MIGUEL OLIVA TELESedições cifose
Miguel Oliva Teles
© Miguel Oliva Teles, Lisboa 2020 Todos os direitos reservados TÍtulo: DANILO Autor: Miguel Oliva Teles Composição e paginação: Matheus Martins Ilustrações: Catarina Oliva Teles 1ª Edição, Lisboa 2020 Edições Cifose
Para o Daniel Pizamiglio
6 um daniloemomadurosdiospiroscerúleoazulafetopostotudo: A1 (algum Km entre o Porto e o nosso quarto), 25 Novembro 2020
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Entra um calor pesado no quarto. Ou .. não entra nada. O calor é um grande contínuo de uma massa dilatada que preenche todo o ar lá fora e continua por dentro das casas e por dentro de nós também. Derrama e soterra tudo em marasmo, seca todo o ar e asperge-nos a pele de pequenas gotículas de suor (última tentativa dos corpos de quebrarem o pasmo e soltarem algo que viva, que se despegue e que tente deslizar). No computador soam as Lágrimas Negras. Também a Gal terá cantado este lindo lamento numa tarde assim. A voz dela, tão doce tão dorida, vibra dengosamente algumas partículas deste ar moroso. São também gotas, e por isso as lágrimas negras caem, saem. Doem. Também elas caíram numa tarde assim. E estas lágrimas são um esforço, como resistência de suor. E são uma carícia. A mão da Gal está nos meus cabelos, entra por madeixas
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9 cansadas e desbrava mimo com os dedos. Afinal, a mão, é dele. A mesma me faz fechar os olhos, ainda mais que quando os tenho fechados. Lágrimas negras para dentro. Com este toque e a última brandura do bafo conquista-me finalmente o calor: sou agora parte de todo este derrame, que me dissipa os limites e me desfaz, marasmático mas fremente, a vibração do suor em gota, o resvalar macio da voz que canta, as lágrimas negras e esta mão deleitosa. A massa de ar adentro e afora. Terminado o cafuné, lado a lado na cama, nem nos tocamos, ou já só nos sobraria evaporar. Mas olhando bem, já somos só vapor e, na verdade, vamos mais abraçados naquela massa de ar. Madrid, 4 Julho 2019
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11 uma ventoinha pequena muito sono um sábado e o ventinho no rabo. Graça, Lisboa, Junho 2019
12 Lisboa, 14 Maio 2019 aos compoucosashoras com os dias as nossas bocas que são duas não ficaram uma mas foram-se conhecendoacostumando-sememoriandoascontrações do lábio a temperatura das salivas e o ponto perfeito do dente que morde no tempo e na cadência certos como tecedeiras que fabricam uma história imprimindo tesão mimo e doçura nas malhas do tempo e da sorte: um novo beijo vivendo o mundo
15 quero dos teus beijos e essas mãos que levam mais bocas nos dedos. Lisboa, 6 Abril 2019
És assim, uma pedrinha de cristal em bruto. Uma gema que aquece. Que vive o calor geológico e o movimento da terra, com a verdade que lhe assiste e o instinto que o leva. Seguro na mão essa pedra e uma luz percorre-me o braço, o pescoço (em febre) e desce-me ao goto e ao sexo e volta (pelos pés) à terra, à terra e a ti e a tudo. E danço como danças tu, como se todo o corpo se entregasse a paixões, como se tudo fosse direto, como se a distância entre ação e reação fosse só a largura de um traço de afeto, só o suficiente que permita um limite, para haver um e outro e, assim, o toque. És uma nuvem, tão quente tão fria, toda temperatura! e pequenas goticulas de ar em vibração. Tudo em ti afeta e se afeta, permite e se permite. Instante, tudo em cessando e em desfazimento. Um abraço forte e doce da entropia, uma ode ao translúcido. Desarmamento. Entrega.
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Tamanha veracidade, transparência, imediatez, deixa nuas as sombras e nuas as luzes que te rodopiam dentro. Deixam claras as tuas cicatrizes e legíveis os teus alentos. Mas nem assim a tua mão se fecha. Nem assim teus olhos opacam. Nem assim a tua pele encolhe e o sexo se deita e a palavra se cala. Em ti (e é por isso que és tão belo) o vulnerável é o campo do mistério e o caminho tendendo para a verdade.
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Paris, 19 Março 2019 Daniel retratado.
