ano IV • n. 7 • novembro 2010
ISSN 1982-2766
Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina
Domínios da Imagem, Londrina, ano IV, n. 7,
novembro
2010
Universidade Estadual de Londrina Reitora: Nádina Aparecida Moreno Vice-ReitorA: Berenice Quinzani Jordão DIRETORA DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Mirian Donat CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Edméia Ribeiro COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: Silvia Cristina Martins de Souza EDITOR RESPONSÁVEL: Alberto Gawryszewski – UEL • Edméia Ribeiro – UEL COORDENADOR DO LEDI: Alberto Gawryszewski – UEL
CONSELHO CONSULTIVO Célia dos Reis Camargo – UNESP • Daniel Russo – Université de Borgnone • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacional de Colombia • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica • Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois State University • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Stella Maris Scatena Franco – UNIFESP • Terezinha Oliveira – UEM
CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO Ailton José Morelli – UEM • Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM • Ana Maria Mauad – UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Luciene Lemkhul – UFU • Luis Felipe Viel Moreira – UEM • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Manoel Dourado Bastos – UDESC • Maria Cristina Pereira – USP • Maria Paula Costa – UNICENTRO • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Miriam Paula Manini – UnB • Rejane Barreto Jardim – UFPEL • Renata Senna Garraffone – UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Edições Humanidades IMAGEM DA CAPA: Maurício Pestana
TIRAGEM: 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR.
Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral ISSN 1982-2766
1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio
Sumário
Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920)................ 7 Alba Barbosa Pessoa
La Exposición Agricola e Industrial del Centenario Colombiano y la Idea de Progreso en 1910............................................................................................................................................... 21 Alexander Cano Vargas
Os Caminhos da Perfeição Franciscana na Franceschina (1474)...........................................33 Angelita Marques Visalli
A Vivência do Morto: a preservação de monumentos histórico-culturais em ruínas...........45 Anna Maria de Lira Pontes
A Fotografia nas Revistas Culturais Latino-Americanas: as experiências das revistas S. Paulo (Brasil, 1936) e Rotofoto (México, 1938)....................................................53 Carlos Alberto Sampaio Barbosa
Fotografia: Arte ou Ciência?........................................................................................................63 Fabiane Muzardo
Imagens das Mulheres na Imprensa Comunista Brasileira (1945/1957)..............................77 Juliana Dela Torres
Corações na Curva do Rio: a imagem do inimigo no western................................................97 Lúcio Reis Filho
Beleza de Moça: nação e publicidade de cosméticos........................................................... 109 Mara Rúbia Sant’Anna
Memória e Política: o confronto simbólico sobre as representações da Guerra do Paraguai (1865-1870)............................................................................................ 121 Maria da Conceição Francisca Pires
resenha
PARANHOS, K.; LEHMKUHL. L.; PARANHOS, A. (Org.). História e Imagens................... 135 por Terezinha Oliveira
Imagem da capa
A charge que ilustra a capa da Domínios da Imagem 7, denuncia a condição de parte das pessoas de descendência africana, 500 anos após o encontro entre portugueses e habitantes deste espaço, hoje denominado Brasil. Esta imagem foi feita por ocasião das comemorações do Descobrimento do Brasil, em 2000. Trata-se de uma das inúmeras charges produzidas por Maurício Pestana, cartunista brasileiro natural de Santo André/SP. Ele iniciou seu trabalho nos anos de 1980 no jornal O Pasquim como assistente de Henfil que o motivou a direcionar seu trabalho para a área dos Direitos Humanos. Pestana é reconhecido como o primeiro e mais importante cartunista negro do Brasil; boa parte de seus trabalhos estão voltados à produção de materiais educativos que tratam da discriminação racial e, atualmente, preside o Conselho Editorial da Revista Raça Brasil – onde também publica suas charges. Sobre a função e o sentido da sua produção, nada melhor do que o próprio artista para apresentá-la: Optei por uma linha polêmica provocando risos em situações em que não se deve rir. Concebi ao meu trabalho uma careta indignada e singularíssima da sociedade brasileira. Defini um indiscutível traço de uma contraposição estética e política ao radiografar a intolerância, a ação perversa da introjeção da miséria, a violência policial acasalada, a impunidade, o preconceito institucionalizado, a cidadania incompleta, o peso do desemprego e a ausência dos iguais direitos de opções. Neste contexto, meus cartuns ou tiras e ilustrações passaram a ser, às vezes, palco, outras vezes, palanques e até púlpitos profanos. [...] o processo evolutivo do meu trabalho não poderia ser diferente da minha arte, na medida em que a condição político existencial torna inseparáveis a forma e o conteúdo, criatura e o criador, a arte e a vida (PESTANA, 30 anos de arte pela igualdade, 2010).
Edilaine Aparecida de Araújo Edméia Ribeiro
Apresentação
É com prazer que apresentamos mais um número da revista Domínios da Imagem, publicação esta que se tornou um veículo importante para aqueles que pesquisam, estudam e lêem sobre a utilização das imagens na produção acadêmica. Este número traz trabalhos com temáticas e fontes imagéticas diversas de pesquisadores do Brasil e na Colômbia. Encontraremos nas próximas páginas, trabalhos que utilizaram como fonte ilustrações publicadas em periódicos. Entre eles, está o artigo de Alba Barbosa Pessoa que problematizou as imagens da infância no final do século XIX e início do XX, registradas na imprensa de Manaus, assim como o de Juliana Della Torres, que analisou as temáticas femininas apresentadas na arte visual de jornais comunistas. Diferente, mas ainda na seara dos veículos impressos de comunicação, estão os trabalhos de Carlos Alberto Sampaio Barbosa, que analisou fotografias de duas revistas culturais da década de 1930, a mexicana Rotofoto e a brasileira S. Paulo, tecendo uma comparação entre elas e seu respectivo uso para estruturar formas de comunicação. Em outro artigo, produzido por Mara Rúbia Sant’Anna, encontraremos uma reflexão sobre um anúncio de batom publicado na revista O Globo, e os meios utilizados pela publicidade para agenciar modelos de beleza e juventude num contexto de promoção de sentimento de identidade nacional. Seguindo por este mesmo caminho, mas tendo a Revista como meio e a caricatura como objeto, Maria da Conceição Francisca Pires examina em seu trabalho as representações humorísticas sobre a Guerra do Paraguai produzidas pelo caricaturista italiano Ângelo Agostini e publicadas nas revistas Diabo Coxo e Cabrião, evidenciando as disputas simbólicas e ideológicas que se efetivaram por meio de suas estampas. Tocar os imaginários sociais através de produções grandiosas é o ponto que aproxima os trabalhos Alexander Cano Vargas, Lúcio Reis Filho e Angelita Marques Visalli. O primeiro, em seu artigo, analisa os meios utilizados para forjar sentimento de pertencimento nacional e ideia de progresso, perceptíveis nos preparativos e eventos realizados durante a celebração do primeiro centenário da independência da Colômbia. O segundo escreve sobre a representação do índio americano no gênero western, tomando como fonte de pesquisa obras de quatro cineastas norte-americanos, que, com suas produções filmográficas, contribuíram com o fortalecimento do mito americano, qual seja, dos índios cruéis e impiedosos. Já Visalli, passando pelos séculos XIII, XIV e XV, desenvolve em seu artigo uma análise sobre as imagens/ iluminuras que acompanham o texto da Franceschina, uma obra composta no século XV por Giacomo Oddi, na qual são apresentadas as vitae de Francisco de Assis e outras “figuras ilustres” da Ordem dos Frades Menores. Reflete sobre a simplicidade das formas e da técnica destas iluminuras que registram e divulgam experiências, mas também buscam despertar uma sensibilidade.
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Também encontraremos neste número da Revista Domínios, trabalhos que foram ancorados em reflexões de cunho teórico e conceitual. Anna Maria de Lira Pontes buscou compreender as ruínas enquanto um patrimônio histórico-cultural e o debate a partir do pensamento de alguns autores acerca da sua preservação e, Fabiane Muzardo, pautou-se em produções que teorizaram sobre a fotografia para mostrar-nos algumas discussões geradas sobre ela desde seu surgimento no século XIX, e a forma como aparecem no discurso historiográfico. Na sessão de resenhas, Terezinha Oliveira apresenta-nos sua leitura de História e Imagens: Textos Visuais e Leituras, obra organizada por Luciene Lehmkuhl e Kátia e Adalberto Paranhos, obra esta que conta com grande número de colaboradores(as), todos(as) estudiosos(as) da imagem. Por fim, concluímos esta apresentação, com o desejo de que todos(as) apreciem este sétimo número da nossa Domínios da Imagem.
Edméia Ribeiro
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Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920)
Alba Barbosa Pessoa Mestre em História, pesquisadora do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas, ligado ao departamento de História da Universidade Federal do Amazonas.
Resumo
A cidade de Manaus durante o seu primeiro processo de urbanização passou por transformações que modificaram sua arquitetura e suas relações sociais. O comércio de exportação da borracha lhe propiciou intenso contato com as novas ideias trazidas pela modernidade, impondo mudanças não só arquitetônicas da cidade, bem como nos costumes e hábitos da população. À imprensa coube o importante papel na função de propagar esse novo modelo de sociedade que se desejava. À criança foi dedicada atenção especial nessas redefinições de papéis sociais que estava a se estabelecer. Entendendo imagem não apenas como registro fotográfico, mas também como a forma de representar algo, este artigo procura demonstrar as imagens da infância Manauara no período entre 1890 a 1920. Palavras-chave: Infância; trabalho; imprensa.
Abstract
The first period of urbanization in Manaus city has brought change both in architecture and social relations. The business of rubber export brought an intense contact with new ideas of modernity, imposing changes not only architectural but also in customs and habits of people. The press has acted decisively as propagator of this new model of society desired. There was special attention to children in the process of redefinition of social roles that was developing and the press contributed by propagating the desired new model of childhood. Understanding “image” not only like picture register, but a representation form too. This article research images of childhood manauara between 1890 a 1920. Keywords: Childhood; work; press.
Recebido em: 05/10/2010
Aprovado em: 01/11/2010
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Alba Barbosa Pessoa
Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920)1
Nas últimas décadas do século XIX, Manaus estava passando pelo seu primeiro processo de urbanização. O crescente comércio da borracha possibilitou que esta viesse a se tornar o centro exportador do látex. Frente a esse novo papel diante do mercado internacional, fazia-se necessário tornar Manaus uma cidade apta a instalar os novos empreendimentos atraídos pelo Capital. Desta forma, a camada dirigente iria colocar em prática seu projeto de construção de uma nova cidade, onde avenidas largas e prédios suntuosos a deixariam com feições semelhantes às cidades europeias. Contudo, não era somente a arquitetura que deveria ser substituída; os costumes da população, como assar peixe nas ruas, tomar banho nos igarapés e tantos outros considerados atrasados, deveriam ser extirpados e substituídos de acordo com o modelo burguês. Portanto, o projeto de construção de uma nova cidade implicava um projeto de uma nova sociedade. Para tanto, novas posturas e novos costumes foram impostos, ocasionando um longo processo de exclusão da grande maioria da população, principalmente para os que ficaram à margem desse “período faustístico” (DIAS, 1999; PINHEIRO, 1999). A imprensa assume importante papel na função de propagar esse novo modelo
de sociedade que se desejava. As páginas dos periódicos desse período são ricas em informações, nelas podemos perceber não só a fala da população excluída, mas principalmente a fala da camada dirigente que orquestrava tal processo. As reportagens, que aparentemente apenas informavam ao leitor sobre as últimas notícias, camuflavam um discurso muitas vezes imbuído de preconceitos que, preconizados pela elite local, reverberavam em diversos setores da sociedade. Aos jornais desse período, uns com mais veemência e outros com bem menos, atribuiu-se a tarefa de levar à população os valores da civilização. Caberia a eles, a função de iluminar os caminhos do homem em direção ao progresso. Eles se afirmavam como porta-vozes do processo civilizador que se tentava implantar na cidade de Manaus, propagando a necessidade de a população adquirir novas formas de viver.2 Esse é o caso do jornal intitulado A Voz de Loriga, publicado em Manaus pela Colônia Loriguense, que afirmava ter como programa a “regeneração da moralidade, esperando um porvir moral, intelectual e material”.3 De forma semelhante, o periódico O Combate propagava em seu edital, intitulado “A LUZ”, ser papel da Imprensa ensinar o caminho a
Parte de minha dissertação de Mestrado em História intitulada Infância e Trabalho: dimensões do trabalho infantil na cidade de Manaus (1890-1920). 2010. (Dissertação de Mestrado) UFAM-Manaus, 2010. As práticas tradicionais da população como cozinhar, estender roupas, brincar e gritar nas ruas, tomar banho nos igarapés, entre outros costumes, passaram a ser vistos como sinônimo de atraso, sendo denunciados constantemente pelos periódicos locais. A frequência de tais denúncias revela a resistência por parte da população em adquirir os novos hábitos impostos. 3 A Voz de Loriga: Órgão da Colônia Loriguense em Manaus. Manaus, 1 de agosto de 1909. p. 1. 1
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Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920)
ser trilhado pelo homem civilizado em direção ao progresso.4 No entanto, a adesão da imprensa a esse projeto não foi homogênea, não foi unívoca, diversas folhas locais colocaram-se criticamente frente às mudanças, principalmente denunciando os limites estreitos e os comprometimentos dessa ‘modernidade’ manauara (PINHEIRO, 2001, p.94).
Dentre os vários jornais que tomaram para si a missão de livrar a população menos culta dos costumes primitivos e vícios degradantes, destacamos o Jornal do Commercio. Sua atuação foi emblemática na divulgação de novos valores, talvez por pertencer a uma classe conservadora e fazer parte da elite que propunha um novo modelo de cidade, tenha se empenhado de forma mais categórica numa campanha higienizadora da cidade. No ano de sua fundação,5 o Jornal do Commercio já começa a pregar novas posturas a favor da moral, cobrando da polícia ações contra o aumento de casas de tolerância na cidade. Da mesma forma, virá a ser alvo de denúncias desse jornal a presença de inúmeros cachorros pela cidade que durante a noite, quando a população se deita para descansar das atividades diárias, tinha o sono perturbado pelo “ladrar irritante das matilhas vagabundas. É um barulho infernal, em todos os trechos da cidade, em todos os recantos da urbs [...] tudo gane, tudo uiva e ladra, num choro diabólico ensurdecedor”;6 as buzinas persistentes dos carros que insistiam em acioná-las, mesmo sem necessidade; a limpeza do lixo que deveria ser feita durante a noite e não durante o dia, pois
atraia inúmeros urubus, incomodando os moradores; a presença de vendedores nas ruas da cidade que, ao exporem suas mercadorias, atrapalham o trânsito se distanciando em muito dos povos de bons costumes;7 contra a presença de portadores de doenças contagiosas, como a lepra, que trabalhavam em alguns comércios retalhistas, ou andavam nos bondes e frequentavam os botequins junto às pessoas sãs. Neste artigo, o autor reconhece que o local existente para confinamento desses doentes não é dos mais adequados, mas que ainda assim sejam tomadas providências para que eles sejam internados, pois era constrangedor tanto para eles, portadores da doença, quanto para o resto da população.8 Enfim, esses e muitos outros temas foram alvos de campanhas por parte deste jornal, uns com menos frequência, outros quase que diariamente. Percebe-se que embora se proclamasse paladino das causas populares, defensor da moral e dos bons costumes, tais discursos mascaravam toda uma carga de tensão e preconceito existente na cidade. Seus discursos nos possibilitam entrever a exclusão dos segmentos que não se adequavam ao novo modelo de sociedade o qual a modernidade estava a exigir (PINHEIRO, 1999, p.50). Era necessário sanear a cidade da prostituição, ou pelo menos que ela não ficasse tão visível; tirar os vendedores com suas mercadorias das ruas ficando apenas as casas comerciais; não mostrar, à luz do dia, o lixo produzido pela cidade; confinar os doentes de lepra e outras doenças contagiosas. Mais que se mostrar preocupado com a saúde dos doentes ou da população sã, o jornal revelava o quanto incomodava a
O Combate, nº1. Manaus, 25 de julho 1915. p. 1. Para estudos sobre a trajetória do Jornal do Commercio consultar: ALVES, 2009; SOUZA, 2005. 6 Jornal do Commercio, nº 4405. Manaus, 30 de julho de 1916. p. 1 7 Jornal do Commercio, nº4464. Manaus, 29 de setembro de 1916. p. 1 8 Jornal do Commercio, nº4423. Manaus, 19 de agosto de 1916. p. 1. 4 5
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presença dessas pessoas nas ruas do centro da cidade, não sendo este um cartão de visita adequado a uma cidade que havia se tornado cosmopolita e estava a receber milhares de visitantes. Era uma paisagem que causava mais repugnância que caridade. Sendo assim, será nessa imprensa que tentaremos captar as imagens retratadas das crianças na cidade de Manaus (CHARTIER, 2002). 9 Uma imprensa que embora se afirmasse defensora das causas populares teve papel fundamental no processo de exclusão dessa classe. Da mesma forma como na estrutura física da cidade, que estava a ser construída, havia lugares distintos para as famílias pobres e para as famílias ricas, os jornais desse período, em suas páginas, também reservavam lugares distintos para elas. Em Manaus, a exemplo de outras cidades brasileiras, a representação feita da criança terá como pilar o grupo econômico a qual esta faz parte, (PEREIRA, 2006; MOURA, 2003)10, retratando duas imagens distintas: a criança rica e a criança pobre. As crianças ricas passeiam pelas primeiras páginas do jornal. São encontradas nas colunas sociais, sendo motivo de felicitações pelo seu batizado, pelo seu aniversário e outras datas festivas. A elas são dirigidos adjetivos carinhosos e todo um tratamento diferenciado, que de imediato nos faz perceber se tratar de filho (a) de algum cidadão de
destaque na sociedade local. Isso pode ser ilustrado pela notícia publicada no jornal Diário de Manáos informando que “batizouse anteontem a interessante menina..., dileta filha do ilustre sr. capitão...”.11 Ou ainda as felicitações pelo aniversário do pequeno “William, um encanto a florir, uma formosa inteligência que se abre no lar amantíssimo do capitão..., estimado escriturário do Banco do Brasil... conta, hoje, o terceiro aniversario de seu natal”.12 Esse tratamento diferenciado também pode ser percebido nas notas fúnebres, nas quais os filhos das famílias ricas também recebem tratamento distinto. A notícia vem sob o título “os mortos”, sendo composta de adjetivos elogiando as qualidades do morto, bem como evidencia o pesar e a consternação causada pelo falecimento. A elas se fazia referências tais como “o enterro da inocente...” ou “a pequenita extinta...” 13. A fim de propagandear o perfil de criança que se queria para a cidade que estava sendo construída, o Jornal do Commercio passa a publicar em suas páginas domingueiras um álbum infantil destinado a divulgar fotos de crianças menores de sete anos de idade14. Em todos os domingos, a primeira página deste jornal estampa cerca de doze a dezenove fotos de crianças nas mais diversas poses. Sentadas em cadeiras, deitadas em almofadas, em pé ao lado dos móveis pousam
Para além do registro fotográfico, entendemos por imagem a forma de retratar ou representar algo. E por representação, comungamos com o conceito de Chartier para quem as representações são apresentações de uma dada realidade social, não sendo neutras ou estáticas, visto atenderem interesses de grupos sociais, tendo sido, portanto, criadas a partir da percepção, da visão de mundo dos grupos que as representam. (CHARTIER, 2002). 10 Para trabalhos abordando as representações das crianças na cidade de Florianópolis e em Pernambuco, respectivamente: PEREIRA, 2006; MOURA, 2003. Para Moura, as crianças de Pernambuco eram representadas “a partir de vários signos e normatizações dependendo da categoria social a qual pertenciam” (MOURA, 2003, p. 26). 11 Diário de Manaus. Manaus, 26 de agosto de 1892. p.1 12 Jornal do Commercio, nº4000. Manaus, 15 de junho de 1915. p.1. Tal tratamento foi encontrado em todo o período pesquisado. 13 Quando se tratava da morte de uma pessoa pobre, esta era noticiada sob o título de “obituário” e constava apenas do nome do morto, sua origem e a causa da morte. É frequente encontrarmos em uma mesma página de jornal os dois tipos de notas fúnebres. Tal distinção foi encontrada em todo o período pesquisado. 14 Em nossa pesquisa encontramos o álbum a partir do nº 3991 publicado no mês de maio de 1915 até o nº 4095 de 19 de setembro de1915. 9
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imagens Da infância e Do TrabaLho infanTiL na imprensa manauara (1890-1920)
graciosamente para a máquina fotográfica. Os trajes são os mais variados, desde bebês usando apenas meias e sapatinhos, até crianças usando ricos vestidos ornados com bordados, babados, laços e rendas. tais vestimentas são acompanhadas de chapéus e sapatos adequados. Os pequerruchos vestidos de marinheiros e fantasiados de palhacinhos, ricamente trajados, também
se fazem presentes. A grande maioria das fotos enviadas era de crianças nascidas no estado. Caso fosse suprimida a legenda que identifica o nome dos pais dos referidos menores, ainda assim as aparências de crianças saudáveis, nutridas e bem cuidadas evidenciariam tratar-se de filhos da elite manauara.
Álbum Infantil publicado no Jornal do Commercio.
Podemos inferir que estes álbuns retratavam a imagem da criança que se queria, devendo, portanto, ser propagada. “Tais crianças de bons costumes e hábitos saudáveis é que se tornariam bons cidadãos
do amanhã.” Entendemos que essa evidência se concretiza nas notas que antecedem o encerramento da publicação do álbum infantil, nas quais o Jornal do Commercio afirma que o referido álbum
Domínios Da imagem, LonDrina, ano iV, n. 7, p. 7-20, noVembro 2010
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aLba barbosa pessoa é um meio de se mostrar lá por fora, em outros meios, que o amazonas também, nas gerações que vão surgindo, possui perfeitas criações, cheias de todos os traços exigidos pela beleza15.
Tal observação deixa evidente que o álbum tinha como finalidade propagar a imagem da criança moderna, sem os traços da descendência indígena da região. E que nesse período, uma parte da população já poderia ser apontada como moderna, dentro dos moldes que a modernidade estava a impor. Imagens de crianças sadias, cheias de graças e encantos não eram divulgadas somente nos jornais, elas também se faziam presentes nos álbuns de fotografias da cidade bem como nas revistas de variedades 16. tais álbuns, encomendados pela administração pública, tinham como finalidade atrair investimentos do capital nacional e internacional, para tanto, em alguns anos, eles apresentaram
Ánnuario de Manáos (1913-1914)
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em suas páginas, além do idioma português, os idiomas francês e inglês. Além de conter o histórico da cidade e o crescimento econômico da região, suas páginas estavam repletas de imagens mostrando o quão a cidade vinha mudando de feições, com a construção de prédios luxuosos, com a pavimentação do aglomerado urbano, construção de praças e implantações de lojas comerciais que operavam com produtos importados diretamente da Europa. tais representações demonstravam que a cidade estava apta aos investimentos estrangeiros e às atrações turísticas. Nas páginas dos referidos álbuns, podemos identificar vários segmentos sociais. alguns desses segmentos aparecem apenas como transeuntes anônimos, outros como coadjuvantes de um plano maior da fotografia. Outros segmentos, no entanto, aparecem como enfoque principal da imagem, dentro destes encontramos as crianças filhas da elite.
Revista Cá e Lá, nº 8. (1917)
Revista Cá e Lá, nº 6. (1917)
Jornal do Commercio, nº 4055. Manaus, 10 de agosto de 1915. p.1. Para a presente pesquisa, utilizamos os seguintes álbuns: Álbum da Cidade de Manaus (1848-1948), Álbum do Amazonas (19011902), Indicador Ilustrado do Estado do Amazonas (1910), Álbum Municipal de Manaus (1929), Annuario de Manaus (1913-1914), Manaus 310 Anos.
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Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920)
São crianças que portam roupas de seda, rendas, cambraias e cetins. Tais figurinos, pertencentes aos requintes da moda parisiense, demonstram que tais pequenos pertencem a famílias de destaque na sociedade local. Ainda que desconsiderássemos a mobília que compõe a foto, visto esta ser, possivelmente, produzida em um estúdio fotográfico, e as legendas que identificam estes menores, pelos seus trajes, não seria difícil inferir a que extrato social pertenciam. Nas revistas de variedades eram retratadas comemorando aniversário, participando de concursos de robustez ou simplesmente pelo fato de serem filhos de personalidades da cidade. 17 Sempre acompanhadas de tratamentos afetuosos, suas imagens desfilavam pelas páginas das revistas, distribuindo graça e beleza. A análise de tais imagens de crianças na cidade de Manaus nos leva a acreditar que tais representações não eram feitas ao acaso, elas visavam preencher uma ausência. Assim, a divulgação de fotos de crianças limpas, saudáveis e bem cuidadas, muito provavelmente poderia ter a intenção de ocultar outro tipo de infância vivenciada em Manaus, a infância a qual estava sujeita a criança pobre. Em outras palavras, a representação da criança rica teria o papel de ocultar a imagem da criança pobre, devendo este espaço vir a ser ocupado pelas imagens das crianças mais favorecidas. Seria a ausência da criança que se queria, sendo preenchido por uma minoria de crianças que viviam em condições consideradas ideais. Os espaços reservados pelos jornais às crianças pobres, na cidade de Manaus, difere dos espaços destinados às crianças ricas. Ao
contrário destas, aquelas não são encontradas em colunas sociais, em felicitações de aniversários nem em batizados. A elas são legadas as notas policiais, as colunas de queixas e as colunas de chamada para emprego. Em todo o período pesquisado, as crianças pobres são notícias em reportagens sobre espancamentos, acidentes de trabalho, furtos e fugas, o que nos leva a afirmar que a imagem da criança pobre retratada na imprensa manauara estava relacionada ao trabalho infantil, ao vício, aos pequenos delitos, a ociosidade e vadiagem. A vadiagem, nas últimas décadas da passagem do século XIX para o século XX, em todo o Brasil passou a ser motivo de sérias preocupações por parte do Estado. Uma intensa campanha foi deflagrada no sentido de incutir o valor do trabalho na população brasileira. Esta, saindo do contexto de um sistema escravista, via o trabalho como algo degradante e sem valor (KOWARICK, 1982, p.10). Foi necessário todo um processo coercitivo, a fim de atrair as camadas populares para o trabalho regular, para o trabalho “disciplinado”. A ociosidade passou a ser vista como desvio de conduta, sendo imperativo introjetar o amor pelo trabalho. Leis e Códigos de Posturas passam a combater a vadiagem exigindo uma ocupação produtiva. O trabalho passa a ser visto como a regeneração do homem, passando a ser associado à moral e ao caráter do cidadão. Pautado nesse novo valor de trabalho, na cidade de Manaus, o comércio da borracha, nas últimas décadas do século XIX, possibilitou o contato da elite local com
No caso, trabalhamos especificamente com a Revista Cá e Lá de nº 6 e nº8 do ano de 1917. Tal revista, destinada aos segmentos privilegiados da sociedade local, tratava de assuntos variados tais como notas sociais, humor, poemas e fatos políticos envolvendo personalidades.
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um modelo de vida europeu, que se impunha não só em seus traçados arquitetônicos e traçados urbanos, mas em toda uma visão de mundo. Eram os ventos da modernidade soprando sobre Manaus, que iria exigir todo um reordenamento dos seus espaços, que iria normatizar a postura de seus cidadãos, de seus costumes e suas tradições. E no bojo dessas transformações, a imprensa desempenhou papel fundamental como propagadora dos ideais do novo modelo de sociedade que se estava a aspirar. Códigos de posturas serão criados na tentativa de extirpar a vadiagem, ações policiais tentam colocar tais leis em prática, porém será a imprensa que terá o papel mais eficaz nessa empreitada. É ela que irá difundir, conforme os seus interesses políticos e econômicos, projetos de intervenção social que solidificarão os valores econômicos do grupo dominante (PINHEIRO, 2001, p.17). Assim como em outras cidades do país, a presença de crianças nas ruas de Manaus passou a ser motivo de preocupação por parte das camadas dirigentes e por parte da imprensa que vão retratá-las como vadias e ociosas e com grandes possibilidades de se tornarem delinquentes.
O periódico retrata a imagem da criança pobre, sem ocupação e ofício como criminosos em potencial, necessitando de corretivos por parte da polícia, pois, na sociedade moderna, o trabalho passou a ser visto como regeneração de todos os males da humanidade. Não trabalhar era estar exposto a todos os vícios. Essa preocupação dos jornais em sanear as ruas de um segmento social que teimava em não se enquadrar no modelo de sociedade que se queria, corroborava com a postura das autoridades locais. Isso pode ser observado no Código Municipal de 1893, em que ficava proibido correr, dar gritos, chamar palavras que atentassem contra a moralidade nas ruas, praças estradas de Manaus sob pena de multa ou reclusão.19 Essa postura pode ser observada no jornal Gazeta da tarde, por meio da notícia que irá comparar as crianças pobres que perambulavam pelas ruas a cães sem donos, que ficavam até altas horas da noite a fazerem barulhos com latas, chamando obscenidades e riscando com giz e carvão as portas e calçadas dos moradores. Como solução, o jornal indica o recurso à polícia.20 Tal imagem também pode ser percebida no Jornal do Commercio.
É uma pena ver-se algumas pobres creanças que andam por ahi pelas ruas vagabundeando, habituando-se ao vício, esquecidas do trabalho, sem um officio, sem um meio certo de subsistência. Muitas vezes formam grupos nos logares de mais movimento da cidade e é de ver-se então o desbragamento da linguagem, o palavreado garoto, a gyria a que já estão acostumando. Um bom correctivo para esses candidatos do vicio certo que seria uma obra digna e merecedora de applausos... Avançamos mais: serão alguns criminosos de menos em dias futuro.18
Chegou a vez dos garotos, dos viciados em miniaturas, dos que não recuam á pratica da mais torpe acção. Juntam-se, como os cães, e vão pelas praças e pelas ruas á cata de uma festa, ou de uma reunião qualquer [...] O molecório, nessas excursões arrasta em sua companhia innumeras creanças que pelo contacto, vão assimilando e desenvolvendo tais immundices. É para isso que os particulares e as autoridades devem olhar energicamente, para que as creanças educadas pela religião do lar, não fiquem pervertida com a leitura, que
Commercio do Amazonas, nº 404. Manaus, 24 de fevereiro de 1899, p.1. Código Municipal de 1893. Ofensas a moral pública. Artigo 109, capítulo VII, de 23 de maio de 1893. Gazeta da Tarde, nº 832. Manaus, 9 de junho de 1916. p. 2.
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Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920) da cartilha do desrespeito, da zombaria e da immoralidade. 21
A reportagem demonstra que há total intolerância por parte dos dois periódicos em relação às crianças pobres que teimam em transitar pelas ruas de Manaus. Os adjetivos depreciativos que os jornais utilizam demonstram a ameaça com que eram vistas. Tal notícia não as acusa de furto ou algo semelhante, mas deixam evidente a repulsa que causam. O fato de não seguirem as normas estabelecidas, de não trabalharem, não seguirem as regras consideradas de acordo com a moral além de não estarem no domínio familiar as tornava seres execráveis, alvos da contínua preocupação em corrigir defeitos e extirpar vícios.22 Para o jornal, a criança que estivesse sob o domínio familiar poderia seguir as normas de boa conduta para com a família e sociedade. Em outras palavras, haveria a maior possibilidade de vir a tornar-se um cidadão de bem voltado para os valores do trabalho. Enquanto que as crianças vivendo a perambular pelas ruas, não iriam adquirir os preceitos da moral, estando assim sujeitas aos vícios que a rua oferecia. Não era levado em consideração o fato de que essas crianças tinham, assim como a maior parte da população pobre, uma relação particular com a rua. A rua para eles estava para além de uma via de trânsito, sendo o lugar onde criavam laços mais sólidos na busca pela sobrevivência. O ficar na rua também pode ser visto como uma forma de estas crianças negarem regras que lhes estavam sendo impostas, uma não aceitação do enquadramento social.
Essa imagem relacionando a criança com a vadiagem também foi frequente em outras cidades do país. Em Florianópolis, segundo Juliana Sardá (2005), diariamente os periódicos noticiavam com muita frequência a presença de crianças e jovens que se reuniam nas ruas (SARDÁ, 2005, p.93). Em importante estudo sobre a vadiagem na Bahia, Walter Fraga Filho afirma que um jornal local denunciava os meninos que frequentemente estavam à porta da igreja fazendo deboches com os transeuntes (FILHO, 1989, p.114). Na cidade de São Paulo, as autoridades policiais também estavam preocupadas com as crianças nas ruas. Heloisa de Faria Cruz aponta que, desde a virada do século XIX para o século XX, o elevado índice de crianças maltrapilhas mendigando pela cidade era motivo de reuniões entre as autoridades policiais (CRUZ, 1991, p.66). E ainda para São Paulo, a pesquisa de Gislane Campos de Azevedo destaca que “até mesmo o ajuntamento de crianças ou brincadeiras de rua eram tidos como perigosos” (AZEVEDO, 1995, p.62). Na cidade de Manaus, destoando dos grandes jornais que quase sempre representavam as vozes do poder, os pequenos jornais como O Papagaio demonstravam um olhar diferenciado em relação às crianças como podemos observar pelo poema. Nunca vistes pellas ruas das sonoras capitaes, enguedelhados, e aos ais, pequeninos de pés nus... as carnes transidas nuas, Nunca vistes os passarinhos, que choram longe da luz? O’ Homens do mundo novo, São elles – filhos do povo.23
Jornal do Commercio, nº4415. Manaus, 10 de agosto de 1916. p. 1. Jornal do Commercio, nº441. Manaus, 07 de agosto de 1916, p.1 e nº4419 de 15 de agosto de 1916, p.1. O Papagaio, nº 2. Manaus, 13 de agosto de 1899. Parte da poesia sem autoria, Baladas dos Filhos do Povo.
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Sob esta ótica, os menores vivem a vagar pelas ruas, descalços e maltrapilhos não por vadiagem, mas sim por serem levados pela pobreza. Deixadas ao abandono pelo Estado, eles levam uma vida sofrida. Os homens com suas ideias de modernidade, portadores de projetos de cidade e sociedade, referenciados pelo poema como homens do mundo novo, não percebem que os filhos das famílias pobres estão sendo excluídos em tal processo. Entretanto, não é apenas nos jornais que as imagens de crianças pobres podem ser encontradas. Elas também estão presentes em revistas de variedades e nos álbuns de fotografias da cidade. Diferente do observado nas imagens dos filhos das famílias mais favorecidas, a criança pobre não é o foco principal da fotografia. Ela aparece como coadjuvante ou parte do cenário que compõe a fotografia. Da mesma forma, nos álbuns da cidade, as crianças pobres não são fotografadas em estúdios, elas aparecem como transeuntes ou trabalhadores anônimos cujos rostos não eram o alvo principal das máquinas fotográficas. Tais impressos nos revelam a sua presença nos mais variados
cantos da cidade. Caminhando pelas ruas da cidade a carregar doces, jornais ou outra mercadoria. Muitas vezes descalços, o que pode ter relação com o estado de pobreza em que viviam, como também, a um antigo hábito da população mais humilde.24 Seus trajes aparentam ser de material grosseiro e sem aprimoramento na sua confecção. Alguns com a perna da calça comprida rasgada, outros com camisas por dentro das calças, usando suspensórios, parecendo um pequeno adulto. também podem ser vistos ora encostados aos muros das lojas de confecções, ora pousando junto ao corpo de funcionários a frente ou dentro dos estabelecimentos comerciais; trabalhando em hotéis, gráficas ou servindo bebidas em bares e cafés, ou ainda com vassoura nas mãos. Em frente a moinhos, alfaiatarias, docerias e outros estabelecimentos. Seus tamanhos são variados, muitos com as feições de crianças entre seis a oito anos. Tais imagens não eram exclusivas da cidade de Manaus. No município de Itacoatiara, os menores também eram retratados nas fotografias de forma semelhante.25
Indicador Ilustrado do Estado do amazonas – 1910 24
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andar descalço era um costume que a população pobre manteve por muito tempo, sendo que a partir dos processos de urbanização esse hábito passou a ser visto como primitivo pelos segmentos sociais que passaram a adotar o estilo de vida burguês. Hoje não é raro encontrar nos bairros mais afastados moradores que saem descalços às ruas. Indicador Illustrado do Estado do Amazonas - 1910.
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imagens Da infância e Do TrabaLho infanTiL na imprensa manauara (1890-1920)
A foto anterior tinha como finalidade divulgar o estabelecimento comercial que trabalhava com confecções de paletós. A presença de crianças na fotografia deve-se ao fato dessas provavelmente trabalharem no estabelecimento ou serem vendedores de rua. No canto esquerdo da foto, uma criança bem pequena que provavelmente aguarda para fazer algum mandado. As imagens da criança pobre no período pesquisado não apresentam mudanças
Estabelecimentos comerciais próximos a Praça dos Remédios (1893). Álbum de Manaus- 1848/1948.
como podemos observar na imagem à esquerda, a criança provavelmente aguarda sentada a chegada de novos fregueses para atender, não muito diferente da imagem ao lado, em que percebemos crianças com menos idade ainda a trabalhar no café, enquanto outras possivelmente exerçam outras atividades nas ruas. comparando as duas fotos, embora se trate de lugares diferentes, podemos perceber a transformação pela qual a estrutura física da cidade está passando, o que, contudo, parece não refletir nas condições de vida desses menores.
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muito significativas. Enquanto percebemos que, com o passar dos anos, a cidade vai mudando de feições com a construção de avenidas e prédios elegantes, as imagens das crianças pobres retratadas são muito semelhantes entre si, o que evidencia um descompasso entre o crescimento econômico da cidade e as condições de vida da maior parte da população, como pode ser observado nas imagens abaixo referente aos anos de 1893 e1910.
Crianças entre os adultos no trabalho avulso. Indicador Ilustrado do Estado do amazonas – 1910
as crianças pobres também estão presentes nas revistas, contudo esses menores podem ser percebidos apenas nas páginas destinadas a propagandas comerciais. 26 assim como nos álbuns, eles são personagens anônimos aparecendo próximos à fábrica de gelo, tabacarias e outras lojas. Geralmente estão entre adultos parecendo compor o quadro de funcionários dos referidos estabelecimentos. Chama à atenção, a quase ausência de meninas pobres nessas imagens. Só as encontramos em ambiente familiar, em
Revista Cá e Lá nº8, de 12 de maio de 1917 e nº9, de 26 de maio de 1917.
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imagens que podem indicar estar a trabalhar em casa de famílias ricas, o que era frequente nesse período. O que, no entanto, não significa que o espaço doméstico fosse o único espaço social ocupado por elas. Os jornais desse período revelam sua presença nas fábricas e no comércio, exercendo atividades diversas tais como empacotadora de cigarros, manuseio de máquinas registradoras, atendente em botequins e outras mais (PESSOA, 2010). Para finalizar, apresentamos a imagem que uma criança rica possivelmente fazia sobre a criança pobre. Trata-se de uma historinha publicada no jornal Pontos nos ii, em uma seção que premiava as historietas enviadas por crianças com até quatorze anos de idade. Ao anunciar a referida seção, o jornal publica uma pequena história produzida por um menino de oito anos de idade, filho de um conhecido comerciante local. Nas breves linhas, essa criança expõe a sua percepção sobre a criança pobre. Era uma vez um menino que todo santo dia sahia com sua irmanzinha que tanto amava. Ella levava uma cestinha com flores para o mercado, e elle um balainho com passarinhos que caçava, e quando vendiam tudo iam para a casa levar o dinheiro a sua mãi, e que coitada estava, sempre doente. [...] seus dois filhinhos se esforçavam para o seu sustento e de sua mãi, á tarde sahiam cada um para o seu lado; o menino ia caçar alguns pássaros, e a menina com seu terçado capinava um roçado que havia próximo e como recompensa de seu trabalho lhe davam umas moedinhas e depois apanhava umas flores que havia na mata e ia vender á cidade no dia seguinte, e lá iam todos os dias levar ao mercado suas mercadorias [...].27
Essa era a vida diária dessas duas personagens, que segundo nosso pequeno autor viveram felizes para sempre. A imagem da criança pobre retratada nessa pequena e inocente história é de menores contribuindo para o sustento da família. Para tanto, eles utilizavam os mais variados recursos como venda em mercados e outros expedientes. Tal percepção parece ter se formado a partir de algo que parecia comum aos seus olhos, ou seja, famílias pobres que precisavam recorrer à ajuda dos filhos pequenos para garantir o sustento. Crianças que passavam o dia nas ruas a fim de conseguir uns trocados para a sua sobrevivência. Enquanto esse pequeno escritor podia se dedicar à produção de história para enviar as seções infantis dos jornais, o que só seria possível se possuísse o conhecimento da leitura e da escrita, o que é muito provável, visto ser filho de comerciante de destaque, as crianças pobres passavam o dia a criar estratégias de sobrevivência a fim de garantir o sustento da família. A análise das diversas fontes relacionadas às imagens de criança por nós, encontradas na imprensa da cidade de Manaus, leva-nos a inferir que a exclusão a que as famílias pobres estavam submetidas estava para além dos espaços geográficos, chegando a atingir todo o seu modo de viver. Sendo assim, a Manaus que estava sendo construída reservava às crianças dessas famílias um espaço diferenciado do espaço destinado aos filhos da elite. Enquanto a estes últimos estavam reservados os espaços privilegiados da cidade, às crianças pobres estavam destinados os espaços dos mundos do trabalho.
