Revista Ateliê nº08

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ISSN 2177-4242 Rev. AteliĂŞ

Salvador

n. 8

p. 1-90

Outubro 2013


Expediente ATELIÊ é uma publicação impressa e organizada pela Equipe da

Editoração e do Departamento Cultural do Colégio Módulo.

Sócios-Diretores Francisco Mendonça Jayme Barros Diretora Geral Ana Cristina Calfa Coordenação da Revista Silvana Sarno Colaboradores Gabriela Rossi Projeto Gráfico Cláudia Santana Imagem da Capa Parte de obra de Caffaro Rore – Cappella del Sociale di via Arcivescovado Ilustrações André Barreto Revisão Cláudia Santana Elizabeth Fernandes

Editoração Autor Visual Design Gráfico Endereço do Colégio Módulo Avenida Magalhães Neto, 1177 – Pituba CEP: 44.820-020 Salvador – Bahia Tel.: (71) 2102.1300 / 2102.1301 Fax.: (71) 2102.1314 E-mail dptcultural@portalmodulo.com.br Site www.portalmodulo.com.br Impressão – Gráfica do Colégio Módulo Júlio Pacheco Carlos Alberto Brito dos Santos Rubes Santos da Silva Periodicidade Semestral Tiragem 500 exemplares

Departamento Cultural do Colégio. ATELIÊ, 2013. n. 8; 90 p.: il. ISSN 2177-4242 1. Revista do Colégio Módulo. 2. Ateliê. I. Título.

AS MATÉRIAS, ARTIGOS E COLUNAS aqui publicados são de responsabildade de seus respectivos autores. Suas opiniões não refletem, necessariamente, a opinião da revista.


EDITORIAL

ATELIÊ é um espaço aberto, no qual os articulistas têm plena liberdade de expressar o que pensam, o que sentem. Sem censura.

Mais uma ATELIÊ, graças ao esforço de Silvana Sarno e seu Departamento Cultural. ATELIÊ é um espaço aberto, no qual os articulistas têm plena liberdade de expressar o que pensam, o que sentem. Sem censura. Interessante, neste número, é constatar como nossos articulistas, sem que houvesse solicitação alguma da Revista, se revelam antenados com a contemporaneidade. Problemas que estão na ordem do dia, como a redução da maioridade penal, a realidade prisional brasileira, o acesso às informações, a busca da identidade, são discutidos nas páginas da Revista. Contextualizar-se e contextualizar os fatos é um dos princípios básicos do trabalho educativo. Mais que formar para a vida, “a educação trabalha com a vida e na vida”, é o eu no mundo, crescendo com o mundo, no mundo. Os ensaios que revelam uma postura de reflexão e análise se unem a poemas e expressões de artes visuais. E a arte é, também, uma forma de conhecimento, sem os rigorismos e objetividade da ciência racional, mas com a criatividade e a profundidade do sentimento e da emoção. Por isso, a arte revela, mais que a ciência, a totalidade do ser humano. Vamos sentir aqui o que diz Moacir C. Lopes, no romance A OSTRA E O VENTO: “Agora vamos para o morro do Pensador, Marcela. Vou ensinar-lhe tudo o que aprendi. Ensinar, não, vou lhe contar. Então você poderá criar vida. Criar, Marcela. Quando executamos alguma coisa, estamos apenas repetindo o que os outros fizeram, dispersamos energia e ficamos vazios. Mas quando criamos estamos absorvendo toda a energia que há na terra e nos céus, crescemos em nós mesmos, e só teremos é que suportar essa grandeza para que não nos destrua, e é preciso ter cuidado. (...) Então você será capaz de sentir e ver a árvore que há na árvore, o riso que há no riso, a flor que há na flor.”

ATELIÊ é um espaço aberto. Há na Revista desde reflexões e ensaios de doutores até artigos de jovens estudantes universitários, funcionários do Módulo. Estes, sem a experiência e a vivência de pesquisa dos doutores, querem expressar-se e é preciso que se lhes dê espaço para isso. Vale à pena ouvi-los. A diversidade de opiniões e de postura, o nível maior ou menor que a experiência de vida e de pesquisa nos traz, tudo isso nos enriquece, porque nos provoca a refletir, nos emociona e nos faz “sentir e ver a árvore que há na árvore, o riso que há no riso, a flor que há na flor.”


Nosso agradecimento a todos que nos honraram com seus artigos e poemas e que produziram o número 8 da Revista com a gente. Nosso agradecimento ao AUTOR VISUAL, que, com Cláudia Santana, têm dado à nossa Revista uma bela apresentação visual, quer pela diagramação dos textos, quer pelas adequadas ilustrações. E, por fim, nosso apelo a você: a porta está aberta, entre neste Ateliê e venha produzir com a gente o novo número de nossa Revista.

EDITORIAL

Jayme Costa Barros Sócio-Diretor do Módulo


SUMÁRIO

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O cotidiano sagrado da escola Entrevista com Lino de Macedo

MÃES ENCARCERADAS RESENHA DO LIVRO FILHOS DO CÁRCERE Aline Costa D’Eça

PEDAGOGIA DO AFETO: A IMPORTÂNCIA DOS PAIS NO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DA CRIANÇA Cinthya Pereira da Silva

NA TRILHA DOS DESTROÇOS ensaio sobre o livro O mundo se despedaça Rafael Santana Barbosa

Edição de Texto e Estudo da Argumentação numa Carta do Senado da Cidade do Salvador no século XVII ao Rei de Portugal Daniel Calmon Torres Gilberto Nazareno Telles Sobral

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POEMAS Alice sou eu? Novoretrato Crepúsculo Os Escritos de LaudicEia Folhetim Vermelho Festejos do dia 14 Rogério Elegibô LAS DOS MALETAS J. DeloRO


Jayme Costa Barros

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A IMPORTÂNCIA DA ADOÇÃO DE UMA POLÍTICA DE ACESSO ABERTO NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR

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Uma Salvador Fest: entre Guerra e Amado, a construção de alegorias da baianidade

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Flávia Rosa

Rogério F. Borges Elegibô

NORMAL OU PATOLÓGICO? Maria Thereza Ávila Dantas Coelho

CONEXÕES... Infância em Conflito com a lei, Sociedade BRASILEIRA e Educação para os Direitos Humanos Ana Katia Alves dos Santos

Galeria Prentice Carvalho

Gregório de Matos: Os usos e representações DA cultura e da LÍNGUA latina na obra do poeta baiano Silvio Wesley Rezende Bernal

SUMÁRIO

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REGIONALISMO BAIANO PRÉ-MODERNO DESCONHECIDO E ESQUECIDO


ENTREVISTA

O cotidiano sagrado da escola Gabriela Rossi ( ) Jornalista e autora do livro “Paz na Escola – ações e reflexões para a vida social em harmonia”, lançamento da Secretaria de Cultura de Salvador, 2001. E-mail: gabriela8rossi@yahoo.com.br


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“Tempos de ensinar, aprender e conhecer”. A temática relacionada aos desafios da Educação na atualidade foi abordada de forma palpitante por Lino de Macedo, professor titular na área de Psicologia do Desenvolvimento e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, durante o 16º Seminário Pedagógico do Módulo. Conferencista presente na última edição do tradicional evento realizado pelo Colégio Módulo, Criarte e Espaço Vestibular, Lino é considerado, no país, um dos maiores estudiosos da Teoria de Piaget. Especialista consagrado no aprofundamento das questões da Educação na atualidade, ele trouxe para a plateia questionamentos instigantes à luz da Psicologia aplicada à Educação. “Na Educação, continuamos atuando de uma forma homogênea, na qual a régua é a mesma para todo mundo”, argumentou, ao apontar a necessidade de criar condições para valorizar a expressão da individualidade.

Coordenador do Laboratório de Psicopedagogia do Instituto de Psicologia da USP, Lino é um nome de referência na área educacional. Foi orientador de mais de cinquenta teses de doutorado e mestrado, com vários artigos incluídos em publicações nacionais e internacionais. É autor de alguns livros de cabeceira para educadores e psicólogos, entre os quais a conhecida obra “Ensaios Construtivistas”, lançamento da Casa do Psicólogo Editora. Atualmente, desenvolve um programa de pesquisas sobre o uso educacional de jogos sob a perspectiva construtivista. Lino é do tipo que alia o conhecimento à prática, conforme demonstra nos interessantes insights e posicionamentos contidos na entrevista a seguir.

Como fazer a tradução do discurso científico para os alunos? A ciência tem uma pretensão descritiva e explicativa dos fenômenos. Uma coisa é observar a realidade; outra coisa é fazer a tradução dessa realidade. Temos que observar a equivalência de sentido, portanto uma conversão deste discurso não é algo simples. A ciência abstrai e cria algo sintetizado, que gera uma expressão. Uma coisa é a experiência, outra coisa é o discurso sobre a experiência. Os alunos têm dificuldade de compreender o texto científico. A criança usa os elementos de ligação do texto como um jogo, no qual elas criam suas histórias naturalmente. É preciso aprender a ensinar esses elementos de ligação. Não é simples entrar no discurso empoleirado no livro didático. O professor não consegue, muitas vezes, traduzir o conteúdo de forma didática. Se o cérebro não consegue entrar na alma do sistema, mesmo intuitivamente, é como se caísse uma bomba em cima dele. Se não há compreensão, a pessoa não vai ser um jogador, vai ser uma peça do jogo.

Quais são os desafios da transmissão do conhecimento teórico? Há uma necessidade social de que as pessoas dominem minimamente bem os conteúdos da Escola como valor filosófico, valor político, como formação da consciência. O conhecimento científico tem um modo de produção, através de uma sociedade científica. Esse conhecimento é convertido em teoria e parte dessa teoria é transmitida pelo professor ao aluno. Nesse contexto, é preciso que o aluno possa, de algum modo, se relacionar, por exemplo, com o fazer a Matemática. Hoje, se trabalha muito a carpintaria do texto, pensando É importante estimular um pensar a aprendizagem do ponto de vista do aluno, processo capaz de argumentar, ponderar no qual o professor é o mediador. É importante ese dar sentido às coisas. timular um pensar capaz de argumentar, ponderar e dar sentido às coisas.

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Como lidar com os desafios cotidianos na relação com os alunos e com a família?

É preciso se ocupar do cotidiano com a mesma intensidade, para dar a aula. Cotidiano é respeito e é convivência.

Os professores estão acostumados com o paradigma de se ocupar com o conteúdo. É preciso se ocupar do cotidiano com a mesma intensidade, para dar a aula. Cotidiano é respeito e é convivência. A Escola tem uma cultura própria e tem seus ritos. A mediação com os alunos acontece pelos ritos da aula, do recreio, da lição de casa, das provas. Os ritos escolares têm os seus propósitos. Precisamos, ainda, refletir sobre a estrutura das famílias, marcadas pela dispersão e pelas questões de poder. Veja a situação dos pobres meninos ricos: como motivar e convencer um garoto pretensioso e infeliz? O contexto familiar reforça uma relação consumista, sem qualidade e predatória, na qual as pessoas não sabem fazer bom uso das suas boas condições. Colocar a culpa na família, entretanto, é bobagem. É jogar a batata quente na mão do outro. Não adianta desqualificar os pais, porque o sistema não dá conta dessa situação. As crianças aprendem sobre a vida no cotidiano, ludicamente e vendo a gente agir. São muito sensíveis em relação à experiência. O adulto é espelho e referência para os mais novos. A aula é transmissão oral, face a face, expressão corporal e sensibilidade. Tudo isso é forjado no dia a dia da sala de aula. Aprender a ouvir e a discutir não é sessão de terapia, e esse não é o papel da Escola – isso faz parte do cotidiano. Há uma aposta no século XXI de que a Escola possa gerenciar questões do cotidiano. Usamos nomes novos para problemas antigos: o desafio é a gestão de conflitos e do tempo. O professor é o grande gestor das situações conflitantes na sala de aula. Ele deve colocar o problema para o aluno, olhando no olho, com sinceridade. Não dá para fingir que não está acontecendo nada. Abrir o olho e escutar o aluno são atitudes que fazem a diferença.

Como é possível otimizar o processo educativo? A Escola foi eleita a principal instituição educacional do mundo. É seu papel transmitir valores éticos e filosóficos para formar cidadãos. O professor é o porta-voz do maior poder: o conhecimento, um espaço sem limites. A gente vai muito pela média e pelo que é normal. Piaget propõe o conceito do ótimo: o que é melhor para cada um, em cada momento da vida. Como é possível oferecer o ótimo das possibilidades para que cada pessoa atinja o ótimo dos seus recursos? Na Educação, continuamos atuando de uma forma homogênea, na qual a régua é a mesma para todo mundo. O professor tem que trabalhar o raciocínio e o comportamento social, favorecendo a socialização entre os alunos. Tem que mudar a estrutura e inovar a aula, além dos moldes totalmente tradicionais. O ambiente é favorável, pois as pesquisas indicam que os alunos gostam da escola, o

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lugar de convivência e aprendizados – o que eles não gostam é da maneira como acontece o processo educativo em sala de aula. É preciso levar em conta que o cotidiano só é suportável se tiver um caráter sagrado. Sagrado no sentido de precioso e prazeroso, longe de ser enfadonho.

Ponto de vista Transcrevemos alguns trechos extraídos de artigos e publicações diversas, que exprimem o pensamento e a opinião do professor Lino de Macedo. “Um erro comum é achar que a falta de disciplina é sempre do outro. Fala-se muito que as crianças de hoje não têm limites. É verdade. Mas nós, adultos, também não temos. Em uma sociedade como a nossa, um dia se almoça de manhã, outro dia, de tarde; outro dia, enquanto se fala ao celular. Nós é que não temos rotinas para organizar a vida das crianças. Entendemos os motivos da nossa “indisciplina”, porque sabemos que, para muitas pessoas, a regularidade se tornou impossível. Mas, se nós não somos disciplinados, por que esperamos um comportamento regular das crianças, como se fosse uma coisa natural, espontânea, quase herdada? Podemos conquistar o aluno para um projeto de disciplina conseguindo a admiração dele. Em sua origem, a palavra disciplina tem a ver com discípulo. Discípulo é uma pessoa que tem alguém como modelo e se entrega pelo valor que atribui a essa pessoa. Com o tempo, perdeu-se o elemento de referência que havia antigamente. Isso tem de ser novamente conquistado, pouco a pouco, pelos dois lados”. (Revista Brasil Escola, Agosto de 2005) “Os aspectos mais marcantes de minha visão são de natureza interdisciplinar. Ou seja, de um lado a criança e seu processo de desenvolvimento (tal como entendido e estudado experimentalmente por Piaget) e, de outro, a Escola e sua função de iniciar os alunos nas artes e nas ciências, sobretudo em Matemática e em Língua Portuguesa. Trata-se, portanto, de uma visão interdisciplinar e psicopedagógica do conhecimento. Interdisciplinar, porque disciplinas, discípulos e docentes são considerados como partes interdependentes, isto é, irredutíveis, complementares e indissociáveis. Psicopedagógica, porque a didática (os conteúdos e os modos de ensinar, bem como as características daqueles que se responsabilizam por sua transmissão) é considerada em relação (ou seja, tanto quanto possível, de forma não-dualística) às crianças que aprendem e aos contextos socioculturais (família, classe social, etc.) a que pertencem e que definem, em parceria com a Escola, as significações desta aquisição para elas.” (Psicologia Escolar e Educacional (Impr.), vol. 8, nº 2, Campinas, Dec. 2004)

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MÃES ENCARCERADAS Resenha do livro Filhos do Cárcere

Aline Costa D’Eça ( ) Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, Coordenadora da Assessoria de Comunicação Social do Ministério Público do Estado da Bahia. Poetisa, alguns de seus textos podem ser acessados no blog www.misteriosacaixa.blogspot.com. E-mail: deca.aline@gmail.com


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Mãe é algo feito para estar sempre perto. Em especial, quando se é criança. Mas nem sempre é assim. Existem mães que estão separadas dos filhos por grades. Outras que, atrás das grades, ficam grávidas. Mães que geram seus filhos em um ambiente sombrio e que, quando dão à luz, trazem para perto de si um pouco de luz: a vida e o amor por seus filhos. Essas mães ficam com os seus bebês por apenas seis meses, período legal da amamentação, e após este período sofrem talvez a pior das penas para uma mãe: a separação de seus filhos... Outras mães, muitas delas chefes de família, são separadas dos filhos no momento em que são presas por algum crime que cometeram. A maioria vai para a cadeia por tráfico de drogas ou em razão da parceria com seus companheiros em outro tipo de crime. As suas crianças ficam relegadas aos cuidados de familiares e de outras pessoas ou acabam indo para creches e abrigos. Algumas dessas histórias, tão ricas e tão desconhecidas da população em geral, podem ser lidas no livro-reportagem “Filhos do Cárcere”, de minha autoria, publicado em 2010 pela Editora da

Universidade Federal da Bahia (Edufba). Fruto de um projeto experimental produzido no segundo semestre de 2006 como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia, ele obteve nota máxima de dez pontos da banca de avaliação e a indicação para publicação. Foi o primeiro livro-reportagem publicado pela editora. A história do sistema penitenciário brasileiro é repleta de episódios que apontam para o descaso com relação às políticas públicas na área penal e para o desrespeito aos direitos humanos. A prisão, quando de sua implantação no Brasil, foi utilizada para diversos fins: alojamento de escravos e ex-escravos, asilo para menores e crianças de rua, casa para abrigar doentes mentais e fortaleza para encerrar os inimigos políticos. Geralmente afastados dos principais centros urbanos, os cárceres, monumentos máximos de construção da exclusão social, costumavam ser implantados em ilhas, lugares inóspitos e bairros periféricos. Cercados por muros altíssimos escondiam uma realidade desconhecida, entretanto aceita pela população: os maus-tratos, a tortura, a promiscuidade e os vícios.

A prisão, quando de sua implantação no Brasil, foi utilizada para diversos fins: alojamento de escravos e ex-escravos, asilo para menores e crianças de rua... Desde o início da colonização, o Brasil serviu como exílio para os presos condenados ao degredo pela Corte Portuguesa. Com a chegada da Família Real, em 1808, a legislação penal no Brasil ficou a cargo das Ordenações Filipinas e o degredo se manteve durante esse período como forma de livrar Portugal de sua população indesejável. Podemos dizer que o Brasil era uma enorme prisão sem grades, onde os condenados deveriam permanecer por um prazo que variava de cinco anos até o resto da vida. Segundo historiadores, o degredo era aplicado aos alcoviteiros, culpados de ferimentos por arma de fogo, duelo, entrada violenta ou tentativa de entrada em casa alheia, resistência a ordens judiciais, falsificação de documentos, contrabando de pedras e metais preciosos. As mulheres condenadas ao degredo no Brasil eram principalmente aquelas que cometiam crimes relacionados à sexualidade: ser amante de clérigos ou outros religiosos; simular gravidez; ou atribuir parto alheio como seu. O sistema prisional só foi efetivamente implantado no país com a Constituição de 1824. Nela, era estabelecido que as prisões deveriam ser seguras, limpas, arejadas, havendo a separação dos réus conforme

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a natureza de seus crimes. Mas as casas de recolhimento de presos do início do século 19 mostravam condições deprimentes para o cumprimento da pena por parte do detento. No Rio de Janeiro, por exemplo, o edifício da chamada Cadeia de Relação, projetado para abrigar 15 pessoas, chegou a comportar até 390 pessoas em 1828. Na segunda metade do século 19, o Relatório do Conselho Penitenciário do Distrito Federal indica a presença de mulheres presas no Calabouço; eram 187 escravas presas junto com os homens. A partir do século 20, para um melhor controle da população carcerária, passou-se a separar os presos segundo categorias criminais: contraventores, menores, processados, loucos e mulheres. Este isolamento, no entanto, entrou em choque com o cotidiano da realidade carcerária. Questões estruturais impossibilitavam a separação dos criminosos por grau de periculosidade e por sexo em muitos presídios. A presença reduzida de mulheres nos cárceres até então não justificava a existência de estabelecimentos penais exclusivamente femininos. No estudo ‘Os Sistemas Penitenciários do Brasil’, José Gabriel Lemos Brito, membro do Conselho Penitenciário que foi instalado em 1º de dezembro de 1924 no Brasil, registrou naquele ano a situação em que se encontravam as prisões de algumas capitais brasileiras, considerando-a como “nefasta” e “odiosa”, e propôs, em 1925, a adoção de um novo sistema penal. Para a questão das mulheres presas, propôs a construção de uma prisão nacional, localizada no Rio de Janeiro, onde seriam recolhidas as mulheres criminosas de todos os estados, condenadas a penas maiores de quatro anos. As causas mais comuns apontadas para a condenação feminina eram: a desordem, vadiagem, furto, ferimentos e infanticídio. O objetivo primeiro da criação de uma unidade penal feminina isolada das unidades masculinas, conforme preconizou Lemos Brito, era “exorcizar o demônio dos desejos sexuais incontidos” e reabilitar a mulher para o lar. As primeiras penitenciárias exclusivamente femininas só começam a ser criadas na época do Estado Novo, quando entra em vigor uma nova legislação penal: o Código Penal de 1941 e o Decreto Lei nº 3.971 de 24 de dezembro de 1941, criando a Penitenciária de Mulheres no Distrito Federal. Antes dessa unidade foi construída em 1941, em São Paulo, o Presídio de Mulheres no Complexo Carandiru. Contudo a experiência do Distrito Federal foi considerada a primeira e mais importante por ser um modelo inovador, funcionando como o “reformatório” proposto por Lemos Brito, dispondo de uma arquitetura que dava ênfase à negação da aparência prisional que se

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queria obter, com ausência de grades, de celas de castigo, baixa altura e aparente leveza do muro que protege a penitenciária, dormitórios coletivos (ao invés de celas individuais) e capela aberta ao público. (QUINTINO, 2005, p. 47). A construção dos presídios femininos se justificava pelo fato de que a proximidade das mulheres, como argumentou Lemos Brito, aumentava nos homens sentenciados “o martírio da forçada abstinência sexual”. Um fator relevante a ser considerado, embora não sejam encontrados dados a esse respeito na literatura sobre a história do sistema prisional brasileiro, é que os encontros de presos e presas possibilitavam muito mais que o contato sexual; através dele, crianças eram geradas e nasciam dentro das prisões. Atualmente, mesmo com a existência de penitenciárias específicas para mulheres e homens, o quadro parece não ter sofrido modificações. Primeiro porque as mulheres que dão à luz na prisão geralmente engravidam nas delegacias, onde ainda costumam ficar em celas junto com os homens. O direito à visita íntima, garantido pela Constituição Federal de 1988 e regulado por uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) em 1999, seria o segundo ponto a ser citado como causa do nascimento de crianças na prisão. A partir desta constatação e instigada pela curiosidade sobre a verdadeira realidade destas crianças, pelo menos a nível estadual, elegi a temática sobre as crianças filhas de presidiários como tema do meu trabalho de conclusão de curso. Pelo caráter experimental


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As primeiras penitenciárias exclusivamente femininas só começam a ser criadas na época do Estado Novo, quando entra em vigor uma nova legislação penal: o Código Penal de 1941 e o Decreto Lei nº 3.971 de 24 de dezembro de 1941, criando a Penitenciária de Mulheres no Distrito Federal. do projeto e devido à limitação de tempo para executá-lo, procurei concentrar minhas investigações nas crianças filhas de presidiárias e ex-presidiárias que nasceram dentro do contexto prisional baiano porque são geralmente as mulheres as responsáveis diretas pela criação dos filhos, e, quando elas ficam impossibilitadas de exercer este papel, as crianças são geralmente confiadas aos cuidados de outras pessoas. A decisão também levou em conta a maior facilidade no acesso às presas que aos presos. Estabelecidas tais diretrizes, passei a frequentar uma instituição que abriga filhos de presidiários, o Centro Nova Semente, ligado à Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Salvador e coordenado pela freira italiana Adele Pezone, e a Penitenciária Feminina do Complexo Penitenciário do Estado da Bahia, localizada no bairro da Mata Escura, em Salvador, com a finalidade de mostrar um pouco da realidade das crianças que têm a mãe (e na maioria dos casos também o pai) cumprindo pena. A maioria das notícias sobre as penitenciárias nos veículos jornalísticos baianos limita-se a denúncias sobre rebeliões, violência, poder paralelo, e assuntos factuais que não traçam o perfil social daqueles que foram condenados ao cárcere. Mesmo tendo grande relevância social, o fato de crianças estarem vivendo no ambiente carcerário, expostas a todo

tipo de risco, é desconhecido por grande parcela da população baiana, uma vez que o tema costuma passar despercebido pela imprensa. Diante desta constatação e considerando que o assunto merecia ser investigado e interpretado mais a fundo, a elaboração de um livro-reportagem foi selecionada por ser este um veículo de abordagem menos superficial e que, em geral, tende a satisfazer, de forma mais profunda, a informação social. Não houve, diga-se com destaque, intenção de realizar uma análise sociológica da situação dos presos e seus filhos em busca das soluções mais adequadas a serem adotadas, mas de apresentar à sociedade, através do trabalho jornalístico, uma perspectiva do sistema penitenciário pouco abordada, buscando fortificar as reflexões sobre as relações sociais existentes no ambiente carcerário, principalmente as que envolvem a população infantil. Ao desvendar um pouco da história dessas pessoas, que estão excluídas da sociedade porque cometeram atos inaceitáveis para a vida social, acreditei que poderia colaborar de alguma forma para uma reflexão mais séria e sensível acerca dos problemas que o sistema penitenciário traz para a sociedade, debatendo não apenas a criminalidade, como já é feito nos meios de comunicação social, mas principalmente as suas causas, quase sempre ligadas à exclusão social.

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Os jornais, revistas, programas de rádio e televisão procuram concentrar a abordagem sobre os criminosos em aspectos efêmeros, contextualizando os fatos apenas com números (de presos, de mortos, de ataques), com detalhes a respeito dos crimes cometidos, com estatísticas sobre a criminalidade e com algumas análises comparativas, deixando de lado um estudo mais profundo sobre as causas da criminalidade e sobre o perfil social do criminoso: o seu contexto socioeconômico, seu nível educacional e suas relações familiares.

Depois que os indivíduos infratores adentram o cárcere, especialmente aqueles que não possuem notoriedade porque são pobres e desconhecidos, não mais interessam notícias sobre eles, muito menos sobre as implicações sociais do seu aprisionamento. Ao contrário, quando são anunciadas denúncias sobre violações dos direitos humanos nas penitenciárias, como a superlotação e as condições insalubres a que estão expostos os detentos, geralmente essas notícias são acolhidas sem muito espanto pela população.

O nosso jornalismo diário, especialmente as editorias de polícia, serve-se das notícias sobre os criminosos seja concentrando-se apenas nas ações policiais que resultam na captura dos delinquentes, seja acompanhando os julgamentos dos crimes de maior repercussão, e, depois da condenação, anunciando o tempo de prisão que o criminoso terá que cumprir. Depois disso, quando os criminosos adentram os muros das penitenciárias, o assunto é encerrado, os flashes são apagados... Raramente encontramos em nossos veículos de comunicação notícias sobre o que acontece dentro das prisões.

