ZOOFAGIA: exercícios de animalidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS CENTRO DE ARTES BACHARELADO EM ARTES VISUAIS

ZOOFAGIA: exercícios de animalidade

HENRIQUE TORRES DE SOUZA

Pelotas, dezembro de 2019


HENRIQUE TORRES DE SOUZA

ZOOFAGIA Exercícios de animalidade

Qualificação do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Bacharelado em Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção de título de Bacharel em Artes Visuais.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Paulo Renato Viegas Damé

Pelotas, 2019

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BANCA EXAMINADORA: ...................................................................................................................... Prof. Dr. Paulo Renato Viegas Damé - ORIENTADOR

...................................................................................................................... Prof.ª Mª. Carolina Corrêa Rochefort

...................................................................................................................... Prof. Dr. Cláudio Tarouco de Azevedo

...................................................................................................................... Prof.ª Mª. Renata Corrêa Job (convidada)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família por todo apoio durante minha trajetória na qual estive 1.332 km longe de casa. Ao meu orientador por aceitar e acreditar no projeto desenvolvido, mesmo com a dificuldade de encontrarmos uma linguagem em comum. Agradeço às amigas e amigos que compartilharam experiências e vivências no decorrer da minha vida em Pelotas, sem vocês nada disso seria possível. Agradeço a minha amiga felina e a todos os outros animais que compartilharam territorialidades comigo e me inspiram a criar. Obrigado!

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RESUMO SOUZA, Henrique Torres de. Zoofagia: exercícios de animalidade. 2019. 60 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Bacharelado em Artes Visuais. Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. Este trabalho de conclusão de curso apresenta diversas abordagens de um tema comum: animal. Tomando consciência do meu interesse de pesquisa, descrevo meu percurso artístico de forma anacrônica, a partir do recorte de alguns trabalhos que tem o corpo e a experiência como substanciais. Começando pela proposição de andar quadrúpede, como uma postura de aproximação ao território animal que tangencia a hegemonia bípede humana da cidade. Então, crio objetos que mediam a postura quadrúpede a partir da interação do espectador e, frequentemente, inserindo-o em uma ficção sobre um animal-outro. Abordo a questão da relação entre humanos e os animais domésticos, percebendo a domesticação como uma violência e discutindo os problemas éticos e morais decorrentes desta em trabalhos de performance e vídeo. Meu objetivo é atiçar um questionamento sobre nossa relação com outras espécies, pois estar em outras posturas possibilita novas percepções: cheirar, tocar e ver o mundo diferente. Logo, ser animal aparece como tentativa anômala frente a uma sociedade que encarcera a subjetividade em territórios normativos e nega sua própria animalidade. Portanto, Zoofagia como um exercício de perceber-se e agir animal: comer, digerir e defecar. Palavras-chave: arte contemporânea, animal, quadrúpede, devir, ficção, domesticação.

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ABSTRACT

SOUZA, Henrique Torres de. Zoofagia: exercícios de animalidade. 2019. 60 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Bacharelado em Artes Visuais. Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. This work presents several approaches to a common theme: animal. Becoming aware of my research interest, I describe my artistic career in an anachronistic way, from the clipping of some works that have the body and the experience as substantial. Starting with the proposition of walking four-footed, as a posture of approximation to the animal territory that escapes the human biped hegemony of the city. I then create objects that mediate the four-footed posture from the spectator’s interaction and often by inserting him into a fiction about another animal. I approach the issue of the relationship between humans and domestic animals, perceiving domestication as violence and discussing the ethical and moral problems arising from it in performance and video works. My goal is to arouse a question about our relationship with other species, because being in other postures enables new perceptions: smell, touch and see the world as different. Therefore, being an animal appears as an anomalous attempt in the face of a society that imprisons subjectivity in normative territories and denies its own animalism. Therefore, Zoophagy as an exercise of perceiving and acting animal: eating, digesting and defecating. Keywords: contemporany art, animal, four-footed, devir, fiction, domestication.

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SUMÁRIO

Apresentação...................................................................................................10

1

REINO ANIMAL......................................................................................15

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QUADRÚPEDE.......................................................................................23 2.1 Anômalo............................................................................................26 2.2 Próteses Quadrúpedes.....................................................................34

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DOMESTICAÇÃO...................................................................................42 3.1 Fetiche do Auau................................................................................46 3.2 O Gato de Roupas............................................................................50

Considerações finais.......................................................................................55 Referências.......................................................................................................58

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ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1

Posição ocupada pela espécie humana na árvore p. 15 filogenética. (Fonte: David M. Hillis, Derrick Zwickl, and Robin Gutell, University of Texas)

Figura 2

Hipótese de uma árvore, 2016. Trabalho de Mariana Castillo p. 16 Deball para 32ª Bienal de São Paulo. (Fonte: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: <http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2577>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

Figura 3

Feathers on a Woman (Penas sobre uma mulher), Ana p. 24 Mendieta, University of Iowa, Iowa, 1972. (Fonte: MENDIETA et al. Ana Mendieta. Galicia: Centro Galego de Arte Contemporánea; Barcelona: Ediciones Poligrafa, S.A., 1996)

Figura 4

Frame de vídeo, registro de performance, Anômalo (2015). p. 26 (Fonte: Acervo pessoal)

Figura 5

Idem

Figura 6

Rodrigo Braga, Fantasia de compensação, fotografia, 30 x p. 29 45 cm, 2004. (Fonte: Rodrigo Braga. Disponível em: <https://www.rodrigobraga.com.br/>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

Figura 7

Berna Reale, Quando todos calam, impressão fotográfica p. 30 sobre papel de algodão, 66 x 100 cm, 2009. (Fonte: Galeria Nara Roesler. Disponível em: <https://nararoesler.art/artists/ 69-berna-reale/>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