Pontos nos ii, nº5. Manaus, 11 de agosto de 1906, p.3
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Imagens da Infância e do Trabalho Infantil na Imprensa Manauara (1890-1920)
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La Exposición Agricola e Industrial del Centenario Colombiano y la Idea de Progreso en 1910 Alexander Cano Vargas Graduado en Historia por la Universidad Nacional de Colombia (2003), magíster en Historia de la Universidad Nacional de Colombia (2007), candidato a doctor em Historia de la Universidad Nacional de Colombia (2009). Desde 2008 se ha desempeñado como profesor de Historia de Colombia V y actualmente dicta el curso Siglo XX colombiano en la Universidad Nacional de Colombia, sede Medellín.Tiene experiência como ponente y conferencista especializado en la historia política y econômica colombiana de la primera mitad del siglo XX. Ha publicado artículos en varias revistas nacionales e internacionales como Historias, Semana y actualmente en Dominios da imagem.
Resumen
El 20 de julio de 1910, Colombia celebró su primer siglo como país soberano. El Estado, la Iglesia, la prensa, los partidos y organizaciones e instituciones gubernamentales y privadas se dieron a la tarea de hacer de esta fecha uno de los días más memorables en la historia del país. Un sinnúmero de actos conmemorativos, donde sobresalió la exposición Agrícola e Industrial del Centenario, fueron realizados a lo largo y ancho del territorio colombiano. Comisiones organizadoras de carácter nacional, regional y local se encargaron de preparar hasta el más mínimo detalle. Con este artículo, se busca analizar los preparativos y eventos realizados durante la celebración del primer Centenario de la independencia nacional, para mostrar las lógicas subyacentes en ella, su significación, sus contenidos simbólicos orientados a recrear una idea de progreso y de forjar una pertenencia nacional. Palabras clave: Colombia; celebración; Centenario; Independencia; comisiones; exposición; simbólicos; forjar; progreso; pertenencia; nacional.
Abstract
On July 20, 1910, Colombia held their first century as a sovereign country. The State, the Catholic Church, the press, the political parties and organizations and governmental and private institutions were given the task of making this date one of the most memorable days in the history of the country. A number of commemorative events, where he excelled the Agricultural exhibition and Industrial of the Centenary, were made to the length and breadth of the Colombian territory. Organizing committees of national character, regional and local were commissioned to prepare to the smallest detail. This article is intended to discuss preparations and events during the celebration of the Centenary of national Independence, to show the underlying logic in it, its significance, its symbolic content designed to recreate an idea of progress and forging a national affiliation. Keywords: Colombia; celebration; Centenary; Independence; commissions; exposure; symbolic; forge; progress; membership; national.
Recebido em: 10/06/2010
Aprovado em: 05/07/2010
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Alexander Cano Vargas
La Exposición Agricola e Industrial del Centenario Colombiano y la Idea de Progreso en 1910
La celebración del 20 de Julio como el día de la Independencia nacional en Colombia, tuvo origen en 1811 durante un acto público de agradecimiento realizado a la patrona católica de los liberados, Santa Librada, cuya imagen y advocación religiosa existía en Bogotá, la capital de Colombia, desde el período de la Colonia, cuando el territorio colombiano hacía parte de los dominios de la corona española. La conmemoración de la Independencia nacional el 20 de julio de cada año se consolidó en Bogotá durante las décadas siguientes. Sin embargo, dicha fecha se pondría en tela de juicio y vería debilitada su tradición durante el siglo XIX, dado que varias ciudades provinciales reclamaron otras fechas conmemorativas. Por ejemplo, Pamplona reclamó el 4 de julio y Cartagena el 11 de noviembre. Para contrarrestar este conflicto por el reconocimiento de la fundación de la república, el Estado colombiano creó la ley del 8 de mayo de 1873, sancionada por el presidente Manuel Murillo Toro, quien declaró el 20 de julio como día de fiesta patriótica para toda la república. Desde entonces, se impuso la celebración del 20 de julio en todos los poblados del país. Dicha fiesta patriótica, cumplirá un papel destacado en la formación del sentimiento de identidad y de pertenencia nacional entre los colombianos.
El 20 de julio de 1910,1 siguiendo con la tradición del siglo XIX, Colombia celebró su primer siglo como país soberano. En esta ocasión el Estado, la Iglesia, la prensa, los partidos y muchas organizaciones e instituciones gubernamentales y privadas se dieron a la tarea de hacer de esta fecha uno de los días más memorables en la historia del país. Un sinnúmero de actos conmemorativos fueron organizados a lo largo y ancho del territorio nacional. A diferencia de las celebraciones realizadas durante el siglo XIX, se establecieron comisiones organizadoras de carácter nacional, regional y local las cuales se encargarían de preparar, con mucha antelación, hasta el más mínimo detalle. De esta manera, en los centros urbanos y en las zonas rurales, no se ahorró esfuerzo alguno para conmemorar el Centenario de la emancipación colombiana. En el marco de los festejos del Centenario nacional, se realizaron diferentes actos conmemorativos como la inauguración de estatuas, bustos y placas a los próceres de la Independencia colombiana, entre los cuales se destacan Simón Bolívar y Francisco de Paula Santander como precursores de la libertad y padres de la patria. Dentro de los actos de celebración también sobresale la exposición Agrícola e Industrial del Centenario, la cual se
Es bueno anotar que si bien la conmemoración centenaria de 1910 se realizó durante el gobierno de Ramón González Valencia, fue en la presidencia de Rafael Reyes que se decretó la Ley 39 de 1907 la cual ordenó celebrar solemnemente en toda la república el centenario de la independencia, véase Primer centenario de la independencia de Colombia 1810-1910, Bogotá, Escuela Tipográfica Salesiana, 1911, p.I. En adelante Centenario…
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convirtió en un acontecimiento excepcional por su convocatoria nacional. A continuación, plantearemos una mirada a dicho evento ferial para mostrar su importancia dentro de la fiesta de identidad nacional referida.
La exposición agricola e industrial del centenario A principios del siglo XX la idea progreso, que estaba acompañada de avances técnicos y de infraestructura, determinaba el horizonte de Colombia como país latinoamericano que deseaba superar su condición marginal. Para mostrar estos avances el Estado, a través de la Comisión Nacional del Centenario, construyó en Bogotá el parque de la Independencia, lugar que sirvió de escenario para la Exposición Agrícola e Industrial de 1910. En dicho parque, fueron construidos los pabellones de Bellas Artes, de la Música, Agrícola, de la Industria, de las Máquinas, Egipcio y Japonés, además del kiosco de la Luz, el Bolívar ecuestre de Frémiet y el monumento a los Héroes Anónimos o Ignotos. Los diferentes pabellones de la Exposición reunieron una muestra de animales, máquinas, objetos artesanales, industriales y artísticos que pretendía representar las capacidades industriales y culturales del país. Los integrantes de la Comisión del Centenario tenían en común su origen social ya que hacían parte de las familias más adineradas e influyentes de la capital de Colombia. Muchos habían estudiado en el exterior y trabajaban en puestos públicos importantes, además hacían parte de la elite política gobernante del país. Los miembros de dicha Comisión, siguiendo modelos foráneos, idealizaron la forma como se representaría lo nacional durante las dos semanas que duró 2 3
la conmemoración. Sin embargo, a pesar de lo elitista que resultó la selección de sus integrantes, se encomendó a esta Comisión Nacional del Centenario la coordinación de la exposición Agrícola e Industrial que tuvo lugar en terrenos del recién inaugurado parque de la Independencia. De esta manera, el sábado 23 de julio de 1910 en Bogotá, el presidente de la república Ramón González Valencia y su comitiva ocuparon la parte alta del Pabellón de la Industria para disponerse a inaugurar la exposición Agrícola e Industrial del Centenario, junto a él, Carlos Michelsen, presidente de la Junta organizadora de dicho evento ferial, pronunció un discurso de apertura, en el que denunció al elemento de la vida social que, en su opinión, siempre se había opuesto al progreso material de la nación colombiana: [...] Para realizar completo progreso necesitamos únicamente un elemento que, durante el siglo de independencia, no nos ha sido posible adquirir, y cuya privación es causa de atraso y miseria, me refiero a la falta de seguridad, proveniente de constantes luchas políticas”.2
Este discurso se caracterizó por su vehemente reclamo contra la inseguridad pública permanente, la cual era producto de la constante confrontación verbal bipartidista por la disputa sobre el control estatal del país. En un discurso de respuesta aceptando la crítica formulada, Ramón Gonzáles Valencia, presidente de la república en ese entonces, expresó lo siguiente: [...] encierra un reproche por haber malgastado tantos y tan preciosos elementos, una amonestación severa para que cambiemos de rumbo. Hemos visto impasibles rodar al abismo de lo que fue, cien años de vida”.3
Centenario..., p. 210. Centenario..., p. 211.
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aLexanDer cano Vargas
Esta autocrítica hecha por el primer mandatario del país, líder del partido conservador, es una muestra del impacto político que trajo a Colombia tanto la guerra civil de los Mil Días como la separación de Panamá. No obstante, como presidente de la república, Ramón González Valencia agregó palabras de optimismo para el porvenir de Colombia que según él inexorablemente lo conducirían hacia el progreso. Los pabellones de la industria y de las máquinas eran una prueba de la confianza que renacía en el progreso material que sacaría al país del atraso en que se encontraba. La idea de progreso se ve representada en esta fotografía (veáse imagen 1) que da cuenta de la majestuosidad del pabellón de las Máquinas, en el cual se expuso lo mejor
de la producción fabril nacional . Dicho edificio, heredero arquitectónico de los pabellones colombianos en las exposiciones universales de París en 1889 y de Chicago en 1893, contaba con una nave central y dos laterales aparentemente construidas en hierro pero donde la madera fue el material predominante. La madera como tal era de fácil adquisición y ensamblaje lo cual permitió una construcción rápida de dicha edificación. Sin embargo, a pesar de la corta durabilidad de los materiales utilizados en su ensamblaje, el pabellón de las Máquinas contaba con dos pisos donde un par de relojes para catedral ubicados en la parte anterior de sus naves laterales le daban un toque de sofisticación. todo esto, generó admiración en los visitantes locales y foráneos.
Imagen 1. Tomado de Colección particular. Pabellón de las Máquinas. Vista frontal. Ca. 1910. Fotografía sobre papel
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La Exposición Agricola e Industrial del Centenario Colombiano y la Idea de Progreso en 1910
De esta manera, tanto el pabellón de la Industria como el de las Máquinas eran toda una revelación de productos y de riquezas nacionales; unas riquezas que demostraban que el fértil territorio colombiano nada tenía que envidiarle a cualquier otro país. Todo estaba dispuesto y organizado en cada una de las galerías. Dentro de los objetos artesanales e industriales más representativos del pabellón de las Máquinas estaban: relojes de Antioquia, despulpadoras de café, alambiques, máquinas para hacer fideos, estufas, herraduras, una máquina piladora y pulidora de café, otra para aserrar madera, motores de vapor, relojes eléctricos, un arado para sacar papas, balanzas, columnas, pilares de hierro y alcohol, las aguas gaseosas de Posada y Tobón de Medellín. Mientras que en el pabellón de la Industria se destacaban: los tejidos producidos por las fábricas de Samacá y Medellín, paños, driles, tapices, telas, productos de cabuya, maderas, zapatos, velas, sombreros de Medellín, los baldosines Sámper de Bogotá, fósforos, molinos de trigo, locerías de Bogotá (Etruria y Faenza) y Antioquia (Corona), petróleo del señor Virgilio Barco, gasolina, bencina, lámparas, agua de quina para el pelo, yodo incoloro, botiquines de Medellín, jarabes, sal de frutas, cosméticos, muestras de café, abonos artificiales, muebles estilo Luis XV, mazorcas de cacao, peras, ciruelas, harinas, pastas y galletas de los molinos nacionales, minerales, vidrios, fotografías y cigarros de Bucaramanga. Lo expuesto ante el público en estos pabellones llenaba de satisfacción al presidente González Valencia. Podía así, al declarar abierta la Exposición Agrícola e Industrial del Centenario, mencionar dos consideraciones que llenaban de júbilo su espíritu:
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La primera emana de la magnitud del éxito alcanzado: si se tiene en cuenta la postración económica del país, resulta digno de todo encomio y profundamente alentador el esfuerzo que se ha hecho, que casi puede calificarse de gigantesco. La segunda nace de la confianza íntima que tengo en el impulso que de hoy en adelante va a darse en el país a todo lo que signifique progreso y bienestar.4
El ideal de progreso que se hizo presente en los innumerables discursos se vio reflejado en la adecuación y construcción de los pabellones en el parque de la Independencia. Éstos constituían la prueba por excelencia del avance industrial y arquitectónico que estaba alcanzando la joven nación colombiana. Enrique Olaya Herrera, destacado político liberal y opositor del gobierno, asombrado con el parque, anotó lo siguiente: La obra más digna de aplauso, realizada para el Centenario en el breve término de cuatro meses, ha sido el arreglo del parque de la Independencia y la construcción allí de cuatro sólidos y artísticos edificios destinados para la Exposición Industrial y la de Bellas Artes. Estos pabellones por su elegancia arquitectónica, por su magnitud, por su apropiación al objeto a que se le destina, dan idea muy ventajosa de los adelantos que en materia de construcción hemos alcanzado. Sin hipérbole puede decirse que el parque presenta un aspecto europeo.5
La apertura de la Exposición fue cerrada por la intervención de uno de los principales actores de la organización del Centenario, Lorenzo Marroquín, el alma de la Comisión Nacional. Su alocución hizo referencia al progreso nacional que se esperaba para el segundo siglo de vida republicana: La Exposición de 1910 está probando que la raza colombiana, la raza nueva, la raza neolatina es capaz de usar el hierro en ambas formas: es apta para el combate y apta para
Centenario..., p. 211. Centenario..., p. 27.
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Alexander Cano Vargas la industria, capaz de conquistar la libertad por la espada y la naturaleza por el arado. Esta ostentación de fuerza creadora es una revelación: la revelación de la intensidad de la vida nacional, de la dirección que deben tomar nuestras energías, el faro que anuncia el puerto del bienestar y del reposo.”6
Con el optimismo de dicha alocución, se cerró el primer día del evento ferial que tuvo lugar en el parque de la Independencia. Sitio donde fue expuesto lo mejor de la producción artesanal e industrial del país. Dentro de esta solemne conmemoración, el parque de la Independencia también sirvió de escenario para la inauguración de varios monumentos destinados a perpetuar la memoria de los héroes de la emancipación nacional. Monumentos del Centenario en el parque de la Independencia La inauguración de cada monumento conmemorativo del Centenario en el parque de lndependencia estuvo acompañada de una gran fiesta cívica y patriótica, donde se utilizaron símbolos e íconos referentes a la identidad colombiana y a la consolidación de su imagen como nación bolivariana. Fue así como el escudo y la bandera nacional, entre otros, con sus alegorías7 a la libertad, el orden, la tenacidad y la riqueza del país, sumados al culto rendido al Libertador8 y a todos los héroes de la independencia, se convirtieron en un referente de lo nacional. Además, otros actos de índole religiosa, como es el caso de las misas fueron la constante dentro de los actos públicos conmemorativos del Centenario.
La implementación de toda esta simbología, me refiero a la bandera y a todas las placas y lugares que fueron bautizados con el nombre de próceres o de batallas de la independencia, pretendía crear un sentimiento de propiedad y, por ende, de adhesión y de reconocimiento en los nacionales de este país. Parafraseando al historiador Eric Hobsbawm diríamos que Colombia, en especial la capital de la república, experimentaron una especie de estatuomanía 9 o producción masiva de monumentos públicos, entre los que sobresalen, la inauguración en Bogotá del parque de la Independencia con la exposición Agrícola e Industrial del Centenario. Obras similares, aunque en menor escala, se inauguraron a lo largo y ancho del territorio nacional. La inauguración de estos monumentos pretendía honrar y preservar la memoria de algunos héroes de la Independencia que hasta entonces estaban condenados al olvido unas veces por desidia gubernamental y otras veces por sectarismo político como es el caso de los generales Antonio Nariño, Francisco José de Caldas y Antonio José de Sucre, ya que su imagen fue reconfigurada al pasar de simples promotores de la Independencia a verdaderos héroes de la gesta libertadora, merecedores incluso de aparecer como tales en el manual de Historia colombiana de Henao y Arrubla con el cual fueron educadas varias generaciones de colombianos. Con la expansión de los centros urbanos, dichas construcciones conmemorativas fueron trasladadas de su lugar original lo cual generó deterioro no sólo en su estructura sino también en la apropiación y representación
Centenario..., p. 214. “Las alegorías pueden ser definidas como combinaciones de personificaciones o símbolos, o ambas cosas a la vez,” tomado de Panofsky Erwin, Estudios sobre iconología, Madrid, Alianza, 1980, p.16. 8 La imagen de Simón Bolívar en cualquier estandarte, se constituía en la representación de un ser emancipado y libertario. 9 Hobsbawm Eric and Terence Ranger, The invention of tradition, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, p.78. 6 7
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que de ellas se tenía por parte de los ciudadanos. Dentro de los monumentos inaugurados en el parque que el Estado colombiano abrió en Bogotá con motivo del primer centenario de la Independencia sobresalen, entre otros, la estatua ecuestre de Bolívar 10. Fue así como el 15 de julio de 1910, en el acto de inauguración, el general Ramón González Valencia, quien ejercía entonces la presidencia de la república, pronunció un extenso discurso con motivo de dicho evento. La estatua, obra del escultor Frémiet, reposa sobre un pedestal de piedra, en cuyo frente se ve una corona de laurel en bronce y al pie la más sencilla de las inscripciones, que en dos palabras resumen la vida del héroe: ¡Fiat Patria! (¡Hágase la patria!) en seguida se lee: Bolívar libertador 1783-1830. En las fotografías tomadas durante dicho acto inaugural, las personas de origen humilde son fácilmente diferenciables, no sólo por el lugar que ocupan en la celebración
sino también por características como su vestuario. Por ejemplo, en dos fotografías que se tomaron el mismo día de la inauguración de la estatua ecuestre del Libertador es evidente un gran contraste social. En la primera de ellas, tomada desde la parte central del parque es posible ver (veáse imagen 2) a las elites sociales vestidas con finos sombreros de copa y trajes de paño quienes se encuentran cerca del presidente de la República, encargado del discurso, dicha imagen fue publicada en las memorias oficiales del Centenario que aquí reproducimos. Mientras que en la segunda fotografía (veáse imagen 3), tomada desde un ángulo lateral pueden distinguirse las clases populares, quienes rodeaban a la elite social y cuyos vestuarios eran muy distintos: los hombres con ruanas de lana y sombreros de fique y las mujeres con poncho y faldones grandes. Así, en pleno evento ferial, durante la inauguración de la estatua ecuestre de Bolívar, se mostró una idea amañada de lo que se quería hacer ver como lo nacional lo cual esta representado en estas dos fotografías.11
Imagen 2. Tomado de Colección particular. Inauguración de la estatua ecuestre de Bolívar. Vista frontal. Ca. 1910. Fotografía sobre papel 10
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La Comisión Nacional del Centenario contrató al escultor francés Emmanuel Frémiet para fabricar la estatua en bronce del Bolívar ecuestre, tomado de Archivo General de la Nación (AGN), Bogotá-Colombia, Sección Ministerio de Gobierno, Fondo 1 (Negocios Generales) Festejos Patrios, Archivo de la Comisión Nacional del Centenario de la Independencia de 1910, Caja 001, Carpeta 001, f. 18. Centenario…, p. 293.
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Imagen 3. Tomado de Colección particular. Inauguración de la estatua ecuestre de Bolívar. Vista lateral. Ca. 1910. Fotografía sobre papel
Del monumento como tal, incluso más que la imagen de Bolívar, sobresale la figura del caballo ya que hasta entonces el francés Emmanuel Frémiet se había destacado artísticamente como experto escultor de figuras de animales. De esta manera, la estatua Ecuestre de Bolívar recrea al Libertador colombiano en el campo de batalla esgrimiendo su espada al infinito como símbolo del coraje libertario encima de su valiente equino. Dicho binomio, jinete y caballo, descansan sobre un pedestal de mármol importado desde Europa al igual que el resto de la escultura. Esta primera estatua Ecuestre de Bolívar en Bogotá, luego sería tomada como referente en muchas ciudades provinciales de colombia al punto que actualmente varios parques del país cuentan con una replica de dicho monumento. Incluso, dichos parques se convirtieron en lugares de congregación social y cultural para las clases populares. actualmente la estatua Ecuestre fundida por Frémiet se encuentra en el monumento
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a Los Héroes al norte de Bogotá, y fue trasladada de su lugar original en el parque de la Independencia por motivos de la ampliación vial de la carrera séptima y la construcción de los puentes de la calle 26. otro de los monumentos inaugurados en el parque de la Independencia con motivo del Centenario fue el denominado kiosco de a Luz inaugurado el 28 de julio de 1910. El evento estuvo presidido por alberto Sámper, representante y copropietario de la Compañía de Energía, el cual, al momento de la inauguración, afirmó lo siguiente: No tiene otro merito que de haber sido edificado con los productos de esa fábrica y de ser la primera construcción que en cemento armado se hace entre nosotros.12
Sámper también era copropietario de la compañía de cementos Sámper Hermanos la cual donó dicha obra a Bogotá. De esta manera, el pequeño kiosco de la Luz, se convirtió en uno de los principales referentes de la exposición Agrícola e Industrial
Centenario…, p.341.
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La exposición agricoLa e inDusTriaL DeL cenTenario coLombiano y La iDea De progreso en 1910
del centenario ya que representaba dos de los principales avances industriales de la época en el país, por un lado, la aparición de la energía eléctrica como fuente de luz y generadora de potencia para la incipiente industria nacional y, por el otro, el cemento como elemento dinamizador de la construcción en colombia. Esta fotografía (véase imagen 4) nos muestra el buen estado arquitectónico en que se encuentra actualmente el kiosco de la Luz en Bogotá, cuya edificación posee un estilo neoclásico basado en las construcciones ornamentales de la Roma clásica. Por ende, es una construcción inspirada en lo europeo que
para la época se constituía en una muestra de civilización y cultura lo suficientemente atractiva para llevarse la atención de propios y extraños. Cuando se inauguró el kiosco de la Luz, se dijo que era una copia de un kiosco del palacio de Versalles a raíz de su forma octogonal, con ornamentos similares como las figuras en alto relieve de las cuatro estaciones. “Es así como podemos afirmar que el uso del kiosco en la Exposición Agrícola e Industrial del centenario, fue el de servir de símbolo de la modernización urbanística que ofrecía el concreto.” 13
Imagen 4. Tomado de Colección particular. Kiosco de la Luz. Vista frontal. Ca. 2008. Fotografía sobre papel
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tomado de Zambrano Pantoja, Fabio, El Kiosco de la luz y el discurso de la modernidad, Bogotá, Alcaldía local de Santa Fé - Instituto Distrital de Cultura y Turismo: Alcaldía Mayor de Bogotá D.C., 2005.p.22.
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Esta novedosa construcción, sobrevivió a las intervenciones viales por su reducido tamaño y ubicación lateral en el intercambio vial de la calle 26. El kiosco de la Luz, en el parque de la Independencia es, sin duda, uno de lo últimos testimonios de la celebración del Centenario de la emancipación nacional colombiana en Bogotá. El parque de la Independencia fue reducido a una tercera parte de su tamaño original. En el actual parque, a un costado de la calle 26, sólo queda el kiosco en mención. Dicha intervención que redujo la extensión de este lugar responde a una nueva visión de progreso, de lo moderno, que cambió las nociones de progreso de décadas anteriores. Así, el parque de la Independencia, que en su momento fue lo más cercano al imaginario de progreso europeizante, cedió ante el empuje modernizador de mediados del siglo XX, especialmente con la construcción, desde el año 1954, de los puentes de la calle 26. La necesidad de ampliar vías y construir puentes para mejorar la movilidad en la capital de Colombia, acabó con el referente de recreación y esparcimiento más importante que tenían los bogotanos de la primera mitad del siglo pasado. De esta manera, la celebración del Centenario generó una reflexión sobre el desenvolvimiento histórico de Colombia en sus cien años de vida nacional independiente para, con ello, buscar el camino de la renovación y el despertar hacia la modernización, para llevar al país a una verdadera era del progreso económico y material. Los hombres de la generación del Centenario, que posteriormente fueron
estadistas y presidentes de la república, entre ellos: Carlos Eugenio Restrepo, Pedro Nel Ospina, Enrique Olaya Herrera y Rafael Uribe Uribe, se volvieron tributarios de este pensamiento. Dicho imaginario se generó a partir del ambiente intelectual de inconformismo y erudición en el cual vivieron dichos personajes, recordemos que a ellos les correspondió actuar en el más sangriento conflicto bélico colombiano a fines del siglo XIX y comienzos del XX causado por el sectarismo político entre los partidos Liberal y Conservador denominado como guerra civil de los Mil Días, además, padecieron el intervencionismo estadounidense que derivó en la separación de Panamá, en un país pobre y rural que reclamaba fuerzas de renovación. Por ello, su principal problema fue modernizar a Colombia y transformarla de un mundo rural a un mundo urbano; así mismo, tecnificarla para llegar a la era del progreso y el desarrollo económico. A modo de conclusión La construcción del parque de la Independencia en Bogotá, lugar que sirvió de escenario para la exposición Agrícola e Industrial y para la inauguración de monumentos alegóricos al primer siglo de la emancipación nacional, sumados a la idea de progreso materializados en el desarrollo de la industria y la agricultura, en el marco de la fiesta patriótica del 20 de julio durante la celebración del Centenario de la Independencia de Colombia en 1910, jugó un papel destacado en la edificación de un sentimiento nacional14 adscrito al nation building o forjar patria15, que empezó en la
Periódico El Centenario, Bogotá, julio 22 de 1910, p.1. Citando a Benedict Anderson, Alan Knight expresa lo siguiente: “forjar patria quiere decir inculcar lealtades nacionales y asegurar que la “comunidad imaginada” (que es la nación) penetre la imaginación no sólo de las élites, de los intelectuales, de los que saben leer y escribir, sino también del populacho, de los analfabetas, de los campesinos e indígenas(...)” tomado de Knight Alan, Pueblo, política y nación, siglos XIX y XX, en: Uribe Urán Víctor Manuel y Ortíz Mesa Luís Javier, Naciones, gentes y territorios: ensayos de historia e historiografía comparada de América Latina y el Caribe, Medellín, Facultad de Ciencias Humanas y Económicas de la Universidad Nacional de Colombia, Sede Medellín, U. de A., Colección Clío, 2000, p.373.
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capital de Colombia y luego se extendió al resto del país. Como ya se dijo, la celebración del Centenario colombiano sirvió para reafirmar la creencia en un proyecto de construcción de una nación y una nacionalidad; representaciones del pasado y de la memoria colectiva, conducentes a consolidar una mitología fundacional hispanista, centralista y católico-conservadora, basada en la glorificación de los héroes de la emancipación nacional y en un imaginario político repúblicano. Bibliografía general Fuentes documentales
Archivo General de la Nación (AGN), BogotáColombia, Sección Ministerio de Gobierno, Fondo 1 (Negocios Generales) Festejos Patrios, Archivo de la Comisión Nacional del Centenario de la Independencia de 1910, Caja 001, Carpeta 001, f. 18. Memorias del Primer centenario de la independencia de Colombia 1810-1910, Bogotá, Escuela Tipográfica Salesiana, 1911. Periódico El Centenario, Bogotá, julio 22 de 1910.
Fuentes bibliográficas
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Angelita Marques Visalli Possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988), mestrado em História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2004). Professora no Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, na área de História Antiga e Medieval, tem sua atuação de docência e pesquisa voltada para o estudo da Idade Média, particularmente para a religiosidade. Atualmente dirige o Museu Histórico de Londrina.
Resumo
Pretendemos nesse estudo lançar nosso olhar sobre as imagens, iluminuras, que acompanham o texto da Franceschina, obra composta no século XV por Giacomo Oddi, na qual são apresentadas as vitae de Francisco de Assis e outras “figuras ilustres” da Ordem dos Frades Menores entre os séculos XIII e XV. O texto em dialeto umbro possui uma linguagem simples e cotidiana, assim como um caráter dramático e heróico, remetendo-se especialmente à recusa do mundo, à dedicação às práticas caritativas e religiosas e ao martírio dos frades. Apesar da simplicidade das formas e da técnica, estas iluminuras registram e divulgam experiências, mas buscam despertar uma sensibilidade. Neste caso esta é provocada, por um lado, por uma representação mística e, por outro, pela exacerbação da violência sofrida pelos frades, apresentando o caminho do martírio como a principal expressão de exaltação dos menores após a morte de Francisco, em contraste com o franciscanismo dos “primórdios”. Palavras-chave: Iconografia franciscana; Franceschina; iluminura
Abstract
In this study we intend to pay close attention to the images, illuminations that appear in the text Franceschina, a work from the fifteenth century written by Giacomo Oddi, in which the vitae of Francis of Assisi and other “renowned people” of the Order of Friars Minor between the thirteenth and fifteenth centuries, are presented. The text in the Umbrian dialect has a simple, everyday language, as well as a dramatic and heroic character, referring in particular to the refusal of the world, the dedication to charitable and religious practices and the martyrdom of the brothers. Despite the simplicity of form and technique, these illuminations record and disseminate experiences, but seek to awaken a sensibility. In this case it is caused firstly, by a mystic representation and, secondly, by the exacerbation of violence suffered by the friars, showing the path of martyrdom as the main expression of exaltation of the minors after Francis death, in contrast to the early years of Franciscanism. Keywords: Franciscan iconography; Franceschina; illumination. Recebido em: 20/07/2010
Aprovado em: 15/08/2010
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Os estudos de imagens entre historiadores têm provocado certa agitação no meio historiográfico. Apesar do reconhecimento do valor da imagem como documento, a reticência, o receio, e mesmo a inabilidade têm sido alvos de críticas, por vezes ferozes. Não queremos remontar aos usos e desusos das imagens como referência histórica, mas gostaríamos de apresentar algumas questões que envolvem o uso das imagens na pesquisa histórica. Elegemos as observações do historiador Ulpiano Bezerra de Meneses para matizar essas discussões que são, contudo, as mais correntes nos estudos sobre a questão. (MENESES, 2003, p. 11-36) A ironia do autor frente ao diminuto espaço do estudo da imagem entre os novos objetos e abordagens da Nova História, revela uma relação ainda pouco resolvida. Nós historiadores não estamos acostumados a utilizar as imagens como documento, apesar dos consensos. Um problema quanto ao seu uso está no fato de que ainda se constitui como a testemunha muda de conhecimento produzido por outras fontes, mero repositório especular de informação empírica. (MENESES, 2003, p. 20) Tendemos a procurar nas imagens a comprovação de idéias já constituídas, fundadas na tradição escrita, na historiografia.
As soluções apresentadas tanto se fundamentam em território novo que é exatamente a inexatidão que nos demarca o início do trabalho. Um pré-requisito que adotamos, contudo, e que nos possibilita um exame sobre as imagens que elegemos é o de que estas são, antes de tudo, objetos, coisas que se prestam a vários usos e, inclusive, como documento. Uma imagem se torna documento na medida em que fornece informação a um observador, não é assim antes disso. Sua funcionalidade é múltipla: além de fonte de informação, pode assumir vários papéis, produzindo diversos efeitos, inclusive sendo reciclada. Assim, é de fato ilusória a idéia de que basta nomear o que ela representa, decodificá-la para esclarecer sua representação. Sua função é menos representar uma realidade exterior do que construir o real (uma imagem de algo) de um modo próprio, tão particular que não se encaixa em nossas classificações como as características dos estilos e modelos artísticos. No caso dos estudos medievais, os últimos anos têm sido pródigos de trabalhos que nos fizeram avançar teoricamente. Os estudos de Jean-Claude Schmitt são referência fundamental. O pesquisador evidenciou um conceito mais abrangente para o Medievo, muito além do lugar comum da
Este estudo é um desdobramento de um projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido há alguns anos na Universidade Estadual de Londrina, com apoio, atualmente, da Fundação Araucária, intitulado “A Devoção Mariana e a morte na Idade Média: estudo sobre a religiosidade laica através das laudas”. Inicialmente nos debruçamos sobre alguns capítulos específicos da Franceschina, particularmente sobre os referentes ao compositor de laudas Jacopone da Todi. Esse texto foi, em parte, apresentado do II ENEIMAGEM.
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funcionalidade didática e religiosa inspirada na correspondência de Gregório Magno, que reverbera, ainda, nos manuais de estudo das imagens do período: essas seriam para os iletrados (laicos) o que a escrita seria para os clérigos, um meio de instrução (SCHMITT, 2007, p. 60). A evidência da cultura medieval frente ao interdito bíblico veterotestamentário quanto ao uso das imagens, pelo contrário, possibilitou o reconhecimento de uma questão mais complexa e uma compreensão mais profunda sobre a verdadeira revolução visual que no ocidente cristão implicou na proliferação das imagens. A dissipação do medo do paganismo, no período central da Idade Média, possibilitou maior liberdade quanto ao uso das imagens, inclusive tridimensionais. Sociedade fundada na visualidade, a sociedade moderna observa o desenvolvimento da idéia da imagem como representação e fixa seu olhar sobre o milagre eucarístico nos séculos XIII e XIV, a partir do qual se desenvolve uma “vitória extraordinária da abstração”, segundo Carlo Ginzburg: “na medida em que negava os dados sensíveis em nome de uma realidade profunda e invisível” (GINZBUG, 2001, p. 102). A pluralidade de usos e variação dos suportes na apresentação das imagens são fundadas num princípio de liberação que precisa ser valorizada, ainda que se considere tantos elementos redutores e limitadores da liberdade de criação, tal como concebemos em nossa concepção hodierna de produção artística. Pretendemos nesse estudo lançar nosso olhar sobre imagens, iluminuras, que acompanham o texto da Franceschina, obra composta no século XV por Giacomo Oddi, na qual são apresentadas as biografias de Francisco de Assis e outras “figuras ilustres” da Ordem dos Frades Menores entre os séculos XIII e XV. Trata-se de um texto de
elegia aos franciscanos, tendo São Francisco como protagonista, sendo bem demarcado o tom de epopéia, na medida em que os frades são apresentados como verdadeiros heróis, seja pela superação pela penitência, seja pelo martírio. O caráter religioso e de disseminação de modelos é patente, mas podemos desenvolver sobre ele um exercício de olhar que ultrapasse a intenção primeira de seu autor. A observação de suas imagens, na verdade, pode nos apresentar elementos outros de reflexão. Na medida em que entre essas imagens possuímos referências ao período identificável à comunidade primitiva franciscana (durante o período de vida de seu fundador) e ao período posterior, podemos apresentar aqui um estudo introdutório sobre os modelos de vida franciscana a partir dessas miniaturas. Afinal, o que será iluminado? Consideramolas primeiramente destacadas do objeto que as abriga, o livro. Seu conjunto, por um lado, pode nos apontar para uma lógica própria. Na análise das miniaturas, faz-se sempre necessário o exame de seu conjunto, considerando-se toda a série, pois estas não podem ser examinadas isoladamente. O isolamento é sempre arbitrário e incorreto (SCHMITT, 2007, p. 41). Não perdemos de vista, contudo, o exame de suas interações particulares com o texto: a correspondência ou não de cada uma com os temas tratados por escrito, as possíveis contradições ou discrepâncias quanto ao conteúdo e, enfim, as escolhas, pois as imagens apresentam cenas recortadas num universo bem maior de possibilidades. A vasta obra apresenta treze capítulos que trazem dados biográficos dos primeiros irmãos e daqueles que teriam se sobressaído devido a determinadas virtudes que, inclusive, intitulam os capítulos: a obediência, a pobreza, a castidade (tripé da ordem dos frades
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menores), a recusa do mundo, a caridade, humildade, oração, paciência, penitência, a virtude em geral, assim como um capítulo voltado para a anulação de si mesmo, outro para a danação aos que não respeitam a regra e ainda outro sobre o prêmio para os que a seguem. Esta organização apresenta um caráter didático, pois a obra é voltada para os próprios discípulos de Francisco, apresentando-lhes modelos de conduta. Alguns frades menores têm para si dedicadas várias páginas, e os acontecimentos são descritos em forma de episódios; outros podem ser citados anonimamente, como nas várias narrativas sobre os martírios sofridos. O próprio título já denuncia sua finalidade. Originalmente a obra se denominava Specchio de l´Ordine Minore. Este “espelho” passou a ser conhecido como Franceschina a partir da edição de 1931, por Nicolla Cavanna (OFM), mudança justificada pelo editor para diferenciá-la mais facilmente de outros espelhos e porque representaria melhor uma verdadeira epopéia, aos moldes de títulos expressivos e clássicos com a “Ilíada”. Utilizamos esta edição, a primeira a apresentar a integralidade do texto. As imagens do manuscrito são, em grande parte, reproduzidas ao fim do segundo volume, mas esta edição é acompanhada por inúmeras ilustrações, gravuras sem identificação de autoria. A obra se apresenta dividida em treze capítulos: segundo o autor, sua divisão se reporta aos treze primeiros frades menores – Francisco e doze companheiros. Escrita em dialeto umbro, a Franceschina é uma preciosa fonte literária, um manancial de referências acerca da expressão religiosa e da construção da santidade dos frades menores, além de apresentar um dos mais ricos e antigos conjuntos de iluminuras franciscanas. Da Franceschina temos quatro códices: 36
• códice de Santa Maria dos Anjos ou Porciúncula (A), conservado no convento de mesmo nome, com maior número de imagens – 152 no total; • códice de Perúgia (P), com 45 imagens, pertencente inicialmente às freiras de Monteluce. Com a supressão do convento, foi transportado para a Biblioteca Comunal de Perúgia; • códice de Nórcia (N), pertencente ao convento de Nossa Senhora Annunciata – e hoje à municipalidade de Norcia –, com 8 imagens; • códice de Monteluce (M), inicialmente destinado às freiras de Monteluce – hoje no convento de santo Ermínio –, em Perúgia, com 41 imagens. A autoria do texto é atribuída a Giacomo Oddi. Ocupante de cargos públicos em Perúgia, este entrou na Ordem dos Frades Menores provavelmente após a passagem de pregadores franciscanos, em 1448, e faleceu em 1488. Giacomo teria ingressado no convento de Porciúncula, em Assis, e apesar de especulações acerca de outras possíveis obras, não temos outras identificadas como sendo de sua autoria. Desenvolvemos nosso estudo sobre o códice perugino, por ser o mais antigo dos três. O estado de conservação é por si uma preciosidade. Escrito em 1474, conforme indicado no próprio manuscrito, na genealogia dos códices é apresentado como o protótipo. Quanto à autoria das imagens, entramos num terreno mais lodoso. Há indicação, pelo editor Nicolla Cavanna, de que o autor seja Nicollò Liberatore, de Foligno, renomeado como Nicollò Alunno por Vasari. O mestre pintor de Foligno por várias vezes trabalhou nos conventos e para os conventos franciscanos, mas a identificação da autoria
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está longe de ser segura, pois a simplicidade dos desenhos na Franceschina, a princípio, não sintoniza com o refinamento apresentado em outras obras. A comparação das rústicas e simplórias imagens da Franceschina com as obras mais refinadas de Alunno tende, num primeiro momento, a distanciá-las. Outra possibilidade apontada, nesse caso, pela própria Biblioteca Augusta de Perugia, é a confecção por três miniaturistas e a participação de Mariano di Antonio di Francesco di Nutolo e Fiorenzo do Lorenzo, ambos do ambiente de Alunno. Nas ilustrações da obra, os traços mais definidos convivem com a técnica da aquarela e, em termos estéticos, podemos perceber a simplicidade das formas, uma ingenuidade na apresentação de seus conceitos, apesar da
“graça alcançada pelo iluminador”, segundo palavras de Nicolla Cavanna. Entre as 45 imagens, podemos identificar alguns conjuntos: 13 com presença de Francisco de Assis, alguns com cenas biográficas; 3 cenas sem identificação de personagens específicos, relativas ao modo de vida franciscano; 1 cena da Paixão de Cristo; 1 de frade menor em sofrimento; e 24 cenas de martírio de frades menores, em grande parte, entre sarracenos. As imagens de Francisco o apresentam como modelo de conduta, sempre rodeado de seguidores. Somente a imagem relativa ao tema da oração o apresenta sozinho. Nesse caso, cabe ressaltar a sutileza do iluminador quanto às características marcantes da expressividade religiosa de Francisco e as formas de representação da cruz:
Imagem 1. Oração
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As cenas são inspiradas nas referências dadas pelas fontes franciscanas à intensidade dos sentimentos que envolviam a meditação sobre a paixão de Cristo: gemidos, choros e súplicas em voz alta. A busca por lugares solitários como bosques, à noite, também encontra correspondência nos textos hagiográficos (LM 10, 3). Percebamos, no entanto, que quando Francisco de Assis ora, com as mãos postas, a imagem é a da cruz, assim como quando se põe em adoração, na terceira cena. Na cena central, quando se apresenta em lágrimas, a imagem é a do crucifixo. Podemos entender essas diferenças no quadro das diferentes formas de representação do maior símbolo do cristianismo: o signum da cruz e a imago crucifixi. Esta última se dissemina a partir do século XII e não temos dúvida de que essa “mudança plástica” traduz uma mudança na sensibilidade religiosa, como afirmou Jean Claude Schmitt, e, além disso, que a espiritualidade franciscana possui grande importância nesse processo da promoção da figura humana do Cristo (SCHMITT, 2007, p. 68). Na medida em que não temos como considerar a apreensão destas imagens para seus consumidores, podemos evidenciar algumas questões que nos acerquem da intencionalidade do seu autor. Certamente não buscamos resgatar “o que se passou na cabeça do pintor quando as executou, mas elaborar uma análise que considere seus fins e seus meios” (BAXANDAL, 2996, p. 162). Neste caso, consideramos absolutamente fundamental o trabalho sobre as imagens acompanhado do estudo do texto escrito,
seja para considerar sua sintonia, seja para atestar sua autonomia. Devemos considerar uma tradição de relação com o livro que não percebia uma diferenciação clara entre o objeto, suporte, o livro, e o seu conteúdo. Bem sabemos que o conteúdo poderia mesmo elevar o que consideramos como suporte à esfera do sagrado, como no caso da Bíblia. Nesse caso cabe considerar que o vocabulário familiar, por vezes, mesmo chulo, a descrição de cenas domésticas e mesmo burlescas, como é comum no texto da Franceschina, não têm o mesmo acento no material imagético. Tomando como exemplo o texto dedicado a Jacopone da Todi (12361306), sobre o qual particularmente já nos debruçamos, podemos perceber elementos bem distintos que nos remetem a situações “carnavalizadas” (VISALLI, 2005, 134). Assim, Giacomo Oddi, o autor do texto da Franceschina, chegou a descrever uma hesitação dos frades menores em receber Jacopone na Ordem (este viveu como penitente por muitos anos). Segundo a Franceschina, temiam os menores que fosse um fantástico, diante das suas excentricidades, sendo esta descrita pormenorizadamente, ainda que com a pretensa finalidade de demonstrar a sabedoria do frade por trás das situações estranhas. (Franceschina, 12) A acusação de pazzia (loucura) também cerca outros frades, como Junípero, contemporâneo de Francisco, único menor referido em imagem, sem Francisco de Assis e fora do contexto de martírio.2 Este recurso retórico, a apresentação de situações burlescas, comum nos sermões dos pregadores, particularmente dos franciscanos,
A cena que o apresenta é aquela em que, após um grande equívoco promovido pelo demônio, o frade foi atado a um cavalo e arrastado pela cidade, acusado de traição e tentativa de assassinado. A virtude apresentada foi a da paciência, pois não reclamou da situação. O pazzo Junípero, contudo, em tudo favoreceu a confusão, estimulando seus algozes com respostas evasivas ao interrogatório.
