Resistências (teste)

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Revista da Associação dos Docentes da Ufam – ADUA – Seção Sindical do ANDES-SN Ano II – Nº 2 – junho de 2020

Amazônia:

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ANO II - Nº 2 - junho de 2020 Revista da Associação dos Docentes da UFAM - ADUA Seção Sindical do ANDES-SN

Amazônia: vidas ameaçadas 1


SUMÁRIO ABRINDO O DEBATE

10

O tempo da Amazônia Lúcio Flávio Pinto

AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

20

Amazônia: espaço plural e abundante de vida

24

Amazônias múltiplas: espaço, gente e reprodução

28

Amazônia brasileira: sua sobrevivência numa sociedade colonizada

32

Amazônia, espaço físico de enorme diversidade social

36

O desafio permanente

Gersem Baniwa

Diogo Labiak Neves

Isaac Warden Lewis

Lino João de Oliveira Neves

Wilson Nogueira

FALÁCIAS DO DESENVOLVIMENTO

42

Novos projetos, antigas falácias: a construção da BR-174 e o genocídio dos indígenas Waimiri-Atroari Bárbara Harianna Brito de Cabral e Jaci Guilherme Vieira

46

Desenvolvimento da Amazônia: violência e impunidade contra os povos indígenas isolados Guenter Francisco Loebens

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Grandes projetos: a destruição do modo de vida amazônico Emilia Altini e Volmir Bavaresco


POLÍTICAS PÚBLICAS EQUIVOCADAS

56

Sob a tutela dos governos neoliberais, a sobrevivência da Resex Chico Mendes está por um fio Moisés Silveira Lobão, Manoel Estébio Cavalcante da Cunha e Leila Priscila Peters

60

Saúde e ambiente no Amazonas: desafios e soluções Marcus Barros

AMAZÔNIA PARA QUEM?

66

Povos indígenas e a intolerância da “comunhão” nacional

70

Amazônia: uma catástrofe se aproxima

72

Da indignação e paralisia, um broto da utopia amazônica

Luiz Fernando de Souza Santos

Milton Hatoum

Ernesto Renan de Freitas Pinto

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Revista semestral de artigos políticos da ADUA Seção Sindical do ANDES-SN Os artigos assinados são de total responsabilidade de seus autores.

Comissão Editorial Iolete Ribeiro, Ivânia Vieira, Lino João de Oliveira Neves, Marcelo Vallina e Tomzé Costa Editor deste número Tomzé Costa Revisão Tomzé Costa e Daisy Melo Revisão bibliográfica/Ficha catalográfica Guilhermina de Melo Terra (CRB/11 - 396) Projeto Gráfico, Editoração e Ilustrações Rafael Miranda Arte da capa Rafael Miranda Tiragem 1.500 exemplares Impressão Gráfica e Editora Silva Diretoria Executiva da ADUA (2018-2020) Marcelo Mario Vallina, Luiz Fernando Souza Santos, Milena Fernandes Barroso, Ana Cristina Fernandes Martins, Nereide de Oliveira Santiago, Ana Lúcia Silva Gomes e Leonardo Dourado de Azevedo Neto Expedição Associação dos Docentes da Ufam – ADUA – Seção Sindical do ANDES-SN Av. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, 3000, Campus Universitário da Ufam Coroado I – CEP 69077-000 – Manaus – Amazonas Fone: (92) 98138-2677 www.adua.org.br

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EDITORIAL sta é uma edição envolta no clima da pandemia da Covid-19 no mundo. O novo vírus pandêmico produziu obstáculos desconhecidos pela maioria da população do planeta e, particularmente, nos desafiou a pôr em prática parte dos projetos editoriais de 2020, como o da revista Resistências: divulgar a primeira edição e trabalhar, em condições adversas, na produção do segundo número da publicação. Ao escolher o tema “Amazônia: vidas ameaçadas”, Resistências embarcou numa viagem disposta a elucidar as raízes da ameaça, seus protagonistas, seres e ambientes ameaçados e indicadores de caminhos ao seu enfrentamento. É esse conteúdo, tecido pela pluralidade dos conhecimentos, que as páginas seguintes narram. “A Amazônia sempre esteve em disputa. O bioma tem exercido esse papel de fornecer recursos para que o capitalismo se desenvolva gratuitamente. O Estado dá o aval para planos de exploração, para as concessões. Ele não está em defesa da sociedade e da população que o elegeu, mas defende a iniciativa privada, forte, internacional e nacional. Por causa disso, as populações locais estão morrendo. E com eles morre também a Amazônia”. Estas palavras, proferidas recentemente pela pesquisadora Patrícia Chaves, da Universidade Federal do Amapá, já indicam que as ameaças a este território não são de agora. Ela participou da confecção do Atlas Conflitos Socioterritoriais Pan-Amazônico, sob a coordenação da Comissão Pastoral da Terra, que fez um levantamento da situação da questão agrária em quatro países da Amazônia. Se a situação agrária parece ser um dos principais conflitos atuais na Amazônia, ocasionando a morte da população local, a região sofre ainda com a mineração descontrolada, a construção de hidrelétricas e a extração desmedida de madeira. A Amazônia sofre intimidações cotidianamente; ela sempre esteve sob ameaça. Muitas delas, concretizadas. Os artigos de Isaac Lewis e Wilson Nogueira apontam sinais dessas ações predatórias contra a população originária e ribeirinha, a flora e a fauna da Amazônia, desde épocas remotas. Para narrar as ações políticas que desenvolveram tais ameaças a partir dos anos 6 Resistências

1950, o jornalista Lúcio Flávio Pinto, uma das vozes mais instigantes da região, nos brinda com o artigo que analisa o surgimento da SPEVEA, no intuito de estabelecer um planejamento regional, e sua substituição pela Sudam, quando o regime da ditadura traçou em rodovias absurdas e inconclusas o que definiu como ocupação para a região. Os textos de Gersem Baniwa, Diogo Labiak e Lino João Neves se inserem num conjunto de artigos que privilegiam a organização do espaço territorial da Amazônia a partir do referencial dos povos originários, capaz de acolher outros povos que desejam aprendê-lo. Contudo, nem tudo e todos são capazes de conviver e respeitar os elementos da vida que ali brotam. Como originário da região, Gersem traça um histórico desses elementos, notadamente quando a colonização e o capitalismo se estabelecem e as formas de depredação do ambiente e o desrespeito aos povos originários ameaçam a região e arrisca indicar pontos para uma superação desses fatos. Já Diogo chama a atenção para a necessidade de uma profunda reflexão sobre a realidade amazônica a fim de que possamos sair do imaginário criado artificialmente pelo pensamento dominante sobre a região: “o vazio demográfico”, “pulmão do mundo”, “a reserva mineral e aquífera do mundo”. Lino ressalta a importância dos povos originários e sua contribuição à diversidade social, cultural e biológica. São seus saberes, criatividade, resistência étnica, suas formas de preservação que dignificam a Amazônia e a torna atrativa à cobiça dos exploradores extrativistas de outrora como dos empresários capitalistas do presente. As ameaças de destruição são constantes... Essas ameaças podem ser identificadas nos projetos de desenvolvimento analisados nos artigos de Bárbara Cabral e Jaci Vieira sobre as formas autoritárias e sangrentas que nortearam a construção da BR-174 e massacraram os Waimiri-Atroari; de Emília Altini e Volmir Bavaresco, sobre o Complexo Hidroviário do rio Madeira, a ocupação ilegal e a grilagem de terras por fazendeiros e madeireiros em Rondônia, com as consequentes chacinas de diversos povos indígenas; de Guenter Loebens, acerca da usurpação das


terras dos povos indígenas isolados, a partir dos grandes projetos da ditadura, sua retomada nos governos Lula e Dilma pelo IISA e PAC e aprofundada no governo Bolsonaro, facilitando o acesso, uso e exploração dos recursos naturais da Amazônia. O artigo da trinca Moisés Lobão, Manoel Estébio Cunha e Leila Peters nos oferece um panorama nada motivador sobre a Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, nestes vinte anos de existência. Criada basicamente a partir dos “empates” dos seringueiros nos anos 1970, ela vem sendo ameaçada e destruída por queimadas e desmatamentos promovidos por fazendeiros e grileiros sob a tutela dos governos neoliberais dos últimos anos. Os autores alertam para a necessidade da resistência e luta contra o desmatamento predatório, sob pena de forte abalo ambiental, social e florestal. Por outro lado, Marcus Barros traça um perfil histórico sobre as condições ambientais e de saúde na Amazônia nas quase cinco décadas de sua atuação, identificando que os conflitos por terra/desmatamentos e as enfermidades estiveram associados à dizimação das populações locais, notadamente os indígenas. Elas tendem a se agravar com a pandemia da Covid 19... Como proposta final, Resistências indaga: “Amazônia para quem?” e Luiz Fernando Santos já anuncia na introdução de seu artigo que sua reflexão se dá a partir das políticas autoritárias e repressivas do Estado brasileiro durante a ditadura, a serviço do capital monopolista, culminando com a análise de sua subordinação neste século XXI, principalmente no governo Bolsonaro, quando formula uma necropolítica aos povos indígenas. É neste momento de Covid-19 que diversos tipos de exploradores intensificaram as invasões às terras indígenas, promovendo a destruição ambiental e disseminando, junto com militares, médicos e religiosos missionários, o vírus nas aldeias. Somente a organização dos indígenas – com a sociedade nacional e mundial - será capaz de resistir. Uma resistência fundamental, anticapitalista e vencedora da sombra da morte

destes tempos de necropolítica. Já Renan Freitas Pinto, em tom quase de crônica, se impõe dois sentimentos para pensar numa possível resposta: indignação e paralisia. Ambos apontam para as enormes desigualdades sociais que assolam as cidades, não só amazônicas, mas, principalmente, que promovem mais pobreza, fome, violência e doenças na população de excluídos social e economicamente. Renan manifesta sua preocupação com o momento pandêmico da Covid-19 e a pífia atuação de um Estado arrogante e negacionista. Sua (e nossa) indignação frente a essas injustiças e desapreços só será superada com a organização dessas pessoas sofridas, dos trabalhadores e agentes políticos. Porém, não só a organização, mas a mobilização intensa e constante de todos para o enfrentamento. Milton Hatoum, num texto de dezembro de 2019 em que revê traços de escritos sobre a Amazônia, aponta para o caráter exterminador em que se deu a colonização na Amazônia e a destruição promovida pelos governos da ditadura. Contudo, sua ênfase se situa no governo Bolsonaro, identificado como o mais predatório do bioma amazônico. Não só o presidente, mas seu staff ignora e despreza estudos científicos, a tecnologia e as humanidades que indicam rumos para a compreensão da complexidade da região. Na sua sanha negacionista e irracional, o governo federal deixa claro a quem interessa a Amazônia: aos empresários do agronegócio, madeireiros e empresas mineradoras, entre outros. O que fica ressaltado é o seu desprezo pelos habitantes da região e ao meio ambiente, largados a uma tragédia desmedida. Este é o segundo número de Resistências. Estas são as diversas posições analíticas para a compreensão da região amazônica. Apenas uma certeza: a Amazônia continua sob ameaça, ação esta reforçada pela catastrófica posição política do atual governo federal. Cabe aos leitores refletirem os argumentos aqui expostos, na expectativa de auxiliar na construção de uma forte resistência às agressões de agora e futuras.

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ABRINDO O DEBATE

O tempo da

Amazônia Lúcio Flávio Pinto Jornalista e sociólogo paraense, criador do Jornal Pessoal lfpjor@uol.com.br

m dos anos mais dramáticos da história da humanidade avança para o seu momento decisivo. Neste ano, a Amazônia também vive a sua via crucis de destruição, com queimadas, desmatamentos, matanças, conflitos sociais e acontecimentos que conseguem sensibilizar a comunidade internacional, dividindo sua atenção com a pandemia do coronavírus. Por insensatez, intolerância e má fé dos seus dirigentes e das suas elites dominantes, o Brasil está perdendo a oportunidade de fazer uma reflexão importante sobre a história da Amazônia, o seu presente e o seu futuro. O capítulo atual e decisivo da história da Amazônia ainda não tem 70 anos. Pode-se datá-lo de 1953, com o surgimento da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia. A SPVEA preencheu um vácuo de sete anos. Os constituintes de 1946 resolveram aplicar 3% da receita tributária líquida da União na região, a maior, menos conhecida e menos habitada fronteira nacional (e internacional). Tratava-se de um gesto generoso. Afinal, a Amazônia era alguma coisa depois do zero e da vírgula nas estatísticas nacionais, demográfica e econômicas. O percentual exuberante da arrecadação federal iria fazê-la crescer, se desenvolver e ter progresso, talvez como nenhuma outra região do país. De inferno a paraíso verde, na ótica dos que viviam fora dela. Durante sete anos, entretanto, a destinação dos recursos permaneceu como letra morta no texto constitucional. 10 Resistências

Havia o dinheiro, mas não havia quem o aplicasse. O Brasil pensava na Amazônia e queria ajudá-la, mas não tinha pressa e, quem sabe, nem interesse concreto em dar consequência ao seu gesto iluminista. A Amazônia ainda era uma abstração para os brasileiros. Conhecer para fazer Até que foi criada a SPVEA, com sede em Belém, para executar as proposições apresentadas para a região. O objetivo era dar valor econômico aos bens naturais para que eles se transformassem em produtos aceitáveis pelo mercado externo, nacional ou internacional. Mas para chegar a um valor econômico era preciso conhecer a região, ainda uma incógnita em sua dimensão mais ampla, uma abstração em verde monótono e lendas inconsistentes. Assim, ao mesmo tempo em que incentivava atividades produtivas, a SPVEA financiava pesquisas para a revelação das riquezas naturais. A mais óbvia delas estava bem à vista: a floresta. O outro elemento fundamental na composição da paisagem era a água, a drenada em terra e a despejada da atmosfera. Ao mesmo tempo, a maior bacia hidrográfica do planeta e uma das regiões com as chuvas mais intensas que existe. A presença humana, intensa apenas em alguns pontos, onde se formaram cidades expressivas, como Belém e Manaus, era rarefeita, acompanhando os rios navegáveis.


Era uma forma mais lenta e cuidadosa de avanço sobre a floresta, que permanecia praticamente intacta, com alteração bem abaixo de 1% do seu território, na qual permaneceu até 1976, data do primeiro levantamento da devastação florestal através de imagens de satélite. É sugestiva uma coincidência em 1953: enquanto surgia a SPVEA para inaugurar o planejamento regional no Brasil, era lançada a edição em língua portuguesa de Uma comunidade amazônica – Estudo do Homem nos Trópicos, do antropólogo americano Charles Wagley. A tradução foi rápida: demorou apenas três anos a partir do surgimento da edição original, em inglês. É um dos clássicos da antropologia e da bibliografia amazônica. A formação de um órgão público para centralizar as ações de fomento, como autor de obras de serventia coletiva ou, principalmente, como indutor de investimentos

Depois dessas transformações, a Amazônia nunca mais seria a mesma. O problema está não na mudança em si, elemento constante na história dos homens, mas na mudança para pior.

privados em atividades produtivas, que lhe seriam secundados, se beneficiaria da leitura do livro de Wagley. Ele mostrou em profundidade como é a vida humana à beira do rio, o elemento secular na dinâmica regional. Esse deveria ser o alvo preferencial da intervenção oficial, se o objetivo fosse mesmo valorizar a Amazônia, a partir da descoberta da sua aptidão e do uso inteligente (baseado no conhecimento científico) dos seus dois elementos dominantes - a água e a floresta - e dos demais que fossem relevados e incorporados ao seu patrimônio, com valor econômico determinado a partir do processo vital da natureza, que ainda funcionava em harmonia relativa com o homem. Interessante: 60 anos depois, um ex-seringueiro fez referência a Gurupá (a fictícia Itá da pesquisa de Wagley) ao declarar sua paixão pela cidade que tem frente para o rio e por isso é bonita. Cita Gurupá, Portel, Souzel e Altamira, todas elas cidades situadas no rio Xingu. Essa região é o alvo atual de uma ofensiva que não guarda qualquer afinidade com o plano de valorização econômica que a SPVEA tentou executar em 13 anos, com pouco sucesso, até ser extinta em 1966 pelo regime militar e substituída pela Sudam (agora, sem meios termos ou subterfúgios, e sem concessão aos nativos, como a feita antes), a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia. O depoimento desse ex-seringueiro é dado no documentário História(s) da ocupação no coração da Amazônia, de Carolina Freitas da Cunha. O filme, de 26 minutos de duAmazônia: vidas ameaçadas 11


ração, registra a volta ao Pará de Marianne Schmink, uma antropóloga, discípula de Charles Wagley na Universidade da Flórida, em Gainesville (que tem um dos centros de estudos latino-americanos mais importantes dos Estados Unidos). Acompanhada por Charles Wood e alguns pesquisadores brasileiros da Universidade Federal de Minas Gerais, ela esteve pela primeira vez em São Félix do Xingu em 1978. Numa das cenas do documentário, Marianne observa que, nessa época, o eixo da ação humana continuava a ser o rio. Agora, é a estrada. São Félix, que vivia isolada no interflúvio do Xingu/rio Fresco, mantendo-se das sobras da exploração da borracha, foi atingida por terra por uma estrada (a PA-279) que partiu de Xinguara. Antes de se tornar cidade, Xinguara foi o Entroncamento do Xingu, como aqueles nucleamentos humanos que se formaram na intercessão de estradas ou rios e eram chamados de entroncamentos. Só que Xinguara era num ponto central, vértice de estradas de penetração, através das quais chegavam todos os tipos de migrantes, com suas trouxas e culturas próprias. Os mais poderosos e capitalizados logo formavam suas propriedades, em geral sem base legal, através da grilagem e da violência de capangas. Os desassistidos ou mal assistidos (geralmente pelo Incra, mais conhecido por “Incravado”) viviam nas sobras de terras e no conflito permanente que lhes impunha a migração contínua, à medida que eram expulsos de seus lotes pelos personagens dominantes e tinham que buscar outro pouso. Xinguara é a típica cidade de beira de estrada, identificada com o sertão, de vegetação rasteira ou sem ela, e não com a Amazônia, de mata exuberante, alta e densa. Cidade destinada a apoiar atividades humanas que avançam sobre a floresta, com a qual também não possui ligação (pelo contrário: prefere que seja eliminada). A PA-279 avançou, absorvendo em suas margens a invasão de garimpeiros (que resultou na cidade de Ourilândia), a colonização particular e a grilagem (a partir de Tucumã) e chegando a uma indefesa São Félix, ainda imersa no extrativismo vegetal, como modo de produção e forma de vida. O ex-seringueiro contempla o rio diante de São Félix, mas não o preza como diante de Gurupá, a legendária cidade estudada por Wagley com tal acuidade que o obrigou a mudar-lhe o nome para Itá, a fim de não ferir suscetibilidades locais, retratadas pela rara sensibilidade do antropólogo. “Aqui o rio de águas lindas é coisa de jornal”, diz o ex-seringueiro, desolado. Desolação partilhada pelo antropólogo americano ao lançar uma nova edição do seu livro. Entre as décadas de 1940 e 50, quando viveu e pesquisou na Amazônia, e a de 1970, quando a reviu para uma nova apresentação do seu livro, Charles Wagley se defrontou com a maior de todas as novidades surgidas na região, 12 Resistências

de efeitos literalmente devastadores: as chamadas estradas de integração nacional. Como ele observou no prefácio à segunda edição brasileira de Uma Comunidade Amazônica, que só foi relançada mais de duas décadas depois da primeira, as estradas, além de meio de transporte, se tornaram um poderoso agente de cultura e civilização, ou de incultura e incivilidade, conforme a ótica de quem as analisa. Se, por um lado, essas rodovias significavam “a queda da última barreira mundial à circulação de automóveis e caminhões de transporte, e a conexão com as principais artérias de tráfego do Brasil”, Wagley não podia deixar de também salientar que “um dos mais delicados sistemas ecológicos do mundo, a floresta pluvial amazônica, se acha agora em perigo. Ver-se-á toda a intensidade de vida da região amazônica transladar-se do grande sistema fluvial para as proximidades das rodovias; ao invés das várzeas dos rios, ocupar-se-á a terra firme”. Ainda que nas várzeas estejam “as terras férteis, pois, anualmente, recebem o limo dos rios, enquanto a terra firme é geralmente pobre para a agricultura”, o novo eixo de conquista era rasgado nas desconhecidas terras altas, atraindo para elas uma intensa migração. Depois dessas transformações, a Amazônia nunca mais seria a mesma. O problema está não na mudança em si, elemento constante na história dos homens, mas na mudança para pior: “Devo admitir que Itá mudou mais do que eu podia imaginar. Essa mudança, porém, não se operou da forma como eu imaginava”, confessa Wagley. Os aparatos de análise que a ciência lhe forneceu se frustraram diante dos resultados da imprevisibilidade humana, quando ela não segue as regras da racionalidade ou mesmo do mais precário dos critérios de avaliação, o bom senso. Ele não esperava que do seu prefácio de 1975 emanasse um odor pessimista, mas, aos 62 anos, depois de três décadas de envolvimento com a região, mesmo com seus modos delicados, preocupado em não ferir suscetibilidades entre seus conterrâneos adotivos, via-se obrigado a admitir que se sentia desanimado: “de fato, até com receio. Parece-me que o Brasil está tentando mudar a Amazônia mais com espírito patriótico do que com o verdadeiro planejamento científico”. A constatação, válida ontem como hoje, a partir do relacionamento do que os homens fazem na Amazônia e do que a ciência lhes recomenda fazer, do planejamento como exercício deletério de uma vontade política impositiva, a partir do poder central, seus satélites e alianças. Essas são duas paralelas aparentemente condenadas a seguir até o infinito. De um lado, a irracionalidade do processo de ocupação, não só desviado das terras férteis, nas margens dos rios, para os solos de frágil fertilidade e inconsistência estrutural


na terra firme, com sua cornucópia de efeitos perversos, mas também produto da diretriz da ação. “O objetivo em longo prazo é a cultura de exportação, não a ocupação da terra”, no sentido da fixação do homem à região de forma saudável, positiva. A nova economia amazônica “tende para a continuidade do extrativismo, mas sob nova forma”. Do extrativismo vegetal a região passou para o extrativismo mineral, do qual não resulta maior benefício para o seu povo. O verdadeiro progresso só poderia surgir a partir de uma lição da história: “Uma nova sociedade não pode nascer do nada; deve ser construída a partir de antecedentes históricos. A nova sociedade que o Brasil pretende criar na Amazônia terá por base o conhecimento que o povo dessa região acumulou durante séculos, dos tempos aborígenes ao presente”, constata Charles Wagley, acrescentando que essa “é uma herança rica que jamais deverá ser ignorada na moderna conquista da Amazônia”. Mas como recuperar esse saber e aduzir-lhe as contribuições do conhecimento científico se as instituições científicas da Amazônia “são débeis, em comparação com as existentes no Sul do Brasil”? Como elaborar modelos de integração do homem à natureza, no momento mesmo em que a fronteira está sendo aberta, e fazer essas diretrizes chegarem e ser adotadas pelas frentes de expansão, se a ciência local é assim tão pouco expressiva? Mesmo com os choques que sofreu ao voltar à sua desaparecida Itá, duas décadas depois do primeiro contato, e das tristes notícias que lhe chegavam do Brasil, Char-

les Wagley tinha consciência de que seu livro amazônico estava acima das turbulências do mundo transitório e da cultura de ocasião. Por sua consistência (e, mais do que por ela, devido à sua estatura humana), surgira para ficar para sempre. “Ao refletir sobre o passado, sei agora que sou essencialmente um humanista; e chego à conclusão de que este foi um livro humanista com mensagem humanista”, foram suas últimas palavras do prefácio. Seus dois discípulos, Marianne Schmink e Charles Wood, atualizando a visão da questão, se dedicaram, durante 20 anos, a acompanhar, registrar e finalmente consolidar num trabalho acadêmico as transformações mais profundas que aconteceram desde que Uma Comunidade Amazônica foi publicado pela última vez. O livro fundamental de Marianne e Charles (Conflitos sociais e a formação da Amazônia) foi publicado no Brasil em 2012 (em bela edição da editora da Universidade Federal do Pará), 20 anos depois da edição norte-americana, o que dá uma ideia do avanço do descaso pelo conhecimento da Amazônia e da estreiteza do nosso horizonte intelectual e cultural. Ou seja: do quanto a Amazônia involuiu em autoconhecimento, apesar de tantas pesquisas científicas realizadas ou em andamento, mas de pouca inserção social. Para preencher o vácuo entre as duas edições (felizmente a brasileira saiu melhor do que a norte-americana), Marianne voltou a São Félix, acompanhada por uma equipe que preparou o documentário. O filme é um trabalho louvável e que merece respeito. Devia ser exibido em toda a

