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UM SUPLEMENTO

DE O ALDEÃO

Supervisão: José ltamar de Freitas Coordenação: Henrique Olivier Editor: André Motta Lima 11ustraçõcs: Robcrto Simões

E agang tirou muitas conclusões

Foi num clima de bas fond. A sala pequena da Assessoria de Imprensa tomada pela fumaça daqueles muitos cigarros pendentes dos cantos de boca. Eramos seis, dispostos a arrancar tudo o que o Walter Avancini tivesse na cabeça: Sandra Regina, Graça Lago, Paulo Carneiro, José Hildemar, André Motta Lima e Hamilton Almeida, do "Aqui" (São Paulo), Como bons ladrões da grande experiência do Avancini, imaginávamos que só ele ia pensar. Afinal de contas era um assalto, consentido e programado, pois a vítima havia se negado a escrever para o "Imagem". Mas logo no início do inquérito de uma hora e meia, percebemos que deixava de existir vítima e assaltantes, entrevistado e entrevistadores. Da idéia inicial de se definir o "Caso Verdade", e sua proximidade com o jornalismo,

chegamos às funções da linguagem da televisão. A partir daí ficou muito difícil separar, como se pensava fazer, o que é informação jornalística e o que é dramatização da realidade. Vimos que, mais do que separar, importante era entender a mistura para chegarmos a conclusões.

o resultado deste debate de idéias deve ser analisado por todos os que trabalham em televisão. Cada um deve tirar também as suas conclusões. Mesmo assim, vale arriscar uma, por fora do que foi discutido nesta longa entrevista: só através da troca de idéias e experiências - e sempre em conjunto - é que conseguiremos entender o que fazemos e fazer entender plenamente o que pretendemos dizer no nosso trabalho. A.M. L. 5


IMAGEM - Vamos tentar partir de uma colocação de Umberto Eco, que talvez facilite o debate sobre realidade e ficção. Analisando o cinema, ele lembra que as formas tradicionais habituaram o espectador a uma espécie de narrativa condicionada pelo início, meio e fim, como num romance ou tragédia clássica. Mas que a entrada da tomada direta, do tipo jornalístico, veio contribuir para novas formas, como as do Cinema Novo e dos filmes de Antonioni: a ação principal surgiria continuamente diluída no fundo dos acontecimentos aparentemente insignificantes, deixando ao espectador a possibilidade de ir descobrindo os significados. Como aplicar isso ao Caso Verdade? Avancini - Eu que trabalhei praticamente a vida inteira encenando a realidade, fazendo com que ela fosse representada, tentei um nova experiência: a de colocar a própria realidade. No Caso Verdade eu me preocupei em criar uma tênue linha dramática, porém saída essa linha da própria realidade do ambiente em que foram colhidos os depoimentos. Na verdade, era a representação mesmo daquela realidade que o ambiente pudesse determinar, sem que ela tivesse a maior impostação no programa. Seria apenas o fio condutor para o espectador comum, na sua maioria condicionado ao esquema de princípio meio e fim. Mas a leitura mais importante é a da realidade, e eu procurei dar mais presença ir realidade mesmo. Um fato interessante, em se tratando de televisão, de um trabalho de imagem, é que nem sempre é importante o que a pessoa está falando. Mais importante é a leitura do seu comportamento e do seu meio ambiente. Essa passa a ser a informação maior. Por isso, eu não saberia colocar até que ponto o trabalho é jornalístico ou até que ponto é drama. Imagem - E o público pega integralmente essa leitura do ambiente ou até que ponto ainda é importante essa estorinha que você coloca no Caso Verdade? Avancini - Eu acho muito importante a função da estória criada, porque é um meio de manter uma incógnita. E o público está acostumado a isso. Eu acho que ela não tem importancia propriamente. Desde que eu mantenha uma pergunta no ar, dentro de uma hora de programa, o público ficará satisfeito. Mas o seu comportamento tem sido o de receber a realidade e todos os fatos dela. Na verdade, ficam aguardando a resposta de uma pergunta, sofrendo o impacto da informação daquelas figuras humanas que transmitem os fatos do seu ambiente. Eu percebi que os resultados mais fortes dos programas que já foram ao ar foram alguns momentos de condições reais, e não os momentos de dramatização. A dramatização foi importante para mantê-los à espera da resposta para a incógnita que a gente colocou. Mas eu gostaria de deixar de lado qualquer dramatizarão. Ainda estou experimen tando e não sei ate que ponto posso ousar e deixar de lado um condicionamento que eu sei que o público tem. Se algum dia eu pegar um ambiente onde o impacto não seja tão óbvio, onde o que interesse seja a leitura do próprio comportamento das pessoas, eu não sei como o público comum pode reagir. Talvez aí eu sinta falta daquele elemento de condicionamento. Por isso eu tenho procurado, na parte das entrevistas, alguns elementos de mais fácil comunicação, determinadas entrevistas que eu tenho certeza, vão ser facilmente entendidas e vão tocar fundo no público. Imagem - O que definiria esse entendimento fácil? Avancini - Eu entenderia como todas as formas de comunicação já comuns ao que o público está acostumado. Por exemplo: se eu coloco uma pessoa de comportamento normal, sem dramaticidade, falando de um determinado problema, ainda que esse problema seja grave, esse comportamento normal da pessoa pode não criar o impacto exigido. Estou falando de impacto de uma maneira que parece haver um aproveitamento e um oportunismo em relação àquele comportamento. Mas há mesmo. Despudoradamente eu confesso que há mesmo, nesses momentos, um oportunismo. Você marca mais a presença da realidade através de elementos óbvios 'para o público. No primeiro programa, eu sabia qual a entrevista que seria absolutamente comentada no dia seguinte, que uma das prisioneiras ia ser a figura humana comentada. Era realmente uma figura patética, terrível, a figura da presidiária e o nada de vida que ela apresentava como perspectiva. Eu tinha certeza que o público ia comentar aquele momento, que aquilo ma fazer ele ficar mais ligado, por um tempo maior, ao programa. Mas tenho certeza também que todas as outras informações, depoimentos mais pobres, foram também assi-