Figura 8

Berna Reale, Sem título / Limite zero, vídeo, 2011. (Fonte: p. 31 Galeria Nara Roesler. Disponível em: <https://nararoesler.art/artists/69-berna-reale/>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

Figura 9

Quadrúpede estático, 2017. Ferro e plástico, 1m x 1m x 1m. p. 35 (Fonte: Acervo pessoal).

p. 26

Figura 10 Quadrúpede dinâmico, 2017. Alumínio, ferro, plástico e p. 35 rodas aro 8, dimensões variadas. (Fonte: Acervo pessoal). Figura 11 Quadrúpede estático em funcionamento. (Fonte: Acervo p. 37 pessoal). Figura 12 Quadrúpede dinâmico sendo utilizado, encaixa-se as pernas p. 37 e movimenta-se com os braços. (Fonte: Acervo pessoal). Figura 13 Horses don’t lie (Cavalos não mentem), Eduardo Navarro, p. 39

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9ª Bienal do Mercosul, 2013. Vídeo da performance disponível em: <https://vimeo.com/158878557>. (Fonte: NAVARRO, Eduardo. 2019. Disponível em: <http://www.navarroeduardo.com/projectos/201520010.pdf>). Figura 14 Vestuário da performance em exposição na 9ª Bienal do p. 39 Mercosul. (Fonte: Idem). Figura 15 Registro da performance Pet, 2016, gravado por Julia p. 46 Pema. (Fonte: Acervo Pessoal) Figura 16 Idem. (Fonte: Acervo Pessoal) p. 46 Figura 17 From the Portfolio of Doggedness, 1968, VALIE EXPORT. p. 48 (Fonte: NY TIMES, Archive. Disponível em: < https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/imagepages/ 2008/09/12/arts/12streCA02ready.html>). Figura 18 Cat Power deitada sobre objeto Cama de Gato, 2017. p. 50 (Fonte: Acervo pessoal). Figura 19 Ação de lamber-se sobre o objeto Cama de Gato. Registro p. 51 por Carlos Henrique dos Santos. (Fonte: Acervo pessoal) Figura 20 Idem. (Fonte: Acervo pessoal) Figura 21 Frame do vídeo Cama de gato. (Disponível <https://www.youtube.com/watch?v=KL-iyK02NJk>)

p. 52 em: p. 54

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APRESENTAÇÃO Uma curiosidade nos outros animais sempre esteve presente em minha vida, talvez, por influência da cultura que consumia e compartilhava com minha irmã mais velha, hoje formada em medicina veterinária. Vivíamos rodeados de animais de plástico das lojas de R$ 1,99, animais artificiais; ao tempo que, vez ou outra, viajava com minha família ao nordeste, para Belo Jardim, no agreste pernambucano onde habitavam meus avós maternos. Esta cidadezinha foi palco de diversos encontros com espécies diferentes daquelas que compartilhavam comigo o território de uma grande metrópole como São Paulo. Lá foi onde me deparei com outros animais quadrúpedes: quando minha avó limpava o estômago de um bode para fazer a típica buchada 1 ou quando tínhamos a oportunidade de andar na garupa de um cavalo; e até insetos que coletávamos: como as tanajuras2, formigas que caiam do céu e eram fritas para fazer farofa. Das interações reais às digitais – em jogos de computador onde cuidávamos de um zoológico3 –, animais não-humanos, mas humanizados, são amplamente difundidos na cultura humana, lembro de assistir filmes protagonizados por animais, como “Rei Leão” 4, que inspirava-nos, eu e minha irmã, a andar quadrúpedes pela casa, grandes felinos, esticando a boca e rugindo. Deleuze e Guattari (1997, p. 23) dirão que “os animais são matilhas, e que as matilhas se formam, se desenvolvem e se transformam por contágio”, logo, a potencialidade do contágio de dois irmãos com uma alcateia de leões 1 A buchada é um típico prato nordestino, feito com as entranhas do bode, depois se usa o estômago (bucho) para amarrar tudo. 2 A tanajura, ou içá, são as saúvas (formigas) responsáveis pela fecundação de novos formigueiros, durante a primavera alçam voo e, depois de fecundadas, caem no chão para iniciar a um novo sauveiro com os ovos e o fungo que traz de seu formigueiro natal. Fonte: SAÚVA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Sa%C3%BAva&oldid=55221067>. Acesso em: 20 de jun. 2019. 3 Refiro-me especificamente ao jogo de simulação de zoológicos, Zoo Tycoon, lançado em 2001 para computadores, foi o primeiro jogo de computador que eu e minha irmã adquirimos por pirataria, em 2006. BLUE FANG GAMES. Zoo Tycoon. Washington, EUA: Microsoft, 2001. 1 jogo eletrônico. 4 O REI Leão. Direção: Roger Allers e Rob Minkoff, Produção: Don Hahn. Burbank (EUA): Walt Disney Animation Studios, 1994, 1 videocassete.

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fictícia e com a caça de formigas que produz “crianças-fera” ou “criançastamanduá”. Atravessado pelas relações não-humanas, percebo nas outras espécies, integridade em seus agenciamentos coletivos, bandos mais autônomos, que fogem da lógica familiar e estatal de hierarquização, pois “a origem das matilhas é totalmente outra que a das famílias e dos Estados e ela não para de trabalhá-las por baixo, de perturbá-las de fora, com outras formas de conteúdo, outras formas de expressão” (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 24). O homem branco, heterossexual, inviabiliza progressivamente uma relação harmônica com outros seres, inclusive de sua própria espécie, ao se colocar em uma relação de superioridade sobre outros grupos étnicos e sociais. O homem é agente e produto de um sistema econômico destrutivo, capitalista, e causador de desequilíbrios ecológicos que ameaçam a vida neste planeta. Em 1854, o presidente dos Estados Unidos fez a uma tribo indígena a proposta de comprar grande parte das suas terras, na carta de resposta redigida pelo Cacique Seattle, encontra-se a seguinte passagem: “O que ocorrer com a terra recaíra sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo”5. Ser animal aparece como meio contra a domesticação da subjetividade, ou seja, um meio de não ceder a padrões hegemônicos dominantes. Afinal, como aponta Guattari (1990, p. 9), nossa relação subjetiva com elementos exteriores – de ordem mineral, vegetal, animal ou cósmica – encontra-se “comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva”. Portanto, vejo no processo de tornar-me mais animal, uma possível saída para não encarcerar a subjetividade em territórios normativos. Esta pesquisa desenvolvida no campo das Artes Visuais mostra-se como um percurso trilhado para atingir um território específico, animal, no entanto, como afirma Zamboni (2012, p. 43), a “pesquisa enquanto processo não é 5 A “Carta do Cacique Seattle”, de 1855, está disponível na íntegra em: <http://www.unisinos.br/ensino-propulsor/carta-do-cacique-seattle/>. Acesso em: 20 de jun. 2019.