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que marca também o texto da Franceschina, não é encontrado nas imagens. Com relação às imagens com caráter biográfico ou de apresentação do modo de vida franciscano, essas investem no envolvimento do observador em contexto mais íntimo, mais próximo, ancorado no cotidiano dos frades, sem a exploração de situações maravilhosas ou extraordinárias, apesar das imagens corresponderem à aura de santidade que se
espera dos primeiros frades. Com exceção da cena da estigmatização, as imagens que referenciam a primeira comunidade franciscana não apresentam aspectos miraculosos, mas cenas que pretendem sensibilizar pela singeleza, simplicidade e emotividade. Tomemos a imagem do cuidado com os leprosos:
Imagem 2. Leprosos
Na imagem, o atributo da humildade é particularmente ressaltado pela atividade de conjunto dos frades, entre os quais identificamos Francisco de Assis, acima e à esquerda, reconhecido pela diferente coloração e auréola. Todos se dedicam a alimentar e medicar os doentes. Francisco tem a mão estigmatizada levantada e fala ao doente, o qual estende a mão à escudela. Outro doente também o escuta, este com as
mãos juntas, cujo semblante indica consolação. Outros dois frades limpam as feridas do doente deitado, enquanto outro, ainda, não somente oferece alimento, mas escuta o leproso. Interessante a inversão: enquanto Francisco tem algo a dizer a um leproso, outro doente é quem fala ao frade. O exercício da humildade não se estabelece a partir de ação caritativa numa perspectiva unilateral e ritualística, mas aproxima irmãos.
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Entre as iluminuras, esta é a única “ação” reconhecida na experiência primitiva que relaciona os religiosos a não-religiosos. A relação dos homens medievais para com os leprosos era bastante ambígua: o doente deveria sensibilizar o cristão para a prática da caridade, mas, por outro lado, o medo do contágio e a constituição de um imaginário acerca da origem da lepra levaram ao seu afastamento, ao temor, à repulsa, condição especialmente interessante, portanto, para a aproximação daqueles que se pretendiam “menores”. A importância dos doentes de lepra no processo de conversão de Francisco foi evidenciada por ele próprio no seu Testamento: O Senhor concedeu a mim, frei Francisco, a começar a fazer penitência assim: quando estava em pecado, parecia-me coisa muito amarga ver os leprosos; e o Senhor mesmo me conduziu entre eles e tive misericórdia com eles. E, afastando-me destes, isto que me parecia amargo converteu-se em doçura de alma e corpo. E, depois, só demorei um pouco e abandonei o mundo. (Testamento, 1-3)
Aos primeiros seguidores de Francisco também coube o cuidado dos leprosos, atividade que se constituiu numa espécie de noviciado, segundo o qual os que quisessem abraçar a penitência como ele, deveriam também se superar, testando a convicção que tivessem na sua opção de vida. Na “Regra Não-Bulada”, Francisco definiu de que forma deveriam viver seus “irmãos” – em meio à gente desprezada, aos pobres e fracos – e referiu-se a “enfermos” e “leprosos”, além
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de mendigos (RNB, IX, 3). Uma doença particularmente marcada pela infâmia, que aflorava nos corpos a estigmatização, era especialmente atraente para o convívio de quem desejava anular a si mesmo e aos valores divididos com o mundo profano, pretendendo fazer da extrema humildade uma bandeira de seu apostolado (VISALLI, 2003, p. 122-137). Ao examinarmos o conjunto das imagens da Franceschina, o espírito daquelas referentes à primeira comunidade contrasta com a violência que caracteriza as que se reportam aos frades após a morte de Francisco. As cenas que apresentam as gerações seguintes dos frades são muito violentas, e exploram o drama do martírio de franciscanos. O acento das cenas dramáticas e violentas das expressões imagéticas é uma peculiaridade que apresenta exatamente a sua independência frente ao texto, ao escrito. Percebamos que das 36 páginas iluminadas, 11 se referem à comunidade primitiva, apresentando cenas cotidianas, de cunho ascético, penitencial e místico; as 7 últimas retornam ao tema, apresentando Francisco em seus últimos momentos, tendo seu corpo transladado, assim como cenas que remetem ao modo de vida dos menores. Entre estas últimas, é interessante observar que os frades, numa das iluminuras, são apresentados em leitura e debate, tendo os pés descalços, característica que marca todas as imagens. As 18 páginas restantes são voltadas para cenas de martírio, sendo que algumas delas apresentam 2 ou mesmo 3 imagens.
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Imagem 3. Martírio Decapitados
As cenas são dotadas de grande força. Plenas de energia ascética, as imagens têm proporções variadas: por vezes ocupam toda a página, destinadas a um só episódio, outras vezes se apresentam bem recortadas, com a cena de um único martirizado e seu algoz. Esta, acima, ocupa a parte de baixo da página, aproveitando todo o espaço deixado pelo texto. Nesta, dois frades jazem decapitados ao chão, um está para receber a espada em seu pescoço, em posição de prece, a mesma de outros três que aguardam o martírio. Estes estão desnudos, sem seus trajes característicos. Essa forma de apresentação dos martirizados é comum nessas iluminuras: despidos, identificados pela tonsura e gestos de resignação frente à morte, quase sempre pela decapitação. Outro personagem franciscano, à direita, mais velho que os outros, encontra-se vestido e morre a pauladas e pedras. Os espaços são organizados através dos planos e cores mais salientes. As cores mais fortes das vestimentas dos soldados
contrastam com a alvura dos corpos desnudos dos mártires, a partir da qual sobressai o vermelho de seu sangue e das auréolas. Santidade forjada no martírio. Percebamos, ainda, o volume dos corpos e maleabilidade das vestimentas estabelecidos através do traço e do dégradé da coloração, sinais da maior atenção às realidades sensíveis que se difunde, sobretudo, a partir do século XIII (BASCHET, 2006, p. 51). A imagem se reporta ao texto que narra o martírio de Daniel, ministro da ordem, que com seis frades menores, sob autorização do ministro geral – condição repetidamente colocada no texto –, buscou o “santo martírio em nome de Cristo”. A pregação em terra infiel acompanhada do desmerecimento da religião muçulmana os levou frente ao rei e à condenação à morte. A virtude evidenciada é sempre a aceitação pacífica e a alegria diante do sacrifício em nome de Deus. Ao examinálas em conjunto, mas em separado do texto, desfila-se uma série de desenhos monótonos de cenas de morte, muitas vezes lenta e torturante. O exame junto aos textos aponta
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para escolhas insólitas, na medida em que freis anônimos têm seus sacrifícios materializados em imagens em detrimento de tantas outras personagens mais insignes. Nas iluminuras os frades martirizados são semelhantes, assim como os soldados sarracenos entre eles, traço comum à pintura do período. Frente ao desconhecimento de uma indumentária mais característica para os sarracenos, estes
são identificados especialmente pela barba e cabelos longos. Na cena abaixo, conforme o texto em que se insere a imagem, dois frades, pelo “zelo da santa fé e desejo de martírio” foram para o Oriente pregar a palavra de Deus e colocaram à prova seu amor em morte com suplício: tiveram sua pele retirada dos pés à cabeça (Franceschina, p. 259 v).
Imagem 4. Martírio Escalpe
Este episódio se coloca entre outros tantos, numa galeria anônima de horrores sofridos em demonstração de entrega absoluta. Os frades não têm como serem identificados na imagem ou no texto e o contexto toma posição secundária, pois somente o ato de imposição da morte sofrida e a abnegação dos frades importam. O martírio marcou ou primeiros santos do cristianismo, no período anterior à sua absorção pelo Império Romano e, no decorrer da expansão da religião, foi associado à prática missionária, sendo identificável, ainda, como expressão penitencial. Este último 42
traço está demarcado nas hagiografias de Francisco de Assis, particularmente quanto à sua intenção de viagem ao Marrocos (Tomás de Celano, Vita Prima, 56, p. 4-6). O modo de vida dos franciscanos desde seu início apontou para o caráter penitencial da expansão pela palavra: Diz o Senhor: Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas’. Por isso qualquer frade que quiser ir entre os sarracenos e outros infiéis, vá com a licença de seu ministro e servo [...] E por seu amor devem se expor aos inimigos tanto
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Angelita Marques Visalli visíveis como invisíveis, porque diz o Senhor: ‘Quem perder a sua alma por mim, vai salvála para a vida eterna’ (Regra Não-Bulada, 16, p. 1-3).
As imagens da Franceschina não somente registram e divulgam experiências, mas buscam despertar uma sensibilidade. Neste caso, esta é provocada, por um lado, por uma representação que identifica uma santidade de uma primeira comunidade que, simplesmente, por seguir a forma de vida “primitiva” tem sua elevação apontada. Os modelos da comunidade primitiva são aqueles que cuidam de leprosos, seguem Francisco no exercício da obediência (retratado numa fila de frades encabeçada por Francisco, todos portando um instrumento humilhante no pescoço, como uma canga) e da castidade (representada pelos lírios carregados pelos frades e pobres damas da segunda ordem) e meditam sobre a palavra de Deus. O isolamento da oração e a autoflagelação (com o refinamento da cena da busca das plantas ideais e confecção do cilício), trabalho manual e pregação completam o quadro de atividades que definem o modo de vida santo dos franciscanos. Por outro, a identificação pelas imagens, da santidade dos frades, num segundo momento, não identificável à comunidade primitiva, passa pela exacerbação da violência sofrida, desvalorizando outros modelos ou possibilidades apontadas pelo próprio texto. Isto remete à sua independência e a falta de paralelismo entre as linguagens que compõem um único objeto, nesse caso, o livro (SCHMITT, 2007, p. 32).3 As imagens da Franceschina se compõem de narrativas que não vem somente apresentar as características da santidade 3
dos franciscanos, mas uma trajetória que, por sua vez, representa duas possibilidades de reconhecimento da fortuna da glória celeste: pelo rigor do seguimento da forma de vida para a comunidade primitiva ou, para as gerações seguintes, através do martírio, do sofrimento. Isto nos remete à questão dos conflitos internos da Ordem do Frades Menores que levaram a uma ramificação definitiva em 1517 através da identificação de frades conventuais e de observantes. Estes últimos destacaramse, desde o século anterior, pela tentativa de resgate da forma de vida primitiva franciscana, buscado através de atenção maior à pobreza e ao rigor penitencial. As discordâncias ou releituras entre os seguidores de Francisco de Assis quanto às características de sua forma de vida, marcam até hoje a trajetória da Ordem e podem ser identificados não somente nos textos que manifestam estes litígios, mas na sutileza das iluminuras. Referências BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção – a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GINBURG, Carlo. Olhos de Madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MENESES, Ulpiano T. B. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, vol. 23, n. 45, 2003. ODDI, Giacomo. Franceschina. (Edito dal Nicola Cavanna, OFM). Firenze: Leo S. Olschki, 1931.
A única possibilidade de exceção seria a imagem de frei Junípero, mas esse não foi apresentado em cena de martírio, mas de sofrimento físico que lhe exercitou a paciência e do qual saiu ileso.
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Angelita Marques Visalli RECHT, Roland. Le croire et le voir – l´art des cathedrales (XIIe-XVe siècle). S/L: Gallimard, 1999. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2007. SILVEIRA, Ildefonso (OFM) & REIS, Orlando (seleção e organização). São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano. Petrópolis: Vozes/CEFEPAL, 1988. VAUCHEZ, Andre. L’Ascention des laics à la vie religieuse. In: MAYEUR, Jean-Marie; PIETRI, Charles; VAUCHEZ, André; VENARD, Marc (sous la direction de). Histoire du christianisme des origines à nos jours. Paris: Desclée, 1993.
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VISALLI, Angelita Marques. Cantando até que a morte nos salve: estudo sobre laudas italianas dos séculos XIII e XIV. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2004. VISALLI, Angelita Marques. O corpo no pensamento de Francisco de Assis. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Curitiba: Faculdade São Boaventura, 2003. IV Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Trabalhos Completos. Universidade Estadual de Maringá, 6 e 7 de outubro de 2005. Maringá, 2005. Franceschina, Biblioteca Augusta de Perugia, acesso 20/01/2008, site http://cdwdoc.demo. alchimedia.it
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A Vivência do Morto: a preservação de monumentos histórico-culturais em ruínas Anna Maria de Lira Pontes Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba (2009), mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (2010). Atualmente, é professora efetiva de História pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará. Tem experiência na área de Patrimônio Histórico Cultural, com ênfase em ruínas patrimoniais, atuando principalmente nos seguintes temas: memória, identidades culturais e preservação patrimonial.
Resumo
As ruínas emergem enquanto alegoria pro meio da representação do que a edificação uma vez foi, contudo não mais o é. Também é um monumento do presente e por isso existe em correlação com a vivência das cidades e suas memórias. As ruínas, deste modo, apresentamse como um fator de afirmações coletivas, individuais e/ou nacionais a partir de sentimentos despertados por este “morto” que luta por sobrevivência e vida na sociedade a qual pertence. Neste trabalho, buscamos, então, compreender o patrimônio histórico-cultural e o debate de sua preservação a partir do pensamento de John Ruskin, Eugène Viollet-le-duc e Cesare Brandi em relação com a ação prática voltada, mais especificamente, para a ruína. A fim de, com isto, entender até onde se pode ter e vivenciar as ruínas na sociedade – um morto que vive na mesma mediante a alegoria. Palavras-chave: Patrimônio histórico-cultural; preservação; ruínas.
Abstract
The ruins emerge as an allegory through representation of what the building once was, but now it isn’t anymore. Also, they are a monument of the present and, therefore, exist in relation with the quotidian of cities and its memories. The ruins present themselves as an element of the collective, individual and national affirmations from the feelings brought up by this “dead” that struggles for survival and life in its society. In this work, we search to understand the historical and cultural patrimony and its preservation debate through the studies of John Ruskin, Eugène Viollet-le-duc and Cesare Brandi in relation to the practical action towards, specifically, the ruins. It’s aimed, in this paper, to comprehend the limits and implications in the existence of ruin in the society – the dead that lives through allegory. Keywords: Historical and cultural patrimony; preservation; ruins.
Recebido em: 25/07/2010
Aprovado em: 10/08/2010
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Anna Maria de Lira Pontes
A Vivência do Morto: a preservação de monumentos histórico-culturais em ruína
O estudo dos monumentos históricoculturais dentro de suas respectivas sociedades é essencial para o entendimento da formação e andamento das memórias locais, sejam elas relativas às estratégias de poder ou às coletividades, e da própria organização da cidade. E também, ao entender mais sobre tais memórias, passamos a compreender o posicionamento desta sociedade frente às influências e fenômenos sociológicos que esta viveu ao longo do tempo – algo de grande importância para o próprio entendimento da cidade e sua configuração espacial. Entre a memória e a preservação de espaços que se fazem de algum modo representativos para as sociedades a que pertence, o patrimônio em ruínas é, por si só, contraditório, já que reúne num único bem destruição e preservação. Ao olhar o fragmento, percebe-se o encanto dos restos que, mesmo em tal estado, contam com algo a dizer e a representar. Aquilo que foram e aquilo que são no presente desperta toda uma poética que exaltam os sentidos. E, neste meio, o próprio conceito de ruínas é algo complexo e digno de análise. Ao correlacionar a ideia de ruína com o teatro barroco alemão, Benjamin (1984) a expõe enquanto alegoria. Alegoria produzida pelo fragmentado, pelo incompleto do edifício que não existe mais. Na visão de Benjamin (1984), a ruína é suscetível à variadas interpretações, cujos resquícios rememoram o que ela um dia foi, contudo não mais o é. E é por estes vestígios que a ruína torna-se bela e fascinante, pois 46
A beleza que dura é um objeto do saber. Podemos questionar se a beleza que dura ainda merece esse nome; o que é certo é que nada existe de belo que não tenha em seu interior algo que mereça ser sabido (BENJAMIN, 1984, p. 204).
E o conhecimento na ruína se faz justamente pelo fragmento que, apesar de mutilado, conta com seu peso de representação. Não é mais apenas algo que sucumbiu com o tempo, mas um meio de se obter conhecimento de um passado que se intenta examinar ou mesmo rememorar. Além de documento, as ruínas são representações do que foram; do que passaram – de sua construção até o momento presente – e do que são. E por isso apresentam toda essa poeticidade em torno de si e de suas interpretações – diversas já que, pela ausência, pode-se imaginar e interpretar. As ruínas, por si próprias, conotam a conservação, como Brandi (2004) ressalva. Entretanto, sua manutenção na sociedade implica também a conservação de seu aspecto característico: despedaçado. E nos fragmentos que as constituem, as ruínas aparecem como espaços dignos de rememoração. Por isso, neste trabalho, intentamos analisar o que há de peculiar na visão das ruínas e no próprio pensamento em torno da preservação do patrimônio histórico-cultural a partir de três teóricos essenciais para a história do restauro de monumentos, são eles: John Ruskin, Eugène Viollet-le-Duc e Cesare Brandi. Ao longo dos anos, vários arquitetos e pensadores em geral lançaram suas opiniões
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A Vivência do Morto: a preservação de monumentos histórico-culturais em ruínas
e teorias sobre restauração de monumentos, indicando, segundo uma linha histórica de atuação destes, uma evolução da teoria da restauração até a que temos atualmente. Mas, apesar de ampla discussão, monumentos são restaurados até hoje segundo pensamentos diferentes e divergentes, de Viollet-le-Duc a Cesare Brandi. Sem contar ainda com a própria discordância de atitudes sobre o próprio benefício ou não da restauração. Tais teóricos apresentam argumentos diferenciados tanto a favor como contra a restauração ou qualquer outra ação interventiva no monumento. Podemos colocá-los em dois grupos, são eles: aqueles que são contra a restauração e aqueles que são a favor dela. E a sua visão, mais especificamente para este trabalho, é em torno da ruína e sua manutenção. Um representante dos pensadores que são contra qualquer tipo de intervenção, salvo a manutenção, é no monumento John Ruskin (1819-1900). Ele defende que o monumento siga seu rumo natural sem maiores preocupações em ações para conter um possível arruinamento. Ruskin destacou-se por sua posição considerada reacionária quanto à conservação de monumentos históricos ao afirmar sua trajetória como uma história, no qual intervenções humanas não seriam necessárias – sendo preferível a estas a própria morte do bem. Esta opinião também pode ser exemplificada por meio de seu livro Pedras de Veneza, no qual se apresenta contra o advento do Renascimento enquanto arte em Veneza, como uma forma de decadência e perda de fé da própria cidade. Para ele, a estética e a execução da obra tem uma forte correlação com a moralidade, em que o aspecto tremido advindo do artesanal é a própria presença da mão humana, que se faz na obra de arte pelo prazer e demonstração de fé do operário.
Uma vez que, para Ruskin, as ações de restauração são malvistas, a ruína, subentende-se, é, deste modo, um caminhar pelo próprio fim do monumento. O bem, com uma temporalidade determinada, é vivo enquanto vive, mas irá morrer em seu trajeto existencial. De outro lado, temos teóricos que, sob variadas dimensões de ação, apresentam sua posição quanto à preservação, aceitando-a, são eles: Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc e Cesare Brandi, entre outros. Apesar de aceitarem a restauração como uma atitude em prol do monumento, eles também apresentam discordâncias de pensamento. Viollet-le-Duc (1814-1879) defende a obra de arte seguindo para um caminho ideal não concernente a sua história e estrutura original. Segundo ele, “Restaurar um edifício quer dizer reintegrá-lo em um estado completo, que pode não ter existido nunca em um dado tempo” (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 29). Uma remodelação do antigo, que pode vir a tornar-se uma nova construção pensada pelo arquiteto do presente num esforço por um modelo melhor que o anterior, a fim de embelezar, tornar mais eficiente e/ou fortalecer estruturalmente a obra. E m s e u e s c r i t o s o b re o ve r b e t e “restauração” no Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XIe au XVIe siècle, Viollet-le-Duc critica o fanatismo com que se passa a tratar o passado, em que o novo por vezes é visto como a quebra das tradições. Segundo ele, para o sucesso de uma restauração, é preciso a execução de um relatório detalhado sobre o bem, que o arquiteto estuda previamente para só assim poder atuar neste. E, se o monumento pode ser embelezado e contar com maior eficiência estrutural com a adição de novos elementos numa restauração, assim deve-se renunciar o primitivo e fazê-lo (VIOLLET-LE-DUC,
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2000, p. 50-67). Sobre a ação do arquiteto, conclui: Deve agir como o cirurgião habilidoso e experimentado, que somente intervém em um órgão após ter adquirido o conhecimento completo de sua função e depois de ter previsto as conseqüências imediatas ou futuras de sua operação. Se for aleatório, mais vale que se abstenha. Mais vale deixar morrer o doente do que o matar (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 68).
Este conhecimento por parte do arquiteto será diferenciado conforme o espaço e a época do monumento, em que o próprio estilo ou a escola artística são modificados de local para local. Além de certificar que o monumento seja restaurado no estilo ao qual pertence, é importante que o arquiteto seja também um bom construtor e conhecedor das formas e maneiras de construção de cada época, além do conhecimento sobre os diversos períodos da arte e suas escolas (seguidas de cada estilo) dentro da arquitetura. Em relação às ruínas, Viollet-le-Duc trata da restauração como uma forma de evitálas – como o ato de salvar-se das ruínas – e, em caso de edificações neste estado ou sob ameaça de assim o ficar, admite a reconstrução. Entretanto, para que isto ocorra, é preciso cuidado a fim de que o monumento não seja falseado. [...] é necessário, antes de começar, tudo buscar, tudo examinar, reunir os menores fragmentos tendo o cuidado de constatar o ponto onde foram descobertos, e somente iniciar a obra quando todos estes remanescentes tiverem encontrado logicamente sua destinação e seu lugar, como os pedaços de um jogo de paciência (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 6970).
Dentre os teóricos que abordam o tema da restauração, é imprescindível considerar Cesare Brandi (1906 – 1988) que, em 48
seu livro Teoria da Restauração, discute os parâmetros em torno do processo de restauração e o estudo prévio que deve antecedê-la. De acordo com Brandi, a restauração tem como objetivo o restabelecimento material do suporte da obra de arte. Até porque o que faz a ela é sua representatividade e isto não pode ser subjugado na restauração – ou, então, toda a obra de arte estará comprometida. É por isso também que na restauração, para o autor, o que se deve ter como foco é a obra de arte em si, que regerá todas as ações de preservação. Por menor grau de ação que a restauração implique, será sempre uma mudança para a história da obra, e por isso esta deve ser meticulosamente analisada para só assim poder ser executada. Conforme seu pensamento, a obra de arte deve ser vista em sua unidade, em que cada parte é um componente essencial do todo. A obra, assim, deve ser vista qualitativamente e conforme o inteiro. O aspecto da imagem não deve ser mexido, o único elemento em que se pode intervir um pouco é em sua estrutura e, mesmo assim, por medidas conservativas. Ainda, é imprescindível uma análise sobre o tempo e o espaço da obra para a restauração. A restauração não é um elemento ou fase do processo artístico. Ela é algo a parte, não comum à obra de arte e que deve ser precedido de análises e pesquisas para só assim agir, considerando as instâncias estética e histórica do monumento – uma mais do que a outra segundo os critérios de valor. Na ruína, a instância que prevalece é a histórica – pelo que foi e pelo que representa no presente. Ao tratar as ruínas enquanto testemunho do tempo para o ser humano – incompleto em seu aspecto físico, mas representativo em sua historicidade – Brandi (2004) afirma a
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A Vivência do Morto: a preservação de monumentos histórico-culturais em ruínas
visão da ruína enquanto resquício com apelo intrínseco a si por ações de conservação. Ruína [...] será, pois, tudo aquilo que é testemunho da história humana, mas com um aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em relação àquele de que se revestia antes (BRANDI, 2004, p. 65).
A ruína, considerada enquanto resquícios e testemunho mutilado do monumento, conota por si própria ações de conservação. A sua restauração é, contudo, restrita apenas a ações de consolidação e conservação do contexto do monumento, uma vez que a preservação destas também implica a priorização de sua instância histórica (BRANDI, 2004, p. 65-77). Com relação à restauração, concordamos com Boito ao colocar que “[...] nenhum campo é tão difícil operar e tão fácil refletir quanto naquilo que se refere à restauração dos monumentos arquitetônicos” (BOITO, 2003, p. 53). Assim como é uma das facetas mais polêmicas das ações preservacionistas e, por isso, passível de debate também sobre a própria preservação da memória e suas implicações em meio à sociedade. Afinal, a restauração é o exemplo mais claro e tangível de uma modificação que por si própria permite a continuidade do monumento, seja transformando-se numa nova construção pelo método de Viollet-le-Duc, seja por meio de uma restauração que respeite a representatividade e historicidade do bem, como em Brandi. As mudanças e intervenções também fazem parte da história do monumento pelo fato de que tudo é história – e nada é mais importante para a compreensão atual do monumento do que sua trajetória histórica. As ruínas, em si, representam o seu uso e edifício inicial, mas emergem também
enquanto símbolos do tempo que se passou até o momento presente. Um exemplo disto são as ruínas da Igreja de Nossa Senhora do Nazaré do Almagre, em Cabedelo-PB, que representam não apenas o centro conversor indígena colonial, mas também a evolução e ocupação do bairro em que se localiza, o bairro do Poço. Teoricamente, no imaginário social o desejo mais fácil de ser percebido é o da perenidade dos monumentos, que em nada são eternos. Se sua morte é natural para seguidores de Ruskin, outros preferem o seu tratamento e recuperação num plano de fundo em que os vários “re” são constantes. Preservação, assim, é posta aqui como o referencial atual do que se quer do passado via monumentos e sua exposição às sociedades. E deste passado, nada mais do que uma seleção no presente por meio de intenções e mensagens subliminares por entre, no caso desta discussão, os monumentos históricoculturais. E nessas negociações pela memória, apesar das ruínas lembrarem a morte também suscitam força pela resistência e vontade de viver. Afinal, já poderiam ter ruído, mas ainda encontram-se de pé, lutando por um último suspiro que se pode fazer mais necessário do que seu aspecto fragilizado aparenta. Os homens não se sentem mortos face à limpeza dos locais e aos objetos conservados. Eles precisam das ruínas. [...] Esse desejo de ruínas não se refere somente a uma estética da existência, ele está presente nas construções de memória. Mesmo o edifício mais cuidado, mais preservado só ganha sentido se mostrar a imagem de seu duplo, a transparência secreta da ruína (JEUDY, 1990, p. 2-3).
Ao surgir enquanto imaginação e representação, a ruína mexe com os sentidos e permite à sociedade a qual pertence uma fruição do passado mediante a própria referência ao destruído. Para além de
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seu aspecto físico, assim, mais uma vez é a representação que emerge enquanto elemento definidor da ruína – que, para Jeudy, está mais presente do que apenas nos fragmentos de edifícios, aparece também enquanto ideia e contraponto. Até porque “O que seria do monumento sem a ruína?” (JEUDY, 1990, p. 3). Enquanto elemento em si, as ruínas despertam polêmicas entre opiniões e atitudes diversas sobre elas. Numa recapitulação entre os pensadores da restauração, podemos, por exemplo, elencar três diferentes direcionamentos possíveis acerca do tratamento dessas, que seguem da ausência de ações/manutenção à recomposição e à restauração do monumento (limitada apenas à consolidação das estruturas e a manutenção do aspecto da ruína). Ao se tratar delas, assim, é preciso um cuidado particular a cada caso – para que não se subscreva seu valor ou mesmo consuma o uso do espaço. Afinal, em cada caso, todas as opções podem, de fato, ser cabíveis. Para além da visão negativa da ruína, enquanto o perdido, ela também evoca aquilo que se mantém – que se recusa a ser esquecido, mesmo que sob fragmentos. E, nesta alusão à própria memória, que vive no limiar entre manutenção e esquecimento, as ruínas se fazem necessárias em si e, como afirmado por Jeudy (1990), em todos os monumentos histórico-culturais. Afinal, as sociedades precisam do passado para referenciarem enquanto grupos sociais e, neste raciocínio, precisam das ruínas. Referências ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução Pier Luigi Cabra. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1998.
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A Fotografia nas Revistas Culturais Latino-Americanas:
as experiências das revistas S. Paulo (Brasil, 1936) e Rotofoto (México, 1938) Carlos Alberto Sampaio Barbosa Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor de História da América na Universidade Estadual Paulista, Câmpus Assis. Autor de A fotografia a serviço de Clio: uma interpretação da história visual da Revolução Mexicana (1900-1940) e A Revolução Mexicana, ambos pela Editora da UNESP.
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar uma comparação entre duas revistas culturais que tiveram vida efêmera na década de 1930 em seus respectivos países. Um ponto em comum é que ambas utilizaram a fotografia como elemento central em sua estrutura de comunicação. Será abordada a revista São Paulo, editada no Brasil no ano de 1936, em contraponto com a revista Rotofoto, publicada no México apenas durante o ano de 1938. Esta pesquisa faz parte de um projeto mais amplo, em que se procura refletir com relação à circulação de ideias culturais e políticas entre o México e o Brasil, na primeira metade do século XX. Procurou-se examinar, em especial, como repertórios visuais comuns entre os dois países se constituíram, no que diz respeito à produção de imagens carregadas com uma retórica do engajamento político que contribuíram para a construção do imaginário político latino-americano. Palavras-chave: Fotografia; revistas; cultura visual; comparação.
Abstract
The aim of this paper is to present a comparison between two cultural magazines that had a short life in the 1930s in their respective countries. A point in common is that both used photography as a central element in its communication structure. Discuss the magazine São Paulo, published in Brazil in 1936, against Rotofoto magazine published Mexico only during 1938. This research falls within a broader project in which I reflect with the movement of cultural ideas and policies between Mexico and Brazil in the first half of the twentieth century. I seek in particular to examine whether common visual repertoires formed between the two countries, both in the production of images loaded with rhetoric of political engagement and contributed to the construction of the Latin American political imagination. Keywords: Photography; magazines; visual culture; comparison.
Recebido em: 15/10/2010
Aprovado em: 10/11/2010
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Introdução O objetivo deste artigo é apresentar uma comparação entre duas revistas culturais que tiveram vida efêmera na década de 1930 em seus respectivos países: a revista São Paulo, editada no Brasil no ano de 1936, em contraponto com revista Rotofoto, publicada no México apenas durante o ano de 1938. Busco examinar em especial como repertórios visuais comuns entre os dois países que contribuíram para a construção do imaginário político latino-americano se constituíram. Esta pesquisa faz parte de um projeto mais amplo, no qual procuro refletir com relação à circulação de ideias culturais e políticas entre o México e o Brasil na primeira metade do século XX. Embora minha intenção não seja de uma análise exaustiva, procuro averiguar diferentes suportes imagéticos, como, por exemplo, as fotografias estampadas na imprensa diária, assim como nas revistas ilustradas, cartazes, gravuras e demais expressões artísticas que subsidiaram essa circulação de ideias estéticas e políticas entre ambos os países. Parto da hipótese de que embora as dificuldades de contatos existentes entre o México e o Brasil, devido à diferença linguística, distância e falta de um contato maior entre seus intelectuais, ocorreram intercâmbios de propostas políticas e culturais
principalmente entre redes de sociabilidade de artistas e intelectuais. Dentro desta problemática mais ampla é que se insere a comparação entre essas duas revistas. Cabe dizer, com relação às balizas temporais, que este período foi marcado pela fundação de diversas revistas culturais (Amauta – Peru, Avance – Cuba, Martin Fierro, Nueva Revista – Argentina) (SCHWARTZ, 1995). As revistas culturais, a propósito, foram os grandes veículos das vanguardas e, na dimensão visual, suporte de novas experiências imagéticas sempre com forte conteúdo político. As revistas terão um papel decisivo para a fotografia e as imagens de uma forma geral. No caso da fotografia, cabe lembrar que é nesse período que surge o fotojornalismo moderno com o advento das grandes revistas ilustradas como a Vu (1928) francesa e a Life (1936) norte-americana (SOUGEZ, 2007). Nos âmbitos dos países que averiguamos neste artigo, surge no México em 1927 a revista Todo, dirigida por Félix Palavicini, e na década posterior com as revistas Hoy (1937) e Rotofoto em 1938, ambas dirigidas pelos irmãos Regino e José Pagés Llergo. Foram nestas publicações que surgiu o advento de um fotojornalismo moderno naquele país (MONROY NARS, 2003). No caso brasileiro, mais próximo do nosso leitor, a grande referência foi a revista O Cruzeiro (1928).2
Este artigo foi apresentado em forma de comunicação no 9º. Encontro Internacional da Associação Nacional de Pesquisadores de História das Américas, numa Mesa Redonda denominada “Cultura Visual e Imaginário Político nas Américas”, evento realizado nas dependências da UFG, na cidade de Goiânia em 2010. 2 Para um aprofundamento da discussão sobre a estética moderna e o fotojornalismo, assim como a revista O Cruzeiro, veja COSTA, Helouise. Um olho que pensa: estética moderna e fotojornalismo. 1998. Tese de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, São Paulo, 1998. 1
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Veremos também o surgimento de revistas populares e engajadas politicamente, tais como a Arbeiter Illustrierte Zeitung – AIZ na Alemanha em 1921. Este magazine de sensibilidade comunista estampava em suas páginas fotomontagens antifascistas como, por exemplo, os trabalhos do alemão John Heartfield. Enquanto que, do outro lado do Reno, na França surgia a revista Regards em 1932, publicação de linha comunista, que tornou público fotografias de Robert Capa, Gerda Taro e Henri Cartier-Bresson. São dois exemplos de revistas que impulsionaram o fotojornalismo moderno e, neste sentido, anteciparam-se à revista Life e Vu e mesmo à Paris Match (1949). As revistas S. Paulo e Rotofoto circularam em momentos de ascensão de governos que adotaram a política de massas nos dois países. No Brasil, Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930 com um golpe de Estado, instituindo o Estado Novo em 1937. No México, Lázaro Cárdenas chegou ao poder em 1934, com o apoio do “Chefe Máximo”, Plutarco Elias Calles, título conferido ao ex-presidente pelo controle que exercia tanto sobre o Partido Nacional Revolucionário, como sobre a estrutura burocrática do Estado mexicano e dos próprios presidentes que o sucederam.3 Entretanto, Cárdenas em 1935 rompeu com Calles e a partir deste momento realizou um governo de reformas radicais que concluiu o projeto da Revolução Mexicana. Ambas as revistas apresentam-se como plataformas privilegiadas para o estudo comparativo destes dois países e a cultura
visual que se estabeleceu nessas duas sociedades. Meu objetivo é flagrar como duas revistas culturais, voltadas para um público mais amplo, veicularam em suas páginas o momento político dos dois países. Revista S. Paulo A Revista S. Paulo circulou apenas ao longo do ano de 1936. Periódico mensal foi lançado em 31 de dezembro de 1935 e publicou somente 10 números, sendo o último referente aos meses de novembro e dezembro de 1936. Revista de grande formato (45 cm por 33 cm) era impressa no sistema de rotogravura.4 Este sistema permitia uma excelente qualidade para as imagens fotográficas estampadas em suas páginas. Algumas imagens podiam ser inseridas em páginas que se desdobravam no sentido horizontal, tornando-as duplas (45 x 66 cm.). Alguns números possuíam versões de pequenos trechos para o inglês. Era vendida em banca e por assinatura, sua primeira tiragem atingiu a cifra de 40.000 exemplares, número grandioso para a época, e o sucesso fez com que seus organizadores lançassem uma segunda tiragem.5 A direção da revista coube a Cassiano Ricardo (1895-1974) e Menotti Del Picchia (1892-1988). A dupla participou da Semana de Arte Moderna e posteriormente fundou os grupos Verde Amarelo e Anta, juntamente com Plínio Salgado e Raul Bopp. Intelectuais com importante atuação cultural e política nas décadas de 1920 e 1930, participaram
Plutarco Elias Calles foi presidente mexicano entre 1924 e 1928, neste ano fora eleito Álvaro Obregón, mas durante as comemorações de sua escolha foi assassinato por um militante católico radical. Com o vazio no poder, a Assembleia Nacional escolhe Emilio Portes Gil, sucedido por Pascual Ortiz Rubio e Abelardo Rodrigues, entretanto, Calles permaneceu como o verdadeiro chefe máximo do poder no México até a eleição de Lázaro Cárdenas em 1934. 4 Rotogravura é um processo de heliogravura que utiliza fôrma cilíndrica de cobre para impressão rotativa, ou seja, uma heliogravura rotativa. Uma das primeiras publicações em rotogravura em São Paulo foi o Suplemento em Rotogravura distribuído pelo O Estado de S. Paulo, que circulou entre 1930 e 1944, exemplo seguido pelo Diário de S. Paulo. Estes suplementos procuravam fazer frente às revistas ilustradas da época como A Cigarra e Fon-Fon, embora se diferenciem pelo projeto gráfico. 5 As referências que utilizo neste artigo para discutir a revista S. Paulo são tributárias do artigo de Ricardo Mendes (1994) e Boris Kossoy (2004). 3
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Capa da revista S. Paulo, dez. 1935
da fundação e edição de outros jornais e revistas. As fotografias foram feitas por Benedito Junqueira Duarte (1910-1995) em conjunto com o fotógrafo alemão radicado no Brasil Theodor Preising. Cabe falar destes fotógrafos, mesmo que brevemente. Theodor Preising6 nasceu em Hildesheim, na Saxônia (Alemanha), em 3 de janeiro de 1882. Sabemos pouco de seu aprendizado fotográfico, apenas que iniciou o ofício fotografando turistas em cidades balneárias como Baden-Baden e, para além de suas atividades como retratista, interessavase pelo registro da natureza. Fundou seu ateliê em Berlim em data possivelmente anterior a 1914 e em seguida casou-se com Elizabeth
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Elfride Koesewitz, com quem teve três filhos. Com a deflagração da Primeira Grande Guerra, foi convocado para servir no Exército, período em que sua esposa manteve em funcionamento o estabelecimento. Diante da recessão econômica e crescente inflação que assolava a Alemanha do pós Primeira Guerra Mundial, ele decidiu emigrar para a América do Sul. Viajou primeiro só, em 1923, e após uma breve passagem pelo Rio de Janeiro resolveu conhecer São Paulo, cidade que lhe pareceu promissora. Entre 1923 e 1924 preparou a viagem de sua esposa e filhos, enquanto dedicava-se ao ofício fotográfico. Por volta de 1926 ou 1927, Elizabeth Slavick, sua antiga laboratorista de Berlim, decide
Estes dados foram retirados de Boris Kossoy, que condensou informações de entrevista concedida a ele por Sibile Preising, filha do fotógrafo.