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PRODUTO DO A LAUDAS QUE E milados. Não foram comentados, mas foram recebidos. Imagem - Insistindo ainda um pouco, como você conseguiria racionalizar esse grau de transmissão de impacto? Avancini - E o comportamento que dá essa carga. No segundo programa, tivemos uma porta-estandarte marginalizada na escola, que botou a alma para fora na hora do seu depoimento. Não tinha muita importância o que ela dizia, porque a emoção dela era muito forte, muito real. Havia portanto um comportamento dramático, embora real e verdadeiro. E isso que eu chamo de comunicação mais fácil. O ape-

elementos de jornal. O jornalista é mais afeito a esse tipo de trabalho. Ele vai buscar mais. Porque o que se quer não é a emoção pela emoção. Eu acho 'l,ue em tudo tem que haver uma posição ideologica. A visão do CJ,uadro social, do quadro humano que você esta apresentando, é imprescindível. Então o jornalista, no caso, consciente, vai provocar que haja uma imposição melhor neste quadro, não deformado pelos aparatos técnicos em volta. O trabalho dele é quase o trabalho de um psicólogo. Ele tem de conduzir o entrevistado para um comportamento mais solto e sincero possível, criando um tipo de emoção realmente, porque isso leva à participação. Mas não só para alguém chorar em casa, que essa nunca foi a minha intenção. Quando eu conduzia as primeiras entrevistas, dizia: eu não quero a emoção pela emoção, quero o quadro humano e social mais bem colocado. O que aconteceu, é que nas duas vezes em que consegui um resultado de mais impacto, ainda falando no que dá mais impacto, foi em cima de problemas fortes, de dramas humanos. Mas esses dramas estavam enquadrados no aspecto humano e social que interessava que fosse mostrado. Essa conquista tem de existir em todo o programa: não tornar a coisa gratuita, não criar o impacto pelo impacto. O impacto é maior na medida em que coloca melhor o quadro social e humano dentro daquele grupo, ou profissão - porque o que a gente até agora tem pego são grupos sociais. Imagem mais próximos própria técnica que é de tentar lidade, tentar filme.

