ÁSIA: a terra, os homens, os deuses | 2ª edição

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ÁSIA: A TERRA, OS HOMENS, OS DEUSES 2ª edição


Buda na postura Abhayamudra China, Dinastia Bei do Norte (550-577) Pedra (granito) com vestígios de policromia e douramento

A conquista da coleção de arte asiática, doada pelo diplomata Fausto Godoy, elevou o Museu Oscar Niemeyer (MON) ao patamar dos grandes museus internacionais. Quase dois anos após a sua inauguração, a mostra “Ásia: a terra, os homens, os deuses”, concebida a partir de um recorte desta coleção, contabilizou um público visitante superior a 540 mil pessoas. A exposição agora se renova e boa parte das obras expostas foi substituída, com o objetivo de alcançar um público ainda maior, democratizando cada vez mais o acesso a essa riquíssima coleção. Disputada por outras instituições do Brasil e por colecionadores do exterior, a coleção asiática é composta por 3 mil peças de arte e, quando chegou ao MON, provocou uma discussão sobre a definição de uma nova linha curatorial pelo conselho cultural do Museu. Abriu-se, então, espaço no acervo, com ênfase também para as artes asiática, africana e latino-americana, em consonância com os grandes museus do mundo. Um museu existe a partir do seu acervo, mas é da interação entre o público e suas obras que são disseminados cultura e conhecimento, bens que nos fazem mais humanos. Oferecer ao visitante a possibilidade de aproximar-se, olhar de perto, buscar os significados, o estranhamento e o familiar que agucem a percepção, o discernimento e o entendimento do nosso mundo — esse é o objetivo do MON. A arte e a cultura são segmentos essenciais para o desenvolvimento dos povos. Por meio delas, os indivíduos se expressam, se identificam, se posicionam perante o outro e contribuem para o bem coletivo. Esse, talvez, seja o patrimônio simbólico mais importante da humanidade. O apoio da Itaipu como parceira na realização desta exposição foi fundamental, empresa que compreende o propósito do MON e a importância de patrocinar iniciativas que ofereçam ao público experiências instigantes e engrandecedoras.

Juliana Vellozo Almeida Vosnika Diretora-presidente Museu Oscar Niemeyer


O Museu Oscar Niemeyer (MON) apresenta a segunda edição da mostra “Ásia: a terra, os homens, os deuses”. Inaugurada em março de 2018, a exposição ganha um novo recorte em 2020, com a substituição de boa parte das obras expostas. A segunda edição da exposição provoca o mesmo impacto da montagem anterior e apresenta aos visitantes outros aspectos da grandiosa coleção. Entre os destaques está a cama com dossel do século 18, da Região de Hyderabad, na Índia. A inusitada peça foi feita em madeira jacarandá da Bahia e tem forte influência portuguesa. O público poderá também ver de perto pequenos unguentários de vidro do século 1 a.C., peças raras, com pouquíssimos exemplares ainda em exibição no mundo. Outro ponto alto da segunda edição é a exposição de uma lanterna japonesa de pedra, do Período Meiji (1868-1912). O embaixador Fausto Godoy adquiriu a coleção enquanto atuava como diplomata em países asiáticos como: Índia, China, Japão, Paquistão, Afeganistão, Vietnã, Taiwan, Iraque, Bangladesh, Cazaquistão e Myanmar. No total, foram doadas ao MON cerca de 3 mil obras. Diante de mais de 3.500 museus brasileiros, o que fez Godoy escolher o Museu Oscar Niemeyer para salvaguardar sua coleção foram a infraestrutura do edifício para o recebimento das obras, o importante projeto arquitetônico e sua vocação como uma instituição cosmopolita e plural, com um trabalho de formação de acervo em andamento. A coleção alinha-se às diretrizes do marco referencial de constituição do acervo do Museu, definido pelos Conselhos Cultural e Superior. O MON dedica-se à arte brasileira, com ênfase à paranaense, arquitetura e design, e também às artes asiática, africana e latino-americana, o que o distingue da tendência eurocêntrica que domina muitos museus. Com a doação, o MON passou a ter em seu acervo cerca de 7 mil obras e uma das coleções asiáticas mais significativas da América do Sul.