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região por seu conteúdo e sua qualidade técnica, apesar dos parcos recursos ao alcance dos seus realizadores. Confesso, porém, que não partilho o tom de esperança ou confiança no futuro com base na realidade atual. De fato, há experiências pequenas que podem ter bom desfecho e até influir sobre realidades maiores. Pode-se citar um dos mais recentes e de melhores perspectivas: o da cooperativa que produz chocolate de alta qualidade em Medicilândia, na Transamazônica. Mas a situação geral é mais difícil e preocupante. O tom sentimental e de reconhecimento do filme pelo magnífico trabalho realizado por Marianne Schmink espargiu um tom de cordialidade coerente com o reconhecimento ao que ela e Charles fizeram, mas destoante do avanço massacrante das frentes econômicas. Senti falta de imagens da partida da PA-279 em Xinguara, 780 quilômetros ao sul de Belém, e toda discussão que se travou nos anos de 1980 sobre o seu impacto. Por incrível que isso hoje pareça, tentou-se evitar que a estrada fosse levada para oeste, até São Félix, para poupar o Xingu (ou menos dar-lhe uma trégua maior) da devastação impiedosa do Vale do Araguaia/Tocantins. Mesmo os responsáveis pela construção da estrada admitiram dialogar com os críticos da conclusão da obra, num nível técnico elevado e com compreensão. Mas a estrada era um objetivo categórico e acabou chegando a São Félix, sendo o seu elo final a ponte de acesso

Mas qual a alternativa real, de significado, para esse modelo de exploração dos recursos naturais da Amazônia voltado para atender os mercados externos com produtos de baixo valor agregado, mesmo quando carregam grande carga de um bem nobre, como a energia? 14 Resistências

à cidade pelo mundo da destruição que avançou a partir do leste, violentada tanto quanto o território em sua volta. Florestas foram derrubadas para a formação de pastagem e culturas de ciclo curto. O presente de grego, coerente com essa visão destrutiva, foi colocar São Félix no topo do ranking dos municípios pecuários do Brasil. O tom de esperança do documentário é típico da parte de quem quer aproveitar os poucos exemplos positivos que pipocam como exceção nessa ampla frente de devastação da Amazônia e levar as pessoas a acreditarem na possibilidade de um desfecho feliz para a questão amazônica, mesmo sabendo da sua enorme complexidade, com um potencial destrutivo muito grande. Não querem desistir dos seus ideais nem se tornarem niilistas e derrotistas. Mas qual a alternativa real, de significado, para esse modelo de exploração dos recursos naturais da Amazônia voltado para atender os mercados externos com produtos de baixo valor agregado, mesmo quando carregam grande carga de um bem nobre, como a energia (extraída dos rios amazônicos a um custo ecológico e social que não é computado ou é calculado por baixo)? Uma alternativa podia ser o investimento nas várzeas amazônicas, aproveitando um processo de adaptação multissecular. Uma participante de um encontro sobre o aproveitamento da floresta que então se realizava me disse que achava importante ajudar a divulgar a pauta dos povos extrativistas; “pelo pouco que ouvi e li já deu para entender que a realidade que se vive dentro dessas reservas extrativistas é bastante complicada, com muitas contradições e atropelos, mas as entrevistas com alguns representantes como a Maria Nice Machado, quebradeira de coco de babaçu, o Braulinio Caetano, da região norte de Minas, e Raimundo Nonato, do norte de Tocantins, bastaram para me convencer da sua justa causa. São tantas histórias que merecem ser ouvidas e divulgadas”. Mas que são ignoradas, omitidas pelos meios de divulgação de massa e, por isso, não chegam ao conhecimento da opinião pública. Uma análise do que aconteceu nos últimos 60 anos será capaz de demonstrar o abandono dos compromissos que o Brasil assumiu, ao retomar sua vida democrática, em 1946, com a Amazônia: valorizá-la, através do conhecimento científico, antes de utilizar os seus vastos recursos naturais. Só assim seria possível saber o que e como fazer numa região imensa e complexa. A presença ativa do Estado e o planejamento rigoroso seriam os principais instrumentos


dessa intervenção. Mas o Estado sumiu e o planejamento acabou. À medida que grandes atores apareceram no enredo, se apossando dos maiores e melhores recursos, que transformaram em produtos de aceitação internacional, a entidade que devia regular a relação entre os fortes e os fracos se encolheu. Deixou que ficasse em vigor uma lei fatal: a do mais forte. Para os demais, restou a luta pela sobrevivência num cenário que ameaça cada vez mais a própria Amazônia. As lideranças amazônicas se queixam de alguns desses resultados e reivindicam um lugar nessa estrutura de poder. Mas fariam diferente do que está sendo feito? A SPVEA sempre foi conduzida por pessoas indicadas pelas lideranças políticas da região, ao contrário do que geralmente aconteceu sob a Sudam. Do historiador amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, o primeiro superintendente da SPVEA, ao médico Waldir Bouhid, que ocupava o cargo quando a instituição sofreu a intervenção, a partir do golpe militar de 1964, o que eles fizeram? Alguma coisa boa, como os levantamentos florestais em convênio com a FAO, o órgão especializado da ONU para o uso da terra. Mas, em geral, politicagem, obras paroquiais e desvio de recursos. Ainda que não tenha papel de direção no que o governo faz na Amazônia, ao implantar infraestrutura e sustentar investimentos de capital privado, a elite amazônica tem se satisfeito com o que lhe é reservado nesse modelo: tirar proveito da parte do aparato público a que tem acesso, mais preocupada em vantagens pessoais do que em benefício coletivo. É eficiente abre-portas e comitê de recepção. A Amazônia, como fronteira natural, é o lugar ideal para a criação, a invenção, a novidade e a ousadia. Só assim se pode realizar a utopia de Euclides da Cunha, escrevendo nesse reino de água e floresta a última página do Gênesis, hoje um garrancho cruel. Foi quase por acaso, mais de 30 anos atrás, que Charles Wood e Marianne Schmink chegaram a São Félix do Xingu, que se tornaria a principal metáfora deste precioso livro sobre um dos locais e um dos momentos seminais da história recente da Amazônia, o “Sul do Pará”. Os dois pesquisadores já sabiam que seria estratégica aquela pequena cidade, isolada em mais um dos encontros de grandes rios que delimitaram os marcos da ocupação primitiva da Amazônia pelos colonizadores europeus (os

novos marcos, para desgraça da Amazônia, viriam a resultar do encontro dos rios com as estradas e das primeiras rodovias com as rodovias seguintes, rasgando a terra e submetendo o homem). Se não fosse o problema mecânico no pequeno avião em que viajavam para um local próximo, Charles e Marianne não teriam pousado em São Félix naquele dia de 1976. Demorariam mais dias (ou meses) para realizar a incursão e talvez não tivessem usufruído de um acaso tão feliz, que uma máxima de Gentil Cardoso para o futebol – e extensiva à vida como um todo – instrui: quem se desloca, recebe. Numa Amazônia enorme, disforme, distinta e polifônica (ou diacrônica), só quem circula por suas artérias defronta a história viva, a pré-história, ainda em processo, e, em geral, a anti-história, que fecha as portas da escrita ao registro retardatário (ou retardado) dos que a pesquisam. “Mundo novo” Mal desembarcaram do “teco-teco”, Marianne e Charles já estavam no bar da principal rua de São Félix, no meio de um conselho de moradores. Não havia muitas ruas, nem muitos moradores. Quase o universo amostral se exibia aos acadêmicos, oferecendo-lhes tudo que tinha, em conversa franca, amistosa, prestativa. Os moradores tinham esperanças, mas também tinham fundados receios. Sabiam que, da mesma direção originária dos visitantes, vinha em seu rumo uma estrada, a PA-279, ainda arranhando a partida, 200 quilômetros a leste daquele ponto ermo, que sobrevivera à decadência da extração da borracha na bacia do Xingu, eixo monopolizador de suas vidas até então. Em dois ou três anos, porém, a estrada chegaria, trazendo consigo a cornucópia do rodoviarismo com sua epidemia de efeitos nocivos ao domínio da floresta na paisagem amazônica (fazendo-se sentir antes mesmo de chegar fisicamente, como Marianne e Charles perceberiam, em mais uma das suas muitas descobertas de campo, que enriqueceria o marco teórico da pesquisa). O dono do bar foi telegraficamente profético: “A estrada nos dará acesso ao resto do Brasil. Mas também irá trazer o resto do Brasil até nós”. Dessa relação tem dependido a Amazônia nas últimas quatro décadas, as mais decisivas da sua história, não só pela grandeza nela envolAmazônia: vidas ameaçadas 15


vida, mas por seu tom de coisa irreversível, definitiva, sem volta – e, em grande medida, sem correção. O Brasil quer a Amazônia. Mas a Amazônia quer o Brasil? Que Amazônia o Brasil quer? Qual Brasil a Amazônia recusa? São algumas das muitas questões que a “ocupação” ou a “integração” da Amazônia suscitam. Mas elas são consideradas para valer? Há uma margem de liberdade e tolerância com a qual podem ser abordadas e resolvidas, ou as interrogações são meramente retóricas e sob elas age um apagador categórico, impondo decisões de fora para dentro, do alto para baixo, com prazo pré-estabelecido? O colonizador sabe o que quer e procura realizar o seu projeto na fronteira, antes mesmo de conhecê-la e independentemente de aceitá-la. O processo obedece ao velho esquema colonial. Integração e desenvolvimento significam, na verdade, submissão da terra e do homem às determinações do agente externo. Nas últimas quatro décadas, a principal característica da ocupação da Amazônia pelo colonizador foi a destruição do componente mais caracteristicamente amazônico do bioma: a floresta. Uma área equivalente a quase três vezes o tamanho do Estado de São Paulo, que concentra um terço da riqueza brasileira, foi posta abaixo: 700 mil quilômetros quadrados de floresta, em algumas regiões com a maior concentração da espécie vegetal de maior valor, o mogno, massacrada pela extração predatória. Nenhum povo na história humana destruiu com tanta ferocidade e 16 Resistências

velocidade um patrimônio botânico como esse, em grande parte perdido para sempre, sobretudo na sua incomparável diversidade biológica. Madeira foi queimada aos milhões de metros cúbicos ou transformada em toras para uso na indústria de móveis, na construção civil e outros fins, praticados em outras regiões do Brasil e em outros países, ou para servir de matéria-prima para a queima de carvão, colocado em altos-fornos para aumentar o teor natural do minério de ferro, que, em Carajás, é o mais rico do planeta, com 65% de hematita pura, o dobro do concorrente australiano no disputado mercado asiático (que fica com 80% do fornecimento). A ocupação dos “espaços vazios”, ilusão e absurdo edulcorado por uma geopolítica de conveniência (pleonasmo?), permitiu o surgimento de cidades de porte médio em todo o sul do Pará (acima de 50 mil habitantes), por cujas ruas trafegam carros de luxo, levando pessoas envolvidas em múltiplos negócios, alguns dos quais se medem por centenas de milhões de reais, com conexões internacionais. Mas quem apertar a vista e avivar a mente sentirá um ar de irrealismo e artificialidade nesse “mundo novo”, como uma Las Vegas no (quase) deserto adaptado, sem jogos de azar, mas marcada por outros imponderáveis, como campos de pastagem, precários cultivos agrícolas, minas exuberantes ou hidrelétricas, que substituíram o primado da floresta. Lugar da morte O mundo amazônico ficou mais complexo e diversificado, é verdade, e este livro de Marianne e Charles demonstra essa verdade com exuberância de dados e profundidade de reconstituição. Esse mundo, porém, deixou de ser amazônico, daquele “amazonismo” que os dois autores deste livro perceberam ao longo de suas sete excursões de campo, numa demorada e apaixonada dedicação ao tema das suas pesquisas – mais do que pesquisas, um móvel de paixão e amor pelo que estudavam, que os mantêm até hoje ligados ao objeto da sua atenção e cuidados. Esse ethos amazônico exige capacidade de harmonia, de compreensão e adaptação do homem à natureza. É preciso conhecê-la antes de decidir o que fazer nela e com ela, patrimônio que os novos colonizadores não quiseram receber dos ocupantes anteriores, com presença de muito mais largo espectro, contadas em milênios e não apenas décadas ou mesmo séculos. O conteúdo amazônico implica o respeito, reconhecimento e uso desse patrimônio de saber, sem o qual a estrada é o veículo da destruição e seus usuários fazedores de deserto. O produto desse apossamento e “amansamento” da terra é transformar a Amazônia em sertão, com sua paisagem devastada, com seus conflitos inevitáveis (e inelu-


táveis), com sua violência e irracionalidade. O homem que chega transforma tudo para que essa fronteira desconhecida (e temida) passe a ser sua imagem e semelhança. A dialética natural é banida, assim como as conquistas do processo civilizatório, na forma de liberdade, pluralidade e cidadania (por isso, apesar da democracia ter voltado ao Brasil em 1985, a Amazônia continua sob o cutelo da doutrina de segurança nacional dos militares, passados cinco governos civis). É o império da vontade do mais forte, que torna a Amazônia, idílio do Éden, a reprodução ampliada e desfigurada da matriz das desigualdades e da barbárie. Quando Charles e Marianne iniciaram sua saga pela Amazônia, prosseguindo e levando às últimas consequências o empreendimento marcante do Cedeplar, o centro de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, no estudo demográfico da Amazônia, todo comércio exterior do Pará não chegava a meio bilhão de dólares. Hoje, só a conta do minério de ferro de Carajás, explorado pela privatizada Companhia Vale do Rio Doce, é 12 vezes maior. A diferença dá uma ideia do que aconteceu desde então na dinâmica econômica. Mas, se a grandeza quantitativa é mesmo de impressionar, e até de louvar, o contrapasso da dança social é de quebrar cadeiras: socialmente, a Amazônia se parece às colônias africanas submetidas pelos sofisticados bwanas europeus. O Pará é o terceiro destino migratório do país. Legiões de esperançosos trabalhadores ou ferozes aventureiros o buscam, atraídos por suas bugigangas tecnológicas e de capital intensivo, os “grandes projetos” (a recriação dos espelhinhos que fascinaram os índios atraídos do fundo da mata para o contato com os “brancos”). Como efeito perverso de uma lógica perversa, boa parte dos imigrantes chega de outros Estados sem família, sem regras, sem limites, disposta ao enriquecimento de qualquer maneira (ou, quando nada, à sobrevivência), por isso sem trazer família (que virá se derem certo), pronta para a loteria da fronteira, atrasada no tempo em relação às partes modernas do país e do mundo. Daí a fronteira, em pleno século XXI, conviver com matança de índios, conflitos pela terra, trabalho escravo, prostituição infantil, métodos de produção remanescentes à revolução industrial inglesa do século 18. O lugar onde mais se mata para ter um pedaço de terra, embora a Amazônia ainda seja um “espaço vazio” do tamanho de dois terços do Brasil.

maravilha” pela maior fronteira do país), um retrato sem retoques e com notável acuidade de uma história que serve de parâmetro para saber de onde vem e para onde vai a Amazônia contemporânea. É um marco de referência que se beneficiou do legado deixado na Universidade de Gainesville, na Flórida, pelo legendário Charles Wagley. Como seus dois discípulos e sucessores, Wagley localizou na beira de rio uma cidade que também estava isolada e logo seria tocada pelo dedo pervertido do Midas colonizador da Amazônia, em Gurupá (mitologicamente recriada como Itá). Gurupá, com todas as suas sequelas e vícios, sofreu menos, em mais tempo, do que São Félix do Xingu, o eixo da metáfora de Marianne e Charles, porque a tecnologia da destruição é mais sofisticada e os clientes dos produtos amazônicos, intensivos de capital natural, são impacientes e vorazes. Esperança de um modo de utilizar a terra mais racional e justo, quando ativistas amazônicos tentavam impedir que a PA-279 prosseguisse a inefável marcha para oeste, sangrando a terra firme (da floresta verdadeira, a kaapor dos índios), São Félix se tornou a contrafação desses sonhos, a capital do município que tem o maior rebanho bovino do Estado, de importância nacional. A floresta serviu de pasto para a produção de gado. Um produto nobre sacrificado a um produto de valor incomparavelmente inferior. Apesar de todas as histórias de infortúnios, solidamente documentadas, com uma amplitude que os diversos métodos de pesquisa e análise utilizados pelos autores possibilitaram (com ênfase em ver com os próprios olhos, antes e depois de ler as fontes já escritas), Charles e Marianne mantêm, ao final, um “otimismo cauteloso” quanto ao futuro da Amazônia. Convencidos de que quaisquer “previsões mais específicas sobre o futuro da Amazônia são arriscadas”, apostam suas fichas – intelectuais e emocionais – no poder da razão e da consciência. É impossível não chegar ao final da leitura deste livro rigoroso e apaixonado sem também acreditar que o homem não se permitirá continuar a garatujar nesta página do Gênesis que Deus nos delegou. A Amazônia era um mundo por fazer quando Euclides da Cunha, exatamente um século atrás, encontrou a bela metáfora para defini-la. Contudo, hoje ela se aproxima mais da terra “vaga e informe” do dito bíblico do que então, vaga por falta de definição justa para a presença humana nela e informe por ter sido destituída de suas formas originais, sem substituto à altura. Ainda há tempo e espaço para evitar que sua ocupação seja o anteato da destruição, ao invés do ato da criação suCoragem e lucidez gerida pelo grande escritor. Mas não muito. Aliás, a rigor, cada vez menos tempo e espaço, como este livro revela Marianne Schmink e Charles Wood nos oferecem neste retrospectivamente, como uma coragem, uma lucidez e um livro, traduzido para o português com atraso de duas dé- compromisso raros no mundo, sobretudo acadêmicos, em cadas (o que dá uma boa medida do interesse real do “sul relação à nossa (ainda) Amazônia. Amazônia: vidas ameaçadas 17


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AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

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AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

Amazônia:

espaço plural e abundante de vida Gersem Baniwa Departamento de Educação Escolar Indígena da Faculdade de Educação (Faced) Universidade Federal do Amazonas (Ufam) gersem@terra.com.br

ara nós, originários da região, Amazônia é, antes de tudo, berço ontogênico e civilizatório dos nossos povos e de nossas sociedades, denominadas atualmente de indígenas, ameríndias ou povos originários. Amazônia, portanto, é um espaço primordial e sagrado de nossas existências. Mas, por que falamos nosso lugar, nossa casa, nosso território, nossa Terra-Mãe? Primeiro, porque não é um lugar de pessoas individuais, mas de coletividades primordialmente identificadas. Em segundo lugar, os territórios foram distribuídos primordialmente a cada um dos povos pelos heróis criadores no momento da criação do mundo, de modo que nenhum povo ficasse sem seu espaço referencial. Espaço referencial significa que os territórios não são propriedades exclusivas de grupos sociais, muito menos, de indivíduos, pois pertencem à natureza. A ideia primordial de espaço territorial público socialmente referenciado, mas não patrimonializável, possibilitou formas de vida nômades entre os povos ameríndios no período pré-colonial. Também esta mesma concepção possibilitou que os povos desconhecidos da Europa fossem recebidos e acolhidos pelos habitantes nativos. Deste modo a Amazônia se tornou também um lugar generoso de acolhida, de convivência e de aprendizagem com outros povos: quilombolas, negros, ribeirinhos, comunidades tradicionais, migrantes nacionais e estrangeiros. Assim, índios, ribeirinhos, nordestinos, sulistas, estrangeiros, juntos, foram aprendendo a manejar os limites, as fragilidades e os desafios na luta pela vida no interior da imensa floresta, 20 Resistências


mas sobretudo fomos aprendendo a apreciar, a admirar, a respeitar e a saborear a abundância da vida na floresta e ao longo dos rios. Tais modos primordiais de compreender o mundo e viver nele continuam presentes orientando a vida dos povos indígenas, perpetuados por meio de mitos, acervos de memórias orais e de práticas rituais sob o domínio dos sábios pajés. As cosmovisões indígenas continuam coexistindo como maneiras distintas de pensar, viver, ordenar e compreender o mundo. A Amazônia segue este princípio da pluralidade metafísica, ontológica e epistemológica. Os pensamentos indígenas consideram o universo em sua totalidade e o ser humano integrando a vida e a natureza como um todo. Essa lógica indígena de pensamento concebe estreita relação entre os processos e os meios de produção: terra coletiva e natureza como provedora. A terra na cosmovisão indígena é a base das relações sociais e espirituais transcendentais e espaço de convivência e coexistência entre humanos e não humanos. Tais pensamentos levaram os povos originários a criarem condições de vida nos distintos espaços geográficos amazônicos. Contaram desde os primórdios dos tempos com seus regimes de conhecimentos baseados não na ideia de ser humano universal ou de história universal, mas na multiplicidade de seres humanos e não humanos com suas histórias, formando uma verdadeira constelação de ontologias e histórias. A pluralidade cosmopolítica da natureza amazônica ajudou a manejar os desafios de vida nesta parte do mundo. A Amazônia é a casa onde os amazônicos nascem, vivem, criam e educam seus filhos, desenvolvem e praticam seus modos de vida. A Amazônia é uma condição de existências, de tipos de existências muito particulares, talvez únicos. Mas Amazônia exuberante, grandiosa, majestosa, abundante, rica, diversa, também esconde situações desafiadoras até mesmo aos amazônicos autóctones. A vida humana na Amazônia nunca foi fácil. Ela não é só constituída por jazidas de minérios, reservas de água doce, florestais, pesqueiras, belezas naturais, mas também de escassez de alimentos e pouca fertilidade do solo em muitas sub-regiões, mosquitos que provocam doenças e espíritos maléficos. O homem amazônico levou milhares de anos para manejar essas condições naturais e criar condições para viver. O resultado disso é o surgimento do homem que aprendeu a amar, respeitar e viver com muita dignidade e humildade, com ela e por ela. O homem amazônico autóctone é o que menos migra para outras regiões em busca de melhores condições de vida e quem vem de fora e experimenta vivê-la com alma aberta dificilmente sai da região, exemplificado pelos milhares de nordestinos que vieram à Amazônia no período áureo da borracha em meados do século XIX e que ficaram até hoje. O homem amazônico autóctone ou de alma vive a Amazônia. Muito diferente do não amazôni-