"O que as empregadas gostam, as patroas também gostam. O público não faz exigências estéticas."

lativo na ficção seria você colocar a mãe com o filho no colo, esse filho moribundo e essa mãe chorando, porque você sabe que vai provocar um tipo de emoção. Você está sendo desleal, consumista, mas tem a certeza de que vai atingir a maioria. t, mais ou menos, essa comparação. Mesmo a realidade, quando não tem uma carga dramática, comunica menos, cria menos impacto nesta comunicação. Imagem - Então o emocional seria o importante. Mas como é uma entrevista, e o jornalismo é uma experiência nova para voce, deu para sentir qualquer possibilidade de manipulação de emocional numa entrevista? Avancini - Senti e tentei. Porque é só no nível emocional também que as pessoas entrevistadas se desligam da presença de uma camara de TV. A partir daí, realmente elas ficam inteiras. A té este momento há sempre um formalismo e elas não são totalmente verdadeiras. E emocional não quer dizer lágrimas. Pode ser um momento de emoção verdadeira da pessoa, até de alegria. Mas é preciso que o trabalho seja conduzido para que se envolva emocionalmente o entrevistado. Imagem - E como seria este trabalho" Avancini - Esse é o trabalho do jornalista. A equipe é formada por elementos de drama e

Tecnicamente então vocês estão do cinema verdade, usando a de produção do cinema verdade, pesquisar exaustivamente a reafuçar e depois desenvolver o

Avancini - t exatamente assim que a gente trabalha. O Fernando Pacheco Jordão, que já havia feito em São Paulo uma série sobre profissões, vai na frente para levantar todas as possibilidades de um determinado ambiente. Ele levanta todas as possibilidades do problema social e humano e já faz uma relação das pessoas que poderiam apresentar este quadro de uma maneira melhor para a televisão. Depois deste trabalho feito, praticamente uma reportagem, é que a gente vai extrair os dados para criar uma estória. Aí, se coloca um índice muito reduzido de atores para interpretar essa realidade. Esses atores vão servir de elemento de ligação, mas, esquemáticamente, é um pouco mais complicado. O ator tem o trabalho de jornalista. No momento em que ele aparece, existe um contraplano dele. Mas ele não se manifesta. E um trabalho de jornalista, perguntando, falando, conversando. Eu depois fa90 a triagem deste material e faço então o pré-diãlogo. Eu faço o prédiálogo à posteriore, para desencadear o material da realidade que vai ser aproveitado. Esquematicamente é assim, mas o jornalista tem que ir na frente porque, pelo seu próprio tipo de trabalho, ele tem uma visão mais ampla da realidade. Se fosse eu a ir, a minha visão já teria uma certa deformação, porque eu sou oriundo da ficção, trabalhei ate hoje com ela. O jornalista não. O jornalista não pode, em nenhum momento, nem poetizar nem idealizar realidade nenhuma. Ele tem que colocá-Ia. Imagem - Mas ele pode manipulá-Ia. Pode armar procurando um sentido mais dramático, um sentido de desenvolvimento da história. Ao picotar os depoimentos e escolher sua posição na montagem, ele está desenvolvendo uma maneira de contar uma história linearmente. Avancini - É verdade. Você vai optar aquele depoimento que entre dentro de faixa de tensão. Existe uma faixa de tensão tro do programa e você sabe que vai ter

por uma denque


SSALTO: QUINZE XPLICAM A TV. buscar os elementos nos depoimentos. Falando em espetáculo, você tem que criar linhas de tensão dentro do espetáculo. Imagem - No início a gente colocou a coisa do ponto de vista formal: a emoção causando essa ligação com o público. Mais tarde a gente chegou a 'ler que o conteúdo, enquanto representativo de um problema, também tem seu grau de interesse ao lado dessa emoção. Avancini - Eu acho que a emoção só é tentada, provocada mesmo, em função deste quadro maior. Essa seria a definição. Imagem - Na medida em que você vê esse conteúdo, no fundo, como motivador dessa maior aproximação do diálogo com o telespectador, como é que a gente poderia analisar essa tendência das novelas em buscar uma proximidade maior com o real? Avancini - Se busca uma proximidade maior, pelo menos com a verossimilhança. Talvez seja demorado contar a história das novelas. ~ verdade que existe uma série de fatores externos que vão implicando no comportamento de trabalho da própria televisão. Não são só fatores internos e o aceleramento do processo. A gente tem 9ue ver. que, de vez em quando, existem tambem interesses econômicos das empresas, que são comerciais. Então, de repente, você vê se estimular um processo porque ele resultou comercialmente. Eu me lembro que até 67 havia uma proibição nas novelas de se dizer coisas que fossem reais, fossem o cotidiano. Era o medo de prejudicar uma fantasia. A pessoa então não dizia "eu vou à praia no Leblon". Ela dizia só "eu vou à praia", que era para não configurar um ambiente real. Até que Bráulio Pedroso ousou quebrar esta estrutura com o "Beto Rockfeller". Seus personagens falavam "eu vou à TV Globo", "eu vou ao Cine Metro", "eu estou ouvindo um disco do Caubi Peixoto". E deu resultado. Passou a ser consumo, a se consumir a realidade. Mas na TV de hoje não é

