A DIFERENÇA
UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – RICARDO ANIDO
Comissão Editorial da Coleção Estudos de Filosofia Moderna e Contemporânea FAUSTO CASTILHO – OSWALDO GIACOIA JÚNIOR FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA – BENTO PRADO – PAULO FRANCHETTI
ORGANIZADOR
L UIZ B. L. O RLANDI
A DIFERENÇA
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP
D568
A diferença / organizador: Luiz B. L. Orlandi. – Campinas, SP: Editora da U NICAMP , 2005. 1 . Deleuze, Gilles, 1925-1995 . 2 . Foucault, Michel, 1926-1984 . 3 . Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 . 4 . Filosofia moderna. 5 . Diferença (filosofia). I . Orlandi, Luiz B. L. (Luiz Benedicto Lacerda). II. Título.
e-ISBN 85-268-1175-4
CDD 190 121
Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia moderna 2. Diferença (filosofia)
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Copyright © by Luiz B. L. Orlandi Copyright © 2005 by Editora da UNICAMP Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
COLEÇÃO ESTUDOS DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
A COLEÇÃO ESTUDOS DE F ILOSOFIA M ODERNA E CONTEMPORÂNEA compreende duas séries: a Série A, ESTUDOS, e a Série B, TRADUÇÕES. Na série dos ESTUDOS, publicam-se textos que parcial ou inteiramente tenham sido elaborados no quadro dos programas de pós-graduação, tanto da UNICAMP — onde a série conta com a valiosa colaboração dos membros do CEMODECON (Centro de Estudo da História da Filosofia Moderna e Contemporânea) — como de instituições congêneres, do país e do exterior. As últimas, desde que de algum modo ligadas por laços de intercâmbio a nossa universidade. Os volumes da primeira série, numerados e datados, são ou de autoria individual ou coletivos, e estes, reunindo em torno de um mesmo objeto de estudo trabalhos de diferentes autores, estão sob a responsabilidade de um organizador de edição, especialista na matéria, designado especificamente para a tarefa pelo diretor da coleção. Na Série B, publicam-se traduções — acompanhadas ou não da reprodução do original, no idioma em que foi escrito — de textos de filósofos modernos ou contemporâneos, mesmo que se refiram a tema pertencente à filosofia anterior à moderna, mas cujo tratamento seja de importância para o entendimento do pensamento ulterior.
SUMÁRIO
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Luiz B. L. Orlandi........................................................................................................
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FORÇAS E DEFORMAÇÃO NAS PINTURAS DE FRANCIS BACON: A LEITURA DE GILLES DELEUZE
Adriane da Silva Cavalcanti.................................................................................... 13 DESEJO COMO PRODUÇÃO OU A POSITIVIDADE DE O ANTI-ÉDIPO
Cíntia Vieira da Silva.................................................................................................. 27 DELEUZE E A ONTOLOGIA: O SER E A DIFERENÇA
Eladio C. P. Craia......................................................................................................... 55 A FILOSOFIA E A TEORIA DAS MULTIPLICIDADES: ELOS DA DIFERENÇA
Hélio Rebello Cardoso Jr. ....................................................................................... 91 O AGRAMATICAL: OS PROCEDIMENTOS DA DIFERENÇA
Júlia Maria Costa de Almeida................................................................................ 131 SOBRE O CONCEITO FOUCAULTIANO DE “DISCURSO”
Marcos Alexandre Gomes Nalli............................................................................ 151 VIBRAÇÕES DELEUZIANAS EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Paulo Tarso Cabral de Medeiros........................................................................... 171 O ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE: REPETIÇÃO OU SELEÇÃO?