Através do livro-reportagem, procurei fornecer o relato da realidade analisada com mais detalhes, na tentativa de superar a superficialidade e o imediatismo e oferecer uma visão mais universal dos fatos. Este tipo de jornalismo, caracterizado pela prática de reportagem de profundidade e que tem como proposta a confecção de textos fora da estrutura rígida do lead e da pirâmide invertida, dá-se o nome de “Novo Jornalismo” ou “Jornalismo Literário”, estilo adotado para confecção do texto de “Filhos do Cárcere”.

A proposta para a produção do trabalho foi apresentar ao leitor as características de um lugar ao qual o grande público não tem acesso – a penitenciária –, desvendando a realidade cotidiana das pessoas que ali vivem isoladas da sociedade e fornecendo uma visão de como funcionam suas relações familiares, especialmente com os seus filhos. Através das pesquisas, descobri que o assunto na legislação brasileira, mais especificadamente na Lei de Execuções Penais, se resume ao direito das presas de permanecerem com os filhos durante o período da amamentação e à obrigatoriedade da instalação de berçário e creche nas penitenciárias femininas. Isso porque quando é o pai que vai para a cadeia, geralmente a mãe, que está livre, toma conta das crianças e as leva para o presídio nos dias de visita. Mas, nas situações inversas, em que é a mãe que está presa, as crianças vivem no cárcere ou acabam em instituições para menores carentes. Diante deste aspecto e levando em conta que são as crianças filhas de presidiárias (ou ex-presidiárias) que vivem de forma mais intensa a realidade carcerária, as investigações foram concentradas nos casos das crianças que nasceram e viveram com as mães na prisão. As pesquisas aconteceram predominantemente na Penitenciária Feminina e no Centro Nova Semente, instituição criada exclusivamente para acolher crianças que têm a mãe e o pai, ou apenas a mãe, na prisão. Por causa da inexistência de um berçário e de uma creche na penitenciária feminina baiana – ilegalidade que foi denunciada com pioneirismo no livro-reportagem – as presas geralmente optam por entregar seus filhos aos cuidados da instituição, que promove encontros semanais entre as mães e os filhos, no sentido de reforçar a manutenção dos vínculos. Com as pesquisas e com o trabalho de campo, foi detectado que a implantação de uma creche fora do contexto penitenciário para acolher filhos de presidiários era inovadora, e, por isso, o seu funcionamento, as dificuldades e os problemas enfrentados por ela foram detalhados no livro.

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Das entrevistas com as presidiárias, com as assistentes sociais da penitenciária, com familiares das detentas e com as cuidadoras das crianças e das observações feitas nos locais surgiu grande parte do conteúdo do livro-reportagem. Deste modo, foi elaborado um roteiro explorando a biografia das pessoas, a forma como elas adentraram o contexto penitenciário, os antecedentes familiares e a implicação da prisão para as relações com a família. Foi captado o máximo de detalhes sobre a vida dos entrevistados e sobre os seus comportamentos.

“A intenção deste trabalho foi tentar ir além dos muros, além dos crimes, além do noticiável, na tentativa de uma aproximação com o real. Afinal, números podem ser importantes, mas não mais que histórias de vida; não mais que as pessoas”.

Não houve um processo de seleção de entrevistados. Como as entrevistas aconteciam duas ou três vezes por semana, procurei não interferir muito nas atividades rotineiras do estabelecimento. A assistente social da penitenciária auxiliou-me no acesso às presas, deixando-me à vontade para escolher quem entrevistar, desde que fosse respeitado o direito de a presa não querer conceder entrevista. Algumas entrevistas foram gravadas, mas em outras, para deixar as entrevistadas mais à vontade, deixava para registrar as informações em um papel assim que saía da penitenciária. Em relação às crianças, não houve entrevistas e sim pequenas e fragmentadas conversas e anotações acerca do que elas falavam e de suas atitudes, uma vez que a maioria delas tinha entre zero e seis anos e mal sabiam se expressar verbalmente. O trabalho de descrição foi intenso durante todo o texto, o que causa no leitor a sensação de estar observando “pinturas” ou as “cenas” reais descritas. Retratos de uma realidade tão próxima e tão distante. Cenas de um mundo desconhecido, dramáticas e emocionantes... “A intenção deste trabalho foi tentar ir além dos muros, além dos crimes, além do noticiável, na tentativa de uma aproximação com o real. Afinal, números podem ser importantes, mas não mais que histórias de vida; não mais que as pessoas”. REFERÊNCIAS: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal. BRASIL. Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos no Brasil. Brasília: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 1995. CDHM – Comissão de Direitos Humanos e Minorias Câmara dos Deputados. Situação do Sistema Prisional Brasileiro. 2006. D’EÇA, Aline. Filhos do Cárcere. Salvador: EDUFBA, 2010. ELUF, Luiza Nagib. O Contraponto entre a Realidade e o Ideal do Sistema Prisional. Disponível em: http://www.mj.gov.br/Depen/ publicacoes/luiza_eluf.pdf. Acessado em: 22 de julho de 2006. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ONU. Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos. ONU, 1955. PEDROSO, Regina Célia. Utopias Penitenciárias: projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/ Doutrina/texto.asp?id=5300. Acesso em: 18 de novembro de 2006. QUINTINO, Silmara Aparecida. Creche na Prisão Feminina do Paraná: humanização da pena ou intensificação do controle social do Estado? Curitiba. 2005. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/5937/1/Capa+e+Sum%3Frio.pdf. Acesso em: 18 de novembro de 2006. SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Creche no Sistema Penitenciário: um estudo sobre a situação da primeira infância nas unidades prisionais femininas brasileiras. Brasília. 2002. Disponível em: www.mj.gov.br/depen/publicacoes/monografia_rosangela.pdf

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PEDAGOGIA DO AFETO:

A IMPORTÂNCIA DOS PAIS NO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DA CRIANÇA Cinthya Pereira da Silva ( ) E-mail: cinthya_ftc@hotmail.com


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Por ser o primeiro núcleo de interação social da criança, a família tem influência direta no desenvolvimento de suas capacidades sociocognitivas. É a partir deste convívio social que a criança adquire os primeiros princípios e valores que deverão permear sua forma de pensar, sentir e agir, desenvolvendo a linguagem e apreendendo a cultura por meio dos hábitos e costumes dos pais. O ambiente familiar alicerça a construção das habilidades sobre os quais se dará o processo de formação do indivíduo. A primeira linguagem estabelecida entre a mãe e a criança é essencialmente afetiva. O aleitamento, o toque, os cuidados pessoais, as manifestações de carinho fazem parte do processo de desenvolvimento físico e psíquico do bebê; e é exatamente este subsídio que garantirá o crescimento saudável e satisfatório em todas as fases da vida, sendo quase impossível dissociar a relação de reciprocidade entre o psicoemocional e o cognitivo no ser humano. O acolhimento afetivo proporciona a sensação de segurança, potencializando a formação da autoestima e autoconfiança. Uma pesquisa realizada por uma equipe de cientistas da Universidade de Turim, na Itália, concluiu que a produção de neurotransmissores no cérebro depende do carinho da mãe. Os neurotransmissores agem na interação entre os neurônios, ajudando a controlar a ansiedade, regulando o apetite e a energia do corpo. (Psique Ciência & Vida, 2012). Atenção, carinho e amor são, portanto, ingredientes fundamentais na educação das crianças; o que não exclui a necessidade de limitá-los coerentemente, ensinando que atitudes geram consequências e que é preciso responsabilizar-se pelas escolhas feitas. Práticas disciplinares inflexíveis ou inconstantes constituem interações negativas, aumentando a ocorrência de deficit de aprendizado e gerando problemas comportamentais como agressividade, insegurança, medo ou timidez e, portanto, dificultando o desenvolvimento das relações interpessoais. Por sua vez, pais impulsivos, ansiosos ou emocionalmente instáveis transmitem à criança uma constante sensação de ameaça, fazendo-a se sentir insegura e restringindo a construção de suas capacidades. Quando os pais apresentam um comportamento agressivo, de gritar ou bater, tanto na intervenção educativa como em outras situações do cotidiano, as crianças acabam por repetir o modelo empregado, mesmo que inconscientemente, acreditando que tal atitude gera algum tipo de controle e poder. Tais práticas, por serem autoritárias, podem trazer uma série de

consequências danosas para as crianças como o desenvolvimento do comportamento violento ou o uso da mentira. Da mesma forma que práticas coercitivas e repressivas geram consequências negativas, práticas demasiadamente permissivas não educam. A falta do limite é a perda da referência educativa. O momento do “erro”, em que se faz necessária uma intervenção, é um momento privilegiado. É a hora de parar, olhar nos olhos da criança e explicar com firmeza o motivo de algo estar certo ou errado pelas consequências que traz, pelos problemas que pode ocasionar. É um momento de ensino e aprendizado. As afirmações feitas e os conceitos explicados neste momento precisam ser constantes para que a criança incorpore o conceito do valor ensinado. Sentimentos emocionalmente negativos como intolerância, agressividade, não fazem parte de uma educação equilibrada.

Da mesma forma que práticas coercitivas e repressivas geram consequências negativas, práticas demasiadamente permissivas não educam.

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O diálogo é fundamental na relação pais e filhos, pois, além de aproximar, constitui uma ferramenta de Uma casa precisa de muito socialização e mediação de conflitos. O simples fato de mais do que um teto, paredes e ouvir, demonstrando interesse em conhecer os anseios, móveis para ser um lar. medos e frustrações, tendo a flexibilidade necessária para administrar assuntos polêmicos e delicados, fortalece o vínculo afetivo e a confiança. Dialogar é compreender, o que não significa aceitar o que não é conveniente. É conduzir dúvidas e insucessos de modo a superá-los. A reação exagerada dos pais cria obstáculos para um diálogo aberto. As palavras faladas têm um excepcional poder de produzir reações emocionais. Se um pai afirma ter um filho com problemas de aprendizagem, certamente ele o terá. Tais afirmações por si só desmotivam o indivíduo, fazendo-o acreditar não ser capaz. Quando o subconsciente internaliza uma declaração negativa, limita a capacidade cognitiva. Ao contrário, palavras positivas ajudam a criança a se tornar mais segura, superando suas próprias limitações e conquistando seus ideais. Uma casa precisa de muito mais do que um teto, paredes e móveis para ser um lar. São os sentimentos envolvidos dentro deste espaço que o definirão como um lar. A casa onde vive uma criança, constitui um dos espaços físicos mais significativos para ela, pois é ali onde são construídas suas primeiras e principais referências de mundo. Os pais são o exemplo fundamental na educação das crianças e suas palavras têm uma enorme carga emocional na formação de sua autoestima. Portanto, o ato de motivar, aconselhar, elogiar, incentivar a superação das limitações de ordem intelectual e emocional e, principalmente, de promover momentos de carinho e aconchego, além de proporcionar vivências mais saborosas, ajudam na formação de cidadãos completos. “Nem sempre os navios vão para o lugar que seus fabricantes imaginaram. Ninguém pode garantir que caminho o filho vai seguir, mas seja para onde for, deve levar dentro dele valores como ética, humildade, humanidade, honestidade, disciplina e gratidão, dispondo-se a aprender sempre e a transmitir o que mais puder com vistas a estabelecer relacionamentos integrais com todas as pessoas, independentemente de sua origem, cor, credo e condições socioeconômicas e culturais. O filho nasceu dos pais, mas é um cidadão do mundo.” (TIBA, 2002, p. 258).

REFERÊNCIAS: TIBA, I. Quem ama educa. São Paulo: Gente, 2002. CONTROLE DAS EMOÇÕES: cuidados maternos ativam o cérebro. Revista Psique Ciência & Vida, ano VI, nº 76, p. 13, abr., 2012.

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20 NA TRILHA DOS DESTROÇOS

ensaio sobre o livro O mundo se despedaça Rafael Santana Barbosa ( ) Graduação em Licenciatura em História. Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, Feira de Santana E-mail: raffael@ymail.com


Já há muito tempo escuto sobre literatura africana. Comecei a ter acesso a alguns textos faz pouco mais de um ano, a partir do estudo de tópicos especiais em História da África. Seguindo o caminho da interface entre História e Literatura, me propus a ler um dos autores de que sempre ouvira falar, porém não ainda tinha lido. Este autor é Chinua Achebe. O Mundo se Despedaça é sua obra primeira e que, também, inaugura o que os críticos costumam denominar de moderna literatura nigeriana. Surpreendente deve ser o adjetivo mais repetido por aqueles que leem esta obra. E não consegui ser tão diferente em relação a isso. O livro O Mundo se Despedaça traz de maneira simples e direta os costumes e tradições do povo igbo antes da chegada dos missionários britânicos e o ruir das tradições culturais à medida que o colonizador vai ganhando espaço físico, social e moral nas aldeias. [...] os igbo não entraram em contato direto com os europeus antes dos últimos anos do século XIX e no início do século XX. Quando houve o contato, ele ocorreu ao longo de vias navegáveis como o Níger, o Imo e o Cross. Assim sendo, os centros comerciais situados nestes rios, onde se encontravam os atravessadores do litoral e os comerciantes do interior do país, tornaram‑se mais bem conhecidos que o restante do país. (ALAGOA, 2010, p. 856)

A fim de narrar esse acontecimento, que nas linhas de Achebe se dá de maneira trágica, Okonkwo é a personagem que representa e sintetiza a cultura igbo. Deste modo será ele que irá até as últimas consequências com intuito de salvar sua aldeia da invasão do colonizador branco, sua religião e seu governo. Em síntese, como o próprio autor dividiu, o livro contém três partes: a) a vida de Okonkwo em Umuófia (sua aldeia); b) o exílio em Mbanta (terra de sua mãe); c) os primeiros contatos com os brancos, o retorno a Umuófia e o desmoronar das práticas e costumes aldeães. Torna-se importante a leitura de O Mundo se Despedaça na medida em que o autor traça as características da chegada dos missionários britânicos, não por eles mesmos, mas por aqueles que receberam tal novidade, neste caso o povo igbo. Elementos dos textos que discutem a metodologia de se pesquisar a História da África se tornam evidentes, como por exemplo, o valor da palavra para as culturas africanas em geral. O autor, todo o tempo, utiliza a tradição oral, estórias e provérbios, às vezes sem muita conexão para um leitor desabituado. Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções‑chave, isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. (VANSINA, 2010, p. 139-140)

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Alinhavando acontecimentos, estórias e provérbios, Achebe põe em relevo que o processo de colonização não pode ser visto apenas como a vitória do homem branco, mas como algo que também ocorre à medida que o processo de desestruturação da própria aldeia permite o avanço do colonizador. Okonkwo, que vive atormentado pelo passado do pai, passa a ter atitudes sempre a provar sua coragem e força. Oriunda disso, o autor elenca uma série de acontecimentos que levam seu protagonista a se envolver em episódios que o colocam como algoz do seu próprio futuro: bater na mulher na semana que antecede a colheita, presenciar a morte de Ikemefuna, atirar sem querer no filho de Ezeudu. Assim, Achebe deixa no ar a perspectiva de que essa série de acontecimentos atrai a má sorte para a aldeia.


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Ainda no que concerne à visão “por dentro” da ruína da vida de Okonkwo e, por conseguinte, de sua aldeia Umuófia, durante todo o enredo os mais velhos estão dando conselhos. Personagens como o velho Ezeudu e Uchendu, tio de Okonkwo, afirmam que já não se vive união entre as aldeias como no tempo deles. As coisas estão muito mudadas, os jovens não dão mais ouvidos aos anciãos, querem fazer as coisas por conta própria e já não têm amigos em outras aldeias. Essa visão de rompimento com os costumes é anterior ao contato com o homem branco. Podemos aferir mais uma vez o fato de que Umuófia e as outras aldeias em geral como Abame e Mbanta, já continham elementos que provocariam o seu despedaçamento. Todavia, apropriando-se da vida do autor como referência para obra, podemos chamar Chinua Achebe como um “sujeito híbrido”, ao lado, por exemplo, de Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor de A invenção do Nordeste e Outras Artes; Edward Said, autor de Orientalismo: O Oriente como Invenção do Ocidente; e Frantz Fanon, autor de Os Condenados da Terra. Essa noção de sujeito híbrido parte da trajetória de vida desses autores e o que eles expressam em suas obras. Chinua Achebe escreve um romance que conta a maneira como a sociedade igbo se desmoronou, seja a partir de seu contexto interno de grandes alterações nos costumes, seja no contato com o homem branco e sua religião. Ora, o autor de O Mundo se Despedaça nasceu em dos primeiros centros missionários anglicanos na região da Igbolândia na Nigéria. Sua família era tipicamente cristã, estudou Medicina e Literatura na Universidade de Ibadan (construída pelo britânicos a fim de educar a elite nigeriana). Destarte, filho de dois mundos, ele utilizou o que aprendeu com o colonizador para tratar dos costumes igbos; a partir da língua do colonizador e de sua prática de escrever sobre o colonizado (como ele salienta no final do livro). Achebe ressignificou e construiu um romance que, com maestria, destrincha a maneira pela qual se dá a dialética do contato entre costumes diferentes.

Outro dado presente na trajetória de Chinua Achebe e de O Mundo se Despedaça é que o romance foi publicado dois anos antes da emancipação nigeriana do jugo britânico. Tomando por base a discussão feita acima sobre o autor ser filho de dois mundos, temos que, no momento da escrita e publicação da obra, a própria Nigéria estava passando por uma situação de reorganização social. Sendo assim, mesmo que tomemos a escrita como parte de um discurso anti-imperialista, retratando a Nigéria do século XIX, antes da chegada dos europeus, o romance está inserido em seu próprio tempo. E daí sobrevém o quanto o próprio título de livro pode estar relacionado com a conjuntura da época em que foi escrito. O Mundo se Despedaça pode significar, para além do processo inicial de colonização, o processo de emancipação da Nigéria.

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É possível pensar assim, pois como podemos ler nos ...Chinua Achebe, no momento textos que tratam dos processos de independência das em que o mundo colonial africano colônias africanas, em muitos casos não houve guerras de independência, e sim movimentos de pressão, interna passava por agitações, escreve e e externa, inclusive grupos ligados à religião. A década inscreve O Mundo se Despedaça, dando de 1950 (quando foi escrita a obra) representou quase visibilidade às práticas e costumes que, de maneira geral, o levante e emancipação de dide seu povo a partir de uma prática versas colônias africanas. A emancipação, porém, não significou, nem poderia significar o retorno à condição já demasiadamente conhecida do de pré-colonização. Os estados africanos tinham sido, colonizador: a escrita. em sua maior parte, reinventados durante o período colonial, nações rivais agora pertenciam a um mesmo Estado, fronteiras foram desfeitas e refeitas, os costumes das aldeias já tinham sido mesclados com os costumes do colonizador, bem como a religião. A partir daí, as contestações anti-imperiais tinham sido, como contradição, elaboradas no seio da própria política colonial. No plano sociocultural, a Nigéria, cuja população supera em número o total de habitantes das colônias francesas, pode se gabar da existência, já secular, de uma elite anglicizada (advogados, pastores, professores) e de uma imprensa africana também quase secular. (SURET-CANALE. BOAHEN, 2010, p. 194).

E, assim, o mundo colonial passou a se despedaçar como Okonkwo afirmou em um momento que a realidade lhe sobreveio à mente “ele (o homem branco) cortou com uma faca o que nos mantinha unidos, e nós nos despedaçamos”. (ACHEBE, 2009, p. 198). É nesse jogo de relação entre dois mundos, a educação britânica anglicana e a tradição ancestral do povo igbo, que Chinua Achebe, no momento em que o mundo colonial africano passava por agitações, escreve e inscreve O Mundo se Despedaça, dando visibilidade às práticas e costumes de seu povo a partir de uma prática já demasiadamente conhecida do colonizador: a escrita.

REFERÊNCIAS: ACHEBE, C. O mundo se despedaça. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009. ALAGOA, E. J. O Delta do Níger e Camarões. In: História Geral da África – VI. Brasília: UNESCO, 2010. pp. 843-873. ALBUQUERQUE JR., D. M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4. ed. Recife: Cortez, 2009. FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2006. KI-ZERBO, J. Introdução. In: História Geral da África - I. Brasília: UNESCO, 2010. pp. 21-41. SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SURET-CANALE, J. BOAHEN, A. A. A África Ocidental. In: História Geral da África – VIII. Brasília: UNESCO, 2010. pp. 191-227. OUZOIGWE, G. N. Partilha europeia e conquista da África: apanhado geral. In: História Geral da África VII. Brasília: UNESCO, 2010. pp. 43-67. VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: História Geral da África – I. Brasília: UNESCO, 2010. pp. 139-166.

FONTE DAS IMAGENS: Imagem 1 – Chinua Achebe – http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/22/chinua-achebe-grandfather-african-literature-dies-aged-82 Imagem 2 – Capa do Livro – http://companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12738 Imagem 3 – Região da Igbolândia (Nigéria) – http://www.sitesatlas.com/custom/Igboland.htm

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24 Edição de Texto e Estudo da Argumentação numa Carta do Senado da Cidade do Salvador no século XVII ao Rei de Portugal Daniel Calmon Torres (

)

Graduando em Letras/Espanhol pela Universidade do Estado da Bahia. Bolsista de Iniciação Científica/FAPESB. Pesquisador do Projeto “Polifonia e Argumentação na relação Colônia-Metrópole nos séculos XVII e XVIII. E-mail: danielcalmonba@hotmail.com Autor.

Gilberto Nazareno Telles Sobral (

)

Doutor em Letras pela UFBA. Professor Adjunto da UNEB. Professor do Programa de Pós-Graduação em estudos da linguagem/UNEB. Pesquisador do grupo de Edição e Estudo de Textos (Diretório dos Grupos de Pesquisa-CNPQ). Coordenador do projeto “Polifonia e Argumentação na relação Colônia-Metrópole nos séculos XVII e XVIII. E-mail: gsobral@uneb.br Orientador.

RESUMO Este trabalho tem o objetivo de editar e analisar as técnicas argumentativas presentes em uma Carta da Câmara da Cidade do Salvador no século XVII, escrita a Sua Majestade, a fim de revelar os traços argumentativos que marcam o contexto histórico e cultural da primeira capital do Brasil. Para tal objetivo foi utilizado como embasamento teórico dos estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca no livro Tratado da Argumentação: a nova retórica. Palavras-chave: Crítica Textual; Manuscrito brasileiro; Argumentação.


INTRODUÇÃO A primeira Câmara Municipal foi fundada no Brasil colonial, em 1532, na vila de São Vicente. Durante a época colonial as câmaras exerciam inúmeras funções. Inicialmente seu papel era agir sobre as múltiplas necessidades das urbis, como abastecimento, saúde, higiene, até aplicações de leis. Com a perda de alguns desses atributos, na época republicana, as câmaras se tornaram o espaço da representação política da sociedade, a fim de proteger os munícipes contra o rigor das imposições fiscais ou contra o excesso das autoridades na direção da casa pública, indo contra vontade de reis, governadores, bispos, juízes. Em 13 de junho de 1549, foi fundada a Câmara Municipal da Cidade do Salvador, que se tornou uma das mais importantes do Império Português no período colonial na América e portadora de um grande acervo de documentos das mais diversas situações ocorridas na Cidade do Salvador.

A edição de texto Ao realizar estudos de documentos históricos é necessário adentrar na área especializada em tal questão. A Crítica Textual dedica seus trabalhos no resgate de documentos, os quais representem memórias históricas. Pode-se dizer que a edição de textos nasceu da poesia, devido à origem dos seus primeiros trabalhos realizados por eruditos alexandrinos em poemas épicos de Homero. Tais trabalhos eram voltados para a restauração, intelecção e explicação dos textos com o propósito de catalogar as obras, revê-las, comentá-las, provê-las de sumários e anotações, questões gramaticais, juízos de valor estético, etc. O período clássico, ao adotar tal tipo de cultura literária, acabou gerando a necessidade de preparar textos legíveis, apurá-los e publicá-los. Segundo Perugi e Spaggiari (2004, p. 18), ‘desde meados do século XV, a cópia manual é o meio mais utilizado pelo homem para registrar uma memória coletiva que transmite para a posteridade as heranças culturais dos nossos antepassados’. Encontra-se, em Salvador, na Fundação Gregório de Matos, o Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Salvador, cujo acervo é composto, entre outros, de livros de registros de “Cartas do Senado a Sua Magestade1”, no período de 1742-1822, revelando as relações entre Coroa Portuguesa e a Colônia brasileira. 1

Manteve-se a grafia conforme original.

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O corpus utilizado neste trabalho para análise é uma carta enviada pela Câmara da Cidade do Salvador, no século XVII, à Sua Magestade, em 23 de julho de 1697. Composto dos fólios 16 e 17, recto e verso, apresenta o registro acerca da aplicação das sobras de sedimento da Casa da Moeda. Seguindo os processos do labor filológico, após a escolha do corpus e feita sua leitura paleográfica, foram adotados procedimentos para a transcrição fidedigna do documento, cujo caráter conservador da edição objetiva a manutenção das características da língua no período em questão.

1. Reproduzir com fidelidade o texto (grafia, pontuação, etc.). 2. Indicar o número dos fólios, à margem direita. 3. Numerar o texto, linha por linha, indicando a numeração de cinco em cinco, desde a primeira linha do fólio, reiniciando a numeração no seguinte. 4. Desdobrar as abreviaturas com o auxílio dos parênteses ( ). 5. Indicar interpolações com o auxílio de colchetes [ ]. 6. Indicar as rasuras ilegíveis com o auxílio de colchetes e de reticências [...].


