Caderno Dez - E se Jesus voltasse mesmo?

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CADERNO DEZ!

MIRELA PORTUGAL mportugal@grupoatarde.com.br

Evangelho segundo São Mateus, capítulo 24, versículo 44. “Por isso, estai vós apercebidos, também; porque o Filho do homem há-de vir à hora em que não penseis”. Naquele tempo, em palavras ora de alerta ora de alento, anunciava-se o retorno do Messias. Hoje, não falta quem profetize que o fim do mundo é agora, e aconselhe: vigiai. Mas e se é chegado o tempo do Juízo? A Bíblia não traz uma data específica para o toque final das trombetas. Convidamos cientistas e religiosos a pensar o que seria do mundo caso acontecesse agora, Natal de 2008. Desespero para ricos e pobres, chefes de Estado, magnatas da globalização, empresários do petróleo, danação eterna para os donos da Microsoft? “Ninguém se daria conta a princípio. As pessoas mais simples perceberiam primeiro, e só depois os poderosos”, acredita o filósofo e professor da Faculdade São Bento Giorgio Borgui. Mas, sem dúvida, seu segundo passo seria recuperar o susto de encontrar seus ministros na Terra. “Não sei se Jesus moraria no Vaticano. É o problema da chamada essência do cristianismo: ele defendeu o ideal, o Reino de

Deus, e encontra a Igreja Católica. Ele queria a simplicidade“. Já o extremo oposto, os homens da ciência, não deve temer. Nem mesmo o ciber-oráculo que rivaliza a sabedoria do além: o onipresente, onipotente e onisciente Google pode aquietar-se, desde que não trame qualquer conspiração. ”O cristianismo nada tem contra a inteligência humana, desde que voltada para o bem“, diz o professor. Não foi desta vez, IBM. REVOLUÇÃO – Bem aventurado o proletariado, pois dele será o reino dos céus? Pregar comunidade e justiça já impôs a Jesus Cristo carteirinha de comunista algumas vezes, como mostrou a Teologia da Libertação [escola da teologia cristã que prega a reforma social]. Mas é melhor guardar as camisas vermelhas com o rosto sagrado fazendo as vezes de Che: Jesus provavelmente não seria de esquerda hoje. “A esquerda, aliás, não gostaria nada das propostas de Jesus”, projeta o teólogo da libertação e professor da Universidade Católica do Salvador, Josival Lemos . “Já não gostou, quando ele mostrou aos judeus amor e perdão em lugar de um motim contra Roma. Marxismo e cristianismo não têm nada a ver em termos de conteúdo”. Seria o caso, até, de um papinho tranqüilo com Obama, o quase messiânico líder dos EUA. Depende do mérito do presidente-eleito. “Jesus reconheceu a autoridade dos reinos de sua época, mas essa legitimidade vem do uso do poder para boas obras”. Tanto Obama quanto Lula, por exemplo, seriam modelos de autoridades que

| ajudaram, a seu modo, a restaurar a fé. “’Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus‘ deixou cada coisa em seu lugar”, explica o teólogo. Já o filósofo do cristianismo e professor da Federal de Sergipe Márcio de Paula acredita que ao Cordeiro pouco importam chefes de Estado e geopolítica. “Nietzsche dizia que Jesus era idiota. Não no sentido de bobo, mas por ignorar o que é importante neste mundo. Talvez ele nem pensasse nisso. Ele nunca foi revolucionário nem líder de brigada”, considera. HISTÓRIA – Um Jesus engajado, porém, foi objeto de investigações históricas diversas. “Alguns fixaram nele um precursor dos movimentos reformadores modernos, como Thomas Münzer [sacerdote da reforma protestante alemã]”, diz o historiador Muniz Ferreira. Ao reencontrar as desigualdades de milênios atrás, o Filho do Homem partiria para a incitação das massas, crê o professor de Liturgia e Sacramentos da Faculdade São Bento, Edes Santos. “Jesus iria em busca da inquietação dos corações oprimidos, para devolver a dignidade das pessoas“. Certeza entre incertezas, Ele não vem para vingar-se, mesmo se o assunto for o sangue derramado em nome da sacra Jerusalém. Nem o apelo do DNA judaico o faria tomar partido, segundo Nem Douglas, teólogo e coordenador do curso de relações internacionais da Unijorge. ”Ser a favor da vida não lhe deixa apoiar israelenses ou árabes. Para ele, são todos iguais“.

SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 23/12/2008

Está

SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 23/12/2008

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REPRODUÇÃO | WIKIMEDIA

CAPA ❚ Fé e ciência são

convocadas para pensar sobre como seria a volta de Cristo

escrito

FIM DOS TEMPOS Ao longo da história, diversas datas foram apontadas como o Juízo.

