Estamos Aqui e Somos Queer! - Táticas de Sobrevivência e a Gaytificação da Cidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO – FAU TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO ii

ESTAMOS AQUI E SOMOS QUEER! Táticas de Sobrevivência na Cidade- Armário

Por : Mikhaila Gutierrez Copello Orientadora: Mariela Oliveira Co-orientador: Igor de Vetyemy

Rio de Janeiro - RJ Julho/ 2019 3


Mikhaila Gutierrez Copello

ESTAMOS AQUI E SOMOS QUEER! Táticas de Sobrevivência na Cidade- Armário

Relatório final, apresentado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte das exigências para a obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo

Local, 01 de Julho de 2019.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof ª. Mariela Salgado Lacerda de Oliveira Arquiteta, prof.ª Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFRJ

________________________________________ Prof. Igor de Vetyemy Arquiteto, Prof. UVA/UNESA/IED

________________________________________ Membro Interno I

________________________________________ Membro Interno II

________________________________________ Membro Externo I

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Eu decidi morrer. Sem mais perguntas eu sei todas as respostas Deus me espera E eu estou pronto. Sempre se está pronto Para se encontrar com Deus Desde que se nasce É para isso que se vive. Ou não se vive. Eu não vivi. Aguentei. Lidei como pude. Mas não tentei. Porque não se tenta viver: Se vive. Ninguém vive. Só se aguenta. Se alguém tivesse escolha Esse mundo estaria vazio. E o céu também. Mas talvez o céu não fosse azul Se ninguém estivesse lá. Talvez ele fosse rosa. Alguém pintou o céu. Alguém pintou o mundo. Só se esqueceram de pintar A vida. João Paulo Rodrigues (01/1991 - † 12/2017)

(queria poder ter mudado o mundo, pelo menos o seu, antes de ver você vazio assim, João, mas eu vou continuar tentando. Eu amo você demais) 5


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Para João. Para minha família que sempre me acolheu. À meus orientadores Mariela Oliveira, Igor de Vetyemy e as amigas Mariana Stüssi e Carolina Muait.

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0 1 2 resumo

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Introdução

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conceitos de estudos de comportamento: 13 espaço público X queer 1.1 Estratégia X Tática

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Cidade-Armário e Arch-Armário 2.1 Entendendo a Cidade Armário 2.1.1 Os espaços públicos e

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privados da Cidade-Armário

1.2 18 Heterotopias X Heteronormatividade

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2.2 A dicotomia do armário 2.2.1 Entendendo a arquitetura como Archi-Armário

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3 4 5 Definição do espaço 35 queer na arquitetura

Estudo de caso: a Casa Nem

3.1 38 Arquitetura Queer e Design: Estratégias e Táticas

4.1 A Construção da memória: A Casa Nem como Palimpsesto anti-Monumental em ruínas

3.1.1 Tipos de Espaço Queer: espaço sexualizado, espaço político, espaço político-sexualizado

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44 3.1.2 O Espaço Queer X Queerizar a Arquitetura 46 3.1.3 Tipos de Regime de Opacidade / Camadas de Visibilidade: opaco, translúcido e transparente

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Conclusão

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Bibliografia

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62 4.2 Da escala urbana à escala corpo: dispositivos de autonomia e estruturação social e política na Cidade-Armário 66 4.2.1 Resistência e sobrevivência na cidade-armário: propostas de intervenção - O banheiro Sem Gênero - O módulo inicial : O “pod” e a projeção do grito - A nova Casa Nem - Praças propostas - Exemplos de Programas de necessidades e regimes de opacidade

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RUA joaquim silva

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resumo Resumo da Monografia de Graduação em Arquitetura e Urbanismo submetida à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo. Como você anda na cidade? Como você sobrevive? Se buscarmos oportunidade em identificar como as cidades são pensadas e construídas, sob um ponto de vista politico-estratégico de grupos de resistência LGBTQI+, facilmente notamos que as cidades são projetadas e edificadas por ideais violentos, patriarcais e heteronormativos. A vida daqueles fora da heteronormatividade não existe no léxico da teoria da arquitetura dominante, a profissão a considera fora do escopo do alcance do nosso trabalho. Esse projeto teórico/conceitual tem o objetivo questionar de que maneira a construção das cidades e, como o trabalho de arquitetos e urbanistas mantém a lógica heteronormativa opressora que contribui para a propagação da violência de grupos dominantes sobre minorias, fazendo uso de textos de teoria Queer e teorias sobre espaço e cidade e, após a análise, propostas arquitetônicas e manuais de como construir espaços que a população LGBTQI+ sobreviva na cidade armário, usando o entorno da Rua Morais e Vale e da Casa Nem, no centro do Rio de Janeiro, como área de pesquisa e questionamento.

Abstract Abstract of the essay submitted to the Graduate Program in Architecture, Faculty of Architecture and Urbanism, Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), as part of the requisites required to obtain a bachelor’s degree in Architecture and Urbanism. How do you move on your city? How do you survive? If we propose to identify how major cities are built and established, under a strategic and political view of LGBTQI+ resistance groups, we easily notice that cities are made and built by violent, patriarchals and heteronormative ideals. The life of those who live outside said heteronormativity are often non-existing in dominant architectural theory’s lexicon, the profession considers it to be outside the scope of our operation. This academic project has the main objective of questioning how the development and construction of the cities, and how the work of architects and urbanists maintain the heteronormative oppressive logic of violence that dominant groups use to subdue minorities, by using texts relating queer theory, space and the city and, after the analysis, introducing architectural projects and manuals of how to analyse queer spaces for the LGBTQI+ population to survive in the closet-city, using the surroundings of the Morais e Vale street, and the Casa Nem, in the center of Rio de Janeiro as the proposed research area.

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introdução O projeto teórico-prático aqui proposto tem o objetivo de debater como a construção heteronormativa das cidades se impõe a todos os seus habitantes, independente de suas identidades de gênero e orientações sexuais, portanto, tendo como objeto de estudo o corpo não-heteronormativo, ou o corpo queer, assim como um dos edifícios mais marcantes da resistência LGBTQI+ na cidade do Rio de Janeiro: A casa Nem. Pretende, ainda, refletir sobre como o trabalho de arquitetos e urbanistas mantém a lógica opressora que contribui para a propagação da violência de grupos dominantes sobre minorias. As justificativas para a análise deste trabalho baseiam-se na necessidade de incluir em todos os debates a importância dos estudos de teoria queer, da análise do corpo e do espaço queer como transformador social, assim como sua sobrevivência na cidade e a forma que resistem. Num país onde 343 LGBTQI+ foram assassinados apenas em 2016, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), onde a cada 25 horas um LGBTQI+ é barbaramente assassinado vítima da LGBTQIfobia, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra essas minorias - em números absolutos - e que estão crescendo exponencialmente: de 130 homicídios em 2000, saltou para 260 em 2010 e para 343 em 2016, tendo o ano de 2017 um aumento de 30% de mortes em relação ao ano anterior. A metodologia começa por pesquisa bibliográfica de textos sobre teoria comportamental e do espaço, incluindo também a análise de reflexões propostas por filósofos e arquitetos do universo LGBTQI+ e como estes podem ser relacionados à teoria e o modo de construir da arquitetura. Entrevistas com indivíduos LGBTQI+ servem ainda de ferramenta para compreender como essas reflexões se materializam na prática cotidiana da cidade-armário. O primeiro capítulo consiste na análise e pesquisa bibliográfica de Michel de Certeau, e Michel Foucault, ambos filósofos franceses que buscaram elucidar questões relacionadas à teorias comportamentais do espaço e do cotidiano, assim como a elucidação de termos básicos para a compreensão do que é heteronormatividade e o que é o queer. Em seguida, no segundo capítulo, busca-se entender a cidade como objeto disseminador de opressões, e então, a arquitetura e seu design como forma de expor vulnerabilidades, através de análises de Paulo B. Preciado e Gabrielle Esperdy. O terceiro capítulo baseia-se nos textos de J. M. Cottrill, Aaron Betsky, Michelle Joey-Hutchinson, Christopher Reed, etc. na tentativa de definir o espaço queer dentro da arquitetura e da cidade. Por fim, no quarto capítulo, é feita uma análise do entorno do objeto de estudo da parte prática deste trabalho, a Casa Nem, localizada na Rua Morais e Vale, na Lapa, no Rio de Janeiro, assim como entrevistas com LGBTQI+ para melhor entender suas necessidades. Após a análise, são apresentadas propostas arquitetônicas, debates e diretrizes de como construir espaços visando a sobrevivência da população LGBTQI+ na Cidade-armário do Rio de Janeiro.

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CAPÍTULO1

Introdução aos conceitos de estudos de comportamento x espaço público X o queer


1.1 Estratégia X Tática No livro “Practices of Everyday Life” (A Invenção do Cotidiano), o teórico e filósofo francês Michel de Certeau busca entender a forma como grupos de pessoas individualizam a cultura de massas, se apropriando desde objetos, rituais, linguagem e até leis para si. Suas maiores críticas se direcionam às áreas de profissionais que estudam tradições, cultura e símbolos, mas que não focam em como tais elementos culturais são re-apropriados por pessoas em seu cotidiano. Há aqui um ponto sensível, uma vez que na atividade do reuso está a abundância de oportunidades para pessoas comuns em subverter os rituais e representações que instituições tentam impôr a esses grupos. O resultado é que as ciências sociais tendem a criar um retrato de uma sociedade de pessoas não-artistas/ não-criadoras/ não-produtoras, sujeitas a apenas receberem a cultura dominante de forma passiva, subjugada. De Certeau cria então seu argumento-chave, fazendo uma distinção entre os conceitos de Estratégia e Tática. As estratégias, são ligadas à instituições e estruturas de poder (os que produzem), enquanto os indivíduos são os consumidores. Os consumidores atuam nos ambientes pré-definidos pelas estratégias através de táticas. Táticas são defensivas e oportunistas, usadas de formas ilimitadas e formadas momentaneamente entre espaços tanto físicos quanto psicológicos, espaços estes produzidos por esferas de poder. A cidade é gerada por estratégias de governos e outras instituições de poder, que produzem, por exemplo, os mapas e suas delimitações. Estes procuram definir a cidade como um todo unificado, enquanto táticas são feitas por aqueles que são subjugados por sua própria natureza, com seus próprios percursos.

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Um exemplo prático e presente no cotidiano do passante são os “Desire paths” (Caminhos desejados), descrito pelo escritor britânico Robert Farlane como “paths & tracks made over time by the wishes & feet of walkers, especially those paths that run contrary to design or planning” (Caminhos e trilhas criadas a partir da vontade dos pés dos pedestres, especialmente aqueles caminhos criados contrariando o desenho urbano) (FARLANE, , como ilustram bem os caminhos sem grama (em vermelho) que aparecem na Imagem 1.

Imagem 1: Contraste das rotas definidas pelas estratégias e as escolhidas pelos pedestres por táticas, em vermelho - Fonte: The Guardian

Como exemplo, o novo World Trade Center (Imagem 2), em Nova Iorque, ilustra a idéia de uma vista panóptica1 e unificada, mas por contraste, a percurso do passante não necessariamente é influenciado ao panóptico, ao usar atalhos e percursos diferentes dos impostos pela grid estratégica de Manhattan. O passante ao nível da rua se move de formas que são táticas e nunca totalmente determinadas pelos planos definidos por tais organizações.

1 O Panóptico é uma estrutura arquitetônica projetada para prisões, com as celas em torno de um ponto central: uma estrutura como torre de vigia podendo controlar o comportamento de todos os reclusos. Estes nunca poderiam estar cientes que estavam sendo observados, dado que a torre foi construída de forma a ser vista como opaca, portanto tinham a sensação que estavam sendo monitorados sempre.


Imagem 2: O World Trade Center como panóptico.

De Certeau investiga dentro do espectro das práticas de rotina e na “arte de fazer”, como andar, falar, ler, transar, etc., a idéia de que existe um elemento de resistência criativa a essas estruturas, apropriadas por pessoas comuns. A contradição inerente às estratégias é a que pressupõe que o controle destas jamais será perfeito e a condição na qual ela foi construída está em constante mudança, o que a torna cada vez mais obsoleta. Já as táticas, estão em constante estado de correção e re-apropriação, baseadas diretamente nas observações do ambiente vivido.

Em resumo, há uma distinção crítica entre estratégias e táticas nessa batalha de dualidades entre repressão e expressão. Como o próprio filósofo disse em seu livro: “Táticas não são um subconjunto das estratégias, mas uma resposta democrática à elas.”

“Táticas não são um subconjunto das estratégias, mas uma resposta democrática a elas.” 17


Mesmo que De Certeau tenha inicialmente citado o termo “Urbanismo Tático”2 (Imagem 3), que, em sua visão, tratava-se da apropriação pela escala-corpo (do cidadão, do passante) sobre a escala-urbana como forma de tornar a cidade mais inclusiva, em oposição ao “Urbanismo estratégico”, regrado pelas instituições, atualmente a apropriação do Urbanismo tático pode surgir de iniciativas tanto da escala-corpo como de instituições privadas e públicas. Saindo da geografia urbana e se aproximando da geografia humana ou escala-corpo, na Imagem 4, vemos em uma cena do documentário Paris is Burning3, um dos maiores exemplos de re-apropriação e performance de gênero com a disputa pelo prêmio “Realness” (Realismo), para aqueles que conseguiam melhor retratar figuras heteronormativas. A escritora bell hooks4,no capítulo “Is Paris Burning? “(HOOKS, bell - 1992. p-145 - 156), critica que o filme, com a visão de Livingston (diretora lésbica, cisgênera), retrata os bailes como locais de “adoração da realeza branca”. Seus participantes são retratados tentando se misturar com a cultura dominante, apesar do filme também apresentar os bailes como táticas de sobrevivência, de formação de espaços seguros e famílias para LGBTQI+ marginalizados. 2 Urbanismo tático, ou urbanismo de guerrilha, é um tipo de apropriação temporária, de baixo custo, do espaço construído, especialmente em cidades, com a intenção de melhorar vizinhanças locais e pontos de encontro na urbe. Proteger ciclovias, parques efêmeros, jardinagem de guerrilha, retirada de pavimentos e grades, abertura de ruas para pedestres, manutenções de baixa-escala são umas de suas intervenções mais frequentes. 3 Paris is Burning, da diretora lésbica Jennie Livingston, que mostra a realidade de comunidades LGBTQI+ latino e negras e seus bailes na cidade de nova Iorque, de 1984-1989, relatando de forma sensível como essa subcultura marginalizada resiste na sociedade ocidental, suas expectativas e sonhos, incluindo visões sobre identidade e sua construção, interseccionalidade, nuances de gênero e performance de gênero, o conceito de “Família”, injustiça social e como sobrevivem a influência capitalista e desejos normativos. 4 bell hooks é escritora, professora, feminista interseccional e ativista social americana.

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Imagem 3: Ocupação da escala-corpo sob um viaduto em Ottawa’s Queensway, no Canadá. Fonte: Spacing.ca Imagem 4: frame retirado do filme Paris is Burning, de Jennie Livingston.