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somente fruto do racional; o que é racional é a consciência do desejo, a vontade e a predisposição para tal […]”. Portanto, relato as experiências de uma intenção ao animal, constantemente de forma intuitiva e labiríntica, que manifesta-se a partir de ações artísticas, materiais e imateriais, utilizando-me de meios como performance, vídeo e desenho. Para auxiliar o leitor a territorializar-se nesse universo, a divisão dos capítulos foi pensada pelas zonas de proximidade e das diferentes abordagens relativas a cada trabalho e espécie animais; também, tomei emprestada a metodologia de Allan Kaprow, no texto “A Educação do Não-Artista” (1971), roubando a ideia de senhas que, em minha própria linguagem, configuram chaves de acesso ao “clube animal”. No primeiro capítulo, Reino Animal, procuro introduzir e contextualizar o tema da pesquisa, inicialmente, filiando-a ao campo

da biologia

e

apresentando-a em uma taxonomia. Em um exercício investigativo, coleto evidências onde o humano integra o reino animal, bem como as contradições presentes nessa relação dicotômica. Dessa forma, o uso dos termos “animais humanos” e “animais não-humanos” surge como opção metodológica que desloca a mim, ser humano, para um território animal da linguagem. Por fim, situo-me em minha própria animalidade e ao lugar que habito no mundo, para propor, a partir da leitura de “As Três Ecologias”, uma ecologia animal, como possibilidade de criar diferentes modos de existência, individuais e coletivos. O segundo capítulo nomeia animais que se deslocam sobre quatro pés, Quadrúpede é a segunda senha para entrar no clube. Começo a invocar artistas de gerações passadas, animais da nossa ilha: Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark; e de outras: Ana Mendieta e VALIE EXPORT 6; estes compõe um conjunto de animais-artistas, influentes e referentes, que compõe meu bando. No bando, todos adotam a performance como meio, mas expressam-se por diferentes posturas. Então, passo a descrever a experiência de uma ficção-realidade, sobre performar um animal quadrúpede no centro da cidade de Pelotas, Anômalo, investigando se de fato é possível performar a animalidade. Entretanto, adianto que acabo criando mais problemas do que 6 O nome artístico da artista foi criado para parecer-se com um logotipo, por isso, VALIE EXPORT deve ser grafado em letras maiúsculas.

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respostas. Alio-me aos animais-artistas que estão em “zonas de vizinhança” (DELEUZE, 1997), estéticas ou conceituais, artistas como Berna Reale e Eduardo Braga. A segunda parte é dedicada aos objetos Quadrúpedes: Estático e Dinâmico, que são como próteses de ferro e plástico que convidam o público a experimentar duas velocidades quadrúpedes. Funcionam como mediadores da postura que, ao serem ativados por humanos, dão vida a um ciborgue, produzindo outros estados de consciência e percepção. Os Quadrúpedes se relacionam com trabalhos do artista argentino, Eduardo Navarro, especificamente, “Horses Don’t Lie” (Cavalos não mentem, 2013), em que o artista constrói próteses que, quando ativadas pelos cinco dançarinos, induzem o movimento do corpo de um cavalo, este trabalho foi apresentado durante a 9ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. No terceiro capítulo, Domesticação, abordo especificamente esta questão do adestramento de animais não-humanos e as contradições morais e éticas consequentes dessa violência. Neste tema, desenvolvo dois trabalhos que vão tratar da fetichização das espécies familiares, cães e gatos. Pet7 (2017) consiste em um vestuário que simula um cachorro, inspirado naqueles utilizados por sociedades secretas de fetiche. A roupa foi projetada para causar desconforto e privar os sentidos de quem a veste. Foi utilizada durante uma performance na rua em que eu, humano-cão domesticado, fui conduzido na coleira por outra humana. Em outro momento, na medida em que observava a felina que habita comigo se limpar, percebo no ato de banhar-se um ponto de intersecção dos hábitos do corpo felino e humano. Surge Cama de Gato (2017), um trabalho proposto em dois movimentos, parte da construção de um objeto de pelo artificial branco, similar à pelagem da minha amiga felina, costurado a uma corrente e suspenso no canto de algum ambiente. O objeto propõe que o público acomode-se nos pelos e experimente o banho de um gato, lambendo o próprio corpo. Desenvolvo também um vídeo, em que apareço executando a proposição sobre diferentes perspectivas de câmera, 7 Palavra da língua inglesa, dentre seus significados, destaco o uso do substantivo como: “ any domesticated or tamed animal that is kept as a companion and cared for affectionately /qualquer animal domesticado ou domado que é mantido como companheiro e cuidado com carinho”. Definição de PET, consultada em: DICTIONARY, The American Heritage Idioms Dictionary. ___: Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company, 2019. Disponível em: <https://www.dictionary.com/browse/pet>. Acesso em: 20 de jun. de 2019.

