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As três “miseriae”

Em Bissau, são as mulheres quem enche de colorido as ruas e esquinas da cidade. Não me refiro às cores das indumentárias, embora também elas façam parte da geografia humana, mas ao conjunto de frutos e verduras que começamos a avistar, ainda antes de chegarmos ao mercado do Bandim, para se ramificarem até ao coração da urbe.

Não sei se existe algum acordo tácito entre elas e os comerciantes (donos de mercearias e supermercados), no que à venda destes produtos diz respeito, pois são elas quem os vende a céu aberto, espalhados ou amontoados nos irregulares retângulos de capulana estendidos no chão. É como se cada pedaço de pano fosse o prolongamento da terra de onde foram retira- dos pela madrugada para que chegassem frescos ao consumidor, buscando a sombra protetora de uma árvore ou de um muro com o sol pelas costas. Após cuidarem dos filhos, tomam as rédeas da economia familiar cavalgando os caminhos onde a venda é mais lucrativa e a clientela fidelizada.

Na minha segunda missão, fiquei instalada no Bairro da Cooperação Portuguesa. Como dava formação na Universidade Amílcar Cabral, atravessava diariamente a estrada que nos separava, um curto percurso feito de votos de bons dias a todas as vendedeiras. Por trás das saudações, exibiam-se rasgados sorrisos que convidavam a olhar para as bancas improvisadas em cima de caixotes. Da primeira vez não dera por um tipo de fruto que agora me despertava a atenção. Conhecia-lhe o formatopequeno, redondo, amarelo, semelhante à nossa ameixa -, mas não sabia como se chamava. Perguntei e responderam-me: Miséria! - Insisti e a resposta manteve-se: - Miséria!

No dia seguinte, tirei a dúvida com os alu- nos. Limitaram-se a confirmar e, entre risadas, até me contaram uma piada, que aqui reproduzo. Numa campanha eleitoral, um dos candidatos clamava repetidamente:

- Temos de acabar com a miséria neste país!

O povo, solícito e obediente, desatou a cortar todos as árvores que davam a miséria, ficando desprovido deste alimento.

Ri-me com eles, mas nenhum me conseguiu explicar a razão de o fruto ter tal designação. Movida pela curiosidade, comprei alguns e, em casa, provei um. No dia seguinte, estava pronta para dar a minha explicação. Retirada a pele, deparei-me com um caroço enorme envolvido numa fina camada de polpa. De imediato lhe associei a palavra miséria ao significado de “carência”, “escassez” ou míngua”. E pensei na forma como nomenclaturas, topónimos e patronímias nascem de pequenos incidentes de que todas as línguas são feitas. Ou seja, alguém deve ter exclamado “miséria!”, após uma prova em que, trincada a polpa, logo se chegava ao caroço.

Sair da árvore para o papel é também um caminho para me encontrar com uma outra miséria – o livro de poemas de Ivo Machado - que foi ao plural latino buscar-lhe o nome “Miseriae”. Foi com ele, e mergulhada na sua leitura, que viajei até Coimbra após ter estado na última edição das Correntes d’escritas, na Póvoa de Varzim. Conheço o Ivo há vários anos. Ele é o homem que tem a generosidade de nos oferecer, regularmente e on-line, pintura e poesia da sua lavra. Como já lhe confessei, não tenho o hábito de comentar, mas leio-o sempre com o mesmo apetite e sabor “a pão acabado/ de cozer”.

Quando iniciei a viagem era ainda entardecer, a hora em que “as estrelas não estão maduras”, mas fazia noite quando cheguei. Em Coimbra “têm nomes as ruas de cidade/ todos de gente ausente”, mas eu não conseguia lê-los, nem precisava, pois sei bem onde fica o terminal rodoviário. Saí e, “De pé/ de pé para escutar o quanto vivi”, atravessei o passeio e fui para casa com “Miseriae” na mão e o miolo no pensamento.

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