacional da RTE (Irlanda), e a Grand e M issa e m Dó me no r, de Mozart, com a Sinfónica da Islândia. Estabeleceu também uma forte reputação no domínio da ópera, em produções como Tame rlano , Il Trio nf o d e l Te mp o e d e l Dising anno e Je p htha, de Handel, ou O rp hé e e t Euryd ice , de Gluck, em palcos como o Teatro Real de Madrid, a Ópera Real Dinamarquesa, a Ópera da Flandres ou o Festival de Verbier. Ao longo de quinze anos, produziu para a Deutsche Grammophon uma relevante colecção discográfica, que recebeu os mais importantes prémios da especialidade, tendo sido nomeado para os Grammy, em 2010. Em 2011, a gravação da oratória A Criação , de Haydn, obteve o prémio Gramophone. Em Julho de 2011, lançou a sua própria etiqueta, a Winged Lion, em colaboração com o Gabrieli Consort & Players, a Signum Classics e o Festival Wratislavia Cantans, do qual foi director artístico entre 2006 e 2012. Dedica-se com especial empenho ao trabalho com jovens músicos, colaborando regularmente com coros e orquestras juvenis e na criação de novos projetos educativos neste domínio.
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Pedro Neves Direcção musical
O seu percurso musical iniciou-se no Conservatório de Aveiro, onde estudou violoncelo com Isabel Boiça. Frequentou a Academia Nacional Superior de Orquestra, em Lisboa, onde estudou violoncelo com Paulo Gaio Lima e onde concluiu o bacharelato em 1996. Como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, prosseguiu o aperfeiçoamento artístico, com Marçal Cervera, na Escola de Música Juan Pedro Carrero, em Barcelona, onde se manteve até 1999. Paralelamente, frequentou os cursos de aperfeiçoamento de Maria de Macedo, Paulo Gaio Lima, Daniel Grosgurin, Marçal Cervera e Anner Bylsma. Na qualidade de violoncelista, colaborou com a Orquestra da Juventude Musical Portuguesa, a Orquestra de Jovens do Mediterrâneo e a Orquestra de Jovens de Baden-Württemberg. Entre 1999 e 2005, integrou a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Foi premiado nos concursos da Juventude Musical Portuguesa e da RDP – Prémio Jovens Músicos. Começou a carreira como maestro, em 1988, na Sociedade Recreativa e Musical 12 de Abril, sediada na sua terra natal. Estudou com o maestro Jean-Marc Burfin, na Academia Nacional Superior de Orquestra, onde se licenciou com elevada classificação. Em virtude do crescente desejo de se aperfeiçoar como maestro, aprofundou conhecimentos com Emilio Pomàrico, em Milão, frequentou os cursos de aperfeiçoamento de Alexander Polishcuk e foi assistente de Michael Zilm. Dirigiu a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Orquestra Nacional do Tejo, a Filarmonia das Beiras, a Orquestra de Câmara Portuguesa, a Orquestra do Algarve, a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, o Sond’Ar-te Electric Ensemble, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, a Orquestra Gulbenkian e a Orquestra Esproarte, da qual foi maestro titular entre 2004 e 2008. É professor na Academia Nacional Superior de Orquestra e maestro titular da Orquestra Clássica de Espinho, onde desenvolve um projeto com jovens músicos em início de actividade profissional. Assumiu, em Abril de 2011, as funções de maestro titular da Orquestra do Algarve. Integra o núcleo de fundadores da came rata Alma Mater.