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Transcrição do manuscrito Registro deuma carta escrita aSua Magestade sobre que as sobras do sendimento da Caza da Moeda pagos gastos dessa seapliquem aCom5 petente do que ainda sedeve da tinta e pão de Olanda

25 desta, eseacha já demais algum Resto q. sedeve despender, por discrição e ordem de Vossa Magestade prostrados aseus Rudes [...] como humildes eleaies Vassalos lhepedimos que attendendo aomi 30 zeravel estado, emque hoje seacha este Povo afidilidade com que sem-

Foi Vossa Magestade servido conceder que nesta Cidade houvesse Caza da Moeda onde se fabricasse dinheiro Pro10 vincial para uso da mesma Cidade, eporfazer favor aos moradores destas mandais por carta sua de vinte etrês de março demilseis centos noventa equatro, acrescentar o valor da[...] [...] 15 que nadita Caza sehouvesse para que das obras dessa sepagassem os gastos dos Oficiaes mais paramentos

pre obedeceo a Vossa magestade eagrande aveichação com que há tantos annos está pagando atinta 35 do Donativo e pan de Olanda lhefasas graça mandar que as sobras que seacharem, efazem vencendo do dito dinheiro depois depagas as despezas da caza seapliquem ao compettente doque ainda se 40 deve para satisfaçam dadita tinta do Donativo epage de Olanda, eseentregue ao Tesoreiro dessa para que mais brevemente sepossa esta Cidade [...] deste tributo,

Parametos dadita Caza, e[...] Vossa Magestade desy todo o lucro que dastais so20 bras dessa sepagassem nisto aconveniencia dos seus Vassalos ao regimento da sua Lei , alfazenda, eporque do Nº, obs. qise já tem entrado na dita Caza sem havido sobras

E por está eas mais graças que de Vossa 45 Magestade recebemos, nos mostramos sempre obedientes eleaes Vassalos de Vossa Magestade cuja Real Pessoa nos guarde e Seas como dezejamos bahia Camara vinte etrês de Julho demilseis cento noventa e sete

bastantes asatisfazer osgastos edespezas

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As condições de produção O orador são os membros da Câmara, cujo papel é o representante e defensor dos interesses dos habitantes da Cidade do Salvador. O auditório, o tu da enunciação, é o Rei de Portugal D. João IV. É para este que o orador dirige sua argumentação, transmite a situação e destina a carta. O aqui corresponde ao lugar de onde o orador (eu) enuncia, é nele que o mesmo se legitima. Como se trata de “Cartas do Senado a Sua Magestade”, os membros da Câmara falam como autoridade que representa as vontades do povo da Cidade Salvador. O agora é o momento da enunciação. É preciso considerar os aspectos sócio-históricos e políticos do momento. O século XVII foi marcado pelo início (1624-25) e fim da invasão holandesa e declínio da cana-de-açúcar (1660), além dos primeiros indícios de ouro em Minas Gerais (1697). Com a queda da cana-de-açúcar, houve uma crise de alimento e de produtos básicos. Tendo em vista a necessidade do pagamento de uma dívida e ciente das sobras dos sedimentos da Casa da Moeda, diante de uma crise, o enunciador apela ao Rei com o intuito de utilização da referida verba. Portanto a emissão dessa carta ao Rei de Portugal solicitando a resolução de um problema, justifica o corpus dessa pesquisa, tendo em vista o importante momento histórico.

Levantamento dos processos argumentativos A obra Tratado da Argumentação: a nova retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, publicada em 1958, tem se tornado modelo dos estudos recentes ligados à Retórica. Tal tratado marca uma ruptura com o conceito cartesiano de razão e raciocínio defendido por Descartes em Discurso sobre o Método (1637), onde a evidência é posta como marca simbólica da razão e tem como falso tudo aquilo que é verossímil, admissível, ou seja, plausível. A Nova Retórica representa uma reconstrução da retórica de Aristóteles, na qual a noção de argumentar está ligada aos lugares (topois). O valor atribuído aos lugares na visão aristotélica indica a influência que a escolha destes possui na aquisição de resultados efetivos no processo de argumentar. Na percepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca, A Nova Retórica representa uma reconstrução da retórica de Aristóteles, a argumentação está ligada diretamente à aceitação ou consentimento dos interlocutores. Portanto o processo argumentativo pressupõe a aplicação de técnicas discursivas que produzem

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ou fazem crescer a adesão do auditório conforme o caso. A Nova Retórica segue uma perspectiva de apresentar uma argumentação como procedimento, no qual o orador sustenta uma ou mais ideias a fim de submeter à anuência do auditório. Nesse sentido, os argumentos consistem em meios pelos quais os sujeitos sustentam as suas ideias com a intenção de captar a audiência ou assentimento do interlocutor a fim de persuadi-lo ou convencê-lo. Para que o orador adquira à adesão do auditório, afim de que seu pedido seja atendido pelo Rei, ele inicia a cena enunciativa ressalvando uma antiga ordem dada pelo mesmo, na qual o Rei concebeu a Casa da Moeda um certo valor destinado aos gastos dos Oficiais e outros da Casa, como pode ser percebido no excerto seguinte: Foi Vossa Magestade servido conce/ der que nesta Cidade houvesse Caza da/ Moeda onde se fabricasse dinheiro Pro/ vincial para uso da mesma Cidade,/ eporfazer favor aos moradores destas/ mandais por carta sua de vinte etrês de/ março demilseis centos noventa equa/ tro, acrescentar o valor da [...] [...]/que nadita Caza sehouvesse para/ que das obras dessa sepagassem os gas/ tos dos Oficiaes mais paramentos/ dadita Caza. (CÂMARA, 1697)


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...os argumentos consistem em meios pelos quais os sujeitos sustentam as suas ideias com a intenção de captar a audiência ou assentimento do interlocutor a fim de persuadi-lo ou convencê-lo.

Na sequência, o orador ressalta o regimento e cumprimento da lei e ordem do rei mediante ao fato (a crise de alimentos e produtos e as sobras de sedimento) para a adesão do auditório. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), o fato é uma adesão por parte do auditório universal que seria inútil reforçar, assim o acordo sobre os fatos é algo que se produz em um processo argumentativo. Como pode ser observado no excerto abaixo: E (...) Vossa Magestade desy todo o lucro que dastais so/ bras dessa sepagassem nisto aconveniencia/ dos seus Vassalos ao regimento da sua Lei/, alfazenda, eporque do (Nº, obs.) qise já tem/ entrado na dita Caza sem havido sobras/ bastantes asatisfazer osgastos edespezas/ desta, eseacha já demais algum Resto/ q. sedeve despender, por discrição e ordem/ de Vossa Magestade. (CÂMARA, 1697)

Dando continuidade à argumentação, o orador utiliza de uma série de estratégias argumentativas visando a persuadir o auditório. Percebe-se o uso de um argumento de transitividade devido às relações de superioridade entre membros da Câmara e o Rei. Além de utilizar de palavras que toquem a emoção do auditório (humildes e mizeravel), o orador também se utiliza do apelo ao povo como motivo maior da súplica que faz. A Cidade de Salvador passava por uma crise de alimentos desde a crise da cana-de-açúcar. Outra estratégia argumentativa seria a valorização dos serviços prestados pelos vassalos à Câmara, demostrando gratidão, lealdade e fidelidade à Coroa. Tal fato é visto no trecho prostrados aseus/ Rudes como humildes eleaies Vassalos lhepedimos que attendendo aomizeravel estado, emque, hoje seacha/ este Povo afidilidade com que sem/ pre obedeceo a Vossa magestade. Na sequência do processo argumentativo, nota-se um direcionamento da argumentação em direção à esperança dos membros da Câmara em relação à atitude a ser tomada pelo Rei a favor da Cidade. ...eagrande aveichação com que há/ tantos annos está pagando atinta/ do Donativo e pan de Olanda lhefas/ as graça mandar que as sobras que/ seacharem, efazem vencendo do dito dinhei/ ro depois depagas as despezas da caza/ seapliquem ao compettente doque ainda se/ deve para satisfaçam dadita tinta do Do/ nativo epage de Olanda, eseentregue ao/ Tesoreiro dessa para que mais brevemente/ sepossa esta Cidade (...) deste tributo. (CÂMARA, 1697)

Ao finalizar a carta, o orador despede do Rei com palavras sobre suas qualidades e características, demostrando obediência, respeito, lealdade e submissão. E por esta eas mais graças que de Vossa/ Magestade recebemos, nos mostramos sem/ pre obedientes eleaes Vassalos de Vossa Ma/ gestade cuja Real Pessoa nos guarde e Seas/ como dezejamos bahia Camara vinte/ etrês de Julho demilseis cento noventa e sete. (CÂMARA, 1697)

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CONCLUSÃO A edição do manuscrito que compõe o corpus deste trabalho representa a preservação de um importante registro do cotidiano da administração da Cidade do Salvador. A partir da análise aqui apresentada, observam-se algumas formas do relacionamento entre a Câmara da Cidade de Salvador e o Rei de Portugal, nas quais o discurso usado não só teria a intenção de revelar a situação que passava o povo da Cidade mas também o consentimento do Rei à tese de que seus Vassalos são obedientes, leais e que a Câmara era um órgão responsável, que atende às necessidades dos habitantes da Cidade. O locutor direciona seu discurso utilizando sua posição de membro (autoridade) da Câmara em nome do povo que enfrentava uma crise (o fato), a fim de persuadir o auditório. O caráter pragmático da argumentação, portanto, confirma a importância da linguagem nas interações sociais.

O caráter pragmático da argumentação, portanto, confirma a importância da linguagem nas interações sociais.

REFERÊNCIAS: CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à Crítica Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PERELMAN, Chaim. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie: Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. RUY, Affonso. História da Câmara Municipal do Salvador. 2.ed. Salvador: Câmara Municipal de Salvador, 1996. SANTANA NETO, J. A. de. O páthos e a argumentação: Uma Visão Retórico-Pragmática. In: TEIXEIRA, Maria da Conceição Reis (Org.). Diferentes Perspectivas dos Estudos Filológicos / Maria da Conceição Reis Teixeira; Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz; Rosa Borges dos Santos (Org). -Salvador: Quarteto, 2006. SOBRAL, Gilberto Nazareno Telles. A Interdisciplinaridade entre os Estudos Filológicos e os Linguísticos. In: TEIXEIRA, Maria da Conceição Reis (Org.). Diferentes Perspectivas dos Estudos Filológicos / Maria da Conceição Reis Teixeira; Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz; Rosa Borges dos Santos (Org). Salvador: Quarteto, 2006. SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica: crítica textual. São Paulo: Cultrix, 1977.

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po e m as Poemas Alice sou eu? Novoretrato Crepúsculo Os Escritos de LaudicEia Folhetim Vermelho Festejos do dia 14 Rogério Elegibô

LAS DOS MALETAS J. DeloRO


Alice eu? Alicesou sou eu? Alice não ficou no buraco... Não creu nas maravilhas... Berrou a terra, mesmo que o veloz coelho não lhe autorizasse a Ser... Alice foi... É... Pena que eu não sou Alice!

Novoretrato Novoretrato Stravinsky é de uma época em que o esquecimento banhava meu corpo, quando entendi o Baobá, fiz-me Elegibô: Templo de Oxalá.

Crepúsculo Crepúsculo ...às vezes, é na tarde que crescemos...

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Os Escritos Laudiceia Os Escritos de de Laudiceia Poética do final da tarde VI Cuide-se, minha casca dura, que não conseguir nunca penetrar e tanto tentei e tanto busquei que pena, Amor, não queres me amar. Cuide-se, Senhor dos Matos e use a flexa, ó meu caçador e olhe o caminho e corte os espinhos e tome cuidado com a força do sol. Cuide-se, meu labirinto, podes seguir que posso fazer? Eu tanto tentei. Eu tanto busquei, mas não fui capaz de fazer seu prazer. Refiz minha pele, refiz os meus pelos, refiz-me inteira pra te agradar. Cuide-se, meu grande amor e cuidado com a força das ondas do mar.

Cuide-se, meu pergaminho, viagem sem volta é o nosso amar, é como borracha que usa-se e gasta “não quero não posso nem devo chorar” Cuide-se, sua desgraça, pois pouco te importa esse bem querer, mas eu te entrego à escruzilhada, te entrego ao tempo, ao vento, amor, te entrego ao tempo, às folhas do mato, te entrego à estrada, aos raios do sol, à sua soberba, de que eu não sei? sua estupidez que guardas para mim, aguarde a vingança com juros, eu juro, este meu sofrer já, já, tem um fim... Cuide-se desta maldição e quando estiveres bem torto no chão te procurarei te protegerei te entregarei o meu coração.

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FolhetimVermelho Vermelho Folhetim E Chapeuzinho menstruou, cantando em felicidade, pela floresta sombria, levando doces, levando sonhos, levando cio para a velha vovozinha E Chapeuzinho menstruou. Feliz naquele instante. Seu corpo tomado de sangue se fez mulher, mesmo que o mundo gritasse cuidado E Chapeuzinho menstruou. Excitou-se com a grandeza do lobo e descaradinha não interrompeu seu desejo: pulos saltitantes em coito As mãos, a orelha, o nariz, o corpo taludo do Lobo descrito neste meu verbo ruim como um Chokito na boca daquela fescenina criança

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E Chapeuzinho menstruou. O pobre caçador não sabia, bobo, matou o Lobo inocente Mas Chapeuzinho menstruou, ainda sim, menstruou alegre, pintada pelo choro do útero.


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Festejos dia1414 Festejosdo do dia Chegou a hora de festejarmos. Acabou a ilusão, o cinismo, a mentira, a liberdade flagelada por uma história que não é nossa... É hora de festejarmos nos corpos, em terra sonâmbula, adubando o chão vermelho da senzala e da favela... É hora de festejarmos o cadeado que não foi quebrado, o capitão que virou fantasma no nosso labiríntico mundo, é uma caveira oficial histórica, perversa e tal é a caveira que está subindo, é hora de jantarmos medo, esmagando a força que nos livrou do banzo...

É hora de festejarmos já é hora, meus irmãos, sim, chamemos Zumbi, Luís Gama Agorensi, Bobosa e Abalhe Pararasi, Ludovina e Aguesi Walê, Mawusí e Lokosi a Luisa de Mahi, bote pronto, em silêncio como os pés de Daomé... É hora de festejarmos o Oswaldo muito antes do que eu, verbo negro de um caderno salvador! Dia 13 que se vá na lança fina de Ogum e no fogo de Sogbô. É hora de festejarmos, minhas irmãs, ouçamos o galo na aurora vermelha, no horizonte neblinado, na giratória metralhadora de todas as manhãs, ainda assim, é hora de festejarmos o dia 13 já passou...

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LAS DOS MALETAS LAS DOS MALETAS

¡Atención!.

De dos maletas,

Presta atención

Una para cada mano,

Desprevenido transeúnte

Para que en ellas cargue

Que vas peregrinando

El equipaje de la vida;

Por los andurriales de la mortalidad.

Mientras peregrinas, ordenó, En la de la derecha

Presta atención

Depositarás las realizaciones

A un proyecto de escritor que con cantarinas frases intenta hacer un poema. ¡Atento!. Porque te va a contar Una historia o un cuento Al impulso del viento, Al pie del lugar Donde comenzó la vida, Cuando el gran fuego Inició la ruptura De la barrera blancogrisacea De nubes y nubarrones. Atención caminante. Escucha esta narración Acorde con la realidad Y ajena a la fantasía; Una historia que se remonta

Que provienen del oficio Con que la existencia Se torna productiva. En la de la izquierda, Empacarás el desempeño En los guiones de la vida, Con aciertos y errores, Convertidos en esencia humana Marcados por el sexo, Cuando seas hijo, hermano, Conyugue, padre o amigo. Por última vez El contador de historias Hizo ruptura del silencio: Al final de los días O de tarde en tarde,

Al instante del big bang

Construirás con tu cuerpo

De la existencia.

Una imaginaria balanza; Alzando las maletas,

En el amanecer de la vida,

Poniendo la cabeza como fiel,

Con la luz primera,

Sentirás que tu existencia fue exitosa,

El destino, los hados,

Si el fiel se inclinó a la izquierda.

Los dioses o Dios,

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En consonancia con las creencias,

Laguna de la Soledad, en el Caribe,

Hace entrega al nuevo ser

Mayo 8 de 2013.


REGIONALISMO BAIANO PRÉ-MODERNO DESCONHECIDO E ESQUECIDO

“...uma conexão Xavier Marques – Jorge Amado – João Ubaldo, Xavier é pai de Jorge. E avô de Ubaldo.” (RISÉRIO, Antônio. 2004, p. 410).

Jayme Costa Barros (

)

Professor. E-mail: jaymepaz@uol.com.br

RESUMO Os grandes temas do regionalismo baiano moderno são lançados na ficção da Bahia nos últimos anos do século XIX e primeiros anos do século XX. Três autores – Xavier Marques, Afrânio Peixoto e Lindolfo Rocha –, por não terem o ímpeto de militância política de esquerda e por estarem influenciados pela linguagem requintada do Parnasianismo então dominante na Bahia e bastante combatida pelas primeiras gerações modernas, ficaram esquecidos. Mas são eles que lançam as bases daquilo que veio ser o Modernismo de Jorge Amado, de Adonias Filho, de Herberto Sales, de João Ubaldo Ribeiro, de Antônio Torres, para citarmos apenas alguns. É necessário resgatar a memória desses três ficcionistas, contextualizando-os naquilo que são limites de sua época e das opções ideológico-políticas que assumiram. É preciso enfatizar a capacidade de criar, de identificar e analisar os problemas sócio-político-econômicos da Bahia, de descrever os costumes da sociedade baiana e de sentir a beleza da paisagem da terra, tudo isso que os torna os grandes prenunciadores daquilo que viria a ser o regionalismo baiano moderno, em sua visão lírico-poética da paisagem baiana (cidade, campo e mar) e em seu posicionamento crítico frente aos problemas sociais, políticos e econômicos. Palavras-chave: Regionalismo, Regionalismo pré-moderno baiano, Xavier Marques, Afrânio Peixoto, Lindolfo Rocha.

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INTRODUÇÃO A proximidade entre o Romantismo (década de 1830) e a Independência (1822) fez que a necessidade de “exaltar a pátria livre” se tornasse uma constante em nossos autores românticos. E o sentimento nativista brota forte: o canto das belezas da paisagem, dos heróis do passado, heróis às vezes mitificados, o indianismo, o sertanismo, o canto ao pitoresco, à “cor local”. Estes serão os germes de que nascerá o Regionalismo. Em outros termos: o nativismo patriótico e ufanista leva, naturalmente, ao canto das belezas e costumes regionais e daí à crítica à sociedade regional, suas práticas, seus problemas. Tudo isso, porém, sem perder o sentimento da unidade nacional, presente sempre na diversidade de temas e de tipos regionais. Em A LITERATURA NO BRASIL, v. IV, Parte II, obra dirigida por Afrânio Coutinho, no capítulo O REGIONALISMO NA FICÇÃO, diz Adonias Filho: “O essencial, todavia, nessa literatura regional, é que não se põe em xeque a unidade do país... O regionalismo é um conjunto de retalhos que arma o todo nacional. É a variedade que se entremostra na unidade, na identidade de espírito, de sentimento, de língua, de costumes, de religião. As regiões não dão lugar a literaturas isoladas, mas contribuem com suas diferenciações para a homogeneidade da paisagem literária do país”. (COUTINHO, 1986, p. 237)

Esta visão romântica das regiões evolui da idealização ufanista e sentimental para uma identificação crítica da diversidade e dos problemas regionais. Franklin Távora (1842-1888), nos limites entre Romantismo e Naturalismo, foi o primeiro a usar o tema da seca e da saga do jagunço em O Cabeleira (1876). Além disso, foi quem lançou a idéia da “literatura do Norte” (prefácio de O Cabeleira), primeiro portanto a levantar a bandeira do regionalismo e das “regiões” literárias com suas características próprias. (COUTINHO, 1997, p. 267)

No prefácio de O CABELEIRA, obra publicada em 1876, lançando o manifesto “Literatura do Norte”, Franklim Távora afirma: As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul, abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro. (...) Não vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que não aninho em meu coração

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brasileiro. Proclamo uma verdade irrecusável. Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política.” (TÁVORA, s/a, p. 7-8)

Reconhecem-se as diversidades regionais, sociais, políticas, mas admite-se, nesta diversidade, uma unidade nacional: “são irmãos”, “coração brasileiro”. Por tudo isso é que, em sua História da Literatura Brasileira, Nélson Werneck Sodré afirma que o Regionalismo revelou o Brasil aos brasileiros. E conclui: “No conjunto, o regionalismo correspondia, inequivocamente, a um grande avanço no sentido da criação de uma literatura nacional”. (SODRÉ, 1976, p. 408) E, na esteira de Fraklim Távora, no Realismo-Naturalismo, vão surgir, no Nordeste, nomes como os de Aluísio de Azevedo, Adolfo Caminha, Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo, Manuel de Oliveira Paiva. E obras marcantes, às vezes escandalizadoras, vão definindo os grandes temas nordestinos. A ficção brasileira afirmou um compromisso com o mundo brasileiro – a paisagem, os problemas, os tipos sociais, os costumes, o povo, auscultando-o através dos provincialismos ou agrupamentos regionais, em missão de testemunho ou documento. (COUTINHO, 1997, p. 272)

O Regionalismo é a Literatura Brasileira descobrindo o país e revelando-o em suas belezas e em seus problemas.


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O Regionalismo é a Literatura Brasileira descobrindo o país e revelando-o em suas belezas e em seus problemas. Mas o centro da ficção regionalista é o homem, não a região. A crítica literária ressalta o humanismo dos autores regionalistas. A preocupação central é o homem existindo dentro de condições sociais, econômicas, políticas e, até mesmo geográficas adversas, no campo como na cidade. Ressalta-se “a pequenez do homem em relação aos problemas que o ambiente lhe opõe”. (COUTINHO, 1997, p. 264). E Carvalho Filho, falando da obra de Xavier Marques, Afrânio Peixoto e Lindolfo Rocha, afirma: “Na ficção dos três, embora marcadamente regional, é valorizada a criatura humana como realidade universal única”. (in SANTANA, 1986, p. 24) Caracterizando essa ficção regionalista, afirma Lúcia Miguel Pereira que “o estudo da natureza humana dentro de determinado quadro social e natural que lhe condiciona as reações sem contudo modificar-lhe a essência” é “o verdadeiro sentido do Regionalismo”. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 209) E conclui: “...a identificação das criaturas com o seu meio, longe de as absorver e nivelar umas às outras, como que lhes confere maior relevo”. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 210)

Na Prosa dos últimos anos do século XIX e anos iniciais do século XX, seja ela literária ou não literária, encontramos uma profunda integração do escritor na realidade nacional.

CONTEXTO NACIONAL – PROSA LITERÁRIA E NÃO LITERÁRIA Na Prosa dos últimos anos do século XIX e anos iniciais do século XX, seja ela literária ou não literária, encontramos uma profunda integração do escritor na realidade nacional. Na prosa não literária, na análise da realidade nacional, seria grande a lista de bons autores. Para não nos alongarmos, citamos apenas alguns nomes: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Torres, Capistrano de Abreu e Oliveira Viana. Na prosa de ficção deste período, a análise do homem em seu mundo interior e nas condições sócio-político-econômico-geográfica em que vive, a visão crítica da realidade brasileira estão presentes na obra de Lima Barreto, de Graça Aranha, de Monteiro Lobato, na obra maior de Euclides da Cunha: OS SERTÕES. E, do Norte ao Sul, se desenvolve e se amplia a ficção regionalista, na qual o sentimento nacionalista, as influências do Romantismo, Realismo, Naturalismo e, mesmo, a preocupação formalista dos parnasianos se unem a um espírito renovador, às inovações temáticas, literárias e linguísticas que irão aprofundar-se no Modernismo. É o que vemos na obra dos já citados nordestinos Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo, Manuel de Oliveira Paiva, na obra do mineiro Afonso Arinos, na do paulista, Valdomiro Silveira, na dos gaúchos, Simões Lopes Neto e Alcides Maia, na do goiano, Hugo Ramos e em tantos outros. Sobre o Regionalismo deste período, escreveu Alfredo Bosi: “Se a poesia oscilava entre o neoparnasianismo e o neossimbolismo, na prosa já se pode contar com um vigoroso regionalismo, que supera em verdade seus avatares românticos, antecipando-se à imersão na realidade nacional que iria caracterizar a literatura modernista”. (BOSI, 1966, p. 55)

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CONTEXTO DA LITERATURA BAIANA Se olharmos, em seu conjunto, a prosa baiana nos últimos anos do século XIX e nos anos iniciais do século XX, podemos destacar: •

na prosa não literária, RUI BARBOSA, sempre presente nos problemas políticos nacionais, não só com uma militância ativa na vida política brasileira, mas também com presença forte em outros campos da cultura brasileira e baiana.

na prosa literária, o REGIONALISMO BAIANO, com Xavier Marques, Afrânio Peixoto e Lindolfo Rocha. Diz Adonias Filho: “o romance baiano, mesmo situando-o no contexto da literatura brasileira, será facilmente reconhecido”, “é um dos blocos mais densos na literatura brasileira”. (in COUTINHO, 1986, p. 264). É a Bahia em sua capital e em todas as suas regiões que é “des-velada”, revelada.

São temas baianos mais constantes: •

a temática urbana (Salvador) – aspectos históricos, o geográfico, a beleza da paisagem, a crítica social e política, os aspectos étnicos, os preconceitos, a intolerância religiosa;

Itaparica e suas ilhas – o histórico, as belezas naturais, a vida dos pescadores;

a seca e suas consequências sociais, econômicas e humanas;

o garimpo, a Chapada Diamantina, a exploração do trabalho dos garimpeiros, a mudança nos costumes, a presença de pessoas de outros estados e mesmo estrangeiros, a riqueza, a prostituição de luxo;

o pastoreio; o alambique;

o cacau, a luta pela apropriação da terra, o pistoleiro, as mudanças sociais e econômicas, as mudanças dos hábitos e costumes; e

a região do São Francisco – os coronéis e seus “cabras”.