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compondo, durante a edição, algo que se assemelhasse a um circuito fechado de televisão. Nas considerações finais discuto sobre os modos de proliferação dos meus trabalhos por meio de produções gráficas e abordo a noção de autoria sobre meus trabalhos. Pois, o desejo de que a experiência animal transpasse meu corpo, me aproxima cada vez mais de um artista-propositor, e logo, acabo me afastando da ideia de ser autor das minhas proposições. Esse sentimento de não pertencimento é bem colocado por Lygia Clark, quando ela escreve: “Sinto-me sem categoria, onde é meu lugar no mundo? Tomo horror a ser catalisadora de minhas proposições. Quero que as pessoas as vivam e introjetem o seu próprio mito independente de mim” (CLARK, 2006, p. 354). Portanto, Zoofagia8 é um convite àqueles interessados em devorar, digerir e defecar estas ideias.

8 “Zoofagia”, s. f., característica de zoófago, animal que se alimenta de outros animais; ímpeto que alguns animais possuem de se alimentarem da presa ainda viva. Definição de ZOOFAGIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/zoofagia/>. Acesso em: 20 de jun. de 2019.

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1 REINO ANIMAL

Figura 1 Posição ocupada pela espécie humana na árvore filogenética. (Fonte: David M. Hillis, Derrick Zwickl, and Robin Gutell, University of Texas)

As obras e os conceitos elaborados neste texto pertencem ao reino Animalia, cuja definição está associada à Taxonomia, disciplina da biologia que busca organizar os organismos biológicos com base em suas características comuns. O reino Animalia ou Metazoa, é composto por seres vivos pluricelulares (mais de uma célula), eucariontes (possuem núcleo celular rodeado por uma membrana), heterotróficos (alimentam-se de outro), cujas

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células formam tecidos biológicos, por vezes com capacidade de responder ao ambiente (os que possuem tecido nervoso) 9. Neste reino habitam cachorros, gatos, pombas, cavalos, vacas, humanos, minhocas, formigas, pulgas… Neste reino

encontram-se

bípedes

e

quadrúpedes,

bípedes

que

foram

quadrúpedes e quadrúpedes que já foram bípedes. A taxonomia não é mais do que uma evidência onde o humano classifica-se como animal, portanto, iniciome territorializando o reino animal. Dessa forma, perceber o outro para entender a si mesmo: sou animal – a palavra é a primeira semelhança e, em um diálogo com Allan Kaprow10, a primeira senha para entrar no clube.

Figura 2 Hipótese de uma árvore, 2016. Trabalho de Mariana Castillo Deball para 32ª Bienal de São Paulo.11 (Fonte: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: <http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2577>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

9 TAXONOMIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Taxonomia&oldid=55265871>. Acesso em: 24 mai. 2019. 10 Em “A Educação do Não-Artista, Parte I” (1971), o artista e fazedor de happening, Allan Kaprow, cria uma espécie de jogo a partir de palavras-chave ou senhas que são introduzidas durante o texto, não há nenhuma pretensão se não uma forma de facilitar o acesso ao conceito que está sendo discutido, pois é o mesmo que proponho com as senhas neste texto. 11 O trabalho de Mariana propõe uma montagem da árvore da vida a partir de frotagens de fósseis que são suspensas em uma estrutura de bambu. Tive a oportunidade de ver esse trabalho pessoalmente durante a 32ª Bienal e, para mim, foi uma experiência fascinante e didática, portanto, trago-o como uma obra que relaciona-se com esse momento do texto de encontrar nosso lugar na multiplicidade de seres.

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“O animal, que palavra! É uma palavra, o animal, é uma denominação que os homens instituíram, um nome que eles se deram o direito e a autoridade de dar a outro vivente. […] Sim, o animal, que palavra! É uma palavra, o animal, que os homens se deram o direito de dar. Eles se encontraram, esses humanos, a se dar essa palavra, mas como se eles a tivessem recebido em herança. Eles se deram a palavra para dispor um grande número de viventes sob esse único conceito: O Animal, dizem eles.” (DERRIDA, 2002, p. 48-61)

A cisão entre homem e animal existe há muito tempo, principalmente na cultura ocidental, aparece, por exemplo, com Aristóteles denominando o homem como “animal político”, colocando o ser humano em um pedestal muito acima dos outros em função da existência de uma linguagem: “[…] razão pela qual o homem é um animal político em grau maior que as abelhas ou todos os outros animais que vivem reunidos. Dizemos, de fato, que a natureza nada faz em vão, e o homem é o único entre todos os animais a possuir o dom da fala”12. Entretanto, teve seu ponto crucial na era moderna, a partir do século 18, com o triunfo do pensamento cartesiano (MACIEL, 2016, p. 16). Em uma carta destinada ao Marquês de Newcastle, datada em 23 de novembro de 1646, René Descartes discorre sobre a possibilidade de igual natureza entre a alma humana e a alma animal, entretanto, não deixa de evidenciar a suposta inferioridade do animal: Somente se pode dizer que, embora os bichos não façam nenhuma ação que nos assegure que pensam, todavia, por conta dos órgãos de seus corpos não serem muito diferentes dos nossos, pode-se conjecturar que haja algum pensamento ligado a esses órgãos, tal como experimentamos em nós, ainda que o deles seja muito menos perfeito. A isso nada tenho a responder, senão que, se eles pensassem como nós, teriam uma alma imortal assim como nós; o que não é verossímil, por conta de não haver razão para crê-lo de alguns animais, sem crê-lo de todos; & por existirem muitos demasiadamente imperfeitos para se poder crer isso deles, como é o caso das ostras, das esponjas &c. (DESCARTES, 2017, p. 224)

Nesta mesma carta, Descartes contrapõe-se às ideias de Michel de Montaigne, autor de “Os Ensaios”, onde escreve longas reflexões sobre a natureza humana. Montaigne defende um posicionamento com os animais que 12 Aristóteles, Política I, 2, 1253a, tradução de José Oscar de Almeida Marques. In: DESCARTES, Carta de Descartes ao Marquês de Newcastle, 1646. Tradução por Fabien Pascal Lins e Guilherme Ivo. Modernos & Contemporâneos: revista de Filosofia do IFCH da Universidade Estadual de Campinas, v. 1, n. 2., jul./dez., 2017. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/modernoscontemporaneos/article/view/3275/2514>. Acesso em 17 de jun. 2019.