O avanço ilegal, irresponsável, desumano e antinatureza do desmatamento, das queimadas, das invasões e usurpações de terras indígenas, de unidades de conservação, das florestas, dos rios e lagos, nos enchem de profunda tristeza e lágrimas. co ou que habita na região, que fala da Amazônia, mas em geral fala mal, com preconceito e sem apresentar soluções concretas para os problemas. Só recentemente a Amazônia foi ganhando fama e importância no cenário mundial, mais fama que importância, na medida em que seus recursos naturais foram ganhando importância diante da escassez desses recursos em outros espaços do planeta. Foi então que se percebeu o valor estratégico da região para o mundo, em razão de suas cinco dádivas para a humanidade e para o planeta: o ciclo das suas águas, o ciclo do carbono, a regulação do clima, a biodiversidade e a sociodiversidade. Esta importância também está relacionada com o avanço acelerado de sua destruição, como um sinal de alerta e de preocupação. Debates se intensificaram em escala internacional, nem sempre de forma adequada ou quase nunca com a participação das comunidades locais autóctones. A maioria dos que falam sobre e pela Amazônia não conhece a Amazônia profunda, quando muito vive nas cidades localizadas na região, o que não faz muita diferença em viver em qualquer lugar urbano do mundo. Assim foi se constituindo várias Amazônias com distintos papéis nos imaginários das pessoas, dentre os quais se destacam como espaço geopolítico de interesses dos estados nacionais e internacionais e espaço ideológico de disputas simbólicas de controle de recursos materiais (capital) e humanos (consumidores). Disso resulta a existência imaginária de pelo menos duas Amazônias: a Amazônia real, com seus sujeitos e recursos, e a Amazônia simbólica, de espaços de disputas políticas e ideológicas, sendo que o interesse maior infelizmente é pela Amazônia simbólica, por representar uma perspectiva geopolítica, futurista, exótica e apocalíptica. No âmbito da Amazônia real, composta por sujeitos humanos e não humanos, pessoas, comunidades, povos, espécies, biomas e ecossistemas o que percebemos é uma falácia política e ideológica dominante muito diferente e Amazônia: vidas ameaçadas 21


O amor e o respeito à natureza e ao território não são apenas conceitos ou sentimentos, mas práticas vividas, a tal ponto que a natureza e a terra compõem substancialmente os corpos, os espíritos e as almas, como acontece com os povos indígenas porque foram criados da mesma matéria e essência da natureza. distante da realidade concreta onde impera um regime de exceção, de exclusão, de pré-conceitos e de racismo geográfico e cultural. Aquilo que é essencial e valioso para a vida dos povos amazônicos e objeto de manipulação ideológica e simbólica no discurso político das elites, que é o seu exuberante e abundante patrimônio natural e humano, a sociobiodiversidade, no plano real, se torna fonte e justificativa para políticas de exclusão, de injustiça e de racismo socioambiental institucionalizadas. As práticas de exclusões, de injustiças e de racismo se consubstanciam por meio de políticas, programas e projetos nacionais, regionais ou mesmo estaduais forjados em Brasília ou nas capitais dos estados, claramente inadequadas e impróprias para a região, por não considerarem os custos locais e regionais, a diversidade geográfica, territorial, ambiental, climática e cultural. Além disso, há outros problemas que desafiam o presente tão maltratado da Amazônia. Refiro-me a políticas e cosmovisões colonialistas e ultra-capitalistas que ameaçam a Amazônia e seus habitantes originários, principalmente a visão equivocada e racista de Amazônia atrasada, vazio demográfico e seus povos autóctones atrasados que precisam ser colonizados, civilizados, desenvolvidos para deixarem de ser empecilhos ao desenvolvimento e vergonha à civilização moderna e pós-moderna. Tal equívoco conceitual e político criou um paradigma tão perverso e artificial de que a Amazônia e seus povos não se enquadrariam nos modos de pensamento e de vida do mundo moderno e pós-moderno globalizado, tecnológico e científico. Isso é puro preconceito, uma vez que os povos amazônicos, por seus esforços e processos próprios sempre estiveram, ainda que perifericamente (por força das políticas de exclusão) envolvidos com os processos de globalização econômica, 22 Resistências

cultural, política, tecnológica e científica, mas em seus termos. Esquece-se de que os modos diversos de vida dos povos amazônicos são resultado de escolhas conscientes e históricas, o que não os impedem de apropriar-se seletivamente dos avanços e conquistas das tecnologias, saberes e valores produzidos por outras culturas e civilizações ou precisamente do mundo globalizado. O que não aceitam é serem consumidores ou reprodutores passivos dos modos de vida claramente vendidos e impostos pelo ultra-capitalismo desumano e antinatureza, porque perceberam que, apesar dos avanços civilizatórios inegáveis, são pouco sustentáveis e em muitos aspectos equivocados. Há ainda outra questão interna e histórica que assola e maltrata a Amazônia e seus povos que são as práticas e pensamentos internalizados nos amazônicos colonizados pelo colonizador ao longo de séculos de colonização, quando o amazônico, o índio, o caboclo, o ribeirinho e as outras comunidades tradicionais, consciente ou inconscientemente, assumem os complexos de autoinferioridade e autodiscriminação. Tais preconceitos enraizados nos povos amazônicos criaram ideologicamente uma Amazônia vazia, carente, indefesa e frágil econômica, cultural, institucional e juridicamente, abrindo caminho para aventureiros de todo o mundo que querem se dar bem de qualquer jeito e a qualquer custo, abusando, desrespeitando, queimando, poluindo e destruindo. O fato é que um dos maiores desafios enfrentados é como compatibilizar o desenvolvimento econômico à preservação do meio ambiente, dos direitos humanos e dos direitos indígenas diante de práticas políticas dominantes de subjugação dessas agendas a outras agendas destrutivas das elites políticas e econômicas. Em meio a esse cenário percebem-se graves riscos à proteção do meio ambiente, dos direitos humanos e dos direitos indígenas. Também percebemos profundo desmantelamento da governança destas agendas. O avanço ilegal, irresponsável, desumano e antinatureza do desmatamento, das queimadas, das invasões e usurpações de terras indígenas, de unidades de conservação, das florestas, dos rios e lagos, nos enche de profunda tristeza e lágrimas. As chamas dessas práticas destrutivas queimam a alma amazônica e dos seus habitantes tradicionais e geram graves consequências em formas de crises ambientais, sanitárias, políticas, civilizacionais, tais como: piora nas condições de vida, avanço acelerado do desmatamento, mais violência, doenças, pobreza, miséria, fome, subnutrição, ameaça ao planeta, perda irreparável de conhecimentos e de espécies e aumento sem precedentes de secas, enchentes e outros fenômenos naturais de grandes impactos. Mas nem tudo está perdido, principalmente porque os seus habitantes nativos continuarão vivos e defendendo-a incondicionalmente mesmo com suas contradições internas e as forças coloniais ultra-capitalistas. É importante


considerar que a cura de ecossistemas amazônicos adoecidos pela ganância sem limites das elites econômicas de hoje depende também dos regimes plurais de conhecimentos e dos seus sujeitos locais e de seus modos tradicionais e sustentáveis de vida. Mais do que nunca a Amazônia necessita da consciência, atitude, engajamento e capacidade efetiva de seus habitantes em sua defesa e na promoção de projetos, valores e políticas adequadas, justas, socioambientalmente sustentáveis. O protagonismo das comunidades locais é condição para o sucesso do processo de libertação da Amazônia e dos amazônicos do jugo colonial excludente, racista, injusto, perverso e destrutivo. O caminho é longo e difícil, necessitando de enfrentamento e autossuperação cultural, político e epistêmico, tais como: a) Superação do domínio colonial nas suas diversas dimensões culturais, políticas, econômicas e epistêmicas. b) Maior consciência política e intelectual das comunidades amazônicas para sua autolibertação, emancipação, autonomização cultural, política e epistêmica, capaz de lhes permitir construir seus projetos de autoctonia cosmopolítica de poder, saber e fazer; c) Construção de uma integração real, efetiva, autóctone, estratégica, concreta, dinâmica e consequente de seus povos, valendo-se inclusive de atuais Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). d) Construção de projetos amazônicos autônomos de bem viver ou de desenvolvimento socioeconômico para o bem viver, com protagonismo local, sustentabilidade socioambiental, ciência, tecnologia e cooperação. Nenhum projeto imaginado, concebido, planejado e executado fora da Amazônia ou por pessoas ou grupos de fora da região

atenderá adequadamente às demandas, os anseios e sonhos dos amazônicos. Tais projetos devem contemplar e considerar as utopias próprias dos povos amazônicos, como a do Bem Viver e do Ara Puranga. Tais utopias expressam a beleza, grandiosidade, espiritualidade, sensibilidade humana e cósmica nas práticas concretas de vida, sempre recheadas de sensibilidades, espiritualidades e afetividades. O amor e o respeito à natureza e ao território não são apenas conceitos ou sentimentos, mas práticas vividas, a tal ponto que a natureza e a terra compõem substancialmente os corpos, os espíritos e as almas, como acontece com os povos indígenas porque foram criados da mesma matéria e essência da natureza. Desta perspectiva, qualquer projeto de vida na Amazônia atual necessita garantir a combinação entre tradições, meio ambiente, saberes plurais, tecnologias, ciência, cooperação e direitos humanos. Assim como qualquer construção (cosmo)política deve garantir a participação direta, legítima e qualificada das comunidades locais. Todos que compreendem a importância real da Amazônia, amazônico ou não, devem entender a importância da proteção dos direitos dos povos amazônicos, especialmente dos povos indígenas e comunidades tradicionais como uma das principais medidas efetivas de proteção da floresta amazônica. Sem esses povos e comunidades, a Amazônia se tornaria terra sem “dono” ou, melhor dizendo, terra sem quem a ame, a respeite e a proteja de verdade. Enfim, mais do que nunca, a Amazônia e seus povos necessitam hoje de pessoas com compromisso político, ético e existencial em sua defesa da vida. Amazônia mais podre, doente, destruída e maltratada torna o Brasil e o mundo mais pobres, mais ameaçados, com menos alma e menos vida.

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AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

Amazônias múltiplas:

espaço, gente 1 e reprodução Diogo Labiak Neves Instituto Federal do Paraná (IFPR) diogo.neves@ifpr.edu.br

uito se tem falado sobre a Amazônia, não apenas sobre a porção brasileira, mas sobre a Amazônia como um todo, a chamada Pan-Amazônia. Da mesma forma que avança o estudo amazônico, o senso comum cria e recria estereótipos a respeito da região. De pulmão do mundo à deserto demográfico, de importante reserva florestal à terra de ninguém, passando por reserva mineral do mundo. Este tipo de pensamento revela um pobre (in)consciente coletivo, alimentado e construído durante décadas, séculos. Sobre a formação e a criação do mito amazônico pelos viajantes e conquistadores europeus, a professora Neide Gondim ensina que, “contrariamente ao que se possa supor, a Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes”2. Essa criação da Amazônia, na verdade, representa diversas formas de rotular e atribuir identidade aos amazônidas, identidade esta que, na maioria das vezes, se traduz 24 Resistências

como negativa ou pejorativa e nos alerta sobre a alternância de visões e concepções: “ao longo de sua história, a Amazônia (as Amazônias) vem sendo objeto de uma alternância de visões paradisíacas e infernais”3. Não basta conter a produção de estereótipos, é importante conter a sua reprodução no meio acadêmico e no (in)consciente coletivo/popular. Mas de qual Amazônia estamos falando? Não raro cientistas e/ou pesquisadores discorrem sobre uma Amazônia a qual sequer conhecem in loco a realidade. Como observa Carlos Walter Porto Gonçalves4, é cada vez mais necessário que os acadêmicos e cientistas tenham e obtenham conhecimento sobre as realidades amazônicas. Falamos, então, da Amazônia enquanto “patrimônio nacional”, “patrimônio do conhecimento científico”, ou “patrimônio coletivo da humanidade”? De toda forma, falamos da Amazônia, não enquanto lugar isolado e esquecido do mundo, mas como região inserida no contexto global e que, definitivamente, enquanto existência, não se mostra mais como novidade. Assim, de qualquer forma, é prudente observar as múltiplas facetas existentes em um


De nada adianta que na região se instalem empresas multinacionais com propostas de “conservação” ou “uso racional”, como têm sido chamadas, mas que na verdade mascara interesses de extração de recursos naturais e expropriação dos conhecimentos tradicionais. cenário que, mesmo não sendo novo, ainda se apresenta fabulosamente desconhecido. As diferentes formas de ver a realidade amazônica, seja ela distorcida ou não, estão intimamente relacionadas a “dois principais níveis de construção da representação sobre a Amazônia: o exógeno, estruturado pelos discursos enunciados externamente, e o endógeno, elaborado pelos protagonistas que vivem na região”5. Nesse sentido, as representações elaboradas pelos atores sociais locais se mostram tão fundamentais, para a construção e disseminação de visões qualificadoras de Amazônia, quanto às produções “exógenas”. Na verdade, a produção dessa representação endógena vivida pelos atores sociais locais é por eles próprios desconhecida, enquanto a produção do discurso ‘exógeno’ se torna mais fácil na medida em que o agente externo não está diretamente envolvido com a sociedade amazônica no seu dia a dia. Para compreender a realidade amazônica é necessária uma reflexão aprofundada sobre a realidade local e as considerações regionais sobre os diversos problemas vividos pela(s) sociedade(s) que geralmente ficam renegadas ao imaginário coletivo nacional e global. A Amazônia não pode continuar a ser vista como uma área inóspita e demograficamente vazia, sob pena de incorrermos no mesmo erro aculturante e colonial, como os já cometidos em outros lugares e, em outras épocas, à própria Amazônia. Se defendemos a necessidade de mais estudos sobre a Amazônia, temos que entender que, se estes não tiverem os cuidados necessários de respeito e leitura correta da realidade local, correm o risco de banalizar e intensificar estereótipos. Para evitar esse risco é indispensável que o debate sobre a Amazônia passe a ser orientado mais a partir “do que os amazônidas pensam de si mesmo” do que “pela ótica do que os outros pensam sobre a Amazônia”6. Criticando a falta de conhecimentos de muitos que se ocupam da Amazônia a partir de um olhar distanciado, Amazônia: vidas ameaçadas 25


Aziz Nacib Ab’Sáber, amazônida comprometido com a re- mam alguns teóricos, ainda temos condição de preservação gião e suas populações, é radical: e adequação do uso consciente da Amazônia. De nada adianta que na região se instalem empresas “A metade norte do Brasil [...] foi por muito tempo o grande multinacionais com propostas de “conservação” ou “uso espaço físico e ecológico oferecido à imaginação inconsequen- racional”, como têm sido chamadas, mas que, na verdade, te dos tecnocratas, destituídos de qualquer noção de escala, mascaram interesses de extração de recursos naturais e exsenso de realidade empírica e responsabilidade pelas propostas propriação dos conhecimentos tradicionais. fantasiosas colocadas em mapas. O que se cometeu de pseuDe que adianta um determinado conhecimento tradidoplanejamento, feito a distância, na fase que fundamentou a cional, sugado com a anuência do governo, se este não esabertura da rodovia transamazônica, não tem paralelo em qual- tiver associado ao conhecimento de onde e como ele pode quer parte do mundo, em termos de ausência de noção de es- ser usado?! Estes conhecimentos certamente não virão em cala, responsabilidade civil por propostas predatórias, e falta de alguns anos de “pesquisa científica” na floresta, mas das conhecimentos efetivos da realidade física, ecológica e social da comunidades tradicionais, que posteriormente ainda pagaAmazônia brasileira”7. rão (financeiramente ou não) pelo uso dos seus próprios conhecimentos e saberes que lhes foram expropriados. Mais do que mera crítica, Aziz assinala um forte arguA apropriação de conhecimentos tradicionais comumento de reafirmação amazônica, principalmente na ques- mente é ignorada quando nos referimos à biopirataria. A tão das pesquisas científicas e acadêmicas: quem melhor este roubo de conhecimentos associado à biopirataria, Carque os próprios amazônidas para compreender as comple- los Walter Porto Gonçalves chama de etno-biopirataria8, conceito que pondera de nada adiantar, por exemplo, a saxidades da região? O que também preocupa é que o velho discurso do liva do sapo se não soubermos se ela cura a dor de dentes “vazio demográfico” serve fortemente às políticas públi- ou a pressão alta, quando de fato ela é um poderoso analcas que na maior parte das vezes não representam uma gésico. Este é o mesmo tipo de apropriação que ocorreu grande valia em termos de proteção da diversidade e/ou quando os ingleses piratearam sementes da árvore produdos recursos minerais e florestais. Ao contrário do que fir- tora do látex, mas não sem antes saberem do que se tratava.

26 Resistências


Desde o período colonial até o novo e atual colonialismo imposto pelos países “mais avançados” a região sofre com essa visão preconceituosa e distorcida, olvidando a enorme diversidade cultural e social existente na Amazônia. As políticas públicas promovidas na Amazônia refletem a constante anuência dos poderes públicos com os interesses do capital, que reproduzem a imagem da Bacia Amazônica ainda hoje “marcada pelas ideias racionalistas, onde a natureza significa, definitivamente, recursos naturais e suas possibilidades de exploração, mesmo que a fantasia da natureza perdida, e de sua regeneração, tente imaginar formas de controles e graus dessa exploração”9. Ao abordar temas como a Região Amazônica e sua preservação é preciso considerar que a conjuntura dos fatores é mais complexa do que somos capazes de vislumbrar a um primeiro olhar. Com a abordagem de preservação vêm junto os ribeirinhos, extrativistas, seringueiros etc., as comunidades tradicionais há séculos estabelecidas na região, e os povos indígenas, há milênios. Não podemos repetir o erro de esquecer ou ignorar estas comunidades. Como registra Leandro Tocantins, outro amazônida profundo conhecedor da região e suas gentes: “A ocupação humana na planície amazônica foi, de certo modo, um processo ecológico em que atuaram fatores de Geografia, de Natureza, fatores políticos, sociais e econômicos, culturais, definindo-se um acento peculiar (regional, pode-se dizer)”10. É impossível continuar a imaginar a Amazônia enquanto cenário sem imaginar também as ponderações provenientes das ocupa1 Artigo extraído parcialmente de “Amazônia”, Capítulo 1, de “Dois pra lá, dois pra cá”: Território, Globalização e Boi-Bumbá na Ilha dos Tupinambá. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. 2 GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. p.09. 3 MAUÉS, Raymundo Heraldo. Uma outra “invenção” da Amazônia: Religiões, histórias, identidades. Belém: Cejusp, 1999. p.84. 4 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografando nos varadouros do mundo: da territorialidade (o Seringal) à territorialidade seringueira (a Reserva Extrativista). Brasília: Ibama, 2003. 5 BUENO, Magali Franco. O imaginário brasileiro sobre a Amazônia: uma leitura por meio dos discursos dos viajantes, do Estado, dos livros didáticos de Geografia e da mídia impressa. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p.02. 6 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Editora

ções humanas, desmentindo assim as velhas premissas de vazio demográfico e cultural. Se é verdade que existem várias Amazônias, com certeza esta afirmação também se aplica aos agrupamentos humanos. Da mesma forma devemos observar que esta convivência harmoniosa com a natureza local provém de uma intensa relação de coexistência. Despindo-nos dos velhos preconceitos coloniais, os quais Januário Amaral descreve como visões míticas e as pontua como: “O mito da homogeneidade, o mito do vazio demográfico, mito da riqueza e extrema pobreza, mito do nativo como obstáculo ou como modelo para o desenvolvimento, mito do pulmão do mundo, mito de solução para os problemas da periferia, mito da Amazônia como área rural e mito da internacionalização da Amazônia”11. Mitos que serviram aos interesses governamentais para o planejamento do (pseudo)desenvolvimento da região. Desde o período colonial até o novo e atual colonialismo imposto pelos países “mais avançados” a região sofre com essa visão preconceituosa e distorcida, olvidando a enorme diversidade cultural e social existente na Amazônia. Pensar o desenvolvimento da Amazônia exige pensar o local e regional como um todo. Mas, ainda se faz necessário observar que tipo de desenvolvimento pretendemos. Sejam os centros urbanos, sejam os rincões dos vales mais afastados, o mito da homogeneidade amazônica certamente perdura. E todos os atores sociais amazônidas são tratados como iguais apesar de profundamente diferentes. A partir da observação crítica localizada, José Aldemir de Oliveira alerta que “as relações de produção na Amazônia têm sido produzidas e reproduzidas numa espacialidade concretizada e criada para possibilitar a expansão do capitalismo que avança, fragmentando-a e homogeneizando-a, estabelecendo condições de controle para inseri-la na escala global”12, justificando e confirmando a inserção da Amazônia no cenário global e globalizado. Portanto, essa situação nova deve ser cada vez mais estudada e analisada, isso se o que pretendemos é que a Amazônia não seja apenas a reprodução acrítica de um mundo global, esquecida das suas características locais e de suas particularidades e peculiaridades. Contexto, 2001. p.23. 7 AB’SÁBER, Aziz Nacib. Amazônia: do discurso à práxis. São Paulo: Edusp, 2004. p.17 e 18. 8 Construção teórica de Carlos Walter Porto Gonçalves durante o minicurso “Geografia e Movimentos sociais: A América Latina e o Caribe em questão”, no VI Congresso Brasileiro de Geógrafos, em Goiânia, 2004. 9 VICENTINI, Yara. Cidade e história na Amazônia. Curitiba: Editora da UFPR, 2004. p.259. 10 TOCANTINS, Leandro. Amazônia – Natureza, Homem e Tempo: Uma planificação ecológica. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército e Editora Civilização Brasileira, 1982. p.06. 11 AMARAL, Januário. Mata virgem: terra prostituta. São Paulo: Terceira Margem, 2004. p.10-12. 12 OLIVEIRA, José Ademir de. Cidades na selva. Manaus: Editora Valer, 2000. p.22.

Amazônia: vidas ameaçadas 27


AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

Amazônia brasileira:

sua sobrevivência numa sociedade colonizada Isaac Warden Lewis Faculdade de Educação (Faced) Universidade Federal do Amazonas (Ufam) isaac.lewis@bol.com.br

SOBREVIVÊNCIA 28 Resistências

“O primeiro tópico de que havemos de tratar na história do Brasil é dos índios – Eles pertencem tanto a esta terra como os seus rios, como seus montes e como as suas árvores [...]” Antônio Gonçalves Dias (1832-1864)

alar sobre a Amazônia é falar sobre os índios ou é fazer referência ao protagonismo da comunidade indígena, constituída de vários povos que vêm habitando e conservando essa região há milhares de anos. Gonçalves Dias tinha razão, pois sem índios os invasores portugueses não teriam encontrado terra, rios, árvores e animais nessa região. Depois de terem-se estabelecido na parte leste e nordeste do território brasileiro, os portugueses e os luso-brasileiros decidiram empreender, no século XVII, a ocupação do norte do Brasil, visando confrontar as tentativas da França e da Espanha que intentavam o mesmo objetivo. Os franceses estabeleceram uma colônia no Maranhão – a França Equinocial, e se aliaram com os Tupinambá que, por sua vez, haviam fugido de outras partes do nordeste. Um ancião tupinambá, Mbomboré-guassu, em uma reunião de sua tribo com os invasores franceses, exprimiu-se


ceticamente sobre a nova aliança que seu povo encetava com os franceses:

colonial. A segunda, escravizada ou servil, era obrigada a trabalhar para produzir riqueza e sustentar as classes favorecidas no Brasil e as classes privilegiadas em Portugal. Vi a chegada dos peró em Pernambuco e em Potiy [Paraíba]. Era-lhe negado o direito de possuir terra e de produzir Começaram eles como vocês, maíra, traficando mercadorias, sua vida material e cultural ou de ocupar cargos públicos. sem querer morar conosco. Nessa época eles dormiam livre- Em prefácio escrito para a obra Anais históricos do Estado do mente com nossas filhas, o que nossos parentes achavam muito Maranhão, de Bernardo Pereira de M. Berredo, Gonçalves honroso. Dias desvela o caráter dos setores da classe favorecida no Mais tarde disseram que devíamos colaborar com eles, cons- Brasil: truindo fortalezas para se defenderem e cidades para morarem conosco. E assim parecia que iríamos construir uma só nação. Depois [...] Mandaram então vir paí [missionários] e esses ergueram cruzes e começaram a nos instruir e nos batizar. Mais tarde disseram que nem eles e nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e assim se viram os nossos constrangidos a fornecer-lhes escravos capturados na guerra. Não satisfeitos com esses, quiseram também nossos filhos e acabaram escravizando toda a nação. E com tal tirania e crueldade nos trataram que os que permaneceram livres tiveram, como nós, de abandonar a região onde viviam. E, pelo visto, o mesmo irá acontecer com vocês (PREZIA, 2017, p. 81).