Regina Schöpke............................................................................................................ 203
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Os textos aqui reunidos, escritos por jovens pesquisadores cientes do nosso pluralismo acadêmico, dão testemunho de uma velha decisão, digamos, algo semelhante àquela que Epicuro julgava imprescindível a quem, jovem ou velho, desejasse “alcançar a saúde do espírito”, sem perder de vista a “hora de ser feliz”; a decisão que dá guarida à amena admoestação com que ele inicia uma de suas cartas: “que ninguém hesite em se dedicar à filosofia” (Epicuro, Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 21). Para que essa dedicação, agora fixada em textos livremente escritos, chegue a possíveis leitores, impõe-se, é claro, um esforço editorial. E por que não levar tal esforço a participar também dessa atmosfera epicurista? Para tanto, ele talvez precise contar com o apoio de uma outra advertência, um pouco menos afável: que os jovens não sejam castrados em sua dedicação à filosofia. Essa castração é sempre possível, porque vivem ameaçados não apenas pela multiplicidade de exclusões ou pela mediocridade midiática, mas também pela exorbitância com que incidem sobre seus ânimos certos valores insuflados por micropoderes organizatórios de discursos ditos verdadeiros. Uma segunda linha de força perpassa esses textos e ajuda a criar entre eles uma certa unidade: é que são distintamente atraídos por idéias que se mostram decisivas em nossa contemporaneidade. Os resumos e as palavras-chave, esses dispositivos quase sempre muito precários do ponto de vista de uma exposição conceitual, podem, apesar disso, dar um sinal a esse respeito. Assim, por exemplo, trata-se de investigar, a propósito da pintura, com que lógica atenta às sensações é possível dizer a subordinação da 9
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relação matéria–forma à relação matéria–força e, portanto, a passagem do figurativo ao figural. A respeito do desejo, com que conceitos é possível livrá-lo de uma subordinação, tão antiga quanto Platão, ao modelo da necessidade, da carência, da falta? Que vem a ser o desejo como produção? Ou ainda: pode-se pensar uma ontologia da diferença não subordinada ao idêntico? Que idéia de acontecimento e de sentido permite reunir ontologia e diferença? Como ir além da velha oposição uno–múltiplo? É possível subverter a lingüística através de um conceito de agramaticalidade sensível a potências linguageiras efetivamente criadoras? Como se entreter diferentemente com o discurso, com as formações discursivas? E seria possível, mobilizando conceitos como rizoma, afectos, perceptos etc., ler diferentemente nosso querido Guimarães Rosa sem transformar suas obras em ilustração de teses filosóficas, sociológicas, psicológicas, ou no narcisismo presente em certas percepções do literário? Como conversar diferentemente com Nietzsche, com seu eterno retorno como retorno da diferença? Em terceiro lugar, em vez de dizer a obviedade segundo a qual os textos aqui presentes estão longe de esgotar o que pensam os dois autores privilegiados neste livro, Gilles Deleuze e Michel Foucault, é preciso perguntar uma coisa que deixamos em silêncio: por que são decisivas em nossa contemporaneidade as idéias pelas quais se interessam esses pensadores e os textos que neles se inspiram? O título deste livro resume uma das possíveis respostas. Com efeito, seja qual for a dimensão considerada (a ontológica, a epistemológica, a psicológica, a estética, a ética, a política etc.), seja qual for o nível considerado (o dos acontecimentos dotados das mais explosivas ressonâncias ou aquele das cotidianidades acantonadas etc.), sentimos que essas idéias se envolvem com problemas, conceitos e figurações distintas de uma problemática que não nos é possível escamotear: a problemática da diferença. Vivemos nessa e dessa problemática. É ela que tentamos expri-
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mir aos pedaços e como podemos, seja quando nos interessamos por uma importante diferenciação, como a estabelecida por Deleuze entre “Desejo e prazer”, texto que gostaríamos de ver aqui publicado como anexo,* seja quando deliramos a respeito de como enfrentar nossas próprias dores, seja quando criticamos a presunção de uma potência militar, seja quando tememos a violência do próximo ou nossa própria e indefinida capacidade de odiar. Mas são também outras cintilações dessa problemática que nos atingem quando sorrimos, quando amamos, e diferentemente a cada vez. E que o leitor elabore novas distinções a cada lance de sua leitura. Luiz B. L. Orlandi
Campinas, fevereiro de 2005
* Infelizmente, submetendo nossos desejos e razões intelectuais aos seus direitos editoriais e, principalmente, aos seus interesses puramente comerciais, uma editora francesa (Minuit) proibiu que publicássemos aqui uma tradução do pequeno texto em que Gilles Deleuze (1925-1995) se desentende com o amigo Michel Foucault (1926-1984) a respeito de desejo e prazer (“Désir et plaisir”, 1976), texto anteriormente publicado em “Foucault aujourd’hui”, Magazine Littéraire, no 325. Paris, out., 1994, pp. 59-65. A proibição é ainda mais descabida se levarmos em conta que os eventuais interessados em uma primeira versão da minha tradução poderão consultá-la em Cadernos de Subjetividade, no especial. São Paulo: PUC–SP, jun., 1996, pp. 15-25.