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tangencia a tradição filosófica e religiosa cristã imperativa em sua época, especialmente no capítulo 12 (Apologia de Raymond Seybond) do segundo livro. Discorre sobre a possibilidade dos animais pensarem, visto que eles [animais não-humanos] possuem sua própria cultura e problemas linguísticos, como podemos notar na passagem: “Mesmo os animais que não têm voz, pela reciprocidade de serviços que observamos entre eles atribuímos facilmente algum outro meio de comunicação; seus movimentos discorrem e expõem [ideias]” (MONTAIGNE, 2000, p. 183) ou, ainda, quando expõem seu enigma bestial em um exercício de alteridade: “Quando brinco com minha gata, quem sabe se ela não se distrai comigo mais do que eu com ela?” (Ibid, p. 181). Desde a escrita da Bíblia às evoluções tecnocientíficas do mundo contemporâneo nossa sociedade está em constante negação de sua própria animalidade e a ideia de que somos superiores a outros animais não-humanos não se encerra no racionalismo cartesiano, aparece, por exemplo, alguns milhares de anos atrás no livro Gênesis do Antigo Testamento: “Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se move sobre a terra’” (BÍBLIA, Gênesis, 1, 26)13. Coube ao cristianismo ao longo da Idade Média, o papel de demonizar a animalidade que constitui o humano, como afirma a autora MACIEL (2016, p. 17): “[…] deslocada para fora do humano, ela [animalidade] foi confinada aos territórios do mal, da violência, da luxúria e da loucura, sob a designação de bestialidade”. Isto é, a animalidade fora essencialmente atribuída aos sentimentos “negativos” e antimorais, em um contexto medieval e religioso, era o “reflexo da relação imaginária do homem com ‘os poderes subterrâneos do mal’” (Ibidem). Na literatura e na arte desse período, essa condição reflete na proliferação de figuras diabólicas e metamórficas como os vampiros e lobisomens, que permeavam o imaginário de artistas daquela época. Portanto, ao longo do tempo no ocidente, o animal e o humano animalizado que se encontram no meio urbano foram marginalizados, ocupando lugares fronteiriços, a exemplo de crianças selvagens estranhas à 13 BÍBLIA, A. T. Gênesis. In: BÍBLIA. Português. Bíblia on: Bíblia Sagrada Online. 7Graus, 2008. Disponível em: <https://www.bibliaon.com/genesis_1/>. Acesso em 17 de jun. 2019.

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postura bípede14 que, portanto, tem sua ressocialização inadmitida pelo padrão homogêneo da cidade; cachorros, gatos e todo tipo de animal, agora domesticados e encarcerados em pequenos apartamentos; pombas, ratos, baratas e todos os animais considerados “pragas” são exterminados. A lista é grande e estende-se a todas as espécies que compartilham territorialidades com os humanos. A contemporaneidade é marcada pela velocidade com que as informações circulam e nos atravessam, forjando novas relações pertencentes a essa nova temporalidade. A internet tornou o consumo de informações instantâneo, “[…] a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia […]” (GUATTARI, 2001, p. 7). Parece que agora somos mais contaminados por signos do que experiências reais, pois o que esses signos nos dizem? Como afirma GUATTARI (2001, p. 30-31): “O capitalismo pósindustrial tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos […]”. Os signos nos vendem ideias de consumo e, mais ainda, sobre modelos de existência, uma verdadeira fábrica de subjetividade que produz algo como o que Foucault chama de corpos dóceis15, sendo “dócil” em uma definição literal, algo “que se lida com facilidade; que é fácil de ensinar e aprende facilmente; manso: cão dócil”16. Portanto, a essa contemporaneidade não interessa que o indivíduo ou grupo experimentem novas formas de subjetividade, pois estas se tratam de uma ameaça para a hegemonia do sistema econômico capitalista, como a autora Cynthia Farina sintetiza: 14 Sobre esse assunto, ver o filme “L’enfant Sauvage” (O Garoto Selvagem), 1970, do diretor francês François Truffaut, narra a história – baseada em realidade escrita por Jean Itard – de um menino da selva que vivia alheio aos de sua espécie até o momento que é caçado e capturado por um grupo de homens, então, um psiquiatra, fascinado pela ideia de educar o menino, o adota e transforma em objeto de estudo. É interessante como esse movimento de civilizar como aparece no filme, mais se parece com um adestramento de um animal. 15 O conceito de “corpo dócil” é pensado pelo filósofo francês, Michel Foucault, em seu livro “Vigiar e Punir: nascimento da prisão”, publicado originalmente em 1975 e traduzido e publicado no Brasil em 1987. O autor examina os mecanismos de poder que estão presentes nas mais diversas instituições, das prisões às escolas, e que acabam por conformar os indivíduos a uma subjetividade “fabricada”. Segundo o filósofo: “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças dos corpos (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) […] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada” (FOUCAULT, 1999, p. 164-165). 16 DÓCIL. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/docil/>. Acesso em: 04 de jun. de 2019.