A invasão da Amazônia foi realizada do mesmo modo como ocorreu em outros territórios do Brasil. Os colonizadores portugueses fundaram a cidade de Belém em 1616. Subiram o rio Paraguassu, denominado posteriormente de Amazonas. Atacaram e massacraram inúmeros povos indígenas que viviam no vale desse rio, como, por exemplo, os Tupinambá (baixo Amazonas), os Tapajó (Santarém), os Karib (Silves), os Manaó e os Mayapena (rio Negro), Aruã (Amapá), os Munduruku (médio Tapajós). Em 1619, o rei de Portugal criou o Estado do Maranhão (que incluía as capitanias do Pará e Ceará), ligado diretamente a Lisboa para controlar as rebeliões que ocorriam nas vilas e cidades desse território. Os colonizadores portugueses contaram com o apoio logístico e ativo de padres jesuítas, mercedários, capuchinhos, franciscanos e carmelitas que construíram missões mais para domesticar os indígenas do que para catequizá-los. No século XVIII, os Manaó (rio Negro) e, depois, os Mura (Médio e Alto Amazonas) atacaram vilas, cidades e missões nessas regiões. As tropas portuguesas, e depois as luso-brasileiras, massacraram esses indígenas rebeldes. No século XIX, índios do nordeste e do norte participaram de rebeliões populares – Cabanada (1831-1834) e Cabanagem (1832-1839) -, juntamente com luso-brasileiros, negros, mamelucos e cafuzos, por melhoria de condições de vida contra o governo regencial. No período colonial (1500-1822), duas classes constituíram a sociedade brasileira: 1. A classe favorecida; e 2. A classe desfavorecida. A primeira classe era responsável por administrar o país, uma espécie de feitoria, para fornecer à metrópole portuguesa produtos agrícolas e minerais e, por isso, tinha a possibilidade de ocupar cargos na burocracia

Dos portugueses vinham para o Brasil só os que não tinham suficiente coragem para se lançarem sobre a Ásia e África, cujos campos, cujas cidades, cujos impérios tantas vezes repetiram com terror o nome português. Foi esta a razão por que os reis de Portugal tiveram sempre os olhos cravados naquelas partes do Oriente onde a sua glória se pleiteava, deixando por tanto tempo o Brasil à mercê dos seus deportados e dos seus aventureiros. Para Ásia e África mandava Portugal a flor da sua nobreza; para o Brasil vinha o rebotalho da sua população [...] (LISBOA, 1976, p. 159-160).

Gonçalves Dias explicita que era a cobiça que atraía essa população para o Brasil e que justificava as vilanias e as barbaridades praticadas por ela: Eis por que as primeiras páginas da história do Brasil estão alastradas de sangue, mas de sangue inocente vilmente derramado. O único motivo de quase todos os fatos que aqui se praticaram durante três grandes séculos foi a cobiça – cobiça infrene, insaciável, que não bastava fartar os frutos de uma terra virgem, a produção abundantíssima do mais fértil clima do Universo, e as mais abundantes minas de metais e pedras preciosas (LISBOA, 1976, p. 160).

Dizendo-se civilizados e cristãos, os colonizadores praticavam violências, barbáries, brutalidades, hipocrisias e vilanias contra os nativos da América, África e Ásia, a tal ponto que os nativos confundiam civilização e cristianismo com essas práticas. Esse foi o legado do processo de colonização portuguesa herdado pela maioria da população (luso-brasileiros, mamelucos, negros, mulatos, índios e cafuzos). Não obstante, em seus documentos (cartas, legislações, obras literárias), os colonizadores portugueses (rei de Portugal, ministros, padres, letrados, governadores, senhores de escravos, autoridades políticas, jurídicas, militares e policiais) denominavam os nativos de selvagens, bárbaros. Gonçalves Dias, em seu discurso, rejeita esse tratamento dado aos seus parentes pelo autor do texto que ele prefacia, pois ele assumia ser descendente de nativo de Portugal (o pai) e de nativos da América e da África (sua mãe era mestiça descendente de índios e de africanos) e ainda manifesta admiração pelos nativos: Amazônia: vidas ameaçadas 29


Não digamos, como diz Berredo, que era um povo bruto e feroz, nem o apreciemos pelo que hoje conhecemos [...] – Vede o que fizeram e dizei se não há grandeza e magnanimidade nessa luta que sustentam há mais de três séculos, opondo a flecha à bala, e o tacape sem gume à espada de aço, refinado (LISBOA, 1976, p. 161).

Em uma passagem do seu discurso, Gonçalves Dias se engana quando se refere às nobres virtudes dos portugueses que seguiram para o Oriente. A partir do século XVIII, ao fracassarem seus empreendimentos na Ásia, alguns aventureiros vieram para o Brasil, onde encetaram incursões em terras indígenas no nordeste e no norte, promovendo carnificinas para se apropriarem das terras indígenas e escravizarem os sobreviventes de suas ações violentas. Afinal de contas, foi a cobiça que orientou as ações de todos os colonizadores europeus. Os colonialistas europeus, apoiados por investidores de Portugal, Espanha, Holanda, Bélgica, Inglaterra, França, decidiram adotar a violência armada e espiritual como método para apropriar-se das terras e explorar os recursos naturais e humanos dos continentes invadidos. Desse modo, aventureiros portugueses, nobres ou plebeus, juntamente com luso-brasileiros e índios aliados Tupi e Tupinambá, praticaram atrocidades, carnificinas contra populações pacíficas e desarmadas em suas aldeias ou em missões dirigidas pelos jesuítas no sul do Brasil, em Goiás e Mato Grosso, no Paraguai e na Argentina e ainda foram considerados heróis pela população quando retornaram a São Paulo com centenas de índios escravizados de várias etnias. Tais criminosos, denominados de bandeirantes pelos historiadores, são ainda hoje homenageados erroneamente pelos brasileiros que insistem em ignorar seus crimes hediondos. É preciso registrar que centenas e centenas de índios – homens, mulheres e crianças – e alguns padres foram vítimas das ações covardes praticadas pelas expedições chefiadas pelos bandeirantes escravagistas. Outrossim, é preciso registrar que centenas de bandeirantes e seus aliados foram justiçados pelos índios que reagiram e lutaram pela sua liberdade e dignidade humana. Em geral, a compreensão dos ideais e dos fatos históricos foi construída na Europa por pseudocientistas e determinada nas ordenações elaboradas pelos reis de Portugal para orientar as ações dos invasores com relação à população nativa. Os tripulantes das caravelas traziam armas de fogo (mosquete, arcabuz, escopeta e canhão) para atacar indivíduos e povos que se recusassem submeter-se às ordens e aos interesses das classes privilegiadas portuguesas. 30 Resistências

A atitude de Gonçalves Dias de estigmatizar as atitudes vis dos invasores portugueses e de enaltecer as lutas dos nativos era rara no século XIX. O escritor português Luís de Camões (1524-1580), por exemplo, no seu poema épico Os Lusíadas, ao se referir às navegações portuguesas no século XV e XVI, enaltece continuamente as façanhas dos navegadores e dos soldados ao invadirem os continentes da América, África e Ásia e refere-se aos nativos como gentes selvagens, brutas e bárbaras que precisavam ser vencidas ou salvas pela brava e boa gente portuguesa. O escritor brasileiro José de Alencar, em seu romance O Guarani, de 1857, faz abstrações com relação às violências praticadas pelos colonizadores. O romance revela seu pensamento conformado com os interesses escravagistas das classes favorecidas brasileiras e com o pensamento pseudocientífico e racista de estudiosos europeus, os quais conceberam serem os brancos superiores aos nativos da Ásia, África e América, devendo esses nativos ser servos ou escravos ou serviçais dos brancos. Em seu romance, o branco português é apresentado como ser superior em virtude, em moral, em dignidade, enquanto que os nativos são geralmente apresentados como selvagens, bárbaros. O personagem índio, Peri, é quase humano, comporta-se como indivíduo sempre pronto para servir sua senhora, Cecília. Para muitos leitores de José de Alencar seria difícil imaginar que os bandeirantes fossem genocidas, assassinos cruéis de homens, mulheres, crianças indígenas e padres desarmados somente para capturar os sobreviventes para vendê-los em São Paulo como escravos. O escritor Lourenço da Silva Araújo Amazonas publica, em 1857, o romance Simá: romance histórico do Alto Amazonas. Ele elabora uma trama protagonizada por índios na região amazônica (rio Solimões e rio Negro) durante um fato histórico ocorrido em 1757, quando os Manaó e outras tribos indígenas participam de uma revolta contra os colonizadores portugueses, que viviam em vilas à margem do rio Negro (Caboquena, Lamalonga, Bararoá). Outro fato histórico abordado refere-se à discussão entre os emissários dos reinos de Portugal e da Espanha sobre a demarcação das fronteiras entre os territórios do Brasil e os das colônias espanholas na região amazônica. Há entre os personagens indígenas divergências entre os que são radicalmente contra os portugueses e a política colonialista de Portugal no Amazonas e os que aceitam e colaboram com os projetos coloniais de Portugal. Os personagens Mabbé, Bejary e Dedary são a favor da expulsão dos portugueses do Amazonas. Além dos fatos históricos, o romance


aborda a relação conflituosa entre o personagem Marcos, tuxaua destribalizado, e o personagem português Régis, regatão ambulante, cujas ações vis representam os comportamentos dos colonizadores com relação aos índios em geral. Marcos é proprietário de um sítio, Tapera, no rio Solimões, onde mantém um armazém. Ele é enganado por Régis, que saqueia seu armazém e violenta sua filha, Delphina. Ele abandona o sítio, dirige-se para uma aldeia indígena, Xomana, onde sua filha dá luz a uma menina, Simá. Alguns anos depois, ele reaparece no sítio Remanso, no rio Negro, com o nome de Severo. Ele cria Simá como filha, pois Delphina morrera. No rio Negro, Régis e seu compatriota Loiola visitam o sítio de Severo. Régis sente atração por Simá, mesmo sabendo que ela é noiva do índio Domingos de Dari. Régis e Loiola almejam dirigir os diretórios de índios, criados pelo Marquês de Pombal, que expulsara os jesuítas do Brasil. O rei de Portugal, D. José I, propõe tornar os índios cidadãos portugueses. Essas medidas não são suficientes para apaziguar a maioria dos índios, os quais sofrem discriminação por parte de portugueses e luso-brasileiros. Os índios invadem e atacam as vilas no rio Negro. As igrejas são queimadas. Simá é atingida por uma flecha. Régis fica sabendo que Simá é sua filha. O teto da igreja começa a ruir. Severo e Régis morrem queimados. Loiola é perseguido por Domingos de Dari, ele salta no rio e morre. Os rebeldes são presos. Mabbé, Bejary, Dedary e Domingos Dari são condenados à morte. Nesse romance, os índios rebeldes lutam para manter suas virtudes, sua honra, sua humanidade. Em seu prefácio para esse livro, a escritora Neide Gondim destaca que

da cultura medieval da violência e da barbárie, continuaram administrando o território brasileiro em nome do “estado”. As terras não pertenceriam mais ao rei, mas a um ente abstrato chamado “Estado”. Em consequência disso, os conflitos por causa do direito à terra entre os luso-brasileiros e os povos nativos intensificaram-se, uma vez que os primeiros julgavam-se no direito de usar e demarcar a terra de acordo com os seus interesses e de seus compromissos com os investidores internacionais. Terras na Amazônia foram doadas para esses investidores e para latifundiários nacionais por ocasião do ciclo da borracha (1870-1920). O rio Amazonas foi aberto à navegação exclusiva para investidores ingleses em 1853. Terrenos nas metrópoles foram cedidos para grandes empresas para o projeto Zona Franca. Estradas foram abertas em terras ocupadas por indígenas, como se eles não importassem. Em toda Amazônia brasileira, índios, índias e missionários que reagiram a essas violências foram cruelmente assassinados por grileiros, invasores disfarçados de agricultores, policiais, militares do exército que assumiram papel de mercenários, milicianos. Dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) revelam a violência contra os povos indígenas em todo Brasil durante a república, proclamada em 1889. Aprendemos que a sobrevivência da Amazônia brasileira está vinculada à sobrevivência do Brasil como nação, assim como a sobrevivência do Brasil está vinculada à Amazônia brasileira. Os povos indígenas contam com lideranças comprometidas com as lutas e resistências de sua coletividade. Também contam com jovens indígenas que têm tido acesso aos conhecimentos científicos produzidos nas universidades brasileiras, além de contribuírem para o enriquecimento […] esse romance não teve um final feliz. Delphina, a filha desses conhecimentos universitários. As histórias de Porto de Marcos, morre de melancolia após o nascimento da filha Rico, do México, Haiti, Panamá, da República DominicaSimá [...] neta de Marcos/Severo, produto de um estupro exe- na, Nicarágua e dos países do Caribe mostram que igrejas cutado pelo regatão português Régis, metáfora da forma brutal evangélicas e investidores norte-americanos prometeram como se deu a colonização no extremo norte [...]. (AMAZO- progresso para todos os setores sociais nesses países e, no NAS, 2003, p. 8). final, os trabalhadores, os camponeses e os nativos tiveram de abandonar suas terras e seus países, pois o progresso A história das ações brutais dos colonizadores portu- chegou somente para uma minoria. Isso é um alerta que ingueses no norte do Brasil contra as populações indígenas teressa a todos nós, povos historicamente espoliados pelas precisa ser confrontada com os relatos das revoltas dos classes favorecidas nacionais. vários povos que heroicamente lutaram pelo seu direito à ocupação de seus territórios, à defesa de suas tradições e de seus conhecimentos. Assim como as ações dos coloni- CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os povos no Brasil. S.l., 2017. zadores portugueses não se encerraram em 1822, também indígenas LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história não se encerraram a luta e a resistência dos indígenas da do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1976. Benedito. História da resistência indígena: 500 anos de luta. São Paulo: Amazônia e do Brasil, pois os luso-brasileiros, herdeiros PREZIA, Expressão Popular, 2017, 205p. Amazônia: vidas ameaçadas 31


AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

Amazônia,

espaço físico de enorme diversidade social

Lino João de Oliveira Neves Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS) Universidade Federal do Amazonas (Ufam) linojoaokaemo@gmail.com

uando se fala de Amazônia o que primeiro vem à mente é a imagem de um imenso tapete verde de floresta sem fim entrecortada por intermináveis rios, uma terra sem gente. Nada mais enganoso. A Amazônia sempre foi morada de muitos povos, de muitas vidas, um espaço em tudo diversificado. Um espaço múltiplo não apenas na sua configuração física, mas também nos aspectos sociais, culturais, étnicos e biológicos. Um imenso espaço, isso sim, de enorme biodiversidade, que é, antes de tudo, uma enorme sociobiodiversidade única no planeta, produzida e mantida ao longo de milênios pela ação antrópica de muitos povos de diferentes culturas indígenas e “populações tradicionais”, como têm sido chamados os segmentos não indígenas da sociedade regional que há séculos se estabeleceram em diferentes partes da região, e que fazem da Amazônia um espaço único de vida no mundo. A Natureza amazônica é de tal modo exuberante que desde as primeiras investidas europeias a região passou a dominar o imaginário ocidental. Desse modo, a maioria das produções literárias, mesmo no campo das ciências humanas, está marcada por uma visão ao mesmo tempo idílica e fantástica filiada diretamente a uma episteme que, na maior parte das vezes, acaba por impor uma orientação naturalista aos estudos das sociedades amazônicas. Este é um dos primeiros obstáculos a superar para a formulação de uma visão não etnocêntrica, e, portanto, não sujeita a 32 Resistências

noções pré-concebidas sobre a Amazônia e sua gente. Um olhar mais atento indica que na verdade não existe uma única Amazônia, mas muitas Amazônias: Amazônias de diferentes paisagens geográficas, Amazônias de nichos ambientais únicos, Amazônias de variados espaços socioculturais, Amazônias de diferentes populações locais.

Ninguém passa incólume pela Amazônia. A hospitalidade de suas gentes, o exotismo de sua culinária, a fartura em aromas, temperos e cores fortes para todos os gostos, a exuberância de suas paisagens, a imensidão de seus infinitos rios, os muitos tons de verde folhagem de suas árvores grandiosas tudo isso torna a Amazônia única e inigualável.


No entanto, apesar de desbravada em praticamente toda a sua extensão, a Amazônia permanece marcada por um desconhecimento profundo.

A Amazônia é um espaço homogêneo apenas para o senso comum distanciado e o tratamento que lhe foi dado pela ocupação colonial, histórica e recente, orientada por um modelo externo de apropriação social do espaço físico que não considerou/considera as experiências acumuladas pelos povos indígenas e populações tradicionais que se instalaram na região. Uma colonização que, para além do objetivo imediato de tomada de posse territorial para a exploração econômica dos recursos naturais, não dedicou/ dedica nenhuma atenção especial à rica diversidade natural e social responsável por fazer da Amazônia uma das áreas de maior sociobiodiversidade no planeta. Embora alguns setores do mundo moderno já reconheçam a biodiversidade amazônica como um riqueza, as populações locais continuam a não despertar por si mesmas um interesse efetivo. Quando muito os “nativos” são

utilizados como fonte de conhecimento sobre a biodiversidade e como agentes facilitadores do acesso aos recursos naturais. A imensa maioria dos chamados “conhecimentos tradicionais” permanece desprezada pela ciência moderna, e pela maior parte de seus agentes. Os sofisticados e complexos sistemas de produção de conhecimentos indígenas e tradicionais, além de eficazes na interpretação dos fenômenos naturais e sociais para as suas próprias comunidades, muito poderiam aportar ao conhecimento científico, caso os estudiosos e pesquisadores deixassem de lado a prepotência do pensamento moderno e adotassem o diálogo intercultural, como prática de construção de saberes plurais. Superar a arrogância do saber científico que rejeita todas as outras formas de conhecimento é indispensável para reconhecer e valorizar os conhecimentos dos povos e populações amazônicos que, em muitos aspectos, são mais apropriados à região do que o saber científico, como, por exemplo, o uso e manejo do solo e apropriação dos recursos naturais. Contudo, assim como nas antigas expedições filosóficas de naturalistas oitocentistas, as populações locais ainda hoje não são vistas como responsáveis pela produção e manutenção da biodiversidade amazônica. Quando muito, índios, quilombolas e ribeirinhos são tomados como informantes, guias ou carregadores nativos, quase como uma espécie de matéria-prima barata à disposição para ser explorada na mesma lógica extrativista descompromissada com qualquer princípio de direitos humanos e de cidadania respeitosa. O olhar prático sobre a Amazônia continua a perceber a região segundo os dois termos clássicos da modernidade: natureza e cultura; tomados como entidades dissociadas, inconciliáveis e mutuamente excludentes, principalmente no que se refere aos índios, que, antes de tudo, são vistos como obstáculo à ocupação produtiva e ao desenvolvimento amazônico e nacional. Ninguém passa incólume pela Amazônia. A hospitalidade de suas gentes, o exotismo de sua culinária, a fartura em aromas, temperos e cores fortes para todos os gostos, a exuberância de suas paisagens, a imensidão de seus Amazônia: vidas ameaçadas 33


Nos últimos anos a pressão econômica tem sido a maior razão para a devastação da floresta e para o consequente prejuízo na qualidade de vida, situação que já atingiu índices críticos na fronteira sul da Amazônia Legal Brasileira, no chamado “arco do desmatamento”, a porta de entrada para a destruição ambiental que o agronegócio vai deixando no rastro da sua invasão sobre a floresta tropical. infinitos rios, os muitos tons de verde folhagem de suas árvores grandiosas... Tudo isso torna a Amazônia única e inigualável. De modo ainda mais especial, ninguém passa incólume pelos índios da Amazônia. A riqueza de suas culturas; a profundidade de seus saberes ao mesmo tempo simples e sofisticados; a criatividade com que moldam a natureza construindo espaços especializados de viver; a capacidade inventiva com que confrontam os seus mundos com o mundo novo do contato que lhes chega avassalador, reorientando as suas vidas de sempre pelas vozes da memória socialmente acumulada; a resistência étnica com que constroem os novos espaços sociais que lhes permitem continuar a ser índios na convivência interétnica com o mundo do “homem branco”; a força com que preservam a diversidade de seus universos culturais, essência em si mesmo de sua permanência social diferenciada e exemplo de que o mundo é múltiplo, multiétnico e multicultural e que não precisa e não deve ser único, deixam marcas eternas em todos aqueles que se aventuram à convivência em suas comunidades e aldeias. No entanto, apesar de desbravada em praticamente toda a sua extensão, a Amazônia permanece marcada por um desconhecimento profundo. Ainda hoje tratada com descaso e irresponsabilidade pelos poderes públicos, violentada em sua natureza e nos muitos povos que milenar e secularmente a habitam, a região continua vítima da ambiguidade desenvolvimentista, onde o discurso de preservação é mera retórica frequentemente suplantada por planos, 34 Resistências

projetos e empreendimentos orientados a partir de uma economia extrativista apoiada em práticas não sustentáveis cujos efeitos perversos se alastram como exemplos nocivos por todas as suas microrregiões amazônicas. Embora as políticas públicas ditadas para a Amazônia por governos anteriores configurem um processo continuado de comprometimento das condições de vida, é inegável que o atual Governo Federal vem se portando como um verdadeiro vilão, ao incentivar publicamente iniciativas de invasão e exploração ilegal de terras públicas – terras indígenas, terras de quilombo, unidades de conservação etc. – com potencial de provocar graves desastres ambientais e acarretar não apenas problemas de saúde e violência física às populações locais atingidas diretamente por aquelas práticas criminosas como, até mesmo, colocando em risco a possibilidade futura de vida na Amazônia. Se governos anteriores podem ser acusados de descaso e irresponsabilidade no trato com a região amazônica e suas populações, o Governo Bolsonaro, ao adotar medidas que estimulam a grilagem de terras públicas e a exploração econômica predatória através do extrativismo ilegal de madeiras e mineral, põe em curso uma nefasta política de terra arrasada abrindo a Amazônia ao capital internacional para a mineração industrial, a expansão do monocultivo do agronegócio e a criação de gado, práticas absolutamente contrárias à “vocação” das terras amazônicas. Nos últimos anos a pressão econômica tem sido a maior razão para a devastação da floresta e para o consequente prejuízo na qualidade de vida, situação que já atingiu índices críticos na fronteira sul da Amazônia Legal Brasileira, no chamado “arco do desmatamento”, a porta de entrada para a destruição ambiental que o agronegócio vai deixando no rastro da sua invasão sobre a floresta tropical. Ainda mais incompreensível é que, apesar de todo o dano ambiental e social já causado, essa invasão destrutiva continua a avançar em ritmo veloz impulsionado por políticas públicas desconectadas das aptidões ecológicas da região e que insistem em não valorizar as soluções práticas que as populações locais desenvolveram/desenvolvem para a convivência harmoniosa com o meio ambiente amazônico. Diferente daquilo que é divulgado pela propaganda oficial, soja, arroz e biodiesel, concessão de exploração florestal e mineral, projetos hidrelétricos e (re)abertura de estradas, longe de promover o desenvolvimento da Amazônia e do país, são, na verdade, os responsáveis pelo saque predatório às custas da floresta em pé e do desperdício de conhecimentos produzidos por sistemas de nativos, aniquilados por uma desrazão pseudocientífica que condena povos indígenas e populações regionais ao extermínio e provoca danos irreparáveis à região enquanto espaço físico para o suporte de vida, colocando em risco a própria condição de existência humana no planeta.