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emigrar para o Brasil e torna-se a principal auxiliar no trabalho de Preising no Brasil. Toda a família era participativa na montagem e acabamento dos álbuns de vistas que produzia. Benedito Junqueira Duarte, em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som, refere-se a Preising como um fotógrafo extremamente técnico e muito influenciado pelos modernistas. Teria sido o responsável pela introdução e difusão da câmara Leica e do formato 35 mm na cidade (KOSSOY, 2004, 404). Benedito Junqueira Duarte (1910-1995) nasceu em França no interior de São Paulo em 1910, e era irmão de Paulo Duarte, importante intelectual com participação ativa na vida política e cultural brasileira do século XX. Com onze anos foi para Paris morar com seus tios, onde aprendeu o oficio de fotógrafo no estúdio montado na residência deste. Após trabalhar em estúdios parisienses, retornou para o Brasil em 1929 e rapidamente se inseriu no mundo cultural da cidade. Trabalhou no jornal Diário Nacional e também foi contratado pela Prefeitura para ser responsável pela Seção de Iconografia da Divisão de Documentação Social e Estatísticas Municipais do Departamento Municipal de Cultura. Era encarregado do registro fotográfico das atividades desenvolvidas pelo Departamento de Cultura e da própria prefeitura (KOSSOY, 2004, 435). Foi o responsável pela localização, organização, conservação, preservação e identificação de fotografias de Aurélio Becherini, produzidas entre 1870 e 1930, material que se encontrava esquecido nos porões da prefeitura. Para este trabalho, contou com a ajuda do historiador Nuto Sant’Anna. Trabalhou no Departamento até 1951 e aposentou-se da Prefeitura em 1965. BJ Duarte, como também era conhecido, trabalhou nos mesmos anos em que Mário
de Andrade estava à frente do Departamento de Cultura, e também esteve ligado ao Foto Cine Clube Bandeirante. Em paralelo as suas atividades como fotógrafo, realizou documentários cinematográficos de temas médicos além de crítica de cinema. É difícil a caracterização da revista S. Paulo, pois não existem informações suficientes para afirmarmos que era um órgão de propaganda política do governo Armando Salles Oliveira. Entretanto Cassiano Ricardo havia sido auxiliar de gabinete e depois secretário do governador e contribuiu para a organização da propaganda oficial com a criação do Serviço de Publicidade e Informação. Mas os exemplares da revista não trazem nenhuma informação da participação direta da máquina estatal, embora a temática seja a modernização do Estado e nos quais textos do governador apareçam publicados. Provavelmente serviria como um instrumento de propaganda para sua candidatura à presidência da república planejada para o ano seguinte. Contava com um projeto gráfico ousado, em que era privilegiada a imagem e especialmente a fotografia. Algumas características do projeto gráfico da revista era a subordinação do texto à imagem; a dissolução dos artigos dentro das imagens (imagens vazadas); o uso de grades flexíveis (vinhetas, contornos); a diagramação em páginas duplas e triplas com dobras e página cartaz; a manipulação do texto como objeto visual (letras cursivas e tradicionais, textos vazados, textos em negativo e positivo); e a fotomontagem (MENDES, 1994). A fotomontagem ocupou um papel importante dentro deste projeto gráfico. Recurso já conhecido de editores, fotógrafos e público em geral, desde o final do século XIX e início do XX, em especial a partir dos anos 1910. Lembremos que o fotógrafo
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Valério Vieira já havia utilizado esta técnica em sua famosa fotografia Os Trinta Valérios (1900). Também podíamos encontrá-las em reportagens esportivas e revistas ilustradas. Jorge de Lima utilizava-se desta técnica desde final dos anos 1930 e a prática ficou materializada na publicação do livro A pintura em pânico de 1943. O projeto gráfico se aproxima de outras experiências visuais da época, em especial do cinema. Uma citação clara de afinidades no tratamento da imagem visual da cidade é o filme São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929) de Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig. Benedito Bastos Barreto, Belmonte (1896-1947) afirma a respeito da revista S. Paulo, comparando-a com outras experiências da época que “Faltava-nos a revista-cinema [...] Nós queríamos ‘ver para crer’, isto é queríamos ser homens do nosso século, folheando uma revista como se estivéssemos assistindo a um filme cinematográfico” (MENDES, 1994, 92). A autoria do projeto gráfico é uma incógnita. No Expediente da revista não se indica um responsável. Em memórias e outras publicações de Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, mencionam a participação de Lívio Abramo (1903-1992) como ilustrador e participante das fotomontagens, embora não o citem como responsável pelo projeto como um todo. Supõe-se provavelmente que seja um projeto coletivo com influências das fotomontagens dadaístas da época. Um dos temas mais relevantes na revista, como indica Ricardo Mendes, é a própria cidade de São Paulo, principalmente nas imagens de edifícios em obras, de cenas de multidões e as ações do Estado. Mesclam-se também imagens do bandeirante, e seu valor de liderança que denota o papel do Estado no desenvolvimento nacional. Marcantes também são as indústrias representadas pelas 58
imagens de chaminés e fábricas. As fotografias estampadas, que remetem à ferrovia e ao porto, estão ligadas ao transporte, e por que não à velocidade, tema caro aos movimentos de vanguardas, mas também ao comércio e circulação de mercadorias e, portanto, ao progresso econômico. Em termos verbais, algumas dessas recorrências são reforçadas como a inserção das expressões: “edifícios modernos”, “maior centro industrial da América Latina”, uma das poucas cidades com mais de um milhão de habitantes e a cidade que constrói “três casas por hora”. Tal síntese foi aglutinada no Manifesto Bandeirante, publicado na revista. Entretanto, enquanto a imagem da indústria é exaltada, não há fotografias da produção, e mesmo as imagens coletivas de trabalhadores ou da população, em geral, aparecem apenas em manifestações políticas, desfiles, eventos públicos e carnavais. As imagens recorrentes são das obras, de construção, da engenharia civil, da verticalidade que a cidade ganha e que denotam o caráter empreendedor do paulista (MENDES, 1994). A revista estava inserida na proposta de propaganda da ideia do moderno de viés nacionalista, materializados no manifesto Bandeira e no livro Marcha para o Oeste de Cassiano Ricardo. Vai destacar a valorização de São Paulo e seus políticos e pujança econômica com termos como “Raça Paulista” e apoio à administração estadual, o desenvolvimento da indústria, comércio e agricultura, como demonstram a afirmação de que a revista era “Órgão documental das realizações paulistas”. O projeto editorial e os recursos visuais buscam reforçar o apelo político-ideológico em torno da figura do governador Armando de Salles Oliveira com forte tom épico. Foi um instrumento de propaganda política, baseado na construção gráfica do moderno em torno dos recursos
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visuais vanguardistas, mas não encobre seu tom ambíguo e mesmo conservador. Revista Rotofoto Foi publicada entre maio e junho de 1938, e saíram à luz apenas 11 números. Possuía uma periodicidade semanal e sua dimensão era de 19,5 x 27,5 cm. Portanto, era um pouco menor que a Revista S. Paulo. A capa era em papel rústico e saia com 32 páginas. Seu fundador foi José Pagés Llergo, que em conjunto com seu irmão Regino foram responsáveis por vários projetos editorias do México dos 1930, tais como as revistas Hoy, Mañana e Sempre!. Possuía características
peculiares para a época em termos de formato e conteúdo. Privilegiou a imagem e a fotografia em seu discurso gráfico. A fotografia era um elemento central além de possuir um forte tom irônico e do humor como crítica política e cultural. Sua proposta editorial privilegiava o discurso visual como fator central de comunicação jornalístico. Os fotojornalistas adquiriam papel central nesse discurso, com destaque para Enrique Diaz, Antonio Carrillo Jr., Enrique Delgado, Luis Farías, Luis Olivares, Luis Zendejas, Ismael e Gustavo Casasola. Este último foi responsável por uma inovação no discurso com a “entrevista fotográfica”, consistindo em documentar visualmente quadro a
Capa do primeiro número da revista Rotofoto, maio/junho de 1938
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quadro as atitudes e gestos dos entrevistados, quando estes respondiam as perguntas do entrevistador. Enrique Diaz foi outro fotógrafo fundamental no projeto da revista Rotofoto. Iniciou seu trabalho fotográfico nos periódicos El País, El Heraldo e El Democrata, e esteve presente nas principais publicações ilustradas mexicanas, algumas junto com os irmãos Pagés Llergo como a Hoy e Siempre!. Fundou uma agência de imagens ainda nos anos 1920, a Fotografías de Actualidades. Retomando a discussão do projeto gráfico da revista, a fotografia era o eixo central da estratégia de comunicação e subordinava o texto aos ditames da imagem. Entretanto, os textos possuíam uma importância dentro da estratégia narrativa da publicação, pois davam um complemento à informação visual. Os textos eram escritos pelo próprio José Pagés Llergo, Salvador Novo e René Capistrán Gaza. Salvador Novo foi um personagem destacado da vida intelectual mexicana de então. Poeta, ensaísta, dramaturgo e historiador, participou da fundação da revista Contemporáneos em 1928,7 e se contrapunha ao grupo dos Estridentistas liderados por Manuel Maples Arce, Leopoldo Méendez, Germán List Arzubide, entre outros. Ambos os grupos foram responsáveis pela renovação da cultura e das artes mexicanas nas décadas de 1920 e 1930, período conhecido como de institucionalização da Revolução e de embates em torno do que seria a “cultura revolucionária”. A fotografia na revista Rotofoto assumiu uma atitude de crítica cultural, ao abordar a imagem com humor e ironia. As imagens estampadas nas páginas da publicação vão destacar a relação entre vida pública e vida
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privada de importantes personagens da vida política e cultural mexicana. Inaugurou um caminho novo no fotojornalismo mexicano, na medida em que procura incorporar uma fotografia com característica da caricatura política e do humorismo político. Algo inusual para a fotografia da época. Buscou surpreender os personagens públicos (políticos ou culturais) em atitudes incomuns, fazendo uma crítica relacionada ao contexto político, social e intelectual do momento. Com a utilização de aspectos jocosos, buscou desmistificar e desconstruir o jornalismo da grande imprensa que não ousava criticar esses mesmos personagens. Assumiu então uma atitude anticonvencional, antissolene e irreverente. Tal atitude leva a considerar a revista como de oposição ao governo, o que se soma à posição de centro direita dos irmãos Pagés Llergo. Tal atitude já está explícita em seu primeiro número, quando coloca o presidente Lázaro Cárdenas comendo com a mão, sentado em um petate8 com camponeses. Outro exemplo desta abordagem foi quando realizaram uma reportagem do gabinete presidencial, e do próprio presidente Cárdenas, na praia de Acapulco deitados na areia com roupas de banho, como se fossem cidadãos comuns em um momento de descanso em suas férias no litoral. Em outra fotorreportagem que se tornou famosa, flagram o presidente e seu gabinete banhando-se em um rio com trajes sumários. As legendas em tom irônico, como era o costume da publicação, fazem comparações dos membros do gabinete e do presidente com Fadas e Ninfas; faziam relações entre os aspectos físicos dos personagens e ao trabalho político destes
Participou em conjunto com outros intelectuais como Xavier Villaurrutia, Jaime Torres Bodet, José Gorostiza, Carlos Pellicer, Jorge Cuesta e Bernardo Ortiz Montellano. Esteira feita de palha muito usada no México como uma espécie de colchão ou para sentar.
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A Fotografia nas Revistas Culturais Latino-Americanas: as experiências das revistas...
(MONROY NARS, 2003, p.217). As imagens apresentam uma intimidade pouco usual para época, e seu impacto visual era carregado de uma significação simbólica e política. Outras reportagens que obtiveram grande repercussão foi o registro de deputados dormindo durante sessões da câmara, e quando surpreende o chefe de polícia Federico Montes Alanís em um cochilo. A metáfora da reportagem levava imediatamente a uma pergunta: Como o principal responsável pela segurança da capital dormia em suas funções? As reportagens e, principalmente, as fotografias revelam as debilidades humanas dos respectivos protagonistas, deputados e chefe de segurança, que deveriam estar atentos às atividades legislativas ou à segurança da Cidade do México, acarretando um descrédito dos funcionários e órgãos públicos. Outra reportagem de capa, que utilizase de uma imagem da cotidianidade, mas que carrega um forte conteúdo crítico, é a foto do Senador Padilla mordendo um típico taco e com o uso das legendas estabelece uma ironia com o posto político e a corrupção. A legenda diz “O Senador Padilha resolve aferrar-se ao osso”. Devido à contundência de suas reportagens, sofreram um ataque dos militantes da Confederación de Trabajadores de México9 que queimaram suas instalações. A revista teve uma vida curta, e existem duas versões acerca dos motivos de sua extinção: a primeira argumenta que foi devido à fotorreportagem em que flagra Cárdenas e seu gabinete banhando-se no rio; uma segunda versão dá conta que o periódico foi 9
extinto depois de uma reportagem sobre o caudilho Saturnino Cedillo que rompeu com Cárdenas e pegou em armas.10 O importante é que a revista foi fechada devido à censura política, depois de reportagens críticas que atingiram políticos e sindicalistas e em função do posicionamento político dos irmãos Pagés Llergo, mais à direita no espectro político mexicano da época. Conclusão Ambas as revistas circularam em uma época marcada pelo auge das revistas ilustradas e da ascensão da indústria cultural de massas, assim como estavam inseridas em momentos políticos marcantes na história dos dois países. No caso brasileiro, durante o período varguista, a revista S. Paulo era porta voz do governador Armando Salles Oliveira e servia como veículo de propaganda para uma possível candidatura presidencial que, ao final, não aconteceu devido ao golpe e instauração do Estado Novo e à suspensão das eleições. No caso mexicano, o ano de 1938 representou o auge da política reformista de Cárdenas com a nacionalização das ferrovias e da indústria petrolífera, a reforma agrária, com a implantação em larga escala dos ejidos coletivos, e a aproximação dos sindicatos trabalhistas. Ambas as revistas utilizaram a fotografia e as imagens como elemento central de seu projeto gráfico. As publicações se aproximavam por caminhos distintos de uma proposta inovadora de uso dos recursos iconográficos. A publicação brasileira mais por um viés modernista, e por que não dizer,
Comandada por Vicente Lombardo Toledano, importante líder sindical e político mexicano entre os anos 1930 e 1950. Saturnino Cedillo foi um importante caudilho do estado de San Luis Potosi. Apareceu no cenário nacional a partir da Revolução Mexicana, de posturas ambíguas e contraditórias lutou contra Porfírio Diaz, aproximou-se do Zapatismo e do Villismo e depois dos presidentes da chamada “dinastia sonorense” (Álvaro Obregón e Plutarco Elias Calles). Chegou a ser Ministro da Agricultura no governo Cárdenas, mas rompeu com este e se rebelou. As tropas federais debelaram o conflito e num enfretamento com as forças oficiais foi morto em janeiro de 1939.
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Carlos Alberto Sampaio Barbosa
vanguardista. Utilizou ferramentas como as fotomontagens e recursos visuais para enaltecer o desenvolvimento do estado de São Paulo e de seus políticos numa possível disputa com Getúlio Vargas. A revista mexicana inovou principalmente na abordagem das fotografias de características mais testemunhal e realista, mas numa aproximação de uma estética da caricatura e de uma crítica política ao governo Lázaro Cárdenas. Seus editores de tendências de centro-direita colocavam-se em oposição ao presidente mexicano. As duas experiências estavam inseridas numa cultura visual moderna que se pautava pela utilização das imagens como expressão de projetos políticos e culturais. As duas se dispunham nos polos oposicionistas de seus respectivos governos, mesmo que de forma ambígua. Experiências efêmeras, foram expoentes de divulgação de uma proposta de informação cultural e visual representativas de grupos políticos oposicionistas e foram projetos caudatários de experiências visuais modernas e vanguardistas. Referências BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. A fotografia a serviço de Clio: uma interpretação da história visual da Revolução Mexicana (1900-1940). São Paulo: Editora da UNESP, 2006. ______. “Imagens em Diálogo: Cultura Visual no Brasil e México em Perspectiva Comparada”. In: revista Patrimônio e Memória, Assis, CEDAP/ UNESP, v. 6, n. 1, jun. 2010, p.105-120.
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Fotografia: Arte ou Ciência?
Fabiane Muzardo Possui graduação em História pela Universidade Estadual de São Paulo – Unesp – e mestrado em História pela Universidade de Londrina – UEL. Atualmente é professora de História Moderna na Universidade Norte do Paraná – Unopar.
Resumo
O presente artigo aborda as discussões sobre a fotografia, desde seu surgimento, no século XIX, quando era vista ora como arte, ora como ciência; e seu uso no discurso historiográfico. Aborda, também, possíveis metodologias de análise, tendo como base a criada por Boris Kossoy. Palavras-chave: Fotografia; representação; história cultural.
Abstract
This article deals the discussions about photography, since its emergence in the nineteenth century, when it was sometimes as art, sometimes as a science, and its use in the historiographic discourse. Also addresses possible methods of analysis, based on the created by Boris Kossoy. Keywords: Photography; representation; cultural history.
Recebido em: 10/07/2010
Aprovado em: 15/08/2010
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Fabiane Muzardo
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a ser anunciado, o qual estaria relacionado, como afirma Francesca Alinovi,
Introdução A proposta central do presente artigo é a discussão sobre a possibilidade da fotografia alinhavar um debate entre os historiadores da arte e os historiadores da cultura. É necessário salientar que o referido artigo situa-se no âmbito da história cultural e, portanto, traz para si suas metodologias e conceitos. O caminho escolhido para fornecer escopo para tal debate foi o de analisar o surgimento da fotografia já em um espaço dicotômico, ou seja, em uma linha tênue entre ciência e arte. Posteriormente, traçar uma espécie de percurso histórico, trazendo para a discussão a postura de diversos pesquisadores a respeito da fotografia. A análise, então, tem como foco principal a descoberta da medida na qual a fotografia pode ser parte da construção do discurso histórico. Fotografia, a “Arte Mecânica” ou “Ciência Artística” Na metade do século XIX, quando a fotografia surgiu, a ciência e a arte traçavam percursos distintos. Enquanto aquela enaltecia o rigor metodológico e técnico, esta se abria para a subjetividade e livre criação, uma vez que havia sido liberada do trabalho de imitar a natureza e as demais coisas existentes. Nesse meio, surgia a fotografia, que ora se assemelhava com a ciência, ora com a arte. Um problema, portanto, estava prestes
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[...] com a dupla natureza de arte mecânica: a de ser um instrumento preciso e infalível como uma ciência e ao mesmo tempo, inexata e falsa como a arte (apud FABRIS, 1998, p. 173).
Segundo Annateresa Fabris, a fotografia representava, paralelamente, uma cópia da realidade, fato que é posto em dúvida atualmente; e uma criação artística: a razão e a emoção. Encarnaria, portanto, “a forma híbrida de uma ‘arte exata’ e, ao mesmo tempo, de uma ‘ciência artística’” (FABRIS, 1998, p. 173). O discurso defendido era que uma máquina não possibilitava interferência intelectual sobre sua representação, não devido, necessariamente, ao fato de não haver interferência manual do operador, do fotógrafo, mas por estar muito mais voltada para o mecânico do que para o intelecto. A discussão quanto a ser uma arte ou uma ciência exata nos leva a várias possibilidades. Primeiramente, não se pode abolir o caráter artístico da fotografia, visto que ela envolve construção, fantasia, desejos, maneiras de manipular e registrar a realidade, elementos como cores, luz, sombra, planos e calor, portanto, não lhe faltam o “sopro da inspiração” e o “fogo do pensamento” – expressão utilizada por Francis Wey para caracterizar sua percepção sobre a exatidão e falta de emoção do ato fotográfico. Para ele, a fotografia é “uma fiel representação
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dos objetos exteriores”, longe da verdadeira natureza da arte (apud FABRIS, 1998, p.179). Seu caráter científico, contudo, também não pode ser descartado, pois a evolução tecnológica influencia a maneira de se realizarem as fotografias, sua construção e disseminação, entretanto, mesmo as ciências mais exatas, como a matemática, possuem uma dimensão social, a qual é cada vez mais analisada por sociólogos, que verificam os “processos implicados na construção social do conhecimento científico” (CHALMERS, 1994, p. 13). Ainda no século XIX, a difusão da fotografia provocou um forte abalo no meio artístico. Primeiramente achava-se que a fotografia e sua capacidade de reproduzir o real tinham relegado a um segundo plano qualquer tipo de pintura. Mais tarde, acreditava-se que o mesmo fato tinha liberado a “verdadeira arte” da necessidade de ser uma cópia do real, dando-lhe espaço para a criatividade, ideia que foi defendida por artistas e intelectuais da época, como o poeta Baudelaire, o qual [...] enfatiza a separação arte/fotografia, concedendo a primeira um lugar na imaginação criativa e na sensibilidade humana, própria à essência da alma, enquanto à segunda é reservado o papel de instrumento de uma memória documental da realidade, concebida em toda a sua amplitude (MAUAD, 1996 p. 2).
Analisada dessa maneira, a fotografia incumbia-se do real e do racional, e as demais artes encarregavam-se do emocional e do criativo, ou seja, não necessariamente ligados ao mundo real. Note-se, nesse momento, a crença na ligação entre fotografia e realidade, a imagem produzida pela câmera como sendo um espelho do que de fato aconteceu. Interessante ressaltar, quanto a isso, que quando a imagem analógica é criada, nossa
percepção segue sempre a ideia que ela nos trouxe, dito em outras palavras, passamos a analisar todas as imagens, alegóricas e analógicas, seguindo os ditames desta última. Pode-se dizer que a própria história da fotografia confunde-se com as diferentes abordagens aplicadas em sua análise, ora encarando-a como uma transformação do real – o discurso do código e da desconstrução –, ora como um vestígio do real, uma referência, ou seja, algo que não é uma cópia perfeita do concreto, do real, visto que o modifica e possui características distintas, como a bidimensionalidade e o fato de selecionar pontos no espaço e no tempo; além de ser um resíduo da realidade impresso em uma imagem, e, portanto, uma transformação da realidade, uma interpretação desta (MAUAD, 1996). Como afirma William Meirelles, em História das Imagens: uma abordagem, múltiplas facetas, [...] uma imagem não é apenas um conjunto composto por linhas, cores, luz ou sombra; uma imagem não é apenas uma questão de forma. Assim como as formas moldam, elas são moldadas pelas configurações históricas da cultura, através de uma complexa rede de relações (MEIRELLES, 1995 p. 101).
Ou seja, assim como os textos escritos são constituídos por jogos de palavras, as imagens são formadas a partir de jogos de elementos que influenciam sua leitura, direcionam o pensamento, sem, contudo, determinar a maneira como ela será interpretada. Segundo Roland Barthes (1984), um texto escrito não é somente o que se tem em mãos, algo físico, uma simples montagem de palavras, e sim uma construção que depende do autor, do leitor e do meio, formando uma espécie de tripé. Teoria essa também defendida por Mauad, a qual ressalta a
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integração desses três elementos no resultado final: o locus de produção e um produtor, um leitor ou destinatário, e por fim um significado aceito socialmente como válido. Quanto à imagem, pode-se, portanto, dizer algo semelhante, afinal ela depende da visão do autor que vai produzi-la; do leitor que vai olhá-la e interpretá-la a sua maneira; e do meio, visto que este influencia tanto no momento de sua constituição quanto nas futuras análises que serão feitas sobre ela. Com isso, é correto afirmar que tanto a construção da imagem quanto sua análise são interpretações do real, maneiras de se registrar e de enxergar um momento vivido. Outra observação pode ser feita quanto a isso. Como afirma Peter Burke, pode-se dizer que: [...] leitores de imagens que vivem numa cultura ou num período diferente daqueles no qual as imagens foram produzidas se deparam com problemas mais sérios do que leitores contemporâneos à época da produção. Entre os problemas está o da identificação das convenções narrativas ou ‘discurso’ (BURKE, 2004, p. 180).
Assim, as relações sociais, o pensamento e a conduta de cada momento, dentre outros, estão inseridos em suas imagens, e são mais perceptíveis para seus coetâneos do que para pessoas de fora desse meio, os quais possuem outras linguagens, outras maneiras de ver o mundo e de representá-lo. Como ressalta Schaeffer, temos de ter em conta que [...] a recepção das imagens depende essencialmente de nosso conhecimento do mundo, sempre individual, diferente de uma pessoa para outra, e não possuindo traços de codificação (apud GONÇALVES, 2001 p. 1).
Dito em outras palavras, além de variar de acordo com a época, as maneiras de 66
leitura variam também de acordo com cada indivíduo. Discorrendo sobre o papel do leitor da imagem, Mauad afirma que: [...] a compreensão da imagem fotográfica pelo leitor/destinatário dá-se em dois níveis, a saber: - nível interno à superfície do texto visual, originado a partir das estruturas espaciais que constituem tal texto, de caráter não-verbal; e - nível externo à superfície do texto visual, originado a partir de aproximações e inferências com outros textos da mesma época, inclusive de natureza verbal. Neste nível, podemse descobrir temas conhecidos e inferir informações implícitas (MAUAD, 1996 p. 9).
Kossoy também aborda a questão da recepção das imagens por outras gerações, dizendo que elas seguem sendo interpretadas muito depois de realizadas, sendo que seus significados oscilam de acordo com [...] a ideologia de cada momento e a mentalidade de seus usuários. Muitas vezes – as imagens – são ocultadas ou omitidas por longos períodos. Desaparecem dos diálogos, permanecem no silêncio; ou então são adoradas nas sombras, nos submundos, crescem de importância com as mudanças políticas, saem às ruas com os fanatismos, são louvadas pelas massas, outra vez (KOSSOY, 2005 p. 39).
Assim como pode ser vista como uma representação do real, a fotografia pode simbolizar a necessidade de prolongar uma existência, prolongando o contato com algo que deixará de existir em instantes. Pode-se dizer, portanto, que o ato fotográfico, ao mesmo tempo em que representa o real, seleciona o que será recordado, ou, até mesmo, influencia os acontecimentos que se tornarão significativos posteriormente. Todavia, como afirmar que o objeto registrado possuía realmente significância? Ou que, pelo contrário, seu registro produziu tal significado?
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Segundo Kossoy e Chartier – buscando a origem filológica do termo – vê a representação como algo que substitui aquilo que se encontra ausente. Para Kossoy, contudo, a fotografia não é mera substituição do objeto ou do ser ausente: É necessário compreender que a representação fotográfica pressupõe uma elaboração na qual uma nova realidade é criada em substituição ‘daquilo que se encontra ausente’; tal se dá ao longo de um complexo processo de criação do fotógrafo (KOSSOY, 2005 p. 41).
Como afirma Ana Maria Mauad, deve-se compreender a fotografia como uma escolha efetuada em um conjunto de escolhas então possíveis, o que também é defendido por Susan Sontag, que vê a maneira como, na câmara, a realidade é apenas uma das possibilidades dentre tantas outras (apud BORGES, 2003 p. 85). Michel de Certeau ressalta a importância de se trabalhar com o não dito, com o silêncio das obras (1982), algo que é de possível percepção nas imagens fotográficas, já estas podem ser emolduradas de acordo com a vontade existente, ignorando certos aspectos e ressaltando outros. Nas obras analisadas isto é mais visível nas fotos de manifestações, nas quais os participantes não carregam nenhum tipo de objeto de ataque, como armas e objetos cortantes, por exemplo, o que não significa a inexistência destes, podendo simplesmente ter sido ignorados, retirados do enquadramento da fotografia. Podemos levantar hipóteses para tentar explicar o motivo que leva um fotógrafo a escolher determinado objeto e não outro qualquer, a ressaltar determinadas características e a ignorar outras. Segundo Barthes (1984), pode-se dizer que, à primeira vista, o cinema tem um poder que a fotografia não tem: a tela não é um
enquadramento, e sim um esconderijo; o personagem que sai dela continua a viver, um campo cego duplica incessantemente a visão parcial. Na fotografia, enquanto isso, uma vez ultrapassado o enquadramento por ela imposto, tudo nela representado morre de maneira absoluta: Quando se define a foto como uma imagem imóvel, isso não quer dizer apenas que os personagens que ela representa não se mexem; isso quer dizer que eles não saem, estão anestesiados e fincados, como borboletas (BARTHES, 1984, p. 86).
Para ele, a fotografia comprova a existência dos acontecimentos registrados, algo que só não acontece no caso de fotomontagens, as quais chama de trapaceiras. Ou seja, o objeto, no caso a fotografia, pode influenciar com sua representação, contudo, ela comprova que os fatos registrados aconteceram não necessariamente da maneira como foram retratados; assim como as pessoas, que de fato viveram em algum momento. A fotografia é indiferente a qualquer revezamento: ela não inventa, é a própria autenticação, os raros artifícios por ela permitidos não são probatórios; são, ao contrário, trucagens: a fotografia só é laboriosa quando trapaceia. Trata-se de uma profecia ao contrário: como Cassandra, mas com os olhos fixos no passado, ela jamais mente: ou antes, pode mentir quanto ao sentido da coisa, na medida em que por natureza é tendenciosa, jamais quanto a sua existência. Impotente para as idéias gerais (para a ficção), sua força. Todavia, é superior a tudo o que o espírito humano pode e pôde conceber para nos dar garantia da realidade – mas também essa realidade é sempre apenas uma contingência (BARTHES, 1984 p. 129).
Dito em outras palavras, citando Lewis Hine, pode-se ressaltar que as fotografias não mentem, mas mentirosos podem fotografar (apud BURKE, 2004 p. 25), ou seja, a
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fotografia jamais mente no que diz respeito à existência do objeto capturado, de fato ele esteve lá, mas pode mentir quanto ao que nos é dito sobre o que representa. Como afirma Mauad, a facilidade de mentir da imagem fotográfica é algo que aumenta a cada dia, visto que [...] a revolução digital, provocada pelos avanços da informática, torna cada vez maior esta possibilidade, permitindo até que os mortos ressurjam para tomar mais um chope, tal como a publicidade já mostrou (MAUAD, 1996 p. 15).
Contudo, [...] não importa se a imagem mente; o importante é saber por que mentiu e como mentiu. O desenvolvimento dos recursos tecnológicos demandará do historiador uma nova crítica, que envolva o conhecimento das tecnologias feitas para mentir (MAUAD, 1996 p. 15).
O congelamento de objetos por meio da fotografia faz com que objetos, mesmo ausentes, sejam (re)apresentados eternamente, por meio da reconstituição de histórias contadas a partir de imagens fragmentadas. Segundo Kossoy, pela fotografia, podemos dialogar com o passado: aprender, recordar e criar novas realidades, tornando-nos verdadeiros “interlocutores das memórias silenciosas que ela mantém em suspensão” (KOSSOY, 2005, p. 49.). Suspensão esta que, às vezes, deixa essas imagens esquecidas por algum tempo, para, num segundo momento, retornarem com o mesmo significado ou com modificações, “num fascinante processo de criação/construção de realidades – e de ficções” (KOSSOY, 2005 p. 36). Segundo Mauad, [...] as fotografias guardam, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que
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as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser recuperam o seu caráter de presença, num novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com este presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática a ser estudada (MAUAD, 1996, p.10)
Para Kossoy, a fotografia é sempre ambígua, independentemente de ser digital ou analógica, visto que ao mesmo tempo em que pode servir como uma evidência, ou como denunciadora de algo, pode ser uma ferramenta de propaganda. O documento fotográfico se presta à denúncia social como também à publicidade; foi usado pela antropologia física do século XIX (no contexto dos preceitos positivistas, do darwinismo social e do colonialismo), para documentar os seres primitivos das terras “exóticas”, como também no ateliê dos artistas-fotógrafos, para o registro desses mesmos seres posando enquanto modelos diante de cenários europeus para coleções iconográficas. Uma imagem-‘testemunho’ que, dependendo das palavras que a rodeiam, transforma-se em imagem ‘comprobatória’ de pseudo-inferioridades raciais, sociais, religiosas. Temos visto ao logo da história como se constroem esses estigmas. Assim construímos realidades — e, portanto, ficções documentais (KOSSOY, 2005 p. 39-40).
Apesar das ambiguidades, reconstituir é preciso, daí a necessidade de metodologias para podermos nos comunicar com a imagem, decifrar seus códigos e analisar seus silêncios. Em meio a tantas construções e representações, como sustentar que uma fotografia possa ser um objeto de análise notório e digno de confiança? Ou,
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como indaga Ulpiano Bezerra de Meneses, qual a natureza do objeto material como documento, em que reside sua capacidade documental, como pode ele ser suporte de informação? (MENESES, 2003). Parte daí os questionamentos quanto à possibilidade de se trabalhar tal objeto e até sobre que ponto ele é realidade ou ficção, dentre outras indagações. É fato que a linguagem visual tem uma grande importância para a análise histórica, afinal a linguagem é a base do discurso histórico, e esta compreende a escrita, a fala e a visão. Aristóteles trabalhou com a ideia de que o conceito é a própria existência, isto é, o ato de se conceituar torna a coisa passível de ser estudada, transforma algo em fenômeno, independentemente de sua existência. Ora, o conceito nada mais é do que linguagem; o mundo é, portanto, aquilo que a linguagem pode perceber. Outro fato é que a disseminação cada vez maior das imagens impede que se ignore esse campo de investigação, aumentando, assim, o campo de análise dos historiadores, incluindo objetos que antes não faziam parte do que era considerado importante para a averiguação, como o cinema, festas populares e a própria fotografia. A independência da história em relação aos textos escritos e a busca por abordagens não tradicionais levaram os historiadores a ampliarem seu universo de fontes. Isso aumentou gradativamente à medida que tais pesquisadores se aproximavam das demais ciências, como a sociologia ou a antropologia, por exemplo. Como afirma Roger Chartier, os historiadores incorporaram objetos de outras disciplinas: vida/morte, relações familiares, sociabilidade e atitudes religiosas; numa verdadeira constituição de novos territórios por meio da anexação de territórios outros (CHARTIER, 1990).
Diz-se agora que um homem avisado possui visão, numa explícita valorização de um dos sentidos. Contudo, numa sociedade consumidora de imagens como a nossa, o próprio conceito de imagem, por ser tão abrangente, acaba sendo vago em inúmeras situações. Tudo é imagem, uma propaganda é imagem, assim como um filme, um desenho; de acordo com a tradição cristã o próprio Deus nos criou a sua imagem e semelhança. Em meio a um horizonte tão vasto, percebese um sentimento de vazio. Desde cedo convivemos com imagens e por isso acreditamos ter um tipo de conhecimento natural sobre elas, a capacidade de identificá-las e interpretá-las ao vê-las, devido, principalmente, a sua universalidade, sem necessitar de um maior conhecimento sobre o assunto. Crença que fez com que, por exemplo, o cinema mudo fosse encarado muitas vezes como uma linguagem universal, e o cinema falado como uma particularização e uma espécie de isolamento (JOLY, 1996). Essa ideia de conhecimento natural, intrínseco às pessoas, é descartada por Martine Joly, em seu livro Introdução à Análise da Imagem, no qual afirma que existe uma diferença sensível entre identificar, saber do que se trata; e interpretar, pelo simples fato de a arte ser mais voltada para o emocional do que para o racional, ressaltando, inclusive, que nem os próprios autores conseguem identificar todas as possíveis interpretações de suas obras, surgindo muitas vezes a pergunta fatídica: será que o autor quis dizer tudo isso? (JOLY, 1996). Pode-se dizer que reconhecer e interpretar são duas ações complementares, mas nunca simultâneas, visto que a análise e a interpretação exigem um aprendizado, tanto do assunto quanto da própria obra, da sua constituição. No caso da imagem, há aspectos como profundidade, utilização de
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cores, dimensões, movimentos ou ausência deles, alusões à temperatura ou até mesmo a cheiros. Enquanto, no que se refere à interpretação, por ninguém dominar toda a significação da imagem representada, analisá-la consiste mais em tentar buscar o que ela significa no presente, ressaltando suas influências no aqui e agora, do que tentar esgotar todas as possíveis visões da obra, algo impossível, por sinal. Isso, claro, sem perder de vista as circunstâncias em que ela foi produzida; ou seja, assim como qualquer mensagem não pode arrogar uma interpretação unívoca, a interpretação desta não pode ser ilimitada, pois tem limites e regras de funcionamento. É possível afirmar, como o faz Mirzoeff, tornando a cultura o traço definidor de seu estudo, que a visualização caracteriza o mundo contemporâneo, não significando, contudo, que conheçamos aquilo que observamos. A distância entre a riqueza da experiência visual na cultura contemporânea e a habilidade para analisar esta observação cria a oportunidade e a necessidade de converter a cultura visual em um campo de estudo (apud SARDELICH, 2006 p. 211).
Vale lembrar também que, apesar de muitas imagens representarem o mundo real, elas foram criadas por mãos humanas, que capturam a realidade de acordo com seu enfoque, sua escolha, dando maior ou menor ênfase ao que desejarem, sendo literalmente uma imagem em construção, passível de diferentes determinações e influências. Afinal, toda fotografia é um congelamento de determinado episódio numa certa época e local, realizado a partir do desejo de um indivíduo ou de um conjunto de indivíduos. Como diz Kossoy, “a imagem fotográfica é o que resta do acontecido, fragmento
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congelado de uma realidade passada” (KOSSOY, 1989 p. 22). Devido a isso, é correto afirmar que o mesmo objeto pode ser representado sob diferentes pontos de vista. Provavelmente é esse um dos maiores encantos da imagem, senão o maior deles. Da mesma forma, o objeto podendo ser produzido de diversas formas também pode ser analisado de diferentes formas, sem perder, contudo, um padrão de análise e um objetivo final. Se interpretar é atribuir um significado, como afirma Joly, é também atribuir um significado claro a algo obscuro, ou seja, a interpretação de mensagens, visuais e audiovisuais em particular, abrange decifrações e explicações, a fim de compreender e/ou fazer compreender. Entretanto, o uso de fontes iconográficas por historiadores, como ressalta Ciro Flamarion Cardoso em Iconografia e História, [...] tem estado quase sempre vinculado ao estudo das mentalidades, das ideologias do imaginário. Isto, todavia, nada tem de necessário. Feitas as críticas externa e interna dos documentos iconográficos, é perfeitamente possível e útil empregar fontes assim também em análises econômico-sociais de tipo histórico (CARDOSO, 1990 p. 17).