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1.2 heterotopia x heteronormatividade Assim como Michel de Certeau, Michel Foucault também era um teórico francês que divagava sobre relações de poder nos espaços do cotidiano: Inicialmente citado em um de seus seminários denominado “Des Espace Autres” em 1967 e, posteriormente publicado em 1984, Foucault introduz o termo Heterotopia.

A heterotopia causaria efeitos não apenas sobre a ordem pública ou sobre um grupo dominante: esse tipo de espaço causaria uma sensação de desconforto a todos aqueles que o vivenciam. Porém, Foucault destaca que o espaço heterotópico continuaria a ser freqüentado pelos indivíduos na medida em que saciaria algum tipo de necessidade. Com isso, Foucault julgava positivo o papel das heterotopias Foucault passa a compreensão de que o século XX para a renovação social, ainda que não ocorresse é o século dos espaços, das geografias, no qual o de forma ordenada. que realmente importa é o espaço e não o tempo, não as durações e sim o local, enquanto o século Uma de suas metáforas mais comuns para tentar XIX passava a resgatar o discurso histórico, opon- explicar o conceito de espaço heterotópico é a do do-se então o século do tempo e o do espaço. Por- espelho, ou como o próprio disse em seu seminário: tanto, segundo Foucault, a sociedade se define pela “The mirror functions as a heterorelação entre-espaços, propondo então uma nova topia in the sense that it makes definição de espaços: as heterotopias. this place I occupy at the moment I look at myself in the glass both utApesar de não haver consenso sobre a exatidão do terly real, connected with the entire termo considerando sua vasta interpretação, de forspace surrounding it, and utterly ma geral, pode-se dizer que o autor cedia o caráter unreal - since, to be perceived, it is espacial ao termo dada a complexidade das relações obliged to go by way of that virtual e trocas na sociedade, somadas ao seu interesse point which is over there”5 (FOUem entender as relações humanas não normativas, CAULT, 1967) até marginais. Um novo termo era necessário para definir um novo espaço: Um espaço com diversas representações conflitantes em um mesmo local, Portanto, Heterotopias são espaços que estão vincom uma dinâmica social diferente em contraponto culados em aspectos e fases das nossas vidas e que, ao mesmo tempo que se espelham, distorcem a uma identidade dominante. ou invertem outros espaços. Como exemplos mais Para Foucault, Heterotopias são espaços reais ou específicos, o autor cita que heterotopias podem ser espaços imaginários que atuam como “outros es- de Desvio ou de Crise - o primeiro como locais onde paços” concomitantes com espaços já existentes, o comportamento não normativo pode ser exercido são espaços onde normas de comportamento estão (prisões, manicômios, asilos), e o segundo como suspensas. São o inverso de uma utopia, vista por variações culturais, que são espaços sagrados ou ele como espaço irreal, além de todos os espaços, proibidos para indivíduos em crise em relação à enquanto a heterotopia seria um espaço concreto, sociedade, como na puberdade, gravidez, terceira localizável, que causa desconforto, contestação e a idade, etc. 5 O espelho funciona como uma heterotopia no sentido que torna os clara inversão da regra imposta. locais que ocupo, no momento em que vejo meu reflexo no espelho, completamente reais, conectados com todo o espaço de seu entorno, ao mesmo tempo que completamente irreais, já que, para ser percebido, é obrigado a ser virtual por estar do lado de lá.

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Além disso, também podem se metamorfosear e ter funções específicas em diferentes partes do tempo, ou seja, são pré-determinadas como reflexo da sociedade em que existem. Assim como podem ser espaços que justapõem diversos elementos incompatíveis dentro do mesmo espaço (jardins).

Para Foucault, as relações de poder são onipresentes. São ações, atitudes e funções no cotidiano, mas na sua visão de disciplina e poder, seu panóptico foca na imposição do poder ao indivíduo e na construção de ambientes e mentalidades que ordenam e controlam a sociedade. De Certeau, em seu livro “A invenção do Cotidiano”, critica a visão de Foucault, sugerindo que os indivíduos podem possuir poder tanto em ‘aceitar’ tais relações de poder, quanto em resistir e manipulá-las sendo consumidores, através da reapropriação de recursos, espaços, linguagens e narrativas.

As heterotopias devem ter um sistema de abrir/ fechar, distância/penetração, entrada/saída e não são acessadas livremente - elas exigem algum tipo de permissão para serem inseridos, seja por um ingresso, um gesto, ou ritual; como também podem ter uma operação específica em relação a outros espaços, como as de ilusão (bordel) e compen- Enquanto o trabalho de Foucault voltava a atenção sação, que são lugares reais e únicos que simulam ao crescente movimento em direção à organização e se relacionam a condições de outro lugar. (como comunidade, como senso de grupo) como questão central de poder, De Certeau trouxe foco à complexidade desse fluxo unidirecional de poder, e também ao poder de ação que indivíduos podem usar para retomar esses fluxos, e como as ações do dia a dia agem como o locus dessa subversão.

“utopia é o local onde tudo é bom, distopia é onde tudo é ruim, heterotopia é aonde tudo é diferente.”6

6 Frase de Walter Russel Mead, acadêmico norte-americano

Finalmente, Foucault sugere o barco como um exemplo perfeito de heterotopia, pois é um espaço que flutua, que não está fixo a nenhum outro lugar, exceto a infinidade do mar. Ambos os filósofos citados tratavam de ideias de novos espaços de resistência à norma imposta por uma hierarquia presumivelmente superior. Os dois autores também se referiam às resistências das ciências sociais em admitir que os seus princípios, seus objetos, seus arranjos e os seus atores poderiam mudar o seu entorno. Foucault ainda deixou entender que a quebra dessa resistência seria relevante para a definição de uma relação entre Estado e sociedade que não seria baseada no controle.

Mas afinal, o que é essa heteronormatividade tão recorrentemente citada dentro de movimentos sociais LGBTQI+ nos últimos anos? A cultura ocidental é fixada na idéia de uma classe média, branca, geradora de filhos, monogâmica e casada, que habita todos os espaços, sejam eles privados ou públicos. Essa idéia se declara desde a forma mais sutil, como demonstrações públicas de afeto, até os maneirismos mais óbvios de homens e mulheres, delimitando todos os parâmetros estéticos do corpo e do comportamento individual e em sociedade. É a idéia de “normalidade” estampada em novelas, revistas, outdoors e filmes, na família do comercial e na aceitação do que é ‘certo’ pela sua sociedade, que pode ser confirmada pela sensação de familiaridade com a cena vista na Imagem 5 a seguir.

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Imagem 5: A família tradicional heteronormativa. Fonte: Getty Images.

academia como um termo mais abrangente do que apenas como referência à orientação sexual, sendo também usado para ajudar a definir todos aqueles que estavam fora da normatividade de gênero, aparência, trejeitos, maneirismos.

Deve-se ressaltar aqui que queer não necessariamente é relacionado apenas à população LGBTQI+, afinal, temos também casais de homens gays, brancos, classe média, ricos com filhos, com aparência e jeito de homem hétero, que conseguem se camuflar Para Lauren Berlant e Michael Warnes (1988), a perfeitamente dentro de uma sociedade normativa, heteronormatividade é mais do que uma ideologia portanto podem não ser lidos por alguns setores da ou preconceito/medo contra LGBTQI+. Ela está re- população LGBTQI+ como queers. produzida em quase todos os aspectos da vida social: nacionalidade, Estado, lei, comércio, medicina O termo queer é tão abrangente que inclui diversos e educação, assim como nas convenções e efeitos espectros de sexualidade, gênero, e até performancda narrativa, romance e outras áreas que convém es de gênero. Nos final dos anos 80, surgiram, em à cultura. De acordo com os autores, essa onipres- Nova Iorque e outros centros urbanos, os club kids ença em todas as área do cotidiano ocidental, reafir- (Imagem 6), que eram - para a sociedade heteronorma a máxima: “A heteronormatividade se coloca em mativa - jovens estranhos, extravagantes , que freoposição a todas as pessoas queer” (Sex in Public, quentavam boates e socializavam em lanchonetes 1988, p. 547-566). na madrugada, mas que não eram exatamente Drag Queens. Mesmo que ambos fizessem performancSabendo então o que é a heteronormatividade, es de gênero exageradas e hipérboles de estética. o que é ‘Queer’, exatamente, e como podemos Além disso, não havia regra quanto ao gênero (cis/ relacioná-lo com as heterotopias? trans) ou sexualidade de quem a performa, os club kids não realizavam shows para mostrar sua perNos primeiros registros da palavra, inicialmente, no sona, e sim apenas a vivenciavam constantemente. século XVI, “queer” era um termo para aqueles fora da normatividade social, referido como aquilo que era “torto” ou “oblíquo”, e até mesmo “perverso”, mas a palavra teve seu uso redirecionado, no século XIX, como um termo pejorativo para aqueles fora da heteronormatividade, usado em brigas de bar para definir o bizarro, feio, esquisito e preferencialmente usado para diminuir pessoas não-cisgêneras e homossexuais. O termo foi re-apropriado por militantes gays e lésbicas no início dos anos 90 e então introduzido pela

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Imagem 6: Michael Alig, o precursor dos club kids (até sua prisão), e outras personalidades no Tunnel Club, em Nova Iorque, 31 de Dezembro de 1993. Foto de Steve Eichner.

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A filósofa americana Judith Butler colocou em seu livro “Problemas de gênero” a seguinte contribuição a essa reflexão: “O corpo do indivíduo não é autônomo da sociedade, nós cedemos o corpo aos outros para aceitação e rejeição, essa performance e o ato fluido é específico de cada indivíduo. Um possui e não possui seu próprio corpo. Para combater tal desumanização do corpo, a sociedade deve considerar possibilidades fora da heteronormatividade, e para minorias sexuais e de gênero, tal mudança da perspectiva heteronormativa sobre sexualidade é a única forma de possibilidade.”(BUTLER, 2003) A chave para essa mudança exige a proteção a essas minorias antes que a mudança possa acontecer por completo. Eis que surge a necessidade das heterotopias, de novas táticas, de espaços seguros. Como mencionado anteriormente, as heterotopias de Foucault são um conceito de geografia humana para descrever espaços que funcionam em condições não-hegemônicas. As heterotopias definem um conceito de teoria Queer que começa a explorar o indivíduo em relação à sociedade. O filósofo clama por uma sociedade rica em heterotopias diversas, não apenas para afirmar suas diferenças mas como forma de escape do autoritarismo e repressão. Suas naturezas fluidas mudam com a passagem do tempo: algumas desaparecem, outras se dividem, outras evoluem, mas principalmente não permitem qualquer um de habitá-las livremente. Elas são separadas, nunca estão completamente fora da sociedade, são áreas insulares de mudança, uma crítica a todos os lugares e espaços.

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“THE QUEEREST OF THE QUEER The strangest of the 7 strange” ________________ 7 Música da banda Garbage chamada “Queer”, meu primeiro contato com o termo, aos 12 anos.


CAPÍTULO 2 Cidade- Armário e Arqui-Armário


2.1. Entendendo a Cidade como Cidade- Armário Baseado no texto de Claudio Oliveira Carvalho e Gilson Santiago Macedo Júnior de 2017, este capítulo buscará explorar a compreensão da cidade a partir do ponto de vista da interpretação de David Harvey (2012) sobre o tantas vezes revisitado conceito do direito à cidade de Lefebvre (1968), e da vivência LGBTQI+. Os dois autores brasileiros explicam: “A cidade se ergue como reflexo e como proteção das idéias e valores dominantes, sendo sua sociedade heteronormativa - ou seja - a heterossexualidade como normal sexual legítima e moralmente constituída. Assim, a cidade também se constitui enquanto um ambiente que mitiga subjetividades, rejeitando as sexualidades e identidades de gênero desviantes da norma sexual imposta pela heterossexualidade compulsória.Com a construção heteronormativa da cidade, temos a Cidade-Armário, lida como a expansão do armário, que é o ambiente de proteção/ ocultação da sexualidade não-normativa no âmbito urbano.”

a comunidade LGBTQI+ visando sua proteção e garantia de acesso à direitos. Ao ignorar a presença e a participação dos LGBTQI+ na cidade, é gerada a invisibilidade social LGBTQI+, e a redefinição da cidade enquanto cidade-armário. No nosso país, para ilustrar a ausência de dados estatísticos oficiais e - consequentemente - a ausência de políticas públicas voltadas para a sobrevivência e dignidade dessa parcela da sociedade, a principal fonte de estatísticas sobre a população LGBTQI+, desde 1980, vinha da ONG Grupo Gay da Bahia (GGB). Apenas em 2012 foi criada a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH-PR), que fez a primeira publicação oficial do governo em âmbito nacional acerca do tema.

Especificamente para o Rio de Janeiro, de acordo com o Dossiê LGBT+ de 2018, do Instituto de Segurança Pública, existem alguns programas a serem considerados: O programa Rio sem Homofobia, ligado à Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI), com relatórios de canais de atendimento como o Disque Cidadania LGBT e os Centros de Cidadania LGBT, entre 2010 e 2014. O Estado conta também com os Centros de Referência de Promoção da Cidadania Aqui se faz importante a análise da expansão da LGBT com serviços de atendimento jurídico, social cidade-armário e de como se ergue esse fenômeno e psicológico para LGBTQI+ vítimas de violências, através da invisibilização e violência contra grupos assim como familiares e amigos, para promover a e indivíduos LGBTQI+. cidadania do LGBTQI, com 04 unidades espalhadas pelo Rio de Janeiro. A cidade não se mantém impassível perante as transformações de pensamento. Se a cidade é Existe o direito ao uso do nome social (2011) e da moldada a partir dos interesses das classes dom- carteira de identidade social (2017) para transexuinantes, entendemos que ela tem donos, que não ais e travestis, por meio de pedido judicial no DEsão nem os trabalhadores, nem o povo (Lefebvre, TRAN-RJ, e a garantia de acesso às Delegacias Es1991). Portanto, tendo a cidade donos, vemos que pecializadas de Atendimento à Mulher (DEAM) por ela é pensada em um sistema no qual sabemos a parte de mulher transexuais e travestis (2018), gequem se destina, pois não há políticas públicas para rando jurisprudência para o enquadramento delas

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dentro da Lei Maria da Penha. Em 2018, se determina a punição administrativa à estabelecimentos e agentes públicos que discriminem um indivíduo por orientação sexual ou identidade de gênero; a criação do Grupo de Trabalho Permanente de Políticas Públicas para LGBTs (GT SISPEN LGBT/RJ) (2015) e a Coordenação de Unidades Prisionais Femininas e Cidadania LGBT (COFEMCI) (2018) voltado para a população LGBTQI+ em cárcere, e em 2017, o projeto Trans+Respeito. para a inclusão de travestis, mulheres transexuais e homens trans no mercado de trabalho. Em uma cidade que, atualmente, convive com mais de uma vítima de LGBTQIfobia, vemos que as políticas públicas recentes ainda não surtiram efeito para garantir a sobrevivência da população LGBTQI+ na cidade. A cidade do Rio de Janeiro se consolida então como a Cidade-Armário. E o que devemos fazer com o armário? Devemos , primeiramente, compreendê-lo e então: destruí-lo. Afinal, a cidade, como mencionou David Harvey em seu texto “A Liberdade da Cidade” (2013), deve ser aquilo que desejamos, se não, deve ser mudada. “A cidade pode ser julgada e entendida apenas em relação àquilo que eu, você, nós e (para que não nos esqueçamos) “eles” desejamos. Se a cidade não se encontra alinhada a esses direitos, então ela precisa ser mudada.(...) ele pode apenas ser formulado como um renovado e transformado direito à vida urbana. A liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações.”