Adonias Filho, na obra citada, enfatiza que “o meio físico auxilia a sensibilidade poética”, “a própria terra, sua luz, suas cores, a poderosa atmosfera plástica”, “o impressionante enraizamento na terra”, a preocupação com a abordagem homem-realidade regional, em seus aspectos sociais, políticos, econômicos, têm como consequência que “os romancistas não se recolhem a uma atitude intelectiva”. “Inutilmente buscaremos um analista de paixões, um lógico, alguém que aprisione a ficção no círculo de um debate íntimo, uma questão metafísica, uma explicação subjetiva”. Isso imprime certa permanência e homogeneidade ao Regionalismo Baiano, que vemos quando comparamos o Xavier Marques de Jana e Joel e O Feiticeiro ao Jorge Amado de Mar Morto e Jubiabá; o Lindolfo Rocha de Maria Dusá ao Herberto Sales de Cascalho. “A correlação não será apenas de fundo... compõe uma identidade mais íntima, interior, essencial...”. Por isso, conclui que “até hoje, mesmo enfrentando revoluções, como o Modernismo, o romance baiano não se descaracterizou, apesar, às vezes, de temperamentos e ideologias opostas dos vários baianos romancistas. A terra, tantas vezes descoberta com rudeza e lirismo, nas mutações sucessivas, não traduz apenas uma faixa do mundo. Mas abriga uma humanidade que se integra na condição comum, sua psicologia e seu destino interessando, sua presença literária bastando para explicar universalmente o homem. Fundindo-se no regionalismo brasileiro, acompanhando as linhas análogas, é possível que permaneça no clima normal, a legitimidade artística resultando da comunhão do homem com sua terra”. (in COUTINHO, 1986, p. 275)

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XAVIER MARQUES: A CRÍTICA À SOCIEDADE BAIANA, A HISTÓRIA DE SALVADOR E OS COSTUMES PRAIEIROS DE ITAPARICA Francisco Xavier Marques (Itaparica, Bahia, 3 de dezembro de 1861 – Salvador, Bahia, 30 de outubro de 1942), jornalista, liberal, poeta, político, foi deputado estadual (1915-1921) e federal (1921-1924), contista, novelista, romancista, biógrafo, ensaísta, historiador. Projetou-se, sobretudo, como romancista. Entrou para a Academia Brasileira de Letras. É um dos fundadores da Academia de Letras da Bahia. Fez apenas o curso primário, terminou com o título de professor da Faculdade de Filosofia. Xavier Marque deixou uma obra de ficção que não pode ficar sem registro, ao menos no âmbito regional. Livros como O Feiticeiro e Jana e Joel, por exemplo. (JANA E JOEL´é de 1899; O FEITICEIRO é de 1922). O Feiticeiro é um retrato “realista”, sob certos aspectos admirável, da sociedade oitocentista baiana, captando práticas, valores e costumes de nossa gente – do estrato intermediário da hierarquia social, sobretudo –, nas mais variadas circunstâncias, entre as décadas de 70 e 80 do século XIX: “os concursos de luxo”, as festas religiosas; os “oitavários estrondosos do Bonfim”; a cadeira de arruar e o escravo fugido; a repressão policial ao Candomblé e ao clube republicano; os comerciantes estrangeiros; a fraude eleitoral; “a sensualidade crioula” e as batucadas boêmias; os dobrados, a capoeira, os ternos na Lapinha, os bailes pastoris no Maciel de Baixo, a dança da “burrinha” no Pelourinho; os “capadócios gaiatos” tomando conta das praças; negros carreando água dos chafarizes; o culto das aparências; os preconceitos sociais e raciais. Em suma, é a Cidade da Bahia, “mulata velha”, mostrando suas muitas faces. Há ainda um outro aspecto, especialmente importante. A “feitiçaria nagô” atravessa o romance. É o despacho de Exu, a pedra de raio de Xangô, o culto da gameleira sagrada, o amplo circuito de babalaôs e ialorixás, de atabaques e iaôs, de ogãs e de alabês, de gente mascando obi e aviando ebós. Enfim, O Feiticeiro marca o ingresso do mundo dos orixás – da “alma nagô”, como diz o próprio Xavier Marques – no romance brasileiro. Dele descende o Jubiabá de Jorge Amado, por exemplo, e as peripécias de orixás e iaôs em Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo. Além disso, pode-se dizer que Marques é, ainda, a matriz da ficção praieira de Amado. De Jana e Joel novela que focaliza em modo romântico a vida comunitária e ilhas e praias da Bahia de Todos os Santos, descende uma narrativa como a de Mar Morto – e Mar Morto é, também, uma das matrizes básicas de Viva o Povo Brasileiro. O que nos permite divisar, portanto, uma conexão Xavier Marques – Jorge Amado – João Ubaldo, Xavier é pai de Jorge. E avô de Ubaldo. (RISÉRIO, 2004, p. 409-410)

Xavier Marques “pôs em seus livros todo o encanto que lhe inspirava a terra onde nasceu (...). Em O Feiticeiro, se misturam negros e brancos, catolicismo e feitiçari, sente-se que evoca com prazer a gente e as paisagens da Bahia, que as ama e as deseja fazer amadas. (...) “Essa mistura de brancos e negros, de reminiscências africanas influírem nos hábitos, representa, com os idilios praieiros (em Jana e Joel), a realização maior do seu autor na obra que intentou de reconstituição da vida baiana. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 277-278)

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ALGUNS TRECHOS: A) de JANA E JOEL (Anselmo) Sondava o tempo enfarruscado na véspera porque ele conhecia as travessuras da onda e as proezas do vento naquela Ponta de Nossa Senhora, em volta dessa montanha escalvada e bruta chamada Ilha dos Frades. Já de si era este nome um emblema sestro: provinha de um naufrágio de religiosos que por ali mareavam, séculos atrás, em santa missão. Os missionários arremessados à costa e devorados pelos caboclos, legaram nome à plaga de tão insidiosas águas e desumanos íncolas; e como por castigo do céu ficou a ilha quase toda maninha, com os cimos pelados, sem a verdura que atavia suas irmãs do arquipélago, com o estigma da esterilidade nos flancos vermelhos, sangrentos como as ancas de um animal escorchado. Apenas pelas abas da montanha desnuda, nas várzeas que a separam dos outros outeiros seus satélites, cresceram janambás, aricoris e bosques de cajueiros, por serem, estes, plantas de resina, árvores que choram perenemente, pelos troncos e galhos, rios de pranto cor de âmbar. Assim acreditava, pelo menos, a velha Theonilla, mãe do barqueiro e mãe que os filhos dele conheceram; porque a outra, sua mulher, Deus tinha chamado a si, tantos anos havia quantos contava a filha Jana. (Marques Xavier, 1899, p. 12-13). (atualizamos a grafia)

B ) de O FEITICEIRO Em consequência das rivalidades e lutas que acabaram pela independência, acentuou--se, entre muitas e variadas feições do ódio à metrópole, uma que consistia em substituírem-se os nomes de família, transplantados de Portugal, por outros que fizessem esquecer o tronco lusitano, fornecidos em regra pela flora, as tribos e mais coisas indígenas. Numerosos Gamas, Vieiras, Cabrais, Albuquerquers, Lisboas, Monizes, Carvalhos, passaram a chamar-se pitorescamente, Sucupiras, Camacãs, Paraguaçus, Aratinguis, Caraúnas, Ipirangas, Pirajás. Um deputado à constituinte, depois estadista e grande do império, com um título de visconde, adotou esta beleza onomástica: Gê Acayaba de Montezuma. Não podendo mudar de língua, o nativismo exaltado contentava-se com essa mudança de nomenclatura. (Marques, 1922, p. 14). (atualizamos a grafia)

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(Vemos acima um exemplo da lusofobia, aversão ao Português, sentimento muito associado ao “nativismo exaltado”, comum no período pós-Independência e no início do Romantismo Brasileiro.) Em O FEITICEIRO, Xavier Marques critica ainda a postura antiabolicionista e antirrepublicana das elites baianas. O Clube Republicano que havia na Rua da Lama (rua próxima da rua da Ajuda) era constantemente agredido a pedradas, e os republicanos recebidos com injúrias e “foras”. A república “era o que nos faltava para coroar a obra, pois não? Já temos aí uns tais abolicionistas ou coisa semelhante, que nos querem arrancar a nossa propriedade, os nossos escravos”. (MARQUES, 1922, p. 325). Defender a república era coisa de “loucos e dos negros africanos”. Ter um filho republicano era uma “vergonha para as famílias.” (MARQUES, 1922, p. 354) Outro tema abordado na obra são os preconceitos raciais, étnicos e religiosos. Leia o texto a seguir: Voltando do mato, onde se embrenhara a catar frutas, o escriturário anunciou em presença das senhoras: - Encontrei agora um feitiço, debaixo daquela árvore. Paulo sorriu da ignorância do amigo. Este, vendo-lhe a cara incrédula, protestou: - “Coisa feita”, evidentemente. - Que foi que viste, Salu? - Ao pé da mangabeira, entre as raízes, muito azeite de dendê, um prato cheio de bobó de inhame, uma galinha morta numa poça de sangue... Lá está se quer ver... - Estás muito enganado, disse. Aquilo que viste não é “coisa feita”, é uma oferenda, é um sacrifício aos santos dos nossos pretos africanos e crioulos. Aquela árvore é um altar, se não é mesmo uma divindade.... Aquela árvore pode muito bem ser a encarnação de um espírito, de uma divindade, a quem os negros ofertam comidas e bebidas, assim como nós oferecemos cera, flores e incenso aos santos do nosso oratório. ...Certas pessoas não admitem como sagrado senão aquilo que adoram. Mas cada qual crê no que pode; a fé é a mesma e opera os mesmos milagres. Temos jejuns, retiros, procissões, cremos no purgatório, o inferno, em demônios e almas do outro mundo... Vejam bem que não estou zombando. Os negros têm tudo isso, apenas sob formas diferentes, e em tudo isso, crêem segundo a sua ideia. Não são propriamente brutos. (MARQUES, 1922, p. 26-27). (atualizamos a grafia)


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Afrânio Peixoto (Lençóis, 1876 – Rio, 1947) Médico, cientista, professor, crítico, poeta e romancista. Um dos iniciadores, no Brasil, dos estudos de Medicina Legal. Membro da Academia Brasileira de Letras, Deputado Federal (1924-1930), Membro da Academia Nacional de Medicina, Diretor do Hospício Nacional de Alienados, Diretor do Serviço Médico Legal do Rio de Janeiro, Doutor Honoris-causa das Universidades de Lisboa e Coimbra, historiador, professor de História da Educação. Como médico-legista, foi quem examinou o corpo de Euclides

da Cunha, assassinado. Membro da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Nacional de Medicina Legal de Madri. Afrânio Peixoto atuou fortemente no ensino, no campo da Medicina e Higiene Pública, no campo da Educação. Foi professor. Foi reitor da Universidade do Distrito Federal (1934) “Dotado de uma personalidade fascinante, irradiante, animadora, além de ser um grande causeur e um primoroso conferencista, que conquistava pessoas e auditórios por uma palavra encantadora, foi expositor e professor consumado, sendo talvez este o traço fundamental de sua personalidade”. (COUTINHO, 2001, p. 1230-1231)

PRINCIPAIS OBRAS LITERÁRIAS REGIONALISTAS Afrânio Peixoto produziu obras sobre Medicina, sobre Medicina Legal, sobre Educação. Tem estudos importantíssimos sobre Camões e Castro Alves. Tem obras de crítica e história literária. Estudou as Trovas Populares Brasileiras. Foi um dos divulgadores do haicai no Brasil. Escreveu poemas. Aqui, porém, nos interessam os seus romances regionalistas Maria Bonita (1914), Fruto do Mato (1920), Bugrinha (1922). Temas presentes nas obras regionalistas de Afrãnio Peixoto O cacau, o garimpo, a seca, os costumes e a visão moral que o homem, do interior tem do homem, do mundo e da vida. Percebe-se, em sua obra, uma influência clara de José de Alencar e Machado de Assis na análise dos tipos femininos. Tem uma visão trágica da beleza feminina, colocada como causa dos conflitos e da desgraça do homem. Apesar de bastante criticado pelos modernistas por afirmar que “a literatura é o sorriso da sociedade”, Afrânio admite que “todos os movimentos vanguardistas são úteis à cultura”, “a negação, feita pelos novos, é sempre uma atitude salutar porque abre o debate, estabelece a controvérsia... O mérito de qualquer reação está menos nas ideias dos que a promovem, do que na simples rebeldia contra os modelos estatuídos, que, do contrário, tenderiam a se eternizar, sem proveito para ninguém”. Mas, diz ele, “o mundo avança” e “o moço irreverente, quando vencer, será o velho desse momento e não escapará ao furor iconoclasta dos jovens da hora seguinte”... “Assim é que o mundo avança. O incendiário vira bombeiro e muitas vezes um incêndio é o único meio de desatravancar o caminho ou a cidade de velhas construções obsoletas que devem desaparecer”. (in PEIXOTO, 1962, p. 28-29)

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UM TRECHO DE MARIA BONITA (A temática da seca, o êxodo rural, a falta de serviços e de políticas públicas que amparem os retirantes da seca, o homem desassistido). Não eram da terra. Provinham das cabeceiras do rio Pardo, muito além do rio das Pedras, do sertão entre Bahia e Minas, lá para as bandas de Condeúba, e vieram muitos anos atrás, com um filho crescido e uma filha ao colo, acossados pela seca, que periodicamente dizima aquelas zonas. Desciam assim, como eles, de tempos em tempos, retirantes para o litoral, à procura das terras baixas, aquém do Angelim, nas aluviões fartas de Canavieiras. Os mais abastados, que alcançam salvar alguns haveres e alfaias, tocam na frente as beatas carregadas; os mais numerosos conduzem nos cacaios, às costas, uma bagagem rudimentar: homens e mulheres magros, esguios, de uma cor amarela de barro, crianças, às vezes, quando raramente subsistem aos tormentos da solina e das privações, amarrados aos ombros como contrapeso entre os paus das cangalhas. Por maus caminhos, sem pouso certo, por lugares ainda pouco devassados, pois nas épocas normais só as boiadas que demandam a costa transitam por essas brenhas, eles vêm tristes, mas resignados à miséria, contra a qual não há lutar. Largados de todo socorro, que não podem prover, nem esperam, só os seus instintos e as intempéries lhes determinam os costumes e o curso da vida. Quando elas chegam desabridas, sem auxílios de caminhos, serviços públicos, ou recursos de previdência, a pequena indústria, extrativa, agrícola ou criadora, desaparece, sem traço de passagem, e o homem, para subsistir, desenraiza-se da terra, onde o não conseguiram fixar. (PEIXOTO, 1962, p. 226-227)

Lindolfo Rocha (Minas, 1862 – Salvador, 1911) Morou em Brumado, em Maracás, onde fundou uma escola. É também músico. Torna-se o regente da banda. Forma-se, depois, em Direito pela Faculdade de Recife. Foi Juiz em Correntina, Bahia. Estabelece-se em Jequié. Consegue, no governo de Luís Viana, que Jequié seja elevada a cidade. É nomeado Juiz do novo Município. Após cinco anos, demite-se da magistratura e passa a advogar. Interessa-se pela agricultura, astronomia e estudo das secas. Trabalhou no Diário de Notícias. Morre, em Salvador, em 30 de dezembro de 1911. O autor tem obras didáticas, obras jurídicas, poemas, contos e romances. Mas sua principal obra literária é o romance MARIA DUSÁ, publicado em Porto, 1910.

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O ROMANCE MARIA DUSÁ MARIA DUSÁ é de 1910 (romance dos garimpeiros, retrata costumes da Lavras Diamantinas da Bahia). (A temática dos garimpeiros é abordada por Afrânio Peixoto em Bugrinha e é retomada, em 1944, por Herberto Sales, no romance Cascalho). Além do trabalho do garimpeiro, o romance aborda a seca e suas consequências: a fome e a miséria. Ao ser publicado (1910), passa despercebido pela crítica. Apenas João Ribeiro lhe dedica algumas linhas, afirmando ser o romance “um dos melhores documentos da vida brasileira do interior”. João Ribeiro retira inúmeros verbetes do livro para o Dicionário de Brasileirismos da Academia. A narrativa, às vezes bastante crua na mostragem dos fatos, é a história de duas Marias: Maria Dusá e Maria Alves. (A Rede Globo há alguns anos, transformou o romance em novela, à qual deu o nome MARIA, MARIA). Passa-se no Município de Andaraí, na Chapada Diamantina, década de 1860. Mostra-nos o desenvolvimento econômico trazido pelo garimpo, a chegada de muitos homens de fora que vêm em busca de riqueza, a prostituição de luxo, a mudança de costumes devido ao enriquecimento.

A HISTÓRIA DAS DUAS MARIAS Maria Alves, na época da seca, (início do romance), é vendida pelos próprios pais ao mineiro Ricardo. Apesar de comprada, permanece com seus pais, que vêm a falecer. Maria Alves, sem pai nem mãe, passa a viver muito pobremente, parcialmente às custas de José Bento. Não aceitando mais viver na pobreza, resolve “tentar a sorte, em terras estranhas”. Maria Alves reflete: “Não se ouvia dizer que muitas mulheres viviam em grandeza e luxo, sem terem pai nem marido? Pois aprenderia a viver com elas.” (ROCHA, s/a, p. 32.) Maria Dusá é uma “mulher da roda” que enriquece na prostituição. O nome DUSÁ provém de sua peculiar maneira de rir: AH! AH! AH! AH! (Maria dos AH! daí Dusá). As duas Marias vêm a conhecer-se e relacionar-se. Maria Alves era chamada de “a vendida”. Maria Dusá deixa a prostituição por apaixonar-se por Ricardo, o mineiro, o mesmo que, no início do romance, comprara Maria Alves. Dusá casa-se com ele, e foram morar na mesma fazenda onde ela tinha sido enjeitada pelo pai, a mesma fazenda onde Ricardo comprara Maria Alves. Maria Dusá faz uma carta a Maria Alves, revelando que elas são irmãs por parte de pai. Diz, ainda, que tomou as outras irmãs e as está amparando, que elas estão boas. Maria Dusá passa a ser chamada dona Maria, a Chapadista. No final do romance, Maria Alves, casa-se, fica viúva, passa a saber que era irmã de Maria Dusá por parte de pai. Sem condições de vida, prostitui-se, tomando o nome de guerra da irmã natural, Maria Dusá. Depois de algum tempo, adoece e morre.

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TRECHO DO FINAL DO ROMANCE Maria Alves responde à carta que recebera de Maria Dusá: “Minha querida e ditosa irmã. Quando leres esta, escrita pela caridosa pessoa que me tem socorrido na minha desgraça, já não existirei. Estou às portas da morte, que é hoje para mim um alívio. Dias depois que viajaste com teu marido, o misderável Aristo Alfaiate, que Eduardo chicoteou, apareceu no Mucujê, e matou Eduardo, à traição, no garimpo. Os camaradas correram atrás e picaram-no a facão. Mas essa vingança de nada me valeu. Já tínhamos poucos recursos, porque infelizmente eu não tinha juízo e queria somente luxar. Depois de enviuvar, voltei para aqui, porém a minha boa amiga D. Florinda já se tinha mudado para o S. Francisco, casada com um patrício. Fiquei sem uma pessoa que velasse seriamente por mim. As seduções, porém, chegaram, e a necessidade, ou a fome de ouro, me perdeu. Deitaram-me logo teu apelido... arranquei o luto... e copiei teus antigos modos e até o antigo riso que te deu esse apelido. Ganhei muito, e por minha vergonha, devo dizer, luxei, entreguei-me a todos os excessos. Hoje estou atirada em cima de um velho catre, onde, entre agonias insuportáveis, procuro arrepender-me de tanta miséria! Foi certo o meu pressentimento, quando nos despedimos pela última vez, e eu tinha de voltar dois dias depois. Nunca mais nos veremos. Adeus, adeus, reza por tua infeliz irmã”. (ROCHA, s/a, p. 148)

Neste final, vemos uma nítida influência do Romantismo. O final das narrativas românticas éum final feliz ou um final trágico. A personagem Maria Dusá se redime, se “purifica” do passado “pecaminoso”, “vergonhoso” pelo amor a Ricardo (final feliz); Maria Alves, que, embora arrependida, morre após ter-se prostiuído. (final trágico). Maria Dusá é, de fato, um livro que não se pode relegar aos arquivos da história literária. Devem tê-lo, em particular, os críticos que, por gosto ou convicção doutrinária, amam a projeção romancesca do tema do trabalho humano, com toda a fadiga e a esperança que implica. A labuta penosa do garimpeiro nas lavras encontra, na segunda parte de Maria Dusá. uma descrição viva e enxuta. (BÓSI, 1966, p. 88/89)

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O romance “retrata os personagens do sertão: sua maneira de ser, de agir, de sentir e de falar. Daí a importante qualidade de Maria Dusá. Quando funde a linguagem e o tema, o meio e o tempo: a nossa terra, nossa gente, nossos problemas, nossa história”. (CERQUEIRA, 2003, p. 19) Nilo Bruzzi: Maria Dusá “um dos melhores documentos da vida brasileira do interior e de cujos costumes, linguagem e tradições, dá uma pintura surpreendente de verdade e de poesia” (in CERQUEIRA, 2003, p. 23). Por isso, para Bruzzi, Lindolfo Rocha, em Maria Dusá, se revela “o sociólogo, o pensador, o pesquisador, o filólogo, o cronista, o historiador, o erudito, o folclorista, o observado.” “No regionalismo de Lindolfo Rocha, destaca-se de maneira profunda o sentido social, a intenção redentora, que valoriza o homem em lugar de transformá-lo em fantoche ante o meio e o tempo”. (CERQUEIRA, 2003, p. 21)

Diz o próprio Lindolfo Rocha: Em Literatura, eu quero o livro como uma fotografia colorida, uma pintura da natureza, do individuo do meio social”. (in CERQUEIRA, 2003, p. 20) Adonias Filho: “Maria Dusá (1910), pela penetração e linguagem, é legitimamente o primeiro romance baiano a impor a realidade em toda uma firme violência dramática. A seca não pesa como uma flagelo, mas se ergue como uma maldição biblica”. (in CERQUEIRA, 2003, p. 28)

FINALIZANDO... O Regionalismo Baiano Moderno se insere no Regionalismo Moderno Nordestino, que se iniciou em Recife e que se afirma a partir de A Bagaceira, de José Américo de Almeida (1928). Na década de 1930 com Raquel de Queirós, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, o Regionalismo Nordestino passa a ser o que há de mais importante, até então, na ficção moderna. Dentro desse contexto está o Regionalismo Baiano. A partir de Xavier Marques,


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Afrânio Peixoto, Lindolfo Rocha, no Pré-Modernismo, definem os temas que marcarão a identidade da ficção regionalista baiana até os dias atuais. Na década de 1930, teremos a ficção de Anísio Melhor, Nestor Duarte, Dias da Costa, Clóvis Amrim, a do maior de todos eles: Jorge Amado. Mais adiante, virão Herberto Sales, James Amado, Adonias Filho, Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro, Hélio Pólvora, para nos atermos a alguns que têm uma ficção mais liagada ao Regionalismo. Dessa ficção baiana, na citada obra organizada por Afrânio Coutinho, diz Adonias Filho: “A sucessão desses quadros, em série, não concede apenas a continuidade ao romance baiano, mas assegura uma certa homogeneidade que leva um romancista ao outro, aproximando-os, muitas vezes, o fundo panorâmico e a temática estabelecendo o encontro”. (COUTINHO, 1996, p. 273)

”O denominador comum que é a terra em seu extraordinário poder de inspiração”. (idem, ibidem, p. 274) “Mesmo no agrupamento regionalista, talvez o mais amplo na ficção brasileira, o romance baiano será facilmente reconhecido. Certos elementos,... apenas ele possui. E de outro núcleo não sabemos que, congregadas as parcelas, possa apresentar semelhante homogeneidade, continuidade e duração”. (idem, ibidem. p. 274)

Por tudo que foi dito, podemos ampliar a afirmação de Antônio Risério com que iniciamos este artigo (uma conexão Xavier Marques – Jorge Amado – João Ubaldo, Xavier é pai de Jorge. E avô de Ubaldo). De fato, na ficção de Xavier Marques, Afrânio Peixoto e Lindolfo Rocha estão as raízes mais fecundas da obra dos regionalistas modernos e contemporâneos baianos, apesar da diversidade de estilos e posicionamentos estético-político-ideológicos.

Referências: BOSI, Alfredo. A Literatura Brasileira. v.V. O Pré-Modernismo. São Paulo: Cultrix, 1966. CERQUEIRA, Dorine. O Espelho de Maria Dusá e Outros Ensaios: o textual e o intertextual. Ilhéus, BA: Editus, 2003. COUTINHO, Afrânio (direção). A Literatura no Brasil. v. III, tomo 2. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1969. COUTINHO, Afrânio (direção) e COUTINHO, Eduardo de Faria (co-direção). A Literatura no Brasil. v. 5. São Paulo: Global Editora, 1997. COUTINHO, Afrânio Sousa, J. Galante de (direção). Enciclopédia de Literatura Brasileira, v. l e 2. São Paulo: Global, 2001. MARQUES, Xavier. Jana e Joel. Bahia: Tipografia Baiana, 1899. (atualizamos a grafia). MARQUES, Xavier. O Feiticeiro. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro 922. (atualizamos a ortografia). MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de Ficção: de 1870 a 1920. 3 ed. Rio da Janeiro: J. Olympio; Brasília INL, 1973. PEIXOTO, Afrânio. Romances Completos. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. RISÉRIO, Antônio. Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: versal Editores, 2004. ROCHA, Lindolfo. Maria Dusá. Texto integral organizado por Afrânio Coutinho. Notas de Osmar Barbosa. Rio de Janeiro: Tecnoprint. Sem indicação de ano. SANTANA, Valdomiro.. Literatura Baiana 1920-1980. Rio de Janeiro: Philobiblion; Brasília: INL-Instituto Nacional do Livro, 1986. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. Seus Fundamentos Econômicos. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização, 1976. TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. São Paulo: Melhoramentos, sem indicação de ano.

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A IMPORTÂNCIA DA ADOÇÃO DE UMA POLÍTICA DE ACESSO ABERTO NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR A ciência é o conhecimento público, disponível livremente para todos. (Ziman, 1979).

Flávia Rosa (

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Doutora pelo Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestra em Ciência da Informação pela UFBA, professora Associada da UFBA e diretora da Editora da UFBA. E-mail: flaviagr@ufba.br


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COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA EM AMBIENTES DIGITAIS

POEL, 2005). Muitos pesquisadores entregaram (e entregam) gratuitamente seus artigos para publicação em periódicos que, muitas vezes, a instituição onde foi desenvolvida a pesquisa não pode adquirir, por falta de recursos financeiros, já que esses periódicos são disponibilizados via assinatura, com custo elevado.

O surgimento da internet, em fins dos anos 1980, e da WWW, em 1994, introduziu elementos novos na comunicação, tais como “a interconexão geral, a desintermediação e a comunicação de todos com todos”. (LÉVY, 2010, p. 369). Influenciou e acelerou, também, mudanças na forma de publicação da produção científica, que passou do suporte exclusivamente em papel para o uso também do suporte digital, alterando o fluxo da comunicação científica.