A fonte iconográfica, assim como as demais, necessita ser confrontada com os documentos de todos os tipos a que se tiver acesso, deve ser analisada a partir de determinada metodologia, deve ser questionada quanto a suas intenções, autores e público alvo, dentre outros. Porém, não pode se limitar a aspectos tidos como ficcionais, afinal ela possui partes reais e ficcionais, assim como quaisquer outros documentos, e pode fazer parte da construção do discurso histórico em todos os seus aspectos, incluindo o político e o econômico. Além do que, como afirma Jorge Meyer, tão pouco são os temas o que define a história cultural,
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e sim os modos de situar-se e de tratar as fontes (MEYER, 2005). Tal posicionamento também é defendido por Bourdieu, o qual consagra a ideia de que o valor de um objeto de investigação depende dos interesses do investigador, ou seja, da análise e do questionamento deste (BOURDIEU, 1979). Note-se, com isso, que o uso de imagens na historiografia, apesar de estar em contínuo crescimento, sofre demasiadas restrições no âmbito acadêmico, muitas vezes ligadas, segundo Cunha (apud SARDELICH, 2001), à resistência de alguns teóricos em aceitar a aproximação, o rascunho, o movente, a criação, a imaginação e os sentimentos como campos que tecem o itinerário argumentativo do conhecimento. Historicamente, ler uma imagem é mais do que apreciá-la superficialmente, analisar o seu esqueleto, visto que ela é uma construção realizada em determinado momento e lugar, quase sempre pensada e planejada, e, portanto, manipulada, visando um público específico. Para isso, um cenário é montado para representar uma realidade ou alterar uma realidade de acordo com os desejos em jogo. Contudo, sendo real ou artificial, verdadeira ou falsificada, a imagem construída não existe fora de um contexto, o qual é encontrado tanto no interior quanto no exterior da imagem. O interior corresponderia aos próprios elementos da imagem, o vestuário, a postura dos retratados, o cenário, dentre outros. O exterior, por sua vez, seria representado pelas técnicas empregadas – as quais podem ser inovadoras ou não – que dariam o próprio suporte da imagem. Surgiria assim a metodologia utilizada para a realização e a interpretação de uma fotografia, na qual, como afirma Kossoy, existem três elementos básicos a serem analisados: o assunto, o fotógrafo
e a tecnologia. A escolha do assunto a ser retratado, a organização dos detalhes que compõem o assunto selecionado, a utilização de recursos para seu enquadramento, tudo influi no resultado final e configuram a atuação do fotógrafo enquanto filtro cultural. As crenças e ideologias do fotógrafo transparecem em sua obra, ora de maneira facilmente detectada, ora com maior dificuldade de percepção. Por ser um fragmento congelado do passado, toda fotografia tem atrás de si uma história, e daí advém a necessidade de se considerar informações fundamentais que responderiam indagações do tipo: como as imagens foram geradas? Por quem? Para quem? Por quê? Como afirma Mauad, o papel e importância do fotógrafo numa imagem, assim como a influência das técnicas empregadas, são evidentes, [...] porém, há que se concebê-lo como uma categoria social, quer seja profissional autônomo, fotógrafo de imprensa, fotógrafo oficial ou um mero amador “batedor de chapas”. O grau de controle da técnica e das estéticas fotográficas variará na mesma proporção dos objetivos estabelecidos para a imagem final. Ainda assim, o controle de uma câmara fotográfica impõe uma competência mínima, por parte do autor, ligada fundamentalmente à manipulação de códigos convencionalizados social e historicamente para a produção de uma imagem possível de ser compreendida. No século XIX, este controle ficava restrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionais que manipulavam aparelhos pesados e tinha de produzir o seu próprio material de trabalho, inclusive a sensibilização de chapas de vidro. Com o desenvolvimento da indústria ótica e química, ainda no final dos Oitocentos, ocorreu uma estandardização dos produtos fotográficos e uma compactação das câmaras, possibilitando uma ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. No início do século XX, já era possível contar com as indústrias Kodak e a máxima da fotografia amadora: “You press the botton, we do the
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Fabiane Muzardo rest”. É importante levar em conta também que o controle dos meios técnicos de produção cultural envolve tanto aquele que detém o meio quanto o grupo ao qual ele serve, caso seja um fotógrafo profissional. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que o controle dos meios técnicos de produção cultural, até por volta da década de 50, foi privilégio da classe dominante ou frações desta (MAUAD, 1996, p. 8-9).
Kossoy, por sua vez, também analisando a influência do fotógrafo e das técnicas empregadas, afirma que [...] a manipulação é inerente à construção da imagem fotográfica. Isto é verdadeiro para a fotografia dos dias de hoje, de base digital, como, também, para as imagens do passado, elaboradas pela técnica do colódio úmido. Nos conteúdos dos documentos fotográficos se agregam e se mesclam informações e interpretações: culturais, técnicas, estéticas, ideológicas e de outras naturezas que se acham codificadas nas imagens. Essas interpretações e/ou intenções são gestadas (antes, durante e após a produção da representação) em função das finalidades a que se destinam as fotografias, e refletem a mentalidade de seus criadores (KOSSOY, 2005, p. 39).
Dessa maneira, como afirma Bourdieu, pode-se dizer que [...] la fotografía más insignificante expresa, además de las intenciones explícitas de quien la ha tomado, el sistema de los esquemas de percepción, de pensamiento y de apreciación común a todo un grupo (BOURDIEU, 1979. p. 4).
Ainda segundo Bourdieu, Las normas que organizan la captación fotográfica del mundo, según la oposición entre lo fotografiable y lo no-fotografiable, son indisociables del sistema de valores implícitos propios de una clase, de una profesión o de una capilla artística, de la cual la estética fotográfica no es más que um aspecto, aun cuando pretenda, desesperadamente, la
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autonomía. Comprender adecuadamente una fotografía, ya sea su autor un campesino corso, un pequeñoburgués de Boloña o un profesional parisino, no es solamente recuperar las significaciones que proclama, es decir, en cierta medida, las intenciones explícitas de su autor; es, también, descifrar el excedente de significación que traiciona, en la medida en que participa de la simbólica de una época, de una clase o de un grupo artístico (BOURDIEU, 1979 p. 4).
Comparando as artes tidas como consagradas e a fotografia, Bourdieu ainda afirma que Teniendo en cuenta que a diferencia de las actividades artísticas plenamente consagradas, como la pintura o la música, la práctica fotográfica es considerada como accesible a todos —tanto desde el punto de vista técnico como económico— y que quienes se entregan a ella no se sienten condicionados por un sistema de normas explícitas y codificadas, y definiendo la práctica legítima en su objeto, sus ocasiones y su modalidad, el análisis de la significación subjetiva u objetiva de los objetos confieren a la fotografia como práctica o como obra cultural, aparece como un medio privilegiado de aprehender en su expresión más auténtica, las estéticas (y las éticas) propias de los diferentes grupos o clases y, particularmente, la “estética” popular que puede, excepcionalmente, ponerse de manifiesto en ella. En efecto, cuando todo haría esperar que esta actividad sin tradiciones y sin exigencias pudiera abandonarse a la anarquía de la improvisación individual, resulta que nada tiene más reglas y convenciones que la práctica fotográfica y las fotografías de aficionados: las ocasiones de fotografiar, así como los objetos, los lugares y los personajes fotografiados o la composición misma de las imágenes, todo parece obedecer a cánones implícitos que se imponen muy generalmente y que los aficionados advertidos o los estetas perciben como tales, pero solamente para denunciarlos como falta de gusto o de torpezas técnicas (BOURDIEU, 1979, p. 4-5).
Vale sempre ressaltar, ainda, a necessidade de se acabar com a ideia de que a fotografia é um documento do real, uma cópia perfeita
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e inquestionável do passado. Muitas vezes deixa-se de lado a compreensão das particularidades da imagem e da linguagem fotográfica, reforçando assim o equívoco de que os homens e mulheres viviam exatamente da maneira como foram retratados, por exemplo. Vista desse modo, a fotografia ascende a uma posição de testemunho puro do real, transforma-se num verdadeiro espelho do passado. Fala por si só, não necessitando do emprego de metodologias para dialogar com o presente, como se nos mostrasse o passado de maneira objetiva, autoelaborando-se, sem nenhum tipo de intervenção humana, desejo ou tendência. Pode-se dizer que esse tratamento dado à fotografia é idêntico ao que os historiadores deram aos documentos considerados como fonte de pesquisa histórica no século XIX. Dentro da história narração, somente cabia aos historiadores a tarefa de coletar documentos oficiais, verificar sua autenticidade e colocá-los dentro de uma sequência temporal e espacial, sem nenhum tipo de questionamento e de análise. Se hoje a fotografia é utilizada como fonte, documento e objeto de análise é porque os historiadores não mais se orientam pelos fundamentos metódicos dessa história positivista. As noções de denotação e conotação teriam sido introduzidas no modelo de leituras de imagens pela faceta semiótica. A denotação diria respeito ao que se vê na imagem, a sua, pode-se dizer, objetividade, a descrição dos seus elementos representados, como situações, cenários, pessoas, ações e tempo. Já a conotação corresponderia às possíveis interpretações da obra, àquilo que a imagem sugere e/ou faz pensar o leitor. No que diz respeito à análise de imagens, Mauad afirma que
[...] na qualidade de texto, que pressupõe competências para sua produção e leitura, a fotografia deve ser concebida como uma mensagem que se organiza a partir de dois segmentos: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais como enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor etc. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a fotografia. Ambos os segmentos se correspondem no processo contínuo de produção de sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-los somente como um todo integrado (MAUAD, 1996 p. 10).
Continuando sua análise sobre técnicas de apreciação de uma fotografia, Mauad cria uma lista de aspectos a serem abordados, que comporiam a estruturação final da análise, a saber: - espaço fotográfico: compreende o recorte espacial processado pela fotografia, incluindo a natureza deste espaço, como se organiza, que tipo de controle pode ser exercido na sua composição e a quem este espaço está vinculado – fotógrafo amador ou profissional –, bem como os recursos técnicos colocados à sua disposição. Nesta categoria estão sendo consideradas as informações relativas à história da técnica fotográfica e os itens contidos no plano da expressão – tamanho, enquadramento, nitidez e produtor – que consubstanciam a forma da expressão fotográfica; - espaço geográfico: compreende o espaço físico representado na fotografia, caracterizados pelos lugares fotografados e a trajetória de mudanças ao longo do período que a série cobre. Tal espaço não é homogêneo, mas marcado por oposições como campo/cidade, fundo artificial/natural, espaço interno/ externo, público/privado etc. Nestas categorias estão incluídos os seguintes itens: ano, local retratado, atributos da paisagem, objetos, tamanho, enquadramento, nitidez e produtor; - espaço do objeto: compreende os objetos fotografados tomados como atributos da
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Fabiane Muzardo imagem fotográfica. Analisa-se, nesta categoria, a lógica existente na representação dos objetos, sua relação com a experiência vivida e com o espaço construído. Neste sentido, estabeleceuse uma tipologia básica constituída por três elementos: objetos interiores, objetos exteriores e objetos pessoais. Na composição do espaço do objeto estão incluídos os itens tema, objetos, atributo das pessoas, atributo da paisagem, tamanho e enquadramento; - espaço da figuração: compreende as pessoas e animais retratados, a natureza do espaço (feminino/masculino, infantil/adulto), a hierarquia das figuras e seus atributos, incluindo-se aí o gesto. Tal categoria é formada pelos itens pessoas retratadas, atributos da figuração, tamanho, enquadramento e nitidez - espaço da vivência (ou evento): nela estão circunscritas as atividades, vivências e eventos que se tornam objeto do ato fotográfico. O espaço da vivência é concebido como uma categoria sintética, por incluir todos os espaços anteriores e por ser estruturada a partir de todas as unidades culturais. É a própria síntese do ato fotográfico, superando em muito o tema, à medida que, ao incorporar a idéia de performance, ressalta a importância do movimento, mesmo em imagens fixas. Ou, para utilizar-se a terminologia de CartierBresson, trata-se do movimento de quem posa ou é flagrado por um instantâneo e do movimento de quem monta a cena ou capta o “momento decisivo” (MAUAD, 1996 p. 13-14).
Até porque, de acordo com Maria Eliza Linhares Borges, a dimensão analógica da fotografia não faz de suas imagens fotográficas uma mera reprodução do real, tendo em vista que as imagens fotográficas são representações bidimensionais de uma realidade tridimensional. Esse aspecto, por si só, insere a fotografia no universo representacional próprio dos signos visuais fixos (BORGES, 2003). Para Boris Kossoy, a relação entre verdade e mentira na fotografia é muito complexa e ambígua, pois o pesquisador entende a fotografia como um registro e não como um detector de verdades.
Cabe-nos perguntar quais são os questionamentos e as dúvidas levantadas quando o objeto a ser analisado constituiuse de fotografias. Afinal, em que medida a fotografia pode nos ajudar a promover um diálogo entre os historiadores da arte e os da cultura? Aliás, até que ponto essas ciências não se misturam? W. Benjamin sugeriu que em vez de se refletir sobre “a fotografia como arte” – debate que, segundo ele, estava em pauta desde a criação desse tipo de imagem –, os estudiosos passassem a pensar a “arte como fotografia”, quer dizer, reconhecessem a arte enquanto um tipo de representação.
[...] confirmação muda de conhecimento produzido a partir de outras fontes, ou o que é pior, de simples indução estética em reforço ao texto, ambientando afetivamente aquilo que de fato contaria (MENESES, 2003, p. 21).
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A matéria prima da imagem fotográfica é a aparência — selecionada, iluminada, maquilada, produzida, inventada, reinventada — objeto da representação. A fotografia se refere, portanto, à realidade externa dos fatos, das fantasias e das coisas do mundo e nos mostra uma determinada versão iconográfica do objeto representado, uma outra realidade: a realidade fotográfica, isto é, uma segunda realidade (KOSSOY, 2005 p. 40).
O que se percebe, segundo Ulpiano, contudo, é a utilização de imagens, na maior parte das vezes, como mera ilustração, de
Entretanto, Ulpiano, assim como questiona a utilização de imagens como mera ilustração, ressalta exceções importantes no trabalho com esse objeto, como as iniciativas da história da fotografia e da imagem fotográfica em [...] absorver problemáticas teórico-conceituais, a sensibilidade para a dimensão social e histórica dos problemas introduzidos pela
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Fotografia: Arte ou Ciência? fotografia, multiplicando-se os enfoques: ideologias, mentalidades, tecnologia, comercialização, difusão, variáveis políticas, instituição do observador, estandardização das aparências e modelos de apreensão visual, quadros do cotidiano, marginalização social, etc (MENESES, 2003 p. 21).
O autor ressalta ainda o investimento em documentação, com a organização de bancos de dados, a maioria já informatizados. Assinala também pontos positivos no estudo da imagem, levantando insuficiências da prática atual da História no referido campo, em especial o da fotografia, como o desconhecimento da problemática da representação, o teto limitado às questões da mentalidade e do imaginário, como já mencionado, e o uso de uma semiótica a-historicizada, dentre outras (MENESES, 2003). Pode-se transformar as imagens em reais objetos de pesquisa, papel que ela não desempenha. As imagens não devem constituir objetos de investigação em si, mas vetores para a análise da sociedade: armas utilizadas para exprimir aspectos relevantes de sua organização, funcionamento e transformação. Segundo Ulpiano, [...] estudar exclusiva e preponderantemente fontes visuais corre sempre o risco de alimentar uma ‘História Iconográfica’, de fôlego curto e de interesse antes de mais nada documental. Não são pois documentos os objetos da pesquisa, mas instrumentos dela: o objeto é sempre a sociedade (MENESES, 2003, p. 28).
Instrumento este que não busca substituir a linguagem escrita, e sim ser adicionado a ela, para intensificar a análise do objeto desejado. No entanto, às vezes, tal postura é negligenciada por uma formação essencialmente logocêntrica.
Por não ter um sentido intrínseco, as imagens só o produzem via interação social, ou seja, por meio do tempo, espaço, lugares, circunstâncias e agentes. Não há, portanto, como se limitar a procura do sentido próprio da imagem, de uma significação original, ou seja, buscar o que o autor quis dizer, suas subjetivações. É necessário fazer a imagem falar, por meio de seu emprego em situações, retraçar sua biografia, carreira e trajetória. Ou seja, analisá-la como algo construído com objetivos específicos numa dada sociedade, para ser vista por contemporâneos seus, mas também por outras gerações. Isso significa a existência de um direcionamento de leitura, não um manual preestabelecido e imutável. Ainda segundo Ulpiano, deve-se tomar as coisas visuais antes de mais nada como coisas, que se podem prestar a usos muito diversificados, de acordo com a situação em que estiverem inseridas (MENESES, 2003, p. 29). A mesma imagem pode, portanto, ser reciclada, assumir vários papéis, possuir inúmeras conotações e efeitos distintos. Dessa forma, é possível concluir que assim como os demais tipos de documentos, a fotografia e outras fontes iconográficas, demandam uma análise metodológica específica. Qualquer fonte exige um olhar que desmistifique a ideia de que exista uma representação perfeita e fechada do passado. Ficção e realidade são componentes de quaisquer fontes documentais. Sendo assim, derrubar as fronteiras que ainda distanciam os historiadores da arte e os da cultura só pode ser enriquecedor, ainda que gere polêmicas, para a construção de um discurso histórico consistente. Referências BARTHES, R. A Câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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Imagens das Mulheres na Imprensa Comunista Brasileira (1945/1957)
Juliana Dela Torres Possui graduação em História e Mestrado em História Social pela Universidade Estadual de Londrina.
Resumo
A imprensa comunista brasileira, com a legalidade do Partido Comunista do Brasil em 1945, passou a contar com vários jornais, revistas, romances e panfletos, entre outras formas impressas. Em suas publicações, foram utilizados diversos recursos imagéticos: ilustrações, gravuras, caricaturas, charges e histórias em quadrinhos. Tais imagens, assim como os textos, são interessantes meios de evidência histórica, pois suas representações trazem indícios a respeito de determinado período, grupo ou sociedade. Verifica-se que a presença de imagens femininas nas publicações comunistas mostra a importância desse segmento para os projetos do PCB. Neste artigo, analisam-se as constantes temáticas apresentadas na arte visual das páginas dos periódicos comunistas que focalizaram a mulher. Comenta-se sobre a ênfase em desenhos do cotidiano delas diante dos problemas rotineiros e sobre o destaque para a necessidade de melhor organização entre elas. Observa-se que, a partir das figuras expressivas de tristeza e de desânimo, frente às dificuldades e também das imagens de mulheres engajadas, o PCB procurava causar reflexão e conscientização nas mulheres a fim de que elas agissem. Palavras-chave: Imagem; representação; mulher; Imprensa Comunista Brasileira.
Abstract
The Brazilian Comunist Press, under the legality of the Brazilian Comunist Party in 1945, started to count on various newspapers, magazines, romances and handouts, among other kinds of companies. In their publications, many image resources were used such as: ilustrations, prints, caricatures, charges and comics. Such images, as well as the texts, are interesting means of historical evidences, because their representations bring marks of a determinned period, group or society. The presence of female images verified in comunist publications exposes the importance of this segment for the PCB project. In this article, the constant thematics presented in the visual art from the pages of comunist newspapers which focus on women are analised. The emphasis on women’s daily drawings showing their routine problems and the focus on the necessity of a better organization among them are commented. It is observed that, starting from their expressive figure of sadness and discourage in face of the difficulties contrasted with the images of socially integrated women, the party aimed to cause refletion and awarness on women so they would act. Keywords: Image; representation; women; Brazilian Comunist Press. Recebido em: 10/05/2010
Aprovado em: 15/06/2010
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Introdução As constantes veiculações das imagens de mulheres na imprensa comunista brasileira são evidências de sua importância para os projetos do Partido Comunista do Brasil (PCB). Neste artigo, temos como objetivo analisar as temáticas constantemente trabalhadas pelos artistas, os quais colaboraram com seus traços para os periódicos comunistas. O recorte temporal em questão abarca o período de maior produção dessa imprensa. Em 1945, o PCB foi legalizado e era considerado um partido das massas; conseguiu, por essa razão, conquistar espaço considerável no cenário político nacional. No período de sua legalidade, de 1945 a1947, sua imprensa contava com uma grande rede de jornais, revistas, romances, panfletos e outros materiais. Naquele momento, muitos intelectuais brasileiros contribuíram para essa rede de imprensa. A participação dos intelectuais e artistas nas páginas dos periódicos comunistas só diminuiu depois, entre 1956 e 1957. Muitos militantes e simpatizantes romperam com o PCB em virtude da divulgação do relatório do dirigente do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev, denunciando a intolerância, a repressão e o abuso de poder da “Era Stalin”. Durante vários anos, entretanto, as edições
do PCB contaram com tal contribuição, principalmente de artistas, os quais, por meio de seus traços, demonstravam a preocupação com uma arte de caráter crítico-social e “realista”. Em meio a um número expressivo de imagens, encontramos uma quantidade significativa de referências à mulher e a sua importância nos movimentos relativos ao partido e a sua ideologia. Para realizar a análise a que nos propomos, neste trabalho usamos cinco jornais editados no Rio de Janeiro e uma revista editada em São Paulo, todos de circulação nacional e pertencentes à imprensa comunista brasileira: os jornais A Classe Operária, Voz Operária, Tribuna Popular, Imprensa Popular e Momento Feminino, e a revista Fundamentos. Buscamos observar a representação visual da mulher, sobretudo no que se refere a sua participação nas atividades e ideais comunistas, difundida pelos referidos periódicos por meio de seus recursos imagéticos. Como os jornais selecionados foram editados na cidade do Rio de Janeiro, muitas reportagens destacavam assuntos relacionados aos problemas vividos pela população carioca na época, mas que também eram sentidos em outros Estados: a falta de gêneros alimentícios de primeira necessidade, de moradia, de transporte, de educação, entre outros temas. Apesar disso, sendo publicações produzidas na então
As ideias apresentadas neste artigo foram baseadas na Dissertação de Mestrado A representação visual da mulher na imprensa comunista brasileira (1945/57), sob orientação do professor Dr. Alberto Gawryszewski.
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Imagens das Mulheres na Imprensa Comunista Brasileira (1945/1957)
Capital Federal, local sede do partido, com vistas a circular por todo o Brasil, os periódicos enfatizavam as principais propostas do PCB e traziam orientações e assuntos relacionados ao movimento comunista mundial. A História das mulheres, a História de gênero, já atingiu um respeitável espaço na historiografia. Tendo como objeto de estudo as mulheres, é importante ficarmos atentos às questões de gênero. Joan Scott (1990, p.14) destaca que o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os dois sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder.
Dentro do contexto pesquisado, as representações de gênero apresentado pelo discurso da “grande imprensa” atribuíam ao feminino a maternidade e os cuidados com o lar. Em nossa abordagem estaremos observando quais foram os referenciais utilizados pela imprensa comunista com relação às mulheres. Vale dizer também que estamos trabalhando com um período pós-guerra. Durante a segunda guerra, objetivando suprir a falta de mão de obra masculina ou até mesmo na busca de dar conta das despesas do lar, pudemos assistir a inserção de um número expressivo de mulheres no mercado de trabalho. Sendo assim, além do trabalho do lar, as mulheres passaram a ocupar cada vez mais o espaço fora do lar, como, por exemplo, as fábricas. Visando a entender a importância da representação da mulher na arte visual da imprensa comunista brasileira, desenvolvemos, primeiramente, importantes considerações teóricas sobre a imagem e a imprensa como fonte histórica. Para tanto, apresentamos abordagens que consideram esse tipo de
documento parte material das relações sociais, evidência. Abordamos também a necessidade de trabalharmos com conceitos como representação e imaginário ao efetivar a análise proposta. Embora o trabalho tenha como objeto central a imagem, não podemos esquecer que se trata de um recurso visual presente em periódicos; em virtude disso, é necessário localizarmos as imagens a partir do contexto e imaginário da imprensa política em que eram veiculadas. Sendo assim, posteriormente à discussão sobre a imagem como fonte de pesquisa, comentamos acerca da imprensa comunista brasileira e do debate artístico na busca de uma arte para o povo. Na sequência, analisamos a visualização das mulheres, focalizando as diferentes imagens as quais mostraram seus problemas cotidianos na época e a ênfase em desenhos cujo objetivo era promover a organização e a participação das mulheres brasileiras nas lutas empreendidas pelo partido. A imagem como fonte de pesquisa Como nos ensina Ulpiano T. Bezerra de Meneses (2003, p.14), é importante incluir a materialidade das representações visuais nas pesquisas, pois elas participam das relações sociais. Peter Burke (2004, p. 11), nessa esteira, mostra que, assim como textos e testemunhos orais, as imagens constituem-se numa interessante forma de evidência histórica. Dentro dessa perspectiva, o pesquisador pode observar os traços, sinais, detalhes, ou seja, indícios de sentidos, decifrando e interpretando uma realidade opaca (GINZBURG, 1989, p.177). Como as imagens de nosso estudo são parte integrante de materiais jornalísticos, é importante lembrarmos Maria Helena Rolim Capelato (1988, p. 13). Segundo ela,
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a imprensa permite amplo conhecimento do passado, visto que “registra, comenta e participa da história”. Para Ana Cristina Teodoro da Silva (1998, p. 2), o estudioso, ao usar a imprensa como fonte de pesquisa, deve estar com seu olhar atento, utilizando como aparato conceitual as representações. Ao analisarmos a imprensa como representação histórica, é necessário perceber o jogo pelo poder presente nessas relações. Como ressalta Roger Chartier (1985, p. 17), as representações do mundo social são determinadas pelos interesses dos grupos que produzem estratégias e práticas, sociais, escolares, políticas, para legitimar um projeto reformador ou justificar suas escolhas e condutas. Desse modo, ao estudar as imagens de uma imprensa política, estamos verificando formas, motivos e representações as quais traduzem posições político-ideológicas. Conforme nos mostra Sandra Jatay Pesavento (2005, p. 86), a imagem é uma mediação entre o mundo do espectador e o do produtor, tendo como referência a realidade; é forma de representação do mundo que constitui o imaginário. Diante da ligação entre o imaginário e a representação, é importante a discussão realizada por Bronislaw Baczko (1985). De acordo com o autor, por meio dos imaginários sociais: [...] uma coletividade designa a sua identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma espécie de código de “bom comportamento”, designadamente através da instalação de modelos formadores tais como o do chefe, o bom súdito, o guerreiro corajoso; corresponde a formar as imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados (BACZKO, 1985, p. 309).
O mesmo autor aponta a relação existente entre o imaginário e o símbolo: o imaginário
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social opera por intermédio dos sistemas simbólicos construídos a partir de desejos, aspirações e motivações (BACZKO, 1985, p. 311). Podemos afirmar, então, que a imprensa comunista brasileira foi um importante canal para a apresentação das figuras simbólicas de seus guias e líderes, visando a “instruir” e a “conduzir” a massa. Após esta breve apresentação das considerações teóricas, passaremos a uma abordagem sobre a imprensa comunista brasileira e à discussão do meio artístico por uma arte realista. Imprensa Comunista e a arte “Realista” Desde sua fundação em 1922, o Partido Comunista do Brasil defendia a existência de periódicos como forma de propaganda, de fazer chegarem às massas a orientação, as palavras de ordem, as posições tomadas pelo partido. Lênin considerou a imprensa importante ferramenta do partido, lembrando a necessidade de ela estar voltada para três pressupostos básicos: educar as massas visando a elevar o nível de consciência política, organizar a classe operária ao redor do partido e propagar a linha ideológica (MORAES, 1994, p. 63). No que concerne às mulheres, vale destacar a conversa de Lênin com a representante da organização das mulheres na Alemanha, Clara Zetkin. Ele ressaltou a importância de organizar um movimento feminino internacional, do qual as comunistas deveriam fazer parte, realizando um trabalho sistemático para sua elevação; o movimento estaria “transportando-as do mundo da maternidade individual para o da maternidade social” (ZETKIN, 1934, p. 133). Características como a “energia”, o “espírito de abnegação”, a “coragem” e a “inteligência das mulheres comunistas” deveriam ser usadas para o
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movimento “apoderar-se das massas e organizar a sua ação”. Como veremos, em razão de os periódicos comunistas serem baseados nos princípios leninistas, o jornal comunista Momento Feminino também surgiu com vistas a educar e a organizar as mulheres e a propagar a linha do partido entre as brasileiras. Especialmente após a segunda grande guerra, os artistas gráficos brasileiros procuravam desenvolver arte engajada, de caráter crítico-social. As temáticas desenvolvidas abordavam o homem como ser social, em cenas recorrentes: a vida cotidiana no espaço do lar e do trabalho; o drama em consequência da guerra e da perseguição; a mobilização do trabalhador nas lutas de classe; as assembleias, as associações e as greves. Como a orientação comunista era que as ilustrações deveriam estar afinadas com essa “arte realista”, muitos artistas encontraram nas publicações do PCB espaço para a realização de seus trabalhos. Nesse sentido, a revista Fundamentos, editada em São Paulo, permitiu ampla discussão dos artistas cujo sentimento era de integrar-se à sociedade e compreendê-la amplamente, haja vista que, para eles, esse era o posicionamento mais adequado: [...] fora disso caímos no cerebralismo caótico dos abstracionistas. O que é norma em arte é a representação da realidade: a figura humana, os objetos de uso, os animais e a natureza que é o meio em que vive o homem (FUNDAMENTOS, 1953, p. 20).
Também devemos mencionar a linha do “realismo socialista”, tão divulgada nos periódicos da imprensa comunista brasileira, vinda da URSS, a qual teve como principal mentor Andrey Jdanov. De acordo com essa diretriz, o artista deveria demonstrar a atitude do proletariado frente à realidade, apresentar
as suas aspirações e lutas na busca do “belo e sublime” projeto socialista (MORAES, 1994, p. 123). O realismo socialista soviético apresentava uma organização social vitoriosa em construção. Nas imagens, apresentavamse operários formidáveis, musculosos, bem vestidos, o homem e a mulher feliz trabalhando no campo, ou seja, cenas que expressam otimismo, um povo que agia. A arte socialista requeria heróis, guias para levar a “massa desorientada” rumo a um “futuro resplandecente” de “igualdade”. Dessa maneira, desenvolveu-se o que ficou conhecido por “culto à personalidade”, caso de Stalin, mostrado como o “salvador da humanidade”, e de Luiz Carlos Prestes, considerado o grande líder brasileiro. Os debates dos artistas apresentados pela revista Fundamentos demonstram a preocupação de uma “arte para o povo”, tendo as imagens função de síntese, não devendo suscitar dúvidas no receptor. Em vista disso, a imprensa comunista, além do recurso textual, recorria aos diferentes formatos da arte visual, como a ilustração, a charge, a caricatura, a gravura e a história em quadrinhos. As mulheres foram constantemente representadas nas páginas dos periódicos mencionados. O jornal Tribuna Popular, ao apresentar notícia referente aos Comitês, demonstrou interesse em integrá-las nos movimentos e projetos do partido. No artigo de Wagner Cavalcanti, entre as sugestões e orientações, é indicada a necessidade da “mobilização das mulheres visando (sic) integrá-las na vida política da nação”, com a intenção de educar e tornar as mulheres politizadas. Cavalcanti enfatizava: [...] as mulheres devem ser especialmente convocadas, no maior número possível, a
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Juliana Dela Torres participarem de todas as atividades do Comitê, inclusive nas tarefas relativas à propaganda; novas adesões ao Comitê, alfabetização; coleta de fundos; festividades; levantamento e debate das reivindicações econômicas e locais, sobretudo às que se liguem ao nível de vida, que as mulheres, por sua própria condição de donas-de-casa sentem e refletem melhor e mais intensamente (CAVALCANTI, 21/07/1945, p. 5).
Os Comitês eram organismos de base do PCB, em atividade durante o período de legalidade do partido (1945-1947). Organizados em bairros, fábricas, favelas etc., discutiam os problemas da população (habitação, crise de gêneros alimentícios, transporte, entre outros), buscando resolvêlos. Observamos a preocupação em inserir
a mulher nas atividades do partido, mas, ao enfatizar a sua “condição”, o partido comunista revela uma visão tradicional do feminino, tomando o lar como espaço por excelência da mulher. Desta forma, em muitos momentos a luta das mulheres esteve associada ao bem do lar, dos filhos, da família. No gênero figurativo, elas eram mostradas integrando o espaço público em movimentos, como podemos visualizar na ilustração que acompanha os temas sobre os Comitês Populares (Figura 1). Entre um grande número de homens, vemos a figura de duas mulheres; uma delas caminha segura à frente do movimento.
Figura 1. Tribuna Popular, 09/06/ 1945, p. 5. Autoria: Paulo Werneck.
Em 1945, no contexto de legalidade em que o partido se encontrava, Tribuna Popular mostrou a mulher pintando uma faixa para o “Grande comício de Luiz Carlos Prestes” (TRIBUNA POPULAR, 14/07/1945, p. 1). Diante da imagem (Figura 2), percebemos como o uso desse recurso visual tinha objetivo informativo. O desenho apresenta um homem que chama a atenção para a escrita
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de várias placas, as quais reforçavam o evento que seria realizado em São Paulo. Entre três homens, apenas uma mulher aparece na figura. Importante observarmos que, apesar de várias mulheres terem se tornado comunistas ou simpatizantes, o seu número em relação aos homens ainda era bem menor. De qualquer maneira, os artistas tiveram o cuidado de frequentemente retratá-las entre seus trabalhos.
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de vida, salários), e lutas engajadas do partido (campanha da paz, político-partidária etc.). Arcelina Mochel, diretora do jornal, escreveu no primeiro número:
Figura 2. Tribuna Popular, 14/07/1945, p. 1. Autoria: Paulo Werneck.
Em 1947, Tribuna Popular fazia referência ao novo periódico a circular: “O Momento Feminino, um jornal para todas as mulheres”. Na imagem (Figura 3), que ilustrava a chamada, podemos visualizá-las concentradas fazendo a leitura do periódico.
Precisamente quando avultam os problemas do povo brasileiro e sua solução econômica encontra obstáculos cada vez maiores, aparece Momento Feminino, órgão de luta auxiliar de todas as mulheres para cumprir uma tarefa no seio da coletividade brasileira para ajudar o erguimento intelectual, político e econômico em nossa pátria (MOCHEL, 25/07/1947, p. 2).
Em seu primeiro número, esse jornal destacava as palavras de ordem pertencentes à imprensa comunista, apresentando-se como um órgão auxiliar que desejava educar seu público. Na primeira capa, Momento Feminino trazia a seguinte frase: “Momento Feminino: Um jornal para o seu lar” (Figura 4). No desenho de Paulo Werneck, artista autor de diversas obras para a imprensa comunista, a mulher representada é a que aparece em diferentes cenas do cotidiano, trabalhando no lar ou fora dele.
Figura 3. Tribuna Popular, 02/02/1947, p.2
Momento Feminino surgiu em 25 de julho de1947, editado na cidade do Rio de Janeiro, pelas comunistas, voltado para todas as mulheres. Em suas páginas trazia artigos sobre costura, culinária, arranjos do lar e crianças, além de assuntos sociais e políticos, como educação, economia (custo
Figura 4. Momento Feminino, 25/07/1947, p. 1. Autoria: Paulo Werneck
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Diante do desenho (Figura 4), observamos diferentes espaços onde as mulheres trabalham. Ao fundo, vemos uma vendedora com o cesto na cabeça, sendo possível também verificar que está descalça; a negra pode ser a mãe ou quem está trabalhando cuidando da criança; a personagem da direita segura papéis, podendo trabalhar no escritório ou ser professora; à frente e no centro, a figura feminina passa a roupa; uma mulher caminha. Nessa imagem, observamos o trabalho com os vários perfis femininos, sendo possível identificar a diferença social existente entre as mulheres a partir de elementos como o modelo dos vestidos, o uso da bolsa, os pés descalços. Identificamos o primeiro número do jornal feminino como um periódico o qual procurou envolver seu público-alvo com um desenho na capa em que há várias mulheres. A imagem conjugava-se com o slogan “Momento Feminino – um jornal para todas as mulheres”. Podemos afirmar, pois, que a imprensa comunista brasileira, partindo de seu projeto político educativo, atribuía visualidade à mulher comum e real, trabalhadora no espaço do lar ou fora, participante de movimentos segurando faixa, placas. Neste artigo, priorizamos as temáticas
repetidamente enfatizadas nas páginas dos periódicos comunistas. Desta forma, poderemos visualizar imagens as quais demonstram o cotidiano das mulheres diante das dificuldades encontradas em seu dia a dia, assim como também será possível observarmos o destaque para a necessidade de uma melhor organização entre elas, visando à luta contra problemas cotidianos e à participação ativa em movimentos empreendidos pelo partido. A luta cotidiana da mulher trabalhadora Conforme vimos na primeira capa do jornal Momento Feminino, as mulheres são desenhadas em diferentes espaços de trabalho. A partir da análise das imagens e dos textos que ilustram a imprensa comunista, foi possível verificar que as trabalhadoras sofriam com diferentes situações em seu dia a dia. No primeiro número de Momento Feminino, seguindo o tema de capa, há a referência às mulheres em diferentes cenas de trabalho nas imagens que ilustram “A luta cotidiana das mulheres”, sendo constante o uso das mesmas figuras (Figura 5) em outros números do periódico (MOMENTO FEMININO, 25/ 07/ 1947, p. 12). A mulher pendura roupa no varal, segura a criança e costura.
Figura 5. Momento Feminino, 25/07/1947, p. 12.
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Diante das imagens (Figura 5), notamos a representação das mulheres trabalhadoras dentro dos “padrões do gênero feminino” na figura de dona do lar ou fora do lar. A mulher é quem cuida da casa, lavando e estendendo a roupa; é quem segura a criança com toda a delicadeza, envolvendo-a com seu olhar de ternura; é quem auxilia o marido, trabalhando, costurando roupas para a família ou para fora. O texto ilustrado pelas imagens ressalta a mulher com a função de cuidar do conforto e da felicidade do lar, mas trabalhando o dia todo sem hora para chegar a casa. Ela sofria com a falta de água e conhece a tortura das filas, as quais existiam, na época, em virtude do mercado negro, pois era difícil conseguir o pão, o leite, a carne e outros gêneros indispensáveis para a casa. Porém, no mesmo artigo diz-se que: A dona de casa vai adquirindo a consciência de que deve formar, com todas as mulheres, uma frente única de combate à crise, à falta de habitações e transportes, ao câmbio negro, às filas, à sonegação dos gêneros de primeira necessidade; uma frente única para a conquista de um mundo melhor para sua família, de
Figura 6. Momento Feminino
um futuro mais digno para suas crianças (MOMENTO FEMININO, 25/07/1947, p.12).
As imagens com cenas da mulher representada em seu cotidiano e o título “A luta cotidiana das mulheres” poderiam chamar a atenção para a leitura do texto e para a proposta de a mulher solucionar seus problemas com a tomada de ação, a formação de uma “frente única”. Conforme observamos, os jornais, além de destacar os informes do partido, apresentavam os vários problemas encontrados pela população carioca e pelos outros estados: a crise de gêneros alimentícios de primeira necessidade, a falta de água, de moradias, transporte e de educação, os problemas no trabalho, entre outros temas. As imagens a seguir são desenhos que repetidamente ilustravam as páginas do jornal Momento Feminino quando este se referia à questão da falta de água. A mulher representada é a trabalhadora, rodeada por crianças, a qual sofre subindo e descendo o morro na busca da água, cena representada por diferentes artistas.
F i g u ra 7 . Momento Feminino. Autoria: Hilda Campofirito
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A imagem à esquerda (Figura 6) focaliza uma mulher lavando roupa, enquanto outra sobe o morro com a lata de água na cabeça. No desenho à direita (Figura 7), podemos visualizá-las acompanhadas de crianças; a grávida cruza os braços e olha triste para baixo; algumas voltam com as latas de água na cabeça; ao fundo da imagem, vemos um varal com roupas penduradas. A presença da criança no colo ou ao lado da mãe aponta para outro problema enfatizado nos jornais: a falta de creches. Os corpos magros são sinais que enfatizam a subnutrição, problema causado pela carestia de gêneros alimentícios
e também pela pobreza. Os ilustradores procuraram trabalhar com traços expressivos nos gestos e faces, chamando a atenção do receptor para um problema de grande parte da população daquela cidade. Como é possível visualizar na Figura 8, a qual ilustra um artigo sobre “famílias ameaçadas de ficar sem teto”, a mulher tem um gestual voltado para admiração, ou o desespero; dá a impressão de lamentar e pedir proteção ao Senhor ou de não acreditar naquilo que se apresenta diante de seus olhos (TRIBUNA POPULAR, 09/08/1946, p. 3).
Figura 8. Tribuna Popular, 09/08/1946, p. 3. Autoria: Paulo Werneck
Figura 9. Tribuna Popular, 25/01/1945, p. 8. Autoria: Paulo Werneck
Tendo por fim demonstrar toda a dificuldade para encontrar gêneros alimentícios de primeira necessidade, a mulher é representada nas filas, como mostra a ilustração à direita (Figura 9), que apareceu nos periódicos Momento Feminino e Tribuna Popular, acompanhada pela legenda “As filas aumentam com a fome”. O artista deixa bem demarcada a expressão de tristeza, os olhares pensativos; uma mulher se senta demonstrando o cansaço; também aparece uma criança na fila; algumas pessoas estão descalças e tanto a mulher branca como a negra são mostradas na imagem.
Trata-se da representação do grande problema vivido por muitas mulheres, as quais tinham de aguardar a possibilidade de encontrar o produto pretendido (a farinha de trigo, o pão, o leite, a carne, entre outros). Estes produtos eram facilmente encontrados fora da tabela, mas difíceis de serem comprados nos armazéns, quitandas, padarias ou açougues, dentro dos preços de tabela. Desta maneira, podemos perceber que a representação imagética do feminino esteve constantemente ligada às questões de uma vida pública com dificuldades.
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Atentemo-nos para os sentimentos que esses desenhos podem provocar no público leitor ao tratarem de temáticas referentes ao cotidiano sofrido. As ilustrações destacam elementos com vistas a fazer o leitor associar sua condição ao mostrado e identificar-se com o jornal e com os ideais do movimento comunista; era possível incitar o questionamento e a conscientização para uma ação. Nesse sentido, percebemos as imagens como materialidade das representações visuais, participantes das relações sociais, produzidas para provocar efeitos (MENESES, 2003). A mulher foi, como podemos notar, o público a que eram direcionadas as discussões sobre a crise de gêneros alimentícios. No jornal Momento Feminino, há o desenho do
dono do armazém e a mulher (Figura 10). A figura masculina tem o gesto de mandar para fora, expressão facilmente compreendida pelo receptor (MOMENTO FEMININO, 10/10/1947, p. 8). Ela, de frente para o leitor, é desenhada com ar de tristeza, cabeça baixa, encolhida, resignada diante da situação. Podemos dizer que é a representação de grande parte das mulheres, sem o dinheiro para comprar o produto ou sofrendo com a falta dos artigos necessários à alimentação. A observação do desenho poderia conduzir o público à leitura da legenda, um convite para a participação nas “Uniões Femininas”. Estas foram organizações incentivadas pelo partido a partir de 1946, dirigidas e compostas, embora não necessariamente, por mulheres comunistas.