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AMAZÔNIA, ESPAÇO PLURAL DE VIDA

O desafio

permanente Wilson Nogueira Jornalista e escritor amazonense wilsonsouzanogueira@gmail.com

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desafio persistente da Amazônia é o de reconhecer-se em si e para si. Não se trata de tarefa fácil, pois o projeto colonial, econômico e intelectual do Ocidente, iniciado no século 16, ainda está em andamento. E, desde essa época, conta com o reforço das escolas que se formaram, internamente, com habilidades para aprofundar a ideia de que vivemos em um país hegemônico, o Brasil continental. Ou ainda pior: que é preciso reconhecer este Brasil, ainda que na marra, como matriz sociocultural forjada no mito da democracia racial. Esse é um projeto em ascensão na região. Amazônia se fez Amazônia pela ação e narrativa dos sujeitos invasores, que preferiram a força bruta ao diálogo, a pilhagem ao respeito aos bens alheios, a soberba ao reconhecimento das suas limitações físicas e intelectuais em ambientes estranhos às suas culturas. Então, a primeira violência é a denominação arbitrária e colonizante de Amazônia para um lugar que não lhes pertencia. A palavra Amazônia traz consigo o peso das culturas europeias (línguas, religião, modos de pensar, produzir e agir etc.).

Nesse contexto, me refiro ao discurso do mito fundador. Miticamente, existimos no mundo das amazonas, as mulheres guerreiras do imaginário greco-romano antigo, transplantado para o mundo das índias. Outro item desse kit de opressão é o da colonização do imaginário pelo mito judaico-cristão, esse estruturado no conhecimento eclesial, com seus dogmas e hierarquias sacerdotais, e embarcado nas naus invasoras. Assim, o ser que conhecemos historicamente por amazônida esconde questões cruciais para a compreensão da Amazônia forjada na violência física e simbólica. Esse é um dos fatores que entrava a região em se reconhecer em si e, a partir daí, agir em benefício de si. Não. Não se trata de arrogância ou defesa de um isolamento material e intelectual. Os moradores das américas sempre se dispuseram ao diálogo com outras gentes e suas culturas. O mesmo juízo não se pode fazer dos seus algozes. Isso está nos registros dos próprios invasores; no Brasil, desde o litoral, quando foram recebidos pelos tupiniquins como gentes do bem. A farsa veio se revelando com o roubo do pau-brasil, do pau-vermelho como brasa, do qual vem o nome deste país

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Os descendentes dos primeiros habitantes dos brasis, entre os quais, os das florestas e rios sob a linha do equador, são sobreviventes das guerras que ainda se mantêm contra grupos étnicos ou desetnizados, esses que foram forçados a abandonar as suas práticas de viver e se relacionar com outras sociedades e com a natureza. e o gentílico brasileiro, como eram conhecidos negociantes dessa madeira nos portos europeus. Os europeus ganhavam rios de dinheiro com a derrubada da floresta atlântica, enquanto os índios acumulavam em suas aldeias as bugigangas frutos de presentes dos caras-pálidas. Assim, os primeiros moradores destas terras foram inoculados com o proto-vírus do consumismo. As guerras vieram com a percepção dos índios de que eles estavam sendo roubados, escravizados e massacrados pelo fato de possuírem riquezas em suas terras, entre essas, a própria terra. Riquezas para os europeus, enquanto que, para os índios, se tratavam – e se tratam – de dádivas da mãe-terra, com as quais compartilhavam – e ainda compartilham – as suas vidas. Com o rio Amazonas não aconteceu diferente: os espanhóis, comandados por Gonçalo Pizarro, atravessaram os Andes peruanos em direção ao “Eldorado” e ao “País da Canela” em busca de produtos com alto valor de mercado na Europa, entre outros, o ouro e a canela. Assim como no achamento do Brasil, em 1500, o descobrimento do rio Amazonas, em 1542, também se deu por acaso, porque Francisco Orellana, um dos graduados de Pizarro, e um grupo de soldados avançaram sobre águas desconhecidas em busca de mantimentos para a tropa, e teriam sido arrebatados pela correnteza e levados à toa ao Atlântico. Pizarro retornou ao Peru sem a glória de ter descoberto o que não estava encoberto, porque, no relato do escrivão de Orellana, frei Gaspar de Carvajal, está dito que nas mar38 Resistências

gens do grande rio havia milhares de aldeias de índios. “Depois do baixo curso do Napo e depois pelo Amazonas até a sua foz, a expedição atravessou uma série de províncias que se sucediam pelas duas margens, ora ininterruptamente, ora separadas por longos trechos desabitados”, escreveu Carvajal (apud PORRO, 1999, p. 38). Há situações em que os donos do grande rio recuam, preferem se proteger floresta adentro, noutras confrontam com o invasor, mesmo em desvantagem, porque não possuíam armas de fogo, ou são amistosos, oferecendo-lhes comida e materiais para que prossigam viagem. O interessante nessa relação é que os invasores produziram uma narrativa que, lida à contrapelo, não deixa dúvidas sobre como foram ferozes, insensatos, violentos e bandidos. Mas eles se achavam diante de fatos tão normais que produziram todos os Boletins de Ocorrências (BOs) possíveis para a posterioridade. Não haveria tribunal isento que não lhes aplicasse punições por roubo comum, como o de canoas ou alimentos, por pilhagem, por assassinatos, massacres e genocídio.

Está cada vez mais claro que centenas de grupos humanos habitavam as américas antes da chegados dos europeus, e cada um deles com seus graus de complexidade social, econômica, política e tecnológica.

E por diligência de um arcabuzeiro mandado pelo capitão ateou-se fogo a uma cabana grande [...] e queimaram-se todos os que estavam dentro dela, com algumas mulheres e meninos que não quiseram render-se nem sair daquele perigo; e por isso chamou-se aquela povoação de o Povoado dos Queimados. (CARVAJAL apud PORRO, 1999, p.53).

Não há porque descartar os dados de Carvajal sobre Machiparo, com uma extensão de mais de 60 léguas habitadas; sobre a primeira aldeia de Paguana, com mais de duas léguas de comprimento, ou sobre as grandes aldeias nas proximidades do Xingu, onde “estavam postados sobre a barranca do rio mais de cinco mil homens de guerra daquele barbaríssimo exército, e até mais do que menos, re-


partidos aqui e lá em seus esquadrões”. (CARVAJAL apud PORRO, 1999, p. 63). O que se segue, historicamente, até os dias de hoje, é essa narrativa, o mito do descobrimento do Rio das Amazonas por um grupo de soldados espanhóis predestinados pela escrita de Deus. Um mito europeu que sustenta essa escalada de violências de cinco séculos sobre povos e suas terras, uma visão de mundo que se impõe pela versão do invasor. Assim, o que se pôde testemunhar nesses cinco séculos foram narrativas e práticas que se repetiram para fundamentar os sucessivos avanços do capitalismo sobre sociedades de modos de produção coletivos, comunitários, fraternais e solidários. Povos, línguas, visões de mundo, jeitos de viver e culturas materiais e simbólicas foram extintas – e ainda estão sendo extintas – por conta da naturalização da falsa superioridade europeia, desdobrada nas práticas do colonialismo, do neocolonialismo, do progresso, do desenvolvimento e nas demais múltiplas facetas do capitalismo. Os descendentes dos primeiros habitantes dos brasis, entre os quais, os das florestas e rios sob a linha do equador, são sobreviventes das guerras que ainda se mantêm contra grupos étnicos ou desetnizados, esses que foram forçados a abandonar as suas práticas de viver e se relacionar com outras sociedades e com a natureza. Essa mudança forçada implicou – e ainda implica – assumir a submissão ao modo de produção de fora, cuja essência é transformar trabalho em mercadoria pela apropriação do excedente daquilo que homens e mulheres deveriam produzir para o viver bem. O padre João Daniel (1722-1776), que viveu na região entre 1741 e 1757, denunciou, em suas memórias escritas em um cárcere de Lisboa, que os comerciantes portugueses praticavam escambo ridículo com os produtos que os índios colhiam da floresta, dos rios ou cultivavam nas suas roças. Se pularmos no tempo, a denúncia do jesuíta continuará atualizada e mais grave. Há, portanto, a necessidade de reconhecimento das múltiplas narrativas que dão conta da existência dos povos e terras daqui, da Pachamama, das suas culturas, dos seus jeitos de viver e de se relacionar com a natureza. Pouco ou quase nada dessa diversidade de viveres está escrito em línguas europeias ou em línguas indígenas – até porque essas últimas foram praticamente varridas da boca dos descendentes dos primeiros moradores. As versões escritas por indígenas, por sua vez, pouco circulam nas escolas e nas universidades que, como denuncia o professor poeta João de Jesus Paes Loureiro, são preconceituosas com o conhecimento e com os saberes dos povos tradicionais. Conhecimentos e saberes que, caso fossem levados em consideração pelos colonizadores de hoje, poderiam até

prolongar a existência humana no planeta. Está cada vez mais claro que centenas de grupos humanos habitavam as américas antes da chegada dos europeus, e cada um deles com seus graus de complexidade social, econômica, política e tecnológica. Para ficar só nos registros de Gaspar de Carvajal, não se tem conhecimento de que as populações das margens do grande rio – ou do rio das amazonas – enfrentassem privações alimentares ou que, para se manter vivos, tivessem que explorar suas terras, florestas e rios a ponto de colocá-los em desequilíbrio ou ameaçá-los de extinção. Esse equilíbrio se deve, certamente, à sabedoria e à inteligência de seres que dialogam com a natureza, por meio do reconhecimento/sensibilidade de que todos compartilham o mesmo espaço/tempo, no qual a terra pode ser comparada a um grão de areia interdependente em relação ao cosmos e suas galáxias. Essa é uma ciência que, na sabedoria dos povos tradicionais, não está dissociada do viver prático nem do sonhado. Não existe nessas culturas uma razão econômica que justifique a devastação das florestas; a destruição das montanhas, a escavação dos solos e dos rios, para a retirada de ouro e outros minérios; a troca artificial de vegetações em favor de algumas poucas espécies usadas como commodities; a matança de animais (inclusive seres humanos) e vegetais em larga escala por pesticidas etc. Não é de hoje – e isso está registrado, também, pelo próprio invasor – que os povos ameríndios, entre eles os da Amazônia, resistem ao capitalismo porque sofreram na pele – e ainda sofrem – os efeitos perversos das suas ações sobre a natureza, na qual eles se incluem. Os conhecimentos e saberes tradicionais – as etnociências – não se arrogam à sobreposição a outras culturas, às suas técnicas, valores e práticas, mas gostariam de dialogar com eles em ambiente de respeito mútuo. Gostariam que ouvissem as suas versões sobre fatos e subjetividades como mundos integrais e integrados e não como simples objetos em fragmentos. Esse é o grande desafio que se impõe “ao povo da mercadoria”: parar, ao menos por alguns segundos, para tentar se sintonizar ao pulsar dos corações dos seus (dos nossos) ancestrais. E que seja logo, antes que o céu venha a desabar novamente sobre nós. DANIEL, Pe. João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas (1772-1776). Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 2017. KOPENAWA, Davi, ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. PAES, LOUREIRO. João de Jesus. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Manaus: Valer, 2015. PINTO, Renan Freitas. A viagem das ideias. Manaus: Valer, 2008. PORRO, Antônio. As crônicas do rio Amazonas: tradução, introdução e notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1993. SILVA, Marilene Corrêa da. Metamorfoses da Amazônia. Manaus: Valer, 2013 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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FALÁCIAS DO DESENVOLVIMENTO

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FALÁCIAS DO DESENVOLVIMENTO

Novos projetos, antigas falácias:

a construção da BR-174 e o genocídio dos indígenas Waimiri-Atroari

Bárbara Harianna Brito de Cabra Graduada em História Rede estadual de ensino no Amazonas barbara.harianna@hotmail.com

Jaci Guilherme Vieira Departamento de História Universidade Federal de Roraima (UFRR) jaci.vieira@ufrr.br

construção da rodovia federal BR-174 com o envolvimento do Exército Brasileiro, ou seja, do Estado militarizado, causou diversos impactos sociais aos indígenas da etnia Waimiri-Atroari. A obra teve início durante o Regime Militar, um período marcado por acontecimentos ocultados pelo Estado e que vem sendo retomados pela historiografia recente. No caso do Estado de Roraima, não foram noticiados casos de tortura, mas se tem notícia da morte de mais de 2.000 índios Waimiri-Atroari em função da construção da rodovia federal que fez ligação entre Boa Vista e Manaus, além da perseguição a um clero progressista devido à sua atuação junto aos índios de Roraima. Tais fatos já eram de conhecimento público há anos (VIEIRA, 2007), mas uma nova documentação resgatada pela Comissão Nacional da Verdade - criada pela presidente Dilma Rousseff em 2012 - possibilitou o questionamen42 Resistências

to dos objetivos da construção da BR-174, que, segundo o discurso de autoridades da época, seriam a ligação terrestre entre Manaus e Boa Vista, tirando essa última do isolamento, e a proteção da fronteira do extremo Norte. A documentação que trata especificamente do genocídio do povo Waimiri-Atroari pode ser encontrada no Relatório do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, redigido por Egydio Schwade e publicado no ano de 2012. Entre os argumentos utilizados para demonstrar a “benesse” da referida obra existia o de uma suposta reforma agrária. Esta se realizaria através do assentamento de colonos em regiões do Norte consideradas vazios demográficos pelos governantes. Além disso, essa iniciativa colocaria em prática a máxima “Integrar para não entregar!” por meio da construção de grandes rodovias que ligariam a Amazônia ao resto do país, sob o argumento da Segurança Nacional de proteção das fronteiras.


É possível ter clareza de como os interessados na construção da BR viam o indígena através de falas de governantes da época. Em 1968, o governador do Amazonas, Danilo Duarte de Matos Areosa, pedia “a construção da estrada através do território indígena, a qualquer custo” e considerava que o indígena deveria “ser transformado em ser humano útil à Pátria”. Já o então governador de Rorai-

ma, Fernando Ramos Pereira, declarou em 1975: “Sou da opinião que uma área rica como essa não pode se dar ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o seu desenvolvimento”. Tais declarações podem ser encontradas nas edições do jornal A Crítica (de Manaus), edição de 27 de novembro de 1968 e de 05 de março de 1975, respectivamente. Amazônia: vidas ameaçadas 43


Para além dos objetivos oficiais alegados pelas autoridades da época existiam os objetivos ocultos da construção da BR-174. Analisando os documentos trazidos no Relatório do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, percebe-se o interesse nos recursos naturais da região por parte de empresas privadas e como o Estado brasileiro militarizado atuou para favorecer esses interesses. Segundo o referido relatório, datam de 1944 os primeiros indícios de interesses mineralógicos nas terras dos Waimiri-Atroari. Por exemplo, naquele ano os indígenas assassinaram pesquisadores norte-americanos que invadiram o seu território em expedição comandada por militares norte-americanos. A construção da BR-174 teve início em 1967 e durante todo o processo de construção até a sua inauguração em 1977 muitas outras investidas no território indígena aconteceram e não cessaram desde então. Logo depois de concluída a rodovia, o Grupo Paranapanema de mineração iniciou rapidamente as atividades na área. Em 1979 invadiram o território e só depois obtiveram autorizações legais para tal, o que foi possível pela ação de autoridades e servidores corruptos da Funai e do Ministério de Minas e Energia. Em 1985, funcionários da Funai confirmaram a existência de índios isolados nessa região, porém naquele mesmo ano a Paranapanema já vinha construindo uma hidrelétrica no Rio Pitinga. Líderes das comunidades Yawará e Xeri denunciaram ao presidente da república o ato, afirmando que aquela área era dos Tikiria, grupo pertencente aos Waimiri-Atroari e dos Piriutiti, ambos sobreviventes da construção da BR-174. O que os indígenas não sabiam à época era que a concessão para isso foi dada justamente pelo então presidente da república José Sarney em 1986, ou seja, depois que a obra da hidrelétrica já havia sido iniciada. O próprio governo brasileiro vinha estudando desde 1968 a possibilidade de aproveitamento energético do Rio Pitinga e em 1981 iniciou-se a construção de outra hidrelétrica dentro do território dos Waimiri-Atroari, desta vez uma obra governamental, a usina hidrelétrica de Balbina. Essa obra teve por consequência uma inundação do território que provocou interferências e mudanças na vida de pelo menos um terço da população Waimiri-Atroari. A usina entrou em funcionamento em 1989 mesmo após denúncias de indigenistas, cientistas, ambientalistas e políticos com repercussão nacional e internacional. Isso porque os interesses econômicos das empresas envolvidas no processo foram priorizados, entre as quais as empresas Andrade Gutierrez e Mendes Junior. O presidente e o diretor de suprimentos da Eletronorte negaram a existência de qualquer ameaça para os índios com a formação do reservatório de Balbina. A obra de construção da rodovia federal possibilitou também que um grupo do estado de São Paulo liderado pelos irmãos Fernando e Sergio Vergueiro promovessem 44 Resistências

junto com o então governador do Amazonas, Danilo de Matos Areosa, a grilagem de terras pertencentes ao território indígena. Esse esquema ficou conhecido como Grilagem Paulista e envolveu famílias tradicionais na política do estado de São Paulo como a família Lot Papa, Paes de Almeida, Telles, Vergueiro, Costa Lima e Piva. Alguns desses lotes serviram para exploração madeireira e pecuária, mas grande parte encontra-se ocupada por posseiros que reocuparam a área a partir de 1980. É importante enfatizar que a construção da BR-174 não se deu sem resistência indígena, tendo em vista que os Waimiri-Atroari foram guerreiros e contra-atacaram diversas vezes. A partir desses contra-ataques, o governo manteve um ambiente de invasão armada, que duraria até 1977 quando conseguissem exterminar qualquer faísca de resistência. Tem-se conhecimento de solicitações de armamento feitas pelo coronel Mauro Carijó do mês de março ao mês de setembro de 1968, período inicial de construção da BR-174, com quantidades que remetem a contextos de

Os conflitos entre empresas privadas e os indígenas WaimiriAtroari se atualizaram. Hoje existe um debate aberto entre os interesses dos povos indígenas e de grupos interessados na construção de uma linha de transmissão de energia elétrica que integraria a rede elétrica de Roraima à rede nacional de transmissão de energia, o chamado Linhão de Tucuruí. guerra. A justificativa destas solicitações baseava-se na suposta manutenção da segurança dos operários na construção da estrada. No fim do mesmo ano, quando o Exército assumiu o trabalho da segurança, essas solicitações foram dispensadas, afinal todo o potencial bélico já os acompanhava. Em junho de 1981 um surto de sarampo atingiu os Waimiri-Atroari devido ao contato dos indígenas com os transeuntes da estrada e por descuido da própria Funai que até então não tomara medidas de intervenção. Estes ata-


ques diretos através do uso de violência armada e indiretos através da transmissão de doenças foram acontecimentos históricos que quase levaram os Waimiri-Atroari ao total desaparecimento. Além dos indígenas sobreviventes, autoridades envolvidas e elementos do Comando Militar da Amazônia e da Funai têm conhecimento dos detalhes dessa tragédia. A experiência vivida pelos Waimiri-Atroari é apenas uma entre muitas sofridas pelos povos tradicionais da Amazônia que foram atingidos por rodovias e grandes empreendimentos. O genocídio silenciado pela ditadura fez parte de toda política repressiva adotada neste período não apenas contra os indígenas, mas contra todas as pessoas que se opunham ao regime e seus projetos. Hoje, sabe-se que a ditadura militar brasileira cometeu um genocídio contra os Waimiri-Atroari, não apenas matando-os diretamente, mas abrindo caminhos legais e materiais para que a invasão e exploração de seus territórios acontecessem, o que resultou no desaparecimento de boa parte dessa população. O 6º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, envolvido diretamente na construção da rodovia BR174, fez uma exposição fotográfica no ano de 2016 em shoppings na cidade de Boa Vista, em Roraima. Tratava-se da comemoração dos 68 anos de existência da instituição e nesta exposição se orgulhavam de terem “tirado o estado do isolamento” e exibiram fotos da época da construção da BR-174. Em entrevista ao noticiário local Folha de Boa Vista, no ano de 20161, o major Silvio José Melo de Brito comenta a criação do batalhão alegando que ele foi “[...] criado com intuito de ocupar e povoar a Região Amazônica, prestando apoio com a engenharia do Exército aos empreendimentos, garantindo mobilidade e proteção”. Em momento algum é trazido na fala do major as mortes que fizeram parte do processo de construção da rodovia, sequer são citados os índios Waimiri-Atroari e toda a violência que sofreram durante a execução dessa obra. Além disso, em falas como esta, percebe-se que a falsa noção de que a região Amazônica era inabitada é reforçada ainda hoje pelos militares. Analisando as intencionalidades e os trâmites legais envolvendo Estado e empresas privadas à época da obra podemos chegar a conclusões sobre os objetivos de se abrir uma rodovia cortando uma terra indígena sem que fossem feitos trabalhos junto às comunidades que seriam afetadas. Não só pelo conflito de culturas em si, mas pela situação de vulnerabilidade em geral a qual essa população foi submetida com uma rodovia federal perpassando seu território. Rever e analisar historicamente os acontecimentos a partir de novas interpretações é uma forma de reverter injustiças do presente, inclusive aquelas da ordem do discurso. Percebe-se que os interesses econômicos de grupos poderosos foram priorizados no processo de construção da BR-174 e que não existem compensações nas narrativas

sobre o período, visto que até a atualidade os povos indígenas são colocados como entraves ao desenvolvimento, não têm a autonomia sobre suas terras respeitada e sequer são citados quando a história é contada pelos envolvidos na construção da rodovia. Os conflitos entre empresas privadas e os indígenas Waimiri-Atroari se atualizaram. Hoje existe um debate aberto entre os interesses dos povos indígenas e de grupos interessados na construção de uma linha de transmissão de energia elétrica que integraria a rede elétrica de Roraima à rede nacional de transmissão de energia, o chamado Linhão de Tucuruí. O que difere o atual debate do anterior é o fato dos Waimiri-Atroari hoje estarem organizados e conscientes do que seu povo sofreu na construção da rodovia nos anos 1960/70. Existe um posicionamento de recusa quanto à construção do Linhão em um traçado que passe por dentro de suas terras. Até o momento da escrita deste texto este debate segue em curso, e os Waimiri-Atroari se mantém em resistência, reivindicando que as autoridades ouçam e reconheçam suas demandas. Essa população segue em luta, enquanto teme por novas mortes e impactos ambientais nos seus territórios, desta vez com o agravante do garimpo ilegal, que já acontece nas terras Yanomami e que pode vir a acontecer no território dos Waimiri-Atroari caso se inicie a nova obra. FOLHA DE BOA VISTA. 6º BEC se orgulha de ter contribuído para o desenvolvimento de Roraima. 28 de Julho de 2016. Disponível em:<https://folhabv. com.br/noticia/CIDADES/Capital/6o-BEC-se-orgulha-de-ter-contribuido-paradesenvolvimento-de-Roraima/18632> BORGES, Nilson. A doutrina de segurança nacional e os governos militares. In. FERREIRA, J.; ET DELGADO, L. A. N. (org.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.13-42. Vol. 4. BOTELHO NETO, Augusto Affonso. Laudo na área de Antropologia. Perito: Dr. Carlos Alberto Marinho Cirino. 2012. Processo Número 2004.42.001036-7. Classe 1900 – Ação Ordinária. CARVALHO, José Porfírio F. de. WAIMIRI-ATROARI: a história que ainda não foi contatada. 1ª ed. Brasília: S/Ed, 1982. COMISSÃO DA VERDADE DO AMAZONAS. 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade: o genocídio do povo WAIMIRI-ATROARI. São Paulo: Editora Curnimuendaju, 2012. DAVIS, Shelton H. Vítimas do Milagre: o Estado e os Índios do Brasil. São Paulo: Zahar, 1978. DOCUMENTÁRIO Nossa História: A’A IKAA. Produção, direção e roteiro: Wame Viana, Sawa Aldo e Henrique Cavalleiro. Jauaperi/Camanaú: PWA, 1995, 1 DVD (37min.). DVD, NTSC, son., color., Português. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=9VamtYtNXhI. Acesso em 11/12/2016. GUAZELLI, César Augusto Barcellos; PETERSEN, Silvia Regina Ferraz; SCHMIDT, Benito Bisso; XAVIER, Regina Célia Lima. Questões de Teoria e Metodologia da História. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2000. HECK, Egon; PREZIA, Benedito. Povos indígenas: terra é vida. São Paulo: Atual, 1998. HÜBNER, Georg; KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Die Yauapery. Zeitschriftfür Ethnologie, n.19, Berlim, 1907. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. RODRIGUES, Renan Albuquerque; FEARNSIDE, Philip Martin. Índios WaimiriAtroari impactados por tutela privada na Amazônia Central. Novos Cadernos NAEA, Belém, v.17 n. 1, p. 47-73, jun. 2014. SABATINI, Silvano. Massacre. São Paulo: CIMI, 1998. VIEIRA, Jaci G. Missionários, fazendeiros e índios em Roraima: a disputa pela terra – 1777 a 1980. 2. ed. Boa Vista: Editora da UFRR, 2014. 1