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Não se convoca o sujeito individual e coletivo a experimentar com esses fluxos, a praticar com essas novas temporalidades, espacialidades e relações. O chamamento que se faz ao sujeito contemporâneo tem códigos e direções que, parece, não vão ao sentido da invenção de novas formas de vida, de novos modos de relacionar-se consigo e com o outro, da experimentação com o heterogêneo. Esse chamamento invoca modelos de consenso (e homogeneização) como são a ideia de ‘cidadania’, de ‘consumo sustentável’ para uma ‘sociedade da informação e do conhecimento’ que se sustenta e legitima sobre a ubiquidade da economia de mercado. (FARINA, 2006, p. 6)

O

filósofo

francês,

Félix

Guattari,

percebe

que

as

intensas

transformações técnico-científicas da espécie humana tem como consequência o desequilíbrio ecológico e a padronização dos comportamentos e modos de existência humana e não-humana. O autor propõe em seu livro “As Três Ecologias”, a articulação ético-política, a qual ele chama de ecosofia, entre três ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana. Coloca em jogo a maneira de viver no planeta Terra daqui para frente e, para isso, propõe a criação de novas ecologias como um germe para que todos busquem novos modos de existência, nesse caso, na relação consigo mesmo e outros seres/coisas e que essa perspectiva se estenda a todos, pois como defende GUATTARI (2001, p. 36): “A conotação da ecologia deveria deixar de ser vinculada à imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados. Ela põe em causa o conjunto da subjetividade e das formações de poder capitalísticos”. Portanto, inicio essa pesquisa com a descoberta de uma ecologia própria, a animal, é nesse terreno que habitam diferentes ficções, relativas a cada trabalho, sobre a construção de um ser-animal, pois o animal que me torno não é necessariamente um animal real, isto é, construo narrativas – e sensações – sobre minhas experiências de animalidade; a espécie e o corpo, o meio e a postura. Em minha atual condição de existência, como humano bípede da cidade, começo a movimentar-me em direção oposta que, em um primeiro momento, consiste em reconquistar um lado mais “selvagem” da minha própria espécie. O músico neozelandês, Dion Workman, escreve em “Uma introdução ao pensar como uma floresta”, acerca de sua própria experiência de “ressalvagização” como habitante sobrevivente em um lugar remoto no interior do Japão, o termo 20


frequentemente vinculado aos anarquistas verdes ou anarco-primitivistas, propõe o “restabelecimento de culturas de humanos selvagens em ambientes selvagens” (WORKMAN, 2015, p. 4). A abordagem de Workman nos faz questionar sobre o que seria esse humano selvagem ou humano animal e como perdemos tais características “selvagens” de nossos ancestrais: Mesmo que sejamos geneticamente selvagens, nossas mentes há tempos são territórios colonizados. Com a educação fomos subjugados psicologicamente; com a tecnologia, nossos sentidos foram anestesiados, e a especialização nos despiu de nossas habilidades de sobrevivência mais básicas. Resselvagizar requer, portanto descolonizar a mente, afiar os sentidos e readquirir habilidades. (WORKMAN, 2015, p. 5, tradução por Jorge Menna Barreto)

Entretanto, não proponho aqui soluções definitivas frente o nosso deslocamento no mundo, nem que retomemos modos de vida dos nossos antepassados longínquos, correspondente a períodos em que a densidade demográfica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais forte que hoje (Félix Guattari), ou mesmo que busquemos por espaços mais “selvagens” para habitar como fez Dion Workman. De acordo com GUATTARI (2001, p. 16): “[…] a questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do serem-grupo. E não somente pelas intervenções ‘comunicacionais’ mas também por mutações existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade”. Assim, atento-me aos processos de subjetivação, os quais estão vinculados diretamente com a prática artística, tratando-se da expressão de uma singularidade individual e/ou coletiva; e, principalmente, percebo-me inserido na “cidade selvagem”, onde capturo e atiço relações humano-animal. Em suma, ser animal é perceber a si mesmo como um integrante da complexidade de relações e culturas entre diversas espécies que habitam um mesmo espaço. Como aponta Deleuze em “A de Animal” 17, os animais – 17 “O Abecedário de Gilles Deleuze” é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989 e, como diz Deleuze, o acordo era de que o filme só seria apresentado após sua morte. O filme acabou sendo apresentado, entretanto, com o assentimento de Deleuze, entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte. Deleuze morreu em 4 de novembro de 1995. A transcrição das entrevistas está disponível em: <http://escolanomade.org/wpcontent/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf>. Acesso em 17 de jun. de 2019.

21


espera-se que a partir de agora o leitor passe a incluir-se nessa palavra – utilizam de posturas, gestualidades, canto e cor nos movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, ações que por analogia dizem muito sobre o processo de criação artística. O caminho é redesenhar uma nova postura com o mundo, física e real. Acompanhado das espécies que se movimentam a quatro pés, a postura quadrúpede (segunda senha) manifesta-se como meio para o chamado animal.

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2 QUADRÚPEDE Encontro o corpo como uma das substâncias para pensar animal, uma vez que dividimos dessa corporeidade com as outras espécies. Do corpo é que partem os gestos e posturas que marcam territórios, logo, marcam também a existência de fronteiras entre os territórios das diversas espécies. Proponho tensionar esses limites ao adotar posturas que não pertencem ao meu território, humano bípede, e sim, ao território de alguns outros animais, buscando territorializar-me nesse lugar da diferença. Deleuze e Guattari escrevem sobre o conceito do ritornelo, onde descrevem o movimento de territorializar, desterritorializar e reterritorializar como um ritmo de passagem entre diversas realidades: primeiro delimitamos nosso território, encontramos um círculo estável e mantemos no exterior o incerto, depois entreabrimos o círculo e nos lançamos para fora, buscando novos lugares para se tornarem, em algum momento, territórios seguros: Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 116)

A postura corporal adotada para tensionar os territórios é a quadrúpede, deslocar-se sobre quatro pés. Os gestos e posturas relacionam-se com a forma de fazer arte, logo, o movimento quadrúpede direciona-me ao ato de performar, uma vez que meu interesse é comunicar sobre e para o corpo.

