Ana Leticia Marques
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Raquel Prado
Mais do que falar sobre a escolha de não ter filhos, é necessário falar de liberdade feminina e dos caminhos que as mulheres percorreram até poder dizer com propriedade: não, eu não quero ter filhos! Ventre Livre conta a história de seis mulheres que optaram por não ser mães, mas não deixaram de ser felizes por conta disso. Você vai conhecer as lutas e conquistas da vida de cada uma destas que, de uma maneira muito particular, escreveram suas histórias de acordo com as suas próprias vontades. Liberte-se!
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elicadas, agressivas, elegantes, cafonas, displicentes, organizadas, batalhadoras, folgadas, donas de casa, executivas, chefes de família, sensuais, discretas, histéricas, controladas ou destrambelhadas. Há uma para cada gosto. Entre os extremos, há diversas nuances, que dão tonalidades diferentes a características tão diversas. Entre as feministas e as submissas que andam por aí, a maioria não é completamente submissa, nem totalmente engajada nas lutas sobre a condição feminina. Grande parte fica dividida entre as cobranças de cada lado. A evolução da condição feminina nas últimas décadas é inegável. Mas sempre há mais uma necessidade, uma questão a ser resolvida. Ainda há muito o que dizer e a fazer, seja nas rádios, nos jornais, nas revistas, nas TVs ou nas timelines. Em casa, na VENTRE livre
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escola, no trabalho ou no convívio com amigos, uma pergunta persiste: o que ainda querem as mulheres? Liberdade! Não dos aventais, nem dos escritórios. Liberdade para fazer uma escolha sem ter de se encaixar em estereótipos. Liberdade para serem casadas ou não; para decidir sobre o próprio corpo e a sexualidade; para trabalhar na profissão que quiserem. Liberdade para serem mães ou não. Nesse contexto, as autoras deste livro-reportagem escolheram abordar um tema ainda polêmico em nossa sociedade: as mulheres que decidiram não ter filhos. Cada vez mais, diminui a quantidade de filhos pelas mães no Brasil. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontam que a taxa de fecundidade da brasileira atingiu 1,95 filho por mulher em 2011. Em 1960, essa taxa quase chegava a sete filhos. As mudanças no comportamento feminino ocorreram principalmente a partir da década de 1960, com a evolução da mulher em diferentes âmbitos: nos lares, no mercado de trabalho e na sexualidade. Quanto mais novas, mais decididas elas estão a se dedicar ao trabalho, ao prazer e às causas sociais. Atualmente, 40,8% das mulheres na faixa de 25 a 29 anos são adeptas do “não quero ter filhos, obrigada.” Mas escolher não ser mãe é uma decisão difícil, uma vez que a maternidade é praticamente um destino traçado, desde criança. Na infância, as meninas brincam de princesas com suas bonecas. Depois, na adolescência, é hora de estudar e namorar. Quando atingem a idade adulta, é esperado que as mulheres 10
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sejam bem-sucedidas profissionalmente, e que arrumem um marido, tenham filhos, cuidem da casa e também de si. Em pleno 2013, elas precisam lidar com uma dupla ou terceira jornadas. Embora as constituições ocidentais afirmem a igualdade entre homens e mulheres, a sociedade patriarcal ainda é dominante no Brasil. O conceito veio com os portugueses, que tradicionalmente valorizam a formação da família. Todos os membros e agregados eram submetidos à autoridade do patriarca e tratados não como iguais, já que a mulher era vista como uma espécie frágil, cheia de limitações. Hoje em dia, no início do século 21, as mulheres travam uma batalha para deixar de lado estereótipos em relação aos gêneros e para eliminar o machismo que relegou, a elas, um papel secundário, além de as transformar em um produto de consumo.
Ventre Livre traz a história de seis mulheres que escolheram não ser mães. Os motivos são diversos e estão situados em momentos diferentes da evolução feminina no Brasil, um país cuja cultura ainda é majoritariamente patriarcal e machista.
As mulheres de Ventre Livre são aquelas que você pode encontrar na fila do supermercado, no elevador ou na sala de espera de um consultório. Não há qualquer anormalidade nelas; tampouco frequentam clubes secretos exclusivos para não-mães. Prepare-se para conhecê-las! Boa leitura.
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Ser mulher no Brasil...