"Não faz mal acreditarem em lobisomem. O importante é acreditar que o homem pode e deve voar."

só isso que vende não, ainda tem aí muita ficção concorrendo de perto com a verossimilhança. Mas é que a partir do Bráulio passou-se a se promover, como um comportamento de melhor nível, fazer-se novela em termos de realidade. Isso passou a significar qualidade. Se a gente botar hoje na Globo o "Direito de Nascer" como ele é originalmente, absoluta fantasia mexicana, vai concorrer, sem dúvida nenhuma, com o "Pecado Capital", que é uma novela dentro da tendência de se trazer a coisa para o comportamento cotidiano, como são as novelas da Globo de um tempo para cá. Então a gente não pode dizer que a ficção foi preterida porque houve uma consciência de melhor qualidade. Foi porque alguém ousou deixar ela de lado e a realidade rendeu muito e passou a ser consumo. Como essa realidade liga-se naturalmente à melhor qualidade, as emissoras passaram a ter compromisso de buscar também, esta qualidade. Então eu não diria que há um processo de conscientização, mas sim um processo de consumo.

Imagem - Pode ser o grande achado também. Avancini - Não, não pode ser um grande achado exatamente. Você não pode generalizar dessa maneira. A gente faz essa novela assim e não pode sair fazendo todas as outras iguais. Ela é bastante particular, hoje. Esse tipo de fantasia é uma ... Imagem - Seria uma fórmula? Avancini - Não. Eu acho que pode abrir no sentido &eral da gente perder o preconceito com relação a fantasia. Então pode ser que a gente aceite a história da Cinderela e ela será feita em novela, mas com uma colocação social, ideológica, sei lá. Imagem - Talvez até numa realidade qualquer? Avancini - Exatamente, provocando aí a visão de uma realidade comum. "Saramandaia" pretende exatamente isso: através desses elementos mostrar maior profundidade numa realidade. Imagem - Mas será que o público vai entender o que o Dias quer dizer? Imagem - Esse é um problema do Avancini, talvez ele ainda esteja um pouco com aquele negócio da fantasia impregnado. Avancini - Puxa, você é minha amiga mesmo! (primeiros risos desta entrevista) Eu não tenho isso não, não tenho nenhum preconceito com relação a esse tipo de linguagem. Sofro até a tendência de usar todos os elementos visuais e de som, mesmo fazendo realismo, não realidades. As novelas que eu fiz, mesmo nas situações mais realistas, a minha preocupação era