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Figura 3 Feathers on a Woman (Penas sobre uma mulher), Ana Mendieta, University of Iowa, Iowa, 1972. (Fonte: MENDIETA et al. Ana Mendieta. Galicia: Centro Galego de Arte Contemporánea; Barcelona: Ediciones Poligrafa, S.A., 1996)

No campo da performance, deparo-me com uma série de posturas de diferentes artistas, alguns também quadrúpedes. Tendo como ponto de partida um olhar histórico à arte produzida nos anos 1960 e 1970, o happening, a body art, arte conceitual, grupos e movimentos como Fluxus, Wiener Aktionismus e Tropicalismo. Inspirado por trabalhos dessa época como os de Ana Mendieta, “Feathers on Woman (Penas na mulher)” (1972); Artur Barrio, “Situação T/T” (primeira aparição em 1970) e suas obras que usam carne como matéria; Lygia Clark com “Bichos” (1965), abrindo o caminho da arte brasileira para uma série de estruturas vivas ou organismos relacionais (MELIM, 2008, p. 25) que retiram a passividade do espectador, ao mesmo tempo em que acontece a arte de Hélio Oiticica, rematerializando o objeto cotidiano (transobjeto) e fazendo com que o espectador penetre a obra para que a mesma tenha sentido: espectador ativo. Percebe-se que os tropicalistas buscam construir uma linguagem própria à vanguarda brasileira dos anos 1960, assumindo conotações mais políticas do que estéticas, relativo ao contexto do país na época em que sofria de uma repressiva ditadura militar.

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Entretanto, por mais distintas que sejam as intenções do animal artista ou bando de artistas, acabam categorizados, tal qual uma taxonomia, sob o termo genérico “performance” que designa trabalhos de arte que possuam alguma manifestação performática, como afirma Regina Melim, pesquisadora do campo da performance: […] a partir dos anos 1970, não obstante as diferenças estilísticas e ideológicas que possuíam, acompanhadas ainda dos protestos de muitos artistas visuais, todas essas denominações foram agrupadas sob a terminologia única de performance art. (MELIM, 2008, p. 10)

Dessa forma, de acordo com Goldberg (2012, p. 288) a performance aparece como meio ideal a variedade de ideias que emanava de lugares tão diferentes, e “por ser predominantemente visual, a tradução não constituía um problema; por ser efêmera, apresentava-se como instrumento perfeito para fugir ao controle dos governos em países onde a atividade artística era considerada politicamente subversiva” (apud ROCHA, 2014, p. 23). Logo, não devemos excluir as singularidades de cada animal artista ou bando de artistas e as condições de seus respectivos hábitats, por exemplo, no Brasil tomou-se lugar à experimentalidade com a performance atrelada a supressão do objeto, ao mesmo tempo na Europa, VALIE EXPORT explorava questões mais radicais sobre os limites do corpo, enquanto criava problemas sobre o limite (e a falta deste) da arte. O tempo é relativo a cada experiência e procuro não me deter em um tempo cronológico, mas sim, um tempo anacrônico, o tempo animal. Dentro do espaço selvagem da academia, me deparo com centenas de referências e, naturalmente, me territorializo ao bando que mais pertenço compondo um bestiário próprio de artistas-animais, os artistas citados anteriormente compõem esse bando e, ao decorrer do texto outros membros, cada qual com sua intensidade e relevância, serão territorializados.

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2. 1 CARNE

Figura 4 Frame de vĂ­deo, registro de performance, AnĂ´malo (2015). (Fonte: Acervo pessoal)

Figura 5 Idem.

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No dia 12 de outubro de 2015, em uma performance registrada em vídeo, posteriormente editado e disponibilizado na internet 18, assumo a postura quadrúpede ao me deslocar pelo centro da cidade de Pelotas enquanto vestia uma máscara confeccionada com carne que cobria todo o rosto, dispondo de apenas dois buracos para os olhos. A ideia da performance originalmente era me infiltrar em uma matilha de cães de rua, vestindo uma máscara de carne, porém, alertado por alguns humanos sobre a possibilidade de ter meu rosto comido pelos cachorros, decidi repensar a ação, mantive a máscara de carne – as

ideias

“impossíveis”

acabam

sofrendo

reinvenções

para

serem

transformadas em desenho e arte sequencial, onde busco processar mais sensações do que narrativa e também como uma forma de multiplicar as ficções. Posterior à experiência, transformo-a em proposição: Comprar (ou roubar) dois bifes de carne bovina de um supermercado; Costurar um no outro e, depois, três tiras de tecido, duas acima da orelha e uma no topo, para amarrar a máscara ao redor da cabeça; Fazer dois furos para os olhos; Escolher um lugar na cidade, vestir a máscara e andar apoiando os pés e as mãos no chão, quadrúpede; Fazer isso durante algum tempo.

A postura quadrúpede consiste em deslocar-se sobre quatro pés, quadrupedalismo, este meio de locomoção está associado em sua maioria a animais vertebrados, incluindo mamíferos e répteis. Na performance, o quadrúpede agencia-se como ferramenta de “involução” – no sentido de revisitar uma postura primitiva da espécie humana –, ou “indução”, enquanto postura anômala que evoca a bestialidade diante de um meio urbano onde predominam

humanos

bípedes.