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Salvaguarda da Biodiversidade do Alentejo Meridional
Funcionando, ao mesmo tempo, como causa e como efeito de um novo capítulo na vida artística, cultural e religiosa do Alentejo, o Festival Terras sem Sombra tem, na sua génese, uma reunião de sinergias, pouco vulgar entre nós, que permite muitas formas de ver e, principalmente, de sentir o seu território – um espaço onde marcam presença idiossincrasias e patrimónios diversos, mas complementares. Tanto a multiplicidade como a pluralidade de perspectivas são, de resto, esteios fundamentais de uma proposta que, independentemente de se haver tornado já um dos rostos mais conhecidos da região, não existe só por si, nem se centra exclusivamente no universo da A rs Sacra. Pelo contrário, abre-se a causas relevantes para a sociedade actual, onde o voluntariado possa despertar pequenos gestos que ajudem a “marcar a diferença”. Possuidor de um formidável conjunto de recursos biodiversos, o nosso país enfrenta neste momento grandes responsabilidades, a nível global, para conservá-los e valorizá-los adequadamente, tarefa – nunca é demais lembrá-lo – que assume a maior relevância no Alentejo, um dos territórios com mais altos índices de preservação do Sul da Europa, mas onde a desertificação do interior rural e a concentração de habitantes e actividades no litoral levantam grandes desafios. Ao abrigo de um protocolo de cooperação com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (Ministérios da Agricultura e do Mar, e Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e da Energia), os municípios e outras instituições presentes no terreno, o FTSS promove, no dia seguinte a cada concerto, acções-piloto para a salvaguarda da biodiversidade. Estas iniciativas permitem que voluntários de origens ou perfis muito diversos – músicos, espectadores, staf f , membros das comunidades locais, etc. – colaborem, ombro com ombro, em actividades úteis à conservação da natureza, actividades simples, mas que encerram toda uma mensagem dirigida aos decisores e à opinião pública. O Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e o Festival Terras sem Sombra são parceiros do Ano Internacional da Agricultura Familiar, uma iniciativa da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
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30 de Março 2014 10H30 ALMODÔVAR COLABORAÇÃO
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, Departamento de
Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo (Parque Natural do Vale do Guadiana) Universidade do Algarve Somincor, S.A. APOIO
Câmara Municipal de Almodôvar
TESOUROS OCULTOS DA NATUREZA: PRESERVAR OS INVERTEBRADOS DA RIBEIRA DO VASCÃO Descobrir o mundo extraordinário dos invertebrados e compreender a sua importância nos ecossistemas são os objectivos desta acção. A fauna de invertebrados aquáticos permite aferir o estado de conservação das linhas de água. Vai testar-se a qualidade ecológica da Ribeira do Vascão, um verdadeiro laboratório vivo; para tal, serão recolhidas amostras de fauna aquática, com objectivos de observação, identificação e caracterização. Celebrando ainda a recente classificação deste curso de água como Zona Húmida de Importância Internacional (Convenção de Ramsar) [w w w . ramsar. o rg ], realizar-se-á um percurso para observação de libélulas e libelinhas, grupo que contribuiu para a integração da ribeira na Rede Natura 2000. O percurso será guiado por especialistas.
13 de Abril 2014 10H30 GRÂNDOLA COLABORAÇÃO
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, Departamento de
Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo (Parque Natural do Vale do Guadiana) Herdade das Barradas da Serra APOIO
Agrupamento de Escolas de Grândola | Câmara Municipal de Grândola | Confraria
do Sobreiro e da Cortiça | Santa Casa da Misericórdia de Grândola
COM OS OLHOS NO FUTURO: ASSEGURAR A RENOVAÇÃO DO MONTADO DE SOBRO O montado de sobro constitui um ecossistema que resulta de vários séculos de intervenção humana. Ciente da fragilidade dessa convivência, o produtor florestal que visitamos desenvolveu técnicas culturais para a renovação e enriquecimento do referido ecosistema. A acção alerta para temáticas fundamentais à conservação do solo, da água e do referido ecosistema radicular dos sobreiros e, consequentemente, à promoção da biodiversidade; decorrerá na Herdade das Barradas da Serra. Desenvolvem-se aqui técnicas de controlo de matos sem revirar o solo e de protecção deste mesmo solo na área da projecção da copa dos sobreiros. Outras iniciativas no campo da defesa da biodiversidade dizem respeito à construção de refúgios e esconderijos da fauna selvagem,
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à sinalização com vista a uma preservação de sebes/arbustos naturais para abrigo e nidificação e, ainda, à construção de pontos de água. Paralelamente, decorrerão actividades de descoberta da natureza dirigidas às crianças e o apadrinhamento de sobreiros centenários.