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FORÇAS E DEFORMAÇÃO NAS PINTURAS DE FRANCIS BACON: A LEITURA DE GILLES DELEUZE Adriane da Silva Cavalcanti *
Francis Bacon (1909-1992) encontrou intuitivamente um modo muito próprio de criar, que implica incorporar as sugestões que a tinta cria ao acaso, abrindo outras saídas e outros caminhos para apreender a imagem que ele persegue. Diante da tela em branco, Bacon tem uma idéia geral do que deseja reproduzir, por exemplo, uma pessoa conhecida que gostaria de retratar. Para tanto, utiliza uma foto dessa pessoa e a lembrança que guarda dela. Inicia traçando, com o pincel, um esboço grosseiro diretamente sobre a tela, nada mais que o vago contorno de uma cabeça. Ao construir o rosto, a tinta, indo de um contorno a outro, produz formas inesperadas e, de repente, ele se vê entregue a marcas casuais provocadas na imagem pela pressão do pincel embebido de tinta. Sutileza e flexibilidade próprias da tinta a óleo, que é um meio muito fluido e refinado, de modo que basta uma pequena porção para modificar inteiramente uma coisa em outra e alterar as implicações da imagem. As formas construídas à revelia de sua vontade e de seus gestos conscientes são apreendidas pelo “instinto visual”1 do pintor como algo que pode ser desenvolvido. Ele as vê, em suas ambigüidades, como se fossem um “gráfico”,2 no qual estão sendo criadas novas possibilidades visuais para chegar àquela imagem que pretendia pintar no início. Então, começa a mexer sobre a forma
* Mestranda em filosofia (IFCH–UNICAMP). 13
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constituída pelas marcas involuntárias, manipula-as conforme sua vontade, trabalhando, assim, de acordo com o que o acaso lhe deixou sobre a tela. Bacon sente, porém não entende como aquilo que é composto dessa maneira, como, por exemplo, a órbita dos olhos, o nariz, a boca, uma das laterais do rosto, e que corresponde a formas que nada têm a ver com olhos, nariz, boca e rosto, resulta, ainda assim, num retrato que guarda uma semelhança muito mais profunda com o modelo. Então acredita que é possível encontrar, com ajuda das formas não-ilustrativas resultantes de marcas involuntárias, um tipo de imagem que é mais próxima e mais fiel à apreensão da cena pelo sistema nervoso. Isso é justamente o que ele procura: “registrar uma imagem”3 da maneira como ele a percebe, registrar como as coisas e as pessoas tocam a sua visão ou, nas suas próprias palavras, o “choque visual”.4 Sua intenção é comunicar o “factual”, isto é, “registrar uma coisa que surge a sua frente como um fato”, sem significados por detrás da imagem, sem o “tédio da comunicação” de uma história, tal como ele afirma: “Não uma ilustração da realidade, mas criar imagens que sejam uma concentração da realidade, uma abreviação das sensações”.5 O porquê de as marcas involuntárias não-ilustrativas serem mais sugestivas e reveladoras de sensação do que as formas ilustrativas, Bacon não sabe explicar. Constata apenas que, enquanto a forma ilustrativa “imediatamente lhe diz, através da inteligência, o que ela expressa”, uma forma não-ilustrativa “atua primeiramente nas emoções e depois faz revelações sobre o fato”.6 Haveria, portanto, uma pintura que parece tocar diretamente o sistema nervoso e ser mais profunda do que outra, intermediada, que lhe conta a história através de um discurso cerebral. Ao incorporar as marcas acidentais, Bacon quebra a “inflexibilidade da forma ilustrativa”,7 dissocia a imagem de uma vonta14