Diretrizes da ONU para a proteção da população LGBTQI+ ▪ Discriminação: Deve-se proibir a discriminação de pessoas LGBTQI+ ▪ Despatologização: A ONU recomenda a despatologização e repudia o tratamento médico coercitivo. ▪ Campanhas: Mensagens públicas criticando crimes de ódio contra LGBTQI+ devem ser adotadas. A campanha Brasil Sem Homofobia, lançada em 2003 pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva e mantida até 2011, é citada como exemplo positivo. ▪ Bullying: O bullying motivado por orientação sexual ou identidade de gênero tem efeito duradouro na vida das pessoas LGBTQI+. A ONU recomenda o treinamento de funcionários e o fornecimento de informações sobre questões de sexo, identidade de gênero e características sexuais. ▪ Crimes de ódio: Menções a orientação sexual, identidade de gênero e características sexuais devem ser incluídas em leis contra crimes de ódio ou incitação a crimes de ódio. ▪ Aplicação da lei: Legislações contra violência e incitação à violência devem ser aplicadas, independentemente de haver menção específica a LGBTQI+. ▪ Monitoramento: Países devem encorajar a coleta de informações sobre violência, crimes de ódio e discurso de ódio. ▪ Treinamento: Agentes de segurança devem ser treinados de forma a respeitar os direitos humanos do público LGBTQI+. ▪ Suporte a vítimas: Vítimas de crimes de ódio devem ter apoio do Estado, inclusive médico, legal, psicológico e de moradia. ▪ Proteção de detentos: A ONU recomenda que se protejam detentos LGBTQI+, que são especialmente vulneráveis a “humilhação, abuso, estupro e outras formas de violência sexual e física”. ▪ Asilo a vítimas: Leis referentes à concessão de asilo a refugiados devem reconhecer a perseguição por identidade de gênero, expressão de gênero, orientação sexual ou características sexuais como argumento. 27


2.1.1 - Os espaços públicos e privados da Cidade-Armário: Para os autores, na cidade-armário, os espaços públicos e privados podem ser representantes de um mesmo lado de uma relação antagônica, descrita pelo sociólogo Roberto da Matta (1979) em sua reflexão sobre a dualidade RUA / CASA. Segundo da Matta, a rua é o local de descontrole, imprevistos, acidentes, paixões, enquanto a casa o local de controle, harmonia, autoritarismo, calma, calor e afeto. Na casa, há o regimento de hierarquizações sociais (idade e gênero); na rua predomina o caos: as hierarquias existem mas são ocultas, são espaços de ninguém. É um universo hobbesiano1, até que uma hierarquização surja e promova a ordem.

Além de questionar as políticas públicas vigentes, devemos questionar a produção dos espaços públicos e privados enquanto espaços de sociabilidade - e a nossa cidade se constitui como a cidade do interdito dos LGBTQI+. Repensando a relação entre espaço público e heterotopia, para que as cidades funcionem, há uma necessidade de forças estratégicas de controle para trazer organização e ordem. Por outro lado, visando que as cidades sejam espaços maleáveis, amigáveis, comunitários, inclusivos e vibrantes, deve-se ter um pouco de desordem - assim, os indivíduos terão direito e ação sobre os espaços em que ocupam. Desejando que a cidade seja um espaço que o indivíduo possa refazê-la, ela deve permitir a ação de seus habitantes, para convidar o próprio a reformar o espaço em que ele possa viver bem.

No ambiente público e no privado, outros grupos sociais distintos se encontram, portanto novas análises devem ser feitas, com o cuidado de não se esbarrar/ sobrepor nas novas ordens - até então - desconhecidas e ignoradas. Para os LGBTQI+, no entanto, a rua representa sim o medo e o descontrole. Mas a Assim como é mencionado a fala da arquiteta e aucasa também. tora Jane Jacobs, em coletânea de textos publicado em 2016, no livro “Vital Little Plans” (JACOBS, Jane No Estado do Rio de Janeiro, em 2017, foram 431 - 2016. p. 204) vítimas de violência motivada por LGBTfobia que registraram ocorrência nas delegacias do estado. “O padrão que eu vejo é que as Mais da metade das vítimas (55%) conheciam os pessoas que estão mais próximas autores da violência e 43,4% dos crimes ocorreram dos problemas práticos ficam imem ambientes residenciais. Mais especificamente, potentes para resolvê-los. As deTRAVESTIS são assassinadas em vias públicas cisões são impostas de cima. Não (56%) enquanto gays e lésbicas são assassinados é permitido que o desenvolvimento dentro de casa (36%) ou em estabelecimentos púemerja de baixo, o que leva a poublicos (8%). cas coisas de real valor emergindo em qualquer lugar.” 8 Thomas Hobbes foi o primeiro filósofo moderno a articular uma teoria detalhada do contrato social, com sua obra Leviatã, de 1651. Em sua obra, Hobbes diziam que os homens necessitavam de garantias para melhor viver em sociedade. Para evitar esta situação de constante incerteza, os indivíduos concordam com um contrato social, estabelecendo assim a sociedade civil, sendo esta uma reunião de indivíduos sob uma autoridade soberana, para a qual todos concordam em ceder alguns direitos, ou parte de seu direito natural a todas as coisas, em troca de proteção, especialmente na forma de garantia dos acordos entre indivíduos.

rua x casa público x privado ( morremos mesmo assim )

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2.2 - A dicotomia do Armário Para melhor entender a cidade enquanto armário, perguntamos: quais são os espaços reservados aos LGBTQI+? E quais os espaços negados à população heterossexual? Uma vez que assumimos que a cidade não é produzida visando o coletivo, e sim a partir de visões de uma determinada classe, construída de forma ideológica, o que se verifica nos tempos atuais é a expansão do sistema patriarcal e do sistema heteronormativo à esfera pública. A sexualidade não diz respeito mais somente à esfera privada, passando para o campo público e se tornando cada vez mais uma manifestação política nos espaços urbanos, mas ao mesmo tempo que a urbe instiga a falar de si, ela se fecha àqueles que são opostos aos padrões pré estabelecidos de sexualidade e gênero. (FOUCAULT, 2003 - p.82) O poder vinculado através dos discursos é que funda um espaço baseado em binarismos (homem x mulher; hétero x homo; etc..) não dando conta das múltiplas configurações humanas. Já que a cidade não assimila além dos binarismos, ela se torna palco de violência contra as minorias sociais, mitigando subjetividades. Por meio do discurso, a figura do armário é colocada como um ambiente necessário a preservação da privacidade daquelas desviantes da norma. O que não é norma deve ser ocultado, uma vez que representa risco à ordem sexual vigente. Mas, ao mesmo tempo que protege, o armário é uma estrutura definidora de opressão, que obriga a homossexualidade e a transgeneridade a permanecer no campo privado, então ocultas dentro do armário. “A imagem de nos assumir confronta regularmente a imagem do armário, e sua posição pública sem ambivalência, pode ser con-

traposta como uma certeza epistemológica salvadora contra a privacidade equívoca oferecida pelo armário. O armário é silêncio, mas também é fala.” (SEDWICK 2007. P. 27) A violência sofrida pelos LGBTQI+ gera um sentimento de descrença nos aparelhos do Estado responsáveis por assegurar a ordem e a manutenção da cidadania. Não são raros os casos de violência policial contra LGBTQI+, ainda mais evidente contra travestis. Devemos falar sobre a apropriação dos corpos dos LGBTQI+ não só pelo aparato do Estado, como pelo capital em si. A marginalização dos LGBTQI+ ultrapassa os recortes de classe e raça, ela ofende o capital até que seja interessante para o capital reapropria-los com verniz democrático.

“Um vizinho gay desvaloriza o imóvel” “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay” Jair bolsonaro, presidente brasileiro eleito, em declarações públicas.

x Uma das diversas marcas americanas com slogans de venda para população LGBTQI+ em plena parada gay nova iorquina. Diversidade só para venda.

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Um exemplo simbólico da apropriação falsa de demandas LGBTQI+ pelo Estado ocorre na Parada do Orgulho Gay de Nova Iorque, quando a polícia nova iorquina, conhecidamente violenta com a população queer, troca seus logotipos com simbologias próprias da cultura LGBTQI+ (Imagem 7). Esse tipo de prática é conhecida como “pink washing”2 (lavagem rosa), quando artistas, lojas, governos, etc. levantam bandeiras LGBTQI+ apenas com o intuito demagógico ou visando atrair a população LGBTQI+ para lucro próprio.

mente, protestam contra sua presença (Imagem 8), afinal, a polícia nova iorquina é a maior força de truculência direta contra grupos marginalizados (especialmente negros, pobres e transexuais) no estado, agindo como a mão de ferro de governos não tão progressistas.

Imagem 8: “Não existem policiais amigos dos queer” - Manifestação dentro da parada gay de Nova Iorque, em 2017. Foto de William Volkov para NBC news.

imagem 7: Apoio superficial da polícia no meio de uma parada gay nova iorquina. Fonte: ABC News.

A parada gay americana, especialmente a de Nova Iorque, demonstra um grande exemplo de apropriação do capital de corpos LGBTQI+. Uma grande festa privatizada, com abadás e acessos negados ao público geral, poucas propostas ou pautas políticas são exigidas. Sobre os trios, frases generalizadas, homens com corpos esculturais quase inalcançáveis, famosos heterossexuais, e logomarcas em todos os lugares.

Em 2017, diversos ativistas da comunidade LGBTQI+ de Nova Iorque, tentaram minimizar a presença de policiais na Parada Gay, o que resultou, ironicamente, na prisão de diversos ativistas em frente ao Stonewall Inn, um bar que foi palco das primeiras revoltas que eclodiram nos anos 60 contra a brutalidade do Estado, especialmente da polícia. Aos corpos brancos, gays e masculinos permitidos pelo capital: a grande festa temporária, a propaganPoliciais homossexuais conquistaram o direito de da ocasional. Às travestis é reservada a cidade noparticiparem da Parada Gay de Nova Iorque em turna, quando todos dormem e não podem ver seus 1981, mas os ativistas LGBTQI+ da cidade, atual- corpos. Não lhes é cedido o direito de se locomoverem pela cidade, de acessar os serviços de saúde, 9 A expressão é especialmente usada para se referir à lavagem da imagem do Estado que Israel faz, promovendo convenientemente suas leis educação e aparato jurídico-policial, nem suas democráticas à população LGBTQI+, disfarçando a violação sistémica próprias paradas de orgulho LGBTQI+. Até mesmo dos direitos humanos da população palestiniana. Ao projetar a aparência de ser um território gay-friendly, a população LGBTQI+ pode chegar a se para acessarem propagandas, só as travestis com identificar com as posições políticas do Estado (homonacionalismo), par- passabilidade são permitidas, ou seja, as que - de ticipar da islamofobia institucionalizada ao considerar que a população certa forma - parecem esteticamente aceitáveis aos muçulmana é necessariamente homofóbica ou ignorar a discriminação padrões normativos da sociedade. sofrida em seu próprio país.

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2.2.1 - Entendendo a Arquitetura como arqui- Armário

Imagem 9: A Casa FarnsWorth, obra de Mies Van der Rohe, nos Estados Unidos. Fonte: Wikipedia

Saindo da escala da cidade e pensando na arquitetura na escala corpo, Paulo B. Preciado, no texto: “Mies-Conception3: La casa Farnsworth”, trata do seu entendimento da Arquitetura-Armário ou Arqui-Armário ao analisar a casa Farnsworth (Imagem 9), obra do arquiteto Mies Van der Rohe. Para Preciado, a casa Farnsworth - que o autor coloca como a primeira “casa de cristal” doméstica da arquitetura - parece apoiar-se sobre uma dupla contradição, sendo a primeira a oposição entre a estética de transparência e visibilidade (diretamente vinda das qualidades tectônicas da casa) e da opacidade dos discursos e polêmicas gerados pelas relações de quem habitou x quem construiu a casa, afinal “não há melhor segredo que aquele que se oculta por trás da transparência de um vidro”.

voltada ao modernismo como regime visual e como uma nova transformação dos limites da privacidade sendo definido como “ditadura cultural”. A crítica se mostra como a retórica do “sair do armário” (levar à luz pública o segredo de alguém), especialmente ao dizer que o Modernismo estava se “destapando” e que, portanto, precisava de mecanismos corretivos para voltar a ser social. Na época, a Guerra Fria trouxe o confronto que saía do espaço geográfico do Estado (escala-país) para o espaço do corpo humano (escala-corpo), que podiam ser penetrados e cujos segredos podiam ser expostos. Naquele momento, a homossexualidade e o comunismo eram as ameaças mais sérias contra o “corpo social”.

Existe uma relação importante ao avaliarmos a crítica Voltando à Sedwick, “sair do armário” é um procesque a casa recebeu de Elisabeth Gordon, em 1953, so interminável de gestão de informação, de revelação/ocultação, por onde o LGBTQI+ produz sua 10 Um trocadilho com o termo Misconception (equívoco, no português) identidade por um processo de auto-representação. e o nome do arquiteto Mies Van der Rohe

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A parte opaca da casa: Armário central (até o teto) e dois banheiros. “... um convidado tem seu próprio banheiro mas não seu próprio quarto. Ele, ou ela, poderiam dormir no sofá ou eu colocaria um colchão no chão. Nós coabitariamos numa espécie de croqui tridimensional (...)”4

4 Edith Farnsworth, “Memórias,” Capítulo 13.

A parte translúcida da casa, quase transparente, continha o único quarto, a cozinha, e as salas de jantar e estar. “A verdade é que nessa casa de quatro paredes de vidro eu me sentia como um animal em ronda, sempre alerta. Eu estou sempre inquieta. Mesmo às tardes eu me sentia como uma sentinela em guarda dia e noite.” 5 “Eu não tenho lixo debaixo da pia. Sabe por quê? Porque você pode ver a cozinha inteira da estrada que dá aqui (...), então eu a escondo no closet (...). Mies fala sobre seu “espaço livre”, mas este espaço é demasiado fixo. Não posso nem colocar cabides na minha casa sem considerar como isso afeta tudo visto de fora (...) porque a casa é transparente, como um raio X”. 6 5 Edith Farnsworth, “Memórias,” Capítulo 13. 6 ibidem.

Na casa Farnsworth, podemos usar o conceito de Arquiarmário para entender o jogo entre transparência e opacidade como regime de visibilidade, usando-o para denominar “armário” à todos os regimes de segmentação dos espaços de visibilidade e conhecimento que tem o objetivo de gerir a identidade sexual dentro da exposição privado/público. Mies transfere o vidro dos edifícios públicos e institucionais para o espaço doméstico e acaba por expor os mecanismos que mantêm a fronteira fictícia entre o privado e o público ao subtrair e exibir bruscamente as operações domésticas ao público, levando ao “outing” massivo da vida de Edith Farnsworth. A casa se tornou o armário perfeito, quanto mais mostrava, mais guardava seu segredo. Outros famosos exemplos de edificação residencial modernista como a casa Farnsworth são a casa de vidro e a casa de hóspedes de Philip Johnson (Glass House/ Guest House- Imagem 10); ambas estão longe de estar em oposição, e operam como Arquiarmários, ou seja, negociam a visibilização pública de suas respectivas identidades. Tratando-se da vida pessoal dos citados, não foi só a vida privada de E. Farnsworth que foi exposta à imaginação do público. Coincidentemente - ou não - Philip Johnson é o único “Starchitect” conhecidamente homossexual, o único com a sexualidade exposta para debate no meio da arquitetura.

