NOTA DE ABERTURA Esse trabalho é um caminho coletivo, nenhuma ideia, relação e criação aqui colocada tem exclusividade autoral, uma vez que o meu estudo e vivência nunca foi individual. Nenhuma biografia poderia dar conta de citar ou mesmo rastrear essa coletividade por completo. Dito isto, devo acrescentar que o formato escolhido, uma zine, foi uma escolha tanto estética como política. Confeccionadas artesanalmente, as zines carregam uma tradição de
enfrentamento às narrativas da mídia hegemônica, sendo repertório de ação em muitos movimentos sociais. Muitos manifestos, poesias e histórias puderam circular pelas margens através das zines. Em razão disso, proponho também como uma possibilidade de transgressão aos modos de escrita e publicação da academia científica, reivindicando a arte para tornar essa mensagem mais acessível em outros espaços.
-Marilia Chupel Freire Carvalho dos Santos
O colonialismo é o projeto de humanidade que legitima a branquitude como O Homem universal. Arquiva memórias e narrativas dissidentes e as classifica em uma linha evolutiva. Como colocado por Malcolm Ferdinand, têm como um de seus princípios o altericídio, que significa “a recusa da possibilidade de habitar a Terra na presença de um outro, de uma pessoa que seja diferente de um “eu” por sua aparência, seu pertencimento ou suas crenças.” O outro em questão, uma vez condenado ao status de nãohumano ou menos-que-humano, passa a ser entendido como esse indivíduo sem uma subjetividade, sem uma história, sem vida e sem território. E é esse diagnóstico da morte e do vazio que justifica a violência colonial.
¹Por uma ecologia decolonial: penas a partir do mundo caribenho. Ferdinand, Malcolm, p.47 ²Epistemicídio é um conceito elaborado por Sueli Carneiro e signififica a morte de outros modos de conhecer o mundo.
O HABITAR COLONIAL COMEÇA... Um olhar predatório de desbravamento pousa sobre as Américas quando vistas de cima, assim os Europeus desenham o mapa do descobrimento. Inicialmente se posicionam em suas coordenadas horizontais como centro do mundo e verticalmente acima do resto do mundo, desenhando uma zona geográfica de ³subordinação global. É ali onde ficam as chamadas Terras de ninguém, desconsiderando totalmente a vida já ali presente. 4 Seriam essas as terras à serem penetradas e exploradas. Seria essa a geografia da riqueza e da miséria do mundo. O habitar colonial é pois, a síntese de uma contraditória relação de domesticação de um “paraíso inabitável” e da produção da precariedade pela higienização. Tudo isso em nome do progresso e da civilização do homem. ³ Por uma ecologia decolonial: penas a partir do mundo caribenho. Ferdinand, Malcolm, p.44 4 Referência ao texto de Eduardo Galleano “As veias abertas da América
Latina” em que diz que a riqueza da terra é a miséria do mundo.
“O esbulho em nome do desenvolvimento reedita-se a cada dia como missão civilizatória: a acumulação primitiva animada pela aniquilação de tudo o que se entende como primitivo (Moyo, 2011).” (BORGES, 2020)
Uma vez desbravada, uma terra se torna plantation, deixa de ser um bem comum e se torna uma propriedade, privada ou estatal. Projetadas em uma arquitetura de controle e domesticação, são latifúndios de monocultura para alimentar as metrópoles com a exploração do trabalho, são as grandes empresas e as cidades.
AS CIDADES-PLANTATION Como bem colocado por Antonádia Borges nesse trecho de A Very Rural Background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue, a composição-terra da plantation ainda persiste na atualidade como modo de produção predominante. Se formos analisar, as cidades espacializam as relações de poder que configuram a branquitude e a modernidade.
“Encontros coloniais passados criaram geografias materiais e imaginativas que reificaram as segregações globais por meio da “maldição” dos espaços há muito ocupados por outres humanes do Homem”. (MCKITTRICK, 2021)
OUTRAS COMPOSIÇÕES-TERRA
Toda terra também é corpo e todo corpo também é terra. Pois forma um organismo e é solo de cultivo.
“A implantação forçada de pessoas negras nas Américas está associada à consciência de como a terra e a alimentação podem sustentar visões de mundo alternativas e desafiar práticas de desumanização”(Wynter)
“ (...) a monocultura como uma prisão. A diversidade, ao contrário, liberta. A independência se restringe ao hino e à bandeira se se não se fundamenta na soberania alimentar.”( GALEANO, 1971)
Todos temos nossas raízes, nossa ancestralidade, e para criar território precisamos nos enraizar. A ancestralidade é uma forma orgânica [Antônio Bispo dos Santos, 2021] de se relacionar com a memória. Guia o presente a cada passo em que reinventa um passado e futuro ancestral. Ela opera em um tempo espiralar. [Leda Maria Martins, 2021], que é o tempo dos ciclos e não do relógio, em que tudo se torna semente e não se produz lixo, se faz floresta.