27 de Abril 2014 10H30 SANTIAGO DE CACÉM COLABORAÇÃO
Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, Departamento de
Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo (Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha) Turismo do Alentejo, E.R.T. APOIO
Câmara Municipal de Santiago do Cacém
O POTENCIAL ECOTURÍSTICO DO LITORAL PORTUGUÊS: GERIR SENSIBILIDADES, SUSCITAR EQUILÍBRIOS A Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha é uma Área Protegida com elevado potencial ecoturístico. Perspectivar o papel do turismo ecológico na conservação da biodiversidade, é o objectivo desta acção, que culminará na realização do Pe rcurso d o Salg ue iral d a Galiza. Trata-se de um bosque de salgueiros, de grande qualidade e raridade no contexto das zonas húmidas do Sul de Portugal, cuja valorização significa um verdadeiro repto para a comunidade. Forma uma galeria contínua, com ca. 1000 m de extensão, e integra milhares de salgueiros, em diversos estádios de desenvolvimento, que estendem as raízes à superfície do solo, formando uma rede radicular suspensa de dimensão invulgar. A flora do salgueiral mostra-se rica em espécies raras da flora, nomeadamente o The ly p te ris p alustris, feto de grande porte. No que concerne à fauna, é manifesta a sua importância enquanto local tanto de nidificação e repouso de aves, como de abrigo e alimentação de mamíferos, sendo ainda importante para a reprodução de anfíbios. O percurso inclui um passadiço sobrelevado, com ca. 640 m de comprimento, dotado de estruturas de observação e informação.
11 de Maio 2014 10H30 BEJA COLABORAÇÃO Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, Ponto Focal da Convenção
das Nações Unidas para o Combate à Desertificação e Parque Natural do Vale do Guadiana APOIO
Câmara Municipal de Beja | Instituto Politécnico de Beja, Escola Superior Agrária
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O AZINHAL E AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS NO BAIXO ALENTEJO: UMA VANGUARDA CONTRA A DESERTIFICAÇÃO O montado de azinho é considerado pelos especialistas, nacionais e internacionais, como uma barreira de primeira ordem ao avanço da desertificação em Portugal, mas precisa de medidas de incentivo à sua defesa. Actualmente, este ecossistema encontra-se em franca regressão, fruto de más práticas culturais, problemas fitossanitários e perda de vitalidade económica, que se traduziram na diminuição de mais de 10 000 hectares dos respectivos povoamentos nos últimos 15 anos. Há o risco de a situação se tornar catastrófica. Como inverter este ciclo? De que forma poderá o consumidor dos produtos do montado ajudar na manutenção deste importante sistema? O regime pecuário e a exploração de lenha de azinho são dois dos temas a abordar na presente iniciativa. Os participantes serão convidados a reconhecer as boas (e as más) práticas na poda da azinheira e a identificar os diferentes sistemas pecuários e os respectivos efeito no montado. A actividade incidirá na visita a explorações agro-silvo-pastoris, associadas ao Sítio da Rede Natura Guadiana.
17 e 18 de Maio CASTRO VERDE COLABORAÇÃO
Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, Departamento de
Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo (Parque Natural do Vale do Guadiana) | Liga para a Protecção da Natureza APOIO
Câmara Municipal de Castro Verde
ALTERNATIVA NOCTURNA
(17 de Maio, 23H30)
SEGUINDO A VIA LÁCTEA: CÉU ESTRELADO E FAUNA NOCTURNA Percurso nocturno de observação de fauna e estrelas. Quando o céu se põe no horizonte, inicia-se a actividade da fauna nocturna. Os participantes são convidados a vivenciar, de perto, os sons e as sensações da noite, num itinerário de observação de insectos, anfíbios, morcegos e aves de rapina nocturnos. No escuro, o som é, muitas vezes, o melhor aliado dos biólogos, permitindo identificar as espécies; para tal, recorre-se a métodos como a gravação ou a detecção de ultra-sons, técnicas que serão dadas a conhecer aos participantes. A sessão nocturna termina com uma observação de estrelas.