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neste palco não há filhos
... no século 21, especialmente em 2013, é diferente de ser mulher décadas atrás. Nos anos 1930, elas não tinham sequer direito ao voto, o que só aconteceu em 1938. As conquistas acumuladas durante anos de lutas pelos direitos políticos e pelo trabalho fora de casa resultaram na realidade atual, com uma mulher na presidência da república e outras tantas comandando grandes corporações. Atualmente, 27% dos cargos de chefia no Brasil são ocupados por mulheres, um número maior do que a média global, de 21%. Hoje, a ala feminina participa da política, do mercado de trabalho, da cultura, das artes, e é também mais livre para ir e vir, conforme mandam os seus desejos e necessidades — embora em países como o Afeganistão, as mulheres ainda não tenham nem o direito de estudar.
Se “Amélia é que era mulher de verdade”, por zelar pela casa e pelo companheiro com apreço e dedicação e sem a “menor VENTRE livre
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vaidade”, hoje ela seria mal vista pela sociedade. Afinal, é exigido e esperado que a “mulher de verdade” tenha uma carreira profissional de sucesso, boa aparência conquistada após horas nas academias ou nas mesas de cirurgia plástica e, ainda, que cuide da casa e dos filhos. É a jornada dupla ou tripla. Pesquisas recentes mostraram que 98% das mulheres que trabalham também cuidam da casa. Dessas, 63% recebem alguma ajuda, 10% contam com ajuda paga de domésticas ou faxineiras e 27% enfrentam todas as preocupações do dia a dia sozinhas. A rotina que inclui o trabalho fora e as atividades domésticas é considerada cansativa para 75% das mulheres. Além dos desgastes físicos e emocionais causados pelo cansaço, a dupla jornada é um dos principais obstáculos para a ascensão na carreira. A maioria das empresas, acostumadas durante anos com as gestões masculinas, não possui horários flexíveis que permitam às mulheres conciliar, de maneira equilibrada, as atividades. São horas ocupadas com o trabalho; outras tantas com os filhos; mais algumas com o parceiro; e ainda a aparência, que não pode ser descuidada. O dia, para a tal “mulher moderna”, tem 24 horas que parecem não ser suficientes para dar conta de tantas demandas. Nesse contexto, Beatriz busca a felicidade. Não essa idealizada pelas revistas, mas a sua própria. Sabe bem que é preciso fazer escolhas, mas isso não a abala: já elencou suas prioridades e parece disposta a segui-las, não importa o preço.
— A minha carreira vem antes de tudo. Formada em artes cênicas desde 2011, Beatriz é apaixonada pelo teatro e quer continuar vivendo assim. Não sonha com os filmes 16
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Uma família classe média espremida...
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longe de ser uma mulher do lar
... para que todos caibam no retrato. Eles estão com trajes de
banho e os pés descalços na areia da praia. O mar está ao fundo, com suas ondas calmas e baixas. Mas o que realmente chama a atenção são os dois adultos, rodeados por cinco crianças — com diversos tamanhos e expressões. O pai, o mais alto da foto, é um homem magro e alto. Suas pernas são longas e seu rosto, retangular. Não há muito cabelo. Suas mãos estão para baixo e seu ombro também, mas seus olhos estão focados na lente da câmera. A mãe está de biquíni liso, sem estampas. Os cabelos estão presos, mas displicentes, caindo um pouco no rosto, que também é retangular. Há um instinto materno em sua aura: uma das suas mãos está na cabeça de um filho, e a outra, bem próxima de outro. Seu quadril é largo, mas não há vestígios de que daquele ventre saíram cinco filhos. São eles que estão em sua volta, herdeiros dos traços do rosto e do mesmo VENTRE livre
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corpo fino e magro dos pais. As crianças estão um pouco à frente. O primeiro à esquerda sorri. No meio estão as duas meninas, uma mais encolhida nas pernas da mãe. Elas sorriem timidamente. No lado direito, há mais um menino com cara de choro, segurando a mão da mãe. Finalmente, na ponta direita, está mais um garoto, que também tem um sorriso, mas sem mostrar os dentes.