A resposta a esse cenário relativo ao alto custo das assinaturas veio da própria comunidade científica, graças ao desenvolvimento acelerado da tecnologia de armazenamento de recursos digitais. Em 1991, em Los Alamos, Novo México, EUA, surgiu o primeiro repositório digital de pré-prints – ArXiv.org – desenvolvido no laboratório de Física, coordenado pelo físico Paul Ginsparg (1996). O projetu se iniciou com um servidor no qual os físicos poderiam depositar cópias digitais de seus manuscritos, antes de serem publicados – e-prints. Hoje, este servidor – que começou apenas como um veículo de intercâmbio de informações sobre Física – expandiu-se e abriga uma “biblioteca” de literatura de pesquisa em Física, Ciência da Computação, Astronomia e Matemática. Existem outros projetos semelhantes no mundo todo, tais como: Cognitive Sciences Eprint Archive (CogPrints), no Reino Unido, que abrange as áreas de Psicologia, Linguística e Neurociências, o Networked Computer Science Technical Reference Library (NCSTRL), acervo na área de Ciências da Computação e o Research Papers in Economy (RePEC), coleção de documentos na área de Economia. (SENA, 2000)

A partir de 1986, quando o preço das assinaturas dos periódicos esteve acima dos valores da inflação, houve um impacto sem precedentes dos custos dessas assinaturas nos orçamentos das bibliotecas, o qual teve como consequência, em muitos casos, a redução do número de periódicos subscritos, com os prejuízos que daí advém para pesquisadores, professores e estudantes. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma corrida para a publicação dos resultados das pesquisas nos periódicos científicos internacionais por parte dos pesquisadores, para atender a critérios de avaliação estabelecidos para as grandes áreas do conhecimento. (ACRL, 2003; MARCONDES, 2009; MUELLER, 2006; RODRIGUES, 2004; SWANE-

Esta crise dos periódicos durou algumas décadas. Paralelamente, as tecnologias foram se desenvolvendo e se aprimorando, constituindo uma nova forma de lidar com a informação e sua disseminação. Segundo Valério e Pinheiro (2008), além da ampliação do fluxo de informações possibilitado pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), este fluxo perpassa para novos territórios e diversos campos do conhecimento através do acesso livre. O ciberespaço e o acesso à rede mundial agregam membros de comunidades científicas reconhecidas e estabelecidas, mas também membros da comunidade em geral, ou melhor, aqueles que têm interesse em ciência ou são curiosos de outros saberes, contribuindo assim para a disseminação da ciência junto a públicos não específicos. Neste contexto surge o Movimento de Acesso Livre à Informação Científica, que implica a disponibilização na internet da literatura acadêmica e científica, permitindo que seja lida, distribuída, impressa e pesquisada, contribuindo para o avanço e a disseminação da ciência e a democratização do conhe-

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cimento para a sociedade. Este modelo para a disseminação da comunicação científica tem-se firmado cada vez mais e começou a se consolidar no início deste século. Considera-se a assembleia realizada em Budapeste, nos primeiros dias de dezembro de 2001, convocada pelo programa de informações do Instituto Sociedade Aberta – Open Society Institute (OSI), como o ponto de convergência das ideias que vinham sendo estruturadas, quer pelos bibliotecários em função do alto preço das assinaturas dos periódicos, quer pelos cientistas que vislumbravam a possibilidade de ampliação da disseminação da sua produção graças à digitalização e à internet. Em 14 de dezembro de 2002, é publicado o manifesto do Budapest Open Access Initiative (BOAI) e inicia-se o Movimento de Acesso Aberto. (GUÉDON, 2010). A BOAI estabeleceu estratégias baseadas no protocolo Open Archives Initiative – Protocol Metadata Harvesting (OAI-PMH), denominadas Via Verde (Green Road) – o que significa o autoarquivamento pelos autores de seus artigos publicados ou aprovados para publicação em periódicos que realizam a revisão por pares – e Via Dourada (Golden Road) – formada por periódicos eletrônicos que já utilizam o modelo de acesso aberto e, desse modo, os próprios editores já garantem o acesso aberto ao conteúdo – como recomendações à comunidade científica. Em 2003, é assinada a Declaração de Berlim sobre o Acesso Livre ao Conhecimento nas Ciências e Humanidades. Segundo Harnard (2001), Com a era on-line finalmente foi possível libertar a literatura deste impedimento indesejável. Autores precisam apenas depositar seus artigos arbitrados em arquivos e-prints em suas próprias instituições; esses arquivos interoperáveis podem todos ser recolhidos em um arquivo global, seus conteúdos completos, livremente pesquisáveis e acessíveis on-line para todos.

A Iniciativa de Arquivos Abertos e o Movimento de Acesso Livre modificaram inteiramente o cenário da comunicação científica. Tanto no que diz respeito ao processo de aquisição, quanto ao processo de produção, disseminação, uso e modo como os cientistas publicam os resultados de suas pesquisas e se relacionam com seus pares. Estes fenômenos possibilitaram mudanças estruturais no sistema de comunicação da ciência. Os editores perderam a exclusividade de distribuir a produção científica no contexto digital, surgindo a possibilidade de que isso seja “[…] feito de forma descentralizada e dependente da iniciativa de cada autor”. (WEITZEL, 2006a, p. 62). Recentemente, um movimento de boicote coletivo partiu dos cientistas de todo o mundo com relação a Elsevier, a maior editora de periódicos científicos. Os cientistas pagam a editora para terem seus textos publicados, depois as Instituições precisam pagar para ter a assinatura dos periódicos nas mesmas Instituições das quais fazem parte esses cientistas/autores. “Um dos fatores que impulsionaram o crescimento do movimento contra a Elsevier é o apoio que a empresa tem dado ao Research Works Act, um projeto de lei que tramita no Congresso dos EUA desde dezembro de 2011.” (CIENTISTAS..., 2013). Se esta lei for aprovada, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), que têm adotado a política de acesso aberto aos estudos de seus cientistas, serão tremendamente afetados.

O ciberespaço e o acesso à rede mundial agregam membros de comunidades científicas reconhecidas e estabelecidas, mas também membros da comunidade em geral, ou melhor, aqueles que têm interesse em ciência ou são curiosos de outros saberes, contribuindo assim para a disseminação da ciência junto a públicos não específicos.

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BRASIL E A INSERÇÃO NO MOVIMENTO DE ACESSO ABERTO Em 1997, surge a pioneira iniciativa do Scielo, empreendida pela Bireme – Centro Especializado da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) – e financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a qual promove o acesso livre a diversas revistas científicas brasileiras. O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) teve um papel importante nessa trajetória que se inicia com o desenvolvimento da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), de forma consorciada com diversas Instituições de Ensino Superior (IES). Adotou-se para a BDTD o modelo Open Archives, convergente com movimento mundial e open access que surgiu logo após 2001. Dentre outras ações do Ibict, em 2003, ele customiza o software Open Journals Systems (OJS) para a Língua Portuguesa e utiliza este Sistema em a sua revista Ciência da Informação em revista eletrônica, com todo o processo de gestão e avaliação em consonância com os padrões da comunicação científica. Esse pacote de software recebeu a denominação, no Brasil, de Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER) foi disponibilizado para diversas Instituições que passaram a adotar este Sistema de publicação eletrônica. Em 2005, no mês de setembro, foi lançado, por meio de uma conferência virtual, reunindo representantes das sociedades e associações científicas, de universidades e unidades de pesquisa, além de pesquisadores, o Manifesto Brasileiro de Acesso Livre à Informação Científica, pelo Ibict. Log, em seguida, ainda em setembro, durante o 9º Congresso Mundial de Informação em Saúde e Bibliotecas, realizado em Salvador, Bahia, foi elaborado e lançada a Declaração de Salvador – Compromisso

com a Equidade, declaração em favor do acesso livre à informação. Durante o ano de 2006, várias manifestações ocorreram no Brasil e a questão da disponibilização da produção científica em acesso aberto, tornou-se tema recorrente nos principais eventos de Ciência da Informação e áreas afins. A Iniciativa de Arquivos Abertos é a base para a reação à lógica econômica das grandes editoras de periódicos científicos e visa desenvolver e promover padrões de interoperabilidade para facilitar a disseminação eficiente de conteúdos digitais. É baseado em esforços para melhorar o acesso a arquivos eprint, como meio eficaz de favorecer e ampliar a disponibilidade de pesquisas acadêmicas e que serve como instrumento tecnológico necessário aos princípios do Open Access Movement. No Brasil, não há consenso quanto à tradução do termo Open Access, sendo traduzido tanto como “acesso aberto” quanto “acesso livre”. Após a leitura do capítulo Acesso Aberto e divisão entre ciência predominante e ciência periférica, de autoria de Jean-Claude Guédon (2010), que remete ao texto The Role of Reference Librarians in Institutional Repositories, escrito por Bailey Jr. (2005), optou-se pelo uso do termo “acesso aberto”, que se refere “à opção de uso do conteúdo respeitando-se os direitos autorais dos envolvidos, enquanto o termo ‘livre’ diz respeito ao modelo de negócio da revista gratuita”. (GUÉDON, 2010, p. 21-22) Importam, independente da nomenclatura adotada, as ações de disponibilização de conteúdo que beneficiarão a sociedade. Usar as TIC tornou-se essencial para a conquista e democratização de novos saberes, avanço e difusão do conhecimento produzido, sobretudo, através das pesquisas, sendo as instituições de ensino superior as maiores geradoras desses conhecimentos.

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POLÍTICA DE ACESSO ABERTO NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR Acredita-se que dentre as medidas que devem ser adotadas para uma ampla disseminação da comunicação científica através de uma política de acesso aberto, produzida no âmbito das IE, estará a implantação de repositórios institucionais (RI) que aplica o modelo de arquivos abertos e acesso livre. O principal desafio é a mudança de paradigmas com relação à produção apenas do texto impresso uma vez que disponibilizar os resultados das pesquisas em meio eletrônico significa difundir em rede mundial ampliando o acesso, a visibilidade e a avaliação pelos pares. A adoção desses repositórios permite abrigar a produção científica, artística e cultural, objetivando a preservação da memória e a democratização do conhecimento produzido, independente do formato do arquivo, seja ele textual, imagético ou imagem em movimento. Os repositórios surgiram inicialmente como repositórios digitais temáticos – incluem conteúdo de uma determinada área do conheciment,, mas logo em seguida a ideia evoluiu para que esses repositórios se agrupassem e ficassem sob a responsabilidade de uma instituição e voltados para a divulgação da produção científica, passando para a denominação de Repositório Institucional. O The Scholarly Journal Archive (JSTOR) foi um dos primeiros projetos de repositório temático pensado para servir como repositório de preservação digital de periódicos científicos de algumas áreas específicas. O desenvolvimento relativamente recente dos RI lhes confere diferentes pontos de vista, quanto a sua definição. Clifford Lynch (2003, p. 2, tradução nossa), diretor da União para Informação em Rede, define RI como: Um conjunto de serviços que a universidade oferece para os membros de sua comunidade para o gerenciamento e a disseminação de conteúdos digitais, criados pela instituição e membros da sua comunidade. É essencialmente um compromisso organizacional com a gestão, desses conteúdos digitais, inclusive preservação de longo prazo, quando apropriado, bem como organização e acesso ou distribuição.1

Em 2010 a Universidade Federal da Bahia (UFBA), após definição de uma política de acesso 1

[…] a set of services that a university offers to the members of its community for the management and dissemination of digital materials created by the institution and its community members. It is most essentially an organizational commitment to the stewardship of these digital materials, including long-term preservation where appropriate, as well as organization and access or distribution.

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Os repositórios surgiram inicialmente como repositórios digitais temáticos... aberto para a instituição, criou o seu RI2 que teve como inspiração e modelo norteador o Repositório Institucional da Universidade do Minho – RepositóriUM. Criou-se, para dar andamento ao projeto de implantação do RI da UFBA, um grupo gestor para discutir e propor a política do Repositório, por se entender que deveria ser participativa a construção das diretrizes e a proposição de uma política a ser encaminhada às instâncias superiores da Universidade. O Grupo foi composto por professores\pesquisadores, técnicos e estudantes de pós-graduação. (JAMBEIRO et al., 2012) A organização do Repositório se dá através de comunidades que no caso da UFBA corresponde as suas Unidades de Ensino e além dessas conta-se com a comunidade Editora da UFBA (EDUFBA)3 e a comunidade Memória. A Editora foi a comunidade piloto para a implantação do RI, e esta decisão revelou-se acertada, tanto pela inserção que a Editora vem conquistando nos últimos anos, como pelo diálogo que mantém com as diferentes áreas da Universidade. Ela procedeu (e procede) ao autoarquivamento de suas publicações, obedecendo ao 2 <http://www.repositorio.ufba.br> 3 <www.edufba.ufba.br>


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que foi estabelecido pelo seu Conselho Editorial, e respeitando os princípios da legislação sobre o direito autoral, estabelecidos de forma contratual. Atualmente, a comunidade da EDUFBA tem mais de 200 títulos disponíveis em texto completo, livros que são disponibilizados seis meses após a sua publicação ou como no caso das Coleções Sala de Aula, Manuais que são disponibilizadas logo após o seu lançamento em suporte papel. Conta-se ainda no RI com uma coleção de livros eletrônicos em formato epub para serem baixados livremente em readers, tablets, computadores, smartphones... No momento, o RI da UFBA disponibiliza cerca de 8.852 documentos, entre, livros, capítulos de livros, artigos de periódicos, teses, dissertações e outros arquivos resultados de pesquisas desenvolvida na Instituição. A tendência é de crescimento, sobretudo, quando a prática do autoarquivamento for incorporada ao cotidiano dos nossos pesquisadores. Apoiando as atividades do repositório, conta-se com o Núcleo de Disseminação do Conhecimento (NDC),4 responsável por uma das estratégias que visam ao povoamento do RI: a divulgação da produção da UFBA por meio de um informativo semanal denominado Alerta. Esse informativo realiza de forma objetiva a disseminação da produção acadêmico-científica da UFBA depositada no RI potencializando seu aproveitamento nas diversas áreas do conhecimento e, ao mesmo tempo, estimulando o depósito de novos documentos por parte de sua comunidade. A primeira estratégia utilizada foi o autoarquivamento da produção pelos autores\pesquisadores\professores\servidores da UFBA. A segunda consiste em um levantamento da produção da UFBA em base de dados internacionais e depósito desta produção no RI\UFBA, por 4 bolsistas do curso de Biblioteconomia da UFBA, coordenados por um bibliotecário, estratégia que tem sido fundamental para o povoamento do RI. (JAMBEIRO et al., 2012)

REFLEXÃO O século XXI tem como marca a tecnologia voltada para o binômio, informação e comunicação. O Open Archives Initiative (OAI) – Iniciativa dos Arquivos Abertos e o Open Access Movement (OAM), Movimento Mundial de Acesso Aberto alcançaram patamares de desenvolvimento e consolidação, solucionando os problemas de interoperabilidade entre arquivos abertos, e assim proveu técnica e operacionalmente a introdução de novos modelos de negócios para a disseminação da produção científica. Desse modo, tem sido possível apoiar e expandir a implantação de repositórios digitais. As IES e centros de pesquisa, no mundo todo, têm se mobilizado para a adoção de repositórios que representam a democratização e o acesso à pesquisa, contribuindo também para a visibilidade das instituições. No entanto, a implantação de repositórios envolve questões outras que vão além da tecnologia. Sendo um procedimento que requer autoarquivamento de conteúdo, é preciso mobilizar a comunidade para esta adoção, o que requer da instituição uma definição de política que estimule seus pesquisadores. Os repositórios cumprem com esse papel de democratização e promovem uma aproximação entre a sociedade e as IES, possibilitando que mesmo aqueles que ainda não se encontram cursando uma universidade, conheçam a instituição através de sua pesquisa, seus pesquisadores e suas publicações, graças ao acesso aberto e irrestrito.

4 <http://www.ndc.ufba.br/>

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Uma Salvador Fest: entre Guerra e Amado, a construção de alegorias da baianidade Rogério F. Borges Elegibô (

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Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia – UFBa. É graduando em Artes Cênicas pela UFBa. Professor de Estudos Línguísticos e Literários e Artes Cênicas na rede particular de ensino. E-mail: rogerioeligibo@hotmail.com


I – Introdução Ação. Capítulo do belo livro “A preparação do autor”, de Constantin Stanislavsky (2009), faz uma incursão na essência da atuação teatral. A chegada do ator no palco e a certeza de que ele precisa ter a consciência da energia que o sacro-espaço dionisíaco emana. É no palco que o ator encena. É no palco que transforma o verbo ficcional em ato. O estudo do ato envolve dois planos cenas, a saber, o dos atos concretos, irrepetíveis, praticados por sujeitos objetivamente definidos e dos atos enquanto atividades. Para Bakhtin (1993), os atos humanos e a junção, cenas e atividades, estão necessariamente integrados a um mundo dado (o sensível) e ao inteligível (a apreensão do mundo), que compreendidos a partir da integração permite uma maior organização do conteúdo dos atos mediante categorias. O ato é a consagração da cena. Por isso o artista ensaia. Ensaia para errar. E errar, na ação dramática, é permitir que o público veja no erro, verdade. Este texto se propõe a ensaiar, no entanto, sem erros. Ensaiar sobre os labirintos ideológicos que inventam e reinventam os discursos sobre a baianidade. Contudo, “verdade cada um tem a sua, razão também”, disse Jorge Amado, em Tieta do Agreste (2009). Toda interpretação de um texto produz um outro texto, pois um texto analisado nunca é o texto real. O produtor de uma leitura está sempre emanado de um corpo ideológico e a sua pupila ao alcançar o objeto estará “contaminada” por estas ideologias. A produção humana é cultural e todo o produto cultural é recheado de intenções. Inscrevo do meu lugar o direito de ler outros lugares. Um bote de ferro sustenta meu corpo. O seu peso é sustentado pelo mar. Yemanjá1 e Posseidon2 disputam, nos imaginários divergentes dos descendentes de Oyó3 e de Europa, a posse deste império. Se o masculino ou o feminino servirão para ler este corpo coeso e fluido, nossas escolhas irão dizer. Do bote de ferro, vejo minha cidade, é Salvador. Cidade de São Salvador. E escrevo. Minha liberdade também é escrever, ainda que a poesia não tivesse me escolhido para seu escravo. Mesmo assim manuseio o verbo para falar das paisagens, objetos e escolhas. Salvador se distancia. Barcos aparecem em minha memória. 1 Na Mitologia Yoruba, a dona do mar é Olokun, que é mãe de Yemanjá, sendo ambas de origem Egbá. Vive nas espumas do mar, aparece vestida com lodo do mar e coberta de algas marinhas. No sincretismo brasileiro, pode vir representada como a Deusa do Mar, Nossa Senhora da Piedade, do Perpétuo Socorro, Aparecida, de Fátima. 2 Na mitologia grega, Posseidon (ilustração), um dos principais deuses do Olimpo, era o senhor do mar, dos rios e das fontes. 3 Oyó pode se referir: Ao império de Oyó, na região da Nigéria. Ao estado de Oyó, na Nigéria. Ela é uma reverência a ancestralidade Oyó. Traja-se à moda africana – como a estética de todo Cortejo de Afoxé.

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A Caravela de Cabral. Imagino Caminha. Pero Vaz de Caminha. Construtor do gameta verbal que inventou a brasilidade. Caminha e sua Carta. A Carta de Caminha e as narrativas de viagem quinhentistas inauguram de um lugar branco, europeu, mercantilista e cristão, o Brasil. Alegorias que permanecerão construindo imagologias da brasilidade mesmo em tempo pós-colonial. Contudo, ainda esta Carta? 512 anos depois? Por quê? A paisagem não é mais edênica, as pessoas não são mais puras, inocentes e o ouro do colar do Capitão já se foi há muito tempo. Só ficou o discurso. As representações. Terra das sublimes paixões. Salvador me olha e tento entender esta ditadura de ser feliz, tecendo um produto cultural de eterna alegria. ”Hoje tem festa no gueto, pode vir, pode chegar, misturando o mundo inteiro, vamos ver no que é que dá”. A ditadura da felicidade4, que tenta reinar na construção da alma deste povo. O que nos salva é a divergência, são os conceitos renovados que operam como fantasmas, fantasmões, borradores de um confete cínico como as cores do Pelô pós-limpeza racial. Salvador insiste em me olhar, mas, sua oficialidade não captura as minhas certezas. É tudo diferente daqui.

4 Cf. Maria Rita Kehl, em entrevista A Carta Capital (07/2012). A obrigação da felicidade é um subproduto dos movimentos progressistas dos anos 60: do direito à felicidade, passou para a obrigação. Talvez esses movimentos contestem um pouco que o sentido de estar no mundo é ser feliz. A sociedade atual não criou espaço para se conviver com o sofrimento.


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Do mar, em cima do bote de ferro, vejo o Farol. A barra da Barra e os prédios suntuosos que Pedro Bala5 não pode acessar. Tudo ali é colorido. São cães com plumas esperando um cobrador estuprar suas purezas e riquezas, mas Bala não quis o estupro, preferiu “marxistar-se”6. Salvador me olha. Profundamente. Prédios de um lado, casas “descarnadas”7 do outro. Do barco, uma profusão de sons e letras musicais invadem minha memória: Chame Gente La laia laia, la laia laia, la laia laia laia laia laia La laia laia, la laia laia, la laia laia laia laia la Ah! imagina só que loucura essa mistura Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia De Todos os Santos, encantos e Axé, sagrado e profano, o baiano é Carnaval Do corredor da história, Vitória, Lapinha, Caminho de Areia Pelas vias, pelas veias, escorre o sangue e o vinho, pelo mangue, Pelourinho A pé ou de caminhão não pode faltar a fé, o Carnaval vai passar Da Sé ao Campo Grande, somos os Filhos de Gandhi, de Dodô e Osmar Por isso chame, chame, chame, chame gente Que a gente se completa enchendo de alegria a praça e o poeta É um verdadeiro enxame, chame, chame gente Que a gente se completa enchendo de alegria a praça e o poeta Ah!... a praça e o poeta

Do lado do Carnaval, vejo o Corredor da Vitória e imagino a loucura desta mistura, a alegria de um estado que chamamos Bahia, os cantos e encantos do Axé e um índio, que não gosta de sorvete quente, fumando cachimbo em pleno Carnaval. Do outro, a fome total, a cidade labiríntica em que cada esquina há um minotauro. Cinza. Cizenta. Cinzeiro. Com valas repletas de corpos e mau cheiro, porque na pala preta de noite é o rodo com um “bucado” de conspirão “atrazalado”, ninguém arrisca descer com óculos sem lente, porque para quem se mete, mesmo de Cyclone, o assunto é uma “Bronka”. Do barco vejo várias “Bahias” e uma profusão de vozes e números invadem minha memória: Ó quão desemelhante! 16368. Ó quão desemelhante! 1912. Ó quão desemelhante! 2003. A velhaca cidade cantada por Matos e Guerra, na partida para o seu exílio, está à minha frente. A cidade aparece iluminada e desigual. Cidades invadem definitivamente minhas pupilas. Do barco vejo Salvador: “aê, aê, aê, aê, ê, ê, ê, ê” Altos relevos nos bronzes do tempo. Do mar, três Bahias me expectam! Neste ensaio, aproximaremos leituras e provocações sobre as alegorias das baianidades, para isto organizamos este texto em três partes, que revelam a tessitura de hipocrisias e supostas verdades sobre as construções culturais de Salvador: II – Icebergs das Baianidades; III – Gregório de Matos – tópicos satíricos ou a Lei da Baixaria? IV – A festa do Amado, Jorge; V – Uma Salvador Fest – o Carnaval que não respeita a favela.

Armandinho/Moraes Moreira Fonte: Armandinho e Trio Elétrico Dodô e Osmar. Faixa 01, Chame Gente. 1985 – LP. Gravadora: KKK Love Gravadora.

5 Personagem do Livro de Jorge Amado Capitães de Areia (1996) Pedro Bala, o líder. Chefe dos Capitães da Areia.

Do mar, três Bahias me expectam! Neste ensaio, aproximaremos leituras...

6 Tornar-se Marxista. Referindo-se a teoria revolucionaria de Karl Marx. 7 Metáfora utilizada em discurso de aula temática pelo sociólogo Antonio Mateus Soares, em atividade de incursão ao Subúrbio Ferroviário de Salvador, 2010.

8 Cf. MATOS, Gregório de. Poemas de Gregório de Matos. Editora Autêntica. Belo Horizonte. 1998, 96p.

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Homens e Mulheres que coletivamente utilizam os seus corpos para um outro letramento de um projeto de nação. Mas também são capturados pelo engessamento de uma pseudo-felicidade, revestida de um falso poder.

II – Icebergs das Baianidades Entre Stanilavsky9 e Bosi10... Bebo da mimese e imito Datas. 1636, 1912, 2003. Mas o que são datas? O navegador que singra a imensidão do mar bendiz a presença dessas pontas emersas, sólidos e geométricos, cubos e cilindros de gelo visíveis a olho nu e a grandes distâncias. Sem essas balizas naturais que cintilam até sob a luz noturna das estrelas, como evitar que nau se espedace de encontro às massas submersas que não se vêem? (BOSI, 1992, p. 19)

Datas são pontas de icebergs. A memória das sociedades deve repousar em sinais inequívocos e ter, no historiador, o ouvinte mais atento. É preciso vasculhar a história, com cuidado e zelo, sabendo ler o lugar de quem a conta. O contar de uma história e de estórias é certamente uma invenção, afinal todo discurso humano representa. A memória das sociedades guarda essas representações. Por vezes, nos alcança o que é permitido alcançar. Outras levamos pela mão, pelo coração, pelo lembrar ou pelo esquecimento. E é no interdiscurso do esquecer que reside a necessidade das datas. A memória das sociedades precisa repousar em sinais inequívocos. Mimeticamente repito. E o que há de mais inequívoco do que os números. A memória precisa de nomes e números. A memória carece de nomes.

9 Cf. STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do Ator. Tradução de Pontes de Paula Lima. 26ª edição. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2009. 10 Cf. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

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“Datas são pontas de icebergs. Datas são números.” 1636, 1912, 2003. Datas de nascimentos. Respectivamente, Gregório de Matos e Guerra, Jorge Amado e o Salvador Fest. Sob as duas primeiras datas, o nascimento de pessoas físicas que viveram intensamente a experiência social de seu tempo. A terceira, o surgimento da certeza de que o projeto do Navio Negreiro não deu certo? As duas primeiras, homens que, à custa de suas transgressões, descendem das caravelas, da descoberta ou invasão. Invadiram, sequestraram, inventaram, questionaram é verdade, mas agrediram também. A terceira, o Salvador Fest, homens que reunidos coloridamente deslocam a Árvore do Esquecimento, o fétido e perverso porão dos Tumbeiros, a cruel e assassina Senzala, suas mazelas, violências e negações, o vil e animalizado Cortiço, o cínico e idealizado Morro no imaginário da fidalguia cacaueira baiana ou litorânea carioca, a cinzenta e labiríntica Favela. Homens e Mulheres que coletivamente utilizam os seus corpos para um outro letramento de um projeto de nação. Mas também são capturados pelo engessamento de uma pseudo-felicidade, revestida de um falso poder. São cooptados por uma conjuntura mercadológica que os vê cifras e ainda que gritem, que falem, que sobrevivam, que etnografem “braus”, creem que é possível um “fest” pontual, um colorido que não condiz com o cinzento do árduo cotidiano.


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Mas o bloco submerso que se esconde nas águas, protetoras dos icebergs, nos induz a acreditar que apenas aquela ponta é a totalidade daquele corpo. Não. Submerso encontram-se noventa por cento do congelado bloco de água doce tão necessária à vida. Por isso mergulharemos. A história é um bosque ficcional recheado de alegorias e diversas leituras. “Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia?” 1636, 1912, 2003.