ALTERNATIVA DIURNA
(18 de Maio, 10H30)
HORTAS NO MEDITERRÂNEO: UM DEPÓSITO ESTRATÉGICO DE BIODIVERSIDADE Em 2014, comemora-se o Ano Internacional da Agricultura Familiar, um sinal notável de reconhecimento à contribuição desta actividade económica e social para a segurança
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alimentar e a erradicação da pobreza no mundo. O Festival Terras sem Sombra associa-se oficialmente à efeméride, promovendo uma acção nas hortas comunitárias de Castro Verde. A participação em tarefas quotidianas da horta (cavar, semear, regar, colher) e a inventariação da biodiversidade das hortas (sementes, cultivares, insectos, aves) são as acções previstas. No final, será promovida a troca de sementes e cultivares tradicionais da região, como o pau-roxo.
8 de Junho 2014 10H30 SINES COLABORAÇÃO
Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, Departamento de
Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo (Parque Natural do Vale do Guadiana) Universidade de Évora, Centro de Oceanografia, Laboratório de Ciências do Mar (CIEMAR) APOIO
Administração do Porto de Sines | Câmara Municipal de Sines | Santa Casa da
Misericórdia de Sines
PARA UMA GESTÃO SUSTENTÁVEL DO LITORAL: A TEMPESTADE HÉRCULES E O PERCEBE A gestão do litoral português é uma temática deveras actual. Se, por um lado, se coloca a necessidade de desenvolver métodos participativos de gestão de recursos do litoral (co-gestão), dos quais temos exemplos bastante encorajadores na Galiza, por outro lado, as recentes tempestades atlânticas, com destaque para a tempestade Hé rcule s, realçam a necessidade de ordenar espaços e utilizações do território costeiro. No primeiro caso, o percebe, crustáceo cirrípede do litoral português, muito apreciado e valorizado, é um dos recursos que carecem de gestão adequada. A Universidade de Évora está a desenvolver o projecto PERCEBES – Ge stão , Eco lo g ia e Co nse rv ação d o Pe rce b e , no âmbito do qual se manifesta a necessidade de uma gestão participada dos recursos costeiros. Os participantes vão compreender a ecologia do percebe, mediante a observação das suas características à lupa binocular. Quanto ao segundo caso, os participantes vão poder observar algumas das consequências da tempestade Hé rcule s, que ocorreu em Janeiro passado. Neste sentido, desenvolve-se uma acção de recolha de lixo marítimo, por voluntários, na Lagoa da Sancha, zona húmida que, até esse mês, não contactava com o mar há 40 anos. Será uma oportunidade para sensibilizar e actuar no tema, assaz preocupante, do lixo marítimo.
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29 de Junho 2014 10H30 MOURA COLABORAÇÃO
Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, Departamento de
Conservação da Natureza e das Florestas do Alentejo (Parque Natural do Vale do Guadiana) Liga para a Protecção da Natureza Associação para o Desenvolvimento do Concelho de Moura APOIO
Câmara Municipal de Moura
OLIVAIS, MATOS E GRUTAS: NO CORAÇÃO DA SERRA DE ADIÇA O concelho de Moura é vasto em riquezas naturais, montados, matagais, estepes, rios e ribeiras. Neste depositário de biodiversidade, as “serras” constituem formações verdadeiramente excepcionais, apresentando relevos de rochas calcárias no seio de formações xistosas. Adiça, Álamo, Ficalho, Serra Alta e Malpique são apenas alguns dos nomes dos cumes destas serras calcárias, que vamos identificar e interpretar na paisagem circundante. Ao longo de um percurso cuidadosamente definido, observaremos as variações na flora dominante e a sua diversificação, com a passagem das terras de xisto para os calcários de serra. Os montados dão lugar aos olivais tradicionais, imbricados nas vertentes (célebres pelo azeite de Moura), até chegar ao cume, onde os matagais não permitem penetração humana. Por outro lado, os topos das serras constituem corredores ecológicos, autênticas “vias verdes” para a fauna bravia. Neste quadro, tomaremos contacto com o projecto da Liga para a Protecção da Natureza relativo ao lince ibérico e com as acções de promoção de corredores entre manchas de olival de serra. De passagem, entraremos na realidade subterrânea. As serras estão repletas de grutas e cavidades naturais e incluem um dos abrigos mais importantes do país para morcegos cavernícolas, abrigando colónias de várias espécies, tais como o morcego-de-ferradura-mourisco e o morcego-rato-grande. Devido a estas características, encontram-se classificadas a nível europeu, constituindo o Sítio “Moura-Barrancos” da Rede Natura 2000.