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de e de uma crítica totalmente consciente e deixa livre o acesso ao oceano do inconsciente. Ele cria uma outra imagem com a qual a sensibilidade das pessoas se encontra mais ligada. É uma “armadilha para agarrar o fato em todo o seu instante de plenitude”.8 Desse modo ele consegue uma imagem mais semelhante ao modelo da forma mais irracional. Eis como ele expressa sua obsessão pela “constituição irracional” de uma imagem concreta: “como posso fazer essa coisa com o máximo de semelhança, da maneira mais irracional possível?”9 A distorção ou a deformação são encaradas pelo pintor, portanto, como o dispositivo através do qual ele consegue efetivamente abrir a imagem a sentimentos e remeter o espectador à vida com mais violência. E, assim, sua técnica de pintar implica incorporar as distorções no aspecto figurativo da imagem, ou seja, assimilar as marcas ao acaso sugeridas acidentalmente pela tinta, os traços informais e abstratos, para obter uma “imagem sensorial”.10 A respeito de sua técnica, Bacon explora a produção das marcas traços irracionais através de gestos como arremessar a tinta com um pincel grosso ou com a própria mão, esperando que o jato de tinta sobre a imagem a sua frente, já feita ou feita pela metade, vá recriá-la, ou então lhe permita manipular a tinta de modo a dar maior intensidade. Com uma esponja, uma escova ou um farrapo, ele pode limpar ou varrer a tinta, o que lhe rende formas inteiramente diferentes, aspectos de teia etc. Às vezes, basta-lhe atirar a tinta e, para sua surpresa, o chicote colorido fica bom ali onde caiu, sem precisar ser trabalhado. Com esses procedimentos, que requerem do pintor o esforço de manter uma postura sempre muito solta, Bacon deforma, reforma o corpo humano, fazendo a figura funcionar como ele acha que deve ser: algo que toca diretamente o sistema nervoso. Deleuze, em seu estudo dedicado à obra de Bacon, Francis Bacon, logique de la sensation, aborda a questão da distorção na 15
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aparência das imagens segundo um caráter muito específico. Ao procurar capturar conceitualmente os signos que nascem do encontro com essa pintura, mantendo-se atento àquilo que Bacon fala sobre ela nas entrevistas que concedeu a David Sylvester, Deleuze explica a deformação inserida na problemática das forças transmitidas na arte pictórica. Tendo em vista uma singularidade da obra de Bacon, a saber, o privilégio das forças em detrimento das formas, a deformação é considerada a insubordinação das forças às formas. Antes, porém, de falar especificamente da obra de Bacon, seria interessante considerar a noção que Deleuze tem sobre o papel das forças na sensação estética. Em seus escritos sobre as artes, a idéia de força ocupa um lugar importante, inserido em sua concepção da arte como não-representativa nem imitativa. Uma passagem que explicita o papel das forças na obra de arte pode ser vista no livro O que é a filosofia?, contextualizada no problema da definição da sensação estética na condição de “composto de perceptos e afectos”.11 Para Deleuze e Guattari, a sensação estética corresponde a um “devir”, na medida em que compreende um “tornar-se” com o outro, isto é, abandonar as condições pessoais (os sentimentos e as lembranças individuais) para ingressar num outro mundo.12 O modo como os autores explicam o desencadeamento do devir sensível passa pela noção de força, pois ela é a instância que nos faz cair na linha de fuga de um devir. É no contato com as forças — que correspondem aos perceptos — apresentadas numa obra de arte que o espectador, o ouvinte, ou o leitor são carregados na linha de fuga de devires, os quais correspondem aos afectos.13 As forças são entendidas, nesse sentido, como instância diretamente responsável por desencadear a sensação naquele que entra em contato com a obre de arte. Baseando-se nessa noção, Deleuze enuncia que o principal objetivo de uma arte reside em proporcionar forças ou tornar sen16