18 preciso de um céu e de um abismo, que são os dois o mesmo. acima de tudo que nunca Lisboa, 24 Fevereiro 2019 (ao ver a vista da Graça, desde a janela da casa de banho do Daniel) me falte o ar
21 vem doçura e vence-me de vez, cheiodissipadovaziosóeoodoçura.marabertosolcindidoeuteucopioso e esvaziado de mim só espuma, carmim e leve e as musicas que mostraste enchendo o espaço volátil mas cheio feitocheiosó da tua doçura. Lisboa, Fevereiro 2019 (depois de falar com o Daniel ao telefone, de Lisboa para S. Paulo e de lá para cá)
22 nesta manhã o sol tímido e inclinado não chega para desenvencilhar as mãos apertadas pelo frio faz apenas desenhos na estrada recortando o perfil das árvores e dando sombras às grades do chegam-menestajardim.manhãvárias
saudades, amores como esse sol de uma fervura imensa mas de distante radiância. e as mãos guardo-as no peito porque é nessas figuras cortadas nas silhuetas de luz e escuro nos sons que guarda o rocio que vos conjuro
23 nas mãos ao peito (quais luvas!) há saudade e há calor aprisionado. Lisboa, Fevereiro 2019 (da Catarina e do Daniel)
24 afinal há outros domingos com luz a sair-lhes pelas costuras e onde o tempo nos deixa para outros lados ou mora, quieto, à nossa volta afinal há outros domingos onde até o pó das prateleiras e os objetos nelas postos são ondepoemasofriosó interessa porque as mantas multiplicam e se aquecem os corpos afinal há outros domingos onde cabem a Adília, presente sussurrado na noite, e as chaves deixadas em casa,
25 onde há volúpias noturnas e libidos eondeatrasosencasulamentosinesperadasdecamaeinaptidõesdetempoháquinoaeoutrosrebentosatéosucodebeterraba afinal há outros domingos onde esqueço que é domingo onde esqueço que há semana onde esqueço o que penso só nemaconteçotãosólembro o que faço. afinal há outros domingos e eles, Daniel, são todos coisa do teu regaço. Lisboa, 6 Janeiro 2019
26 adoro beijos aéreos eles chegam bem quentes como radiâncias de afeto ou fotões de carinho e o som dos lábios vibrando imprime inusitado momento um cafuné sem mão semebriedadevinho. Lisboa, 4 Janeiro 2019
29 Lisboa, pela Poiares de S. Bento na alvorada, 17 Dezembro 2018 (o Daniel ficou na cama) Passou um elétrico por mim. Era o 28, ia vazio: só o motorista, um manto de neblina, e o pequeno farolim, cinematograficamente disperso na rua de azul. Lançava, num feixe de nastro, uma luz ainda tímida no tom soporífero e farto da memória do quarto onde ‘inda agora te deixei. Vou eu, tentandoassimacusto adiar o dia e tu, misturado na manhã, e na rua. Não há mais gente à minha volta, nem outra companhia, senão, a tua.
30 um ondecheiosítioequentepossoviver o cansaço e o êxtase e o sonho num amplexo num regaço num calor que flui de um corpo ao outro durmo envolto no teu cheiro a amparadocôco pelo teu peito e pescoço.odescalçocaminhandoteu Lisboa, 13 Dezembro 2018
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33 aindacheiramàs tuas as minhasmãos. Lisboa, 30 Novembro 2018
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Cheguei e tinha a casa arrumada. Coisa simples, que não a tinha antes tão mal. Mas estava tudo num jeito tão doce, como se um gesto de ordem e carinho se houvesse posto nas coisas. Como um beijo que fora deixado à espera, suspenso no calor do lar (e olha que hoje é inverno e faz chuva e frio que chegariam para um ano inteiro). Como um cafuné, uma festa na nuca. Aguardando no silêncio da casa. Para sorrirem a quem acaba de chegar.
Lisboa, Novembro 2018
expectantes
A1 (algum Km entre o Porto e o nosso quarto), 25 Novembro 2020 6 Madrid, 4 Julho 2019 8 Graça, Lisboa, Junho 2019 11 Lisboa, 14 Maio 2019 12 Lisboa, 6 Abril 2019 15 Paris, 19 Março 2019 16 Lisboa, 24 Fevereiro 2019 18 Lisboa, Fevereiro 2019 21 Lisboa, Fevereiro 2019 22 Lisboa, 6 Janeiro 2019 24 Lisboa, 4 Janeiro 2019 26 Lisboa, pela Poiares de S. Bento na alvorada, 17 Dezembro 2018 29 Lisboa, 13 Dezembro 2019 30 Lisboa, 30 Novembro 2018 33 Lisboa, 28 Novembro 2019 35