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FALÁCIAS DO DESENVOLVIMENTO

Desenvolvimento da Amazônia:

violência e impunidade contra os povos indígenas isolados1 Guenter Francisco Loebens Conselho Indigenista Missionário (Cimi) guenterfran@gmail.com

m diferentes partes do mundo encontram-se, ainda hoje, povos indígenas isolados, conhecidos também como povos “sem contato”, “em situação de isolamento voluntário”, “arredios”, “autônomos” ou “livres”. Como é próprio de todas as civilizações, esses povos mantinham relações com sociedades próximas ou mesmo distantes no passado e, por diferentes razões, decidiram desfazer-se das relações que mantinham com as sociedades nacionais e mesmo com outros povos indígenas, ou então restringi-las ao máximo. Existem informações sobre a existência de mais de 186 grupos indígenas isolados no mundo, dos quais 127 na Amazônia e 116 no Brasil. Na Amazônia estão presentes no Brasil, Peru, Equador, Colômbia, Bolívia, Venezuela e Guiana. São testemunhas da presença originária dos povos indígenas no continente americano e, portanto, anteriores aos estados nacionais, sobreviventes da violência da colonização que se reproduz até os dias atuais. Para compreender a vontade manifesta desses povos pelo isolamento deve ser considerada a sua opção pela autonomia, evitando relações de dominação ou conflitos que 46 Resistências


poderiam gerar desequilíbrios na organização social e perdas populacionais. Essa opção normalmente está associada a experiências traumáticas de encontros anteriores com os agentes das frentes de expansão econômica das sociedades nacionais. Encontros frequentemente marcados pela violência dos massacres, das epidemias, da invasão de seus territórios, da diminuição de suas fontes de alimento e da depredação de referenciais simbólicos sagrados que caracterizam os espaços físicos ocupados como territórios originários de cada um desses povos. A presença ainda hoje do grande número destes povos revela, por outro lado, uma enorme capacidade de luta e resistência para manter, mesmo em situações muito adversas, a sua autonomia e para suprir suas necessidades materiais, espirituais e modos de vida próprios e culturas, como fundamentos para a sobrevivência enquanto sociedades organizadas. A violência contra os povos indígenas não é algo do passado. Ela continua perseguindo os sobreviventes desses povos isolados que, em grupos geralmente pequenos, conseguiram se refugiar em áreas de difícil acesso, os últimos locais ainda não alcançados pela exploração econômica capitalista extrativista. As situações mais desesperadoras acompanham o chamado arco do desmatamento que vai do sul do estado do Amazonas ao Maranhão. A extração madeireira e o desmatamento seguido de queimadas, estratégia para a ocupação da terra pelo gado e pelos monocultivos do agro-

negócio, fazem desaparecer toda e qualquer comprovação da presença humana anteriormente verificada, bem como eliminam as provas de massacres recentemente praticados contra os povos indígenas. A retomada pelos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff dos grandes projetos de infraestrutura dos governos militares pela Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana (IISA) e pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para facilitar o acesso, uso e exploração dos recursos naturais da Amazônia, associa-se à lógica predatória em curso, aprofundada pelo Governo Bolsonaro, restringindo ainda mais os espaços de refúgio dos povos isolados. Nunca é demais lembrar que os grandes projetos da Ditadura Militar para a propagada “integração da Amazônia”, como a construção das hidrelétricas de Balbina e Tucuruí e as estradas Transamazônica (BR-230, do extremo leste do Nordeste à região central do estado do Amazonas), Belém-Brasília (BR-153, também chamada de Rodovia Transbrasiliana), BR-364 (Rodovia Marechal Rondon, ligando São Paulo ao Acre, na fronteira com o Peru), BR-174 (ligando Manaus a Boa Vista) e Perimetral Norte (que pretendia interligar os estados do Amapá, Pará, Amazonas e Roraima) dizimaram as populações de muitos povos isolados na época, levando-os à beira do extermínio, como é, por exemplo, o caso dos Waimiri-Atroari, Yanomami, Arara, Parakanã, Cinta Larga e Nambikwara. Preocupa sobremaneira que ainda hoje os processos

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de licenciamento dos grandes empreendimentos governamentais guardam muita similaridade com aqueles impostos no passado recente pelo autoritarismo militar destinados a atender outros interesses que não os das populações locais. As populações locais, especialmente os povos indígenas, continuam sendo considerados obstáculos ao chamado desenvolvimento, assim como há pouca seriedade nos estudos de viabilidade socioeconômica e ambiental. Diante das exigências do grande capital em assegurar a exploração dos recursos naturais da região, por um lado, e a proteção dos povos indígenas, por outro, o Estado assume um pretenso papel conciliador de interesses. Pretenso, porque invariavelmente os povos indígenas são obrigados

tou pela implementação das obras mesmo perante o risco de genocídio. Muitos grupos indígenas isolados, para manterem a autonomia ou para fugirem da morte, deslocam-se para as áreas mais preservadas, que por vezes são Unidades de Conservação Ambiental ou Terras Indígenas já demarcadas. Frequentemente territórios com registro de povos isolados têm sido declarados como Unidades de Conservação (UCs) ao invés de serem demarcada como Terras Indígenas. Ainda que as UCs possam representar uma certa – porém precária – proteção contra invasões de áreas ocupadas por povos isolados, a opção governamental de criação de UCs e não de TIs reproduz o preconceito de tomar estes indígenas como extensões da Natureza, retirando-lhes a dimensão fundamental de grupos humanos e povos organizados socialmente. Os crimes de genocídio, No Maranhão, os grupos Awá isolados se localizam em aqueles praticados com a terras indígenas já demarcadas. Mesmo assim estão ameaçados de extinção devido à permanente e incontrolável intenção de aniquilar um povo, invasão e exploração ilegal de madeira nessas terras. A atividade madeireira também ameaça os povos isolados na são relativamente frequentes na fronteira do Acre com o Peru, obrigando-os a disputar Amazônia nas últimas décadas. espaço físico com outros povos indígenas, com risco de acirrar disputas de controle territorial e de apropriação de Muitos relatos testemunhais recursos naturais indispensáveis à sobrevivência. Os crimes de genocídio, aqueles praticados com a inde sobreviventes revelam tenção de aniquilar um povo, são relativamente frequentes na Amazônia nas últimas décadas. Muitos relatos testemurequintes de perversidade nesses nhais de sobreviventes revelam requintes de perversidade massacres. nesses massacres. Um desses crimes foi praticado, há cerca de 30 anos, contra o povo Piripkura, localizado na região entre os rios Branco e Madeirinha, no estado do Mato a ceder nas encenações de audiências públicas e “consultas Grosso. Dos três sobreviventes conhecidos, Rita, a única prévias” estabelecidas por lei. Isso fica evidente nos Es- mulher, lembra que: tudos de Impacto Ambientais (EIA) e Rima para o licenHomens armados invadiram sua aldeia de madrugada. Sua ciamento das hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, e tia foi morta a tiros enquanto dormia na rede. Seu pai foi decaJirau e Santo Antônio, no rio Madeira. Dois casos escandapitado, assim como várias crianças, homens e mulheres da tribo. losos de desrespeito aos direitos indígenas. A aldeia foi incendiada [e que, embora tenha conseguido fugir,] No caso de Belo Monte, a Fundação Nacional do Índepois de um tempo vagando pela floresta acabou sendo forçada dio (Funai) forjou as consultas às comunidades indígenas a conviver com a nossa sociedade. (MILANEZ, 2010, p.1). considerando encontros de informação promovidos por seus funcionários sobre o projeto como sendo os espaços Na região de Corumbiara, no sul de Rondônia, localipara o consentimento livre, prévio e informado dos indígenas, como estabelece dispositivos legais internacionais. zam-se os oito sobreviventes dos massacres praticados, na E, no caso das obras no rio Madeira, os estudos chegam década de 1980, contra os povos Kanoê e Akuntsu contaa mencionar a existência de cinco grupos de índios isola- tados pela Funai em 1995, bem como o chamado “índio do dos na área de influência do projeto, mas a Funai deu o buraco”, possivelmente a única pessoa viva de seu povo. seu aval mesmo não conhecendo nada sobre a realidade Apesar dos fortes indícios sobre a autoria desses crimes, desses povos e muito menos sobre as consequências que que apontam para fazendeiros e políticos da região que se iriam sofrer por contra da construção das hidrelétricas. De apossaram das terras onde esses povos viviam, ninguém modo resumido, no caso de Belo Monte, os indígenas fo- foi indiciado ou preso. Dessa chacina resta o documentário ram enganados; no caso do rio Madeira, os índios isolados “Corumbiara” para manter viva, nas mentes e corações, foram condenados à morte pelo Estado brasileiro que op- essa vergonhosa história de massacres contra os povos in48 Resistências


dígenas, que continuam a ser repetidos na Amazônia2. São muitas as situações em que as terras ocupadas pelos povos isolados foram recentemente usurpadas. Dois relatos de agentes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) retratam essa realidade. No município de Lábrea, Amazonas, [...] no igarapé Jacareúba, habitat e antigo coração das terras Katawixi, encontra-se hoje a vila Seringarana, um assentamento do Incra... É praticado um tipo de ecoturismo, com hotel de dois andares, acomodações e programas de pescaria turística... Que loucura, que dor no coração, estamos no habitat tradicional dos índios Katawixi. (KROEMER, 2008, p.4).

Na região dos municípios de Aripuanã e Colniza, no norte do Mato Grosso, Nota-se que, à medida que a mata está sendo derrubada e instaladas fazendas e o projeto de Assentamento Conselvan, os índios estão recuando. Já não apareceram mais nos últimos dois anos nesta região entre os rios Guariba e Branco [...]. (CHRIST, 2005, p.1).

que aqueles povos nunca estiveram nas terras que receberam em recompensa pela violência que praticaram. Fazem coro com os demais latifundiários contra a demarcação de terras indígenas e contra toda e qualquer medida de proteção adotada pelo poder público. Esbravejam contra as entidades da sociedade civil que apoiam os direitos indígenas taxando-as de inimigas da pátria a serviço de interesses internacionais. Querem, enfim, o aval do Estado, e por vezes têm conseguido, para continuar matando tudo o que atravessa em seu caminho (seja gente ou floresta) em busca do lucro fácil para satisfazer a sua ganância. A análise da mobilidade forçada dos grupos indígenas isolados mostra uma evidência inquestionável: a conquista da Amazônia continua através de um violento e silencioso processo de expropriação de terras. As maiores vítimas, os povos indígenas isolados, por motivos óbvios, não batem nas portas do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional, do Poder Judiciário, Ministério Público Federal (MPF) e nem são ouvidos pelos meios de comunicação para denunciar os crimes de genocídio de que historicamente são vítimas. Também não cobram que seja respeitado o Artigo 231, § 5.º da Constituição Federal, que declara:

Nos dois casos, ainda que tardiamente, depois que a maior parte desses territórios foi usurpada, a Funai começou a adotar medidas de proteção. Em relação aos Katawixi

A análise da mobilidade forçada dos grupos indígenas isolados mostra uma evidência inquestionável: a conquista da Amazônia continua através de um violento e silencioso processo de expropriação de terras. criou uma área de restrição de uso, mas sem uma fiscalização permanente, onde a terra continua exposta a invasões de extrativistas; e na região de Aripuanã criou uma Base de Proteção Etnoambiental (BAPE) e encaminhou o processo de demarcação da terra desse povo indígena isolado, conhecido como Kawahiva do Rio Pardo. Mesmo assim, as ameaças de invasão da terra indígena por madeireiros e grileiros são constantes. Com o avanço da modernização sobre a Amazônia, os índios vão desaparecendo dos seus territórios ancestrais. Os novos donos, muitas vezes os seus assassinos, juram

É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

No entanto, nada disso justifica a indiferença. Cabe à sociedade brasileira dizer se, como cúmplice do extermínio de povos indígenas, continua a legitimar a devastação da Amazônia e tudo o que nela existe, ou se pretende desautorizá-la. Neste caso, o primeiro passo é contrapor-se ao imediatismo do desenvolvimento extrativista, da exploração predatória dos recursos naturais e da acumulação em detrimento da redistribuição de benefícios, lógicas perversas que associam os povos indígenas ao passado. E depois, apropriando-se do sentido do “Bem-Viver” desses povos, que organizaram a sua relação harmoniosa com o meio ambiente, reproduzir a equidade, princípio social capaz de assegurar a vida das gerações futuras. Versão modificada de artigo publicado no livro Povos indígenas isolados na Amazônia. A luta pela sobrevivência, Guenter Francisco Loebens e Lino João de Oliveira Neves (Orgs.). Manaus: EDUA, 2011. p. 26-31. 2 Corumbiara. Documentário de Vincent Carelli. 127 minutos. Brasil, 2009. O filme é fruto de 20 anos de pesquisa que busca recuperar a versão destes índios massacrados pelos latifundiários e garantir o seu direito à terra em que vivem. CHRIST, Lourdes Catarina. Terra Indígena Rio Pardo; Ano 2005, 28 de abril e 27 de maio [Relatório]. Porto Velho: Cimi Regional Rondônia, 2005. KROEMER, Gunter. Minhas viagens 2006-2008. Manaus: Cimi Regional Norte I, 2008. MILANEZ, Felipe. Genocídio na selva: o massacre a nações indígenas. Disponível em:https://acervo.racismoambiental.net.br/2010/07/02/genocidio-na-selva-omassacre-a-nacoes-indigenas/. Acesso em 27.08.2020. 1

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FALÁCIAS DO DESENVOLVIMENTO

Grandes projetos:

a destruição do modo de vida amazônico1

Emilia Altini Missionária do Conselho Indigenista Missionário Cimi Regional Rondônia ealtini@bol.com.br

Volmir Bavaresco Missionário do Conselho Indigenista Missionário Cimi Regional Rondônia volmircba@gmail.com

Estado de Rondônia conta com uma rica diversidade cultural, um legado para a História e para as gerações futuras. A riqueza do presente também é marcada pela cor vermelha, representando o sangue de inúmeras vidas, de povos indígenas já extintos, de outros que resistem sob o regime da impunidade e da exploração de políticos e latifundiários, que se apropriam das suas terras, sua história e suas vidas. As práticas de extermínio das populações indígenas, originárias do território brasileiro, vêm se reproduzindo há mais de meio século. Esses grupos indígenas sobrevivem teimosamente num espaço cada vez mais violado pelo barulho das motosserras, dos tratores e dos caminhões. Em nome do progresso, do desenvolvimento, do lucro, nos lugares mais distantes da Amazônia se reproduz a estrutura de dominação através da violência, da exploração e da concentração de terra e poder. À lógica da acumulação vem associada a impunidade, marcada pelo silêncio genocida. As florestas que poderiam contar essa história de sangue são devastadas, apagando 50 Resistências

todo e qualquer vestígio da presença humana. A vida dos índios desaparece na calada da noite. As políticas governamentais se mostram incapazes de proteger a riqueza da diversidade cultural vivida no interior das matas, ao mesmo tempo em que continuam autorizando megaprojetos que alcançam os últimos refúgios desses povos, condenando-os ao extermínio. A grande mobilidade que esses pequenos grupamentos humanos são forçados a adotar pela necessidade de se ocultar como única via de sobrevivência tem repetidamente servido de argumento aos invasores dos territórios indígenas para negar sua existência ou para afirmar que se trata de “implante de índios”. Muitos desses invasores se beneficiaram de titulações governamentais nos idos das décadas de 1970 e 1980, justamente no período em que as ações genocidas contra esses povos foram intensificadas no estado de Rondônia. À época, o projeto desenvolvimentista da Amazônia – tratada como “terra sem homens”, para a qual seria necessário alocar “homens sem terra”, ignorando a milenar


Os invasores dos territórios indígenas na Amazônia se dedicam à “limpeza da terra”, a afugentar os indígenas de suas terras ou exterminá-los, e quando alcançam o objetivo são recompensados com o registro em seus nomes de terras até então pertencentes aos indígenas.

alerta de genocídio”, de janeiro de 2010, de lideranças indígenas e organizações da sociedade civil, destaca: Os métodos facínoras usados com requintes de crueldade, como o incêndio de aldeias, derrubada de moradias com tratores de esteira, envenenamento com raticida e outros venenos misturados a alimentos ofertados, escravismo e abuso sexual, execuções sumárias por armas de fogo, caçadas humanas e torturas de todo tipo, são lembrados em testemunhos antes silenciados pelo medo, mas que ficaram guardados na memória e são hoje relatados pelos últimos sobreviventes de povos indígenas recentemente contatados em Rondônia. (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2010, p.1.)

Percebe-se pelos relatos que a estratégia dos grupos de extermínio a serviço de grileiros, madeireiros e fazendeiros, era acabar com todo e qualquer vestígio de presença presença indígena – promoveu a ocupação ilegal e a grila- indígena para inviabilizar a demarcação de terras indígenas, gem de terras por parte de latifundiários e exploradores, liberando-as para a apropriação privada, a exploração dos egressos em sua maioria do Centro-Sul do país. Concomi- recursos naturais, a pecuária, o agronegócio e a implantatantemente, consumou-se uma brutal “limpeza territorial e ção de obras de infraestrutura como hidrovias, hidrelétriétnica” por meio de repetidas chacinas de inúmeros povos cas e estradas. indígenas. Trata-se de fatos recentes registrados nas últimas déDirigido ao Presidente da República e a outras autori- cadas, que envergonham os cidadãos de bem no contexto dades, o documento “Índios isolados em Rondônia e no Brasil: de um Brasil que se julgava imerso num estado democráAmazônia: vidas ameaçadas 51