“Para as pessoas africanas do campo transplantadas para a roça[,] [...] o terreno permaneceu como terra. [... Elas] usavam o terreno para a alimentação [de si mesmas]; e para oferecer os primeiros frutos à terra; [o] funeral era o reencontro místico com a terra. [...] Em torno do cultivo do inhame, do alimento para a sobrevivência, [elas] criaram na roça uma cultura popular38 (Mckittrick e Wynter)”
“(...) Mesmo que queimem a escrita, não queimam a oralidade, mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados, mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade. Porque as nossas imagens também são ancestrais.” (Nego Bispo)
Outro ponto central para poder compreender o que significa a ancestralidade é a coletividade, pois é o fazer parte que nos permite admitir que somos da terra e que somos terra ao invés de termos a terra. É o fazer parte que permite nos enraizar nesse solo desterritorializado.
tecnologias de resistência
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transmutação têxtil, em desfile do Ateliê Trans Moras 2. |Detalhe da obra Bordarlands: las cartas son el tejido, do Colectivo Ayllu na 35º Bienal Brasileira 3. MSTC na 35º Bienal
aprender com as tecnologias anecestrais assim como subverter as ferramentas da casa-grande é um movimento necessário para coreografar as estratégias de sobrevivência. A cultura popular vive como um equilibrista que nunca segue re-ocupar os territórios em linha reta. redesenhar os mapas transmutar compartilhar, sonhar girar, gingar fazer ball, fazer quilombo sejamos subversivos, sejamos criativos pois o imaginário social tem muitas fissuras e podemos hakear essa normatividade
“Pois as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande. Elas podem possibilitar que os vençamos em seu próprio jogo durante certo tempo, mas nunca permitirão que provoquemos uma mudança autêntica.” - Audre Lorde
nas veias abertas da América Latina...
Como desenvolve Patricia Hill Collins no pensamento feminista negro, as imagens de controle são as projeções da colonialidade que aprisionam as vidas negras numa condição de subserviência, numa condição de plantation. Baco Exu do Blues, músico e poeta soteropolitano, questiona em seu projeto Bluesman as imagens de controle e reivindica a arte como um devir. Baco pensa o blues como um caminho de libertação coletiva, capaz de intervir na memória pela ressignificação dessas imagens e operar como uma contra-narrativa da diáspora negra. Em um giro epistêmico, Baco subverte a ordem do mundo colonial desmentindo uma universalidade geográfica e histórica e rejeitando as respresentações racistas que desumanizam esses territórios e vidas sistematicamente.
1903 a primeira vez que Um homem branco observou um homem negro Não como um animal agressivo Ou força braçal desprovida de inteligência Desta vez, percebe-se o talento, a criatividade, a música O mundo branco nunca havia sentido algo como o blues Um negro, um violão e um canivete Nasce na luta pela vida, nasce forte, nasce pungente Pela real necessidade de existir O que é ser um Bluesman? É ser o inverso do que os outros pensam É ser contra a corrente Ser a própria força, a sua própria raiz É saber que nunca fomos uma reprodução automática Da imagem submissa que foi criada por eles Foda-se a imagem que vocês criaram Não sou legível, não sou entendível Sou meu próprio Deus, meu próprio santo Meu próprio poeta Me olhe como uma tela preta, de um único pintor Só eu posso fazer minha arte Só eu posso me descrever Vocês não têm esse direito Não sou obrigado a ser o que vocês esperam Somos muito mais Se você não se enquadra ao que esperam Você é um Bluesman
“BB King , Baco Exu do Blues
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McKITTRICK, Katherine. Futuros da Plantaçao. Trad. de Bru Pereira, Lucas Maciel & Janaina Tatim. Fecundaçoes Cruzadas, 2021. https://fecunda.org/futuros-daplantacao/ MAFEJE, Archie. A ideologia do tribalismo. Trad. de Anderson Bastos Martins, Revista Pontos de Interrogação, UNEB, v.10, n. 2, 2020, disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/pontosdeint/ar ticle/view/10903 SANTOS, Antonio Bispo dos. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, 2018, disponível em: https://piseagrama.org/somos-da-terra/ ALVES, Jaime Amparo. Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos sócioespaciais sobre o racismo.
GALEANO, E. As veias abertas da America Latina. Porto Alegre (Rs): L & Pm Pocket, 2010.
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[1960 - 2023]
Sejamos artistas, sejamos bluesman.
Marilia Chupel Freire Carvalho dos Santos, RA: 202314 Trabalho final da disciplina de Antropologia Contemporânia, ministrada por Stella Zagatto
EEm memória ao intelectual e mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, grande referência que faleceu durante a confecção desse trabalho no dia 03 de dezembro de 2023 e ainda vive um legado contracolonial. Nego Bispo abre caminho para sairmos do pensamento colonial e semearmos o pensamento revolucionário quilombola. Descanse em paz.
[1960 - 2023]