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síveis as forças presentes no mundo: “O eterno objeto da pintura: pintar as forças, como Tintoretto”. As forças de “gravitação, de peso, de rotação, de turbilhão, de explosão, de expansão, de germinação, a força do tempo”14 etc., são todas convocadas nas artes. As diferentes artes, através de seus meios materiais, buscam tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo. Como Deleuze e Guattari nos dizem em Mil platôs a respeito da arte moderna, acontece ao pintor Millet de dizer que o que conta na pintura não é aquilo que o camponês carrega, objeto sagrado ou saco de batatas por exemplo, mas o peso exato daquilo que ele carrega. [...] Talvez será preciso esperar Cézanne para que as rochas não existam mais senão através das forças de dobramento que elas captam, as paisagens através das forças magnéticas e térmicas, as maçãs através das forças de germinação: forças não visuais e, no entanto, tornadas visíveis.15
Que a arte tenha como propósito tornar sensíveis as forças insensíveis presentes no mundo é algo que Deleuze já afirmava em Francis Bacon, logique de la sensation: “En art, et en peinture comme en musique, il ne s’agit pas de reproduire ou d’inventer des formes, mais de capter des forces. C’est même par là qu’aucun art n’est figuratif”.16 Quando considera que nenhuma arte é figurativa, Deleuze está supondo que na figuração se trata de ilustrar um objeto através da reprodução de suas formas. Diferente disso, as artes, sejam as artes plásticas, seja a literatura, a música ou o teatro, são todas elas “instrumentos para traçar as linhas de vida”, isto é, para produzir os “devires reais”17 que estão presentes na vida. Na pintura, a figuração é compreendida por Deleuze como representação, que tanto pode ser expressa por uma ilustração como por uma narração18 e corresponde ao aspecto “sensacional”19 de uma imagem. Em oposição ao que seria pintar o sensa17
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cional, Bacon procura apenas “pintar a sensação”, ou “registrar o fato”,20 criando uma pintura que “não tem modelo a representar nem história a contar”.21 Essa distinção vem do próprio pintor quando afirma querer “pintar mais o grito do que o horror”.22 Pintar o horror equivale a produzir uma cena de horror, tal como a ilustração de um objeto horripilante ou a narração de uma história aterradora, o que corresponderia a uma figuração ou aspecto sensacional da imagem. Porém, o que o pintor persegue é o grito como a resposta sensorial ao horror, ou a reação imediata a ele por parte do sistema nervoso. Eis no que consiste o verdadeiro caráter da violência na pintura: a violência da sensação do grito.23 Para Deleuze, as imagens de Bacon recriam essa violência. O pintor, seguindo o caminho trilhado por Cézanne, encontrou uma forma sensível que toca diretamente o sistema nervoso sem passar pelo cérebro. Tal é a “via da Figura”,24 termo que faz referência à forma sensível que se encontra à mesma distância da ilustração e da abstração, conforme Cézanne.25 Deleuze utiliza o termo “Figura” para se referir aos corpos humanos pintados por Bacon, ou às cabeças, no caso dos retratos, e o aproxima do conceito de “figural”,26 de Lyotard, ao indicar que a Figura não se presta a significações do tipo narração ou ilustração, mas está lá apenas como algo para domínio do sensível. Na pintura de sensações de Bacon, Deleuze vê presente uma série de forças. Trata-se das forças que estão por detrás dos movimentos e das poses cotidianas mais naturais e habituais (como as forças que são exercidas sobre o corpo humano no momento de dormir, de sentar-se, de vomitar etc.) Entre os tipos de forças, há uma que é essencial no devir dessa pintura: a força de deformação presente nos corpos. As forças de deformação nos corpos correspondem precisamente às “partes limpas” ou intactas (áreas de supressão completa das formas), “escovadas”27 ou amarrotadas, resultantes da 18