— Toda a família tem o retrato em casa. Até os sobrinhos. É um símbolo nosso. Amélia faz a afirmação com orgulho. Ela é a irmã caçula de cinco irmãos da família retratada. Cresceu e viveu em uma cidade próxima de uma grande metrópole, com hábitos de uma família de classe média baixa. O retrato é uma lembrança que ela guarda com carinho no seu apartamento e que chama muita atenção. Ele é o único objeto que decora a sala da senhora de 60 anos, que está bem longe de ser um apartamento de idoso ou de uma avó. Não tem cheiro de comida ou de colônia antiga, ou móveis fora da moda. A sala possui móveis planejados, de madeira; um sofá claro combinando; a televisão de LED e uma mesa de vidro retangular. A sala de estar tem como extensão a sala de jantar. Sem plantas, sem detalhes, sem cores. Há um tapete vinho que combina com o carpete de madeira. As paredes de tons pastéis e as luzes amarelas amenizam a frieza de um espaço similar aos de catálogo de construtoras de imóveis. A sacada é escondida por uma cortina creme. Há uma entrada pequena para a cozinha e um corredor com três portas reservadas à intimidade de Amélia, um limite que ela fez 30
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a militante dos cabelos brancos
... Um prédio antigo e familiar, localizado no largo de Santa Cecília, em São Paulo, bairro tradicional onde se encontram a maioria dos prédios art déco que ainda restaram na cidade. O elevador de madeira e as paredes em tons pastéis encardidos denunciam o desgaste ao longo dos anos e a falta de restauração. No apartamento 124, à direita do elevador, vive dona Clara, de 70 anos. O primeiro olhar é de uma senhora comum de cabelos branquinhos, baixa estatura, vestido de tecido simples e gasto, e um casaco marrom levemente esportivo, com algumas manchas na gola. Está com uma bolsa nas mãos, como se estivesse pronta para sair. Ao entrar em seu lar, a primeira impressão é de que há apenas um cômodo e muitas, muitas coisas espalhadas, por todos os lados. Apesar da sensação de sufoco, o ambiente chega a ser bastante iluminado, devido a uma enorme janela na sala. Uma cristaleira VENTRE livre
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a militante dos cabelos brancos
de aproximadamente 1,80 m de altura quase fecha a passagem da porta, ligada por uma mesa onde não se enxerga o tampo. Mais um armarinho pela esquerda e mais objetos pelo chão. O cheiro é algo indefinido, longe de ser agradável. Suportável. O barulho vindo de outro cômodo do imóvel confunde por um momento. Aliado ao odor, logo se associa a algum animal. Um gato? Um cachorro? Talvez os dois, mas ainda não se sabe. A certeza é de que Dona Clara não está sozinha. Mais à frente, está o sofá, tomado por revistas e documentos. Há um sapato caramelo de bico fino e salto médio, estilo anos 80, em cima de tudo, e dois chapéus de palha coroando o amontoado de documentos. A possibilidade de nos surpreender a qualquer momento com algum pequeno morador entre os pertences é relativamente grande. A senhorinha vasculha algumas revistas e jornais mais próximos em busca de sua última entrevista concedida para a Folha de São Paulo, onde relata seu trabalho social mais recente, o projeto “Aquele Abraço”, iniciado em março de 2013, quando a internação compulsória voltou a ser discutida pelo governo como uma solução à situação de dependentes químicos. Com o intuito de trazer um pouco de afeto aos usuários de drogas habitantes da região do bairro da Luz, a iniciativa ganhou notoriedade ao descobrirem a curiosa história de uma senhora que sai pelas ruas abraçando desconhecidos. A senhora era Clara, que lembra exatamente como foi descrita na reportagem: (...) De cabelos brancos, 70 anos, com seus passinhos curtos segue andando pela cracolândia convencendo as pessoas a conversar. 44
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O encontro da rua Augusta...
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Resolvendo a solidão por correspondência
... com a avenida Paulista é semelhante à dança das águas criadas
entre Rio Negro e Solimões. Embora comecem em regiões diferentes do país, ambos unem suas diferenças e se transformam em uma grande obra de arte — no caso de São Paulo, uma arte urbana. O sol nasce na ponta da região do Paraíso e, com os primeiros raios, os moradores de rua, enrolados em cobertores e roupas usadas, saem das portas das grandes corporações para dar espaço aos executivos que movem a tal locomotiva do país. Nesse meio tempo, passam os notívagos que estavam se divertindo em algum lugar da rua Augusta — lá, a festa nunca para. Ao longo do dia, a região enche de turistas, seja de outros países ou cidades, e também de moradores das zonas periféricas da própria cidade. É um lugar novo até para quem mora nas ruas abaixo da Paulista. Nada é permanente ou rotineiro. Há sempre alguma VENTRE livre
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Resolvendo a solidão por correspondência
novidade. Isso faz com que o lugar seja caracterizado por uma mistura de etnias e de estilos e também pela convivência com gente de todas as classes sociais.Terno e gravata com tênis coloridos, roupas surradas e fora de moda, e jovens de skate.