Figura 10. Momento Feminino, 10/10/1947, p. 8. Autoria: Quirino Campofiorito
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Diante das imagens as quais retratam o desespero, o desânimo, a tristeza, ou a submissão, podemos pensar que esses traços artísticos contrariavam o princípio do “realismo socialista”, porque estariam enquadrados dentro de um realismo críticosocial. Por outro lado, é interessante perceber que tais desenhos tinham a finalidade de tocar a sensibilidade da mulher receptora diante de um problema que a atingia, procurando levála à reflexão e à luta por melhorias. As dificuldades encontradas no trabalho também foram ressaltadas, assim como a união e a importância da organização no sindicato, associação, ou “União Feminina”. É o que veremos a seguir. A necessidade da organização feminina Como já citamos, a imprensa comunista brasileira se baseava nos pressupostos leninistas. A fim de evitar movimentos desorganizados, a importância do trabalho de organizar os movimentos para agir e alcançar as propostas da luta era reforçada nos periódicos. Nessa perspectiva, colocavase, como solução para os trabalhadores, a união e organização nas associações, uniões, sindicatos ou locais de trabalho. No caso das mulheres, existia muita ênfase na sua participação nas “Uniões Femininas”, pois ali
seria um espaço para se tentar solucionar os problemas diários e poderia ser um local para auxiliar na organização dos movimentos. Como parte do projeto político e educacional do PCB, o jornal Momento Feminino apresentou em suas páginas a tese intitulada “Imprensa Feminina, fator de educação”, defendida por Ana Montenegro na mesa redonda do Distrito Federal. Na ocasião, foi destacado por ela que: A importância da imprensa com seu poder de penetrar, com a sua possibilidade de fazer-se ouvida, mesmo pelos surdos, com a sua capacidade de percorrer distâncias sem cansaço, é mais do que nenhum outro o meio de levar a todos os lugares, a todas as casas a palavra de esclarecimento, o apelo à luta e, portanto, deve ser considerado por todas as mulheres, um dos caminhos que se abrem para chegarem a resultados concretos (MONTENEGRO, 05/12/1947, p. 5).
Constatamos, diante do exposto, a constância da ênfase na importância da imprensa feminina como material necessário para o esclarecimento das mulheres, sendo uma forma de ligação com as massas femininas, visando à organização e à ação. A necessidade da leitura do jornal feminino pelas mulheres aparecia até mesmo nas histórias em quadrinhos, como podemos visualizar na Figura 11.
Figura11. Momento Feminino, 02/04/1948, p. 3. Autoria: Quirino Campofiorito
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Em “Zezé, vende o seu jornal” (Figura 11), no primeiro quadrinho, a personagem faz a leitura do jornal Momento Feminino.2 No segundo quadrinho, ela está no salão de beleza vendendo o periódico. No terceiro quadro, Zezé distribui o jornal no ônibus. Este é apresentado como um espaço ocupado por homens e mulheres; quem aparece lendo são as mulheres, pois os homens leem a Gazeta Sindical, a Voz Operária ou a Tribuna Popular. No quarto quadrinho, a personagem entrega o periódico feminino no trabalho, demonstrando a utilidade de sua leitura. Zezé formava uma série de histórias em
quadrinhos como uma mulher que ajudava na educação e organizava as mulheres nas “Uniões Femininas”. Os trabalhos das organizações femininas se intensificaram e resultaram em uma “Conferência Nacional Feminina”, realizada na cidade do Rio de Janeiro. Nas próximas imagens (Figuras 12 e 13), as quais ilustram o tema deste evento, observamos a intenção de expressar as mulheres conversando, discutindo problemas relacionados ao seu cotidiano (MOMENTO FEMININO, 20/05/1949, p. 6). Os mesmos desenhos foram usados diversas vezes para acompanhar as notícias das “Uniões Femininas”.
Figura 12. Momento Feminino, 20/05/1949, p. 6. Autoria: Quirino Campofiorito.
Figura 13. Momento Feminino, 20/05/1949, p. 6. Autoria: Ediria.
Legenda de “Zezé, vende o seu jornal”: I – Zezé quer tornar conhecido o “Momento Feminino”. Ela gosta do seu jornal e considera sua leitura útil à tôdas as mulheres. II – Zezé vai ao cabelereiro, Mme. XX está no secador vendo velhas revistas. Zezé vende-lhe o último número de “Momento Feminino”. III – No ônibus Zezé encontra muitas mulheres que vão para o batente. E não perde tempo vai vendendo o “Momento Feminino”. IV – No trabalho Zezé já mostrou às colegas a utilidade da leitura de “Momento”. E tôdas o compram com prazer. Imita Zezé, amiga.
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Na imagem à esquerda (Figura 12), vemos um grupo de mulheres conversando, discutindo problemas relacionados ao seu cotidiano. Elas estão de vestido, cabelos bem penteados, e a expressão facial é de olhares de satisfação pelas ideias colocadas. Outras ouvem com admiração a mulher que está falando e, no fundo, uma delas se diferencia das demais pelo avental e pelos sinais de tristeza ou reflexão, com o olhar direcionado para baixo. Nesse desenho, podemos observar a importância dada para a mulher engajada, apresentada como mais feliz do que a mulher alienada, fechada em seus problemas no lar. Isso porque, segundo a ideologia comunista, as mulheres deveriam ser despertadas para ação, conversar entre elas, como as personagens Irene e Idealina (Figura 13). São ilustrações que serviam principalmente para expor signos de união e organização. Em fevereiro de 1950, foram realizadas reuniões para a discussão do problema da miséria e a elaboração de um plano de ação comum das “Associações Femininas” de vários Estados. O jornal Momento Feminino apresentou um plano nacional contra a carestia, elaborado pela “Federação das Mulheres do Brasil”, propondo “Convenções Femininas Estaduais”, debates com mesas redondas em municípios, distritos e bairros, concentração de protestos contra a alta de preços, campanha para barateamento dos gêneros alimentícios mais sentidos em cada Estado e a realização de uma semana nacional contra a carestia. No jornal Voz Operária, a imagem de três mulheres juntas simbolizando a união, acompanha a manchete “Despertar para a luta política as massas femininas exploradas” (VOZ OPERÁRIA, 04/1955, p. 4-5). Em razão de o partido dirigir as propostas a toda a massa feminina, percebemos a intenção 90
de apontar a integração entre a mulher de chapéu, elegante, no centro, a operária de macacão e outra mulher trabalhadora, com uma pasta; todas parecem interessadas em participar da luta.
Figura 14. Voz Operária, 04/1955, p. 4
O desenho ilustra o texto que ressalta a importância do trabalho do Partido Comunista do Brasil na tarefa de despertar para a luta as grandes massas femininas, organizando-as e unindo-as em um amplo movimento popular, sob a liderança do partido. A matéria enfatiza o PCB como guia, defensor, procurando demarcar sua diferença com relação aos demais partidos: O Partido Comunista do Brasil encarna as aspirações mais nobres da mulher, expressa suas esperanças de uma vida livre e feliz. Só o Partido Comunista em seu Programa indica à mulher o caminho de sua completa emancipação. Só o Partido Comunista orienta e dirige a luta das mulheres pela conquista de seus direitos como mãe, trabalhadora e cidadã e pela defesa da felicidade de seus filhos e da paz (VOZ OPERÁRIA, 04/1955, p. 4).
A imprensa partidária mostrava o partido como aquele que “indica”, “orienta” e “dirige” a luta feminina na “busca pela felicidade”.
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Como já discutido, intencionava, por meio das imagens, provocar efeitos no público a fim de que ele tomasse parte das lutas do PCB e a fim de tornar empíricas as propostas de organização. Em várias ocasiões, o Jornal Voz Operária enfatizou a importância da criação das “Organizações Femininas” com a diretiva do partido. Após o surgimento das associações, a maioria das mulheres que se movimentavam de uma maneira mais ou menos espontânea foi ganha para as “Uniões Femininas”, o que resultou em “grandes movimentos femininos” (VOZ OPERÁRIA, 10/04/1954, p. 6). Em vista disso, o princípio da união e organização continuava sendo difundido por intermédio do periódico. Além das várias imagens enfatizando a presença das mulheres em movimentos locais, verificamos ainda que a participação feminina em lutas de âmbito nacional e internacional da época também foram temas trabalhados pelos artistas colaboradores da imprensa comunista. É o caso do movimento pela Constituinte e pela Paz. O Partido Comunista, numa linha de “união” com o governo, esteve ligado ao movimento de apoio a Getúlio Vargas (“Constituinte com Getúlio”). Integrar o movimento, naquele contexto, significava apoiar principalmente a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, por meio da qual se reorganizaria o “novo Estado”, tendo como motivação a elaboração de uma nova Constituição, o que ocorreu em 1946. Ampla campanha com pedidos para a realização da assembleia visando à elaboração da Constituição foi organizada pelo PCB, sendo as imagens fundamentais para chamar as pessoas a participarem do movimento. Na imagem reproduzida na sequência (Figura 15), observamos a representação desse
movimento e da participação comunista nele. Vemos um homem apontando para a escrita em destaque “Constituinte”; os outros três parecem clamar, pois as pessoas, na imagem, olham, ajoelham-se e erguem os braços no sentido de pedir por aquilo que está escrito (TRIBUNA POPULAR, 21/10/45, p. 9).
Figura 15. Tribuna Popular, 21/10/45, p. 9. Autoria: Paulo Werneck
O desenho é composto por quatro homens e uma mulher. Esta é desenhada descalça, cabelos esvoaçantes, indicando uma mulher de ação. A imagem ilustrava um poema sobre a Constituinte. Nas imagens do artista Paulo Werneck, notamos o uso de um fundo preto com destaques para as letras garrafais. Devemos perceber que o artista geralmente procura dar ênfase para os gestos como o ato de indicar ou de chamar. Em relação ao movimento pela paz a que aludimos, começamos a percebê-lo no decorrer das análises das imagens com a temática de pedido de paz. No período pós-guerra, havia o constante perigo de eclosão de um novo conflito. Era a Guerra Fria que apresentava para todo o mundo a disputa político-ideológica e militar entre as duas grandes potências, Estados Unidos e União Soviética. Em razão do medo o qual se instalou, a discussão pela necessidade de se proclamar e se garantir a paz cresceu.
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Na esteira desses anseios, a “luta pela paz”, declarada em 1949 pelo Kominform (Escritório de Informações dos Partidos Comunistas), foi definida como tarefa primordial ao movimento comunista. Embora existissem manifestações contra a guerra desde o segundo grande conflito mundial em 1945, foi especialmente a partir dessa nova linha lançada que os novos apelos para a paz mundial se tornaram temas frequentes na imprensa comunista. O início do confronto que opôs o norte (comunista) e o sul (capitalista) da Coreia, em 1949, foi, para os comunistas, uma grande ameaça de um combate direto entre os Estados Unidos e a União Soviética. Isso resultaria, caso ocorresse, em mais uma desastrosa guerra mundial. Sendo assim,
a tarefa do movimento comunista estava centrada na alternativa encontrada para colocar fim à guerra: a coleta de assinaturas pela proibição das armas atômicas. No Brasil, com a notícia de ser necessário irem soldados àquela região, intensificaramse os pedidos veiculados na imprensa para haver participação na luta pela paz, assim como atos considerados heroicos. Um exemplo é o da brasileira que ficou conhecida como heroína da paz: Elisa Branco. Ela foi presa porque abriu uma faixa no desfile de 7 de setembro em São Paulo em 1950 com os seguintes dizeres: “Os soldados nossos filhos não irão para a Coreia!”. Esse episódio foi representado por artistas, como vemos na imagem bastante repetida em A Classe Operária e Imprensa Popular (Figura 16).
Figura 16. Imprensa Popular, 03/08/1952, p. 10.
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Imagens das Mulheres na Imprensa Comunista Brasileira (1945/1957)
Diante da imagem, notamos que Elisa Branco está com seus olhos voltados para o receptor e tem um leve sorriso. Ela, à frente, é seguida por outras mulheres com ar altaneiro, segurando placas de paz. Os traços que formam o desenho destacam uma mulher real, do povo. O cabelo esvoaçante, em movimento, pode significar que a mulher participativa não perde a feminilidade, mas age, representando a força de todas aquelas que a seguem e de todos que desejam a paz. Dessa forma, observamos que a referida mulher é mostrada como uma heroína, um símbolo da paz, uma inspiração para todas as mulheres na luta pela paz mundial. A imagem da mulher mãe, reproduzida na Figura 17, acompanha o lançamento da Campanha contra a Guerra Atômica, resultante da reunião do “Conselho da Paz” em Viena, janeiro de 1955 (VOZ OPERÁRIA, 08/01/1955, p. 11).
Figura 17. Voz Operária, 08/01/1955, p. 11.
A figura feminina segurando a criança, a palavra Paz e o papel com a escrita pedindo a proibição da bomba atômica são recorrentes na imprensa comunista; tal conjunto de figuras reforçava a importância da coleta de assinaturas para o apelo da paz. É importante atentarmos para o uso da criança pelo artista. Por ser inocente e indefesa, a criança serve como recurso apelativo, para emocionar o leitor e conseguir sua adesão à causa da paz.
O pedido pela paz foi o movimento com o maior número de imagens nas quais havia personagens femininas. Com os desenhos, em meio aos textos, procurava-se sensibilizar as mulheres, e seu instinto materno, a aderir à campanha. O importante papel a ser desenvolvido pelas mães e esposas e mulheres em geral era muito reforçado pela imprensa comunista. Considerações Finais A finalidade do PCB, como partido de massas, era atingir o máximo da população. Para veicular a propaganda e a orientação política, o partido contava com as publicações de sua imprensa. Os recursos imagéticos, ilustração, gravura, charge, caricatura e histórias em quadrinhos são indícios que tornam evidentes os motivos, as representações, as posições e o imaginário dos militantes do Partido Comunista. A repetida figuração das mulheres nas imagens e a existência de um periódico direcionado ao público feminino nos dizem muito sobre como o partido tratava a participação das mulheres nos seus projetos. Analisando a representação destas na imprensa comunista brasileira, verificamos que os artistas deram maior ênfase à imagem da mulher comum, real, sofrida. A mulher trabalhadora, a dona de casa e a mãe aparecem representadas, bem como a que se mostra politicamente engajada nas lutas do Partido (segurando faixas, placas e bandeiras no movimento). Isso representa a intenção de o partido ampliar sua base de apoio popular, fortalecendo suas lutas e ideias. As imagens, conforme vimos, eram elaboradas a fim de provocar sensações em seus receptores. Entendemos que, ao focalizar a representação da mulher triste, desanimada, procurava-se causar reflexão
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e conscientização para a ação. A presença das mulheres nos espaços propagados pela imprensa, como a “União Feminina”, levaria as mulheres à organização e ao ingresso em movimentos. Verificamos ainda que a imprensa partidária também atribuiu grande ênfase à consciência de luta, ao engajamento, representando as mulheres com a cabeça erguida, sorriso, seriedade e concentração nas passeatas, de punho cerrado, segurando placas e faixas. Essas imagens emanam signos da força, do poder e da felicidade em fazer parte dos movimentos. Os desenhos de personagens femininos em tarefas como a entrega do jornal ou participando de movimentos são indícios de um grupo que acreditava na força das mulheres – ou delas necessitava – para as lutas do partido. Com vistas à adesão das mulheres, foi essencial a divulgação de figuras exemplares, como o caso de Zezé ou Elisa Branco. Estas foram representadas nas imagens focalizando segurança, solidariedade e serenidade. Diante dos jornais comunistas, foi possível observar que em muitos momentos reproduziam o discurso naturalista, da sociedade burguesa, onde às mulheres caberiam os cuidados com o lar, filhos e família. Desta forma, a presença delas no espaço público esteve em muitos momentos associada às “condições determinadas ao gênero feminino”. Por outro lado, também percebemos que muitas delas encontraram no PCB um espaço para a luta por sua emancipação social, econômica e política. O jornal comunista Momento Feminino deu lugar às vozes de mulheres de outras vertentes, como, por exemplo, Alice Tibiriçá e Bertha Lutz. Lembramos ainda que, com grande influência do partido e das comunistas, em 1949 foi criada a Federação de Mulheres do Brasil. 94
Este artigo procurou contribuir para o debate sobre o uso de imagens e da imprensa política como fonte de pesquisa histórica. São evidências e representações de um período histórico e do imaginário de um grupo social que envolveu militantes, simpatizantes e leitores. Além dos homens, as mulheres também estiveram presentes e foram constantemente representadas nas páginas da imprensa comunista brasileira. Como diz Maria Izilda S. de Matos (1997, p.107), “existem muitos gêneros, femininos e masculinos e temos que reconhecer a diferença dentro da diferença.” Por meio de nosso trabalho, procuramos dar visibilidade a essas representações, seus motivos e significados. Referências AMARAL, Aracy A. A arte para quê?(A preocupação social na arte brasileira, 1930/1970). São Paulo: Nobel, 1987. BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Antropos-Homem. v.5. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/Edusp, 1988. CAVALCANTI, Wagner. Comitês Democráticos e Populares. Tribuna Popular, Rio de Janeiro, 21/07/1945. CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1985. FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do mito: Cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro: EDUFF, 2002. GAWRYSZEWSKI, Alberto. A Caricatura e a charge na imprensa comunista (1945/1957). (Pós-doutorado). Programa de Pós-graduação em História Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.
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Lúcio Reis Filho Graduado em História pela Universidade do Estado de Minas Gerais (2008), especialista em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (2010) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nesta instituição, é integrante do “Laboratório de Estudos em Ficção Científica Audiovisual” e do grupo de pesquisa “Cinema e Mídias Digitais”. Também participa do grupo “Formas e Imagens na Comunicação Contemporânea”, da Universidade Anhembi Morumbi.
Resumo
O presente artigo discute a representação do índio americano no western. Esse gênero surge ainda nos primeiros anos do século XX, e suas produções costumam ser ambientadas no período de destruição das culturas nativas dos Estados Unidos (1860-1890). Diversos filmes de faroeste apresentam uma visão de mundo fundamentada no etnocentrismo e no discurso conservador da ideologia dominante. O índio surge enquanto um obstáculo à conquista de território, representante selvagem e incivilizado de uma minoria incômoda para a expressão desenvolvimentista de uma nação em progresso. Nesse sentido, serão analisados alguns dos trabalhos mais representativos de quatro cineastas americanos: Ford, Sturge, Eastwood e Peckinpah. Pretende-se inferir se tais obras contribuíram com o fortalecimento daquele que se tornou um estereótipo central no mito americano, dos índios cruéis e impiedosos. Palavras-chave: Cinema de faroeste; etnocentrismo; índios americanos.
Abstract
This paper analyzes the representation of Native Americans in the western film. This genre emerges in the first half of the 20th century, with stories generally set between 1860 and 1890, period of the destruction of Native American culture. Several western films reproduce a worldview based on ethnocentrism and the conservative ideology, depicting Native Americans as an obstacle for territorial conquest, as savage and uncivilized beings, an inconvenient minority that blocks the expression of a nation in progress. Hence, films from four American directors – Ford, Sturge, Eastwood and Peckinpah – will be carefully studied in order to confirm whether these movies had contributed for the construction of a central stereotype in the American mythology, the portray of Native Americans as merciless savages. Keywords: Western cinema; ethnocentrism; american indians.
Recebido em: 03/10/2010
Aprovado em: 05/11/2010
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Introdução Este trabalho propõe uma discussão a respeito da imagem do índio nos filmes de faroeste. O western existe desde o início do século XX, e as suas produções têm sido comumente ambientadas entre os anos de 1860 e 1890, período marcado pela destruição da cultura e da civilização nativas dos Estados Unidos. Primeiramente, será fundamental percorrer os caminhos da construção da imagem indígena ao longo do século XIX, partindo da literatura. Em seguida, observaremos se determinados estereótipos raciais e aspectos do etnocentrismo estão presentes em algumas produções do gênero. Foram selecionados filmes de quatro diretores do cinema americano, sendo eles John Ford, John Eliot Sturge, Clint Eastwood e Sam Peckinpah. Malvados peles-vermelhas? A partir de 1830, enquanto os Estados Unidos vivenciavam um clima de embate político entre os estados escravistas, do Sul, e não escravistas, do Norte, enfrentavam também os problemas de outra região, explica Charles Sellers (1990, p. 224). Segundo Luiz Estevam Fernandes e Marcus Vinícius de
Morais (2007, p. 113), a localização das nações indígenas tornou-se um problema para o governo. Surgiu, então, um questionamento: “o que fazer com os nativos americanos, [...] vistos como obstáculos à conquista de territórios e aos interesses de pequenos e grandes proprietários?”. Entre 1860 e 1880, metade da atual área de país já estava ocupada e era explorada. Em 1860, colonos povoaram rapidamente as zonas orientais do Kansas e Nebraska. San Francisco e Sacramento eram cidades movimentadas, e a agricultura estava bem estabelecida no vale do Willamette, no Oregon. Entre essas duas distantes fronteiras – os povoados na costa do Pacífico e os estados imediatamente a oeste do Mississipi – estendia-se uma vasta região de planícies e montanhas, praticamente intocada pela civilização européia (SELLERS; MAY; McMILLEN, 1990, p. 224).
Alguns territórios do Oeste despertavam especial interesse econômico. Interesse que se traduziu em poder político durante mais de meio século. A penetração nas planícies e montanhas por mineiros, migrantes e diligências, as novas populações que se espalhavam por toda a região, tornaram inevitáveis os problemas com os índios (SELLERS; MAY; McMILLEN, 1990). Os filmes de faroeste partem desse contexto para representá-los como uma minoria incômoda
Versão revista de trabalho apresentado no III Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais (III Ecomig), evento integrante do 8º Encontro Regional de Comunicação, realizado na Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, em outubro de 2010. Agradeço a colaboração do Prof. Alfredo Paes de Oliveira Suppia, do Mestrado em Comunicação da UFJF.
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para a expressão desenvolvimentista da nação em progresso, que precisava de terras para ampliar seu território, para fazer estradas e colonizar o interior. Segundo o historiador Dee Brown (2009), o cinema muitas vezes explorou uma imagem estereotipada no mito americano, a imagem dos índios como selvagens impiedosos. No western, a representação do índio parece seguir uma fórmula padrão: Nos velhos tempos em que o mocinho ganhava do bandido e casava com a mocinha, ninguém era mais bandido que o índio. Quando os pacíficos colonos vinham falando de uma nova terra prometida, a câmera ia para os altos das escarpas próximas e era inevitável: lá estavam as silhuetas odiadas. Confusão. Berros. O mocinho dava as ordens, os carroções ficavam em círculo. Corte. Um índio velho, cheio de penas, dava um berro ou agitava uma lança. Lá ia o bando de gente pintada berrando. Corte. O mocinho, fazendo careta, dizia para o idiota ao lado que não devia atirar. “Espere! Temos pouca munição!” Lá vinham os índios, o mocinho dizia: “agora!” e começava a cair gente pintada do cavalo. Mas a pouca munição provocava caretas desesperadas no mocinho, cercado de gente ferida. Até o idiota estava ferido. Quando a mocinha (que estava carregando os rifles) dizia que era a última carga, soava o clarim salvador da Cavalaria e milhões de Casacos Azuis encurralavam um punhado de índios, acabando com todos. Beijo final. The End (BROWN, 2009, p. 5).
As raízes desse estereótipo podem ter origem no embate entre índios e soldados federais. Como nos lembra Charles Sellers, a luta duradoura teve início no Minnesota, no ano de 1862. Porém, a tal “gente que berrava” era um povo altivo, nobre, com uma cultura própria, que só entrava em guerra defendendo o direito de viver nas terras que sempre foram suas (BROWN, 2009). Durante o inverno de 1867-68, de acordo com Brown, o general Philip Henry Sheridan liderou os soldados que caçavam os índios cheyennes.
Para Sheridan, qualquer índio que resistisse ao ataque era um “selvagem”. Então, no fim de dezembro de 1868, o general pronunciaria as palavras imortais: “os únicos índios bons que já vi estavam mortos”. Mais tarde, o tenente Charles Nordstrom, presente na ocasião, lembrou-se das palavras e as passou adiante, até o tempo transformá-las em um aforismo americano: “o único índio bom é um índio morto”. Brown (2009) argumenta que essa e outras máximas, como as ordens proferidas pelo coronel John M. Chivington – “matem todos os índios que encontrarem” – e pelo general Patrick Connor – “[os índios] devem ser caçados como lobos” –, favoreceram atrocidades contra os nativos por parte dos soldados. Depois de uma reunião com os cheyennes, em meado da década de 1860, o major Edward Wynkoop declarou-se na presença de uma raça que, antes, sempre considerara cruel, traiçoeira e sanguinária, desprovida de sentimentos ou afeições para com amigos ou parentes. Percebe-se que a representação hollywoodiana do índio se assentou sobre todos esses estereótipos, ou seja, sobre a imagem de um índio “selvagem” e “sanguinário”. Tal visão parece ter predominado no gênero western durante algum tempo. Em contraponto à visão formulada pelos ideais da “democracia branca”, nas palavras de Fernandes e Morais, as pesquisas de Brown propõem que os americanos voltem os olhares para o Leste, quando defrontados com a sua história, e não apenas para o Oeste. Com relação à “epopeia” da conquista, o autor busca narrar uma história índia do Oeste, uma história em que os “mocinhos”, de repente, não têm a pele branca e possuem nomes que nos filmes eram perseguidos por John Wayne, Henry Fonda ou James Stewart: “Cochise, Gerônimo, Nuvem Vermelha,
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Cavalo Doido, Victorio, Touro Sentado, Galha,”2 entre outros. A revisão histórica realizada por Dee Brown fundamentará nosso trabalho. A partir deste ponto, analisarei o etnocentrismo fisionômico, responsável pela construção da “imagem do inimigo”, e a idealização cinematográfica maniqueísta, que subverteu a expansão para o Oeste e os massacres nas aldeias indígenas, desfigurando-os, reduzindo-os ao mito de um confronto entre civilização e barbárie. O western e as heranças da fronteira Segundo Donald Staples (1973, p. 327), “o western é tão antigo quanto Hollywood e o próprio cinema. Um dos primeiros filmes do gênero [...] foi O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, 1903), de Edwin S. Porter”. Uma vez que a tradição básica do faroeste tem origem no romance, em particular nos romances baratos do século XIX, foram os contos de James Fenimore Cooper – denominados Leatherstocking Tales – que estabeleceram a fórmula clássica: o herói do interior, evidentemente moldado em Daniel Boone,3 que salva uma donzela do Leste das mãos dos índios, antes de perdê-la para um rival mais refinado, de estrato social superior. De acordo com Guido Bilharinho (2001), cada gênero ficcional possui características e elementos peculiares, que não só o compõem como o singularizam e o distinguem dos demais. Dessa maneira, o western não fugiria à regra e só o é justamente por
conter aspectos bastante particulares e característicos, como a ação conflituosa por motivos definidos em determinado espaçotempo. Conforme explicam Wellek e Warren (apud BUSCOMBE, 2004, p. 305), o senso comum sugere a possibilidade de estabelecer uma lista de elementos encontrados nos filmes de western e afirmar que qualquer filme que possua um ou mais desses elementos pode ser considerado um western, embora não necessariamente idêntico a outros exemplos do formato. Staples (1973) complementa: para entender o western enquanto linguagem artística deve-se observar o recorrente padrão imagético do gênero, que persiste por décadas e forma a sua iconografia. Fala-se, aqui, do artista e do papel que ele desempenha. Certos personagens são recorrentes nos gêneros fílmicos, e o próprio western comprova essa proposição com seus pistoleiros, populações citadinas, cavalarias, índios, xerifes fracos, andarilhos maus, senhoras delicadas, comerciantes corruptos e bêbados cômicos. Grande parte dos filmes de faroeste foi ambientada no tumultuoso período de 1860 a 1890, pouco antes da fronteira americana4 ser fechada, quando praticamente todos esses mitos do Velho Oeste foram engendrados. De acordo com Fernandes e Morais (2007, p. 106), o século XIX proporcionou rápida expansão e desenvolvimento econômico para os Estados Unidos, que atingiram um patamar antes inimaginável de crescimento. As estradas de ferro, por exemplo, proporcionaram uma revolução
BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 5. O americano Daniel Boone foi desbravador, explorador e destacado silvícola da história dos Estados Unidos. Ele deixou para trás muitas terras que descobriu, protegeu, assentou e cultivou. Disponível em: <http://www.notablebiographies.com/Be-Br/BooneDaniel.html>. Acesso em: 17 ago. 2010. 4 Em 1893, o historiador Frederick Jackson Turner disse que um período da história norte-americana se encerrava em 1890, com o fim da fronteira. O censo daquele ano, pela primeira vez, não encontrou fronteira contínua além da qual o país não estivesse colonizado. In: SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN Neil R. Uma reavaliação da história dos Estados Unidos: de colônia a potência imperial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 233. 2
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nos meios de transporte por aumentar a eficiência da locomoção de pessoas e mercadorias. Aliás, Edward Buscombe (2005, p. 308) sugere que os trens façam parte do vasto grupo de objetos variados que, sendo recorrentes, acabam por assumir funções formais no western. Sabe-se que as grandes linhas que ligavam o Leste ao Oeste foram completadas no início da segunda metade do século. Ao mesmo tempo, Brown considera o intervalo de trinta anos entre 1860 e 1890 a época de destruição da cultura e da civilização indígena. Reafirma, ainda, que [...] é dessa época que vieram praticamente todos os grandes mitos do Oeste Americano – histórias de negociantes de peles, homens das montanhas, pilotos de vapores, mineiros, jogadores, pistoleiros, soldados da cavalaria, vaqueiros, prostitutas, missionários, professores e colonizadores (BROWN, 2009, p. 8).
Portanto, esse breve momento na história dos Estados Unidos forneceu a estrutura sobre a qual se assenta a tradicional representação do período: os últimos dias da Guerra Civil, o incremento da mineração, a construção das ferrovias, as guerras índias e de cavalaria, as grandes manadas de gado, a chegada dos agricultores e criadores de ovelhas e os forada-lei (STAPLES, 1973). Contudo, [uma] razão para que os americanos sintam hostilidade com relação ao western é a percepção de como o mesmo distorce a realidade sócio-histórica da qual se aproxima. O extermínio dos índios – o ataque genocida dos colonos contra os nativos altamente civilizados do país torna-se o épico esforço do Povo Escolhido contra os selvagens. Os fora-da-lei do Oeste – brutos, bestiais e burros – tornam-se heróis de lenda. Considerando-o em termos políticos, o western pode parecer opressivo – um mito chauvinista, machista e nacionalista (STAPLES, 1973, p. 329).
O hábito da violência, um legado de Oeste, foi largamente explorado nos filmes de western. De acordo com Sellers, May e Mcmillen (1990, p. 236), o Oeste criou uma tradição de justiça rude por meio de seus vigilantes, xerifes de fronteira e associações de criadores de gado. O costume da rixa de vida ou morte veio dos acampamentos de garimpeiros, das cidades pecuárias e dos povoados de pontas de trilhos. “Talvez a violência fosse inseparável de um dos traços mais atraentes da lenda da fronteira – o devotamento à liberdade individual e à igualdade, consideradas como características do Oeste”. Pintando a imagem do inimigo De acordo com William Brandon (1974, p. 249), o nativo americano foi tomando a carga da afeição comovente causada por um moribundo. Conforme desaparecia dos estados do Leste, tornava-se uma figura envolta pela narração alegórica, nostálgica. Em alusão aos índios, Lydia Sigourney, “a doce cantora de Hartford”, poetisa americana mais popular do século XIX, entoou o seguinte poema: Dizeis que todos já se foram, A raça nobre e varonil Que suas leves canoas sumiram Para longe da crista do rio; Que dentre as florestas que percorreram, Lá grito de caçador algum irá ressoar; Mas seu nome está em suas águas, Não podeis rejeitar… Dizeis que suas cônicas cabanas Que se apinham sobre o vale Sumiram como folhas secas Antes da outonal tempestade: Mas sua memória habita suas colinas…5
Livre tradução de: “Ye say that all have passed away, / The noble race and brave / That their light canoes have vanished / From off the crested wave; / That’mid the forests where they roamed, / There rings no hunter’s shout; / But their name is on your waters, / Ye may not wash it out… / Ye say their cone-like cabins / That cluster o’er the vale, / Have disappeared as withered leaves / Before the autumn gale: But their memory liveth on your hills…” In: BRANDON, William. The American heritage book of Indians. New York: Dell, 1974, p. 249.
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William Brandon sugere que a imagem do índio tenha enfatizado, ao longo da história, ora o total desaparecimento das tribos, ora a erradicação dos “selvagens” como meras pragas agrícolas. Em fins do século XIX, “a guerra havia terminado, a conquista fora vencida, e uma curiosa cegueira obscureceu o longo e importante papel do índio na história americana, relegando o mesmo a uma parcela menor da atividade comercial [...]” (BRANDON, 1974, p. 250). O autor continua a argumentação: Os fantasmas das confusas imagens dos índios ocuparam a fantasia popular em um grau surpreendente na literatura, nas leis e na prática da moralidade do século XIX. Em sua imagem oficial, o problema indígena era de ordem econômica e deveria ser tratado o mais economicamente possível. Mas todos esses fantasmas das confusas imagens não podiam atravessar o abismo rumo à compreensão dos índios enquanto pessoas que pudessem ser levadas a sério, enquanto pessoas que fizessem parte da história e da vida da nação (BRANDON, 1974, p. 250).
Pode-se dizer que a representação do índio em muitos filmes de faroeste segue o princípio da “modificação fisionômica”, subjugada ao etnocentrismo da cultura dominante. De acordo com Massimo Canevacci (1990, p. 88), “a crueldade do homem deve continuar a ser projetada em outro que não ele durante todos os séculos futuros”. De modo geral, a deturpação das proporções faciais e corporais deve ter imprimido publicamente as leis da assimetria, na medida em que trata de uma evocação do primitivo, do arcano, do torpe, do satânico, do ridículo, até mesmo do inimigo. Assim como nas culturas ditas “arcaicas”, o xamã busca expulsar a doença imitando o mal, do mesmo modo a civilização pósindustrial, fundada na imagem, busca reduzir o mal ao feio. Desse ponto de vista, o cinema significou uma incrível regressão planetária, 102
a partir dos fortíssimos componentes ainda uma vez etnocêntricos, cuja realidade é reproduzida por um médium intrinsecamente cêntrico (CANEVACCI, 1990). A dissonância na música, a dimensão da memória na literatura, o cubismo, o expressionismo e o surrealismo na pintura expressam a crise de um modelo de civilização que, em vez de conseguir socializar o belo, produz a amplificação do horror. O cinema reage à difusão da crítica que busca desmascarar a ideologia harmonicista de nossa civilização; e essa reação assume a forma da ilusão realista (CANEVACCI, 1990, p. 93).
No cinema, ainda segundo Canevacci (1990, p. 95), “[...] nazistas, vietcongues, índios, generais, simples soldados, camponeses [...] sofrem uma modificação fisionômica que está de acordo com o ponto de vista da ideologia [...] por trás de sua representação”. Dessa maneira, o etnocentrismo fisionômico reproduzido pela cinematografia teve a responsabilidade de fazer com que se expandissem a desconfiança, a hostilidade, o tédio, o antagonismo popular de massa, em face de tudo o que não se conforma à assonância dominante. De acordo com Leif Furhammar (2001), para a propaganda que se dedica em grande parte à imagem do inimigo, é fundamental que a mensagem seja expressa de um modo que não convide à discussão. Em filmes dessa natureza, os clichês são inevitáveis. Geralmente os estereótipos já vêm prontos, depois de terem se desenvolvido por um longo período, às vezes como parte de mitos relacionados com outras raças, nações ou grupos sociais. Também podem passar de geração em geração pela tradição oral, ou podem estar latentes em um subconsciente nacional, para serem reavivados pela propaganda quando o Estado precisa de um inimigo. Os estereótipos roubam a humanidade dos outros reduzindo
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os indivíduos a uma homogeneidade sem vida. “Embora tais clichês possam ser inofensivos e às vezes divertidos [...], também podem ajudar a preparar o caminho para o genocídio” (FURHAMMAR, 2001, p. 187). Qualquer método de separação eficiente – legal, linguístico ou físico – entre “nós” e “eles” abre caminho para que “nós” façamos qualquer coisa contra “eles”. Não precisamos mais considerá-los como seres humanos; não enxergamos sua semelhança conosco. Alguns dos clichês cinematográficos para povos e relações humanas são do próprio cinema, enquanto outros parecem herdados [...] (FURHAMMAR, 2001, p. 187-8).
Nicolau Sevcenko (1996) sugere que o modo pelo qual uma sociedade dita “civilizada” vê, ou representa o que vê, na presença da imagem daquele que é o seu outro, costuma ser fortemente calcado no princípio da alegoria. Em relação às primeiras projeções que as elites europeias formularam a respeito do continente americano e dos povos americanos em geral, o conceito de História era profundamente unilateral e centrado na Europa do Renascimento. A própria forma de expressão da sociedade moderna renascentista era de mediação das relações sociais e das noções de poder. Destaca-se a situação em que europeus e não europeus se viram frente a frente. “O elemento representativo dessas mediações, seu modo de representação simbólica, é exatamente a arte, em sua forma de alegoria. [...] O princípio da representação alegórica [...] é a função política que ela comporta” (SEVCENKO, 1996, p. 119). Segundo Charles Sellers, Henry May e Neil R. McMillen, a longa e sanguinolenta história da luta pelo Oeste conforma um dos episódios menos agradáveis da história americana. Entretanto, no devido tempo, as políticas inábeis e cruéis do governo
para com os americanos nativos deram origem a campanhas de protesto. No final do século XIX, simpatizantes idealistas do Leste, muitos deles membros da Associação dos Direitos dos Índios, argumentaram que era intolerável uma política que implicava conquista, pauperismo e, em alguns casos, genocídio virtual. A maioria dos reformadores acreditava que os benefícios da civilização “branca” deveriam ser levados aos índios, para que estes pudessem ser assimilados à cultura dominante, em lugar de permanecerem em condições tribais primitivas. Essa proposta agradava o etnocentrismo em voga no período e os desejos dos brancos famintos pelas terras das reservas indígenas (SELLERS; MAY; McMILLEN, 1990). Pa r t i n d o d e u m p o n t o d e v i s t a antropológico, Canevacci considera o etnocentrismo a “absolutização” de uma particularidade relativa a um povo, a uma raça, a uma estrutura social etc., que se eleva a modelo indiscutível, aparecendo como uma dilatação do “eu” mais singular, cuja crise poderia produzir a própria autodestruição (CANEVACCI, 1990). Dessa maneira, o etnocentrismo – que estigmatiza o diverso e difunde personalidades autoritárias – penetra cada vez mais facilmente no “público”, que, em seu significado mais amplo, compreende não apenas o “espectador”, mas também o “ator” em sua versão deteriorada, daquele que “atua” com base em solicitações conscientemente organizadas segundo as necessidades técnicas do roteiro, do cenário, da representação, da filmagem, da montagem: da estrutura fílmica (CANEVACCI, 1990, p. 106).
Como nos lembra Canevacci (1990), esse mecanismo não se limita às chamadas sociedades “primitivas”, mas se estende também às mais “civilizadas”. Dessa maneira, o cinema, em vez de ajudar didaticamente a compreender, amplia desmesuradamente
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o mecanismo de nós e os outros, graças ao poder persuasivo da imagem. Aliás, a cultura ocidental em seu conjunto aperfeiçoou a fixação dessas fronteiras da humanidade por meio da organização científica do estigma impresso sobre tudo o que se presume “diverso”. O autor ainda sugere que o cinema de ficção não contribua para a difusão de um conhecimento que legitime a aceitação da diversidade por aqueles valores, hábitos, fisionomias e fisiologias que podem/devem ser reciprocamente concedidos quando diversos. “Em vez de ser pacificação e legitimação das diversidades, o cinema [...] foi o amplificador do etnocentrismo [...]” (CANEVACCI, 1990, p. 106). Em seguida, o estudo sobre os filmes de faroeste será mais detalhado, mediante a leitura de obras selecionadas de quatro cineastas americanos: John Ford, John Eliot Sturge, Clint Eastwood e Sam Peckinpah. Sabe-se que o apogeu do western se deu antes dos anos 1960, ao lado de gêneros cinematográficos igualmente expressivos e notáveis como o musical e o film noir. Segundo Bilharinho, essa categoria fílmica declina nas décadas seguintes, embora não deixe de ser cultivada, e surge em seu lugar o malfadado western-spaghetti, com faroestes artificiais, essencialmente comerciais, produzidos na Itália e geralmente filmados na Espanha, cujas áreas de paisagem semidesértica eram propícias a esse fim. Portanto, estudaremos exemplares do western durante o seu auge, período no qual estão inseridos os trabalhos desse quarteto de diretores.
tanta frequência em romances, em filmes e na televisão, os índios americanos permanecem, provavelmente, como os americanos menos entendidos e mais incompreendidos [...]”. Suas palavras justificam o presente estudo, uma vez que a nossa análise da representação do índio nos filmes de faroeste constitui uma tentativa de lançar luz sobre um tema ainda pouco estudado. Em primeiro lugar, voltaremos nossa atenção para o cineasta John Ford, cuja importância dentro do western não pode ser esquecida. Ford é considerado um dos grandes diretores dos Estados Unidos, “uma das figuras respeitadas do cinema” (STAPLES, 1973, p. 340). Iniciada em 1914, sua carreira percorre meio século e compreende, virtualmente, a própria história do filme – seus períodos de silêncio e som, a introdução das cores e do widescreen. De acordo com Guido Bilharinho, Ford realizou diversos faroestes nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Dentre as suas produções, No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939) salta à vista como o seu grande western, levando em conta o dinamismo, a tensão e a caracterização das personagens.