Imagem - Você ensaiaria dizer o porque da receptividade do público por essa aproximação da realidade? Evidentemente, partindo do pressuposto de que as pessoas têm gostado mais da realidade. Avancini - Eu não diria que tem gostado mais. Eu acho que fica ali, cabeça com cabeça. Você pega sucessos da TV Tupi, de São Paulo, que embora tenha sido a iniciadora deste processo, através do Bráulio, não se fixou neste processo, por uma série de problemas, mas ela tem conseguido realmente índices excelentes para seus horários de novela. Mesmo competindo com a grande força da Rede Globo, ainda assim, em São Paulo ela consegue médias de até 30% no horário das 20 horas. Foi o caso daquela novela "A Viagem", que tratava de uma posição espiritualista. Quer dizer, absoluta ficção, total ficção. No que progrediu mesmo, e não tem efeito retroativo, foi na parte literária de dialogação. Você pode estar falando de qualquer fantasia, que a maneira de se expressar vai ser a mais comum, a mais cotidiana, como elemento de comunicação. Em 68 eu fiz uma pesquisa na TV Excelsior de São Paulo sobre uma novela, e o resultado foi de que tudo que as empregadas domésticas gostavam na novela, as patroas inevitavelmente também gostavam. Acontecia o inverso, é lógico, quando você colocava alguma coisa que determinava um nível de conhecimento melhor. Aí as patroas gostavam e as domésticas não entendiam. Mas aquilo que era colocado num nível de entendimento comum, agradava também à patroa e eu acho que em termos de maioria nós ainda estamos dentro deste aspecto, não temos como estratificar por classes sociais o país. O que se pode é mostrar classe econômica, que é como faz a mostragem do Ibope. Quando eles dizem classe A, na verdade é categoria econômica A. Como nós não temos uma tradição de cultura nesse país, nem de educação, na verdade, a gen te vai ver que não consegue colocar com o classe A, a não ser, ainda com certas ressalvas, alguns poucos indivíduos. Imagem - Você acha que "Sararnandaia" vai atingir o grande público" Avancini - Eu creio que sim. Eu estou fazendo todas essas definições aí, graças a vocês. Mas eu diria que ela retoma certos elementos de fantasia que o público tinha antes. E retoma de maneira consequente. A fantasia passa a ter um significado, pretende dizer alguma coisa. Imagem - Então, essa tem fantasia e não forma fantasiosa. Avancini - Exatamente. E pode ser um grande sucesso.

"Fantasia é coisa muito importante, desde que não seja gratuita. A fantasia deve ser recuperada. "

passar a informação maior. Não importa se eu ponho um bicho de cabeça para baixo, e o público vai vibrar mais, ou se eu ponho a reação de um líder de maneira estranha numa enquadração. Não importa como você defina a linguagem. Nunca tive preconceito e já fui até combatido, por acharem que eu exagerava e que era inverossímel a imagem que eu criava em cima da coisa. E a crítica de uma maneira geral só vê a TV dentro de um comportamento que não é realista. B naturalista. Eles cobram da gente a maçaneta da porta, cobram se o corte de cabelo está um milímetro acima ou abaixo. Cobram um naturalismo em vez de se preocupar com o que você está querendo dizer, e que é muito mais importante. É só pegar as críticas aí para ver: acham bom, acham ruim, mas vão lá no detalhe, no detalhe do cabelo, do cenário, da maquiagem, do sotaque, uma série de elementos assim, gue compõem o quadro maior mas são secundarios. Imagem - E sem levar em conta que a linguagem da TV ainda está sendo feita, está sendo construída. Não se tem ainda nem uma infra-estrutura mínima. O Castro Gonzaga ainda está com formiga mesmo, saúva, picando o nariz dele. Avancini - Mas isso já faz parte de um outro problema, mais complicado. Essa é a 7


nossa realidade, nós existimos assim. Eu não vou me lamentar que tem formiga no nariz. Eu quero sair disso, mas não vou ficar me lamentando, porque essa é a realidade que nós temos no momento. E até que elas não mordem mUlt<;! não. ~ claro que a gente faz um teste antes e ve se é possível. N ing~ém vai se sacrificar. ~as o problema tecnico nao tem grande importància. Não importa se sai maravilhoso ou não. As necessidades estéticas do nosso público são primaríssimas. A verdade é essa: o público de TV não é o público do Rio de Janeiro e nem o da capital de São Paulo. O grande público é outro. Em São Paulo, se você sai do centro já encontra outra gente, um outro Brasil. E a capacidade de assimilar e as necessidades estéticas são ainda primárias. Imagem - Valeria mais o conteúdo? Avancini - Claro que aí passa a valer mais o conteúdo, tem que se trabalhar mais em função deste conteúdo. Imagem - Mas quando se fala em trabalhar em cina do fantástico se pensa logo num afastamento. Só que em "Saramandaia", o fantástico está sendo trabalhado dentro da tradição oral do povo. São estórias que correm entre o povo, como por exemplo a do sétimo filho virar lobisomem. Isso não serviria para cobrir novamente o real? Avancini - Eu não acho que a novela do Dias corra esse risco. Fantasia e uma coisa mUIto importante, que pode ser usada, desde que seja bem usada. Não gratuitamente. O Dias Gomes não usa gratuitamente. Sabe o que tem a dizer e vai procurar dizer através dessa fantasia. E a comunicação se torna menos difícil a partir do momento em que ele usa esses elementos regionais brasileiros. Essa fantasia se torna quase realidade.