Imagem 10 - Casa dos hóspedes (ou Casa de Tijolo), à frente, e Casa de Vidro, ao fundo. Fonte: theglasshouse.org. Acessado em Fevereiro de 2019.

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Não é apenas na arquitetura modernista que cunhou sua presença desde os anos 60, que vemos exemplos de edificações com a capacidade de expor comportamentos, definir novas formas veladas de se relacionar, e criar novos marcos para a população LGBTQI+ na cidade-armário. A seguir incluiremos nas exemplificações edifícios importantes para a narrativa queer histórica, que ocorreram no decorrer no século XX, nos Estados Unidos. Em 2013, na universidade Van Alen de Nova Iorque, a crítica e historiadora de arquitetura norte-americana Gabrielle Esperdy7, em seu seminário denominado “The Footprint of Scape” (Os vestígios do escape), relaciona as formas que a população LGBTQI+ define e aplica suas táticas de sobrevivência e apropriação na cidade de Nova Iorque, referida pela autora como rotas de escape da própria urbe. O primeiro exemplo mostrado por Esperdy era a rede de restaurantes/bares chamada Child’s (Imagem 11) que - de certa forma - aceitava clientes homossexuais no início da década de 20. Na época, era ilegal existir congregações com qualquer conotação sexual entre pessoas do mesmo sexo, portanto, abriam também em horários menos convencionais (ou seja, tarde da noite), quando pessoas queer, e outros grupos marginalizados, tendem a ocupar espaços pela cidade, especialmente espaços periféricos e boêmios, já que pessoas heteronormativas voltam para suas casas, assim, não os vêem transitando pelas ruas. A rede acabou se tornando uma realidade de escape para a população queer, onde o regime de visibilidade se dava não pela transparência de sua fachada, mas pela dicotomia de ocultação/ exposição, que se dava dentro de uma certa sazonalidade, ou seja: noite/dia.

Imagem 11: Restaurante Child’s, em Nova Iorque, na década de 20. Fonte: < dinerhunter.com > Acesso em: Junho, 2019.

Em Castro, um bairro da cidade americana de São Francisco, atualmente conhecido como expoente para a população LGBTQI+, e que também foi o primeiro bairro abertamente gay nos EUA, há um bar chamado Twin Peaks Tavern, que, na década de 60/70 era frequentado por LGBTQI+ em diversos horários (e não apenas na parte noturna). Quando as novas proprietárias do bar MaryEllen Cunha e Peggy Foster assumiram sua administração em 1972, enquanto o bairro ao seu redor começava a se tornar o epicentro de encontros para a população queer do estado, mudaram toda a dinâmica de seus frequentadores em relação ao bar através de uma simples atitude: Este, que existe desde 1935 como um bar operário, se tornou o primeiro bar gay em São Francisco ao retirar a cobertura de tinta de suas janelas, deixando a mostra seus visitantes LGBTQI+ (Imagem 12).

Imagem 12: O bar Twin Peaks em dois momentos. Fonte: <www.yelp. com > Acesso em Junho de 2019. 11 Seminário disponível pelo link: < https://www.youtube.com/ watch?v=xAZvge9BZFg> Acesso em maio de 2019.

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Tomando outro famoso bar como exemplo, temos o Stonewall Inn, em Nova Iorque (Imagem 13), o bar que acendeu as revoltas lideradas por LGBTQI+ no final da década de 60, antes do Movimento dos Direitos Civis, que foi o estopim para diversos protestos pela causa LGBTQI+ nos Estados Unidos e no mundo. No exterior, um restaurante como qualquer outro, mas um bar conhecidamente gay à noite, o Stonewall se escondia estando visivelmente na frente de todos. Seu regime de visibilidade se dava não só pelos horários pouco convencionais, como também por tornar tão óbvio - por meio de sua vitrine frontal - o que ocorria no bar, que se camuflava como um comportamento comum, em uma época tão conservadora.

de permear seus edifícios e ruas sem serem necessariamente notados. Regimes de visibilidade se dão não apenas de formas construídas (como na casa Farnsworth, ou no bar Twin Peaks), como também por máscaras comportamentais (como ao andar pela Times Square ou beber na vitrine do Stonewall Inn), e também pela passagem do tempo ao longo do dia (como os frequentadores noturnos de restaurantes e bares, das travestis em vias públicas apenas a noite, etc).

Imagem 13: A fachada do bar Stonewall Inn, em Nova Iorque. Fonte: <https://www.6sqft.com> Acessado em Junho de 2019.

Portanto, de acordo com Esperdy, em regimes de ocultação e visibilização da sexualidade alheia, gays e lésbicas começam a formar enclaves8, não só em áreas periféricas como em centros movimentados. Por um lado, podiam se encontrar em áreas públicas, em praças arborizadas ou becos, através de um olhar sutil de reconhecimento, o “Cruising”, por outro lado performando os estereótipos mais conhecidos em plenos holofotes da Times Square, o epicentro da cultura popular de NY, que possui uma ocupação tão intensa que LGBTQI+ eram capazes 12 Em geografia política, um enclave é um território com distinções políticas, sociais e/ou culturais cujas fronteiras geográficas ficam inteiramente dentro dos limites de um outro território.

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CAPÍTULO 3 DEFINIÇão do espaço queer na arquitetura


3.1 Arquitetura Queer e Design: Estratégias e Táticas Os estudos de sexualidade e espaço ganharam força nos anos 90 como uma crescente análise de gênero e arquitetura. Cada área de estudo examinava a perspectiva e a experiência do local de acordo com pontos de vista de grupos marginalizados, incluindo análises psicológicas, geográficas, políticas e arquitetônicas.

co: um rapaz jovem, em meados dos anos 90, que morava perto de Sacramento, decide revelar sua identidade sexual para seus pais. Estes o expulsam de casa e, sem saber o que fazer, o levam até o bairro Castro. Sendo a história real ou não, o autor conclui, revela-se que o centro LGBTQI+ tem um certo poder como local simbólico no inconsciente coletivo da comunidade. Uma pessoa jovem, com sua sexualidade exposta pela primeira vez, poderia perambular por bares e igrejas há anos atrás, mas agora que o centro existe, há de se imaginar essa pessoa jovem em frente ao centro, sabendo que ela quer entrar no edifício, porém, sem saber se ela deve entrar marchando pelas portas frontais de vidro, ou se encontrará uma porta de entrada escondida nos fundos do prédio.

O próprio estudo sobre espaço e teoria queer está evoluindo exponencialmente sem a devida notabilidade nos estudos relacionados à arquitetura. Foi só no final do século XX que surgiram os primeiros esforços de incluir textos e autores LGBTQI+ nos estudos de teoria da arquitetura. Como resultado, a maior parte das teorias elaboradas dentro do campo de arquitetura em relação ao espaço queer acabam sendo rasas, cheias de contradições, e até com conclusões conservadoras quando aplicadas fora O autor afirma que as vidas daqueles fora da hetde certas formulações estreitas de gênero. eronormatividade não existem no léxico da teoria da arquitetura dominante (COTTRILL, 2006. p.362). A partir da análise do texto “Queering Architecture: Muitos arquitetos consideram que os espectros que Possibilities of Space(s)”, de J. Matthew Cottrill incluem sexualidade, gênero, classe e raça estão (2006), que contextualiza os trabalhos de Aaron fora do escopo da nossa profissão. Ignorar essas Betsky, Christopher Reed, e Joey-Michelle Hutchi- questões ratifica a aceitação heteronormativa como son, através das visões de teoria queer de Judith regra na profissão dos arquitetos. “Procurar um novo Butler e Michel Foucault. Observa-se que estudos método de criticar esse sistema heteronormativo de sexualidade e espaço começaram nos anos 90, nos provém um novo entendimento arquitetônico assim como uma crescente análise de gênero e ar- das nossas cidades, comunidades e edifícios. Esse quitetura. Cada área de estudo examinava a per- método de crítica é o espaço queer” (COTTRILL, spectiva e a experiência do local de acordo com 2006. p.365). pontos de vista de grupos marginalizados, incluindo análises psicológicas, geográficas, políticas e ar- De acordo com a visão de Cottrill, os espaços queer quitetônicas. podem ser definidos como um espaço, ou espaços que criticam as atuais divisões de sexualidade, 3.1.1 - Tipos de Espaço Queer: espaço sexual- gênero, classe e raça através de contextos históricos, políticos, culturais, sociais geográficos, efêmerizado, espaço político, espaço político-sexu- os e reais (COTTRILL, 2006. p.364).

alizado

Trazendo a análise de volta para Foucault, em seu Cottrill inicia a sua análise introduzindo uma história livro “História da sexualidade” (DATA),o autor destafamosa dentro do Centro LGBTQI+ de São Francis- ca como formas de sexualidade dispersam novas

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identidades que surgem. Toda a repressão imposta pela classe média na busca de controle criaram redes de LGBTQI+ com indivíduos que buscam novas formas de sexualidades. Para Foucault, tais centros são como núcleos de conhecimento, poder e prazer que alguns indivíduos podem permear. Esses núcleos podem se multiplicar e dispersar, criando diversos e novos centros, que permitem se conectar socialmente entre si.

plo, que ocorrem apenas por um limitado intervalo de tempo, por isso, também têm a capacidade de alterar regras dominantes do cotidiano. Por serem heterotopias, não é permitida a entrada de todos livremente, existem regras, impostas por força ou por influência cultural. Tais espaços são separados de todos os espaços, ao mesmo tempo que atuam como críticas à todos os espaços e locais. O autor também busca relacionar Foucault e a construção do espaço queer com o trabalho de Judith Butler, especialmente em seu livro “Problemas de Gênero” (2003). Para Butler, o público examina o corpo, e alguns são aceitos como humanos e outro não, portanto são rejeitados. Da rejeição, a sociedade dominante sujeita indivíduos lidos como “não-humanos” à ataques físicos e mentais. Se alguém não é humano, sua vida não conta.

Através desses centros (núcleos), cada grupo de indivíduos pode criar seu próprio poder, conhecimento e estruturas de poder. Cada centro tem seu próprio poder, mas é sempre influenciado por outros centros. Para Foucault,“sexualidade é uma mera face desses centros, e uma face maleável.” (FOUCAULT, 1978) É a partir dessa ideia que Foucault começa a desdobrar os conceitos de heterotopias. Cottrill busca aproximar o conceito de heterotopia de Foucault para melhor entender o conceito do espaço queer Como mencionado no Capítulo 1, Butler considera defendido por ele: que a única forma de combater a desumanização é considerar possibilidades fora da heteronorma“Tanto crise como desvio da heter- tividade, redefinindo nossas ideias de comunidade onormatividade criam heterotopias. (como na formação de enclaves LGBTQI+ e núcleos Foucault cita (...) enclaves gays de proteção de diversas escalas), na formação de como exemplos de espaços het- novas famílias (como família LGBTQI+, visto nas erotópicos físicos. Esses espaços casas de baile de NYC, que aparece no filme Paris têm o poder de justapor em um is Burning) e de indivíduos(em constante questionaúnico espaço diferentes espaços e mento de gênero e sexualidade). locais. “Esses espaços e locais incompatíveis permitem uma crítica Para minorias sexuais e de gênero, uma perspecqueer fluida de ambos os espaços tiva diferente sobre heteronormatividade é a única e o que é incompatível entre eles. possibilidade. Tal mudança de perspectiva não deve (COTTRILL, 2006. p.364). ver a sexualidade com uma identidade concreta mas como um atributo de personalidade. A chave Outro exemplo que aproxima as heterotopias do es- para essa mudança exige proteção dessas minorias paço queer (e da condição de homem como homos- antes que a mudança possa acontecer. Ao passo sexual, do próprio Foucault) é que tais heterotopias que essa mudança acontece, Butler argumenta que são ditadas pelo tempo. Elas evoluem, desapare- tanto a heteronormatividade e o queer irão evoluir cem ou mudam, mas não obstante a mudança que para entender o outro, e assim, todos podem obter tenham, elas ocorrem. As paradas gays, por exem- vida possível.

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Finalmente,a pesquisa de Cottrill procura definir que o espaço Queer pode ter três espectros: O espaço sexualizado, o espaço político-sexualizado e o espaço político.

O espaço queer é visto por ele como a vida noturna de sombras e segredos, que permite ao corpo explorar a si e aos outros. É uma rede invisível de pessoas e locais. Para Betsky, tal rede começa a desaparecer ou entrar em crise, com a epidemia da AIDS nos anos 70/80, que assolou os Estados o Espaço sexualizado - aaron betsky Unidos, matando centenas de milhares de pessoas, O Primeiro espaço mencionado pelo autor baseia-se incluindo muitos LGBTQI+ marginalizados principalna análise do arquiteto Aaron Betsky1, denominado mente pelo governo da gestão de Ronald Reagan por ele de espaço sexualizado. Em seu livro “Queer (1981 - 1989). Space: Architecture and Same Sex Desire (1997)”, Betsky disserta sobre as histórias e significados que Betsky sugere que o espaço queer “funciona como o espaço queer pode ter, assim como daqueles que contra arquitetura, apropriando, subvertendo, espeo ocupam. O espaço sexualizado ressalta a história lhando e coreografando as ordens do cotidiano de e o contexto do espaço queer iniciado na experiên- formas novas e mais libertárias” (BETSKY, 1997). cia pessoal. No entanto, o escopo do seu trabalho é limitado e Em uma de suas aulas gravadas na Faculdade de exclui diversas interseccionalidades como identiArte da Califórnia, em 2014, Betsky define o espaço dade de gênero, raça e classe, falhando em reprequeer em 4 pontos: “Primeiro, é um espaço feito por sentar todas as minorias sexuais, excluindo lésbihomens e mulheres queer; segundo, é um espaço cas, bissexuais, queers, transexuais e intersexuais, feito para homens e mulheres queer, terceiro, é um focando apenas na figura do homem gay branco, espaço onde atos queer acontecem; e o quarto, fi- seguindo uma linhagem normativa patriarcal. nalmente, (...) é o espaço que se reconhece como queer” Seu espaço sexualizado acaba por criar a heterotopia do homem gay branco, onde a aparição do corpo Betsky dá como exemplo as discotecas de NY (Im- é fluida mas implica que esse espaço é temporário. agem 14), e em bares gays BDSM2 (conhecidos Se ele define o espaço queer como inútil, amoral e como Gay Leather Bars) (Imagem 15) que são sensual, ele elimina qualquer base prática para um “espaços de libertação, um espaço inútil, amoral e movimento político poder existir, além de - ao consexual, que existe apenas pela experiência local de siderar que esses espaços estão desaparecendo espetáculo, consumo, dança e do obsceno. A de- desde a epidemia da AIDS- ignorar as novas hetformação de um local e a apropriação de edifícios erotopias que se formaram: como clubes com sexo e regras para objetivos perversos. Um local entre seguro, organizações políticas de ação direta pela corpo e tecnologia, um espaço de puro artifício.” O visibilização dos soropositivos (ACT UP!), centros espaço queer “queeriza” a realidade para produzir comunitários e asilos LGBTQI+. um espaço para se viver. 13 Aaron betsky é um arquiteto americano, crítico, professor, autor de textos de teoria da arquitetura, atualmente é o diretor da Escola de Arquitetura de Taliesin (antiga Escola de Arquitetura de Frank Lloyd Wright) 14 Sigla para “Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo”

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Imagem 14: Cena de umas das festas LGBTQI+ mais proeminentes de NY, como a Battle Hymn. Fonte: Foto de Camilo Fuentealba para a Grub Street.