Constitui grave ameaça à sobrevivência dos povos isolados os impactos da construção das hidrelétricas sobre as terras inundadas, que acarretam a destruição dos recursos naturais e provocam fluxos migratórios para novas ocupações expondoos a todo tipo de violência. tico de direito. Os invasores dos territórios indígenas na Amazônia se dedicam à “limpeza da terra”, a afugentar os indígenas de suas terras ou exterminá-los, e quando alcançam o objetivo são recompensados com o registro em seus nomes de terras até então pertencentes aos indígenas. A violência contra os povos indígenas atinge limites extremos O chamado “Índio do Buraco”, último sobrevivente conhecido de um povo massacrado, apesar de protegido legalmente pela interdição da Terra Indígena Tanarú, nos municípios de Corumbiara, Chupinguaia, Parecis e Pimenteiras do Oeste, em Rondônia, vivendo sozinho na floresta, num buraco sobre o qual constrói uma pequena maloca para se proteger, sofreu um atentado à bala, em novembro de 2009, por pistoleiros. Essa ação criminosa praticada por mandatários da região não é exceção. Não distante dali, na Terra Indígena Omerê, os poucos - e últimos - indígenas Akuntsú e Kanoê depois de terem as suas terras expropriadas enfrentam graves problemas de saúde, que tornam inviável a sua sobrevivência física e cultural. (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2010). Programas, projetos e políticas governamentais colaboraram ou foram omissos com a prática de extermínio dos povos indígenas nos anos 1980, década da destruição de Rondônia, com a implantação do Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste), centrado no asfaltamento da BR-364 (Rodovia Cuiabá-Porto Velho). A partir de 1995, o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro), projeto nascido do fracasso do antecessor Polonoroeste, continuou o massacre dos povos. Apesar de conhecida a presença de diversos povos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) 52 Resistências

não regularizou os territórios. Por outra parte, aqueles que estavam à frente de interesses de apropriação das terras indígenas continuaram a empreender ações de devastação ambiental para eliminar os indícios de presença dos povos isolados e promover o seu extermínio. Os povos isolados e o complexo hidrelétrico do rio Madeira Em encontros e audiências públicas relacionados ao complexo hidrelétrico do rio Madeira e também em documentos encaminhados ao Ministério Público Federal, Ibama e à própria Funai, foi relatada a existência de quinze povos em situação de isolamento e risco de extinção no Estado de Rondônia. Dos 10 dentre esses povos que têm seus territórios tradicionais na Bacia do rio Madeira, cinco sofreram o impacto decorrente da construção das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, que conformam o Complexo do Madeira. Nos estudos para o licenciamento dessas duas hidrelétricas não foram considerados os povos indígenas isolados da região, cujos vestígios foram estudados pela Funai na época do Planafloro. Além de omitir nos estudos a presença de outros povos, após o início da obra, a Funai admitiu a presença de povos indígenas isolados na região atingida pelo lago do Complexo do Madeira. Muito mais do que um erro de projeto, essa foi uma omissão criminosa da Funai, uma vez que, com a formação do lago das usinas, o mais provável é que as populações desconhecidas dos grupos isolados tenham sido exterminadas sob as águas do reservatório. As barragens no Madeira, principal formador do rio Amazonas no território brasileiro, não têm apenas a perspectiva da geração de energia elétrica, mas também de permitir a navegação no trecho do rio acima da cidade de Porto Velho, através dos rios Orthon, Madre de Diós, Beni, Mamoré e Guaporé, complementando até a Bolívia a hidrovia atualmente existente de Itacoatiara, no Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia. O objetivo maior é avançar sobre vastas extensões de terra, tanto no Brasil quanto na Bolívia, com os monocultivos, principalmente da soja. Os dois empreendimentos (UHE Santo Antônio e Jirau) estão localizados no município de Porto Velho. Muitos aglomerados populacionais próximos à cidade e em toda a extensão do rio, tendo como atividade econômica predominante a agricultura de subsistência e a pesca, foram impactados com a construção das hidrelétricas e a formação das suas respectivas represas, que alteraram o regime de águas do rio Madeira. Constituem grave ameaça à sobrevivência dos povos isolados os impactos da construção das hidrelétricas sobre as terras inundadas, que acarretam a destruição dos re-


cursos naturais e provocam fluxos migratórios para novas ocupações expondo-os a todo tipo de violência. Os dados da própria Funai indicavam a existência de cinco povos indígenas “livres ou em situação de isolamento” que estão em perigo de extinção devido à construção do complexo hidrelétrico do rio Madeira. O território tradicional do povo Katawixi ficou quase integralmente dentro do Parque Nacional Mapinguari e com uma pequena parte dentro da Resex Ituxi. É importante citar que o artigo 8º do Decreto de criação do Parque Nacional Mapinguari dispõe o seguinte: “Fica facultada à Fundação Nacional do Índio - Funai a continuidade dos levantamentos da área de ocupação dos grupos indígenas isolados nos limites do Parque Nacional Mapinguari”. (BRASIL, 2008). Portanto, o governo sabia da presença nessa região desse e dos demais povos indígenas em situação de isolamento nas proximidades do rio Madeira. Mesmo assim, sem buscar nenhuma informação a mais sobre os riscos para a sobrevivência desses povos, a construção das barragens foi autorizada, e já se encontram em operação. Para os interesses do desenvolvimento regional, toda a riqueza natural da fauna e flora, e da cultural dos povos indígenas e populações tradicionais pode desaparecer. Só não se pode admitir a perda da realização de lucro das empresas multinacionais empreiteiras e do agronegócio. É intolerável que a sociedade e o Estado brasileiro continuem a compactuar com o genocídio dos últimos povos isolados em território nacional que vem se processando em pleno século XXI. Tais povos, independentemente de sua

fragilidade demográfica – fruto de séculos de extermínio silencioso no país –, são parte importante da matriz cultural, social e humana da nação brasileira. São sobreviventes, testemunhos heroicos da resistência indígena, e constituem patrimônio humano, cultural, histórico e espiritual do povo brasileiro e da Humanidade. Os povos indígenas no Brasil têm o direito, garantido na Constituição, de viverem em paz, sob a proteção efetiva do Estado e do modo que sua perspectiva humana lhes indique que seja a sua forma própria de continuar a viver. É inaceitável que, embora juridicamente protegidos pelo Estado, os povos indígenas em situação de isolamento no Brasil permaneçam ignorados pelos investimentos desenvolvimentistas, pressionados e ameaçados pela exploração desmedida dos últimos nichos preservados de suas florestas e vitimados, ainda, pelos mais torpes métodos de extermínio que a impunidade estimula. É inaceitável que em nome de um pretenso “desenvolvimento regional” os povos indígenas e populações ribeirinhas amazônicas continuem a ter os seus modos de vida destruídos sem que lhes seja permitido usufruir os benefícios de um progresso que não lhes alcança. Uma versão ampliada deste artigo está publicada em: LOEBENS, Guenter Francisco; NEVES, Lino João de Oliveira (orgs.) Povos indígenas isolados na Amazônia: a luta pela sobrevivência. Manaus: EDUA, 2011. p. 87-98. BRASIL. Decreto de 05 de junho de 2008. Dispõe sobre a criação do Parque Nacional Mapinguari, nos Municípios de Canutama e Lábrea, no Estado do Amazonas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/Dnn/Dnn11612.htm. Acesso em 16 de julho de 2020. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. [2010]. Disponível em: http://www. cimi.org.br/?system=news&action=read&id=4360&eid=355. Acesso em 16 de julho de 2020.

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POLÍTICAS PÚBLICAS EQUIVOCADAS

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POLÍTICAS PÚBLICAS EQUIVOCADAS

Sob a tutela dos governos neoliberais,

a sobrevivência da Resex Chico Mendes está por um fio Moisés Silveira Lobão Centro de Ciências Biológicas e da Natureza Universidade Federal do Acre moiseslobao6@gmail.com

Manoel Estébio Cavalcante da Cunha Centro de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal do Acre mcavalcantedacunha@gmail.com

Leila Priscila Peters Centro de Ciências Biológicas e da Natureza Universidade Federal do Acre leilappeters@gmail.com

Resex Chico Mendes, localizada no Estado do Acre, completou 30 anos de criação no último dia 12 de março de 2020. Nascida da luta de seringueiros e seringueiras e de outras categorias de extrativistas, nas décadas de 1970 e 1980, hoje ela vive sob grande ameaça devido à pressão de desmatamento e incêndios promovidos por fazendeiros e grileiros, autorizados de forma velada pelos governos federal e estadual, além de ocupada por pessoas não autorizadas nos planos de uso e que desenvolvem atividades predatórias alheias ao extrativismo e à agricultura de subsistência de seus ocupantes históricos. Dados do Boletim do desmatamento da Amazônia 56 Resistências

Legal (janeiro 2019) SAD1, relativos ao período de agosto a outubro de 2018, indicam que dentre as Unidades de Conservação Federais que mais sofreram ameaça devido a queimadas e desmatamento estão a Resex Chico Mendes (AC) e a Flona do Iquiri (AM). Além disso, a Resex Chico Mendes esteve também no topo da lista no calendário de desmatamento do ano de 2017 e, por isso, segue como uma das áreas de proteção mais ameaçadas da região amazônica. A constatação do que foi abordado acima se materializa a partir do trabalho de extensão realizado pelos autores em 2016, em parceria com a associação dos moradores da


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Resex Chico Mendes e o sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri, onde realizamos visitas “in loco” na Resex Chico Mendes para que a partir da percepção adquirida nessas visitas, pudéssemos verificar a concepção do manejo sustentável da floresta defendido pelas lideranças ali existentes e verificar durante esses quase 30 anos de sua existência, o que havia mudado a partir das políticas dos governos federal e estadual. Pelas entrevistas realizadas pode-se conhecer um pouco da história da luta dos seringueiros e seringueiras do Acre, que culminou na criação das Resex. Essa luta traduzida no “empate” representou o confronto entre aqueles que lutavam isolados pela preservação de suas vidas e da floresta contra aqueles que queriam explorar os trabalhadores e destruir a floresta, a fauna e as culturas ali existentes. Nesses confrontos Wilson Pinheiro, Calado, Ivair Higino, Chico Mendes e muitos outros deram suas vidas para que o mundo compreendesse a importância da ação coletiva, da fraternidade e da solidariedade, e foi dessa força que surgiu a estratégia dos empates, cuja principal arma era a consciência, a solidariedade e a confiança entre os seringueiros, suas mulheres e filhos.

o ecossistema, extraindo da natureza somente o necessário para sua sobrevivência básica, sendo, portanto, a principal proposta de defesa da Floresta Amazônica até então.

Os empates surgiram na década de 1970, na transição do extrativismo para a pecuária, quando a borracha nativa foi desvalorizada, ficou sem mercado, com os seringalistas falidos. Então, o governo do Estado, no diapasão da política de ocupação da Amazônia desenvolvida pelos governos militares, que vendiam a ideia de que a Amazônia era um grande vazio demográfico, tendo à época cunhado o refrão ‘Integrar para não entregar!’, fez uma grande propaganda das terras do Acre. Os seringais foram adquiridos a preços muito baixos e quando ocorre a chegada dos novos donos das terras, que eram de fora da região, a maioria proveniente das regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste, estouram conflitos pela posse da terra2.

A reserva extrativista foi idealizada como um modelo de reforma agrária que atendesse as especificidades do seringueiro, por eles já saberem que o loteamento não os atende, porque seringueiro não vira agricultor. Pelo motivo dessas pessoas não estarem habituadas à agricultura, elas foram educadas para o extrativismo4.

E foram dos empates que se idealizaram as “reservas extrativistas”, cuja propriedade continuaria sendo do Estado Brasileiro e o seu usufruto seria dos povos da floresta: os seringueiros, os indígenas, os ribeirinhos, os castanheiros, dentre outros que mantinham uma relação profunda com 58 Resistências

Esse posicionamento de resistência dos seringueiros veio a partir da necessidade de sobrevivência, por nos considerarmos os verdadeiros donos dessa floresta, pois nós nascemos e nos criamos dentro da floresta e nossos pais e avós vieram para cá para auxiliar no esforço de guerra e melhoria de vida de toda a população de nosso país3.

Porém, muitas coisas mudaram no decorrer dos 30 anos da criação da Resex Chico Mendes, dentre elas, citadas nas entrevistas, algumas modificações na legislação que feriram a gestão coletiva, antes construída de baixo para cima, e não levaram em conta os interesses, os costumes e a cultura dos povos da floresta. Também algumas políticas desenvolvidas pelos governos federal e estadual, que geraram conflitos de interesses entre a obtenção de lucros financeiros e a proposta de preservação da floresta e organização social dos moradores da Reserva Extrativista Chico Mendes.

A partir desse diálogo com as principais lideranças da Resex Chico Mendes pode-se constatar que as pessoas mais antigas resistem à ofensiva do capital. Mesmo com todas as dificuldades, continuam a sobreviver frente ao avanço da exploração madeireira e da criação de gado dentro da Reserva Chico Mendes. A reserva durante todo esse tempo foi mudando. Quando começou a se criar os núcleos de base social, com a implantação de escolas e outros espaços de atendimento à população, iniciou-se a implementação de políticas governamentais com o


objetivo da melhoria da qualidade de vida dos moradores da reserva. Mas tudo foi feito a partir do pensamento de quem está de fora da reserva, fazendo com que os moradores sempre dependessem de alguém de fora para que as coisas acontecessem5.

gestor nunca está presente na reserva para tentar resolver esses problemas de perto. Por isso eu prevejo que daqui uns cinco anos, se nada mudar, provavelmente nós não teremos mais nenhuma floresta para pelo menos nos dar uma sombra7.

Nestas entrevistas constata-se que cresce dentro da comunidade o individualismo e o enfraquecimento do trabalho coletivo, fato que tem levado a desobediência de regras dos planos de uso da Reserva, incluindo aí o desmatamento ilegal e um aumento de áreas reservadas para implantação de pastagens para criação de gado. Isto foi incentivado indiretamente pelos governos que, ao abrirem crédito a esses moradores da reserva extrativista, fez com que eles mudassem seu modo de produção para pagar esses financiamentos aos bancos e aos próprios governos, através de impostos e outras taxas governamentais impostas a eles.

Frente às falas dos seringueiros que ainda resistem, há uma constatação estarrecedora: segundo eles, se o ritmo de desmatamento continuar do jeito que está na Resex Chico Mendes, em menos de uma década, praticamente, não teremos mais a floresta em pé, o que não só é grave sob o ponto de vista histórico, pois a Resex Chico Mendes tem um simbolismo do legado de Chico Mendes, Wilson Pinheiro e vários outros seringueiros, que deram sua vida para a sua conquista, mas principalmente sob o ponto de vista ambiental, já que a região onde está inserida a Resex Chico Mendes resistiu bravamente desde a década de 1970 ao arco do desmatamento, o que fez com que essas áreas permanecessem protegidas. Mas agora toda essa grande conquista parece estar por um fio de ser desmantelada pela ganância do lucro rápido e fácil da exploração madeireira empresarial e principalmente da criação extensiva de gado na Amazônia.

Com os benefícios dados pelo governo e com os programas de financiamento dos bancos, que não diferenciam o produtor rural do extrativista da reserva, esses passam a não mais frequentar as reuniões das associações para trabalhar de forma cooperada e passam a fazer um trabalho individual, aumentando sua área de desmatamento, principalmente para criar gado, pensando em gerar maior lucro para conseguir o dinheiro a fim de pagar o financiamento que ele fez no banco6.

Portanto, os relatos aqui apresentados estão marcados por grandes intranquilidades frente à incerteza de sobrevivência das comunidades tradicionais e da manutenção da floresta dentro da reserva Extrativista Chico Mendes. Estes personagens falam com bastante desconforto em deixar os seus costumes, sua cultura e seu modo de vida para sobreviver de outras formas de trabalho que não o extrativismo ou de serem obrigados a mudarem para a cidade devido à falta de infraestruturas mínimas de saúde, educação e escoamento de sua produção. O ICMBIO (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) não traz nenhuma alternativa aos moradores para que esses possam ter uma renda para sua sobrevivência, o que gera cada vez mais desmatamento ilegal. Além disso, o

IMAZON. Sistema de Alerta do Desmatamento. 2019. Disponível em https:// imazon.org.br/publicacoes/boletim-do-desmatamento-da-amazonia-legal-janeiro2019-sad/. Acesso em 06.07.2020. 2 Entrevista realizada com Dercy Telles, seringueira, uma das principais lideranças da Resex e ex-presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri. 3 Entrevista com Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, seringueiro, uma das principais lideranças da Resex e primo de Chico Mendes. 4 TELLES, op cit. 5 Entrevista com Sebastião Pereira da Silva, o Tião do Moisés, seringueiro, umas das principais lideranças da Resex e presidente da Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes em Xapuri – AMOPREX. 6 SILVA, op cit. 7 Idem. MUDANÇAS NOS ÚLTIMOS 26 ANOS NA RESERVA CHICO MENDES. Entrevistador: Manoel Estébio Cavalcante da Cunha. Entrevistado: Sebastião Pereira da Silva. Seringal Rio Branco – Xapuri, Acre, em 24.07.2016. OS IDEAIS DA CRIAÇÃO DA RESERVA PERMANECEM? Entrevistador: Moisés Silveira Lobão. Entrevistado: Raimundo Mendes de Barros. Seringal Rio Branco – Xapuri, Acre, em 23.07.2016. LUTA E CRIAÇÃO DA RESERVA. Entrevistador: Moisés Silveira Lobão. Entrevistada: Dercy Telles. Seringal Pimenteira – Xapuri, Acre, em 22.07.2016. 1

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POLÍTICAS PÚBLICAS EQUIVOCADAS

Saúde e ambiente no Amazonas: desafios e soluções Marcus Barros Médico e professor da Faculdade de Medicina Universidade Federal do Amazonas (Ufam) marcusbarrosobarros@hotmail.com

política de saúde para a Amazônia deve distinguir-se de todas as outras regiões brasileiras já que tem características próprias, especialmente quanto ao clima, à densidade demográfica e a uma aparente homogeneidade geográfico-espacial, que abriga grande diversidade étnica, cultural e biológica. As “diferentes” Amazônias, no entanto, não se constituem obstáculos às ações sincronizadas de suas partes, na formulação de políticas que procurem buscar soluções para os grandes desafios dessa região continental. O fim último de todos os danos ambientais sobre o homem tem como resultado a doença. Assim, evitar que tais danos ocorram, ou repará-los, são ações que sempre me preocuparam como contribuição ao desenvolvimento da Amazônia, pela vertente do homem. O Amazonas, portanto, sempre foi o foco prioritário de meus estudos e de minha atuação profissional em educação, meio ambiente e saúde. Essas quase cinco décadas em que dividi meu tempo entre a produção científica, o exercício da medicina e a formação de recursos humanos para a saúde, além da gestão institucional, me trazem a certeza de que uma adequada política de saúde pública para a Amazônia tem, necessa60 Resistências

riamente, que considerar a complexa realidade do ecossistema, além da indissociável relação da área de saúde com o meio ambiente e a educação. Para cada desafio desses, tentei encontrar as soluções que considerei mais adequadas e possíveis, dentro das limitações que se apresentaram. A concepção imediatista e utilitarista do desenvolvimento redundou não apenas na redução dos recursos naturais, como também em injustiças e pobreza para as populações locais, com os conflitos por terra e os altos índices de enfermidades, entre as quais algumas que, erradicadas no primeiro mundo, como a hanseníase, ainda assolam as populações empobrecidas de nossa região. Os desafios se ampliam a cada dano socioambiental e seu enfrentamento inclui o combate ao narcotráfico, de dimensões pan-amazônicas e toda a violência que o acompanha. Estou convencido, portanto, de que a destruição da natureza ultrapassa a esfera ambiental e atinge todos os setores: saúde, economia, defesa, justiça, educação... Como médico especialista em doenças tropicais, presenciei a crescente agressão à Amazônia. Assisti de perto ao produto de quase todos os grandes projetos que avançaram por sobre a região. Daí, concluí que as doenças contra as quais eu lutava diariamente vinham da relação


do homem com o ambiente degradado. Além da malária dos garimpos, chegaram a nós, no Instituto de Medicina Tropical e na Universidade Federal do Amazonas, ainda na década de 1980, cerca de quinze mil casos de leishmaniose tegumentar, oriunda dos grandes projetos e da explosão demográfica da periferia de Manaus. Essa doença é um dos mais significativos paradigmas da resposta direta da natureza ao agressor e a escolhi como área de concentração, logo no início de minha carreira de médico-pesquisador. Busquei então apresentar soluções, pelo menos as pontuais que poderiam estar ao meu alcance, desenvolvendo uma produção científica que expressasse minha observação cotidiana da patologia tropical e sua relação direta com a ocupação desordenada do espaço regional. Esse registro se dá de forma abrangente, no campo da clínica, das grandes endemias, nos trabalhos de campo, nos laboratórios de pesquisa e na Unidade Hospitalar. Em colaboração com o professor Sinésio Talhari, da Universidade Federal do Amazonas, expandimos a área de pesquisa para o estudo da Pinta (Treponema carateum), principalmente entre os índios Tikuna, no Alto Solimões. Levantamos também a grande maioria dos casos de hanseníase naquela área, entre Tonantins até Tabatinga, instituindo a terapêutica adequada para controle da infecção. Este trabalho produziu também o primeiro livro sobre a doença no Amazonas. Continuando o trabalho com Leishmaniose, buscamos novas formas de tratamento, a fim de minorar o extenuante uso de antimoniais pentavalentes injetáveis (até 100 ampolas em média para os casos de agressão às mucosas).

Dos 16 enfermos, 15 haviam morrido e dois desses eram turistas estrangeiros, com passagem rápida pela periferia selvática de Manaus. A cobertura vacinal de 82% em 1996 fez com que não houvesse mais casos de febre amarela na região, naquele ano. Foram testadas várias drogas, até chegarmos à pentamidina, que agora cura os enfermos com cinco injeções. Já a forma visceral da Leishmaniose, o calazar, ainda não havia atingido a Amazônia Ocidental. Em 1989, em colaboração com o grupo de pesquisadores que ajudei a formar, no Instituto de Medicina Tropical, descrevemos os primeiros casos dessa epidemia, no Estado de Roraima, em região de ocupação garimpeira, em terras indígenas Macuxi, Wapixana e Yanomami. A difusão dos resultados e as medidas de controle foram fatores significativos para a estabilização da transmissão do calazar naquela área. Ao retomar as atividades docentes e de pesquisa no InsAmazônia: vidas ameaçadas 61


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Agrava-se a situação de contagio pela invasão de suas terras por grupos de garimpeiros e trabalhadores custeados por madeireiros e fazendeiros (pecuaristas e agricultores de plantio extensivo), que são os portadores, em potencial, do vírus que é disseminado entre os povos autóctones. tituto de Medicina Tropical, em 1995, detectei, por demanda hospitalar espontânea de pacientes, um surto epidêmico de febre amarela silvestre, numa área de 200 km de raio, a partir de Manaus. Essa arbovirose, na forma silvestre, estava controlada no Estado do Amazonas desde 1984. Como Manaus é infestada pelo transmissor da forma urbana da doença (Aedes aegypti), apenas a presença de um homem com o vírus no sangue, vindo do interior, seria suficiente para disseminar a virose em Manaus. (O último surto de febre amarela urbana no Brasil havia ocorrido em 1942, no então Território Federal do Acre). Os dados dessa observação foram publicados na revista inglesa The Lancet. Em audiência com o Ministro da Saúde Adib Jatene, ainda em 1995, conseguimos que ele inserisse a febre amarela no Plano Nacional de Imunização, apontando a necessidade de vacinar a população da Amazônia, que estava protegida apenas em 24%. Dos 16 enfermos, 15 haviam morrido e dois desses eram turistas estrangeiros, com passagem rápida pela periferia selvática de Manaus. A cobertura vacinal de 82% em 1996 fez com que não houvesse mais casos de febre amarela na região, naquele ano. Já neste século XXI (2016-2017), uma vez que o Sudeste brasileiro (principalmente Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro) não havia sido protegido pela vacinação, por não se constituir até então como área endêmica, essa região sofreu importante epidemia em suas áreas rurais. O estado do Amazonas, por ter recebido aquela vacinação de 1996, contraditoriamente, apresentou-se com número inexpressivo de casos novos de febre amarela. Paralelamente ao trabalho na Ufam e FMT-HVD, demos início às atividades do Escritório Regional da Fiocruz em Manaus, embrião do atual Centro de Pesquisas Leôni-

das e Maria Deane - a Fiocruz-Amazônia, instituição que tem como meta estudar a sociobiodiversidade da Amazônia Ocidental, formar recursos humanos em nível de pós-graduação e propor políticas de saúde para a região. Para dar consequência aos princípios e estratégias na área de meio ambiente, foi importante a oportunidade de ter dirigido o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, por quase cinco anos (2003-2007), quando conseguimos reduzir o desmatamento na região amazônica de 26% para 12%. Isso provavelmente deve ter contribuído para a redução das doenças endêmicas oriundas desse dano ambiental. Há mais de um século, no período de 1918-1919, o estado do Amazonas foi também atingido pela pandemia chamada “Gripe Espanhola”, que levou a óbito cerca de 10% da população do estado, ou seja, cerca de seis mil pessoas. Pandemia semelhante nos atinge nos dias atuais, pleno início do século XXI, agora causada por outro vírus respiratório, o novo coronavírus, cuja transmissão pandêmica acompanha o mesmo curso de difusão daquela de um século atrás. Desde o início da pandemia, no início de 2020, até 19 de julho, a Secretaria de Estado de Saúde divulgou um total de mais de noventa mil e novecentos casos confirmados de Covid-19 e mais de três mil óbitos causados pela doença no estado do Amazonas. Diante desse quadro é grande nossa preocupação, especialmente com as populações indígenas, levando em conta a imunodeficiência desses povos, principalmente quanto às infecções respiratórias agudas. Agrava-se a situação de contágio pela invasão de suas terras por grupos de garimpeiros e trabalhadores custeados por madeireiros e fazendeiros (pecuaristas e agricultores de plantio extensivo), que são os portadores, em potencial, do vírus que é disseminado entre os povos autóctones. Segundo dados do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Saúde do Amazonas, desde o início da pandemia até o dia 19 de julho, chega a 2.339 o número de índios aldeados contaminados pelo novo coronavírus e 63 mortes em decorrência da doença (Covid-19), no Estado. Em um mês houve um aumento de 117% de infectados, mesmo com as tentativas de bloquear o acesso de não índios às áreas indígenas. Como as doenças perpassam as linhas de fronteira torna-se necessário que o Brasil intensifique os laços entre os países amazônicos, como o fizeram ao sul do continente, porque só assim a complexidade dos problemas a enfrentar terá um fórum de deliberação ampliado, adequado e consentâneo. Acredito que a cooperação institucional em todos os níveis, especialmente entre os países que compõem a Pan-Amazônia, seja fundamental. As soluções devem ser globais, no plano regional. Amazônia: vidas ameaçadas 63


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AMAZÔNIA PARA QUEM?