III – Gregório de Matos – tópicos satíricos ou a Lei da Baixaria? Gregório de Matos e Guerra nasceu em Salvador em 1636, filho de uma família abastada, neste sentido, fidalgo, teve uma educação católica junto aos Jesuítas. Como membro da juventude fidalga do período colonial brasileiro, viajou a Portugal e graduou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Volta à Bahia em 1681. Exerce a advocacia, a política, cargos eclesiásticos, leva uma vida desregrada, boêmia, encena nos seus versos, os tópicos satíricos da Língua Portuguesa, uma crítica contundente ao cinismo, à dissimulação, ao jogo de interesses, à corrupção da fidalguia baiana do século XVII. Gregório de Matos é, na tradicional historiografia Literária Brasileira, a protogênese do nosso discurso satírico. Seus versos, ou como ele próprio dizia, sua “musa praguejadora” oferta-lhe o apelido de Boca do Inferno, pela acidez de suas críticas. Diante de sua crítica maldita, Gregório de Matos é exilado para Angola e, a posteriori, autorizado a voltar para o Brasil, exceto para a Bahia, graças à sua crítica maldizente. Volta para Recife. Critica duramente a sociedade Pernambucana e morre em 1695. Gregório de Matos era um homem culto, letrado, produtor de uma poesia sacra, amorosa e satírica. Na sua sátira, uma virulência sem medida que incomodou profundamente aqueles e aquelas que eram alvo do seu verbo. Imerso na vida social da cidade do Salvador, Gregório de Matos é muito importante para que observemos a maneira como se constitui a relação entre o imaginário e a identidade, sobretudo, porque sua poética fotografa a epigênesis social baiana. São cenas fundacionais que falam das relações econômicas e das práticas sociais. Seus textos pintam uma cidade contraditória, bem no estilo Barroco. O poeta fala de uma Salvador rica e faminta, bela e destruída, moralista e promíscua, encenando a vida social do povo baiano, sem livrar nenhum ator social de sua cáustica crítica: “De dois ff se compõe esta cidade a meu ver: um furtar, outro foder. Recopilou-se o direito, e quem o recopilou com dois ff o explicou por estar feito, e bem feito: por bem digesto, e colheito só com dois ff o expõe, e assim quem os olhos põe no trato, que aqui se encerra, há de dizer que esta terra de dous ff se compõe.

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Se de dois ff composta está a nossa Bahia, errada a ortografia, a grande dano está posta: eu quero fazer aposta e quero um tostão perder, que isso a há de perverter, se o furtar e o foder bem não são os ff que tem esta cidade ao meu ver. Provo a conjetura já, prontamente como um brinco: Bahia tem letras cinco que são B-A-H-I-A: logo ninguém me dirá que dois ff chega a ter, pois nenhum contém sequer, salvo se em boa verdade são os ff da cidade um furtar, outro foder.” (MATOS, 1998, p. 55)

Gregório de Matos define sua cidade e fala da Bahia fofoqueira, da incapacidade de gestão dos políticos baianos na administração da cidade, da violência ditatorial imposta sobre a realidade baiana que silencia o direito à visão, à fala e à crítica do povo baiano, da situação de miséria e pobreza a que este povo está submetido, da falta de verdade, honra e vergonha dos podres poderes que escolheram o caminho da ambição, do negócio e da usura e, neste sentido, acabam trocando a riqueza da Bahia por drogas inúteis e fúteis, instrumentalizando a poética gregoriana a reclamar a subserviência do Brasil a Portugal e ao processo de opressão econômica que impunha o pacto colonial. A poética de Gregório de Matos é o zigoto de um sentimento nativista na Literatura Brasileira, mas, sobretudo, é um inventor poético de um imaginário iniciático sobre a baianidade. No entanto, sem desconsiderar as condições sócio-históricas, mas pensando lugares que reforçam estereotipias sobre os grupos raciais negados pelo projeto oficial da brasilidade, Matos e Guerra, ao pensar sobre a identidade baiana, aloca o corpo negro dentro de um verbo marcadamente racista. De forma irreverente e no suposto discurso

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histórico que legitima a violência a partir da brincadeira, Gregório de Matos deprecia, macula, fere, estereotipa as imagens do homem negro, visto como a degradação moral da sociedade baiana: Um Branco muito encolhido, um Mulato muito ousado, um Branco todo coitado, um canaz todo atrevido: o saber muito abatido, a ignorância, e ignorante mui ufano, e mui farfante sem pena, ou contradição: milagres do Brasil são. Que um Cão revestido em Padre por culpa da Santa Sé seja tão ousado, que contra um Branco ousado ladre: e que esta ousadia quadre ao Bispo, ao Governador, ao Cortesão, ao Senhor, tendo naus no Maranhão: milagres do Brasil são. Se a este podengo asneiro o Pai o alvanece já, a Mãe lhe lembre, que está roendo em um tamoeiro: que importa um branco cueiro, se o cu é tão denegrido! mas se no misto sentido se lhe esconde a negridão: milagres do Brasil são. (...) Que vos direi do Mulato, que vos não tenha já dito, se será amanhã delito falar dele sem recato: não faltará um mentecapto, que como Vilão de encerro sinta, que dêem no seu perro, e se porta como um cão: milagres do Brasil são. Imaginais, que o insensato do canzarrão fala tanto, porque sabe tanto, ou quanto, não, senão porque é mulato:


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ter sangue de carrapato ter estoraque de Congo cheirar-lhe a roupa a mondongo é cifra de perfeição: milagres do Brasil são. (MATOS, 1998, p. 69)

Vincula-se o sujeito mulher negra à devassidão, licenciosidade, lascívia. Há todo um já-dito que sustenta o dizer na sua poética em relação ao sujeito mulata: tem-se o estereótipo da mulata como sensual, com apetite erótico exagerado: Uma com outra são duas pela minha tabuada, e vós, Mulata esfaimada, quereis duas vezes duas. (MATOS, 1998, p. 65)

E erotiza, vulgariza, sensualiza o corpo da mulher negra, alimentando um imaginário que se perpetuará na forma como esta mulher há de ser lida pelo discurso oficial racista e machocêntrico da Literatura Brasileira e, ao mesmo tempo, construindo um lugar do corpo do povo negro que vai se perpetuar no imaginário da baianidade. Neste sentido, é importante perceber que a utilização de termos tido como vulgares já estão presentes com tonalidade de escárnio ou maldizer na poética nacional e mesmo ocidental, muito antes da produção artística guetificada da Bahia no século XX e XXI, para que não elejamos, sem termos uma leitura prévia do tecido satírico ocidental, determinadas produções, em determinados períodos, como réu de um processo de violência sobre corpos marginalizados. Esta problematização precisa ser feita quando percebemos o debate instituído pela Assembleia Legislativa da Bahia, em 2012, que apreciou e aprovou o Projeto de Lei nº 19.137/2011, que pretende impedir que verbas públicas sejam empregadas para pagar artistas que em sua obra aviltem a imagem da mulher e estimulem a violência contra ela. Projeto que vem da necessidade de valorização dos direitos das mulheres e contra a violência instituída pelas

alegorias que historicamente alocam o corpo feminino no estereotipado lugar da sublimação, castidade, pureza, maternidade e domesticidade ou na narrativa de uma eroticidade, vulgaridade, licenciosidade, aliás, motivo do Projeto citado. No entanto, na construção dos argumentos da referida Lei, a discussão produzida nas terras da Bahia, com ressonâncias nacionais, reduziram o pagode da Bahia, como grande produtor da baixaria na cena cultural baiana, desconsiderando um estudo dos tópicos satíricos do Ocidente que apresentam uma carga Fescenina, deste ou até mesmo anterior, a Fescênia, cidade italiana que oferece a semantização deste adjetivo. Ao lermos esses tópicos percebemos que existe uma tradição que vulgariza de forma escatológica, maldizendo corpos ao longo destas narrativas e poéticas. A exemplo: as Cantigas de Maldizer da produção trovadoresca, a poética de Joaquim Maria Du Bocage, os contos de Marquês de Sade, a poética de Gregório de Matos, a construção da mulher negra em autores do romantismo e do naturalismo brasileiro, a produção jorgeamadiana, a poética de Noel Rosa, Ary Barroso, um setor da poética do pagode da Bahia, etc. No entanto, no mesmo ano em que se discute a chamada Lei da Baixaria, o Governo da Bahia homenageia a obra do escritor Jorge Amado, mesmo com os seus perfis femininos tão próximos da crítica dos produtores e produtoras da Lei sancionada pelo mesma tinta governamental. E fica uma pergunta: o que faz esta produção guetificada ser alocada no lugar de baixeza cultural, quando educada por uma tradição fescenina de didática machista e outras produções com a mesma carga semântica e ideológica não serem questionadas por suas imagologias de violência? Tema, inclusive, que reduzo, em opinião e dúvida, nestas últimas linhas, mas certamente motivo de outro ensaio: o tamanho do pudor que a construção do discurso cristão ocidental deu ao nosso corpo, associado aos imaginários que perpetuam aquilo que chamamos de baixaria.

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IV – A festa do Amado, Jorge Stuart Hall (1999) e o debate sobre a identidade cultural na pós-modernidade aponta que a modernidade instituiu a ideia de que o sujeito era possuidor de um único núcleo identitário. Comenta que as transformações sócioculturais e filosóficas do século XX sinalizam a construção de um indivíduo com identidade híbrida, líquida, deslocando a perspectiva iluminista até então hegemônica. O modelo sólido da modernidade se desfaz e um mundo líquido, de identidades fragmentadas, surge em nossas retinas. O processo de deslocamento das verdades instituídas pela modernidade refaz os cenários sociais, raciais, sexuais e culturais, instaurando a necessidade de derrubar o edifício do pensamento ocidental. “Tudo que é sólido se desmancha no ar...”. Uma revolução cultural surge desfazendo a centralidade da cultura. As concepções essencialista e fixas de identidade entram em crise.

Neste sentido, a ideia de cultura nacional criadora de um modelo de nação homogêneo, que padronizou as representações nacionais, é refeita. No livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, Hall sinaliza: “Em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação. Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte.” (p. 52-52)

E logo depois tensiona: “Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. (Grifo meu) Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto como nas fantasias do eu “inteiro” de que fala a psicanálise lacanian­a identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas.” (p. 65-66)

Neste sentido, ao pensar a construção da baianidade como microcosmo da brasilidade na obra de Jorge Amado, é preciso perceber que as permanências históricas que inventaram uma cultura

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nacional desde as narrativas de viagem do século XVI, passando pela poética de Gregório de Matos, continuam perpetuando estereótipos e inventando identidades no período pós-colonial. Tensionando uma leitura linear das narrativas, desejo cruzar as obras de Jorge e Gregório para pensar os projetos de Brasil. Jorge Amado nasceu na fazenda Auricídia, em Ferradas, município de Itabuna, em 1912. Filho do “coronel” João Amado de Faria e de Eulália Leal Amado, foi para Ilhéus com apenas um ano, lá passou a infância e descobriu as letras. A adolescência ele viveria em Salvador, no contato com aquela vida popular que marcaria sua obra. Sua obra filia-se à Geração de 30, grupo de escritores que, influenciados pela teoria marxista e pela interpretação da brasilidade numa perspectiva gilbertofreiriana, repensam, a partir de uma incursão regionalista, um projeto de Brasil. Este entre-lugar do debate social de base marxista e racial faz muitos autores, inclusive Jorge Amado, se instalarem na dobra de um discurso que, a priori, rejeitaria o seu texto como de uma profusão de estereótipos, quando na verdade é exatamente isso que acontece. Ainda que apresente, do ponto de vista social, uma crítica profunda aos problemas sociais e econômicos em que a pobre gente baiana está submetida, denunciada, como a conjuntura sistêmica, exclui, marginaliza, desagrega o indivíduo subjetivamente, Jorge Amado, do ponto de vista da análise identitária, filia-se a um projeto de nação marcadamente patriarcalista, machista, sexista e racista. Sua obra é um reduto de violências simbólicas ao corpo do povo negro.


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Na tentativa de filiar-se a um projeto de nação que mitificou a ideia de um Brasil mestiço para negar a perspectiva racista do século anterior, Jorge Amado inventa o lugar da festa, da alegria, da cordialidade, do jeitinho brasileiro para tentar forjar uma amenização de todo o ódio racial existente no cotidiano da nação. Vasculhando a origem deste vestido da brasilidade presente na obra jorgeamadiana, é coerente perceber que a tessitura discursiva da Literatura do século XIX fundou a brasilidade com a presença do índio e do branco-Iracema (1977b), O Guarani (1977a), no mito do encontro cordial pocahonteiro, invisibilizando a negritude como elemento identitário no processo de formação da identidade nacional. A posteriori, influenciados pela construção histórica e racista do medo, as marcas civilizatórias da negritude e a necessidade de debater esta presença, impossível de ser invisibilizada, com a pauta abolicionista, a Literatura alegorizava este corpo negro como responsável pela degeneração da sociedade brasileira. Em “As Vítimas Algozes” (2005), Joaquim Manuel de Macedo constrói três narrativas para apresentar, dentro de uma proposta abolicionista, um manifesto da elite racista brasileira ao ler a presença da negritude no espaço nacional. Com isso, apresenta três personagens: Simeão – o crioulo; Pai Raiol – o feiticeiro; e Lucinda – a mucama; e os responsabiliza por serem um corpo pedagógico responsável pela degradação moral da sociedade brasileira. Carregam uma degeneração natural que eclode em ódio quando se percebem vítimas do regime escravocrata. Na primeira narrativa, Simeão – o crioulo, uma juventude criminosa, perversa, cínica e dissimulada, surge no corpo alegórico da personagem, instaurando uma leitura de medo que se perpetuará na ótica desta elite. Simeão é o negro lúgubre, que encontraremos em outra perspectiva, no comportamento de Zé-Pequeno da obra fílmica “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles, adaptação do romance de mesmo nome, de Paulo Lins. Simeão permanece na revolta de Sem-Pernas, personagem

do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado. Simeão permanece na caça racista do caveirão de Capitão Nascimento, reinvenção do capitão-do-mato que o Estado republicano legalizou. A caveira, símbolo da morte, que persegue e mata. Simeão permanece no ecrã da televisão como corpo a ser alvo de leituras criminalizantes dos programas sensacionalistas, de solidariedade macabra, recheados de assistencialismo, dramaticidade, hilaridade da TV Brasileira. Simeão permanece como representação dos corpos presentes hegemonicamente nos “Fests” realizados no solo da Bahia. Simeão permanece como aquele que hoje usa Cyclone e grita uma Bronka para um projeto de nação excludente e genocida. Simeão ajuda a configurar o que Osmundo Pinho chamou de etnografia de um brau. A segunda narrativa criminaliza a religiosidade de matriz africana, acusando-a de satânica, demoníaca e assassina na construção do zelador de orixá “Pai Raiol – o feiticeiro”, para alimentar o nosso circense projeto do “chuta que é macumba”. Chutar a matriz religiosa e ancestral de uma civilização. E para concluir o manifesto racista, o projeto pedagógico da mucama Lucinda. A professora de sexo, lascívia, orgia e vulgaridade da menina branca, pura, inocente, cândida, que em contato com a cartilha fescenina de Lucinda, maculou o projeto edênico daquela boa família, pois Lucinda violentou com a sua narrativa existencial a força adâmica do corpo da inocente e agora violentada menina branca. E nesta construção das estereotipias de base racistas outras obras como “O Cortiço” (2001), “O Demônio Familiar” (1960) e “Memórias de um Sargento de Milícias (1996)” manifestam também diálogos semelhantes. Em resumo, a construção do negro criminoso, que violentava a boa família branca, e a perpetuação do imaginário da mulher negra erótica e sensualizada são exemplos destas estereotipias. No entanto, ser negro e mestiço neste momento é assumir uma condição negativa. O mito da democracia racial, da narrativa jorgeamadiana reinventa esta perspectiva, mas reassume as mesmas cenas de estereotipias do século anterior, desta vez construindo um perverso e despropositado discurso da valorização, basta que

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comparemos Lucinda – a mucama, personagem supracitada, com Tieta, Gabriela, Tereza Batista e Dona-Flor para percebermos que o lugar da luxúria permanece construindo representações para o corpo da mulher negra. Neste sentido, a narrativa jorgeamadiana apresenta esse negro e negra ora lúdico, ora lúgubre, ora luxurioso. Em Capitães da Areia (1986), Pedro Bala, o líder branco de um grupo de meninos de rua em uma Bahia pós-escravocrata, trazia nos olhos e na voz a autoridade de um chefe. Depois de ter tomado o grupo da mão de Raimundo, uma personagem negra, Pedro Bala institui uma ética regular no grupo. É um herói, enquanto que a personagem negra João Grande é escolhido como “capitão da areia”, não porque é inteligente, mas sim, porque é forte, alias, segundo a narrativa: ”Dói-lhe a cabeça quando tinha de pensar’. Em Tenda dos Milagres (1970), além da defesa da religiosidade de matriz africana, Jorge Amado coloca a personagem Pedro Archanjo11. para transar com uma personagem manifestada de uma divindade africana. Cena exageradamente violenta, estereotipada, erotizadora e vulgarizadora da ancestralidade de um povo. Suas mulheres negras hegemonicamente sensuais, vulgares, eróticas, obscenas, licenciosas traduzem o quanto de estereótipos racistas e machistas participam do tecido discursivo jorgeamadiano. No entanto, é carnavalesca a baianidade jorgeamadiana, contraditória como o nosso Carnaval. O Carnaval e Amado se confundem na construção de um projeto identitário de felicidade para o povo baiano. Jorge Amado não serve para os gestores públicos da Bahia, apenas porque é considerado um grande prosador da vida social, política e cultural da Bahia, mas, sobretudo, porque a construção da sua baianidade interessa ideologicamente para perpetuar uma imagologia do ser baiano. Nesta perspectiva, um dos motivos da homenagem que o Governo resolveu fazer no Carnaval de 2012. Seu texto defende um projeto de baianidade, alocado nesta ideia cotidiana da felicidade, da festa, da mestiçagem, da eroticidade. É um texto turístico. Neste sentido, por algum viés, Jorge Amado e o Carnaval se confundem nos projetos políticos e 11 Personagem principal do romance Tenda dos Milagres (1970).

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nas contradições. E aproximando as representações entre Jorge Amado e os projetos festeiros da Bahia, finalizamos de forma inconclusa como deve sempre ser, esse exercício do ensaio, homenageando esse grande e necessário poeta da Bahia. Amado, Jorge.

V – Uma Salvador Fest – o Carnaval que não respeita a favela O Carnaval da Bahia é o espaço do cinismo, das apropriações indevidas, do esquecimento, é a catarse das nossas contradições, da nossa força cínica e da nossa capacidade de tentar inverter a ordem dos discursos hegemonicamente instituídos. Gilberto Gil me educou, na sua poética, que na sua juventude havia espaços em que a negritude não podia acessar. Grande Gil, que eu queria que fosse mais. Faltou a Dona Canô ler Gilberto Gil, aquele preto de que seu filho gostava. Caetano depois contemporiza. Torna poesia, o racismo da Mãe? “Aquilo de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, ou o fez...” (Não faz mais?). Texto Verdade Tropical “Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo, dizendo: Caetano, venha ver o preto que você gosta. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez, tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como isso se somasse àquilo que eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza. Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta.” Do livro “Verdade Tropical” de Caetano Veloso. (VELOSO, 1997)


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O Carnaval continua excludente, fotografa, para aqueles que a miopia não degenerou a capacidade analítica, o Brasil. Para não cansar os leitores que conseguiram chegar até aqui, não me interesso em fazer um breve histórico do carnaval baiano. Objetivamente falaremos do Carnaval pós-década de 80. Para isso é preciso perceber o processo de “pop-ização” do Carnaval da Bahia. Isto é, a transformação de um estilo musical com características específicas, em um estilo “pop”, com uma outra identidade, afim de torná-lo fagocitável para amplos públicos, no caso específico do Carnaval baiano, percebemos a introdução da dança coreografada e da exaltação da festa, processo esse que tem a ver com a mercadologicação do Carnaval. No entanto, o discurso que constrói a experiência carnavalesca, a legítima, como uma festa de caráter essencialmente popular e democrática. Tirante isso, a ausência da cegueira branca saramaguiana, nos revela uma outra realidade. O Carnaval é um produto lucrativo e faz-se vitrine para os artistas da Axé-music, esse conceito enlatado para falar da produção musical baiana, lucrarem com a sua exposição imagética durante todo o resto do ano, perpetuando uma monarquia rica e adorada pelo Brasil afora. Mesmo democrático, o Carnaval da Bahia inventou a corda, o bloco e o mais recente camarote. O centro e a margem. No centro ou na margem superior, um grupo racial e social muito bem alocado, protegido, guardado dos riscos e das violências de uma festa populosa. Será apenas isso? Protegendo este centro, homens e mulheres disputam a migalha do brioche da fartura dos donos da festa. E, na margem, seus irmãos e irmãs, apertados, esmagados, espremidos, lembrando o monturo humano dos tumbeiros sequestradores. Temperando o exercício democrático do carnaval da Bahia, o Estado vestindo a farda policial que, com muita delicadeza em uma terra festeira de gente bonita, massacra a plebe negra e hegemonicamente pobre que ali está.

Uma “cantora-dançarina” canta e dança uma música de Candomblé, que antes era medo na postura do Pai Raiol – feiticeiro do mal, agora é festa, é alegria, é magia, é baianidade. As religiões de matriz africana, desta vez, vivenciam o deslocamento sacrorreligioso de sua liturgia, esvaziando a proposta iniciática da sua religiosidade: “Ela assanha o céu Tudo ela alumia Ilumina a noite Incendeia o dia Ela veio do vento Ela veio do vento Ela veio do vento Eparrê! Oyá tetê Oyá tetê oyá Oyá tetê oyá Oyá Tetê” Oyá por nós, Daniela Mercury

A outra inventa o batismo de tradição africana, ganha o estatuto de “nega-lora”, escurece a pele com a maquilagem, se veste de oncinha e vai homenagear a África. Neste caso, o banzo seria melhor. E, no momento epifânico do corpo contraditório carnavalesco da Bahia, enquanto a delicadeza policial age para acalmar aquela festa de gueto, com gente de toda cor e raça de toda fé, um pouco contraditório em se pensando o gueto baiano e brasileiro, mais uma vez, volto-me ao alto, em que o cantor canta sem perceber o projeto a sua volta: “Favela, ê, favela Favela, eu sou favela Favela, ê, favela Respeite o povo que vem dela” Favela, Parangolé E viva a Jorge, o Amado. Deleuze (1996) fala da dobra. O lugar de Jorge Amado, onde estariam seus personagens: Tieta, Gabriela, Teresa Batista, Pedro Bala, Antônio Balduíno, Guma, Rosa de Oxalá e

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Jubiabá caso não fossem na ficção amadiana. Almiro e Barandão se fossem espertos, em algum espaço LGBT. No discurso de Jorge, o Amado, não! Ou a escuridão ou o esconderijo das areias do cais. Poético, não é? Poesia e Perversidade. Viva a Jorge, o Amado. Tieta, midiaticamente prostituindo-se em algum camarote. Gabriela não entraria em camarote, só se Nacib pagasse. Tereza encontraríamos em alguma rua do Comércio, naqueles becos esquecidos por João Henrique, Pedro Bala e os Capitães da Areia, atrás da Bronka, do Black Style.Talvez guardassem o dinheiro para aproveitar e curtir, a indumentária colorida do Salvador Fest. Outro produto enlatado do projeto mercadológico baiano. Se o Carnaval não respeita a favela, respeitamos nós, lá a favela tem camisa colorida e pode gritar. E grita mesmo. Ainda que o projeto os deseje enlatados. Não na lata dos habitats históricos, mas no centro mercadológico do show baiano. Quem vai descer? As comunidades descem. Vestem sua camisa. Trançam os seus cabelos. Usam a sua “Ciclone”. Óculos sem lente. Etnografam um corpo de um “brau”. Reinventam identidade. Reconstroem um território. Incomodam. Agridem. Amedrontam. São Bronka, Black Style, Fantasmões. No Carnaval, não! Estão desprotegidos e vigiados pela Polícia. O braço

genocida do Estado. Ainda assim, correm atrás do Muzenza, do Olodum, do Ilê, mas do lado de fora da corda. Não, perdoem-me, do lado de dentro. Cordeiros, lindos e trabalhadores, dançando ao som da Trilha Sonora do Gueto. Poesia e pervesidade. Vi Jubiabá no Alerta Geral depois no Gandhy. Tudo a crédito, enquanto a reparação não vem! Balduíno, grande Balduíno, restou você. Te vejo sim, ambulante, vendendo piriguetes para sustentar o filho do seu grande amor. Viva a Jorge, o Amado. Não poderia ser diferente. Vamos homenageá-lo sempre. É o que nos resta. O Carnaval da Bahia é isso. Como Xuxa brincou e se pintou de índio em 1989, Cláudia Leite pintou-se de negra, vestiu-se onça, africana pura, quando há quinze anos, uma juventude não saia no Eva porque moravam na Liberdade? Não eram gente bonita? Viva a Jorge, o Amado. “We are Carnaval, we are folia, we are the world off Carnaval, we are Bahia!” O bote de ferro chegou ao cais. Bom despacho. No espelho verde escuro da água do mar as “Bahias” se entrecruzam. Salvador está distante, uma baia nos separa. A de todos os santos. Ideia de construção coletiva. Essa, de fato, deve ser. De todos. Olho para o mar. As “Bahias” se entrecruzam no espelho verde-escuro das águas marinhas. Nas divergências deste espelho, inconcluo essas histórias.

...correm atrás do Muzenza, do Olodum, do Ilê, mas do lado de fora da corda. Não, perdoem-me, do lado de dentro. Cordeiros, lindos e trabalhadores, dançando ao som da Trilha Sonora do Gueto. Poesia e pervesidade.

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67 NORMAL OU PATOLÓGICO?

Maria Thereza Ávila Dantas Coelho (

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Psicanalista membro do Colégio de Psicanálise da Bahia, Professora Adjunto da UFBA, Doutorado em Saúde Coletiva. E-mail: therezacoelho@gmail.com


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Não é raro que, em alguns momentos da vida, a pergunta sobre o que é normal e o que é patológico surja, seja em relação a comportamentos, pensamentos e desejos próprios, seja em relação aos de pessoas com as quais se convive, bem como a acontecimentos ou ideias comunicadas por terceiros, como colegas, amigos, familiares e profissionais da mídia. Na clínica psicológica ou psicanalítica, essa questão emerge, muitas vezes, na busca de uma resposta que enquadre, avalie e julgue o que parece não estar claramente delimitado ou definido pelo indivíduo. Embora existam, a depender do lugar a partir do qual se considere essa pergunta, ou do saber que o recorte, diferentes pontos de vista acerca do normal e do patológico, refletiremos aqui sobre essa questão a partir do referencial da Psicanálise. A escolha desse campo, no debate sobre essa questão, não é à-toa. Ao mesmo tempo em que a Psicanálise, desde o seu início, estabeleceu diferenças entre o normal e o patológico, questionou a separação, a dicotomia entre esses dois conceitos, ressaltando a dificuldade de visualização da fronteira entre os mesmos. Para a Psicanálise, o normal e o patológico estão presentes numa mesma pessoa, em graus variáveis. Os casos mais brandos de neurose, por exemplo, correspondem ao que se considera como normalidade (Freud, 1901/1980, 1910/1980, 1926/1980), de modo que um eu totalmente normal é uma ficção. Ao mesmo tempo em que a Psicanálise ressaltou a presença do normal e do patológico numa mesma pessoa e a dificuldade de visualização da fronteira entre os mesmos, tratou também de estabelecer alguns critérios e elementos que os diferenciassem. Nessa direção, um comportamento tem sido considerado como normal ou sadio quando rejeita pouco a realidade (Freud, 1924/1980). Os casos extremos de patologia corresponderiam, assim, a uma ruptura com a mesma. Na esfera do ciúme, por exemplo, a incerteza da traição diante da falta de referências que a comprovam seria normal, enquanto que a certeza da traição na falta de evidências que a garantissem se aproximaria da patologia. (Lacan, 1955-56/1988) A vida dos indivíduos considerados normais se acha marcada pela presença de sintomas e traços neuróticos, mas estes, muitas vezes, não chegam a produzir maiores danos (Freud, 1915-17/1980; 1940/1980). Nessa perspectiva, ter a capacidade de

Para a Psicanálise, o normal e o patológico estão presentes numa mesma pessoa, em graus variáveis.

aproveitar a vida e de ser eficiente, por exemplo, seria, a princípio, um indicador de normalidade. Nos casos patológicos graves, os sintomas perturbam as funções sociais e individuais mais importantes, como a nutrição, a vida sexual, a vida amorosa, o estudo, o trabalho e a vida social (Freud, 1901/1980). Outro aspecto que tem sido relacionado à normalidade é a possibilidade de controle sobre os próprios impulsos. A obediência às normas sociais e culturais, embora produza algum sofrimento, é outro sinal de normalidade, porém a excessiva obediência a elas também pode ser fonte de adoecimento (Lacan, 1959-60/1988). O limiar da saúde é singular e varia de sujeito a sujeito (Prata, 2000). Uma exigência familiar, educacional e social em demasia se torna patológica quando esse limiar de saúde é transposto. Nessa perspectiva, a normalidade se associa tanto ao bem-estar, quanto ao mal-estar (Freud, 1930/1980). O mal-estar revela a vinculação do sujeito à cultura e ao universo social, na medida em que essa vinculação implica a frustração e a repressão de alguns impulsos. Um completo bem-estar, nesse sentido, seria utópico ou indicativo de grave patologia, uma vez que negaria as interdições e proibições sociais necessárias à vida em sociedade, causadoras de algum sofrimento.