— É o melhor lugar para mim. Eu amo São Paulo. É nesse lugar que Natasha escolheu conversar — sentada no movimentado comércio do shopping Center 3, um lugar impessoal para uma noite de inverno. A praça de alimentação é grande e sua voz se perde às vezes nos tons agudos e graves dos clientes do estabelecimento. No ambiente, Natasha é apenas mais uma pessoa que passa pelo local, embora chame a atenção por estar encolhida atrás de uma pilastra. Timidez? Talvez. A única coisa que realmente dá para se perceber é o nervosismo nas mãos paralisadas, que seguram apreensivas a bolsa. Sua roupa é preta e seu cabelo também. A pele é branca, quase pálida. Um conjunto que combina perfeitamente e está bem longe de mostrar seus 31 anos recém-completados. Ela tem uma aura de menina de 20 anos que passou a vida inteira entre a Augusta, a Angélica e a Consolação. Que frequentou desde os lugares calmos, como livrarias e sebos, até os pequenos inferninhos espalhados pela região. Essa impressão vem do estilo underground, meio Madame Satã, presente inclusive nas diversas tatuagens pelo corpo.
— Essa daqui é em homenagem a uma música da Alanis Morissette — diz, apontando para o pulso. As tatuagens são em homenagem a músicas e bandas que passaram pela sua vida. Ela mostra outra, só que agora na canela. Tributo a outra banda. E então começa um passeio pela vida que 56
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Anos oitenta. Claudia ostenta...
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Uma cama para dois
... cabelos negros, esvoaçantes, enquanto desfila sua calça de cintura alta e collant justíssimo. É o tipo de mulher que cativa a muitos por sua ingenuidade e beleza. Fazia muito sucesso e foi modelo de comportamento para muitas mulheres de sua época. Todos os dias, por volta das sete horas da noite, ela estava lá, impecavelmente presente na casa de muitos telespectadores da novela “Elas por Elas”, da emissora Rede Globo.
Nessa época, Bárbara tinha 20 anos. Noveleira, acompanhou a história de Claudia, interpretada pela atriz Christiane Torloni. Apesar do sucesso da personagem, nunca considerou inspirador o estereótipo de mocinha ingênua. Demonstra ser uma mulher bem resolvida: voz firme, jeito descontraído, decidida. Após um dia inteiro de trabalho, de regata folgada, shorts de malha e chinelinhos de pano, se mostra bem confortável em sua casa. VENTRE livre
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Oferece um lanche, comprado na padaria da esquina, sem nem esperar por uma resposta. O bolo é de banana com canela, fofinho, recém-assado, e está acompanhado de um refrigerante de guaraná, servidos em um conjunto de copos e pratos de vidro na cor azul. O gesto traz uma sensação de casa de mãe, uma recepção calorosa. É prática, mas atenciosa quando se prepara para uma visita. A atenção e o carinho maternal afloraram no período em que teve de criar Joana, filha do ex-marido, Celso, com quem foi casada por sete anos. Durante o ano em que a mãe biológica de Joana esteve fora do país, era Bárbara quem fazia a comida, ajudava no dever de casa, lia histórias antes de dormir e também quem dava as broncas, quando necessário. Celso também tinha um neto recém-nascido, com quem Bárbara teve contato e ajudou na criação, mas não de maneira tão ativa como com Joana. Uma experiência verdadeiramente maternal. Bárbara e a menina, que tinha apenas 10 anos na época, desenvolveram uma relação especial. Hoje, com 22 anos, Joana e ela mantêm uma boa amizade, na qual dividem confidências e desabafos. Sempre se ligam, trocam e-mails e Joana costuma pedir conselhos como, por exemplo, quando discute com o namorado. A mais recente visita foi quando a jovem resolveu fazer um mochilão pela Bolívia. A experiência não foi boa e Joana voltou sem nada, apenas com a roupa do corpo. Tinham lhe roubado tudo e a primeira pessoa a quem recorreu ao voltar ao país foi Bárbara.