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AMAZÔNIA PARA QUEM?

Povos indígenas

e a intolerância da “comunhão” nacional Luiz Fernando de Souza Santos Departamento de Ciências Sociais Universidade Federal do Amazonas (Ufam) luizfernando@ufam.edu.br

o presente artigo, em diálogo com o tema “Amazônia para quem?”, o escopo da reflexão se delimitará ao período histórico em que a Amazônia se torna objeto das políticas autoritárias, extensivas e repressivas, do Estado brasileiro no reforço da subordinação da região aos interesses do capital monopolista. Em seguida, será refletido sobre como tal subordinação se projeta no século XXI e se manifesta, em plena pandemia do novo Coronavírus, numa necropolítica que coloca os povos indígenas sob o signo sombrio da destruição e da morte. Uma das marcas da formação da sociedade brasileira é o medo-pânico que suas elites têm daqueles que ocupam o pior lugar na estrutura social. O negro, o camponês, a mulher, os operários, a juventude e os povos indígenas são alvos preferenciais das reservas de opressão e repressão estruturalmente mobilizadas para barrar a conquista de espaço político e autonomia efetiva pelas camadas populares1. A Amazônia é, em tal contexto, espaço fundamental de manifestação do medo-pânico da burguesia brasileira; e os povos indígenas estão entre os seus alvos imediatos. Octavio Ianni recorre à expressão “comunhão” para se referir à sociedade nacional. A “comunhão” nacional é uma comunhão entre aqueles que formam o topo da estrutura social brasileira e estão em “comunhão” em torno da defesa de seus interesses e contra os subalternizados da nação. Tal “comunhão” é analisada em páginas que vão lidar com a expropriação das terras tribais e com o an66 Resistências

tagonismo do Estado brasileiro em relação às sociedades indígenas2. O contato cada vez maior, a inserção à lógica da sociedade nacional e de suas políticas governamentais, se desdobrou na redução do elemento indígena à condição proletária, camponesa ou lumpensina e, fundamentalmente, na expropriação de suas terras, interditando desse modo a possibilidade de reprodução de suas formas particulares de trabalho, de relação com a terra e da própria existência. A Funai, órgão criado com a responsabilidade pelas políticas governamentais em torno da questão indígena sob o regime autoritário, por meio de sua tecnocracia se esquiva de reconhecer, não torna explícito, que todo o debate sobre a questão indígena está relacionado com a expropriação da terra. Dessa forma, a política governamental nesse âmbito se restringe à proposição de terras demarcadas em espaços reduzidos e cercados pela fronteira capitalista cada vez mais extensa. Está posto, nesse movimento do capital sob a ordem da política autoritária, o antagonismo entre as formas de apropriação coletiva da terra, na lógica das sociedades indígenas, e a terra como negócio, mercadoria, na lógica do capital. A “comunhão” nacional é intolerante ao modo como o indígena se apropria da terra. Por isso, as terras tribais são alvos de invasão, ocupação, grilagem, etc. As representações construídas pela sociedade nacional sobre o indígena se assentam na ideia de que este é um estranho, um estranhado, um estrangeiro, um não-nacional, um agente


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A separação jurídica entre o indígena e a terra é outra porta de entrada para uma sociedade cuja reprodução ampliada do capital é assegurada fortemente por medidas agressivas, brutais, repressivas. de subversão, um obstáculo ao progresso, à integração da Amazônia à nação. Nesse ambiente, a Funai compõe parte de um Estado, cujos governantes consideram as frentes de expansão como indicadores de desenvolvimento, de progresso e de modernização e, por isso, colocam o aparato institucional e jurídico à disposição do empreendimento privado nacional ou estrangeiro. Ao lado da indústria de extrativismo, da mineração, da agropecuária, etc., somam-se os empreendimentos estatais que dão suporte de infraestrutura necessária para a expansão da acumulação capitalista, tais como a abertura de estradas, construção de aeroportos e de hidroelétricas. A Funai chega a posteriori a essas transformações, que impactam as sociedades indígenas, apenas para integrá-las ao novo padrão de acumulação, de garantir que se acomodem às condições de expropriação a que foram submetidas e aceitem uma vida nos limites impostos pela terra demarcada segundo a lógica dependente ao capital monopolista das políticas governamentais. Diante do exposto, a proteção que o Estado garante através da ação da Funai é marcada pela destrutibilidade da organização econômica, social, cultural do índio, uma vez que é seu aparato burocrático que viabiliza a expropriação das suas terras e a exploração da sua força de trabalho de forma precária.. Na Ditadura Civil-Militar, cabe ainda observar, o Estado repressivo pressupunha relações sociais fundadas em formas impessoais, abstratas, que deveriam se desdobrar, no caso indígena, numa “individualização da pessoa do índio”. O índio como indivíduo deveria se comportar segundo os princípios da igualdade jurídica e da cidadania típica da ordem racional burguesa, que rege a circulação de coisas, de mercadorias. Neste ambiente, mediado pela mercadoria, a emancipação está referida ao limite em que a pessoa, o indivíduo, se coloca na perspectiva da coisa, está coisificado, que se reconhece como ser objetificado mas não como sujeito de negação de tais condições. Desse modo, o Estado, que promete ao indígena a emancipação e a igualdade jurídica, o lança no ambiente desigual das 68 Resistências

relações de troca e venda. Assegurando um regime contratual na relação do índio com a terra, o Estado repressivo afronta as formas coletivas de apropriação. A separação jurídica entre o indígena e a terra é outra porta de entrada para uma sociedade cuja reprodução ampliada do capital é assegurada fortemente por medidas agressivas, brutais, repressivas. É através desta que formas de acumulação primitiva, como o confisco de terras, atingem de modo violento as sociedades indígenas. Para que o capital possa se reproduzir em taxas elevadas, com vantagens sobre outras modalidades de investimentos, os meios violentos são ciosamente acionados. As grandes empresas agropecuárias e mineradoras e as instituições estatais formaram, então, uma parceria que, no âmbito do regime militar, avançou destrutivamente sobre as terras indígenas na Amazônia. Essa história da expansão do capital monopolista na Amazônia, reduzindo-a aos experimentos mais brutais, repressivos, típicos dos processos de acumulação primitiva de capital, se projeta pelos governos pós-Ditadura Militar das últimas décadas do século XX e início do século XXI. Com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, os avanços obtidos a partir da Constituição de 1988 foram aceleradamente confrontados. Um dos primeiros atos do governo Bolsonaro foi atacar direitos indígenas. Para tal, transferiu a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. Decisões desse tipo eram esperadas, posto que Bolsonaro, ancorado na reatualização de dogmas assentados no planejamento autoritário do regime militar para a Amazônia, do medo-pânico das elites reacionárias aos subalternizados, sempre disparou ataques racistas e preconceituosos contra esses povos. Tais medidas visam criar as condições de exploração pelo grande capital agropecuário e minerador em terras demarcadas e, ainda, travar futuras demarcações. Assim, em evento com o setor da indústria de mineração realizado no Canadá, o Ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, anunciou que o governo estuda mecanismos para a autorização de exploração de minérios em terras indígenas. Ao mesmo tempo, a pasta da saúde, sob o comando do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, apresentou proposta de desmonte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) como parte da estratégia para descentralizar o atendimento da saúde indígena, que ficaria sob a responsabilidade dos estados e municípios. Diante da intensa mobilização e manifestação dos povos indígenas, houve recuo nesta proposta. Cumpre observar ainda que a recomposição do Programa Mais Médico, promovida pela saída dos médicos cubanos após declarações pejorativas de Jair Bolsonaro, atingiu duramente a saúde indígena, deixando localidades nas calhas dos rios Solimões, Juruá, Purus, Alto Rio Negro e Madeira, no Estado do Amazonas, sem atendimento.


Com a emergência da pandemia pelo Sars-Cov-2, o roteiro da “comunhão” nacional para os povos indígenas no vale amazônico, atualizado pela política fascista de Bolsonaro, se manifesta de forma raivosa e com resultados sombrios. Aproveitando o contexto da pandemia, madeireiros, grileiros, garimpeiros, entre outros, intensificaram as invasões às terras indígenas, pilhando suas riquezas, promovendo a destruição ambiental e disseminando, junto com militares, médicos, religiosos missionários, o vírus nas aldeias. Em todo o país, conforme dados da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em 23 de agosto de 2020, mais de 27 mil indígenas de 155 povos foram contaminados e 706 morreram. Na Amazônia brasileira, desse total, foram confirmados 19.134 casos e 579 mortes. A “comunhão” nacional sempre foi intolerante, e na Amazônia avançou a lógica de acumulação primitiva de capital como elemento estruturante da inserção da região à nação. Contemporaneamente, como brevemente foi apontado aqui, sob o governo Bolsonaro tal “comunhão” se realiza em sua face mais distorcida. E, em plena pandemia, as organizações indígenas, da aldeia à sociedade nacional e mundial, se levantam para a resistência. Ela, a resistência, que é parte do encontro destes povos com a ordem destrutiva do capital, é componente fundamental anticapitalista que vai se tecendo contra a sombra da morte da “comu-

Aproveitando o contexto da pandemia, madeireiros, grileiros, garimpeiros, entre outros, intensificaram as invasões às terras indígenas, pilhando suas riquezas, promovendo a destruição ambiental e disseminando, junto com militares, médicos, religiosos missionários, o vírus nas aldeias. nhão” nacional em tempos de necropolítica. Porém, as histórias das resistências não cabem nos limites destinados a este artigo. Como texto, fica para outro momento. Como contexto, que elas se intensifiquem. A expressão medo-pânico foi cunhada por Florestan Fernandes em A Revolução Burguesa no Brasil, publicada em 1975. 2 IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 1

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AMAZÔNIA PARA QUEM?

Amazônia:

uma catástrofe se aproxima1 Milton Hatoum escritor amazonense e-mail?

epois de fazer uma longa e tumultuada viagem de Manaus às cabeceiras do Rio Purus, Euclides da Cunha escreveu uma série de artigos e ensaios sobre a Amazônia, reunidos no livro póstumo À margem da história (1909). Nele, o autor de Os Sertões faz uma crítica aguda à atividade predadora do extrativismo do látex e ao trabalho semiescravo dos seringueiros. São famosas estas frases euclidianas: “O seringueiro é um homem que trabalha para escravizar-se”. Ou: “Os ‘caucheiros’ aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos”. O uso do verbo “exterminar” não é um exagero retórico. Euclides percebeu que o extrativismo predador operava uma dupla destruição: da floresta e dos povos indígenas. Durante o Ciclo da Borracha (1880-1920) mais de 30 mil indígenas da região de La Chorrera (Colômbia) foram escravizados, torturados e assassinados por capatazes da Peruvian Amazon Company. Essas atrocidades – conhecidas como “O massacre do Rio Putumayo” – constam no relatório de Roger Casement, um diplomata britânico nascido na Irlanda. Em 1910, Casement, que era cônsul em Belém, viajou a La Chorrera, onde testemunhou e depois divulgou as barbaridades cometidas por capangas de barões da borracha. No século passado, as tentativas de “ocupar” e “de70 Resistências

senvolver” a Amazônia foram, além de fracassadas, extremamente danosas ao meio ambiente e aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores. Alguns exemplos conhecidos: Fordlândia, no Vale do Tapajós (1927-45); a Rodovia Transamazônica e o Projeto Jari (empreendimento agroflorestal e industrial de Daniel Ludwig), ambos realizados no começo dos anos 1970. A partir desta década, a grilagem de áreas de proteção ambiental, terras da União e territórios indígenas, e a ação predadora de mineradoras, madeireiras e grandes fazendeiros, se intensificaram, e nunca foram interrompidas. Esses “empreendimentos”, nefastos aos povos da floresta, estimularam um fluxo enorme de migração interna, gerando mais miséria e violência em municípios e capitais da região. Desde a redemocratização do País, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da Amazônia. Obras megalômanas – como construções de hidrelétricas – afetam duramente indígenas e moradores de vilas, comunidades e cidades. Uma crítica lúcida e bem argumentada a essas edificações faraônicas foi feita pelo premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto no livro A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas (B4 editores, 2012). Mas é também verdade que nenhum governo anterior a este foi tão cúmplice da destruição do bioma amazônico. O ministro do Meio Ambiente, incapaz de entender a


complexidade da Amazônia, nem sequer se interessa pelos anseios e pelas expectativas de sua população. Além disso, ignora estudos de cientistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Museu Goeldi, Instituto Butantan (Belterra), Fiocruz e de universidades brasileiras. Nesse aspecto, o ministro é coerente com as correntes do governo que desprezam o conhecimento científico, as humanidades e a tecnologia. São inúmeros os diagnósticos, análises, pesquisas científicas e antropológicas feitos por estudiosos brasileiros e estrangeiros. Um exemplo notável é o volume Amazônia: do discurso à práxis (Edusp, 2ª ed., 2004), do saudoso geógrafo Aziz Ab’Sáber. Os ensaios reunidos nessa coletânea são importantíssimos para a compreensão da Amazônia. Mas nada disso parece sensibilizar o primeiro mandatário e sua equipe ministerial, cujo desprezo por um mínimo de racionalidade terá consequências desastrosas, senão trágicas, para todo o País. A tragédia não se limita ao desmatamento e à invasão de terras indígenas. É preciso lembrar que nas cidades da Amazônia, onde vive a grande maioria de seus habitantes, a desigualdade é brutal. Em 1905, Euclides da Cunha já alertava para o contraste social e econômico em Manaus, que crescia “à gandaia”. Hoje, mais de 60% dos domicílios dessa cidade não têm acesso ao saneamento básico, e 30% ao abastecimento de água. Esses índices – também alarmantes quanto à violência em Manaus, Belém e outras ca-

pitais – refletem a miséria e a degradação urbana na região mais rica em recursos naturais do planeta. Mas quem de fato usufrui dessa riqueza? Quem realmente se beneficia com a exportação de minérios, madeira e com a construção de hidrelétricas? Para que serviu a construção, em Manaus, da Arena da Amazônia? Ou da Arena Pantanal, em Cuiabá? Vários artigos publicados em revistas científicas sérias já alertaram para a alta concentração de gases de efeito estufa sobre a floresta tropical, o que certamente será desastroso para o Brasil e para todo o planeta. Uma catástrofe se aproxima. Mesmo assim, o presidente está interessado em exportar troncos de árvores nativas. Se argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa na irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas nessa sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos atos irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de poder. Mas esse projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do Congresso. O empenho do governo federal em perdoar multas ambientais e fragilizar a fiscalização de atividades predadoras é uma carta branca aos grandes grileiros e incendiários. Não se trata de política liberal. O nome disso é barbárie mesmo. Artigo escrito originalmente para o jornal O Estado de São Paulo, publicado em 22.12.2019.

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AMAZÔNIA PARA QUEM?

Da indignação a paralisia,

um broto da utopia amazônica Ernesto Renan de Freitas Pinto Universidade Federal do Amazonas (Ufam) PPGI-Ciências Humanas da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) erfpinto@gmail.com

que passo a escrever com endereço aos meus colegas professores, leiam sobretudo como um desabafo. Um desabafo fortemente alimentado por dois sentimentos que são: o de indignação e o de paralisia. Minha indignação brota e cresce a partir das várias incertezas que nos atormentam em nosso dia a dia com as perguntas que nos assaltam como: para onde esse país está indo ou está sendo levado? Essas indagações atormentam a grande maioria de nós, brasileiros, mas principalmente a pessoas como eu que nasci e vivo aqui há quase oitenta anos – estou com 77 – e, não sei de onde vem, ainda sinto algum orgulho de meu país e de meu povo. Essas pessoas têm sido psiquicamente despedaçadas e transformadas em verdadeiros laboratórios de experiências destrutivas no campo ambiental com o aumento da devastação da Amazônia, do cerrado, da Mata Atlântida; no aumento das desigualdades sociais que significa mais gente passando e morrendo de fome, mais gente pobre assolada pela pandemia que mata mais quem não tem acesso a saneamento básico e possibilidades reais de manter um mínimo de isolamento – especialmente as famílias numerosas que vivem em um único cômodo. 72 Resistências

O meu sentimento de indignação deve-se principalmente às injustiças, desapreços e iniquidades diante dos quais pouco se pode fazer se não nos organizarmos e nos mobilizarmos para enfrentá-los. A mais brutal tem sido a desigualdade que cresce durante a pandemia, ou seja, a riqueza de uma minoria que tem crescido proporcionalmente aos vários tipos de empobrecimento e miséria que tem aumentado nestes tempos sombrios e incertos, sob a forma de perda do trabalho, falta de meios de obter a comida para cada dia e o aumento do número de miseráveis, ultrapassando mais da metade da população do país. Esse é o drama das nossas cidades com suas zonas urbanizadas e seguras – herança da Casa Grande, da mesma forma que a herança das senzalas em suas zonas pauperizadas, desordenadas e locus da insegurança e da violência policial que mata impunemente seja com balas certeiras ou balas perdidas. As nossas cidades grandes e médias possuem os seus cinturões de pobreza – as favelas, as ocupações informais que formam as periferias com seus “bairros perigosos e inseguros”. E que, em sua esmagadora maioria, não possui saneamento básico, situação que se tornou um aspecto a merecer a atenção da Organização Mundial da


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Ricos e poderosos que desde sempre resguardaram seus privilégios com a máxima indiferença e irresponsabilidade social e que continuarão assim até que a revolução social e democrática se constitua, apesar de constantemente interrompida. Saúde (OMS), pois é um fator incontornável de nossos índices pavorosos de contaminação e sacrifício de vidas. O sentimento de indignação nos atormenta porque ainda não sabemos o que fazer para nos defendermos das

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ações nefastas e das omissões inconsequentes dos governantes que conquistaram o poder através do voto para destruir as estruturas governamentais e não governamentais, às vezes seus únicos instrumentos de proteção ambiental, da legitimidade dos movimentos sociais, da garantia de sobrevivência dos povos indígenas e de seus territórios demarcados ou simplesmente legitimamente ocupados, das comunidades negras herdeiras dos quilombos, dos grupos compreendidos ideológica e vagamente como antifascistas, para mencionarmos os mais facilmente identificáveis. Lembramos que as desigualdades vão além dos seus aspectos mais visíveis. Elas vão se propagando nas diferenças de oportunidade de escolaridade em todos os seus níveis, do acesso aos já reduzidos bens culturais disponíveis, ao acesso ao emprego, a perda do emprego em massa e das ocupações que até então asseguravam rendas mínimas no limite da miséria e da fome. E todas essas desigualdades têm sua origem e permanência na dificuldade que os pobres e os excluídos têm de se defenderem dos mais ricos, porque a organização social


e política atua abertamente no sentido de garantir que os ricos fiquem cada vez mais ricos a custa do alargamento das faixas de pobreza e miséria. Ricos e poderosos que desde sempre resguardaram seus privilégios com a máxima indiferença e irresponsabilidade social e que continuarão assim até que a revolução social e democrática se constitua, apesar de constantemente interrompida. Ela continua viva como sentimento na alma de nosso povo. Revolução que, como afirmava com convicção Florestan Fernandes, é uma questão de tempo, que pode demorar décadas, mas um dia virá, pois a história não anda para trás. O outro sentimento que eu mencionei é o de paralisia, que certamente não é pessoal, mas generalizado, apesar de aparentemente vivermos em liberdade, numa democracia que, a cada semana, nos surpreende com medidas antidemocráticas por parte do governo central. Nossa paralisia tem sido acentuada nestes tempos de pandemia quando, por exemplo, o Ministério da Saúde se transformou numa

Se compararmos o nosso país e o nosso povo a um corpo que sofre e sucumbe, poderíamos imaginar esse corpo sofrendo hemorragias profundas e fraturas expostas para as quais não vimos nenhum cuidado. caserna e assim parece que irá permanecer, assistindo de camarote ao verdadeiro genocídio geral e aos genocídios invisíveis das populações indígenas. Quantos terão sido infectados e perdido suas vidas desnecessariamente pela omissão deliberada resultante da absoluta ausência de políticas públicas voltadas para controlar os efeitos da pandemia por parte dos poderes constituídos e passivos? Em razão da paralisia que nos vem sendo imposta, o que temos podido fazer para limitar esses sofrimentos e essas perdas irremediáveis e que o mundo inteiro denuncia como vidas que poderiam ter sido poupadas? Poupadas por procedimentos que muitos países adotaram com êxito e que, graças à instantaneidade dos meios de comunicação em funcionamento em escala mundial, todos os governos ficam conhecendo e poderiam tê-los adotado. A TV e os demais meios disponíveis nos fornecem diariamente os números que, apesar de assustadores, são naturalizados e banalizados pela repetição massacrante. Ao

mesmo tempo vivemos um vazio de uma informação crítica que pudesse contrabalançar essa rotinização e embrutecimento da informação diária. Ou seja, não dispomos de acesso a uma comunicação alternativa e crítica que pudesse nos retirar dessa paralisia inaceitável. Essa tragédia que estamos vivendo de forma bastante desigual no plano mundial só com o tempo saberemos mais claramente suas reais dimensões e alcances. O certo também é que o que está acontecendo em alguns poucos países como o Brasil tem os seus responsáveis. O que queremos, sinceramente, é que eles paguem o preço de sua inconsequência, pelo menos inicialmente no plano eleitoral, plano que parece ter ocupado suas cabeças ao longo de todo esse padecimento. Se compararmos o nosso país e o nosso povo a um corpo que sofre e sucumbe, poderíamos imaginar esse corpo sofrendo hemorragias profundas e fraturas expostas para as quais não vimos nenhum cuidado. No plano político, podemos imaginar um cenário utópico que transcorresse antecipando o tempo em que as coisas irão ocorrer mais dias, menos dias. E que, mesmo como utopia, fosse um tempo em que vivêssemos a partir de uma revolução democrática onde passasse a funcionar uma cidadania de fato para todos, com oportunidades iguais de escolarização, de saúde pública – já temos o exemplo extraordinário do SUS –, de oportunidades de acesso à cultura, à segurança alimentar assegurada a todos, ao pleno emprego e alternativas de renda na cidade e no campo. Afinal, bem distribuídas as oportunidades, mesmo dentro de um capitalismo menos selvagem e menos irresponsável, temos terra e potenciais oportunidades de renda para todos, se estimularmos os pequenos negócios geradores habituais de mais emprego e renda. Creio sinceramente que esses sentimentos utópicos que se exacerbam em períodos de crise poderão significar estarmos queimando etapas. E que as distopias que estão sendo ensaiadas por nossos governantes de irresistíveis pendores autoritários como são os exemplos do Ministério da Saúde, além de seu descompromisso com a situação alarmante do avanço da pandemia em nosso país, ocupando o quadro mais crítico em âmbito mundial, enquanto o Ministério foi travestido em verdadeira caserna. A educação desde o início deste governo continua igualmente sem rumos e diretrizes claros, para mencionar os dois exemplos mais aberrantes das distopias alimentadas pelo atual governo do país que tem dado sucessivos exemplos de condutas antidemocráticas e autoritárias. O que acabamos de escrever – esperamos – não é apenas um desabafo, mas um instante de repúdio por parte dos professores de todos os níveis por sua incerteza para onde está sendo conduzido o nosso país e o nosso povo. São também o nosso crédito e expectativas às nossas mais necessárias utopias. Amazônia: vidas ameaçadas 75


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