CRÔNICAS DE ESCRITÓRIO LIVRE DA ROTINA Por Lico Mota Ouvia vários dedos batendo nos teclados ao mesmo tempo por todo o escritório. Em um breve intervalo entre os ruidosos telefones tocando, consegui ouvir alguns passarinhos cantando. Voltei minha atenção para a janela e reparei que estava uma bela tarde ensolarada de terça-feira. Recostei na cadeira e tomei ar por um instante. Percebi que Salomão também olhou para a janela, mas com um olhar muito mais crítico e distante. Parecia aborrecido com algo mais. _ Esse lugar _ resmungou _ tudo isso está me deixando maluco aos poucos. Percebi que era um desabafo e deixei que continuasse. _ Uma bela tarde de sol e mais uma vez não posso aproveitar porque estou preso aqui dentro. Já percebeu quanto da vida foi perdido aqui? Digitando contratos. Atendendo ao telefone com textos repetitivos. Gerando burocracia. _ levantou-se e foi até a janela afugentando os passarinhos. _ Digo, eu preciso desse emprego, mas fico aqui dentro sem ver a hora de ir logo pra casa. _ Você nunca deve torcer para o tempo passar. _ respondi finalmente. _ O tempo é parte integrante da sua vida. É muito importante na equação. Vale tanto quanto sua saúde. _ Em que mundo você vive, Natanael? _ Salomão deu um sorriso irônico _ O tempo acabou para as pessoas! Parece que os dias passam cada vez mais rápidos pra todo mundo e isso acontece por quê? A rotina do dia-a-dia venceu. Tanto faz ter tempo ou vê-lo passar. De qualquer forma, ele vai embora rápido e sem qualidade. Somos escravos da rotina de nossos trabalhos, de nossos lares, de nossos costumes. Dê uma boa olhada, acontece ao seu redor! Levantei e fui até o bebedouro. Peguei um copo de água calmamente olhando para todas as pessoas do escritório e refletindo no que Salomão havia me dito. Ele dizia a verdade. Mesmo que aquelas pessoas ocupadas estivessem com o dia livre, não saberiam o que fazer com seu tempo. Desperdiçariam assistindo TV, navegando na internet ou buscando lugares para gastar seus ganhos com coisas que acham que precisam. Voltando para minha mesa, reparei na mesa de uma senhora de idade, muito cuidadosa e prestativa e que sentava há anos próximo a janela. Decidi passar na mesa de Salomão compelido a dizer algo: _ A rotina não existe. Salomão me olhou com olhar de descrédito e continuei: _ Sim, rotina é uma bobagem. Todos os dias temos a oportunidade de fazer tudo de forma diferente do que já fizemos antes. Podemos usar nossa capacidade criativa para desafiar
nossa forma repetitiva de pensar. A reprise dos dias é um desperdício de tempo de vida gerado pela burocracia do próprio coração. Olhei pela janela e vi que os passarinhos voltaram. Cantavam procurando uma forma de entrar e alcançar o pote de alpiste da mesa da senhora de idade, mas estavam bloqueados pelo vidro. Ela havia esquecido de colocar do lado de fora como fazia todos os dias e saira mais cedo para uma consulta médica. _ Afinal, quem está preso? Quem está do lado de cá ou do lado de lá do vidro? _ dei sinal em direção a janela. _ A rotina é você. Salomão não disse uma palavra e voltou a olhar para seu monitor com cara sisuda. Sentei em minha mesa, satisfeito por ter chegado a tal conclusão, pois era algo novo pra mim também. Percebi Salomão em silêncio, refletindo, olhando para a janela e ouvindo o canto dos passarinhos.