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Mel de Rosmaninho: Um Tesouro do Vale do Guadiana
É um produto obtido a partir da flora espontânea do Parque Natural do Vale do Guadiana (Mértola, Baixo Alentejo), área com excepcionais condições naturais para a apicultura, pela sua flora rica e diversificada e pela predominância de plantas aromáticas. Região de tradição apícola enraizada, os documentos históricos – por exemplo, o aranzel das malhadas, de inícios do século XV – indicam um elevado grau de organização das “malhadas” e dos “colmeeiros”. As actividades humanas desenvolvidas nesta região caracterizam-se não só pelo carácter extensivo (agricultura, pecuária), mas também pela grande relevância da actividade cinegética, condições que promovem um mosaico de hab itats favorável à prática da apicultura. O rosmaninho (Lav and ula s to e chas ) constitui a fonte de néctar predominante; merecem também destaque o alecrim, a soagem e o poejo. Este mel distingue-se pelo tom claro, pelo aroma e pelo sabor muito doces, sendo-lhe atribuídas, segundo alguns estudos, qualidades anticancerígenas, além de constituir um preventivo de doenças degenerativas. É produzido em concordância com os princípios da apicultura biológica, estando em período de conversão pela entidade ECOCERT – PORTUGAL, qualificação exigente quanto à qualidade do ambiente nas zonas seleccionadas para instalação dos apiários, isto é, distantes de áreas contaminadas ou industrializadas, onde se pratica uma agricultura isenta de pesticidas. Por outro lado, constitui uma garantia da utilização exclusiva de produtos naturais no tratamento de pragas e doenças das abelhas. A diferenciação deste modo de produção está ainda nas boas práticas de extracção, tratamento e armazenagem dos produtos da apicultura. Produtora Ana Margarida Delgado Rocha, 39 anos, natural de Lisboa e residente em Castro Verde, é Doutora em Biologia pela Universidade de Évora. Para além da actividade apícola, tem desenvolvido diversos estudos na região, enquanto bióloga, sobre a relação das espécies e hab itats com as actividades humanas.
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5 de Julho 18H30
Prémio Internacional Terras sem Sombra Sines, Forte do Revelim
Na sequência de uma decisão tomada, na sua primeira reunião, pelo Conselho de Curadores, a organização do Festival Terras sem Sombra instituiu, em 2011, o Prémio Internacional com o mesmo nome, destinado a homenagear uma personalidade ou uma instituição que se tenham salientado, ao nível global, em cada uma das seguintes categorias: a promoção da M ús ica; a valorização do Pat rimó nio Cult ural; e a salvaguarda da Bio d iv e rsid ad e . A escolha dos recipiendários é da responsabilidade de um júri internacional, designado pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, como entidade promotora do Festival, uma vez ouvido o parecer das diversas instâncias deste. O Prémio consta de um diploma e de uma obra de arte encomendada a um artista contemporâneo, sendo entregue num momento culminante da temporada musical no Alentejo. Com periodicidade anual, esta distinção foi outorgado pela primeira vez, por S.A.R. o Príncipe Pavlos da Grécia, a 7 de Maio de 2011, em sessão solene efectuada na igreja matriz de Santiago do Cacém. Por decisão unânime, a escolha do júri contemplou a soprano norte-americana Cheryl Studer (Música), a Pontificia Accademia Romana di Archeologia, com sede na Cidade do Vaticano (Património Cultural), e o oceanólogo português Mário Ruivo (Biodiversidade). Em 2012, o Prémio distinguiu a soprano grega Dimitra Theodossiou (Música), a museóloga e historiadora de arte portuguesa Maria Helena Mendes Pinto (Património Cultural) e o biólogo espanhol Miguel Ángel Simón (Biodiversidade). Presidida pelo Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Carlos Moedas, em representação do Primeiro-Ministro, a cerimónia teve lugar no Auditório Municipal de Grândola, em 7 de Julho. A Casa da Cultura de Comporta (Alcácer do Sal) acolheu a cerimónia do Prémio Internacional Terras sem Sombra, a 6 de Julho de 2013, sob a presidência de S.A.R. a Infanta D. Pilar de Borbón, Duquesa de Badajoz. Foram galardoados o baixo italiano Enzo Dara (Música), a Associação dos Arqueólogos Portugueses, que celebrou, nesse ano, o 150.º aniversário da sua fundação (Património Cultural), e o investigador angolano Pedro Vaz Pinto (Biodiversidade).