— Sabe quando a calça tá amarrada para não cair porque a roupa ficou larga demais? Tava magrinha, coitada. E os cabelos? Precisava de um banho urgente! Faminta, o banho teve de ficar para depois, e um rodízio de 68
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O bairro do Bixiga, em São Paulo, é...
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Hare Krishna, Krishna
... um reduto de intelectuais, artistas e amantes de gastronomia. Fundado em meados de 1870, foi povoado por imigrantes italianos recém-chegados ao Brasil, logo tomando as características de seus habitantes. As ruas e ladeiras estreitas são românticas, lembrando as ruelas da Itália. Hoje, é conhecido pelas cantinas e festas, herança de seus primeiros moradores, e abriga frequentadores dos mais variados estilos. Longe de ser um lugar elegante, o encanto do local está na diversidade de seus transeuntes. Pessoas aproveitam o sábado ensolarado. Homens, mulheres, jovens e crianças riem alto, jogando conversa fora.
E é ali, num bar de esquina e mesas de plástico espalhadas pela calçada que está Luana, vestida com roupas simples, uma blusa decotada sem estampas ou bordados, de tecido leve, tal como sua saia longa com uma fenda que deixa à mostra a perna esquerda. Sente-se à vontade no bairro que abrigou tantas VENTRE livre
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histórias de seu passado.
— Uma cerveja, por favor? A bebida escolhida deixa o clima desinibido e o que se segue é uma conversa despretensiosa, embalada pela música pop vinda de dentro do bar e pelo barulho dos carros e motos que passam pela rua agitada. Como quem procura uma vaga lembrança na memória, Luana olha ao redor.
— Eu gosto daqui. Não mora mais no bairro há alguns anos, mas a nostalgia que sente é refletida na familiaridade com que caminha pelas ruas, como se passeasse no quintal da própria casa. Frequenta as padarias artesanais e indica os melhores bares e restaurantes da região, revivendo um pedaço de sua história, que começou anos antes, naquelas mesmas ruas. Foi ali, aos 25 anos de idade, que conheceu Inácio, um grande amor que abriria sua mente para um mundo ainda desconhecido. O jovem era um livreiro sem estudo, falava errado, e tinha uma educação bem diferente à que Luana estava acostumada, adquirida nos tradicionais colégios paulistanos em que estudara. Inácio passava os dias dormindo no sótão do boteco onde morava de favor, ou então, andando pela cidade em busca de novos livros para comprar. À noite, saía pelas ruas e bares da região buscando, entre os boêmios, algum comprador para os títulos. Enquanto isso, Luana dividia o tempo entre seu apartamento e o trabalho na Agência Estado. 82
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mulher brasileira mudou. É só olhar para trás, para as primeiras décadas do século 20. É um tempo marcado por conquistas: direito ao voto, ao trabalho, remuneração equivalente à carga horária e acesso à educação.
Nos anos 60, elas conquistaram a liberdade de expressão sexual com a chegada da pílula anticoncepcional, e o direito ao prazer. Ficou claro que, assim como os homens, as mulheres possuem desejos. Na década de 70, o divórcio libertou as mulheres de casamentos infelizes, mesmo que ainda sofressem com a má fama usualmente atribuída às solteiras e divorciadas da época. Já nos anos 80, elas saíram definitivamente para o mercado de trabalho, consolidando o movimento de emancipação iniciado na década anterior. VENTRE livre
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Nos anos 90, os desafios eram outros. A luta era para equilibrar casa, família, profissão e estudo. A mulher, que já estava inserida no mercado de trabalho, quis ir mais longe e conquistar cargos de chefia, salários maiores, mais reconhecimento e menos submissão. A virada do milênio trouxe novos horizontes e esperanças. Por um lado, as mulheres estão cada vez mais independentes: muitas são chefes de família ou vivem sozinhas, bancando as próprias despesas. Mas, por outro, ainda há tantas outras que sofrem caladas com as agressões que, na maioria das vezes, acontecem nas próprias casas. Em 2006, a aprovação da Lei Maria da Penha, responsável por proteger a mulher das agressões domésticas ao punir o agressor, trouxe, pela primeira vez, a certeza de uma defesa jurídica à altura do sofrimento. Uma pesquisa de 2013 do Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Data Popular, mostrou que 86% das mulheres que sofrem maus tratos passaram a denunciar as agressões. As que não denunciam, ou não se separam dos parceiros, alegam vergonha e medo de serem mortas. Esse temor está associado ao fato é de que há uma tendência de culpar as mulheres pela violência sofrida. Em casos de estupro, por exemplo, é comum ouvir comentários sobre a roupa que a vítima usava, o horário do crime e se estava sozinha ou não, como se justificassem a violência. A lei Maria da Penha é um passo importante; porém, os resultados ainda não são os ideais, o que pode indicar que as mulheres continuam perdoando seus agressores. Para a historiadora Mary Del Priore, a população feminina 96