De Ford a Peckinpah: a América dos índios na óptica de quatro realizadores
[...] Alguns dos mais importantes elementos que forjam a saga do oeste, configurando o que se convenciona denominar opera horse, aqui se plasmam [...]: o heroísmo, o destemor, o acerto de contas mais do que simples ato de vingança, a ameaça do índio rebelado, seu ataque, a corrida vertiginosa de cavalos, o clássico perfil da diligência cercada pela fúria indígena em desabalada carreira pela planície [...] Nesse filme, o índio é enigma e não se o julga [...] É um dado da realidade com o qual mais do que lidar precisa-se lutar, face à exacerbação e paroxismo que atinge (BILHARINHO, 2001, p. 18-9).
Em prefácio à obra de William Brandon (1974, p. 11), John F. Kennedy sugere que “para um assunto visitado e revisitado com
Segundo Donald Staples (1973, p. 341), em filmes como No Tempo das Diligências, O Cavalo de Ferro (The Iron Horse, 1924),
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Sangue de Herói (Fort Apache, 1948) e O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), Ford encontrou a estrutura ideal para expressar a sua visão poética da América, uma nova nação que esculpiu, a grande custo, a terra selvagem. “Um preço – como o diretor sugeriu em trabalhos posteriores – demasiado alto considerando o que os Estados Unidos verdadeiramente se tornaram”. Sean Cubitt (2004) considera os faroestes fordianos a representação em escala do mito nacional, porém numa modalidade identificada como conservadora. O heroísmo de Ringo Kid, em No Tempo das Diligências, seria um recurso do qual o diretor lançou mão, pois o destino dos Estados Unidos dependeria da fidelidade do personagem para com os valores basilares da nação. Para Bilharinho, o western de John Ford não se reserva à simples e descompromissada diversão – constitui obra autoral no sentido em que expressa uma visão de mundo determinada e pessoal que o cineasta elege como tema de seus filmes (BILHARINHO, 2001). Nesse sentido, é importante retomar o argumento de Canevacci (1990) sobre o ponto de vista da ideologia por trás de uma representação. Leif Furhammar complementa: sugere que a velha ideia de considerar os filmes como diversão ou arte, ou eventualmente ambos, tem sido encarada com crescente ceticismo. “É amplamente reconhecido que os filmes refletem também as correntes e atitudes existentes numa determinada sociedade, sua política” (FURHAMMAR, 2001, p. 6). Bilharinho (2001, p. 28) explica que em Sangue de Herói, como em muitas obras de Ford, o cineasta não se limita a construir cinematograficamente uma realidade e estampá-la imageticamente. Vai além, ao fixar de maneira analítica e crítica, por meio
dos atos e da conduta dos indivíduos, não apenas seu perfil intelectual, moral e social, bem como a essência humana. Por essa razão, a personagem fordiana é talhada autenticamente em sua integralidade. No enredo de Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), por exemplo, a busca do protagonista Ethan (interpretado por John Wayne) pela sua sobrinha é entremeada de acidentes e incidentes razoáveis e plausíveis. A busca fundamenta-se em um entranhado ódio racista, movido pelo sentimento de resgate de seu sangue. Esse desígnio implica a eliminação física do ente familiar (e racial) em decorrência da miscigenação resultante do impositivo e, para Ethan, inadmissível contato interracial. Nesse filme, O índio, elemento onipresente [...], mais presente quando ausente fisicamente, é apresentado [pelo cineasta] com dignidade e imparcialidade, até mesmo quando autor de inominável atrocidade. Como contraponto a isso, [...] é mostrada [...] a extremada crueldade da dizimação de aldeias indígenas (BILHARINHO, 2001, p. 28).
O Homem Que Matou o Facínora, quinto filme de faroeste da carreira de Ford, parece ter sido “mais do que puro western, já que extrapola os limites e parâmetros do gênero para inserir-se na categoria mais ampla de drama humano individual, econômico-social e histórico” (BILHARINHO, 2001, p. 29). Nele Ford pode exercitar adequadamente as possibilidades do gênero, cristalizando a saga do Oeste em uma narrativa linear, por meio do embate entre civilização/barbárie, lei/ crime, honra/ despudor, convívio/violência, honestidade-idealismo/desonestidadebrutalidade, bondade/maldade. Logo, a idealização cinematográfica própria dessa fase histórico-geográfica dos Estados Unidos faz-se maniqueísta e nitidamente exposta. Bilharinho reforça a presença do
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maniqueísmo e da visão mítica do Oeste nos filmes de western, sublinhando outros exemplos. Segundo o autor, Duelo de Titãs (Last Train From Gun Hill, 1959), de John Eliot Sturge, é um filme calcado na ambiência peculiar do Oeste – aquela que foi mitificada e transmitida pelos meios de comunicação, desde a tradição oral, passando pelos inúmeros livretos de escritores que percorriam a região à cata de histórias, até explodir no século XX por meio do cinema. Josey Wales, O Fora da Lei (The Outlaw Josey Wales, 1976), de Clint Eastwood, é espetaculoso, maniqueísta e repleto d e e s t e re ó t i p o s e c l i c h ê s, a l é m d e caracterizadamente naturalista ou mimético. O personagem que empresta o nome ao título é interpretado pelo próprio Eastwood. Não se pode deixar de notar, como lembra Bilharinho (2001, p. 123), o viés racista dos acasalamentos entre índio e índia / branco e branca, quando o dado inicial do encontro entre indígena e protagonista propiciaria desenvolvimento diverso do adotado, não fosse sua depreciação humana. Por outro lado, os westerns de Sam Peckinpah, ao serem comparados com os de seus pares, estiveram dispostos a hibridizar. Quando Peckinpah se volta para o Oeste americano, não contempla a homogeneidade purista de um agrupamento humano monocultural, e sim a mestiçagem, a combinação das culturas hispânica, europeia e indígena em seu ponto de origem [...] “O mito fundador de Peckinpah é uma lenda de hibridação cultural e não de pureza racial” (CUBITT, 2004, p. 193). Em Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, 1969), determinadas sequências
irradiam uma propriedade que será essencial para o filme, bem como para o novo faroeste como um todo: a percepção da feiúra. Esta não denota o vil ou o abjeto. Conforme sugere o título original de um dos westerns de Sergio Leone (The Good, the Bad and the Ugly, 1966),6 cuja tradução seria “O Bom, o Mau e o Feio”, a feiúra existe numa relação entre o bom e o mau, enquanto uma categoria étnica. Nesse sentido, Peckinpah pretende avançar além da amoralidade dolorosa e fora de propósito do western televisivo (CUBITT, 2004). Apontamentos finais A escritora nigeriana Chimamanda Adichie alerta sobre os perigos de uma única história, pois ela pode roubar das pessoas sua dignidade. Torna difícil o reconhecimento da humanidade compartilhada. Enfatiza a diferença, em vez da semelhança. Com uma única história, não há possibilidade de conexão entre os humanos. E tudo depende do poder, que é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de torná-la a sua história definitiva. Assim, criam-se os estereótipos. E o problema dos estereótipos, segundo Adichie, não é que eles sejam mentira, mas que sejam incompletos. Fazem uma história tornarse uma única história. “Mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e isso ele se tornará”, diz a escritora. “Comece uma história com as flechas dos nativos americanos e não com a chegada dos britânicos, e você terá uma história totalmente diferente”.7 Nos filmes de faroeste da primeira metade
Sean Cubitt refere-se a The Good, the Bad and the Ugly (1966), western de Sergio Leone, cuja tradução literal seria “O Bom, o Mau e o Feio”. Entretanto, o filme foi traduzido para o português como Três Homens em Conflito. 7 CHIMAMANDA, Adichie. O perigo de uma única história. TED Global. Out. 2009. Disponível em: <www. ted.com/talks/lang/ por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of _a_single_story.html>. Acesso em: 14 de maio de 2010. 6
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do século XX, e do início da segunda, a representação do índio fundamentou-se, muitas vezes, na imagem estereotipada do selvagem impiedoso e incivilizado. O modelo a partir do qual os nativos são exibidos nessas produções deriva de clichês preexistentes, muitos dos quais se desenvolveram durante um longo período, a partir de mitos eurocêntricos, e foram transmitidos por gerações pela tradição oral. Também podem ter origem naquele velho aforismo americano inspirado nas palavras do general Sheridan, “o único índio bom é um índio morto”. Ou mesmo no medo que os “brancos” sentiam dos nativos, por considerálos uma raça cruel, traiçoeira e sanguinária, desprovida de sentimentos ou afeições. Entretanto, embora a representação estereotipada do índio pareça predominante no gênero western, é importante destacar que o cinema hollywoodiano ofereceu uma diversidade de visões e de outras histórias a respeito dos nativos, sempre conectadas à óptica de seus diretores acerca da América. Enquanto os filmes selecionados de Ford são exemplos do conservadorismo, por apresentarem um Oeste calcado nos estereótipos racistas, por reforçarem mitos depreciativos ao índio e estabelecerem a relação maniqueísta “civilização” versus “barbárie”, Sam Peckinpah, por sua vez, propôs a hibridação cultural em lugar da pureza racial. Já os trabalhos de Eastwood e Sturge precisam ser observados mais detidamente, para que se possa inferir se representam ou não a visão etnocêntrica. A imagem do índio no western ainda tem sido pouco estudada. Novas pesquisas são necessárias. Essas são apenas algumas anotações.
Referências BILHARINHO, Guido. O filme de faroeste. Uberaba: Instituto Triangulino de Cultura, 2001. BRANDON, William. The American heritage book of Indians. New York: Dell, 1974. BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Tradução de Geraldo Galvão Ferraz. Porto Alegre: L&PM, 2009. BUSCOMBE, Edward. A idéia de gênero no cinema americano. In: Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: Editora Senac São Paulo, v. II, 2005. CANEVACCI, Massimo. Antropologia do cinema: do mito à indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1990. CHIMAMANDA, Adichie. O perigo de uma única história. TED Global. Out. 2009. Disponível em: <www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_ adichie_the_danger_of _a_single_story.html>. Acesso em: 14 de maio de 2010. CUBITT, Sean. The cinema effect. Cambridge: MIT Press, 2004. DANIEL Boone. Disponível em: <http://www. notablebiographies.com/Be-Br/Boone-Daniel.html>. Acesso em: 17 ago. 2010. FERNANDES, Luiz Estevam; MORAIS, Marcus Vinícius de. Os EUA no século XIX. In: História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 99-172. FURHAMMAR, Leif; ISAKSSON, Folke. Cinema & política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN Neil. Uma reavaliação da história dos Estados Unidos: de colônia a potência imperial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. SEVCENKO, Nicolau. As alegorias da experiência marítima e a construção do europocentrismo. In: Raça e diversidade. São Paulo: Edusp, 1996. STAPLES, Donald (ed.). The American cinema. Washington: Voice of America, 1973.
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Mara Rúbia Sant’Anna Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou estágio de doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales (FR). É líder do grupo de pesquisa “Sociedade e Moda” e coordenadora de atividades de Extensão. Atualmente é professor titular da Universidade do Estado de Santa Catarina e membro permanente do Mestrado em História da mesma instituição. Professora associada da Equipe d’Acueil 3400, filiada à Universidade de Strasbourg (FR).
Resumo
Estudo de um anúncio de batom, da marca Colgate, publicado na revista O Globo, em 1940. A partir deste anúncio, é analisado como a publicidade realizada em torno de um cosmético agencia modelos de beleza e juventude, num contexto de promoção de um forte sentimento de identidade nacional. Utilizam-se, principalmente, as ferramentas da análise imagética, considerando os processos de recepção implícitos na composição imagem/texto e sua relação com o conjunto do suporte de sua aparição. Palavras-chave: Publicidade; aparência; nação.
Abstract
Study of how a cosmetic advertisement operates models of beauty and youth, in a context of promoting a strong sense of national identity. For that, it’s used mainly the tools of imagery analysis, considering the implicit reception processes of the composition image/text and its relation with the entire support of her appearance. Keywords: Advertising; appearance; nation.
Recebido em: 01/09/2010
Aprovado em: 14/10/2010
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Agenciada pelo consumo, a beleza tornou-se possível a todos, e “só é feio(a) quem quer” tornou-se axioma de depreciação social na sociedade moderna. Cada produto ligado à aparência corporal carrega em si esse gatilho de recepção estética, constrói e reconstrói sentidos para os gêneros, para as diferentes faixas etárias e para os grupos sociais. Tudo que é moderno torna-se belo, e todo belo torna-se bom e superior. Por outro lado, a rede de transmissão de significados, liderada pela Indústria Cultural, na qual todo o moderno torna-se belo, tem como um dos principais agentes difusores a publicidade. O sistema perito, codificado nas fichas simbólicas (GIDDENS, 1991), distribuídas em cada anúncio, propõe uma manipulação que passa, necessariamente, pelo consumo. Não apenas de um produto, mas de um corpo e de uma estratégia de inserção no mundo social, que depende fortemente da beleza que se expõe, entendida como coroamento de um sucesso sobre si realizado (SANT’ANNA, 2007). A publicidade é analisada como mediadora entre os padrões comportamentais, instituídos como desejados pela cultura geral, e a sua aquisição, que ocorre via consumo. Assim pressuposto, o objetivo do projeto de pesquisa do qual resultou este estudo foi analisar como os anúncios de cosméticos, levados ao público em diferentes anos, apontavam para alterações nos padrões de
beleza propostos, seja em seus discursos visuais e/ou textuais e, consequentemente, identificar as possibilidades de agenciamento destes modelos para as mulheres das diferentes épocas, vivendo sob a égide de diferentes projetos de nação ou de identidade nacional para o Brasil. Este artigo apresenta uma pequena parcela desse projeto de pesquisa que contempla a análise das publicidades de cosméticos no século XX, considerando-a como mediadora entre os padrões comportamentais, instituídos como desejados pela cultura geral, e a sua aquisição, que ocorre via consumo. É oportuno salientar que o consumo é entendido, nas palavras de Baudrillard: [...] o consumo é um modo ativo de relação (não apenas com os objetos, mas com a coletividade e com o mundo), um modo de atividade sistemática e de resposta global no qual se funda todo nosso sistema cultural (BAUDRILLARD, 1995, p. 22).
Metodologicamente, foi operada a leitura e a análise da imagem usando das ferramentas da semiologia e apontando as composições gráficas e textuais dos anúncios, conforme as orientações de Martine Joly (1996) para, posteriormente, analisar a retórica da conotação, entendida como o conjunto posto à leitura e suas relações de interconicidade e intertextualidade (elementos gráficos, escritos, posição em relação ao suporte,
Projeto financiado pelo Fundo de Apoio à Pesquisa (FAP), da Universidade do Estado de Santa Catarina.
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cores e texturas), levando em conta as teses de Roland Barthes (1997) e Jean Pirotte (2002), por fim, identificando a poética do ter, proposta por George Péninou (1972). A Publicidade e o Agenciamento de Subjetividades Estudos socioantropológicos feitos sobre o impacto das campanhas publicitárias, na reprodução de valores e ações sociais, enfatizam que os publicitários não fazem mais do que manipular desejos, comportamentos e valores, já consagrados socialmente, e que habilmente associados a uma mercadoria transformam-na em representação direta daqueles. Publicitários conceituados no mundo atual afirmam, por sua vez, que a publicidade “é o mais acreditado modelo de vida para milhões e milhões de seres humanos” (MENNA BARRETO, 1978) e, como elucida Finco: “a pretensão é a de que a publicidade possa alterar comportamentos; a crença é a de que consiga” (FINCO, 1996). Entre estudos sociológicos e afirmações dos profissionais, sabe-se que a publicidade não serve apenas para vender um produto, o que seria seu primeiro e evidente objetivo de existência. Ao ser montada uma campanha publicitária, na medida em que é selecionado um público alvo, um modelo de comportamento é vendido conjuntamente. Portanto, o consumo acionado pela publicidade é, antecipadamente, possibilitado por um comportamento êmulo, que é constituído por cenários significacionais de diversas ordens. Nessa estratégia, na qual o consumo de algo funciona como meio de transformação de si, está o nexo da emulação2 estimulada pela publicidade.
A partir da década de 1930, a publicidade sofreu uma grande transformação no Brasil, acompanhando mudanças internacionais. A partir deste período, a publicidade deixou de ser um serviço para se tornar uma estratégia, importantíssima, de Marketing. Abandonou, pouco a pouco, a atividade exclusiva de propaganda, na qual não fazia uma segmentação de mercado nem de veículos de comunicação criteriosa. Seu consumidor, ou público alvo, era indiscriminado, e o pequeno número de fabricantes de um mesmo produto, com acesso à determinada região, fazia com que a função da publicidade fosse mais de anunciar a existência do produto do que de acirrar a concorrência entre produtos de mesma categoria. Nesse contexto, oferta de preços, vantagens promocionais e mesmo brindes eram as estratégias mais usadas para o fortalecimento de empresas e produtos divulgados. Posteriormente, quanto mais fabricante e consumidor se distanciavam no processo de expansão do sistema capitalista, mais se tornavam necessárias outras formas de persuasão do consumidor (MARTIN, 1992; LEVY; LOISEAU, 2006). Quando a modernização se realiza de forma mais abrangente, tendo a indústria e o comércio capacidade de oferecer mais produtos do que a demanda exige numa região, a publicidade, propriamente dita, é que passa a ser desenvolvida. O estímulo permanente ao consumo e à constituição da ideia de marca, como diferencial de qualidade, mas também de segmentação social, é o que se torna a maior estratégia a aplicar. São traçados “perfis semânticos”, ou, em termos mais comuns, nichos de mercados (LAGNEAU, 1981; OGILVY, 1984). Disputando esses nichos particulares,
Emulação: sentimento que nos leva a igualar ou exceder outrem; competição; rivalidade, estímulo. Derivado do verbo emular, cujo adjetivo correto é êmulo (m) e êmula (f). O termo é comumente utilizado nas análises de publicitários sobre a repercussão da publicidade no meio social. Contudo, o adjetivo é formulado como “emulador”, o que do ponto de vista vernáculo está incorreto. Cf. HOLLANDA, 2008.
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diferentes fabricantes de um mesmo produto precisam colocar-se como sendo um superior a outro e, a partir daí, construírem um discurso capaz de representar determinadas marcas como melhores e, claro, destinadas a pessoas de igual “superioridade”. Essas “distinções significantes” concretizam-se como diferenças sociais ou signos diferenciadores e, como Bourdieu defende, do consumo daqueles constituídos estilos de vida (BOURDIEU, 1985; BOURDIEU; SAINT-MARTIN, 1976). A publicidade, como o cinema, as revistas, as transmissões televisivas e radiofônicas e os jornais, é instrumento da cultura de massa. Todos esses instrumentos colaboram e interseccionam na elaboração da poética da aparência. A recepção desta se realiza no consumo das imagens postas à venda, sendo, porém, ainda mais efetiva no processo de subjetivação, quando da aquisição dos seus ícones, ou seja, dos produtos que a publicidade teve a função de propor como meio e rito de constituição de um outro desejado, como uma ponte ao moderno (SANT’ANNA, 2007). Lendo anúncios O trabalho investigativo do historiador a partir de imagens deve considerar, como pressuposto básico, o processo gerativo de sentidos que a imagem proporcionou no contexto de sua aparição e apreensão pelo leitor. Para tal, a análise da imagem por si só é sempre precária. Torna-se necessário compreender o entorno da imagem e o conjunto de informações que circulavam ao lado dela (SEMPRINI, 1996). Considerado nestes termos, é fundamental analisar que força discursiva e em quais fileiras ideológicas o periódico, jornal ou revista, em que apareceu o anúncio, se filiava. O anúncio aqui trabalhado foi encontrado na revista O 112
Globo, produzida pelas Edições Globo, uma sólida empresa do ramo editorial instalada em Porto Alegre desde 1883 e que contou, nas décadas de 1930 e 1940, com a assessoria de Erico Veríssimo. O Globo começou suas atividades comerciais como uma simples papelaria da Rua da Praia. Desde 1926, tendo como proprietário José Bertaso, as publicações de O Globo ocuparam o mercado editorial riograndense com grande destaque, e sua revista, publicada desde 03 de janeiro de 1920, congregava os escritores gaúchos de renome e contava com o apoio político irrestrito de Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha. Inicialmente, a revista teve como diretor Mansueto Bernardi e, em 1940, exemplar em análise, era dirigida por Justino Martins. Em 1937, a Revista, como toda a empresa, já havia ultrapassado as fronteiras do Rio Grande do Sul e estava estabelecida no mercado nacional (TORRESINI, 1999). O exemplar em análise é o nº 280, datado de 14 de setembro de 1940, com formato da revista A4, 21 cm x 28,2 cm. O papel utilizado é do tipo jornal, com exceção de 1/10 da folhas que é em papel couchê, em que se apresentam os encartes especiais. As ilustrações e fotografias são em preto e branco, sendo que apenas a capa e contracapa utilizam-se de cores. A tipografia utilizada é de tamanho pequeno, entre 8 e 6 para o corpo de texto. Podemos encontrar, neste exemplar, diversos anúncios: pneu, remédio, objetos de escritório, de pontos comerciais, cosméticos, roupas e bancos. A diagramação é submetida à necessidade de rendimento do espaço nas chapas de reprodução. Em sua capa está estampado o clichê da artista Jean Arthur, em cores (Ilustração 2). A estrela do filme A mulher faz o homem está sorridente, com cabelos de um louro
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Beleza de Moça: nação e publicidade de cosméticos
intenso, bem arrumados, com cachos na altura dos ombros; mostra-se numa posição jovial e descontraída. A plástica facial é equilibrada, marcada pela assimetria dos olhos e sobrancelhas numa proporção clássica da boca, nariz e maçãs do rosto. No pé da capa as manchetes principais do exemplar: O QUE SIGNIFICARIA PARA OS ESTADOS UNIDOS A VITÓRIA DE HITLER... Submarino contra submarino – Uma descrição de Frank Bowen. E, ENTÃO, O ESPELHO QUEBROUSE... – NOVELA DE RAMÓN DEL VALLEINCLAN. COMPLETA REPORTAGEM DOS FESTEJOS DA “SEMANA DA PÁTRIA”
Tal como escrito acima, a diferença dos tipos e o uso do negrito é que destacava o que havia de mais importante para o leitor apreciar na revista. No próximo gesto de leitura, o leitor, ultrapassando a capa, via na contracapa fotos de caráter social, provavelmente pagas para saírem naquela posição, pois, abaixo do sumário, na página ao lado, os editores destacavam que “a publicação de fotografias de interesse pessoal constitui matéria paga”. Na primeira folha propriamente dita, encontra-se a comunicação da revista com seu leitor, descrevendo a autoria da capa e respostas às cartas enviadas à redação. O sumário é encabeçado por informações que atestam a expressão da revista no mercado nacional. Abaixo do seu título está a frase “Revista Moderna, de grande tiragem e circulação no Sul do Brasil”. O sumário é organizado por temas e não pela sequência das páginas, reunindo assim: cinema; artigos, crônicas, humorismo; contos e novelas; reportagens; literatura e “mais uma série de fotografias dos últimos acontecimentos ocorridos na Capital, no Estado e no País”. Dessa forma, podemos considerar que a revista era destinada à família em geral,
sem ser exclusiva de um único gênero, e voltada para os interesses dos grupos sociais urbanos intelectualizados e que partilhavam das sociabilidades promovidas pelos Clubes e espaços de exibição das elites locais. O anúncio em análise encontra-se na página 16, ao lado direito, canto inferior (Ilustração 1). Possui uma moldura que o destaca em relação aos demais textos e usa de variações do preto e cinza para dar relevo a este. O movimento do olhar provocado pelo relevo é original, pois é constituído de tarjas pretas retangulares, de igual tamanho, no alto e embaixo do anúncio, mas que são contrabalanceadas por duas caixas de texto de fundo branco e letras pretas, contendo suas próprias molduras. Em destaque, a propósito, as figuras da mulher e do baton e rouge estão recortadas e possuem um contorno natural dos limites de suas figuras o que, vibrando nas diferentes graduações de cinza, as coloca em evidência sobre os demais planos. Na página ao lado, nº 17, um artigo de Aldous Huxley traz como título “procura-se um novo prazer” e, ilustrando-o, são colocadas as figuras de dois homens e duas mulheres, todos de perfil, evidenciando o olhar para algo além do desenho. Eles, as figuras masculinas, têm olhos compenetrados, e as femininas olhos de fascinação e ternura. Este título usa uma tipografia da norma estética futurista: linhas paralelas perfeitamente simétricas, o que se relaciona diretamente ao tema do artigo, no qual Huxley defende que a velocidade “é o único prazer moderno”. Partilhando da página 16, encontra-se um longo texto ilustrado por uma pequena fotografia de Antônio Barata, autor do livro O Livro dos Piratas, resenhado por Manoel Domingues. A resenha de Domingues destaca que o livro é dirigido às crianças maiores de nove anos e ao público juvenil, tendo como maior qualidade a de “desfazer,
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na imaginação das crianças e dos jovens, a auréola de fama que envolve o pirata” que o cinema e outros romances enalteceram. o anúncio, com os recursos gráficos utilizados, dispersa a atenção que poderia ser dada à resenha e somente após a atenção cativada pelo anúncio, o leitor ou leitora iria deslizar os olhos pelas letras miúdas e as frases rebuscadas do texto ao lado.
Em plena 2ª Guerra Mundial, a revista ocupa muitas páginas para especular e noticiar o conflito, trazendo várias fotografias de aviões, soldados, armamento, navios e submarinos e, inclusive, anuncia o filme O Grande Ditador de Charles Chaplin. Porém, a maior parte da revista é composta de textos literários e de notícias de cunho social, incluindo-se aqui as notícias de Hollywood.
Ilustração 1. Anúncio Baton Colgate, 1940. Fotografia da autora do texto
o anúncio é lido a partir das duas molduras, a superior e inferior que se destacam do restante pela cor preta de seu fundo e o tamanho das letras em branco. Reticências antecedem e finalizam a primeira frase: “embelleza os labios”, (sic) estando o
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termo “embelleza” (sic) todo em caixa alta. Na moldura inferior, as figuras do batom e do rouge, com um pequeno retângulo informando o preço para o mercado de Porto Alegre, são acompanhadas das palavras “Baton e Rouge colgate”, também escritas
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em caixa alta, e o nome da marca com letras mais largas, o que a faz a principal palavra. Assim, “embelleza” do topo, com suas reticências anteriores e posteriores, dá margem para ser associada diretamente ao nome da marca, criando uma circularidade na leitura e interpretação da frase, mesmo que entre o topo e o fim do anúncio haja muitas outras coisas ditas e para serem vistas. Também as reticências permitem que, além dos lábios, o leitor pense que os produtos Colgate embelezam muitas coisas mais no corpo feminino. O recurso das reticências é recorrente no anúncio, especialmente para dar efeito de emoção e suspense, imitando, talvez, o anúncio radiofônico da mesma época (BLANC; VIDAL, 2009). Ilustrando o anúncio, destaca-se a figura feminina desenhada com perfeição, deixando mesmo a dúvida se se trata de uma fotografia retocada ou de um desenho. O rosto encontra-se de lado, o que sugere que a figura não está se expondo, exibindo-se, como não caberia a uma moça comportada fazer, mas sim, fora chamada, convocada a dar seu testemunho a outras moças, senhoras ou senhores, de que a maquiagem é recomendada às moças de família também, como se diria à época. Ocupada com seus afazeres, a moça foi chamada e se vira, atendendo, delicadamente, o convite. A figura atrai pelo olhar límpido, bem acentuado pelas sobrancelhas desenhadas simetricamente e pelo posicionamento das íris que, voltadas para cima e à direita, sugerem ao leitor uma posição de subordinação. A testa larga e alta, emoldurada pelo penteado volumoso, porém recatado, equilibra a figura, dividindo, na linha das sobrancelhas, as duas partes do rosto. O cabelo é a própria expressão da obediência: nenhum fio fora do lugar e todos os cachos, em pares, posicionam-se perfeitamente em torno do rosto. Orelhas e pescoço limpos
e alvos também testemunham a higiene e o cuidado “natural” da moça consigo. O sorriso, por sua vez, faz as maçãs do rosto e o queixo adquirirem contornos suaves e expressam, com a simetria dos dentes e lábios, mais uma vez, a serenidade e beleza feminina padronizada (RIFFEL, 2011). Os lábios, em tom mais escuro, evidenciam o uso do batom, vermelho, forte, porém, como eles não são carnudos, volumosos e nem sugerem a volúpia das pin-ups, estão autorizados, neste conjunto facial, a expressar a “natural” beleza da mocidade. Todavia, diante da proposta de análise deste anúncio, o que se destaca é que a maior qualidade que o produto possui é manter a naturalidade da beleza das “moças brasileiras”, pois o baton Colgate “embelleza os lábios de maneira surpreendentemente natural”, como afirmado no quadro esquerdo do anúncio, colocado ao lado da figura feminina, pois esta afirmação teria sido feita por “milhares de lindas moças brasileiras”. No quadro maior, abaixo, e ocupando a maior parte do anúncio, o valor da “natural beleza” é ressaltado mais uma vez: “Sim! Lábios femininos são lindos, por natureza!... Mas veja: quer fazelos mais expressivos... cheios desse colorido natural e encantador da mocidade?”(sic). Mesmo dando conhecimento da base do batom Colgate, uma substância ou elemento químico chamado “Karanuva”, o que importava era que a naturalidade dos lábios, e consequentemente da beleza da mocidade, seriam evidenciadas mesmo que o produto prometesse “lábios mais cheios de vida e de uma cor seductora, dando-lhes aquella belleza, maciez e irresistivel seducção, que os homens tanto apreciam...” (sic). Portanto, outros lábios deveriam ser desejados: macios, cheios de vida, de cor sedutora, para tornarem-se irresistíveis aos homens, porém, isso deveria acontecer de
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forma que tudo passasse como fosse natural, casto e próprio a uma moça, o que está ainda reforçado pela interconicidade (PIROTTE, 2002) possível de ser estabelecida com a atriz estampada na capa. Jean Arthur não se mostra como uma pin-up, somente alegre e descontraída, com uma blusa de listras azuis finas sobre um fundo branco e de mangas curtas. As duas figuras estão de lado, trazendo a simetria como regra da composição facial. Os cabelos são ondulados, deixando o rosto bem à
mostra, porque domados perfeitamente para serem molduras da beleza sem disfarce. Algumas diferenças estão postas na maneira mais descontraída da artista, cujo sorriso é mais largo, reforçado pelo queixo mais proeminente e pela luminosidade que, sendo colocada do fundo, à esquerda, ilumina os olhos com mais intensidade, assim como aos dentes. O olhar da atriz também é menos submisso, pois olha na altura do fotógrafo, estando seu pescoço menos contorcido para trás, apenas de lado.
Ilustração 2. Capa da Revista “O Globo”. Fotografia da autora
A artista norte-americana que havia sido a protagonista do filme A mulher faz o homem, conecta-se à moça do anúncio tanto por sua imagem como por seu discurso, cujo teor centra-se na jovialidade com alegria e moderação, pois firma-se num contexto maior de promoção da juventude casta e obediente, cujas origens estão relacionadas 116
tanto ao escotismo fortalecido no entreguerras como na ideologia fascista que se firma na adulação de uma geração que renovaria o Estado e expurgaria os vicios do passado (BANCEL, 2010; TRAVERSO, 2006; MaLVaNo, 1996). três termos se destacavam no corpo do anúncio, evidenciado a proximidade com uma
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ideologia de maior controle social e político: natural – moça – brasileira. A natureza, sinônimo de uma condição incontestável, porque posta pelo mundo, advinda de um saber e autoridade absolutos, seria a entidade capaz de dar a cada coisa e a cada um aquilo que realmente merece ou é. De profundo cunho agostiniano, a afirmação sanciona a autoridade do que está posto e desconfia de toda diferença ou excentricidade. De igual forma, o governo Ditatorial do Estado Novo, há quase três anos em exercício na ocasião da publicação, colocou-se como uma saída natural e incontornável diante de uma ameaça “antinatural” da sociedade brasileira – o comunismo -, tanto como promoveu uma série de leis, instituições e ações que creditavam à saúde e à educação a “cura” da nação, devendo ser esta feita a partir da formação dos jovens (SILVA, 1991). O comunismo assim como todos os outros perigos da sociedade moderna e desajustada eram tão impuros e perigosos quanto um rosto feminino disfarçado e mascarado pela maquiagem. Baton e rouge, nesta ordem discursiva, só eram lícitos quando deixassem o rosto, mesmo maquiado, ainda “surpreendemente natural”. A moça ou a mocidade são termos caros aos regimes ditatoriais do século XX. Diferente da juventude, sempre irreverente, disposta a mudar o mundo e a natureza, a mocidade é formada pelos jovens que, antevendo a vida adulta desde já, colocamse como previdentes, respeitam as tradições e autoridades e, sem contestar os adultos e seus valores, esperam sua vez de tomar em mãos os rumos da sociedade. O escotismo criado na Inglaterra por Baden Powell, no começo do século XX, tem em sua estrutura organizacional, como em seus princípios filopedagogicos, a promoção de uma juventude sã porque ordeira e
empreendedora de uma vida coletiva superior (BANCEL, 2010, p. 568). O fascismo e depois o Nazismo defenderam energicamente princípios ideológicos que colocaram a juventude ao centro da construção da Nação almejada, explorando a imagem de um corpo jovem, sadio e atlético como modelo de uma superioridade racial incontestavel (MALVANO, 1996, p. 285). O termo gentílico tem, por sua vez, a força das ideias nacionalistas, sintonizando com a juventude edílica dos regimes totalitários do século XX. A Nação, mais do que nunca, construir-se-ia pela força de seus moços, estes jovens ordeiros e trabalhadores que, orgulhando-se de sua Pátria, faziam a sua Nação resplandecer sobre todas as demais. Segundo Bonemy (1999, p.139), o Estado Novo aspirava a implantação de um grande programa de reformas, por meio do qual se formaria “um homem novo para um Estado Novo: criar um sentimento de brasilidade, fortalecer a identidade do trabalhador, difundir um espírito de civismo e amor a pátria”. Por isso, mais do que moças que apreciavam o natural de suas belezas, elas eram brasileiras que sabiam dos seus deveres com a Pátria, com seus destinos de mães e esposas e seus deveres de seduzir bons maridos e não amantes, pois as paixões são enganosas assim como a maquiagem que mascara. No conjunto da leitura, as moças retêm sua atenção sobre o anúncio, antes ou após se ilustrarem com a nova publicação da Livraria do Globo: O Livro dos Piratas, e, ainda, antes ou depois de concordarem com o conhecido autor Aldous Huxley, de que todos os prazeres mundanos são antigos e deprimentes para a natureza humana e que o único verdadeiramente moderno é o prazer da velocidade, porém muito perigoso e mesmo fatal.
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Dessa forma, a leitura do anúncio, pautada no conjunto dos valores e imagens que a revista expõe, reafirma, pela retórica da conotação, que uma moça, singela e pura, patriota e ciente de seus deveres como mulher, cultiva uma beleza natural, mesmo se usa maquiagem para atrair com mais facilidade o futuro marido, sem se promiscuir nem nas ilusões de Hollywood, nem nos excessos que os tempos modernos propõem. A figura, com sua serenidade e sugestão de submissão, faz entender com clareza que esta seria a posição recomendada a uma moça que pode, sim, usar de maquiagem, desde que preserve sua “natural” condição feminina. Pois, afinal, como Barthes esclarece, a retórica da conotação centra-se na condição que os anúncios possuem de provocar uma significação segunda, a partir de uma significação primeira, aquela dada por cada signo componente da imagem em recepção que, por sua vez, no conjunto se posta como um signo pleno. Isto é possível porque há uma segunda mensagem (conotada), na qual os segundos sentidos derivam da cultura partilhada e de disposições variáveis segundo os leitores. Estruturalmente, essa possibilidade de abordagem do anúncio publicitário é mais importante do que a mensagem literal (denotada), pois “é ela que articula todo o anúncio e, como um eixo, possibilita estabelecer uma relação de equivalência entre a imagem literal e o produto” (BARTHES, 2005, p. 106). Por outro lado, como afirma Péninou: Pa s s a r d a l e t ra ( p ro c e s s o ve r b a l d a conformidade) à figura (invenção de uma conformação) equivale a passar do entendimento à sensibilidade, de uma afirmação motivada pelas propriedades de 3
um bem a uma afirmação motivada por um consumidor, do caráter objetivo ao desejo subjetivo, e, transformação não menos importante, do valor anônimo à apropriação privada do valor (PÉNINOU, 1972, p. 125).
Esclarece, assim, o autor, que o valor intrínseco e funcional de um anúncio é sempre conservado, porém, ao mesmo tempo é também convertido, abandonando a abstração conceitual da propriedade do produto para revestir-se de toda a sedução da figura, o que implica um processo de mimese e catarse, ou, em outros termos, um processo de transferência de “conformidade” para “conformação”, ou seja, a transformação do que era uma informação num modelo de ação pautado pelo desejo de ser um outro, aquele que o produto, ao ser consumido, promete nascer. A poética do ter, no anúncio da Colgate de 1940, consiste em se fazer bela, atraente, cheia de vida e com um ar saudável, demonstrado nos lábios viçosos e nas maças do rosto rosadas, o que os produtos da marca garantiam. Consumi-los, a despeito de qualquer outro, permitia que a moça se colocasse bela, como seria recomendável, para que o futuro marido fosse atraído com presteza, sem ameaçar suas qualidades fundamentais: a suavidade das formas, a naturalidade de seu rosto e a castidade de sua alma.3
Referências BANCEL, Nicolas. Mouvements de Jeunesses. In: LE BRETON, David ; MARCELLI, Daniel. Dictionnaire de l’adolescence et de la jeunesse. Paris: Quadrige/ PUF, 2010. p. 564 -569.
Texto revisado e adequado à nova norma ortográfica por Léa Indrusiak.
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Memória e Política: o confronto simbólico sobre as representações da Guerra do Paraguai (1865-1870) Maria da Conceição Francisca Pires Doutora em História, Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa. O artigo é parte da pesquisa “Centenário do Traço: o humor político de Ângelo Agostini na Revista Illustrada (1876-1888)”, financiada com bolsa de pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional.
Resumo
O seguinte artigo examina as representações humorísticas sobre a guerra do Paraguai produzidas pelo caricaturista italiano Ângelo Agostini (1843-1910) e publicadas nas revistas Diabo Coxo (1864-1865) e Cabrião (1866-1867). A análise contempla as disputas simbólicas e ideológicas que se efetivaram por meio das estampas de Agostini. Com isso, pretende-se assinalar os recursos visuais e discursivos acionados pelo caricaturista para representar a negação das imagens oficiais acerca da guerra e a batalha de símbolos e alegorias que se desenvolveu entre a criação humorística e a memória oficial promovida pelo Estado Imperial.
Abstract
The article examines the humoristics representations on the war of Paraguay produced by the Italian caricaturist Ângelo Agostini (1843-1910) and published in the magazines Diabo Coxo (1864-1865) and Cabrião (1866-1867). The analysis contemplates the symbolic and ideological disputes that if they had accomplished through the prints of Agostini. With this I intend to designate the visual resources and discursivos defendants for the caricaturist to represent the negation of the official images concerning the war and the battle of symbols and alegorias that if developed between the humoristic creation and the official memory promoted by the Imperial State.