Unguentário Império Romano do Oriente, séc. I a.C. - V d.C. Vidro Unguentário Formato Oinochoe Mediterrâneo Oriental, séc. II - I a.C. Vidro


um testemunho Tudo começou numa manhã fria de janeiro de 1984, quando cheguei a Nova Delhi para assumir um posto na nossa Embaixada. Foi o terceiro na minha carreira, após Bruxelas e Buenos Aires. O impacto foi muito grande, na verdade tão grande que, confrontado, decidi “jogar-me” no país em vez de me refugiar na facilidade da crítica a uma realidade que me escapava. A Índia me “desconstruiu” e me reconstruiu, a ponto de eu decidir que a minha carreira e vida passariam a partir de então pelo Oriente. Mas não o Oriente sobre o qual o Ocidente cria estereótipos pré-conceituosos e preconceituosos. Missão quase impossível, dada a densidade dessas civilizações e meu despreparo para conviver na mais absoluta relatividade, e sem julgamentos, com uma alteridade “exótica”. Mas foi um desafio irrecusável para uma aventura que resultou muito profunda. Tive sorte, e tive um mestre, o professor José Leal Ferreira, diplomata brasileiro aposentado compulsoriamente nos tempos do AI-5, que era então professor de Língua Portuguesa e Civilização Brasileira na prestigiosa Universidade Jawaharlal Nehru, de Nova Delhi, homem de profundo saber e enorme generosidade, a quem rendo homenagem aqui. Da Índia segui meu roteiro pela Ásia e acabei por servir durante quase 16 anos em 11 postos no continente: segui pela China, Japão, Paquistão, Afeganistão, Vietnã, Taiwan (que não é país para o governo brasileiro), Mumbai (Índia, novamente), Jordânia/Iraque, Cazaquistão e Myanmar. Fora disso, servi apenas, a convite, na nossa Embaixada em Washington: foi um “hiato”, irrecusável na carreira. Essa escolha pareceu certamente inusitada para a maioria dos meus colegas. Mas a tomei como “missão”. Qual? A de trazer a Ásia para o Brasil. Projeto extremamente ambicioso, e certamente superior às minhas forças e habilidades, mas fundamental, a meu ver, na medida em que o continente se afirma como o

principal motor da geoeconomia e, quase por consequência, da geopolítica deste século. Sheherazade quase “esfíngica”, a Ásia tem camadas de civilizações e de culturas milenares que a tornam quase indecifrável. O buraco é sempre mais profundo: um tema leva a outro, que se abre para outros tantos, e assim por diante. Mas fascina, sobretudo na contemporaneidade, tempos em que ela reina globalizada e globalizante... A “contaminação” das culturas, ou melhor, a inseminação de referenciais culturais “estrangeiros” no quotidiano do indivíduo urbano de hoje, seja no Ocidente, seja no Oriente, obriga a que revisemos valores e percepções, senão os assimilando — o sushi nas churrascarias, o yoga nas academias, neste lado, ou a bolsa Louis Vuitton no Japão, ou na China, e o McDonald’s em toda a Ásia, por exemplo —, pelo menos buscando conhecê-los e, para os mais generosos e intelectualmente motivados, compreendê-los. E as migrações


Barco (objeto tumular) China, Dinastia Han (206 a.C. - 220 d.C.) Terracota O termo “Mingqi” refere-se aos objetos presentes em túmulos durante a Antiguidade em grande parte da China Imperial. Constituindo simulacros de figuras humanas, animais e bens materiais ligados ao sepultado, eram enterrados para que pudessem cumprir uma função ritual no pós-vida, representando cavalos, soldados, servos e outros símbolos de poder. Esses objetos revelam detalhes dos costumes de períodos históricos a figura de um barco pode indicar uma ligação do morto com o comércio naval, por exemplo, ou um camelo pode representar o comércio nos desertos da Rota da Seda.

em massa reescrevem a cartografia humana em escala planetária. Não somos mais ilhas, ou melhor, as ilhas estão agora integradas no continente global. Bem-vindos todos à Pangeia reconstituída. É essa certeza que impulsionou o meu projeto, e a coleção é isto: a busca da compreensão dessas civilizações que estimule a disseminação do conhecimento por meio das obras. Foi o único motivo, asseguro. Com ela vão mais de 2.500 livros, CDs e DVDs sobre a Ásia. Projeto necessário, estou convencido. É que nós, brasileiros, estamos muito necessitados deste “banho de universalismo” que alargue nosso horizonte para além do Ocidente reconhecido. Refaçamos a rota dos navegadores! Nesse intento, a arte foi o caminho que encontrei para tentar compreender “multirrealidades” muito complexas. Porém, ARTE, no seu sentido holístico, sem distinção entre as chamadas nobres — “fine arts”, belas artes — e