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tem uma parcela significativa na construção desse pensamento sobre elas mesmas. O conceito do homem provedor, enraizado na sociedade patriarcal, e da mulher que se coloca no papel de dependente financeira; a omissão e a retirada de denúncias de violência doméstica; a diferenciação de atividades masculinas das femininas, que delimita os deveres de meninas e meninos desde crianças; e até o recente conceito de “escravas do espelho”, são comportamentos que contribuem na disseminação de valores de desigualdade de gênero. Ainda assim, hoje as mulheres têm mais consciência de seus direitos. Escolher qual papel exercer na sociedade, e como querem ser vistas, é um futuro que se desenha. Mas é necessário reivindicar essa liberdade de escolha, apesar da recriminação e do prejulgamento. Por isso, escolher por uma vida sem filhos não significa negar a condição de mulher, e sim ter o direito de optar por outras esferas que compõem a vida, como a busca de uma qualificação profissional digna, e viver da melhor forma possível, sem ser obrigada a seguir quaisquer padrões de comportamento. A conquista da liberdade de decidir ter ou não filhos significa uma mudança de expectativas em relação à maternidade e o amadurecimento da sociedade sobre as aspirações da mulher. Mais uma vez, basta olhar para trás e ver como os motivos para não ter filho eram outros. Na Europa, antes da revolução sexual das décadas de 60 e 70, as razões que levavam as mulheres a abrir mão da maternidade eram a guerra e a pobreza. Por conta disso, aquela que não tinha filhos era rapidamente associada à miséria e desgraça, ou, como diziam os mais religiosos, vítima de algum castigo divino. VENTRE livre
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Voltando ao presente, estudos mostram que 20% das europeias optaram por não ter filhos, e apenas 2% ou 3% são inférteis. Para Mary Del Priore, a liberdade conquistada pelo estudo e trabalho são os principais motivos, inclusive entre os casos no Brasil — mas com um diferencial. As europeias são mais engajadas em causas sociais e participam mais ativamente de ações em prol do coletivo. Carreira, liberdade sexual e engajamento social acabam se tornando o centro da vida dessas mulheres, o que deixa a maternidade em segundo plano. No Brasil, o fato não é encarado com tanta naturalidade, uma vez que a cultura ainda é patriarcal. Tanto que a psicóloga Maria Holthausen, da Universidade Federal de Santa Catarina, percebe uma tendência de vitimização das mulheres que não podem ter filhos — e os querem — e certa estranheza com aquelas que declaram não tê-los por opção. Para não se sentirem discriminadas, então, cedem às pressões sociais e acabam tendo filhos para se sentirem aceitas. Felizmente, esse padrão começa a mudar. Para Conceição Oliveira, educadora e autora do blog feminista Maria Frô, hoje as mulheres têm mais voz. Elas se impõem mais na sociedade e podem assumir certos comportamentos considerados inadmissíveis anos atrás, como o divórcio, que se tornou comum para ambos os sexos. Assim, casais sem filhos por opção, os chamados dinks, já somavam, em 2011, 8% das famílias brasileiras, podendo chegar a 12% em 2020. É uma ruptura do modelo patriarcal, pois não há a figura de um provedor e protetor da casa, ou de uma mãe frágil financeiramente e dependente do marido. Ambos trabalham, têm renda própria e decidem qual o melhor destino do dinheiro. 98
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Mais do que falar sobre a escolha de não ter filhos, é necessário falar de liberdade feminina e dos caminhos que as mulheres percorreram até poder dizer com propriedade: não, eu não quero ter filhos! Ventre Livre conta a história de seis mulheres que optaram por não ser mães, mas não deixaram de ser felizes por conta disso. Você vai conhecer as lutas e conquistas da vida de cada uma destas que, de uma maneira muito particular, escreveram suas histórias de acordo com as suas próprias vontades. Liberte-se!
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