Recebido em: 20/10/2010
Aprovado em: 18/11/2010
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Maria da Conceição Francisca Pires
Memória e Política: o confronto simbólico sobre as representações da Guerra do Paraguai (1865-1870)
A Guerra do Paraguai e a construção da Identidade Nacional No interior da historiografia sobre a guerra do Paraguai, identifica-se um grande número de trabalhos que defende o argumento de que a guerra constituiu, ao mesmo tempo, o apogeu do poder do Estado monárquico e o prenúncio de sua decadência. Com a guerra, o Império brasileiro conseguiu estabelecer exércitos nacionais permanentes, importantes por serem independentes das influências regionais e por interferirem nos sistemas de clientela que faziam parte das organizações militares (IZECKSOHN, 2001). Conforme Rui Barbosa (1949), esse acontecimento tornouse um marco referencial para as futuras gerações de oficiais do exército brasileiro. A guerra também foi fundamental para “o despertar da consciência nacional” (SILVA apud LEMOS, 1999, p.176). Segundo Carvalho, a Guerra do Paraguai superou “as proclamações da Independência e da República”, no papel de construir uma identidade brasileira, tornando-se um marco fundador importante, uma vez que até a metade do século XIX “a idéia e o sentimento de Brasil eram limitados à pequena parcela da população.” (CARVALHO, 1997, p.05). No limiar da guerra, em 1865, identificase na produção cultural de Norte a Sul do país a emergência de um grande número de manifestações literárias, teatrais, musicais e pictóricas que tomaram a guerra como fonte de inspiração. Nestes trabalhos, é
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notória a preocupação em evocar o tema da nação brasileira e estimular a ideia de unidade nacional que se organizaria contra o inimigo externo. Dessa forma, a produção cultural desempenhou um papel importante na construção de ideário patriótico e na construção de novos símbolos nacionais que superassem os heróis do passado: A nação era representada não mais pelos grandes heróis do seu período constitutivo, nobres portugueses ou caciques indígenas, [...]. Eram modestos soldados, oficiais quase adolescentes, ex-escravos e índios; [...] a guerra deixava de ser uma causa do governo e passava a ser um problema de todos, fazendo parte da construção de imagens de cidadania (TORAL, 2001, p. 18).
O Estado Imperial, por sua vez, apoiado na crença da função educativa das imagens, soube se valer da produção artística e visual para fomentar um patriotismo e propor uma redefinição identitária não fragmentada, estabelecer interpretações históricas que legitimassem a existência da nação independente, ressaltar a “missão civilizatória”, em que se baseava o Império, e, finalmente, garantir símbolos que inaugurassem a nova história gerada no pós-independência. Desse modo, a veneração cívica que constituía o discurso acerca da guerra fazia parte do processo de fortalecimento de uma memória nacional construída durante o Segundo Reinado. A guerra do Paraguai foi utilizada, pelo governo e seus partidários,
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Memória e Política: o confronto simbólico sobre as representações da Guerra do Paraguai (1865-1870)
como uma espécie de instrumento político que teria a função de [...] legitimar o poder monárquico, fomentar laços de união e de comunhão em torno da nação, conquistar a adesão da população e cultivar as virtudes cívicas nos limites da ordem celebrada. (BASILE, 2006, p.494).
Apesar do empenho para a propagação de um sentimento de harmonia e união, estas não alcançaram o consenso. Entre os anos de 1866 e 1867, após a derrota em Curupaiti que resultou na perda de quase 4.000 mil soldados aliados, proliferaram-se nos jornais manifestações de repúdio à guerra. Com o exame cuidadoso dos debates desenvolvidos no interior da imprensa ilustrada do período, identifica-se o crescimento das objeções a continuidade da guerra, bem como de formas plurais e sutis de expressar a recusa em interagir com os ritos políticos fundados a partir desta. É sobre esse aspecto, do dissenso e não do consenso, que resolvi me dedicar. Mais especificamente, realizo a apreciação das disputas simbólicas e ideológicas que se efetivaram por meio dos desenhos humorísticos do caricaturista Ângelo Agostini, que circularam nas revistas Diabo Coxo (1864-1865), Cabrião (1866-1867) e Vida Fluminense (1868). Com isso, pretendo assinalar os recursos visuais e discursivos acionados pelo caricaturista para representar a negação das imagens oficiais acerca da guerra e a “batalha de símbolos e alegorias” (CARVALHO, 1990) que se desenvolveu entre a criação humorística e a memória oficial.
Entendo que, embora coubesse ao Estado Imperial o papel principal na definição dos temas, eventos e personagens a serem celebrados e no fornecimento de padrões valorativos para a apreensão desses eventos, não se pode desconsiderar, na análise desse processo, como o humor interveio no trabalho de constituição de uma memória da guerra. A apropriação humorística dos símbolos e das imagens de personagens centrais na guerra serviu para integrá-los ao cotidiano dos leitores dos periódicos ilustrados e popularizar imagens, nem sempre positivas, que por vezes transcendiam as representações criadas pelo próprio Império. Tratava-se, portanto, de uma disputa pelo poder simbólico que, por sua vez, serve de suporte e fundamento para legitimar o poder político. Com essa análise, aspiro vislumbrar de que forma tais críticas, ao lado dos problemas inerentes à guerra – como os altos custos financeiros, humanos, sua longa duração e as suas consequências externas e internas –1, colaboraram para dar visibilidade aos conflitos sociopolíticos internos que se desenvolviam e para colocar em dúvida a legitimidade do Estado Imperial. Essa investigação mostra-se proveitosa por favorecer a compreensão e visualização das ideias e valores que nortearam alguns grupos, à época, considerados marginais, e dos procedimentos estéticos, discursivos e políticos eleitos para conferir legitimidade aos seus projetos e à sua produção humorística. Acredito que por meio do exame das imagens humorísticas produzidas para legitimar, criticar ou reivindicar um projeto de sociedade e de Estado, em conjunto com a
Estima-se que 614 mil contos de réis foram investidos na guerra. Algo exorbitante quando se compara com o orçamento anual do governo imperial em 1864, que girava em torno de 57 mil contos de réis. Quanto aos custos humanos é importante atentar para o fato de que a guerra ocorreu num momento de expansão da atividade agro-exportadora. Isso significou uma perda expressiva de trabalhadores jovens – a idade para o alistamento obrigatório era entre 15 e 39 anos – que eram convocados para assumir os batalhões de combate.
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observação das formas de compartilhamento e transmissão, identificam-se alguns elementos (mitos, ideologias, tradições) que fizeram parte do imaginário político da segunda metade do século XIX. Na abordagem proposta, os desenhos de Agostini foram tratados como recursos empregados para potencializar a mobilização política contrária ao Império, mediante a negação e do questionamento das formas políticas imperiais, do seu corpo político e de suas práticas. A sua produção humorística tornou-se, portanto, meio de expressão e de veiculação das ideias e opiniões dos grupos contestadores, que se avolumaram desde os anos 1860 e que radicalizaram sua ação na passagem para os anos 1880. Com essa análise, a imprensa humorística, assim como as associações, as sociedades e os meetings, foram verificados não só como locais ecléticos de produção de cultura, mas como um espaço público alternativo utilizado por grupos marginalizados politicamente para encenação de práticas políticas e culturais novas e diversificadas. A nova imprensa fez parte das redes de comunicação utilizadas por intelectuais e grupos de diferentes tendências políticas. Embora distintos, esses grupos formaram redes sociais interdependentes e um movimento político intelectual, na medida em que partilhavam dois aspectos: uma experiência de marginalização política e um mesmo repertório crítico em relação ao Império (ALONSO, 2002). A partir dos repertórios político-intelectuais disponíveis, esses grupos produziram, por meio das controvérsias propagadas na microesfera pública em formação, alteridades e, ao mesmo tempo, definiram as fronteiras de seus pertencimentos (BARTH, 1976). O trabalho analítico que desenvolvi perquiriu as formas plurais com que o universo simbólico projetado 124
pelo Império foi incorporado e ressignificado pelo discurso humorístico, apresentandose carregado de significados políticos que abalavam, simbólica e empiricamente, sua legitimidade. Essa abordagem valorizou, portanto, “outras de suas facetas, funções e movimentos diferentemente políticos” (SEIXAS, 2001, p.44). Dediquei-me especificamente para a apropriação, por parte da produção humorística, dos símbolos e imagens dos personagens políticos centrais do Império e como, por meio desse processo, esses grupos puderam desvelar rupturas e contradições. Ao realizar essa análise na esteira epistemológica da micro-história, o debate político desenvolvido por esse movimento político-intelectual, torna-se cognoscível a partir da interpretação de suas partes, ou seja, dos diferentes locais onde se manifestou, das novas práticas associativas ensejadas, dos novos veículos de expressão utilizados e do repertório empregado para alcançar seu objetivo. Partilho da premissa de que “a ação política coletiva além de criar e/ou fortalecer laços comunitários, engendra também novas formas culturais” (ALMEIDA, 2008). No caso em questão, estamos diante de uma forma de ação política que enredava multiplas leituras do passado, denotando uma consciência histórica no discurso humorístico. A análise das representações humorísticas de Agostini, sobre as disputas do poder político, possibilitou vislumbrar as formas de ação política, levadas a frente via humor, o papel relevante que a sua produção humorística teve na microesfera pública, os projetos políticos os quais se associou e, finalmente, oferece condições para que se tenha acesso à compreensão que aquele intelectual humorista tinha de seu papel político.
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Memória e Política: o confronto simbólico sobre as representações da Guerra do Paraguai (1865-1870)
Os primórdios da Guerra na cobertura do Diabo Coxo O italiano Ângelo Agostini chegou ao Brasil em 1859. Embora não disponha de dados muito precisos acerca de sua biografia, sabe-se que passou sua adolescência em Paris onde, certamente, alimentou seu conhecimento no campo da pintura e das artes gráficas. No Brasil, começou sua carreira artística como pintor retratista, mas consolidou seu espaço artístico atuando como caricaturista nas revistas Diabo Coxo (18641865) e no Cabrião (1866-1867), ambas produzidas na cidade de São Paulo (RIBEIRO, 1988). Essa é uma coincidência que merece destaque: foi durante os movimentados anos da guerra que Agostini solidificou seu espaço na imprensa humorística paulistana, especificamente com a abordagem das questões relacionadas à guerra, e, ao mesmo tempo, definiu seu posicionamento político, na maior parte dos casos, crítico das ações e práticas do governo imperial. O primeiro número do domingueiro Diabo Coxo saiu no dia 17 de setembro de 1864. Redigido por Luiz Gama, dispunha ainda da colaboração de Sizenando Barreto Nabuco de Araujo, na redação dos textos, e de Ângelo Agostini, com um traço ainda pouco rebuscado, na parte ilustrativa. Em seu editorial de lançamento, apresenta-se como uma tentativa de utilizar a imprensa, “maior inimiga dos maus”, como uma forma de “desmascarar e castigar a esses entes criminosos ou ridículos estúpidos ou orgulhosos”. Afirma-se, portanto, como portador de uma cobertura política pretensamente independente (CAGNIN, 2005).
A guerra logo se tornou o principal tema abordado no Diabo Coxo, sobretudo depois de sua fase inicial patriótica e quando ganhou destaque na imprensa com os problemas relativos ao decréscimo no número de voluntários para servir no Paraguai. Apesar dos esforços do governo imperial para estimular o empenho patriótico dos brasileiros e das medidas tomadas visando resolver esse problema,1 tais ações se mostraram insuficientes. Diante dos problemas ocasionados pela crescente necessidade de ampliação do seu exercito, e dada a ausência de uma burocracia governamental para organizar o recrutamento militar, o recrutamento forçado, previsto na constituição do Império foi a opção final adotada e a que mais gerou polêmica por lançar luz sobre questões relacionadas à cidadania, a escravidão e sobre a relação entre Estado e sociedade. Eram recrutados prioritariamente homens livres solteiros, em seguida eram chamados os casados sem filhos, os casados com filhos e, finalmente, os viúvos com filhos. Ficavam de fora desta lista mulheres e escravos, embora as primeiras pudessem acompanhar os seus esposos no front. Em virtude da ampliação das necessidades de homens, tornaram-se recrutáveis também aqueles considerados “vadios, bêbados e valentões”, além de homens pertencentes às hierarquias sociais mais altas. Com o desenrolar da guerra, a imprevisibilidade dos seus rumos e o alargamento dos critérios para o recrutamento, este se tornou um dos maiores temores dos homens livres que buscavam diferentes pretextos (doenças, súplicas, filhos) para alcançar a isenção. Como resposta à essas
Foram dois os decretos criados pelo governo imperial com esse fim: o primeiro foi o decreto n. 3371, de janeiro de 1865, que criou o corpo de Voluntários da Pátria; no segundo, decreto n. 3383 de 21 de janeiro de 1865, enviou cerca de 14.000 guardas nacionais para o front. Em 1866, o governo imperial determinou a compra e alforria de escravos para servir na guerra.
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práticas, os encarregados do recrutamento (delegados e chefes de polícia) faziam uso de argumentos legais e morais, também diversificados e duvidosos, para recusar a dispensa. A ampliação das prerrogativas do Estado imperial para o recrutamento forçado tornouse o alvo das polêmicas levantadas por Agostini. Especificamente, o desenvolvimento de ações abusivas por parte do Estado que implicavam a violação dos direitos individuais dos homens livres do Império brasileiro. O debate que se estabeleceu relacionou o recrutamento forçado, antes concebido pelo
discurso nacionalista oficial como um ato patriótico, à violência e à ilegalidade. Três desenhos, publicados no Diabo Coxo, fazem menção a esse problema e lançam luz sobre temas como escravidão, cidadania e a relação entre Estado e sociedade, ao mesmo tempo em que coloca em xeque o caráter liberal do Estado Imperial ao apresentar as ações como abusivas e tirânicas. No primeiro, publicado no Diabo Coxo em 15 de outubro de 1865, denomina-se de “Scenas Liberais” a entrada de recrutas brancos algemados e descalços na cidade, numa condição que iguala o recrutamento à escravidão de homens brancos e livres.
Figura 1. Diabo Coxo, 15/10/1865. Scenas Liberaes. Entrada de recrutas na capital. Que escândalo!...
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a posição dos personagens da revista, que assistem a tudo da janela, oferece um sentido de cotidianidade à cena. Vários papéis são invertidos nessa cena: os que aparecem com pés descalços e em condição de subjugação não são escravos, mas homens brancos e livres; ao Estado, a quem caberia o dever de proteger os direitos individuais do cidadão, cabe o papel de tirano que escraviza não só homens brancos, mas também a mulher que carrega uma criança no colo, aumentando assim o escândalo. A sua figura, apartada da fileira, descalça e sem algemas, nos remete a pensá-la
como um símbolo da família que parece não poder contar mais com a proteção do marido e tampouco do Estado; finalmente, o caricaturista investiu na inversão do sentido do recrutamento, concebido inicialmente como expressão do patriotismo que incitava os brios do cidadão brasileiro, é apresentado na imagem como uma ação de captura que fere sua integridade e sua honra. Na segunda imagem, que consta na edição de 03 de setembro de 1865, Agostini faz um trocadilho na legenda que anuncia “Caça de patriotas para voluntários involuntários.”
Figura 2. Diabo Coxo, 03/09/1865 caça de patriotas para voluntários involuntários
com essa legenda, somada a postura de resistência dos personagens, o autor reforça a associação entre recrutamento, escravidão e violência, ao mesmo tempo em que lança dúvida sobre os limites que o Estado estaria disposto a manter para garantir a preservação dos direitos individuais. O desenho parece se contrapor ao texto publicado anteriormente, no dia 09 de agosto
de 1865, no Correio Paulistano em que consta a tentativa de minimizar os boatos negativos sobre o recrutamento forçado e de reforçar a preocupação do Estado em garantir a legalidade de suas ações. Conforme o texto: [...] não se trata (ainda) de suspensão de garantias, não se há de curar disso de certo [...] Há exageração, entretanto, no que se
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maria Da conceição francisca pires diz a respeito dos meios de que os poderes do Estado vão lançar mão para acudir às precisões da atual luta em que nos vemos empenhados. [...] Esses contingentes serão tirados, consoante as determinações da lei, por meio de conselhos designadores [...] (Correio Paulistano, 09/08/1865).
Finalmente na terceira imagem, publicada na ultima edição do Diabo Coxo, em 31 de dezembro de 1865, e que, ao contrário das demais, aparece um negro, a ironia refere-se à ideia de civilização e barbárie apresentada. observe-se que enquanto o soldado
chama os paraguaios de “bárbaros” e afirma estarem ali os responsáveis pela sua libertação, a tropa que o acompanha vem acorrentada pelo pescoço e de mãos atadas. Pelo exposto, a barbárie estaria dos dois lados. Na verdade, a barbárie parece fazer parte de um ethos próprio da sociedade escravista brasileira, representado pelo açoite de um recruta ao fundo da imagem. As ações dos responsáveis pelo recrutamento desmentem o seu discurso salvacionista, patriótico e pretensamente civilizador.
Figura 3. Diabo Coxo, 31/12/1865 – Barbaros paraguayos! Aqui vos trago uma cohorte de voluntários, para libertar-vos
as imagens ressaltam a violência e a ilegalidade que acompanha o recrutamento e o consequente desrespeito às noções de cidadania e liberdade, reforçam a associação deste com a escravidão, e, ao mesmo tempo, desvirtuam o discurso nacionalista oficial. Não há objetivamente um questionamento dos fins da guerra, mas das ações do Estado em função da guerra, bem como percebe-se o esforço em atrelar os problemas vividos a partir da guerra com questões mais amplas que compreendem as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade brasileira. o cerne da questão abordada por agostini referiu-se a nuances políticas da guerra, 128
geralmente diluídas ou minimizadas pelo discurso oficial, como os desmandos do Estado para a concretização da campanha contra Solano Lopez e os problemas derivados da longa duração do conflito. Caxias: um líder em xeque nas páginas do Cabrião Num segundo momento da guerra, entre os anos de 1866 e 1867, já fazendo parte do Cabrião, agostini dedicou grande parte dos seus desenhos para discutir a liderança do Marquês de Caxias, futuro Duque, que assumiu o comando da guerra em outubro
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de 1866, após o desastre da batalha de curupaiti. Não se tratava apenas de discutir, por meio do humor, as estratégias adotadas pelo novo comando, mas de ilustrar o despreparo do comandante-em-chefe e da própria nação brasileira para o enfrentamento na guerra e, ao mesmo tempo, direcionar tais críticas ao gabinete conservador ao qual Caxias estava vinculado. Deste modo, abordar a guerra, naquele momento, tratou-se de uma forma de fazer menção ao modo como Caxias, do partido conservador, soube utilizar a guerra para defender os interesses do seu partido, entrelaçando o jogo político nacional com a guerra. Conforme Schulz (1994), em 1866 a guerra entrara em sua segunda fase,
considerada mais crítica por não dispor de uma estratégia e uma liderança que alcançasse o consenso entre brasileiros e argentinos. os problemas se acirraram em 1867, quando os argentinos se voltaram para os seus conflitos internos, nas províncias de Corrientes e La Rioja, e as tropas enfrentaram intensas dificuldades pela região pantanosa em que se encontravam. Foi para superar esse quadro de crise que foi designado o Marquês de Caxias, um conservador, em meio a um gabinete liberal. Nos desenhos, apresenta-se um líder patético e afeito a detalhes, cuja inércia se tornou responsável pela longa duração da guerra. É o que consta na representação abaixo, publicada no número 25, de 24 de março de 1867, no Cabrião:
Figura 4. Cabrião, n. 25, 24/03/1867 Victoria: Se a cousa vae assim meu Marte, estou vendo que quando deixarmos a campanha estaremos de cabellos brancos! Marte: Que queres minha filha?! o general não decidio-se ainda. Esta instruindo-se nos livros...agora mesmo esta elle agarrado ao D. Quixote; ainda lhe falta ler a historia de cento e tantos heroes! Victoria: os soldados brasileiros são valentes e eu tenho grande desejo de acompanha-los aos combates...mas se a amolação continua...raspo-me!
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o diálogo entre a vitória e um soldadomártir, pertencente aos quadros militares que atuavam na Guerra do Paraguai, tem como tema as ações ou, para ser mais específica, a suposta falta de ação do Marquês de Caxias. Ao fundo da figura, o Marquês é retratado lendo, em pleno acampamento de guerra, livros que tratam de histórias de guerras ou dos heróis de grandes batalhas, enquanto os soldados aguardam suas ordens. Essa não foi a primeira, nem a última, imagem produzida por agostini utilizando a figura do Marquês para fazer uma crítica às lideranças, políticas ou militares, da guerra do Paraguai e aos rumos tomados pelo combate. Não se tratava apenas de discutir, por meio do humor, as estratégias adotadas pelo novo comando, mas de ilustrar o despreparo do comando-chefe e da própria nação brasileira para o enfrentamento na guerra e, ao mesmo tempo, direcionar tais críticas ao
gabinete conservador ao qual Caxias estava vinculado. tratava-se, pois, do desenvolvimento de uma crítica política mediante a apropriação jocosa dos símbolos e personagens que, naquele momento, estariam vinculados ao interesse, por parte do Império brasileiro. com a utilização da imagem do comandante das tropas brasileiras no confronto, as referências à guerra adquirem um caráter enfaticamente político, uma vez que se reforça a associação entre o general conservador e a ideia de inação que tomava conta não só da guerra, mas do país. No desenho abaixo, publicado no número seguinte do Cabrião, em 31 de março de 1867, o país, representado na figura do índio, aparece em luta não contra o inimigo distante – a fortaleza de Humaitá que consta no fundo direito –, mas contra suas representações políticas, no caso os saquaremas e os progressistas.
Figura 5. Cabrião 31 de março de 1867 Extenuado de forças, sempre envolvido nas lutas dos partidos que debalde intenta acalmar, eis a posição do Brasil em relação a guerra do Prata.
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a mesma ideia está presente na ilustração abaixo:
Figura 6. Cabrião, n. 48 de 08/09/1867 – Festejos do dia 07 de setembro. O Brasil terá consciencia do papel que representa?
Nesta imagem, a guerra e a política atrasam o país diante do gabinete liberal de Zacarias de Góes e Vasconcelos e do Imperador, que parecem distraídos na valorização do apelo patriótico da guerra, ignorando suas implicações para o país. As representações humorísticas sobre a guerra do Paraguai apontam para os problemas inerentes às ações desenvolvidas pelo Estado Imperial. contestam não só a monarquia, mas a tradição imperial, as formas políticas e simbólicas de legitimação do regime e aos limites do liberalismo imperial, indicando os aspectos a serem superados. Talvez seja até possível afirmar que estas auferiram significados antitradicionais a tradição imperial. Minha preocupação é mostrar que essas
representações não eram formas isoladas de contestação, mas que o seu conteúdo discursivo partilhava do mesmo repertorio político intelectual crítico do Império. Podem ser definidas como parte de um movimento, na medida em que se entende por movimento “grupos de pessoas identificadas por seu vínculo a um conjunto particular de crenças.” (TILLY apud aLoNSo, 2002, p.268). Desse modo, a produção humorística de Agostini fez parte de um movimento coletivo, ao mesmo tempo cultural e político, desenvolvido em espaços não partidários, as revistas ilustradas, mas que se configuram como redes informais de solidariedade e de ação política que unem grupos diferenciados e interdependentes. Finalmente, interessa-me ressaltar que
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essa rede de manifestação parainstitucional reforçou formas de ações políticas coordenadas com sentido semelhante, integrando-se, dessa forma, à dinâmica política do período.
CAGNIN, Antonio Luiz. “Foi o Diabo!”. In: Diabo Coxo. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. CARVALHO, Jose Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
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resenhas
PARANHOS, K.; LEHMKUHL. L.; PARANHOS, A. (Org.). História e Imagens. Textos Visuais e Leituras. Campinas: Mercado das Letras, 2010, 191p.
Terezinha Oliveira Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997). Realizou, em 2005, estágio de Pós-Doutorado em História e Filosofia da Educação, na Faculdade de Educação da USP. Publicou 46 artigos em periódicos especializados. Possui 14 Livros publicados e 39 capítulos. Atualmente é professora associada nível C da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação, especialmente em Filosofia e História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: transformação social, história da educação na Idade Média, escolástica, filosofia da educação na Idade Média, Intelectuais e Instituiçoes Educacionais na Idade Média e formação de professores.
Recebido em: 25/10/2010
Aprovado em: 15/11/2010
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Terezinha Oliveira
PARANHOS, K.; LEHMKUHL. L.; PARANHOS, A. (Org.). História e Imagens. Textos Visuais e Leituras. Campinas: Mercado das Letras, 2010, 191p.
A Coletânea organizada por Paranhos, Lehmkuhl e Paranhos constitui-se em um conjunto de estudos que privilegiam, com o olhar da história e da imagem, o teatro, a fotografia, o ensino da história, o filme, enfim, a imbricada e complexa relação entre as linguagens humanas. A obra é composta por oito (8) textos e uma seção crítica de cinema. Os escritos que constituem a obra são de professores de diversas Universidades do país. Em cada um dos capítulos, observa-se o trato com a fonte da pesquisa de um modo específico, mas um tecido de dois fios os une. Indubitavelmente, o estudo da imagem e a perspectiva da história cultural perpassam de um modo pendular cada um dos estudos. Em todos os artigos há a presença destes dois fios. No primeiro texto, ‘O Grupo de Teatro Galpão e os espetáculos de rua: imagens leituras e cenas’, de Kátia Rodrigues Paranhos, a autora inicia o discurso destacando o fato de que sua abordagem é no âmbito da história cultural pelo fato desta permitir o diálogo com uma multiplicidade de interlocutores como a ‘antropologia, a literatura, a história da arte’. Do ponto de vista de Rodrigues Paranhos, este diálogo é decisivo para a compreensão do entrelaçamento entre o texto escrito, as peças de teatro e suas respectivas encenações. O objeto de análise da autora são as encenações de rua promovidas pelo grupo de teatro ‘O Galpão’. Rodrigues Paranhos analisa o conteúdo político de algumas encenações
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do Grupo e destaca esta característica: “A proposta de arte operária – encampada por muitos grupos teatrais que atuavam na periferia – ligava dois pólos: política e estética” (p. 23). Um dos aspectos mais relevantes deste modelo de encenação reside no fato de que é basicamente uma proposta de arte operária, na qual, visivelmente, observa-se a ação política do povo. De acordo com a autora, especialmente pós 1964, verificou-se o surgimento de grupos teatrais de rua com o fito de produzir uma arte engajada, em que se explicitava a crítica à sociedade burguesa brasileira e ao capitalismo. Suas reflexões apontam os elos existentes entre o texto escrito, a encenação, a imagem representada da encenação e as movimentações políticas. Sob este aspecto, o texto revela as ações sociais populares por meio de diversas linguagens: o texto, a representação e as imagens provenientes das cenas teatrais. Nesse sentido, ela demonstra que o fazer história a partir destas diferentes linguagens é possível em decorrência das “[...] transformações que abalaram tanto a escrita da história quanto a eleição de novos objetos a serem estudados [...]” (p. 21). Essas mudanças proporcionadas pela abordagem cultural colocaram na ordem do dia ‘múltiplas possibilidades’ de leituras do passado. No segundo texto, de Ernani Maletta, ‘Imagens Sonoras: a música no Grupo Galpão como criadora de espaços cênico-dramáticos’, o autor apresenta uma instigante e original pesquisa acerca dos possíveis estreitamentos
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Resenha
entre a sonoridade da música e a imagem. O estudo apresenta uma reflexão sobre a forma imagética que a música pode assumir quando da sua representação em teatros populares de rua. O autor se propõe a tecer um quadro de como se processa a polifonia – ‘coexistência de várias vozes’ – em quatro (4) peças encenadas do Grupo Galpão. Em cada uma delas, Maletta demonstra as [...] construções polifônicas na qual o discurso da música afeta o espectador não apenas por intermédio dos parâmetros sonoros, mas também pela sua capacidade de sugerir imagens e ressignificar espaços e lugares, criando espaços cênicos-dramáticos (p. 35).
Seu texto, tal como a de Kátia Paranhos, reflete as múltiplas possibilidades de leituras dos objetos da e na história. Ao dar imagem à sonoridade das cenas das peças do Grupo Galpão, Maletta proporciona ao leitor uma leitura ímpar das encenações do Grupo, pois não se trata de ver a imagem no texto escrito, mas ela é criada e encenada a partir da sua musicalização. A partir desta premissa, o autor tece um belo histórico sobre as encenações teatrais, as manifestações populares que o Grupo apresenta e brinda o leitor com uma interpretação acurada do sentido profundo da música, analisando partituras, os discursos encenados, as letras e, fundamentalmente, refletindo sobre a profundidade da imagem transmitida pela sonoridade e vozes dos atores que representam na peça. O texto de Maletta aponta para uma nova leitura da imagem e da história, na medida em que transforma a polifonia das peças em objeto do estudo da história, da imagem, das ações do povo. Torna, assim, a leitura do objeto da história múltipla. O terceiro texto, de Luciene Lehhmkuhl, ‘Fazer história com imagem’ se dispõe a construir uma abordagem histórica, tendo
como objeto de análise um quadro de René Magritte, Le retour. A partir do quadro, a autora tece seu discurso debatendo importantes temas da história e do ‘ofício’ do historiador. Um dos aspectos salientados por Lehhmkuhl relaciona-se às possibilidades de construir a história para além dos documentos escritos e das narrativas orais. A autora toma a imagem do artista como fonte de seu estudo. Para construir seu tear histórico, ela traz à mesa, tal como Dante, na Divina Comédia, diferentes autores com os quais dialoga para construir seu discurso. Foucault, Gervereau, Gombrich, Schorske participam de seu banquete. Ao tomar de Schorske a comparação que ele faz entre o historiador e o tecelão, Lehhmkuhl define o fazer do histórico como [...] a busca desse fio de cor firme é que proponho, neste texto, percorrer alguns passos que considero fundamentais para a utilização de imagens na operação historiográfica, tanto em pesquisa quanto em sala de aula (p. 57).
Para construir o ‘fio firme’, a autora busca explicitar como a imagem é construída, como ela é lida pelo artista, pelo espectador, pelo historiador, pelo aluno, como esta imagem pode ser usada para a construção de novos discursos nos processos de ensino na sala de aula. Lehhmkuhl destaca que um dos aspectos essenciais para transformar a imagem em objeto do fazer história reside no olhar com que se dirige à imagem. Segundo ela, uma imagem não é ‘simplesmente vista’: ela deve ser contemplada, pois, tal como o documento escrito e o discurso oral, a imagem possui uma materialidade que precisa ser analisada. Essa materialidade é construída, para o espectador, historiador, em diferentes aspectos, seja no momento de sua construção pelo artista, seja quando de sua preservação nos museus, arquivos,
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Terezinha Oliveira
bibliotecas etc. O discurso da autora nos remete a Michelet, quando, no século XIX, afirmou, ao adentrar em um arquivo, que os documentos falam e têm vida. A imagem também tem vida e linguagem própria e cabe a nós, historiadores, saber apreendê-la. O quarto capítulo, de Marliz de Castro Vieira Christo, ‘Representações oitocentistas dos índios no Brasil’, elabora sua análise por meio de imagens de artistas que retrataram o período colonial brasileiro, especialmente as figura dos nativos, da natureza e dos colonizadores. Sobre estas reproduções, destaca a recorrência com que as imagens dos indígenas, da natureza (flora, fauna), foram reproduzidas na Europa, inclusive em objetos de uso cotidiano, como em louças. Segundo a autora, logo após a descoberta, houve um uso, em profusão, de imagens que retratassem o novo continente. Um dos seus focos de reflexão são os desenhos feitos por viajantes, no século XIX, quando de suas passagens pelo país. Marliz de Christo apresenta algumas hipóteses que são bastante interessantes para a (re) construção da história do Brasil no período. Uma delas vincula-se à possibilidade destas imagens reproduzirem imagens idealizadas que estão, de certo modo, comprometidas com a maneira como os europeus viam o novo continente. Neste sentido, estas imagens estariam eivadas de estereótipos que, em última instância, não retratavam os nativos, mas o que se concebeu, a priori, ser o nativo. Ao longo do texto, são analisadas diferentes imagens e as respectivas funções que elas ocuparam nos discursos do período colonial. Marliz de Christo observa que uma das imagens mais usadas para retratar o período colonial brasileiro foi a da primeira missa. Segundo ela, as inúmeras representações deste episódio serviram para explicitar o processo de conquista e catequização dos 138
nativos. Outras cenas que destacadas como recorrentes nas imagens do Brasil são as que retratam episódios nos quais as três raças são reproduzidas, o branco, o índio e o negro. Contudo, Marliz de Christo salienta que a figura mais exposta no período é a do indígena. Ela nos chama a atenção para o fato de que este personagem é retratado com melancolia, apatia e, por vezes, uma imagem morta. Para Castro, as imagens do período colonial, particularmente as do século XIX, explicitam a ideia que se pretendia construir dos índios, dos colonizadores, em suma, do Brasil. Elas tinham como finalidade forjar uma identidade. Essa deve ser uma das razões pelas quais a autora afirma que “A pintura histórica foi até o final do século XIX o gênero artístico mais valorizado” (p. 83). Um último aspecto do texto sobre as imagens do Brasil, no século XIX, deve ser destacado: as considerações da autora sobre a forma como os bandeirantes são retratados na pintura de Bernadelli. Segundo Christo, este artista apresenta um bandeirante ‘animalizado’, diferente daquele apresentado pela historiografia do período. Ao trazer à tona e valorizar esta imagem, ela explicita sua posição de historiadora comprometida com as mudanças no fazer da história: voltar-se para o povo e para as minorias, por meio da utilização da imagem. O quinto texto da Coletânea, de Ana Heloisa Molina, ‘Da marcenaria de uma pintura: elementos de análise de um quadro em uma aula de História’, propõe-se a analisar as estruturas internas de uma imagem em aula. A autora se dispõe a fazer este estudo minucioso de uma pintura tendo como referenciais ilustrações em livros didáticos entre os anos de 2000 a 2007. Ainda que Ana Molina observe que não é “[...] sua intenção nesse texto eleger o livro didático como instrumental de análise [...]” (p. 112),
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Resenha
ela o toma como referência por reconhecer que o (a) professor (a), na maioria das vezes, só tem as imagens do livro didático para usar como pintura na sala de aula. Para Ana Molina, ao tornar uma imagem objeto de ensino de história, é preciso considerar todas as particularidades que envolvem tal ação. No âmbito da imagem é preciso considerar inúmeros aspectos. Em primeiro lugar, não há uma uniformidade, nas pinturas reproduzidas nos livros didáticos, quanto à representação de um mesmo episódio histórico. Logo, é preciso considerar a pintura à luz da imaginação do artista, do seu conhecimento do retratado, da concepção que ele tem do acontecimento, das dimensões que esta imagem está reproduzida, do espaço, da luz, das posições da imagem, do estilo do artista, dentre outros aspectos. Um segundo aspecto, acerca do uso da pintura como recurso na sala de aula, diz respeito à própria atenção que se deve ter em relação à reprodução da imagem no livro. Sob este momento da aprendizagem, a autora salienta alguns cuidados que se deve ter para a leitura das reproduções. Nas imagens utilizadas por Ana Molina, destaca-se o fato de que poucas são as informações sobre a pintura, não há descrições, por exemplo, de seu contexto e do estilo do autor. Além da ausência de informações sobre a origem da obra e do artista, outro problema ronda as imagens que são os seus subtítulos. Para a autora, essas duas situações exigem uma percepção muito atenta do (a) professor (a), pois, a ausência de informação, de um lado, e o destaque (pelo autor do livro didático) para uma dada informação, por outro lado, podem levar a interpretações equivocadas da história. Em virtude destas situações, Molina chama a atenção para o fato de que em
um universo, o da sala de aula, no qual há o predomínio constante da linguagem escrita e oral, o uso da linguagem imagética é muito importante, mas o (a) professor (a) precisa estar atento (a) para que, no ensino, a imagem não seja [...] somente para motivar e envolver, mas, ressignificar e organizar conceitos, retomando e recolocando esse documento como um lugar privilegiado para perceber intercâmbios das experiências e sensibilidades humanas, construídas historicamente (p. 121).
O sexto texto, ‘Ensaios sobre distâncias – imagem e sujeito’, de Maria Bernardete Ramos Flores e Ana Lúcia Vilela, traz à luz uma bela análise sobre a imagem apresentada no retrato. As autoras constroem suas reflexões a partir do distanciamento existente entre a imagem que é registrada em uma foto, em uma pintura, em uma cena fílmica e o sujeito, em tese real, que é representado. O texto, a partir de cenas de filmes, de romances, de fotos, de pinturas, trabalha as diferenças e separações no âmbito da materialidade da imagem que é representada e o sujeito real. Dentre as inúmeras situações analisadas pelas autoras, destacamos um exemplo que julgamos importante para compreender a dimensão e atualidade do estudo destas, pois é uma situação na qual vivenciamos, com radicalidade, a ausência do sujeito na imagem de si mesmo, ou seja, a imagem não está separada, o sujeito da imagem não existe. Trata-se dos reality shows. “Cada participante representa a si mesmo nas situações criadas pelo jogo. Do que estão desprovidos é justamente da imagem de si que o Outro deveria oferecer, e somente oferece em momentos esporádicos e limites como o momento do paredão” (p. 135). Ramos Flores e Vilela explicitam tal sensibilidade nas suas reflexões sobre a imagem, que apontam
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para uma perspectiva da história que muito nos aproxima da subjetividade da psicanálise. Assim, mais uma vez, nesta Coletânea, o fazer da história é aliado a outros campos do conhecimento, o que seria impensável antes da história cultural. O sétimo capítulo, ‘Imagens contemporâneas: experiências fotográficas e memória no século XX’, de Ana Maria Mauad, apresenta uma análise sobre as complexas e dialógicas relações existentes entre as imagens e as demais linguagens da história. Esse diálogo complexo preencheu as arestas que existiam entre os discursos visuais, escritos, orais, fílmicos, tornando ambiência da história todos os múltiplos discursos. Essa amplidão do diálogo possibilita ao historiador compreender, elaborar, construir e interpretar as redes sociais que compõem o todo da sociedade. Diante deste cenário, a imagem adquire característica de sujeito no fazer história. É em virtude deste novo status da imagem que a autora afirma que Não se busca mais apenas a história por detrás das imagens, mas a história das imagens e dos sujeitos que, atentos às transformações do mundo, produziram estas mesmas imagens (p. 145).
No cenário do texto, a fotografia transforma-se, como imagem que é, em objeto da história e o ator principal na produção desta imagem, o fotógrafo, passa a ser um sujeito da e na história. Tendo como parâmetro esta percepção da história e da fotografia, Mauad constrói seu texto explicitando diferentes perspectivas da fotografia no século XX, brinda-nos com uma bela narrativa acerca de grandes nomes da fotografia do período e, nesta tela, evidencia como estes fotógrafos-sujeitos tornaram-se importantes personagens para a história.
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No oitavo texto, ‘Cinema na pesquisa e no ensino da história: dos dilemas às possibilidades’, Ana Paula Spini reflete sobre as influências das novas mídias no ensino, seja na escola, seja na universidade. A autora destaca o fato de que não se pode mais desconsiderar a linguagem fílmica, a internet e os diferentes recursos de áudio existentes. O problema, do seu ponto de vista, é que muitos destes instrumentos continuam sendo considerados como acessórios e não como passíveis de interagir diretamente na produção de novos saberes, de novos modos de ensino. O objeto de análise da autora é o filme, portanto, o apresenta como uma das possibilidades de produção do conhecimento e, por conseguinte, também do fazer da história. Spini está atenta às dificuldades inerentes ao ensino nacional e explicita que a escola está enfrentando grandes dificuldades diante das mudanças que estão ocorrendo no cotidiano social. Em face disso, a autora apresenta o filme como um dos caminhos viáveis para o ensino e para a pesquisa. De acordo com Spini, em virtude da beleza, da sensibilidade, da sonoridade, do enredo, das cenas, o filme deixa de ser um recurso ilustrativo e transforma-se em uma possibilidade de ressignificação da história “[...] de ferramenta, o cinema passa a ser tratado como linguagem [...]” (p. 167). Sob esta perspectiva, a autora apresenta e analisa algumas situações nas quais a linguagem fílmica é um caminho para o saber histórico, particularmente quanto à construção da memória. Um dos exemplos considerados por ela são os filmes produzidos a partir dos anos 1980 e 1990 sobre a guerra do Vietnã, nos quais as narrativas de veteranos possibilitam outros cenários da guerra. Desse modo, Spini constrói uma leitura da história que perpassa diretamente pela linguagem/ imagem fílmica.
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Resenha
O nono texto, ‘Moscou, ensaios e cenas de Tchekhov: os impasses de um documentário’, de Eduardo Escorel, é uma análise crítica do filme/documentário Moscou, baseado na peça “As Três Irmãs”, de Eduardo Coutinho. Assim, ao apresentarmos os textos que compõem a obra História e Imagens, procuramos explicitar que esta Coletânea aponta um caminhar para a história e para imagem: o profundo estreitamento existente entre ambas. Este caminhar não seria possível se não existisse uma sintonia entre as diferentes leituras que aqui foram apresentadas pelos autores. Como um grande e belo mosaico bizantino, cada um dos autores apresentou suas reflexões sobre a história e a imagem, conscientes ou não, mostrando que “As imagens são inseparáveis de seus usos” (SCHMITT, 2002, p. 598), bem como, apropriaram do
[...] advento da história cultural, ou seja, o reconhecimento de uma outra dimensão ou característica inerente à realidade histórica: a dimensão cultural” (FALCON, 2006, p. 332).
Por fim, que os leitores saibam apreciar e apropriar-se destas múltiplas linguagens e olhares que teceram os escritos desta obra, que amalgamaram a história e a imagem.
Referências FALCON, F. J. C. História Cultural e história da Educação. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 32, p. 328-339. SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (Coord.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru/ SP: EDUSC; São Paulo/SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. I., p. 591-605.
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