possibilidade de colocar a realidade lá. Tanto que hoje eu já encontro uma certa dificulda_de para trabalhar encenando, com rel?resentaçao. Essa parte, dramat~zad,a não ~e e' m3ls. suficiente. Altas essa nao e a opmiao de um Jornalista de São Paulo, que atacou o programa, embora tenha me elogiado. Ele me perguntava por que essa bobagem de procurar a realidade como elemento de maior força de impacto, se no presídio o momento mll;is emocional foi o criado pelo autor; aquele diálogo do p31 com o filho. Só que ele esquece de uma coisa. Que aquele diálogo foi criado em função de uma ambientação. Não era realmente uma representação. Eu mostrei os depoimentos para os atores e chamei a atenção deles para o tom da fala daquele tipo de gente. Esse tipo de pessoa comum não tem a prática de uma linha de raciocínio verborrágica. Você percebe como eles têm espaço e como as coisas não se ligam diretamente. Eles fazem suas conclusões interiormente, só concluem suas frases emocionalmente. Eles começam a dizer e a coisa se conclui num suspiro, e eles partem para uma outra coisa. Essa observação, que os atores fizeram também, levou aquele momento a ficar realmente muito emocional. Foi que não perdeu a realidade. Imagem - Hoje, de uma forma geral, a manipulação da verdade está na ordem do dia em todos os setores, no cinema, na televisão, em todos os lugares. Recentemente, os dois repórteres que fizeram o Wattergate publicaram um livro onde eles atribuem pensamentos aos personagens. foram muito atacados, mas responderam que devido ao conhecimento que eles tinham dos fatos, e das pessoas, poderiam deduzir o que elas pensariam em determinados momentos. Eles tinham se envolvido tanto no assunto, que dava para manipular realmente.

Imagem - Voltando ao Caso Verdade, você tem como meta a não utilização dos atores, tentar desenvolver a dramaticidade só com o povo? Avancini em ambientes do Rio Grande lá, ainda que estória.

Tenho sim. Eu já quero tentar como o Xingu ou as minas de sal do Norte, usar só as pessoas de eu crie para eles uma pequena

Imagem - Você acha difícil usar o ator para interpretar da maneira como essa gente faz? Avancini - ~ toda uma reavaliação que o ator tem que fazer. Para extrair toda essa emoção, o ator precisaria de tempo. ~ difícil, mas não é impossível. Imagem - Deixa voltar à pergunta anterior. Quando você fala em abandonar o ator, mesmo que tenha de criar uma estorinha para eles, como você definiria essa estória de criar uma estória para os personagens que não são atores? Avancini - Essas estórias sempre são tiradas do ambiente. Então seria uma estória contada por alguém do próprio ambiente. E o caso do homem na mina de sal, que o pé foi inchando, inchando e um dia ele subiu como se fosse um balão, de tanto que o pé inchou. Essa foi uma estória que me contaram lá. Então eu quero pegar um elemento de lá para viver esse personagem, que pode não existir, ou que pode existir e não ser aquele que eu vou usar para fazer a estória. Imagem - Até que ponto a televisão, como veículo, está preparada e disposta a isso, pelo menos para desencadear? Avaneini - Bom, a continuidade tem que ser encarada como uma posição da Rede Globo. Senão como uma posição, pelo menos como

Imagem - Aí a gente pode localizar um outro aspecto. Na medida em que para esse pessoal do interior é um negócio próximo, não vai então se reforçar aquela visão do "atraso" cultural? Até que ponto a novela não vai fortalecer esta crença? Avancini - Mas em compensação, se a gente fala no homem que engravidou, eu não sei dizer se acreditar mais ou menos nisso seria prejudicial. Mas se eles acreditarem que todo o homem tem direito de voar, a novela já disse para que veio. Então, se acreditar no lobisomem, otimo. Acredito também que o homem, todo o homem, tem direito de voar e pode voar. E que eles também podem voar, podem extrapolar da sua realidade, das pressões dessa realidade, as pressões dessa vida, dessa sociedade, desse cosmos. E realmente ele tem direito a isso, de se extrapolar disso tudo, de fugir. De fugir, não. De estar sobre, de alçar vôo. Então a grandeza maior está aí. Não vai fazer mal nenhum a ninguém que se possa virar lobisomem. E vai fazer muito bem se se acreditar que o homem deve c pode voar. Imagem bém: é muito povo. Seria tamente sem fazer qualquer

E tem outra colocação aí tamtriste a ausência de fantasia num muito triste um povo absolufantasia, que fosse incapaz ele tipo de fantasia.