Imagem 15: Cena do “documentário”: Interior, Leather Bar”, do diretor James Franco, que tenta reproduzir os 40 minutos de cenas adultas cortadas do filme “Cruising”, com Al Pacino, nos anos 80.

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o Espaço político ou o “lesbian space” de JOEY-MICHELLE HUTCHISON Cottrill então define um novo tipo de espaço: o espaço político, com base na definição de Joey-Michelle Hutchison, em seu livro “Lesbian Space” (1999), é um espaço de oposição ao espaço queer de Betsky. Ele nasce a partir da idéia da apropriação de um espaço (engatilhada por Christopher Reed, que veremos adiante), usando o exemplo de ativistas políticas, que se autodenominam lésbicas, que - para ela - são as mais invisibilizadas por teóricos queer e feministas quando tratam de arquitetura e por negarem a existência do “espaço lésbico”. Hutchison argumenta que “aspectos políticos da arquitetura precisam ser conhecidos assim como seus efeitos na população lésbica devem ser criticados, como os zoneamentos e códigos, o desenho urbano, o planejamento e o arranjo formal dos espaços”. Ela reconhece que os espaços de resistência são a única solução para as lésbicas, sendo este espaço visível e permanente, permitindo a existência da vida lésbica, pois os outros espaços ao redor possuem o tom político demasiado heteronormativo. Podem ser espaços de apropriação pública temporária, de protesto (Imagem 15), ou espaços de congregação e debate (Imagem 16). Para adentrá-los, é necessário seguir as regras impostas por mulheres lésbicas. São espaços que se distanciam do sexo e da sexualização. Enquanto Hutchison “dessexualiza” o espaço queer na tentativa de incluir raça e classe, Cottrill argumenta, ela limita a identidade lésbica como assexual, completamente desassociada de sexo e sexualidade. Hutchinson vê o sexo como um limitador, permitindo que pessoas heteronormativas associem pessoas queer apenas com o sexo. Para Michelle, esse tipo de associação direciona para a marginalização e não para o empoderamento, e é através do empoderamento, por meio da apropriação de novos espaços, que criamos o espaço lésbico.

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Apropriar-se de um território é uma forma de ativar politicamente o espaço queer, justificando as existências (e resistências) da vida queer. Todavia, Cottrill argumenta que a visão de espaço lésbico de Hutchison acaba por definir uma nova visão de espaço queer como uma heterotopia (contrária a de Betsky) que procura tanta autonomia dentro de si que torna impossível a vida lésbica fora de seus limites. Nem a heterotopia de Betsky, nem a de Hutchison, definem a totalidade do que os espaços queer representam.


Imagem 16: Protesto no Dia Internacional das Mulheres, em Toronto, sem data.. Foto de Diana Meredith.

Imagem 17: Kathleen O’Donnell, americana em protesto e debate sobre discriminação sobre direitos da casa próprias, em Montana, nos Estados Unidos.

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o Espaço político-sexualizado de christopher reed Finalmente, Cottrill define o último dos 3 espaços: o espaço político-sexualizado, de acordo com o livro de Christopher Reed “Imminent domain: queer space in the built environment.” O autor trata do desenvolvimento do tema “desejo” com política, geografia e cultura, pois - para ele - o espaço queer deve se desenvolver além do “same sex desire” (desejo ao mesmo sexo), e a ideia de um espaço queer concreto é um Oxímoro/Paradoxo (que é a aproximação de ideias ou valores completamente opostos). A apropriação do espaço de acordo com a sexualidade impõe um campo de debate mediano, quando comparado com os espaços queer de apropriação de Betsky e Hutchison. A difícil tarefa de definir o queer se mantém atual, e muito (erroneamente) relacionada como identidade e não como crítica à identidade. Compreender o “Queer” requer uma apreciação da relação entre identidade e a parte intrínseca do sexo biológico, gênero e sexualidade. Enquanto as funções da heteronormatividade se baseiam na crença que sexo, gênero, sexualidade e performance se alinham, ser queer se baseia na fluidez que permite a operação fora dessa norma. Reed acredita que o espaço queer tem forma, propósito e necessidade de análise. Não é efêmero ou invisível, mas real e aparente. Não são voltados apenas para o corpo mas também têm implicações políticas. O espaço queer é um espaço de oposição clara contra o domínio da heteronormatividade. São bares gays, grupos de estudo, organizações políticas, etc., ligados à ideia de renovação. Ampliando a ideia de espaço queer, começamos a examinar sinais e símbolos que demarcam onde tais locais definem os limites de uma categoria dominante, e se dissolvem em narrativas individuais, saindo de dentro da heterotopia da comunidade LGBTQI+ e implicando novos métodos para outros espaços. Entretanto, o espaço queer deve explorar o espaço

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mais importante entre sexualidade-espaço: O lar, onde o “eu” começa, onde também as implicações políticas da sexualidade começam. Reed entende o espaço queer como fluido e possível, aproximando sua noção de espaço queer da própria teoria queer. Sua tese se apoia na filosofia que espaços queer são espaços de apropriação e empoderamento enquanto exploram a desafiam a afirmação que espaços não podem ser projetados. Cottrill conclui que colocar os espaços queer a partir dos princípios de Reed é permitir uma arena visível onde a vida queer é possível. As ideias de Hutchinson e Betsky também possuem valor e mérito para a compreensão de diversas particularidades dentro do universo LGBTQI+, porém falham em representar a amplitude desse universo. Para estabelecer uma ideia mais coerente dos espaços queer como heterotopias de vidas possíveis, a rede de heterotopias deve se desdobrar.


Imagem 18: Festa LGBTQI+ na Casa Nem, na Lapa, Rio de Janeiro. Festa com a entrada proibida para cis-héteros, para criação de um espaço seguro para LGBTQI+ marginalizados. Fotografia de Bléia Campos - I Hate Flash.

Imagem 19: Debate público sobre feminismo, transativismo e interseccionalidade da Rua Morais e Vale, na porta da Casa Nem. Fotografia de Bléia Campos - I Hate Flash.

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3.1.2 O espaço queer x queerizar a arquitetura Afinal, como deve ser o espaço queer e qual a im- paços, mas sim porque arquitetos optam por não portância dele dentro da arquitetura? reconhecer que tais ambientes também têm poder transformador sobre a arquitetura. Espaços queer são importantes para o legado queer. A população LGBTQI+ procura espaços Éloise baseia-se na distinção de Carlos Jaques, queer seguros para encontrar um senso de família em seu texto Queering Straight Space: Thinking e proteção sempre renegado à essa parcela mar- Towards a Queer Architecture,” (Queerizando O ginalizada da população, sendo então segurança Espaço Hétero: Se direcionando para a Arquitetura e a construção de um senso de comunidade seus Queer”) entre espaço queer e espaço “queerizado”, pontos mais fortes. e atenta que ambos os espaços não são exclusivos, e podem ser concomitantes: o primeiro, é um esPara a arquiteta interseccional canadense Éloise paço ocupado por pessoas queer ou marginalizaChoquette, em seu texto “Queering Architecture: das, enquanto o espaço queerizado é um espaço (Un)Making Places” (Queerizando a Arquitetura: de reação ao status quo, ao padrão normativo da (Des)fazendo Espaços”, o ato de “queerizar” a ar- sociedade. quitetura não é apenas uma resposta formal ou estética ao papel do arquiteto na constituição de Como exemplos, cita que o espaço queer pode ser normas repressivas de gênero e sexualidade, afinal um local como uma galeria de arte, ou um centro não existe uma casa, edifício ou habitação intrinsi- de artes performáticas, que coloca o trabalho de arcamente queer. tistas LGBTQI+ em destaque. Enquanto o espaço queerizado é um espaço seguro exclusivo para “A arquitetura queer começa na pessoas queer, transexuais, negras e indígenas, e suposição de que nada está além somente com acessibilidade para essas pessoas. O da sua fonte de legitimação, que espaço queerizado propõe a subversão da norma, qualquer justificativa que pos- um ato consciente de resistência, e uma ruptura no sui está inerente à sua prática. tecido da sociedade. Por isso, qualquer queerização Queerizar a arquitetura é resistir da arquitetura deve se manter firmemente ancorada à arquitetura como ferramenta de nos movimentos LGBTQI+ e suas raízes radicais. opressão e se reapropriar do espaço como ferramenta de trans- A necessidade de sigilo é uma das mais enraizadas formação, ato necessário para na história dos espaços queer, pois para sobrevivdesencadear seu potencial trans- erem, precisam ser adaptáveis, efêmeros e anôniformador.” (CHOQUETTE, 2019) mos. A necessidade de “sair do armário” para viver de acordo com a sua verdadeira identidade falha em considerar o aspecto violento e destrutivo de se ir Para Éloise, a “Arquitetura”, é comumente lida como contra a corrente cis-heteronormativa. transformadora do espaço, tanto na dimensão imaterial quanto física da realidade que vivemos. Mas a autora afirma que isso é uma falácia, porque mes- Choquette atenta que, historicamente, o “perigo” mo que arquitetura e espaço sejam conectados, sua de se associar à vida queer marginalizada levou ao relação não é recíproca ou direta. E não é porque desenvolvimento de um tipo de arquitetura sem a arquitetos falham em transformar ambientes ou es- presença de arquitetos: uma arquitetura de necessi-

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dade e criatividade que faz uso de espaços de usos insignificantes, liminares e passageiros nas fronteiras do mundo heteronormativo. Esses não-lugares invisíveis, para serem transformados em lugares, precisam ser ocupados e transformados em espaços possíveis1 através de atos de transgressão e resistência contra uma sociedade que sempre tenta empurrar os LGBTQI+ para as margens, com o objetivo de erradicá-los. Exemplos já citados, como o Stonewall Inn, e a taverna Twin Peaks, são ilustrativos desse cenário. Éloise ainda sugere novos exemplos como o dos bares londrinos chamados Caravan Club (Imagem 20) e o Shim Sham Club, na década de 30. O primeiro foi eventualmente fechado em 1934, com centenas de jovens presos, e o segundo sempre seguiu na sua ilegalidade e alvo de constantes invasões policiais. A autora conclui que a natureza progressiva de pensamentos, teorias e políticas associadas à “não-lugares” permitem que esses espaços tenham vivacidade, quase como se tivessem personalidade própria. Por serem extremamente críticos e atentos, esses não-lugares parecem sempre estar dispostos a evoluir e se redefinir, mesmo que isso leve à seu próprio fim.

Imagem 20: o Clube Caravan, após ser invadido por policiais e fechado, em 1934. Fonte” The National Archives UK.

18 Para o antropologista Marc Augè, “lugares” são transformados em “espaços” quando tem significado, poder e são ligados à identidades pessoais.

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3.1.3 Tipos de Regime de Opacidade / Camadas de Visibilidade: opaco, translúcido e transparente Ainda de acordo com J. M. Cottrill, essas hetero- A Camada Transparente: topias devem ser visíveis e permanentes; permitir que as identidades sejam fluidas e vidas sejam possíveis; devem ser de presença clara pois, se seus espaços são escondidos no underground das cidades, cria-se nada mais que uma aparição a ser apagada e excluída da cultura. Devem se apropriar de territórios dentro de cidades, subúrbios e áreas rurais, mantendo sua presença permanente e de constante crítica à heteronormatividade.

Traz à frente a noção de visibilidade, até o aspecto estereotipado do espaço queer - é a propaganda, a mídia, os eventos abertos, as festas de acesso livre, a parada gay, o desfile público, etc, como à exemplo da Imagem 21.

As camadas de visibilidade dão fluidez às identidades. Qualquer um pode acessar essas camadas de acordo com seu nível de transparência (ex. a camada opaca é a que deve se resguardar sempre do acesso público total), contanto que sejam respeitadas as regras estabelecidas pelo seu centro opaco, como em qualquer heterotopia de Michel Foucault. Um indivíduo comum pode até existir dentro das camadas mais transparentes sem ao menos ter conhecimento das camadas mais opacas, por exemplo. Espaços mais transparentes podem ser vistos como espaços de resistência, no objetivo de estar “fora do lugar” e de expor à luz códigos escondidos do espaço, mas que sempre existiram, afinal são espaços mais fáceis de serem acessados. Minorias de gênero e sexualidade existem fora do ideal americano de cultura. Essas vidas acontecem em espaços dentro e fora dos corpos dos indivíduos. Esses são os espaços queer, que também podem ser sexuais, político-sexuais e políticos, representando juntos quase o todo do espaço queer. Ao compreender esses espaços, novas definições de espaços arquitetônicos podem se desenvolver. São espaços para nos encontrar no mundo, na cidade e no “eu”. Cottrill defende que heterotopias permanentes e flexíveis dão à visibilidade dos espaços queer a caraterística de três camadas diferentes:

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Imagem 21: Parada Gay de São Paulo. Corpos expostos, a festa na rua, as exigência em grito, o acesso liberado. Fonte: O Globo

+ VISIBILIDADE + ACESSO + CONTATO


A Camada Translúcida:

A Camada Opaca:

Onde se encontra a primeira camada de realidade - representa os costumes culturais, organizações políticas, estabelecimentos comerciais. A camada translúcida permite que uma pessoa possa coexistir facilmente entre duas, três ou mais heterotopias ao mesmo tempo, como no exemplo da Imagem 22.

É a parte mais privada da heterotopia, a que mais precisa de proteção. Trata das relações interpessoais, da habitação (emergencial ou não), da linguagem, do cuidado e da reabilitação, como no exemplo da Imagem 23.

Imagem 22: Evento Periferia Trans, no Grajaú, em São Paulo. Festa mais restrita, muito debate político, música LGBTQI+, performances trans, saraus e ações políticas. Fonte: Vice Brasil

Imagem 23: Centro de cuidados de LGBTQI+ soropositivos na ABIA. Acesso muito restrito, população em estado extremo de marginalização e de necessidade de cuidados. Fonte: > www.abia.org.br< Acesso em Maio, 2019.