as “menores” (as artes aplicadas), uma vez que no continente asiático não existe hierarquia entre elas. O asiático percebe o mundo e nele se insere como um todo. Tampouco existem fronteiras temporais: o contemporâneo convive com o ancestral, demonstrando que as artes não têm “prazo de validade”. Não fosse Confúcio chinês... Transfiro, já septuagenário, o esforço de uma vida para o Museu Oscar Niemeyer e, por meio dele, a todos os que se disponham a perseguir esta trajetória. Nós, brasileiros, temos uma grande qualidade, a meu ver: o nosso caráter generoso e cordial, que nos permite — pelo menos por ora, e espero que assim continue — olhar com menor resistência maniqueísta para o reverso do espelho, o outro lado do mundo.

Fausto Godoy

Curador da exposição e doador da coleção


o gesto e o detalhe Esta exposição, miniatura da coleção Fausto Godoy, é um mundo em si mesma. Um outro mundo. Esse mundo ainda é um outro mundo, um mundo em mais de um aspecto distinto daquele que se denomina mundo ocidental. E como sempre que se entra num mundo estranho, a primeira sensação é a de caos, falta de ordem. Objetos, figuras, parecem massa indistinta. A forma, na primeira olhada, está vazia. Mas esse mundo logo começa a propor sua ordem própria, seu sentido. O primeiro marcador dessa ordem é o gesto: o gesto evidente — a mão espalmada apontando para cima ao lado da outra voltada para baixo; dedos de uma mesma mão a compor uma figura cujo sentido escapa mas que é impossível deixar de notar. O gesto está por toda parte — porque o corpo está por toda parte. E há também o gesto invisível, o gesto subjacente que deu origem ao gesto explícito. Esse outro gesto embute-se na confecção dos tecidos, feitos à mão em tear; nos bordados; na curvatura imprimida a um fio de bambu de modo a dar-lhe a forma dessas magnetizantes peças de laca de Myanmar; no entalhe de cadeiras e arcas; no texto inscrito (ao mesmo tempo, texto pintado) das caligrafias japonesas. E neste momento surge, inesperado, o sentido de visitar esse outro mundo: trata-se de compreender “nosso” mundo, este mundo ocidental — entender melhor, pelo menos, esta arte ocidental da qual o gesto foi aos poucos removido. Na iconografia da arte ocidental há um gesto ímpar: o gesto da mão de Deus, dos dedos de Deus que se esticam buscando tocar na ponta do dedo de Adão, gesto magnífico e eterno de Michelangelo que com ele cria um mundo à parte. Esse gesto patente, que ainda

persiste em Leonardo, aos poucos some da arte ocidental: já é quase nulo no impressionismo, desnecessário no cubismo, inexistente e esvaziado no abstracionismo. Algum gesto implícito subsiste, como na action painting de Jackson Pollock. O gesto patente, porém, entrou em recessão. Foi removido da arquitetura depois do art nouveau, desapareceu do mobiliário (e não só porque se tornou caro demais). No entanto, existe e permanece no “Oriente”. O segundo marcador da ordem deste outro universo é o detalhe. Esse é o universo do detalhe, que decorre do gesto. Por toda parte tudo é feito de detalhe: a visão de conjunto não permite a apreensão do que está sendo mostrado, é preciso escanear o detalhe com o olhar — mesmo se o preço a pagar for a impossibilidade de remontar todos os detalhes numa forma inteira a dar-lhes algum sentido que na verdade inexiste fora e além de cada detalhe. E outra vez ver esse mundo significa ver melhor este mundo “aqui”, pelo menos esta arte daqui, a arte ocidental da qual o detalhe foi sendo retirado tanto quanto o gesto: o impressionismo é o reino do conjunto e cubismo, abstracionismo, conceitualismo não têm função para o detalhe. Mas nesse território imaginário que é a Ásia e sua arte, nada existe fora do detalhe. E o detalhe transforma-se em ornamento e tudo é ornamento ao lado de outro ornamento, tudo é ornamento de outro ornamento. O “ocidental”, que vive num mundo estilizado, reduzido, simplificado (e, hoje, empobrecido) — da arquitetura ao objeto surgido do design — desacostumou-se do detalhe e do ornamento. No universo desta exposição, tudo provém da combinação do gesto com o detalhe. E dela surge uma outra ideia de beleza, habitualmente traduzida (e negada) no rótulo de mau gosto colado a tudo que é asiático. Os detalhes são inúmeros e cada um é mais excessivo