Avaneini - Esse é um problema da hurnanidade hoje, um problema do mundo ocidental, onde se vê um preconcci to em relação à Iantasia. Hoje todo mundo tem que viver realisticamente. Você tem vergonha de certas emoções, embora elas existam. Você se envergonha e as reprime. Certos comportamentos que tarnbém são verdadeiros você busca evitar. Imagem - Aí, vamos fechar o círculo. Essa repressão não poderia significar talvez um grande ponto de comunicação dentro daquilo que nós vimos no início: a emoção como forma de comunicação de um fato real'! Avaneini - É. Eu acho que deve ser isso. Imagem - Talvez aí a gente encontre uma resposta para o porque do uso da realidade, da verdade no Caso Verdade. Avancini - Eu não consigo formalizar, não consigo racionalizar o Caso Verdade. Não sei bem o que é. Ele não é uma coisa inventada por mim, disso eu tenho certeza. ~ urna soma de uma série de experiências que eu fui assistindo. O próprio comportamento do telejornalismo da Globo no ano passado, indo à rua e entrevistando muita gente, foi me dando uma soma de informações que devem ter resultado no Caso Verdade. Eu acho que o resultado principal é a

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"Realidade sem carga dramática comunica menos. Mas não se quer a emoção pela emoção. "

Avancini - Mas eu diria que essa busca da realidade aqui no Brasil é muito específica, é muito difícil você fazer comparações. Em cada país, ele acordo com seu momento político e social, essa busca tem suas nuances. Então eu não diria que no sentido geral há uma busca. Apenas buscamos determinadas realidades, queremos buscar determinadas realidades e elas passam a ser muito importantes para nós. Não para americanos, ingleses ou franceses, que vivem outra realidade. Essa diferença precisa ser vista. Você vai ver que num plano maior nós ficamos um pouco atrasados no processo, porque já é anti~o isso. Esse negócio de realismo fantástico, voce pode partir de Theilhard Chardin, que vai começar a enfocar isso, e a vulgarização se manifesta através de Pauwels e Bergier. Você vai de repente perceber que se criou um grande movimento, c isso vem desde 58, de reação quanto à realidade, contra esse comportamento realístico da humanidade. Toda essa falta de poesia e idealização que a sociedade ocidental, principalmente, vem passando. Então nós vemos que, num campo maior, a experiência vem sendo outra. Você tem o rnacrocosmo e o rnicrocosmo. Nós estam os ainda no microcosmo e alguns de nós vivem os o problema do macrocosmo. É muito importante esse tipo de consciência também, para que a gente não se idealize num outro processo, que já foi atingido por outro tipo de sociedade. A gente fica se cobrando também coisas que ainda não são cobráveis em termos brasileiros,

possibilidade da TV Globo realizar, porque nós sabemos que os dois primeiros programas chamaram muita atenção, e talvez isso não se enquadre exatamente dentro dos moldes de ver da Censura Federal. Então é preciso saber até que ponto interessa à censura. A posição da TV Globo, eu sei, é muito boa em relação ao programa. Eles perceberam no primeiro programa, e isso foi confessado, que era uma experiência nova que deveria ser vivida pela televisão. Inclusive foi dito pelo próprio Boni, que o Caso Verdade se colocava como a única experiência no ano de 76, a única experiência que se ia ter. Imagem - Eu acho que já está bom. A gente conseguiu tocar nos assuntos que pretendia ... Avancini - Há tempo que não se põe em discussão esses assuntos. Eu mesmo ha muito tempo não discutia isso desta maneira. Houve uma injustiça em relação à fantasia e ela deve ser recuperada. Quer dizer, a gente catalogava como fantasia o que não era nada, na verdade. lm3!\em E fica muito interessante você, que esta buscando tirar a fantasia dos atores no Caso Verdade, fazer essa defesa da fantasia. Avancini - ~. Realmente eu sinto falta dessa liberdade de trabalhar com a fan tasia e acho que, do jeito que nós estam os indo, vamos acabar chegando nas fábulas.


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