- VISIBILIDADE - ACESSO - CONTATO

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só tem sapatrans nessa cidade

CAPÍTULO 4 ESTUDO DE CASO: A CASA NEM


ESTUDO DE CASO: a casa nem De acordo com as palavras de Indianare Siqueira, a principal figura pública em frente à gestão e resistência da Casa Nem:

de suas festas, feitas para arrecadar fundos, embora pessoas trans não paguem por nenhuma atividade, procuram manter os gastos essenciais da casa para manutenção da vida possível. O local também “A Casa Nem é um espaço de oferece atividades focadas na autonomia e cultura acolhimento para pessoas LGB- como o PreparaNem, um cursinho pré-Enem, e o TIs em situação de vulnerabilidade CosturaNem. social, com foco em transexuais e transgeneres (sic). É um espaço Antes de se chamar Casa Nem, o edifício tinha o autosustentável (sic) e festas são nome de Casa Nuvem, uma ocupação artística realizadas para ajudar nessa auto- que acabou quando a ativista transexual Luciana sustentabilidade (sic) do local, que Vasconcellos passou por um episódio de violência também recebe diversos tipos de motivado por transfobia e que, a partir do ocorrido doações. Na Casa Nem opressões decidiu ocupar a casa, que desde então passou a são proibides (sic) e o espaço abri- se chamar Casa Nem. ga diversos projetos que se inclui o PreparaNem, CosturaNem, FotografaNem, YogaNem, Libras, voltado para as travestis, trans e a todes (sic) que se considerem Nem.”

Localizada no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, mais precisamente na Rua Morais e Vale, número 18, a Casa Nem é símbolo de luta, resistência e empoderamento, um local onde transexuais, travestis e transgêneros encontram acolhimento, apoio e até uma nova família para chamar de sua. Celebrando a diversidade, o endereço também oferece aulas de costura, fotografia, história da arte, libras (língua brasileira de sinais) e yoga, voltadas ao público trans e travestis. Além de ser um espaço para debates, festas, encontros, reuniões políticas e até sessões de cinema, a Casa Nem também é, principalmente, moradia para homens e mulheres transexuais expulsos de casa, travestis em situação de rua e soropositivos. Funcionando como casa de passagem, acolhe pessoas até que estas tenham a vida reestruturada e cedam o espaço para outras (Imagem 24). Através

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Imagem 24: Parede com mensagens de resistência nas paredes da Casa Nem. Foto: Bléia Campos


É importante frisar que, no Brasil, proporcionalmente, as travestis e transexuais são as mais vitimadas dentro do núcleo LGBTQI+: o risco de uma “trans” ser assassinada é 14 vezes maior que um gay, e se compararmos com os Estados Unidos, as 144 travestis brasileiras assassinadas em 2016 face às 21 trans americanas, as brasileiras têm 9 vezes mais chance de morte violenta do que as trans norte-americanas, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB). Segundo agências internacionais, mais da metade dos homicídios de transexuais do mundo ocorrem no Brasil. Dados da União Nacional LGBT apontam que a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, menos do que a metade da média nacional, de 75,5, segundo o IBGE.

Imagem 25: Algumas das moradoras da Casa Nem. Foto: Bléia Campos

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as camadas de opacidade da casa nem - Espaço opaco -

A habitação de emergências para trans/travestis fica no segundo andar (Imagem 26), com a entrada proibida para homens cisgêneros. Com o passar dos anos, o medo e a vulnerabilidade tornaram o acesso à esse andar cada vez mais restrito, especialmente para não-moradores e não-transexuais. Imagem 26: Vista para as janelas do segundo andar da Casa Nem. Foto: Bléia Campos.

- Espaço Translúcido -

O primeiro andar da casa é um local de festa e debates, construções de resistência e encontros (Imagens 27 e 28). Apesar de ter acesso ao público, existe um filtro invisível na porta de entrada da casa Nem, vetando a entrada de homens hétero-cis. Imagem 27: Festa no Primeiro andar da Casa Nem. Foto: Cellier

Imagem 28: Sessão de cinema no Primeiro andar da Casa Nem. Foto: Cellier

- Espaço transparente -

A própria Rua Morais e Vale (Imagem 29), um espaço de encontros múltiplos entre diversos públicos, sem filtros. Podemos dizer que este espaço é transparente pois não há qualquer tipo de regra quanto ao acesso ou público que a permeia. A rua é livre, propensa ao caos. Imagem 29: Evento Slam das Minas, com debate, na Rua Morais e Vale, à frente da Casa Nem. Foto: Bléia Campos.

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4.1 A Construção da memória: A Casa Nem como Palimpsesto anti-Monumental em ruínas. “A cicatriz, a ferida, o local que marca a morte excede nosso senso de ordem. Um impulso é reparar, repudiar e apagar com a intenção de reassegurar o esquecimento.” Karen Wilson Baptist A Casa Nem, após anos de resistência fechou suas portas no final de Agosto de 2018 por meio de despejo policial. Seu espaço, já há muito tempo degradado, possui grande importância na construção do inconsciente coletivo que povoa o imaginário dos LGBTQI+ da cidade do Rio de Janeiro que ainda insistem em resistir. A proposta do primeiro projeto do produto desta monografia seria a não-intervenção no espaço da antiga Casa Nem, e sim a preservação de sua memória. Precisamos construir não só novos espaços de resistência da cidade do Rio de Janeiro, como também construir memória, trabalhando a Casa Nem a partir de dois conceitos: a Casa Nem como palimpsesto e como anti-monumento. Palimpsestos, na tradução do grego, significa “aquilo que se raspa para escrever de novo”. Como um pergaminho com seu texto original apagado, mas que ainda se permite vê-lo, pois seus vestígios permanecem na superfície. A urbe também podem ser lida como um palimpsesto, afinal, cidades são resultados do acúmulo de sucessivas intervenções e seus vestígios consequentes, parcialmente apagados, que guardam sentidos e memórias materiais de diferentes épocas. Compreender uma cidade exige habilidade para reconhecer e decifrar essas diferentes camadas de historicidade, mas que nos passam despercebidas no cotidiano. O mesmo vale para seus edifícios e os corpos que habitam essa cidade.

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Os arquitetos ingleses David Chipperfield e Julian Harrap, no projeto para o Neues Museum (Novo Museu), em Berlim, propõem tratar a reforma de um edifício em ruínas expondo-o como um palimpsesto, mostrando - ao mesmo tempo - diversas camadas da história acumulada em suas paredes. O museu, que foi bombardeado na Segunda Guerra Mundial, hoje possui apenas frações de sua arquitetura renovadas e recuperadas(Imagem 30). Alguns podem até comparar esse tipo de intervenção com a Pinacoteca de São Paulo (Imagem 31), feita por Paulo Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli, enquanto a sobreposição de materialidades que remetem ao “antigo” e ao “moderno” são óbvias em ambas, porém, a Pinacoteca de São Paulo passa mais a sensação estética do que histórica em sua arquitetura. Mas há algo em ambas as propostas que não convém à proposta de manter a Casa Nem como um palimpsesto em ruínas: a estética da sua história. Enquanto o Neues Museum e a Pinacoteca expõem a materialidade lavada de suas ruínas de forma normativa e esteticamente agradável para o público geral, a história da casa Nem está exposta em cada mensagem de suas paredes (Imagens 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38), de resistência ao descaso e de luta. O grito e a vontade de viver e se divertir de putas e travestis ofende ao capital, ofende à estética normativa, e é exatamente por isso que deve ser preservado.


Imagem 30: Neues Museum em Berlim. Fonte <https://miesarch.com/ work/466> Acesso em Maio, 2019.

Imagem 31: Pinacoteca, em São Paulo Fonte <https://vidasemparedes.com.br/pinacoteca-de-sao-paulo/> Acesso em Maio, 2019.

Imagem 32: Cena interna da Casa Nem. Foto: Cellier.

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Imagem 33: Cena interna da Casa Nem. Foto: Acervo pessoal.

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Imagem 34: Cena interna da Casa Nem. Foto: Acervo pessoal.

Imagem 35: Cena interna da Casa Nem. Foto: Acervo pessoal.

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Imagem 36: Cena interna da Casa Nem. Foto: Acervo pessoal.

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Imagem 37: Cena interna da Casa Nem, moradoras e visitantes. Foto: Acervo pessoal.

Imagem 38: Cena interna da Casa Nem, moradoras e visitantes. Foto: Acervo pessoal.

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Propôr o congelamento da Casa Nem tem a intenção de causar o choque, incômodo, e náusea diante do descaso da sociedade cis-heteronormativa com os corpos trans interseccionais que ali habitavam. As paredes já estavam há anos em processo de ruína, mas eram paredes firmes e um teto sobre corpos que abrigam luta. Concomitante com a criação de um projeto novo, que veremos à frente, para abrigar os mesmos corpos marginalizados mencionados, devemos marcar na cidade as suas trajetórias.

A Alemanha e os contra-monumentos: Com a difícil tarefa de relembrar os horrores do holocausto, alguns artistas alemães se distanciaram da forma tradicional de memorialização (Imagem 39), criando então o que o acadêmico James Young, da Universidade de Massachusetts, chama de “contra-monumentos”.

O Anti-monumentalismo ou Contra-monumentalismo: O anti-monumentalismo é uma filosofia da arte que renega a presença de qualquer força autoritária impositiva nos espaços públicos. É a oposição ao monumentalismo do culto ao poder normativo, ideológico que rege a cidade. A casa nem em sua atual existência é o mais óbvio retrato do descaso do Estado (e dos aparatos políticos que capitalizaram com as lideranças desta casa) à vida dos corpos transgêneros e travestis dessa cidade. As ruínas da Casa Nem se tornam um anti-monumento político de resistência, e não devem ser apagadas jamais.

Imagem 39: Monumento contra o Fascismo, de Esther Shalev-Gerz and Jochen Gerz. Uma coluna de metal de 12 metros que, ao ser preenchida por assinaturas e comentários de visitantes, descia 1 metro sob o chão, até seu total desaparecimento. “Afinal, apenas nós mesmo podemos nos levantar com a ascensão da injustiça” Fonte: www. shalevgerz. Acessado em Abril de 2019.

Para Young, existe o argumento que monumentos (principalmente os abstratos) podem - ironicamente - nos distanciar da história, e nos proteger da mesma. Tais monumentos podem nos anestesiar ao invés de nos fazer conectar com o passado de forma profunda. É como se a memória se fixasse apenas no monumento em si, e não em nós, e o primeiro assume sozinho a responsabilidade de se lembrar “Além de estratégias de nomeação os erros do passado. (locais, praças, ruas, edifícios, etc.) dos espaços edificados, a comem- Tais monumentos servem inadvertidamente para oração se mantém como parte apagar as memórias mais difíceis e distanciar as essencial do poder simbólico do pessoas do passado mais doloroso, os tornando eixo normativo das cidades. Por- confortáveis demais para seguir em frente e renegar tanto, a saliência de monumentos a responsabilidade de não mais se lembrar do pase comemorações se torna crucial sado. Dois monumentos modernistas em contraste como ferramenta para construção são os controversos “Memorial do Holocausto” (Imada identidade local, podendo gem 40), e o “Memorial aos homossexuais”(Imagem promover sua reconstrução e re- 41). O primeiro presente em diversos debates sobre definição”. a “abstratização” da memória e o distanciamento entre os que visitam e à história na qual ele deveria se

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remeter, e o segundo, também uma obra abstrata, mas com uma vídeo-instalação interna, causando desconforto diante dos visitantes heteronormativos.

Imagem 42: Homem com uma picareta atacando o muro em 1989, com a queda do regime socialista em Berlin. Foto: Jacques Langevin/Sygma/ Corbis. Imagem 40: turistas se divertindo sobre o monumento em homenagem aos judeus mortos, em Berlin. Fonte: <Demilked.com>Acesso em: Junho 2019. Imagem 41:Uma das vídeo-instalações de beijos LGBTQI+ em homenagem aos homossexuais mortos no regime nazista. Fonte: <withberlinlove.com> Acesso em: Maio de 2019.

Esses artistas acreditavam que não se deve haver esquecimento, nem superação, nem zona de conforto ao relembrar do holocausto. “Não deve haver abdicação da responsabilidade de manter a memória dolorosa do passado. Os monumentos devem trazer desconforto ao invés de consolação, convidar profanação ao invés de se isolarem atrás de grades nas calçadas.” O muro de Berlim é outro paralelo de intenção de criação de memória coletiva quanto ao passado (Imagem 42). Parte de sua extensão tem intervenções e intenções de renovação através da arte, e outra parte se mantém como um retrato intocado de suas ruínas, como um palimpsesto anti-monumental em ruína.

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4.2 Da escala urbana à escala corpo: dispositivos de autonomia e estruturação social e política na Cidade-Armário Mapeamento de praças e terrenos vazios como áreas possíveis de atuação, assim como a totalidade do bairro para abrigar intervenções urbanas pontuais ou estruturais, levando em conta o programa de necessidades para a sobrevivência da população LGBTQI+ somado ao estudo de camadas de visibilidades em exemplos de propostas para compor o debate.

O ENTORNO:

RUA DA LAPA

RUA DA GLória

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TERRENO 1

prAÇA 1 prAÇA 2 prAÇA 3 terreno 2 terreno 3 ale rua morais e v

terreno 4 a nova casa nem

antiga casa nem terreno 5 terreno 6 terreno 7

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RUA DA GLó ria

Rua

66 lapa

rua mora is e vale

da

FIGURA E FUNDO: MAPA DE VELOCIDADES:


mapa de caminhos e proposta cicloviária: Diante da necessidade de análise da área escolhida no entorno da casa nem, três mapas de estudo básico iniciais foram gerados: Mapa de Figura e Fundo, Mapa de Velocidades e Mapa de Caminhos, com um esboço de proposta de ciclovia na região. O primeiro mapa, de figura e fundo, enfatiza a ocupação edificada entre cheios e vazios, ressaltando um enorme vazio entre a Praça Paris e os edifícios do bairro da Glória e Lapa, assim como na orla da Praia do Flamengo. Em seguida, o mapa de velocidades ressalta que o vazio tem relação direta com a presença de vias expressas, voltadas principalmente para o uso de transporte individual. O terceiro mapa trata-se das vias e caminhos da região, sejam para transporte coletivo, individual ou para o pedestre. Já em vermelho linha cheia, surge o primeiro esboço para o debate da inclusão que ciclovias pela cidade como alternativa à transportes públicos e privados, visando a proteção de LGBTQI+. “Desde que me assumi como transgênero, ou mesmo quando me liam como lésbica, eu sempre me senti mais seguro andando de bicicleta pela cidade do que em transporte público. LGBTQI+ não se sentem de fato seguros nessa cidade”

Três Folly, em entrevista.

Devemos pensar nas consequências do contato direto de populações LGBTQI+ marginalizadas com a maioria heteronormativa, e expandir o debate com o poder público para ser capaz de prover acesso de todos os meios de transporte à todos, assim como o acesso de todos à qualquer meio de transporte.