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A discussão acima acerca do normal e do patológico não esgota nem responde a todas as perguntas que se associam a essa questão, mas ajuda a nortear a direção em que elas podem ser tratadas. É, em cada caso, sujeito e situação que essas perguntas se colocam e podem ser trabalhadas, respeitando-se a história de vida, o contexto, as experiências e a singularidade de cada um. O espaço da análise pessoal é o lugar por excelência de tratamento dessas questões, nessa direção. Em um processo de análise, não se parte de uma única concepção prévia de normalidade, pois existem várias possibilidades dela. O ser humano não possui um modelo único

de sexualidade, amor, saída da infância, adolescência e vida adulta (Lacan, 1956-57/1995; 1959-60/1988). A ética da Psicanálise não é a da normalização segundo a oferta de um modelo estrito de felicidade ao sujeito. A Psicanálise pode ser uma libertação, mas não uma correção numa direção previamente estabelecida. A intervenção psicanalítica não se restringe tampouco à esfera da consciência e leva em consideração, sobretudo, a dimensão inconsciente dos fenômenos. A Psicanálise pode, portanto, diminuir as inibições, sintomas e o nível de angústia dos sujeitos, sem, entretanto, impor a eles um padrão de normalidade que lhes seja exterior.

A Psicanálise pode ser uma libertação, mas não uma correção numa direção previamente estabelecida.

Referências: FREUD, S. A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1901. FREUD, S. Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1910. FREUD, S. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1915-17. FREUD, S. A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1924. FREUD, S. A Questão da Análise Leiga. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1926. FREUD, S. O Mal-estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1930. FREUD, S. Esboço de Psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Primeira edição: 1940. LACAN, J. O Seminário, Livro 3: as psicoses, 1955-56. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. LACAN, J. O Seminário, Livro 4: a relação de objeto, 1956-57. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da Psicanálise, 1959-60. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. PRATA, M.R. O Normal e o Patológico em Freud. Revista Physis: Rev. Saúde Coletiva, v.9, n.1, p. 37-81, 1999.

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CONEXÕES...

Infância em Conflito com a lei, Sociedade BRASILEIRA e Educação para os Direitos Humanos Ana Katia Alves dos Santos (

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)

Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia-UFBA; Brasil; Coordena o CRIETHUS – Centro de Investigação, Defesa e Educação da Infância. Endereço: Rua da Palmeira, 133, Barra, CEP: 40140260. E-mail: anakatia.santos@gmail.com

RESUMO

O texto é extensão de estudos que vêm sendo realizados mediante articulação de três temáticas principais: Infância, Educação e Direitos Humanos. Nesses estudos, aprofundam-se questões sobre a Infância e a Juventude, especialmente aquela em situação de risco social, ‘marginalizada’, a que sofre abusos e violências e a destituída de direitos, estas que enquanto grupo racial e étnico, no caso baiano-brasileiro, em sua maioria, é negra1. Por isso, o texto investiga as conexões entre a Infância em Conflito com a Lei e a Sociedade Brasileira mediante contexto de problematização que utiliza o axioma de nº 3 da obra Ética de Spinoza (2008) para introduzir a reflexão e proposta que será apresentada ao longo do texto. No decorrer do estudo há reflexão sobre a importância do desenvolvimento de uma Educação preocupada com o reconhecimento e garantia dos Direitos Humanos, defendida por alguns autores contemporâneos como Educação para a Paz. Palavras-chave: Direitos Humanos; infância; conflito com a lei; sociedade brasileira; educação para a Paz. CONNECTIONS... CHILDHOOD IN CONFLICT WITH THE LAW, BRAZILIAN SOCIETY AND EDUCATION FOR HUMAN RIGHTS ABSTRACT This text is an extension of studies that have been carried out through the articulation of three main themes: Childhood, Education, and Human Rights. In these works, topics regarding Childhood and Youth are studied in depth, especially when they are found in a situation of social risk, marginalized, suffer abuse and violence, and are lacking in rights. In terms of ethnicity and race, this Brazilian group from Bahia is mostly composed of blacks. Therefore, the text investigates the connections between child offenders and the Brazilian Society in a context of problematization that uses axiom number 3 of Spinoza’s The Ethics (2008) to introduce the reflection and proposal that will be presented in the text. Throughout the study, reflections on the importance of an education concerned with the acknowledgement and guarantee of human rights are made. This education especially concerned with the situation of childhood in the current context is defended and defined by some contemporary authors as education for peace. Keywords: Human rights; childhood; conflict with the law; Brazilian society; education for peace. 1 Dados da Secretaria de Justiça e IBGE, referente à infância em conflito com lei ou em medida de internação, apresenta a seguinte estatística: Norte 76% é negra e parda e 6% índia, total de 82%; Centro-Oeste 58% negra e parda e 1% índia; Sudeste 59% negra e parda e 0% índia; Nordeste 71% negra e parda e 2% índia; Sul 37% negra e parda, 62% branca e 1% índia. O total no Brasil: 61% negra e parda; 38% branca e 1% índia.


1. A Dificultosa Questão: Infância em Conflito com a Lei e Sociedade Brasileira “De uma causa dada e determinada segue-se um efeito”. É a partir do axioma de nº 3, citado na página 15 da obra Ética de Benedictus Spinoza, que o diálogo proposto neste texto se introduz a fim de demonstrar que a ‘categoria’ Infância em Conflito com a Lei (ICL) é efeito da sociedade mesma que a gera e alimenta, neste caso a sociedade brasileira. A existência da ICL não é dado que se interprete como algo nos domínios exclusivos do individual e das responsabilidades privadas da família desses jovens, como ‘necessariamente independente’ das relações de natureza social, melhor ainda, da sociedade. Ao contrário, pode-se afirmar que a substância é uma só: Infância em Conflito com a Lei2 e Sociedade brasileira. Efeito e Causa de um mesmo fenômeno que apresenta implicações sérias no domínio da compreensão do mesmo. ICL e Sociedade, repete-se, são elementos de uma mesma substância que para Spinoza (2008, p. 13) significa “[...] aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado”. Sendo assim, não se pode compreender ou conceituar um sem situar o comum-pertencimento ao outro, porque o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa. Refletir sobre a vigência e crescente ampliação desse grupo no âmbito da sociedade brasileira, e de suas manifestações consequentes, requer definir que ambos são coisas da mesma natureza. Segundo dados de pesquisa realizada por Silva e Gueresi (2003), no ano de 2002 esse grupo (cumprindo medidas de internação, privados de liberdade) era de aproximadamente 10.000 adolescentes, já entre os anos de 2005 e 2006, o grupo cresce para 34.8403. Essa Infância não é autoproduzida, mas co-produzida,

porque uma substância não pode ser produzida por uma coisa completamente diferente dela. De maneira detalhada, essa infância diz respeito a um grupo de crianças e adolescentes que agem: Contra a Pessoa (homicídio, lesões corporais, ameaça, maustratos, sequestro, contra a honra e violação de domicílio); Contra o Patrimônio (furto, roubo, extorsão, receptação, dano e estelionato); Contra os Costumes (estupro e atentado violento ao pudor); Contra a Paz Pública (bando ou quadrilha); Contra a Fé Pública (falsificação de documento particular e falsificação ideológica); Contra a Administração Pública (desacato e evasão mediante violência contra a pessoa); Lei de Tóxicos (tráfico e/ou uso de entorpecentes); Porte de Armas; Contravenções Penais (porte de arma branca, vias de fato, direção perigosa) e Lei Ambiental (pesca com explosivo).4 Ora, se o ser humano é enquanto ser de relações com os demais existentes, a ICL não pode ser concebida sem identificação de suas causas, ela é um dos ‘produtos’ da sociedade brasileira atual. Porém, nesse caso, essa mesma sociedade brasileira apresenta preconceito em compreender o significado da ICL, porque está mais propensa a abraçar o preconceito da afirmação desses jovens como ‘marginais’, jogando exclusivamente para eles e sobre eles o efeito das ações negativas por eles praticadas. Porém é preciso considerar como fundamento que todos os seres humanos apresentam ao nascer ignorância das causas das coisas, mas nessa ignorância não deve permanecer e evitar buscar somente o que lhes é útil, como diz Spinoza (2008). É útil, para a sociedade brasileira, ficar apenas nos efeitos causados por esses jovens a ela. É útil culpabilizá-los e não voltar para si à responsabilidade de refletir sobre as causas que os determinam. É útil adotar postura de afastamento como se essa Infância não estivesse sendo alimentada pelos processos produzidos por

2 Ou, se outra nomenclatura ajuda na compreensão: Infância Autora de Atos Infracionais. 3 Comparação entre total de adolescentes de 12 a 18 anos e aqueles em conflito com a lei 2005/2006. http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77/ ConteudoId/ced8fa9e-7474-45e9-92c6-b903b56a0190/Default.aspx Acesso: 20 de fevereiro de 2009

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4 Informações da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, fevereiro, 2009.


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uma sociedade que se fundamenta, ainda em pleno século XXI, na desigualdade, nos processos de exclusão, na discriminação, na produção crescente da violência, na manutenção da miserabilidade desde o processo de colonização. A sociedade brasileira vem se permitindo, ao longo dos anos, conviver com as enormes injustiças sociais e suas violências. Constatação essa inaceitável, já que a ela própria retorna todos os fatos e fenômenos dessa ordem. As injustiças sociais e as violências produzidas pela sociedade brasileira não são estrangeiras a ela mesma. Tudo está em relação e deve ser pensado em termos de Agenciamento Maquínico. (DELEUZE e GUATTARI, 1995) A palavra Agenciamento tem sua raiz etimológica na soma do prefixo ag. Somado a ar, que significa ver. Ver e compreender que existe uma unidade real mínima que agencia maquinicamente corpos, estes que reagem uns sobre os outros. Deleuze e Gauttari (1995, p. 29 e 30), esclarecem:

Podem-se tirar daí conclusões gerais acerca da natureza dos Agenciamentos. Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; [...] o agenciamento tem, de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam e, de outra parte, picos de desterritorialização que o arrebatam. [...] de um lado a máquina-barco, a máquina-hotel, a máquina-circo, a máquina-castelo, a máquina-tribunal: cada uma com suas peças, suas engrenagens, seus processos, seus corpos enredados, encaixados, desarticulados. [...] Considerar-se-á a mistura de corpos [...]

Quer dizer, nessa relação ICL e Sociedade Brasileira, haverá reação permanente de um sobre o outro, os corpos se misturam e reagem uns sobre os outros. Por isso, é preciso rever as relações estabelecidas, o grau de responsabilidade, os acordos tácitos através das formas de indicação do conteúdo e das formas de expressão de ambos. Porque os conteúdos e as formas de expressão não são abstrações, nem da ICL tampouco da Sociedade que a alimenta. São expressões reais, que podem chegar à violência, indicando que nessa mistura de corpos se compreendem todas as maneiras de atrações e repulsões, simpatias e antipatias, alterações, alianças, penetrações e expansões que afetam os corpos de todos os tipos, uns em relação aos outros. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 35)

Essa relação entre ICL e Sociedade Brasileira é coisa singular existente em ato. Por isso mesmo necessita ser cuidada o quanto antes. Cuidar de alguns aspectos fundamentais que colaboram para a construção de uma nova relação, visando à ultrapassagem de conteúdos que podem ser definidos como obstáculos para uma outra possibilidade de relação social, como mostra figura 1. Fragilidade ou ausência de políticas educacionais apropriadas a este grupo infantil e metodologias de aprendizagem alternativas

Forte imaginário social de não-responsabilização pelos problemas sociais, especialmente dos grupos infantis

Base social e econômica centrada na desigualdade

Dissolução da família

OBSTÁCULOS A ULTRAPASSAR NA RELAÇÃO ICL E SOCIEDADE BRASILEIRA

Imaginário de que a ICL é problema de segurança e justiça penal Ignorância e negação dos Direitos Humanos como componentes de uma sociedade humanizada e humanizadora

Extrema pobreza e miserabilidade

Manutenção de formas de discriminação e preconceito em âmbito geral

Política elitista agravada pelos processos de globalização da economia Ausência de reflexão ética sobre a existência da ICL

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2. O Problema da Existência da Infância em Conflito com a Lei A Infância em Conflito com a Lei é existência em ato e suas relações com a sociedade devem ser de base ética e não moral. Essa premissa colabora com a reflexão sobre o campo ético que pode articular a relação entre a ICL e a Sociedade porque centra nas relações. Vê-se, ao contrário, que não apenas no imaginário social, ao qual chamaremos de comum, como também no imaginário e ações de muitas instituições e organizações de ‘atenção’ à ICL, particularmente aquela em privação de liberdade, no contexto brasileiro a preocupação central se localiza no aspecto moral, ou seja, nos elementos normativos, no cumprimento legal a ser alcançado por esse grupo infantil, nos códigos de conduta aos quais a ICL deve se ajustar socialmente. Ou seja, o foco geralmente do trabalho desejado está na readaptação e ajustamento social, formas estas que se organizam a partir do respeito e cumprimento às leis organizadoras da sociedade. A esse grupo infantil, compreendido entre os doze (12) e dezoito (18) anos, cabe readaptar-se a sociedade, esta que possui seus códigos legais e sua organização própria de base moral. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê medidas chamadas de Socioeducativas, que são um chamado à ICL para a responsabilização em face dos atos infracionais cometidos. Essas medidas objetivam não adotar caráter punitivo, mas a de viabilizar a reinserção desses jovens à família e à comunidade. São estas as Medidas Socioeducativas, localizadas no Capítulo IV, na seção I, no Artigo 112 do ECA: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semi-liberdade; internação em estabelecimento educacional; qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias: I - pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente; II - igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa; III defesa técnica por advogado; IV - assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei; V - direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; VI - direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento. Ora, nota-se, apesar do avanço que essas medidas representam desde o antigo “código de menores”, Lei n.º 6.697/79, que a ação voltada, de fato, aos aspectos educativos ficam a desejar, se entendemos por educação o processo de humanização mediatizado por uma prática educativa (processo de ensino-aprendizagem) que se dá no encontro relacional entre educador e educando, no qual a prática dialógica e ética sobre, especialmente, a sua condição existencial e de produção de conhecimento é elemento fundante para a transformação da condição mental, relacional e de comportamento individual desses jovens, ou seja, reflexão crítica, radical, complexa e de conjunto, da natureza dos fatos e elementos que organizaram essa forma de existir e que se expressam em ato que ‘fere’ a ordem moral da sociedade. O que se vê em várias instituições de atenção a esse grupo infantil é que

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o trabalho com essas medidas não se diferencia do ‘cumprimento de pena’. Ao contrário, nota-se que há ausência de reflexão sobre o que é educação para a infância específica e como transcender o sistema moral vigente voltado para esses jovens e alcançar e desenvolver uma prática de natureza ética preocupada com a condição existencial, de vida em ato da ICL que colabore com a “modificação” no modo de estar sendo desses jovens. Especialmente no modo ‘privados de liberdade’, é preciso que um trabalho de fato educativo e humanizador seja empreendido. Em educação, a questão deve ser muito mais ética do que moral, porque centra nas relações e naquilo que surge enquanto resultado dos encontros estabelecidos (qualidade do conhecimento produzido a partir da relação estabelecida).


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A Educação e os seus processos devem viabilizar o conhecimento de si, do outro e do mundo, percebendo que os sujeitos da relação educativa têm sentimentos e emoções e que esses devem ser dialogicamente trabalhados. É essa relação ser humano-outro-mundo que viabiliza a construção educativa fundada na ética. Freire, em sua obra Educação como Prática de Liberdade (2001), afirma que é esse conhecimento que irá colaborar com o desenvolvimento da capacidade de viver em sociedade e de se relacionar de forma equilibrada com ela. O ser humano será livre à medida que conhece a si, ao outro e ao mundo através das experiências compartilhadas, que se relacionam com processos educativos, políticos, econômicos e culturais. Entre Educação e outros processos essenciais à vida há ligação fecunda. A educação humanizadora e ética é inerente a todo Ser Social. Sendo assim, as comunidades de atendimento de medidas socioeducativas, família, políticos, grupos sociais e a sociedade ao assumir essa tarefa essencialmente educativa devem ir além das medidas presentes no ECA que não dão conta dos processos humanizadores e éticos que se devem empreender junto a esses jovens. Educar visa à libertação, à alteração crítica da realidade com vistas ao seu melhoramento analisando o que é bom ou mau numa relação. Visa também ao tornar-se mais humano porque sujeitos de sua própria história e não coisa, objeto. Educar é trabalho de natureza ética a ser empreendido. A revelação dessa forma ética de educação se mostra também na estética, na valorização de diferenciadas formas de expressão de ‘beleza’5, de sentir e de ser, como indicativos de ‘refinamento’ dos sentidos e da forma de estar ética e esteticamente sendo ser humano no mundo com os outros. Segundo Schiller (1990, p. 81): [...] é pela beleza que se vai à liberdade. A Estética através das Linguagens Artísticas dá a ver, a ouvir, a sentir, a pensar, a dizer. Nela e através dela a realidade se mostra como se nunca a tivéssemos visto, ouvido, dito, sentido ou pensado. É a experi5 Ver trajetória do conceito nos estudos filosóficos já postulados.

ência do nascer todo dia para a eterna novidade. É a passagem do instituído para o instituinte, transformando o que já existe em uma outra realidade, que pode se revelar sob forma de obra ou pensamento, como consequência da expressão criadora. Caminho este de grande relevância para a educação da ICL, que necessita ampliar a compreensão da realidade em que está situada e surpreender-se com a possibilidade de recriá-la, o possível nascer de novo. Ética e Estética devem ser elementos de uma mesma composição: a Educação. Esta forma de educar não deve ser privilégio de crianças e jovens moralmente considerados como bons (as) e ‘normais’. A articulação ética-estética deve participar ativamente do processo existencial da ICL. Através do diálogo humanizador, da criticidade, do viés transformador e conscientizador da ação educativa, a ICL percebe sua realidade e é capaz de recriar a sua condição de existir em sociedade. Ela aprenderá que o mundo vivido se modifica também através da nossa sensibilidade e percepção. Educação do sensível é educação do sentimento ou educação estética. Estética em sua raiz grega (aisthesis) significa a capacidade do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo e no sentido simples é vibrar em comum, experimentar e sentir coletivamente, dedicando-se ao refinamento dos sentidos. Caminho favorável ao trabalho ético-estético na educação da ICL é através da Arte-Educação e das Rodas Dialógicas6. Duas propostas metodológicas articuladas que viabilizam o processo humanizador e a reflexão crítica, para além da moral e dos compromissos legais, sobre a existência da ICL. As Rodas Dialógicas, aqui definidas como ‘Encontros Humanizadores Horizontais de troca e produção de conhecimento crítico de si, do outro e do mundo’ acerca de temáticas de interesse da ICL e dos educadores, tais como o Valor da Liberdade, Sexualidade, Moral, Sociedade, Família, Viver Junto, Morte, dentre ou6 Essa articulação metodológica está sendo proposta pela autora a partir de seus trabalhos no campo da Educação (Alfabetização Cultural), bem como mediante as práticas desenvolvidas e estudos internos da linha de pesquisa CRIETHUS – Centro de Investigação da Infância, Ética e Educação em Direitos Humanos, vinculada ao grupo Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas.

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tras que mobilizem os jovens a refletirem criticamente sobre a sua existência e a vida em sociedade. Rodas que assumem a Horizontalidade freiriana, na qual educador e educando são comprometidos e implicados um com o outro, permitindo a transparência crítica, as socializações dos pontos de vista, nem sempre compartilhados, uma autêntica relação de trocas e opções que ambos apresentam no ato de produção de conhecimento existencial. As Rodas Dialógicas, mediadas pelos educadores críticos, podem ser provocadas por linguagens do campo da Arte. Daí os educadores devem assumir comportamento arte-educador, criador, que viabilize o desenvolvimento da crítica existencial através dessas linguagens. Especialmente, o trabalho estético com a Sétima Arte apresenta significativa relevância como ‘disparadora’ da reflexão nas Rodas Dialógicas, além evidente da expressão corporal do educador. Uso e entonação de voz, forma de apresentação física e mental colaboram com o desenvolvimento estético dos educandos, que estão sempre atentos ao educador, por representar indicativo de formação humana. A Sétima Arte, mediante seleção apurada de temáticas propostas pelos educadores e pelos próprios jovens, através das Rodas Dialógicas, pode motivar a ICL no desenvolvimento de novos valores e formação de princípios capazes de desenvolver reflexão profunda sobre sua condição existencial e posição no contexto social. Para além das Medidas Socioeducativas presentes legalmente no ECA, é necessário que os Encontros Educativos Humanizadores sejam estabelecidos com a ICL em privação de liberdade, como possibilidade de modificação existencial do modo de estar sendo desses adolescentes. Investindo nessa perspectiva de pensamento educativo voltada para a ICL, a sociedade brasileira estará dando passos largos no cuidado dela mesma, visto que possibilitará a requalificação dos seus modos de ser tanto individual quanto coletivo desses jovens. A palavra Moral, em sua etimologia, vem de costume (mos, palavra latina) que significa ser honesto e virtuoso. O conceito de Moral está relacionado a um conjunto de normas e procedimentos, geralmente legais, relativos a determinado grupo social que os organiza, determina e defende. Ser sujeito moral é seguir os princípios socialmente aceitos (costumes, boa conduta, honestidade...). É a predisposição de um ser humano em agir com maior ou menor vontade diante das circunstâncias sociais apresentadas, independente de sua liberdade de reconhecer essas circunstâncias como apropriadas. A moral é um fato da realidade, por isso não há grupos conceitualmente humanos sem moral. O que há é a existência de diferentes grupos com diferentes ‘códigos morais’. A moral e seus códigos devem ser admitidos e respeitados pelos membros que compõem aquele determinado grupo social. Fato este que apresenta desvios, visto

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que nem todos os membros estão ‘conformados’ à normatividade da moral daquela sociedade. Este é o caso, por exemplo, da ICL. Ao se desviar do normativo, os jovens aqui citados, entram em conflito com a moral social porque se distanciam daquilo que podemos chamar de ‘vida social harmoniosa’, porque cometeram atos que feriram essa normatividade especialmente daquilo que se instituiu como o que é bem. O BEM ou o MAL indicam um ser dado a priori situado em categorias teoricamente-moralmente pré-constituídas. É exatamente neste aspecto que há um ponto de conflito: a Infância em Conflito com a Lei é “em ato”, ser singular existente em ato. Ser em ato é não ser dado a priori a partir de um sistema normativo predefinido. Pela natureza particular da adolescência, de maior exercício da liberdade, ela está mais propensa a se desviar dos padrões instituídos e aos vícios. O bem só assim o será, para esses jovens, mediante o exercício experiencial da realidade e não a partir de discursos e sistemas previamente definidos.

Pela natureza particular da adolescência, de maior exercício da liberdade, ela está mais propensa a se desviar dos padrões instituídos e aos vícios.


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Ser sujeito moral é seguir os princípios socialmente aceitos (costumes, boa conduta, honestidade...). Éa predisposição de um ser humano em agir com maior ou menor vontade diante das circunstâncias sociais apresentadas, independente de sua liberdade de reconhecer essas circunstâncias como apropriadas.

Insistir na manutenção da norma como viés de trabalho para esses jovens não parece ser a melhor decisão, visto que os mesmos estão exatamente em situação de Conflito com a Lei (assim identificados). O fato de estar em conflito com a Lei já indica que o trabalho deve estar atento a essa questão. Buscar outro caminho para fazê-los refletir sobre a sua relação com a sociedade e consigo mesmos. Ao passo que a Sociedade e suas instituições devem compreender que uma ICL, se compõe à sociedade e esta pode aumentar ou diminuir a sua potência de agir, de mais vida. O quadro para a existência desses jovens se dá em termos de Composições e Decomposições. Por isso é importante se perguntar quais são os conflitos que compõem o quadro do estar sendo adolescente em conflito com a lei que os leva à Privação de sua liberdade. A sociedade brasileira atual está diminuindo ou decompondo a potência de agir positiva desses jovens e alimentando a potência de agir negativa. A privação da liberdade, como forma prática e moral de tentativa de resolução de tal problemática, é apenas uma medida para um problema de raízes profundas. É preciso o olhar cuidadoso e ações educativas efetivas que sejam tanto preventivas quanto que ajam de forma humanamente eficaz enquanto há privação momentânea da liberdade. Ora, os encontros determinam a existência. Todo encontro resulta do poder de afetar e ser afetado dos existentes. Então, durante o período de privação de liberdade desses adolescentes necessário se faz que os educadores com os quais vão se encontrar possibilitem o aumento da potência de agir desses jovens, através dos processos de aprendizagens (Rodas Dialógicas e Arte-Educação) e da liberdade nas relações. Que essa potência represente vontade de mais vida, de conquista cada vez maior de humanização da existência, que as ajude a sair do ciclo social perverso em que se encontram e alcancem novas formas de ser no mundo com os outros. E que a liberdade seja tomada como força capaz de provocar encontros que aumentem a potência de ser cada vez mais humano. É importante que os educadores medeiem a composição da potência de mais vida, que os faça compreender o enfraquecimento de sua potência positiva, porque esses jovens são, em grande parte, desconhecedores das causas de sua decomposição existencial e da diminuição de mais vida, porque tomam efeito por causa. Ou seja, há uma tendência da ICL a considerar ela própria como causa primeira dos seus atos, invocando assim o Poder sobre o seu corpo e comportamento sobre todas as coisas, explorando mais as Paixões (como Vícios da Vontade) que as virtudes. Os adolescentes são potencialmente abertos aos vícios (uso de drogas, roubos, furtos...). A prática educativa, junto a esses jovens, deve ajudá-los a compreender e explicar essa tendência às paixões, indicando que elas podem trazer alegria ou tristeza. Por isso, é tarefa do educador indicar caminhos de reflexão que viabilizem o desenvolvimento das Paixões Alegres, ou virtudes, e ainda fazê-los

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compreender o funcionamento da sua Consciência Crítica para que se tornem livres, não apenas no sentido legal, mas no sentido humano-existencial. Tornar-se livre é um problema essencialmente ético. O conhecimento reflexivo, crítico, sensível, os encontros alegres, o debate sobre os valores que regem a nossa existência é que torna o ser humano livre. É preciso colaborar com a ICL na formação de ideias adequadas para fazê-la conhecer cada vez mais o funcionamento de sua natureza e de todas as coisas que existem na relação homem-todo. Nesse exercício, o conceito de Spinoza (2008) que etimologicamente significa aprofundamento ou esforço em latim, chamado Conatus, é uma adesão ao impulso de mais vida e plenitude, é força interna ilimitada (afirmativa) para existir e conservar-se na

existência indestrutível, afinal nenhum ser humano, em tese, deseja a autodestruição. Note-se a proposição 9 e a proposição 6 de sua obra Ética (2008)7: Esse esforço por mais vida, existente em cada ser humano, deve ser incentivado permanentemente por educadores sensíveis, críticos e criativos e por uma sociedade fundada numa educação ética de compreensão social balizada na valorização e garantia de Direitos Humanos favoráveis à manutenção de relações sociais cada vez mais humanizantes nesse nosso tempo.