que outro. Mas para entendê-los e entender o gosto asiático é preciso ter em conta que esses objetos não se propõem a qualquer tipo de ascese, transcendência, idealismo: o que existe está no gesto visível, no detalhe evidente. O “bom gosto” só é possível quando se busca escapar do que existe. Não se trata de fazer a apologia do “valor oriental” e desprezar o “valor ocidental”, deste modo inapropriadamente referidos: um valor é diferente de outro valor, trata-se de entender o que cada um propõe e a razão da proposta. Quando não se buscam a ascese, a purificação e a depuração, a régua do gosto é outra. Bem diferente. Nada, no entanto, é trivial, nada é fortuito — porque nada do que está aqui resulta do improviso e do impensado. O primeiro guia a oferecer ao visitante é portanto este: repare no gesto, no detalhe; perceba que cada objeto visível está intencional e perenemente preso a algo que existe nesta terra mesmo se aponta para alguma coisa na aparência fora dela (as divindades). A terra, os humanos e os deuses formam uma figura coesa cuja medida do prazer, que indica o gosto, é outra. Duas ou três linhas adicionais contribuem para a construção do sentido da visita. Aqui se veem peças antigas, algumas muito antigas (cinco mil anos a.C.) e outras que são de hoje, que foram feitas hoje. Se estas também se expõem é porque neste mundo asiático não há interrupção entre o velho e o novo, apenas continuidade entre um e outro. O novo é feito como o antigo, não por falta de originalidade (“valor ocidental”) mas porque a ideia é a permanência. O autenticamente “antigo”, o “velho”, pode ter maior valor monetário num leilão; não é esse valor, porém, que aqui interessa. O valor central nesta exposição é o da eficácia do símbolo: se algo foi feito de acordo com as regras, se está enquadrado num sistema,

vale. No mesmo rumo, as ideias de original e cópia não são as mesmas do universo ocidental. Nesse universo asiático há gestos que se destacam, como os de Hiroshige na gravura; e a ideia do falso, da contrafação em contraste com o autêntico, permanece. Mas fazer agora assim como era feito antes não carrega o pecado original próprio da arte “ocidental”. Ainda uma questão: o que está aqui é arte ou tema para a etnologia? Talvez a pergunta certa seja: como pode o olho ocidental deixar de ver isso como arte? “Arte”, com o sentido específico que hoje tem neste lado do mundo, é uma ideia recente, que não existiu sempre e que provavelmente não existirá para sempre — ou assumirá outro sentido. A distância entre a noção de arte e de outros gestos a ela próximos, como o do artesanato, é muito menor no “Oriente”, tão reduzida que ambos os conceitos, arte e artesanato (assim como arte e vida), podem legitimamente fundir-se num só. Então, sim: o que se vê aqui é arte. Esta é uma exposição do velho, do passado. A Ásia de hoje é muito mais do que isso: as grandes cidades da China do século 21, como Shenzhen, os centros urbanos hipermodernos do Japão (como a sede da prefeitura de Tóquio, projeto de Kenzo Tange) e a nova realidade física da Índia incluem vários dos traços do capitalismo mundial moderno, da ascensão do padrão ocidental, do futuro como realidade técnica já para este momento. Mas a Ásia continua a manter o tipo de ligação com o passado que se vê nesta exposição: o gesto fundador desse passado continua ativo.

Teixeira Coelho

Curador da exposição


o / support

Museu Oscar Niemeyer

20 FEV FEB

05 SALA ROOM

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Terça a domingo, 10h às 18h Venda de ingressos até as 17h30. Venda de ingresso online: museuoscarniemeyer.org.br Entrada franca para maiores de 60 e menores de 12 anos.

LONGA DURAÇÃO ONGOING

Período expositivo / Exhibition period

From Tuesday through Sunday, from 10 a.m. to 6 p.m. Ticket sale until 5:30 p.m. Online ticket sales: museuoscarniemeyer.org.br Free admission to seniors over 60 and children under 12.

Rua Marechal Hermes, 999 Centro Cívico · Curitiba · PR Tel.: 41 3350 4400

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Capa (detalhe): Harihara | Madhya Pradesh, Índia, Dinastia Chandela (900-1139) | Pedra (calcário) | Harihara é uma representação de iconografia híbrida que simboliza a unidade dos deuses Vishnu (Hari) e Shiva (Hara), da tradição hindu. Os elementos associados a cada um estão distribuídos separadamente nas duas metades da composição da escultura. Fotografia photography  Cadi Busatto patrocinadores / sponsors

realização / promotion


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