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manipulação da tinta com panos, escovas, grandes pincéis, e das marcas casuais que o artista imprime aleatoriamente na tela. Nisso reside o sentido das distorções e deformações na pintura de Bacon: a transmissão de forças. Sem reservas, Deleuze afirma: “Il semble que, dans l’histoire de la peinture, les Figures de Bacon soient une des réponses les plus merveilleuses à la question: comme rendre visibles des forces invisibles? C’est même la fonction primordiale des Figures”.28 Essas áreas manchadas que o pintor constrói dando liberdade à mão e nas quais ele vê uma miríade de possibilidades visuais para desenvolver a imagem correspondem ao que Deleuze chama de “diagrama”.29 O efeito pictural dessas áreas deformadas é a imprecisão da forma. Quand une force s’exerce sur une partie nettoyée, elle ne fait pas nâitre une forme abstraite, pas plus qu’elle ne combine dynamiquement des formes sensibles: au contraire, elle fait de cette zone une zone d’indiscernibilité commune à plusieurs formes, irréductible aux unes comme aux autres, et les lignes de force qu’elle fait passer échappent à tout forme par leur netteté même, par leur précision déformante.30
Trata-se, então, de uma área em que não se consegue distinguir uma forma em especial. A deformação, portanto, cria zonas de indiscernibilidade das formas, em que se vislumbram várias formas, e torna impossível a redução a apenas uma delas. Nesse sentido é que Deleuze explica a constituição do devir-animal como devir marcante nas pinturas de Bacon. Se suas pinturas carregam fortes traços de animalidade, isso se deve ao fato de que as formas coloridas — os tons vermelhos e azulados da carne — não remetem exclusivamente à carne humana ou à vianda, mas antes marcam uma indiscernibilidade entre a carne humana e a vianda.31 As formas coloridas 19
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estão “entre” as formas humanas e animais, como ponto em que não se distinguem mais a carne humana e a vianda, indiscernibilidade essa que marca o devir-animal. As áreas de imprecisão da forma, ou de precisão deformante, conseguem tocar o espectador de uma maneira mais incisiva por tratar-se de zonas que o colocam em contato direto com linhas de forças, as quais motivam e determinam a sensação. Mas como se dá a sensação, ou, mais precisamente, de que maneira a zona deformada é capaz de abrir válvulas de sentimento no espectador? Para explicar como a sensação se comunica ou se desdobra sensorialmente entre a imagem pictural e aquele que a enxerga, Deleuze afasta-se de uma concepção fenomenológica do sentir e encontra em Artaud a melhor expressão para definir o surgimento e a expansão da sensação na pintura de Bacon. Artaud, segundo Deleuze, entende que a sensação nasce do encontro entre uma onda e uma força que acomete o corpo e se desenrola como uma vibração. Ela atua na carne humana como uma “onda nervosa”, ou uma “emoção vital”, que passa por diferentes níveis e liga os sentidos. Desse modo, Deleuze pôde defini-la da seguinte maneira: “Si bien que la sensation n’est pas qualitative et qualifiée, elle n’a qu’une réalité intensive qui ne détermine plus en elle des donnés représentatives, mais des variations allotropiques. La sensation est vibration”.32 Esta é a natureza da sensação neste texto deleuziano: uma realidade intensiva. De acordo com a definição de Artaud, a sensação é sempre desencadeada por uma força que ataca o corpo. Porém, a sensação, como fluxo intensivo, quando atravessa o corpo, desconhece os limites do organismo. O organismo é aqui entendido como arranjo sistemático dos órgãos segundo suas funções, uma organização orgânica do corpo. No corpo, a sensação rompe o organismo e cria aquilo que, com Artaud, De20