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4.2.1 Resistência e sobrevivência na cidade-armário: propostas de intervenção: O debate sobre segurança pública é um dos mais centrais para qualquer minoria, especialmente os que podem sofrer com violência de gênero e LGBTQIfobia. Pensando na necessidade de propor uma edificação que pudesse oferecer uma medida paliativa de proteção à essas minorias, e que tivesse a capacidade de promover outros debates importantíssimos para a comunidade LGBTQI+: o banheiro sem gênero e a disforia de gênero em banheiros públicos. Surgem duas propostas:

o banheiro sem gênero Uma das reivindicações mais comuns da população LGBTQI+, especialmente por pessoas transgêneras e não binárias, trata sobre a designação de gênero em banheiros públicos e privados. Devemos tratar o banheiro como parte integrante e necessária para a vida cotidiana, e não apenas como residual arquitetônico, pensado apenas para a delimitante função do despejo biológico, portanto designado a locais sub-dimensionados, de acesso invisibilizado e isolados do espaço público.

ciedade, que reforçam desde cedo a ideia que mulheres e homens são fundamentalmente diferentes. Uma das propostas em resposta à esse tipo de reivindicação foi a criação, em algumas escolas americanas,de uma terceira categoria de banheiros para além dos tradicionais banheiros binários já estabelecidos: banheiros sem gênero. Estes se deram pela necessidade de proteger jovens estudantes transexuais no país, uma vez que forçar que transgêneros usassem banheiros binários poderia ser nocivo para suas vidas ao reforçar o estigma binário de gênero. Contudo ao criarem um terceiro banheiro, as escolas eram bem sucedidas em respeitar suas identidades e assim protegê-las, mas acabavam por destacá-los, causando retaliações transfóbicas e desta forma falhando em protegê-los contra assédios morais.

E como podemos tentar resolver essa questão? De acordo com o conceito de Espaço Seguro pelo De acordo com o conceito de Espaço Seguro pelo Qspacearch e a Universidade de Columbia (Nova Iorque), devemos trazer o banheiro para espaços de visibilização e proteção. Devemos pensar o banheiro como parte integrante do espaço público, de fácil acesso, entrada para todos, circulação (e fuga) fácil, visibilidade constante, ao mesmo tempo respeitando a privacidade e o desejo de auto-proteção A consequência dessa lógica pode ser grave. Som- que minorias têm ao entrar em contato com a vida ada à cultura do heteropatriarcado agressivo e ma- pública. chista, o banheiro se tornou local de violência para muitos: mulheres, crianças e principalmente para a Para começar a mudança pelos menores (e não população LGBTQI+. menos importantes) detalhes, devemos alterar a Os benefícios de banheiros neutros ou sem gênero vão além de apenas prover segurança para pessoas transgêneras. Banheiros sem gênero tem o potencial de mudar a forma que pensamos sobre igualdade ou equidade de gênero. Banheiros segregados por gênero são uma das fronteiras da divisão de gênero mais consolidadas dentro da nossa so-

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sinalização, como no exemplo dado na Imagem 42) a fim de evitar a estigmatização de gênero. Os sinais “masculino e feminino” são um sintoma relevante da exclusão de travestis, transexuais e transgêneros do espaço público e privado.


X Imagem 43: Ícone de sinalização do banheiro segregado por gênero do Museu do Amanhã e proposta fora do binarismo de gênero. Foto: Acervo pessoal.

Dentro da dicotomia do Público/Privado ou da Visibilidade/ Privacidade, temos a criação de dois núcleos, que, munindo-se do design de arquitetura passam a ter propostas de espaços característicos. O PÚBLICO - fácil acesso, circulação clara, rota de fuga confortável e visibilidade constante. A pia central, em posição de “ilha” oferece um aparato extra ao banheiro, com demanda justificada: nem todos usam o banheiro para despejos biológicos, é usado também para maquiar, lavar-se, olhar-se. Com a ilha central, não há a necessidade da ocupação de uma cabine para apenas esses usos, a não ser que a pessoa se sinta desprotegida para tal. A bancada possui pias contemplando todas as estaturas: deficientes, crianças e adultos, em formato de “tira”, não precisando ocupar o espaço de uma pia para se olhar no espelho. Tais espelhos em “tira” são importantes para manter a visibilidade/vigilância constante no acesso público ao banheiro, gerando um espaço mais seguro.

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O PRIVADO - É a própria cabine, que deve possuir todos os itens necessários para o conforto e o uso de qualquer pessoa: bacia e mictório, pia, espelho com prateleira para apoiar a maquiagem, para muitos é essencial para performa o seu gênero) e, claro, possuir acessibilidade universal.

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O MÓDULO INICIAL - O “POD” E A PROJEÇÃO DO GRITO “Amiga, há alguns anos fui atacada em Petrópolis e quase morri. Um motoqueiro me golpeou com o capacete algumas vezes e me jogou no valão, mas eu sobrevivi.. então eu penso.. Sabe quando a gente está voltando pra casa à noite, e escuta o barulho de um carro vindo atrás da gente? Sabe aquela sensação de pegar a chave de casa e fingir que mora em um dos prédios pra fugir? E se tivesse algum Leo/Olivia Arrighi, em men- lugar que eu pudesse simplesmente sagem de voz pelo WhatsApp às entrar e me trancar?” 4 da manhã.

Diante de tal pedido, uma proposta simples: Uma unidade facilmente replicável, resistente, agradável, com ventilação e iluminação natural (e artificial), acessível; ligada a rede pública de águas e esgoto e com reaproveitamento de águas pluviais; iluminação externa contribuindo para espaços públicos melhores; indicações de um banheiro sem binarismo de gênero, que atenda a todas as pessoas, sem discriminação. Uma estrutura fechada, com 2,10m de frente x 3,40m de profundidade x 3,00m de altura, o banheiro possui privada, mictório, barras de apoio para auxílio aos portadores de necessidades especiais; Iluminação artificial embutida nas paredes e no chão, pensando no anti-vandalismo, que é ativada por sensores automáticos; A bancada é moldada sem quinas, para evitar acidentes, com pia e lixeiras embutidas; o espelho segue a inclinação natural da parede (10 graus), para melhor atender aos cadeirantes. A rampa de acesso possui inclinação mínima de 8%, sob um beiral com iluminação artificial embutida. Sobre a unidade, um agradável jardim que ajuda a conter a velocidade das chuvas que incidem sobre o módulo, com uma calha que direciona as águas pluviais diretamente para a caixa de descarga. O banheiro possui um telefone emergencial com conexão direta com os números (190/192/193). A

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caixa externa com sinalização do banheiro possui uma sirene embutida, para o caso de uma pessoa se trancar no módulo buscando proteção de uma ameaça externa. As venezianas e a abertura superior facilitam que o pedido de socorro se projete para o exterior com mais facilidade. Como medida paliativa urgente, tais banheiros públicos podem se espalhar e serem repensados e re-apropriados por toda a cidade.


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a nova casa nem Ao propor que a Antiga Casa Nem seja uma ruína em sentido de denúncia e desconforto, o que sobra para as travestis e transexuais marginalizadas no Rio de Janeiro? Aproveitando que o entorno possui diversas oportunidades de experimentações com diferentes tipologias e programas de necessidade dentro das definições de espaço propostas (Opaca e/ou Translúcida e/ou Transparente, assim como Sexualizado e/ou Político e/ou Político-sexualizado), surge também a proposta de uma Nova Casa Nem, pensada a partir do módulo inicial (de 2,10 x 3,40 x 3,00m), com estrutural replicável e possível para que as próprias usuárias ergam seu espaço de luta com as próprias mãos, hackeando a cidade que não lhes dá o mínimo para sobreviver. A nova Casa Nem está localizada também na Rua Morais e Vale, no número 20, fazendo divisa com a antiga ocupação da Casa Nem. O contraste entre ambas estruturas só reforça a duplicidade do desgaste e esforço do cotidiano de sobrevivência e resistência de transexuais e travestis na cidade armário. A primeira Casa Nem, apesar de parecer esteticamente mais “opaca” (fachada alta de alvenaria, poucas janelas), tinha o regimento de acessibilidade a partir de outros meios para além do físico. Seus acessos eram diferenciados de acordo com regras, que permitiam pouco acesso ao segundo piso (Parte “opaca), mais acesso ao primeiro piso (parte “translúcida”) e sem influenciar no trânsito da rua Morais e Vale (Parte translúcida). O projeto sugerido para a Nova Casa Nem se propõe não apenas a ser um projeto que abre a possibilidade de construção direta, como também de permitir que o edifício seja permeado por diferentes regimes de opacidade, em diferentes sazonalidades, de acordo com o interesses das vidas em resistência que não só erguem como dão propósito ao mesmo edifício.

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Procurando resumir como cada exemplo e proposta de edificação dos terrenos podem tangenciar os 6 termos que usamos para ajudar a definir o espaço queer, o gráfico a seguir é sugerido como forma de contribuir ao debate:

transparente

translúcido

opaco

político

sexualizado político sexualizado


Como veremos a seguir, a Nova Casa Nem tem a capacidade de tangenciar todos os tipos de regimes de opacidade através de intervenções com painéis externos, abrindo ou fechando o acesso da casa, assim como seu gerenciamento interno. Se nos atentarmos ao histórico da Antiga Casa Nem notamos que sempre houve o interesse em abrir a casa para debates tanto políticos quanto acolhimentos político sexualizados, sendo um espaço expressivo para manifestações clássicas de espaços caracterizados como sexualizados (festas, sexo, etc.)

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Terceiro Pavimento

Área de festas, de proteção, de debates novas demandas no muro, de tacar ped transar, etc.

Segundo Pavimento

Área de proteção, de debates, de perfor sar, de transar, de pixar, de produzir, de

O único objeto fixo dessa área são os a armazenamento.

Primeiro Pavimento

Área de proteção, de debates, de perfor sar, de transar, de pixar, de produzir, de assistir, de socialização, de integração.

O único objeto fixo dessa área são equ cadeados para armazenamento.

Estrutura

Estrutura de aço de fácil montagem, a facilmente replicável e firme.

Torre central

Área de lavar-se, cuidar-se, de transar, d

São 3 pavimentos de cabines de ban gênero. Banheiros com tanques coletiv espelhos para maquiar e performar gên banheiro equipadas com privada, mictór

Pavimento térreo

Áreas de primeiro contado com o extern bate aberto, de festa, de performance, d exterior.

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s, de performance, de projetar dra na polícia que agride, de

rmance, de dormir e descanse resguardar.

armários com cadeados para

rmance, de dormir e descane se resguardar, de comer, de

uipamentos de cozinha com

a partir do módulo do “Pod”,

de pixar, de sociabilizar.

nheiros, sem segragação de vos para lavagem de roupas, nero, e cabines individuais de rio e chuveiro.

no, de sociabilização, de dede construção coletiva com o

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só TEM SAPATRANS NESSA CIDADE

FACHADA 1/100 fachada 1/100

Ocupação possível da cobertura

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CORTE AA

Corte aa 1/100

ocupação possível - dormir

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corte bb -BB 1/100 Corte 1/100

Ocupação possível - sociabilização 80


corte cc 1/100

Corte CC 1/100

ocupação possível - exterior / cinema / festa 81


PLANTA COBERTURA

PLANTA terceiro pavimento

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PLANTA terceiro pavimento

PLANTA segundo pavimento

PLANTA primeiro pavimento

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nova casa nem - translúcida / transparente

+ VISIBILIDADE + ACESSO + CONTATO

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nova casa nem - translúcida / transparente

NOVA CASA NEM - OPACA

- VISIBILIDADE - ACESSO - CONTATO

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AS PRAÇAS PROPOSTAS De acordo com a Secretaria Municipal de Conservação e Meio Ambiente (Seconserma), cerca de 1.200 monumentos estão espalhados pela cidade entre estátuas, bustos, esfinges e chafarizes, do total, apenas dezenove (19) mulheres foram homenageadas com monumentos públicos. O primeiro foi erguido apenas em 1935, e somente em 2016 que tivemos a primeira estátua em homenagem à uma mulher negra (Mercedes Baptista). Praticamente não existe a busca da construção da memória (pelo menos pelos aparatos do Estado, assim como privados) de populações não heteronormativas. Voltando ao debate da Casa Nem como anti-monumento de denúncia, podemos fazer o mesmo com personalidades que foram importantes para a construção da memória coletiva e sentimento de pertencimento da população LGBTQI+ na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, é proposto que 3 LGBTQI+ que tiveram suas histórias de vida marcadas pela violência da cidade, sejam eternizados a partir de construções coletivas em espaços públicos, e não apenas através de monumentos monumentos sacralizados e heteronormativos. Para construção da memória coletiva de resistência dos LGBTQIs aos corpos que resistiram e se foram, praças públicas em homenagem à: Marielle Franco - Lésbica, mulher negra, mãe, periférica, e cisgênera. Socióloga com mestrado em Administração Pública. Foi eleita Vereadora da Câmara do Rio de Janeiro pelo PSOL, com 46.502 votos.

MARIELLe MATHEUSA joão w. nery

PRESENTE 86

No dia 14 de Março de 2018, foi assassinada em um atentado ao carro onde estava, atingido por 13 tiros, tomando sua vida e de seu motorista, Anderson Gomes.


Matheusa Passareli- Estudante de Artes da UERJ, era uma pessoa não-binária, ou seja, foi designada menino ao nascer, mas não se identificava nem como homem nem como mulher. Militante, ela trabalhava no projeto LGBTQ+ “Corpo Estranho” e trazia contribuições importantes nas discussões envolvendo gênero, corporeidade e sexualidade. Matheusa foi assasinada no dia 29 de abril, após ser “julgada” pelo tráfico e posteriormente morta e seu corpo queimado.

João Nery - Foi um psicólogo e escritor brasileiro. Foi o primeiro homem transexual a realizar cirurgia de redesignação sexual no Brasil, em 1977, se tornou ativista pelos direitos LGBT, principalmente da população trans e faleceu em 2018 vítima de câncer. Inspiração para a lei que leva seu nome, baseada na Lei de Identidade e Gênero da Argentina, o projeto garante o direito do reconhecimento a identidade de gênero de todas as pessoas trans no Brasil, sem necessidade de autorização judicial, laudos ou cirurgias nem tratamentos hormonais.

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Praça Marielle franco Estrutura de arquibancada e palco para dar voz política àqueles que necessitam ser ouvidos. Esse foi um dos legados de Marielle, um dos corpos políticos mais representativos dentro da política brasileira.

Praça Matheusa Estrutura central a partir do módulo em formato de passarela, palco, ou palanque, para aqueles que, como Matheusa, ocupavam espaços públicos e privados dando à luz o Corpo Estranho, o corpo queer, ao palco as performances artísticas. Local de observação / espaço de efemeridades / festa / debate / troca

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Praça joão nery Por João ter sido pioneiro em diversos debates do universo LGBTQI+ no Brasil, a praça é pensada em unidades modulares, de livre intervenção e atuação coletiva. São muros de exposição, bancos de qualificação da praça, palcos, rampas, até barricadas, com ação livre individual ou coletiva.

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Exemplos de Programas de necessidades e regimes de opacidade Levando em consideração a escala urbana, é difícil elencar todas as necessidades de uma população marginalizada há séculos. Aproveitando o entorno da Casa Nem como um terreno para ensaio de propostas, com lotes vazios e praças em sub-uso, experimentações de programas de necessidade para garantir o empoderamento e a sobrevivência da população LGBTQI+ dentro da cidade armário.

LGBTQI+ assassinada em 1996, criadora da Casa de Apoio Brenda Lee, em São Paulo, que tinha o objetivo de acolher e dar assistência médica, social, moral e material às pessoas com HIV.