1843 William Miller, criador da igreja adventista, fez os fiéis abandonarem bens e empregos. O erro foi nomeado Grande Decepção.

1948 As criação do Estado de Israel disparou previsões do Juízo ao redor do mundo. Entre 40 e 100 anos depois, aconteceria a Segunda Vinda.

Nem deuses nem mortais Judeus brigam com sunitas e xiitas, que brigam com cristãos, que brigam com adeptos do candomblé e fagocitaram os deuses indígenas. O retorno do fundador do Cristianismo poderia, por lógica, interromper a contradança e coroar os católicos. Só que nas escrituras sagradas Jesus não exige o fim das religiões “infiéis”, defende o filósofo das religiões Giorgio Borghi. “A rigor, Jesus não veio fundar uma religião. Ele deixou idéias universais de tolerância e entendimento. ”O teólogo Josival Nunes ressalta que conversão não implica perder a identidade original. “Jesus mostraria a presença sagrada em cada uma dessas culturas. É diferente de levar Deus numa maleta e entregá-lo”. No Brasil, Estado laico de maioria católica, nada de regalias, e não apenas pelo ecumenismo divino. A Igreja perdeu poder e não tem mais um papel significativo na sociedade, diz o cientista político e professor da Federal da Bahia Paulo Dantas. “A igreja católica hoje em dia tem mais prestígio que poder. Pode ser vista como um grupo de influência, e limitada”. Não que a mensagem religiosa não encontre eco em eras de broadcasting e “tempo real”. “Mas, se Jesus voltasse, apesar de certamente ter mais audiência, certamente teria mais concorrência”, diz Paulo Dantas.

MEA CULPA – Por outro lado, se o retorno do Filho do Homem não criará favorecidos, cada família tem contas a acertar sobre vaidade e soberba. Foram as dívidas e a falta de planos de orçamento doméstico que começaram a bola de neve da crise econômica mundial em 2008, na opinião do economista Paulo de Tarso Reis, que fez um estudo sobre finanças e a Bíblia. “A crise deixaria Jesus muito triste. A Bíblia apóia que cada um faça suas reservas para os momentos de dificuldades”. Mas nem Jesus vai sair dessa sem sua própria parcela de faltas a admitir. A herança do cristianismo muitas vezes coloca o homem como a coroa da criação, explica o filósofo Márcio de Paula, e a natureza em segundo plano. “É diferente de budismo e hinduísmo, nos quais homem e natureza são um só”. Conseqüências: problemas como o aquecimento global. Márcio crê que Jesus defenderia uma revisão da postura em relação à natureza. “Ele pediria uma nova consciência contra nosso descaso”.

1988 Edgar Whisenaut, cientista da Nasa, lançou o livro 88 razões por que o arrebatamento será em 1988. Vendeu 4 milhões de cópias.

Para não-cristãos, Jesus não retorna para julgamento

Jantar com a família e dormir cedo é a programação da noite de Natal de Monique Gomes, 19, ou Mona, como a chamam na mesquita que freqüenta. Para o islamismo, Jesus é mais um dos profetas de Deus, como Maomé. Por isso Mona reza para ele. “Agradecemos a Deus por enviá-lo, assim como os outros”. O alcorão cita Jesus várias vezes, mas não prevê seu retorno, explica o Sheikh Ahmad, diretor do Centro Cultural Islâmico da Bahia. “Para nós, ele é Iysá, um homem que nasceu milagroso e ensinou muito”. No judaísmo, a posição é parecida, explica o rabino Israel Bukiet. “Não prevemos seu retorno. Jesus era judeu, por isso importante para nós como qualquer outro judeu”. Na fronteira com o cristianismo tradicional, o espiritismo não professa a presença de Cristo no Juízo. A presidente da Associação Espírita da Bahia, Creuza Lage, conta que para os espíritas Jesus é um modelo de virtude. “Ele é nosso guia, por ter sido o espírito mais perfeito que viveu sobre a Terra”. Para o cardeal arcebispo dom Geraldo Majella, o retorno de Cristo é uma questão de tempo. “Jesus virá com todo o seu poder divino para nos ensinar e julgar. O fim dos tempos medirá vivos e mortos não por atos de louvor, mas pelo amor ao próximo”. Já Dona Dadá, mãe-de-santo do terreiro que batiza em São Cristóvão, acha melhor não desacreditar da Bíblia. “Jesus é uma marca de Oxalá, traz a paz. É bom crer nas escrituras e completar com a nossa fé”.

ILUSTRAÇÃO BRUNO AZIZ


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