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Enzo Dara
Associação dos Arqueólogos Portugueses
Pedro Vaz Pinto
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Agradecimentos
O Festival Terras sem Sombra foi fundado, em 2003, pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, por iniciativa do respectivo director, José António Falcão, coadjuvado por um pequeno grupo de voluntários. Entre esse ano e 2010, decorreu no âmbito de uma parceria com a Arte das Musas, sob a coordenação de Filipe Faria; a partir da 7.ª edição, realizada em 2011, tem como director artístico Paolo Pinamonti. O Conselho dos Curadores e a Comissão Organizadora do Festival Terras sem Sombra agradecem a José António Falcão, de modo muito caloroso, a sua generosa colaboração, como director-geral, ao longo de dez edições de uma iniciativa da sociedade civil que contribuiu notavelmente para enriquecer a fisionomia cultural do Alentejo, estabelecendo, de modo pioneiro, pontes entre a música, o património e a biodiversidade. São igualmente dirigidos agradecimentos a António Cartageno, Maria das Dores Galante de Carvalho, Ana Fonseca, Antoinette Lukacs e Aires A. Nascimento.
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CO-FINANCIAMENTO
UE FEDER
APOIO INSTITUCIONAL
MECENAS
CO-PRODUÇÃO
COLABORAÇÃO
APOIOS
MEDIA PARTNER
APOIO À DIVULGAÇÃO
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O Festival Terras sem Sombra ĂŠ membro de
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Fundado em 2003, o Fe stiv al Te rras se m So mbra tem vindo a afirmar-se como o mais destacado do seu género em Portugal.
a É uma iniciativa da sociedade
civil que visa tornar acessíveis, a um público alargado, os monumentos religiosos da Diocese de Beja, como locais privilegiados – pela história, pela arte, pela acústica – para a fruição da música sacra.
a Resulta da parceria entre o
Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, a Pedra Angular (Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja), o Turismo do Alentejo, o Teatro Nacional de São Carlos, os Municípios, as Paróquias, as Misericórdias, sem esquecer as “forças vivas” da região, como as empresas locais e as
a De carácter itinerante, coloca a tónica na descentralização cultural, na formação de novos públicos e na irradiação do Alentejo. a Tem uma
famílias.
programação de qualidade internacional de que fazem parte, além dos concertos, conferências temáticas, visitas guiadas e acções de pedagogia artística.
aO
diálogo entre as grandes páginas do passado e a criação contemporânea, a abertura a jovens compositores e intérpretes, a encomenda regular de novas obras, a transversalidade das artes, o resgate do património musicológico, a visão ecuménica do Sagrado são elementos estruturantes de um projecto que rasga fronteiras.
a Como pano de fundo, o FTSS dá a conhecer um território que
sobressai pelos valores ambientais, culturais e paisagísticos e apresenta um dos melhores índices de preservação da Europa.
a A valorização dos recursos
naturais constitui outra das suas prioridades: a cada espectáculo, associa-se uma acção-piloto de voluntariado para a salvaguarda da biodiversidade com a participação, ombro a ombro, dos artistas, do público e das comunidades que o
a Da carta mag na do Festival, fazem parte os princípios da inclusão e da sustentabilidade. a Os concertos e demais actividades são de
Festival percorre.
acesso livre, dentro dos condicionalismos impostos pela preservação dos monumentos e sítios visitados.
TERRAS SEM SOMBRA | 10.º FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO | 2014
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FESTIVAL DE MÚSICA SACRA DO BAIXO ALENTEJO
terras sem sombra Metáforas do Infinito A Espiritualidade nas Polifonias dos Séculos XI-XX