7 Proposição 9: A mente, quer enquanto tem idéias claras e distintas, quer enquanto tem idéias confusas, esforça-se por perseverar em seu ser por uma duração indefinida, e está consciente desse seu esforço. Propositio IX: Mens tam quantenus claras et distinctas, quam quatenus confusas habet ideas, conatur in suo esse perserverare indefinita quadam duratione, et huius sui conatus est conscia. Proposição 6: Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser. Propositio VI: Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur (2008, p.173-175).

Tornar-se livre é um problema essencialmente ético. O conhecimento reflexivo, crítico, sensível, os encontros alegres, o debate sobre os valores que regem a nossa existência é que torna o ser humano livre.

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3. A Educação para os Direitos Humanos e a Compreensão Social Voltada para a Infância em Conflito com a Lei Conforme defendido no item 2 deste texto, o trabalho no que se refere à existência e educação da Infância em Conflito com a Lei em Privação de Liberdade é fundamental para a sua reinserção social. Contudo não só a ela, e aos seus educadores, cabe a responsabilidade de resolução de problema tão complexo. É papel da sociedade brasileira comprometer-se com essa Infância, visto que, vale lembrar, ambos são comum-pertencentes e se agenciam maquinicamente (item 1). Nesse sentido, uma das sugestões para minimização dos problemas que afetam, especialmente, a Infância brasileira, no século XXI é a adoção, pela sociedade brasileira, de uma perspectiva amplamente debatida atualmente com contexto nacional e internacional (RAYO, 2004; JARES, 2002; GUIMARÃES, 2005) e Organizações de Defesa dos Direitos Humanos chamada Educação para a Paz, como chave essencial para a organização de relações sociais fundadas no respeito e defesa dos Direitos Humanos. Relações fundadas no respeito aos direitos humanos para o desenvolvimento e dignidade plena das pessoas, especialmente a Infância Brasileira. É preciso ampliar os tímidos esforços que vêm sendo empreendidos por Ongs, Instituições de Atenção à Infância, Especialistas e Educadores Críticos, para defender a Cultura da Paz, que situa os direitos humanos como caminho de aumento do nível de crescimento social centrado nas pessoas, não no dinheiro e nos processos de globalização da economia e muito menos no exercício crescente da violência como resolução dos problemas e conflitos sociais. A Cultura da Paz,

mediada pela Educação, explicita claramente o lugar da Infância no contexto nacional-internacional, bem como reconhece que há um conjunto de problemas sérios em nível mundial que devem ser imediatamente pensados para a sobrevivência de todos e de todas (RAYO, 1998). Esses problemas põem em risco os próprios ideais da humanidade e os grupos sociais que a compõem. São vários os instrumentos de análise desses problemas e de defesa dos Direitos Humanos favoráveis à Cultura e Educação para a Paz, que tratam de salvaguardar cada pessoa, grupo ou nação, como apresenta figura 2. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais, Culturais (1966)

Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986)

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)

Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1969)

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966)

INSTRUMENTOS DIREITOS HUMANOS

Convenção para prevenção e sansão do delito de genocídio (1951)

Convenção sobre os Direitos das Crianças (1990)

Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (1981)

Existem problemas a investigar no caminho da cultura da Educação para a Paz, como bem cita Rayo (1998): a situação dos direitos humanos (os direitos humanos educam?), o grau de desenvolvimento social centrado nas pessoas, o lugar da infância e o contexto internacional dominado pela globalização da economia e pelo exercício e crescimento da violência como solução para os conflitos. A Educação para a paz deve prever aprendizagens significativas e solidárias, deve ser crítica o suficiente para possibilitar a construção de novas consciências e existências que sejam preocupadas, por exemplo, com a situação da Infância no século XXI, que garantam um pensamento, além

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de crítico, aberto para provocar transformações através da participação cidadã e democrática. Educação que nos faz lembrar Paulo Freire, porque é esperançosa, não por teimosia, mas por condição existencial e ética. A fome, a miserabilidade, todas as formas de escravidão, racismo e discriminação, ocupação indevida de territórios, dissolução da família como estrutura de apoio, pessoas sem terra e sem teto, conflitos armados, violência, emigração, escassez de alimento e água, desastres naturais, deterioração do meio ambiente, processo de desigualdade e exclusão pela educação, pelo lazer, pelo trabalho, abandono e exploração da Infância, dentre outros fatores, são problemas a serem devidamente debatidos e enfrentados, nos nossos tempos, de forma conjuntural. A Cultura e a Educação para a Paz implica em relações mais justas entre pessoas e sociedades e no reconhecimento da igualdade dos direitos de todos os povos, pessoas e culturas que gozam dos recursos e bens produzidos, sejam materiais, humanos e/ou espirituais. Segundo Rayo, paz é sinônimo de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais garantidos a todos. Nesse sentido, os Estados devem retomar o seu lugar, minimizado desde as políticas neoliberais. Negação de Direitos gera violências. Chefes de Estados e Governos devem assumir os seus compromissos, como bem defende a Declaração de Copenhague: proteção dos direitos das crianças e jovens porque a vida da Infância que sofre é termômetro que mede a má organização do mundo e os problemas sociais de cada sociedade; promoção do respeito universal; observância e proteção de todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos; igualdade e equidade entre homens e mulheres; cumprimento das obrigações em todos os níveis da sociedade; fortalecimento da coesão social e da sociedade civil. Os Direitos Humanos são inerentes à pessoa humana e através deles se funda uma ética para a existência humanamente autêntica. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um dos caminhos de garantia para a construção dessa existência. Vide na Figura 3, os direitos proclamados pela DUDH.

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À segurança da pessoa À educação

A assistência médica e ao trabalho

Á liberdade de pensamento, consciência e religião De exercer o sufrágio e participar do governo

À vida e à liberdade

Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948 – Direitos

Á propriedade A liberdade de circular livremente e escolher sua residência

A igualdade perante a lei A não ser submetido a torturas nem penas ou tratamentos cruéis À previdência social

A educação da Infância e suas demais necessidades básicas compõem as metas para o desenvolvimento humano no século XXI. Deve buscar-se o aprofundamento de uma prática educativa voltada para a garantia e desenvolvimento de aprendizagens compartilhadas, de vocação solidária e preocupada com temas que não foram tradicionalmente reconhecidos, como é o caso dos Direitos Humanos, tema este, aliás, que se tornou fonte quase exclusiva de preocupação da área do Direito, especialmente no Brasil. No entanto, se houver abertura para uma educação de vocação internacional (Rayo, 1998), alguns documentos servirão de base para o inicio da formulação dessa nova prática, voltada para uma sólida educação da infância. Vide Figura 4. Documentos marcos para a elaboração de políticas voltadas à educação e abolição do trabalho infantil

Convenção 138 e a Recomendação 146 da OIT – Organização Internacional do Trabalho (1973)

Declaração Mundial sobre a Educação de todos (1990) Celebrada em Jomtiem - UNESCO

Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) Esta que mais tarde motivará a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Esses documentos marcam não apenas a luta pela validação de uma educação voltada para os direitos humanos, bem como é grande indicativo das reais possibilidades de se articularem propostas curriculares voltadas para a produção de conhecimento de uma Educação para a Paz. Esta colaborará na resolução de problemas apresentados no século XXI voltados para as gerações futuras e presentes através da atenção, do cuidar e educar a Infância.


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Considerações finais Há indicativos de conclusões: o primeiro deles revela que o desenvolvimento de uma educação para a Paz, que promova os Direitos Humanos, precisa antes do reconhecimento dos graves problemas sociais hoje existentes e a percepção da condição da Infância no século XXI, especialmente quando apontamos a Infância em Conflito com a Lei, que sofre e é efeito da própria organização social brasileira (e mundial) nesses tempos. O segundo indicativo diz respeito ao reconhecimento dos direitos humanos como tema de relevância para a educação, sem que para isso seja necessário criar disciplina e que estes não fiquem apenas nos domínios de áreas, como a do Direito. O terceiro indicativo remete a uma metodologia alternativa de educação que viabilize o trabalho de humanização efetivo, que não seja privilégio apenas

de crianças que respondem ao padrão social dito normal, mas que ‘cuide’ da infância excluída e que sofre as consequências dos problemas do mundo gerados pelos adultos em sua organização social. Pensar uma metodologia que articule a Arte-Educação com ênfase no cinema e nas Rodas Dialógicas, entendidas como “Encontros Humanizadores Horizontais de troca e produção de conhecimento crítico de si, do outro e do mundo”, e que nessas rodas os Direitos Humanos sejam também caminho de reflexão para as crianças. Por fim, constata-se que, para a construção e validade de uma Cultura e a Educação para a Paz, há de se empreender e garantir relações mais justas entre pessoas e sociedades e o reconhecimento da igualdade dos direitos de todos os povos, pessoas e culturas, que gozam dos recursos e bens produzidos, sejam materiais, humanos e/ou espirituais.

Referências: BRASIL. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília. Comparação entre Total de Adolescentes de 12 a 18 Anos e Aqueles em Conflito com a Lei 2005/2006. Acessado em: 20 de fevereiro, 2009. Disponível em: http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77/ConteudoId/ced8fa9e-7474-45e9-92c6b903b56a0190/Default.aspx DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix (1976). O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago. _____. O Que é a Filosofia? (1992). Rio de Janeiro: Ed. 34. _____. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia (1995). [Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão]. V. 2; Rio de Janeiro: Editora 34. FREIRE, Paulo (2001). Educação como Prática de Liberdade. 25 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FURTADO, Celso (1992). Brasil: A Construção Interrompida. Rio de Janeiro, Paz e Terra. GUIMARÃES, Marcelo R (2005). Educação para a Paz: Sentidos e dilemas. Caxias do Sul, RS: Educs. JARES, Xésus R (2002). Educação para a paz: Sua teoria e sua prática. Tradução Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed. MENEZES, Rodrigo Carqueja de (2006). Devir e Agenciamento no Pensamento de Gilles Deleuze. Comum - Rio de Janeiro – v 11 - nº 26, p. 66 a 85, janeiro/junho. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Perfil dos Adolescentes em Conflito com a Lei Representados pela Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude em Salvador - 2000-2003 - Acessado em: 20 de fevereiro, 2009. Disponível em: http://www.altrodiritto.unifi.it/latina/almeida/index.htm. RAYO, José Tuvilla (2004). Educação em Direitos Humanos. Rumo a uma perspectiva Global. Porto Alegre: Artmed. SAMPAIO, Plínio Arruda (2000). Dilema e Desafios Postos para a Sociedade Brasileira. Revista de Estudos Avançados. 14 (40). SCHILLER, Friedrich (1990). A Educação Estética do Homem – numa série de cartas – Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras. SILVA, Enid Rocha Andrade e Gueresi, Simone (2003). Adolescentes em Conflito com a Lei: situação do atendimento institucional do Brasil. Acessado em: 24 de fevereiro, 2009. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0979.pdf. SPINOZA, Benedictus (2008). Ética. [Trad. Tomaz Tadeu]. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

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Prentice Carvalho (

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Nascido em agosto de 1940, Prentice Carvalho é um artista plástico que já trabalhou com pintura em tela e cerâmica, hoje se dedica ao azulejo. Há 47 anos, a “Casa de Prentice”, como é conhecida, abriga o atelier do artista, situada no número 70 da Avenida Porto dos Tainheiros, Ribeira. O casarão do século XIX, de estética abalada pelo tempo, esconde cores e azulejos lindíssimos, que exprimem personagens e paisagens típicas da Bahia, santos, orixás e retratos.


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Prentice também estudou Artes, mas garante que a técnica usada vem somente da imaginação. “Tento mostrar o que é que a Bahia tem”, explica, unindo modernidade e tradição, ao mesclar a antiga técnica portuguesa de pintura de azulejos com o uso de um forno elétrico que chega até 1500º C.

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O trabalho do artista plĂĄstico soteropolitano ĂŠ conhecido mundialmente.

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Gregório de Matos: Os usos e representações da Cultura e da Língua Latina na obra do poeta baiano

Silvio Wesley Rezende Bernal (

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Graduando em Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia-UFBa. E-mail: silviorezendeb@hotmail.com


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Esse trabalho se insere no projeto de pesquisa “Em Busca de Fontes para uma História Social do Latim no Brasil”, que se vincula à linha de pesquisa História da Leitura e da Escrita no Brasil. Aqui iremos discutir acerca das referências ao Latim, diretas ou indiretas, dentro da obra do poeta baiano Gregório de Matos Guerra. Gregório de Matos Guerra, considerado o primeiro poeta brasileiro1, nasceu em 1633, na Bahia. Descendente de família prestigiada estudou no Colégio dos Jesuítas e se formou em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1661, período em que começou a exercer sua profissão. Gregório fica conhecido, principalmente, devido a suas poesias de cunho satírico, e esse é um dos motivos que o leva a ser obrigado a retornar ao Brasil, após ser “convidado” a se retirar do território português. De volta à pátria começou a trabalhar na Companhia de Jesus, dos padres jesuítas, e, mais tarde, também foi expulso devido a seu recorrente hábito de criticar a Igreja através de seus poemas. Gregório tinha um bom conhecimento da língua latina, uma vez que teve formação jesuítica, que tinha por base o Latim e por ter-se formado em Direito, profissão que faz uso de expressões latinas até os dias atuais. Nesse artigo, discutimos as ocorrências satíricas, que fazem uso da língua latina, na obra do autor, buscando identificá-las e, com isso, traçar um panorama de representações sociais que a utilização desse latim nos possa remeter. Como referencial teórico de base para essa pesquisa utilizaremos o pensamento de Castillo Gomez (2003), que, num esclarecedor trabalho intitulado “História de la Cultura Escrita”, nos adverte que, para a compreensão do significado global de um escrito, é necessário reconstruir as conexões entre as suas diferentes materialidades. Para ele, está assim posta a principal referência do que deve ser a história da cultura escrita: “a conjunção de três histórias que haviam avançado em paralelo: a história das normas, das capacidades e dos usos da escrita; a história dos livros ou, mais amplamente, dos textos manuscritos e impressos (e eletrônicos, teria que incluir já); e a história das maneiras de ler” (GÓMEZ, 2003, p. 108).

Para ele, então, a partir de algumas ideias de Roger Chartier, são três as direções a se seguir para se fazer história da cultura escrita: o estudo dos discursos, das práticas e das representações. O foco principal desta análise está na caracterização das possíveis representações que os usos do latim, na obra de Gregório, possa nos remeter à posição ocupada por esse Latim no que diz respeito à sociedade seiscentista. Tomamos como definição para o termo representação, aquilo que Castillo Gomez (2003), partindo das ideias de Roger Chartier, descreve como a imagem que cada produção cultural, um quadro ou um livro, enuncia daquilo que representa. A representação que os indivíduos e os grupos revelam através de suas práticas e de suas propriedades “forma parte integrante de sua realidade social”. Entrando agora na análise do Latim presente em sua obra, podemos perceber a influência do “Gregório Jurista” em alguns de seus poemas, conforme podemos observar na próxima página:

Gregório tinha um bom conhecimento da língua latina, uma vez que teve formação jesuítica, que tinha por base o Latim e por ter-se formado em Direito, profissão que faz uso de expressões latinas até os dias atuais. 1 Botelho de Oliveira é considerado o primeiro autor nascido em território brasileiro a ter um livro publicado, entretanto, Botelho era de nacionalidade portuguesa, configurando, desse modo, Gregório como o primeiro autor brasileiro de fato.

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“Eu bem sei, que também trazem o meu crédito perdido, mas valha sem sê-lo ex causa.”

“Vem Luzia sacrifício Juíza de refestela Aquela, que já não grela, Por ser puta d’ abinitio Deu um jantar, que era vício Rodava o Santos licor, [...]”

Os termos ex causa e ab initio2 são comuns no meio jurídico e aparecem na obra do autor, respectivamente para ajudar a compor uma idéia e para fazer sátira com a personagem Luiza, juíza de profissão, com valores morais duvidosos, fazendo com que se encaixe perfeitamente o uso da expressão latina dentro do poema, principalmente se considerarmos o perfil satírico de Gregório, que sempre utilizou o humor de forma oportuna e sagaz. É interessante de se observar também que as expressões jurídicas ex causa e ab initio são utilizadas no ramo, seja em citação oral ou em autos de processos, até os dias de hoje3. A ligação de Gregório com o clero era mais presente em seus poemas. E ele se utiliza de expressões latinas comuns à religião católica naquela época. Sabe-se que o latim foi a língua oficial da igreja até 1961 e até hoje é considerado como língua oficial do Vaticano. Houve, porém, determinado momento em que se fazia muito mais presente que na contemporaneidade. Levando em conta algumas expressões religiosas latinas na obra do poeta, vemos que seus usos poderiam ser muito corriqueiros, inclusive no dia a dia dos fiéis. “Trata logo de enterrá-lo com demonstrações de amigo, me passando o Resquiescat tudo se faz no olvido...” (GUERRA, 1999, p. 46)

“Deo gratias se me dará, e apenas se me ouvirá o estrondo do meu tamanco quando a Freira sobre o banco no ralo me aguardará...” (GUERRA, 1999, p. 654)

“É verdade, que a tonsura meteu o Cabra na Sé, e quando vai dizer Te Deum laudamus aos doentes [...] (GUERRA, 1999, p. 114)

“Se bem se infere outro fracasso, porque em tal caso só se açouta, quem canta O miserere...” (GUERRA, 1999, p. 186)

As expressões Te Deum laudamos e Deo Gratias4, que, respectivamente, significam “Louvamos a ti Deus” e “Graças a Deus”, são exemplos típicos de frases clássicas utilizadas nas missas. O termo Resquiescat deriva da expressão latina Resquiescat in pace – descanse em paz – utilizada em funerais da época, assim podemos intuir que Resquiescat funciona como sinônimo de “morte”, “funeral”; tendo assim sido utilizada pelo poeta tanto como recurso para não repetir palavras supracitadas como para carregar um pequeno tom satírico ao verso, que está inserido em um poema que trata dos interesses pelas coisas materiais. Por fim miserere que deriva da expressão miserere nobis – tende misericórdia de nós – conhecida até hoje nas missas e que também se tornou nome de música de Gilberto Gil.

2 Ex causa: da causa / Ab initio: desde o início. 3 Ocorrências verificadas em diversos materiais de latim, voltados ao ramo jurídico, que estão sendo utilizados para a composição do livro Aprenda Latim Direito, de minha autoria e do Prof. Ms. José Amarante (UFBA). 4 Forma reduzida da expressão Ago Deo gratias máximas – rendo graças máximas a Deus.

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Apesar de ter estudado em colégio Jesuíta, Gregório não tinha um bom relacionamento com a Igreja, tenso ficado conhecido como “boca do inferno”, devido às numerosas críticas ao clero, muitas vezes ofendendo padres e freiras; e inclusive utilizando-se do Latim, para rever uma terminação do português e fazer chacota com certo Frade: “De fornicário em ladrão se converteu Frei Foderibus o lascivo em mulieribus.” (GUERRA, 1999, p. 180) No caso observa-se a colocação do sufixo latino-ibus5para compor o nome do “frei Foda” e da palavra mulieribus – com mulheres (Ablativo de mulier) fazendo assim uso do latim para reforço da sátira e composição da rima na estrofe. A palavra mulieribus está presente na Ave Maria, talvez a oração mais constante nos cultos e lares católicos. Também foi alvo de sua sátira o vigário Joannico, que fora “comprehendido em Lisboa em crimes de sodomita”; aqui o autor faz uso do latim para reforçar a galhofa – culis mundi (o cu do mundo) – uma vez que se dirigia a um padre, até mesmo porque Gregório não era dado aos eufemismos: “Enfim Papagaio humano te perdeste, Ou porque enfim darias nos cachopos, Ou porque em culis mundi te meteste.” (GUERRA, 1999, p. 242) No caso do Frei Miguel Novellos, “apelidado o latino por divertimento em hum dia de chuva”; aqui o padre chamado de Victor – vencedor – recebe pompas pelo seu “saber latim” sempre com um tom satírico clássico de Gregório:

Victor, meu Padre Latino, Que só vós sabeis latim, Que agora e soube enfim, Para um breve tão divino: Era num dia morfino De chuva, que as canas rega, eis a patente aqui chega E eu por milagre o suspeito Na Igreja Latina Feito, Para se pregar na grega. (GUERRA, 1999, p. 216) Outro exemplo é uma crítica ao padre Antonio Marques de Perada, tido por sábio e engenhoso: “Este Padre Frisão, este sandeu tudo o demo lhe deu, e lhe outorgou, não sabe musa musae, que estudou, mas sabe ciências, que nunca aprendeu.” (GUERRA, 1999, p. 229) 5 Marca de caso dativo ou ablativo plural da 3ª declinação latina.

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Nesta estrofe o poeta satiriza o padre por este não possuir conhecimento básico da língua latina, uma vez que o termo musa, musae se refere ao estudo da primeira declinação latina. Dizer então que não sabe musa musae seria o mesmo que tachá-lo como ignorante, assim como observamos em outro poema em que aparece expressão semelhante: “... parece cousa de riso. eu sei um clérigo zote parente em grau conhecido destes, que não sabem musa, ...” (GUERRA, 1999, p. 152) Outro fato interessante é a escolha da palavra musa que nos traz indícios que esta equivaleria hoje ao substantivo latino Rosa, -ae; modelo de estudo da primeira declinação latina em muitos métodos para iniciantes. Outra colocação interessante acerca dessa passagem é uma feita pelo professor Milton Marques Júnior da Universidade Federal da Paraíba, que vai dizer que, ao dizer que o padre mal sabe o musa, musae que estudou, Gregório não só satiriza o fato do padre não saber latim, mas também ironiza a pequena capacidade poética de tal padre, ressaltando que o poeta em questão é ele, Gregório, e não o padre, que tenta falar de ciências que nunca aprendeu. Vê-se já aqui, nesse período, conforme está em Hansen (ibidem, p. 473) o fato de fazer mau uso do latim, de desconhecê-lo, converter-se em objeto de sátira: (AMARANTE, 2011): Ó lacaio alatinado, ó macarrônico ilustre, ó jurista balaústre ao machado torneado. (GUERRA, 1999, p. 718) Além de criticar os letrados da terra, Gregório também terá como alvo de suas sátiras os chegados de Portugal, caracterizados como “papagaios”, “asnos”, “nescios” (HANSEN, 2004, p. 472), como é o caso da “crítica ao doutor Antônio Rodrigues da Costa, Cavalheiro do Hábito de Cristo, chegado de Portugal com um vestido verde e canhões de veludo, aborrecido por mau letrado e por jurista intruso” (Idem, ibidem), que papagaia num “arremedo de latim” (AMARANTE, 2011):

Casus est iste, dizeis, reverente: é grão Latim! dissera um vilão ruim tirado ant’onte das cabras tais latins, nem tais palavras? vá lavar-se ao mar Euxino o latim do Calepino, e o do Padre Manuel Abrás. (GUERRA, 1999, p. 718)

Apesar de ter estudado em colégio Jesuíta, Gregório não tinha um bom relacionamento com a Igreja, tenso ficado conhecido como “boca do inferno”, devido às numerosas críticas ao clero, muitas vezes ofendendo padres e freiras.

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Encontram-se também na obra algumas referências à cultura greco-romana, como podemos observar no trecho abaixo: “Pare pois, e repare, que o decreta Astréia, porque aprenda no alto do polo Ditames de luzir deste planeta. Sua fama andará de polo a polo, Pois o Jove, que empunha uma gineta, Faetonte é na luz, no garbo Apolo.” (GUERRA, 1999, p. 168) Através da análise das citações ao latim e à cultura latina presentes na obra de Gregório de Matos, percebemos que a língua surgira no território brasileiro principalmente devido à vinda dos padres Jesuítas, tanto que as expressões comuns e o próprio ensino da língua estavam diretamente ligadas à igreja católica. O que apresentamos aqui foi uma possível leitura de como esse latim chegava às pessoas, e a forma como era possivelmente visto pela camada social na qual se inseria o autor. Identificamos, por exemplo, que o “saber latim” era possivelmente sinônimo de bom letramento, e o “não saber musa”, por exemplo, sinônimo de ignorância. Com essa pesquisa buscamos iniciar um ciclo de buscas e referências à língua latina, bem como à cultura romana, em obras de diversos autores da literatura brasileira, com objetivo de desenhar um panorama de representações acerca da utilização do latim em nossa pátria. Aqui apresentamos alguns exemplos exploratórios iniciais em relação à obra de Gregório, mesmo porque, buscar referências ao Latim em obras afastadas no tempo é, seja permitida a citação popular, como buscar agulha em um palheiro.

Referências: AMARANTE, José. Em Busca de Fontes para uma História Social do Latim no Brasil. Salvador. Projeto de Pesquisa: Universidade Federal da Bahia, 2012. CASTILLO GÓMEZ, Antonio (2003). Historia de la Cultura Escrita. Ideas para el debate. In: Revista Brasileira de História da Educação. Dossiê “O Público e o Privado na Educação Brasileira”. Campinas/SP: SBHE/Autores Associados. Jan/jun 2003, nº 5. ISSN 1519-5902. GUERRA, Gregório de Mattos. Obra Poética Completa/Edição James Amado. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. HANSEN, João Adolfo (2004). A Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp.

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