Devemos entender que tais demandas não devem estar apenas à deriva do poder público. Idealmente, o respaldo do governo seria a forma mais fácil de conseguir atingir resultados eficientes mediante demandas tão complexas, porém, a lentidão do mesmo em colocar políticas públicas em início, somado ao atual descaso do governo à minorias, resultado da ascensão e chegada no poder de políticas neo-fascistas liberais do último governo eleito em 2018, o cenário é ainda mais desfavorável para aplicação de novas políticas públicas voltadas à LGBTQI+, tanto por parte da iniciativa pública, quanto privada.

A guetificação é um processo de segregação, exclusão. O gueto é um bairro ou região de uma cidade onde vivem os membros de uma etnia ou qualquer outro grupo minoritário, frequentemente devido a injunções, pressões ou circunstâncias econômicas ou sociais. O neologismo gaytificação emerge como resposta aos guetos (ou “à guetificação”) que a criação de muitos projetos voltados à mesma minoria numa só área podem gerar.

Devemos pensar em estruturas que podem ser aplicadas pelo interesse do capital público, privado, e pelo próprio poder de transformação de populações marginalizadas, através de ações coletivas, ocuAs necessidades da população LGBTQI+ são de- pações, etc. A população LGBTQI+ deve ser camasiado abrangentes e incluem todas as áreas paz de ocupar e hackear a cidade no sentido de imagináveis: Comércio, saúde e pesquisa, em- queerizar a cidade armário. poderamento econômico, político e psicossocial, educação básica e técnica, moradia, ocupação do Guetificação x gaytificação espaço público, atendimento à imigrantes, asilos especializados, propaganda e campanhas de con- Mesmo que as propostas acabem por concentrar a scientização, acesso à cultura e à produção cultural, população LGBTQI+ dentro de um bairro, a intenção definição de espaços seguros, de segurança e de não é guetificar a população não normativa no mestransporte seguro. mo trecho da urbe, e sim de gaytificar a cidade.

Historicamente, não é muito diferente da atuação público e privada diante dos interesses desta população, o que não foi empecilho para a atuação coletiva e individual de LGBTQI+ para sua própria sobrevivência, a Casa Nem foi um exemplo de ativismo e ocupação diante do descaso da sociedade cis-heteronormativa. Outro exemplo importante foi o de Brenda Lee, ativista transexual dos direitos

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Através do empoderamento, principalmente econômico, técnico, político, e da reabilitação, são criadas oportunidades de sobrevivência para a população LGBTQI+, permitindo que se protejam e vençam as barreiras e armadilhas da cidade-armário. Através da visibilidade de suas demandas e de seu poder de atuação, promove-se contato, interação cultural e consequentemente educação e troca entre minorias e maiorias. Através da proteção, evita-se a morte, em constante estado de iminência na cidade homofóbica, misógina e racista.


O EIXO DE SAUDE, REABILITAÇÃO E ASILO LGBTQI+ Podemos procurar relacionar vários programas de ta para disseminar tal cuidado. Portanto áreas de necessidades da população LGBTQI+ na área de cuidado com o corpo e mente, auto proteção e ausaúde, relacionando-os com diferentes regimes de todefesa, e até núcleos de treinamentos para profisopacidade, da seguinte forma: sionais que lidam com pessoas LGBTQI+ em outros núcleos de saúde, público ou privados , em outras Primeiro, analisando tais necessidades e como elas partes da cidade. podem se adequar em um edifício com diferentes opacidades, usando o exemplo do gráfico a seguir. A parte opaca do edifício deve conter o núcleo mais protegido de todos, são as áreas que incluem reabilitação química e psicológica, hospital e clínica, postransparente tos de transexualização, atendimentos às vítimas de violência LGBTQIfóbica, proteção a imigrantes translúcido LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade, asilo para opaco idosos LGBTQI+, etc.

político

sexualizado

A seguir, outras áreas de interesse para a construção do empoderamento da população LGBTQI+, e propostas rápidas para tangenciar temas como necessidade x opacidades.

político sexualizado

Então, busca-se entender o porquê dos espaços voltados à saúde serem relacionados aos seis termos que procuram definir o espaço queer, e como. Por exemplo, acredito que o(s) edifício(s) deve(m) possuir todos os regimes de opacidade existentes, por lidar tanto com populações vulneráveis e vitimadas, assim como sistemas de pesquisa e políticas de conscientização, incluindo debates e sistemas voltado para o cuidado, proteção e fortalecimento. Por exemplo, a parte transparente do(s) edifício(s) pode conter toda a parte relacionada à políticas de conscientização - Distribuição de Prep+ ( Anti HIV) e Hormônio, campanhas de autocuidado, etc. A parte translúcida pode conter áreas que não são tão abertas ao exterior quanto as áreas transparentes, por acolherem pessoas em situação de mais proteção, ao mesmo tempo que se mantém aber-

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observatório das putas É praticamente impossível conseguir separar o debate de qualquer população marginalizada, especialmente em países que foram colonizados, da prostituição. Apesar de ser um tabu neste país, as prostitutas (cis ou trans) conseguiram conquistar certos espaços de congregação, especialmente em países desenvolvidos. Foi através da movimentação e luta por direitos que prostitutas conseguiram conquistar alguns direitos trabalhistas, em tais países desenvolvidos, assim como a capacidade de melhor pressionar os aparatos do Estado em promover a inclusão social de tais mulheres.

A parte opaca desse(s) edifício(s) possíveis, deve ser voltada ao cuidado e à proteção, sendo então opaco(s) e de centros regrados, evitando a entrada de qualquer um. É a moradia emergencial, os espaços seguros, etc.

Não entrando no mérito sobre a questão da legalização ou não da prostituição no Brasil, as prostitutas que estão no universo LGBTQI+ são extremamente vulneráveis. Considerando que no entorno da Casa Nem e também nas vias principais de Lapa e da Glória, e não apenas nas ruas de tráfego menor,, há grande movimentação de prostituição, podemos pensar em formas de criar novos núcleos voltados para a reinclusão na sociedade e espaços seguros voltados priorizando ao interesse delas. Por exemplo, pode-se pensar na existência de um ou mais edifícios translúcidos para a promoção de debates, palestras, seminários, etc. voltados para o fortalecimento e empoderamento dessas mulheres extremamente marginalizadas. Suas movimentações e deliberações devem ser visualizadas pela população em geral. Módulos e construções temporárias podem “parasitar” ou ocupar empenas cegas e pontos altos, para que as mesmas possam criar um observatório para sua própria proteção. Já que nem ninguém as protege, que se criem formas de instrumentalizar meios para sua sobrevivência.

transparente

translúcido

opaco

político

sexualizado político sexualizado

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empoderamento econômico, eixo técnico e beco protegido. O empoderamento técnico e econômico é uma das justificativas mais fortes contra a suposta “guetificação” da população LGBTQI+ na área escolhida. Afinal, é através de tal empoderamento que populações marginalizadas podem buscar conquistar a cidade armário.

paço entre “aqui” e “lá”, eles existem, mas por causa de suas adjacências.

Para a maioria das pessoas, os becos são áreas liminares que devem ser evitadas, especialmente por mulheres. Se pudéssemos torná-las áreas de constante observação e movimentação, os becos Considerando a área como vinculada ao núcleo de deixariam de ser zonas obscuras de perigo, e se comércio e cursos de treinamento técnico ou edu- tornariam caminhos ou até rotas de fuga seguros. cativo, tudo que o espaço não deve ser é opaco. Assim, confere-se ao espaço a condição de ser livremente permeado por todas as pessoas, dando à area constante vigilância e estímulo para circular a economia de pequenos e médios produtores na região. Por exemplo, a parte translúcida das áreas comerciais pode ser composta por centros de treinamento técnico, cursos profissionalizantes ou educativos como o exemplo do Prepara Nem e o Costura Nem, que existiam dentro da Casa Nem. Se são voltadas apenas à população LGBTQI+, devem possuir algum filtro de entrada, não podendo ser completamentes transparentes ao exterior. O foco transparente, por sua vez, pode se dar por meio de centros comerciais ou mesmo unidades comerciais, voltadas para vender produtos queer, ou pertencerem a pequenos ou médios empreendedores queer, e também oferecer estágios ou empregos à população queer da cidade. Aproveitando que tais centros ou unidades de comércio trazem o benefício da movimentação de pessoas, resultando portanto em mais vigilância e mais segurança, podemos considerar que tais edificações podem ser voltadas para áreas mais inabitadas, como becos ou ruelas que cortam quadras. Para a maioria das pessoas, os becos são, na melhor das hipóteses, zonas liminares. Habitando o es-

transparente

translúcido

opaco

político

sexualizado político sexualizado

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CAPÍTULO 5

conclusão


Como arquitetos em constante formação, nos é atribuída a responsabilidade de repensar, contestar e produzir o espaço urbano em todas as escalas imagináveis. Porém, se não assumirmos a responsabilidade de repensar a forma que nós aplicamos nossos conhecimentos, assim como métodos de análise, estamos fadados a repetir erros de gerações anteriores às nossas.

formas até mesmo contraditórias, este trabalho busca aproximar a ideia de heterotopia à condição de espaço queer seguro, aproximando-a da condição de LGBTQI+ do filósofo, por muito velada em diversos meios acadêmicos.

Como mencionado anteriormente, as heterotopias de Foucault são um conceito de geografia humana para descrever espaços que funcionam em Esta monografia se propõe a atribuir à nossa cidade condições não-hegemônicas. As heterotopias deuma nova forma de concepção a partir dos pontos finem um conceito de teoria Queer que começa a de vista de populações marginalizadas, em especial explorar o indivíduo em relação à sociedade. a população LGBTQI+, e pela ótica da Teoria Queer e de teorias comportamentais e de espaço. Ambos os filósofos clamam por uma sociedade rica em heterotopias diversas, não apenas para afirmar O primeiro capítulo, baseado em textos de Michel suas diferenças, mas como forma de escape do aude Certeau e Michel Foucault, busca compreender toritarismo e repressão. teorias espaciais comportamentais, que tratavam da dicotomia sempre vigente de poder dominante A partir dessas análises, surge a intenção de aproxx corpo dominado, para entender como tal corpo imar a arquitetura das análises de espaços e da tedominado procura ferramentas de vencer a cidade, oria queer, iniciando-se por retratar a cidade como regida pela lógica dominante opressora. a materialização dos normas opressoras do autoritarismo de grupos dominantes e, de acordo com o De Certeau nos traz a ideia de reação do indivíduo texto de Claudio Oliveira e Gilson Santiago, sob a às estratégias opressoras da cidade, por meio de ótica do direito à cidade, de materializar a cidade táticas que os guiam pela malha urbana. Sendo a como Cidade-armário. cidade o espaço construído e a norma que oprime o corpo dominado, podemos fazer um paralelo com Em seguida, aproxima-se o design de arquitetura e a heteronormatividade, norma imposta também teoria Queer, com a análise de Paulo Preciado soao corpo do indivíduo e de suas decisões. Para o bre a casa Farnsworth, trazendo à tona a o poder da LGBTQI+, por séculos, a condição de ter a sua sex- arquitetura em definir regras de convívio através da ualidade ocultada (ou “estar dentro do armário”) foi ocultação/exposição de seus usuários, assim como a tática de sobrevivência para poder viver dentro da exemplos de contribuições trazidos por Gabrielle norma. Esperdy, com edifícios já pertencentes ao universo queer, tais como bares e restaurantes já frequentaFoucault, filósofo homossexual que faleceu nos dos por LGBTQI+. anos 80 (em decorrência de complicações do HIV contraído), traz à tona um novo conceito para lidar O terceiro capítulo busca, então, definir o espaço com os espaços seguros e diferentes dos espaços queer a partir da análise de J. Matthew Cottrill sobre regidos pela norma vigente: as heterotopias. Apesar três diferentes críticos da arquitetura: Aaron Betsky, do termo ser tão abrangente e tão disseminado de Joey-Michelle Hutchinson e Christopher Reed, dan-

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do a contribuição de seis novos termos para ajudar a compreender o espaço queer, podendo este ter a característica de ser um espaço sexualizado, político, político-sexualizado, e a capacidade de regir tais definições através de diferentes níveis de opacidade, como transparência, translucidez e opacidade.

Do debate como diretriz de construção do banheiro público sem segregação de gênero, surge a primeira proposta de intervenção do entorno, que gera o módulo inicial replicado em diversos outros debates à frente. O “pod” é um módulo opaco, que além de ser banheiro/equipamento público, permite que alguém se proteja no seu interior, de algum perigo No quarto capítulo, é trazido o corpo central de ob- iminente externo. jeto arquitetônico de estudo dentro dessa monografia: A Casa Nem, e seu entorno, e a importância do Nesse sentido, uma vez proposta a manutenção da edifício para a histórias de LGBTQI+ marginalizados antiga Casa Nem como ruína, emerge o projeto de na história do Rio de Janeiro. Por mais que a Casa uma Nova Casa Nem, que una todos os termos de Nem não exista mais, este trabalho busca eternizar análise do espaço queer mencionados, e que tenha seu poder de transformação e de impacto na vida de as mesmas potencialidades (e mais) da antiga Casa milhares de pessoa na cidade, especialmente trav- Nem. A Nova Casa Nem tem a capacidade de ser estis e transexuais. erguida independente da atuação do Estado, apenas com o poder de transformação de seus usuáriSurge então a primeira proposta de intervenção os. Sua fachada pode ter diversas opacidades dif(ou não-intervenção) deste trabalho: manter a an- erentes, através do uso de painéis de diferentes tiga Casa Nem como ruína, tomando o exemplo de opacidades, dando o caráter mais aberto e permisartistas alemães com o conceito de anti-monumen- sivo ou mais fechado e protegido de seu edifício e talismo, pós segunda-guerra. A Casa Nem, então, usuários. se torna uma ruína anti-monumental, com todas as suas camadas de vida e morte expostas, aberta à Também são propostas 3 praças públicas como forvisitação, e com a intenção de causar desconforto mas de eternizar a memória dos LGBTQI+ Marielle em seus visitantes, para melhor ilustrar todo o des- Franco, Matheusa Passarelli e João Nery, para que caso pelo aparato público que a Casa sofreu no a construção coletiva da memória LGBTQI+ seja decorrer dos anos, até o despejo de todos os seus feita de forma coletiva e com ação direta. Em seguimoradores em 2018. da são propostos outros debates de programas de necessidades e como podem se relacionar com os Após essa proposta inicial, busca-se compreender termos de espaço queer mencionados. e analisar o entorno da Casa Nem, definir seus terrenos e espaços públicos com potencial de trans- O presente trabalho não tem o objetivo de ser uma formação. Inicialmente, é exposta a necessidade de cartilha sacralizada de como o espaço queer deve propor diretrizes para a construção de um dos am- ser construído na arquitetura, e sim de trazer o esbientes de uso mais comum do mundo: o banheiro paço queer para o debate dentro da nossa profis- no caso, o banheiro que está no ambiente público. são, para que assim possamos repensar nossa atuPrecisamos repensar todas as diretrizes projetuais ação na construção de espaços públicos e privados, para pensar espaços públicos sob a ótica de popu- individuais e coletivos, evitando reproduzir o sempre lações marginalizadas, para permitir que estas ocu- presente modelo conservador e opressor como propem e transformem estes espaços em vida. jetamos nossas cidades.

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