Enquanto

quadrúpedes,

enxergamos,

cheiramos, ouvimos e tocamos o mundo em outra temporalidade, menos humana, estar ciente do entorno, animal à espreita. Como é ser animal na cidade? A esta performance, dou o nome de Anômalo, segundo Deleuze e Guattari (1997, p. 26), diferencia-se da palavra anormal, pois “o anormal só pode definir-se em função das características, específicas ou genéricas; mas o 18

Registro da performance “Anômalo” (2015), disponível <https://www.youtube.com/watch?v=R0OBk2PZDww>. Acesso em: 13 de jun. 2019.

em:

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anômalo é uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade”, portanto, o anômalo depende do bando para existir, mesmo que este performe o lugar da criatura excepcional da matilha, é com o anômalo que se faz a aliança para devir-animal. O conceito de devir (terceira senha) utilizado como referência neste texto é o pensado pelos filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari, segundo os autores: Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. (DELEUZE; GUATTARI, 1997. p. 64)

O devir abre caminho para formas não humanas de individuação, compreende uma zona de vizinhança entre partículas que devem em um movimento de dupla captura, não produz outra coisa se não ele próprio: “É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). O devir é sempre minoritário, pois a maioria exerce uma força de dominação que se torna um modelo padrão, referencial que vai condicionar o humano ao que se espera dele, dessa forma, não existe, por exemplo, um devir-homem, pois o homem por si só representa o padrão, um ser com maior privilégio em relação aos outros. Portanto, a necessidade de tangenciar a normalidade, o movimento de aliança para devir-animal não podia ser outro se não um vetor de saída, me territorializar nesse terreno de anormalidade. A carne, especificamente a carne de consumo, bovina, vermelha, ontem um ser vivo: comia, defecava, dormia e se reproduzia. Hoje exposta na vitrine de um supermercado ou açougue, nestes centros de compra me deparo com uma variedade de animais mortos, em outras palavras, carne. Existem vários cortes, cores, pesos e valores. Compra-se com dinheiro um fragmento do cadáver de um animal (bovino) que nunca encontrarei, o animal torna-se objeto de consumo. A carne como fantasia de um animal, este já fantasiado de outra

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coisa, opera na transfiguração, crua, causa repulsa e desconforto, vestir as bactérias que fazem a decomposição. Os caçadores, xamãs e feiticeiros há muito já vestiam a pele de outros animais, ritualizam o sacrifício em busca das virtudes destes outros seres, zoofagia.

Figura 6 Rodrigo Braga, Fantasia de compensação, fotografia, 30 x 45 cm, 2004. (Fonte: Rodrigo Braga. Disponível em: <https://www.rodrigobraga.com.br/. Acesso em: 20 de jun. 2019)

O que faz o artista amazonense Rodrigo Braga em “Fantasia de Compensação” (2004) quando funde sua cabeça com a de um rottweiler? Se não a construção de uma ficção, um ciborgue dotado de pulsões caninas, uma alegoria do tempo contemporâneo e, mais, sobre as relações da cidade, pois a carne da cidade é outra, toda a imposição consumista parece desvalorizar a vida,

o

respeito

se

confunde

em

uma

série

de

condutas

morais

preestabelecidas por agentes invisíveis, a rua não te ama. Nas palavras de Paulo Herkenhoff: “Rodrigo Braga não representa essa crise. Ao contrário, propõe a própria experiência da crise em situação radical do olhar” 19. Para além da relação política, Braga escreve sobre a memória de ver um cachorro moribundo em sua infância: 19 HERKENHOF, Paulo. Rodrigo Braga – um modo de ver. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <http://files.cargocollective.com/574095/2011-por-Paulo-Herkenhoff.pdf>. Acesso em: 13 de jun. de 2019.

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Hoje vejo que tive identificação imediata com aquele animal. Eu me reconheci nele. Depois de curado, tanto tempo depois desse episódio, ainda não me vejo como um rottweiler mas às vezes acho que precisaria ser… De qualquer forma, passei de um ser que se sentia completamente inútil e insignificante no mundo a alguém que atua e se sente parte desse coletivo tão complexo. (BRAGA, 2005, p. 2) 20

Berna Reale é artista e perita criminal paraense, utiliza performance, vídeo e fotografia como meio de expressão. O recorte de seu trabalho aqui abordado, explora problemas concernentes às relações de poder – de humanos para humanos e não-humanos – e seu potencial de engendrar violência, bem como o silêncio diante das diversas formas de violência. Apesar do meu contato com sua obra ser apenas pelo registro digital, sua obra mostrou-se relevante para mim em determinado momento, não por tratar do tema animal, mas sim, quando abordava questões sobre corpo, carne e a reação do público. Entretanto, devido a sua produção mais recente e posicionamentos que não compactuo, acabo deixando de lado essa artista como referência.

Figura 7 Berna Reale, Quando todos calam, impressão fotográfica sobre papel de algodão, 66 x 100 cm, 2009. (Fonte: Galeria Nara Roesler. Disponível em: <https://nararoesler.art/artists/69berna-reale/>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

20 BRAGA, Rodrigo. Dos bastidores de um autorretrato (resumo). __, 2005. Disponível em: <http://files.cargocollective.com/574095/2005-por-Rodrigo-Braga-Dos-bastidores-resumo.pdf>. Acesso em: 13 de jun. de 2019.

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Figura 8 Berna Reale, Sem título / Limite zero, vídeo, 2011. (Fonte: Galeria Nara Roesler. Disponível em: <https://nararoesler.art/artists/69-berna-reale/>. Acesso em: 20 de jun. 2019)

Em uma tarde de domingo no mercado público Ver-O-Peso, em Belém no Pará, uma humana monta uma mesa e a forra com uma toalha branca de rendas, nua, deita-se e dispõe carne crua em cima do corpo. Passa a tarde inteira ali, imóvel, arrodeada de urubus e humanos carniceiros, a carne do seroutro, disposta como isca, rapidamente vira sua própria. A performance de Berna, “Quando todos calam” (2009), realizada em um mercado de carnes, atrai olhares passivos de um público que “[…] torna-se participativo pelo testemunho da analogia a um crime, no qual decidiu não intervir: torna-se testemunha silenciosa, e portanto envolvida no crime/performance […]” (ROCHA, 2014, p. 27). Novamente nas ruas de Belém, no habitat exterior onde acontece sua obra, saem de dentro de um caminhão frigorífico dois homens, indivíduos que se assemelham a enfermeiros ou talhantes (ROCHA, 2014), carregando-a [Berna Reale] amarrada a uma barra de ferro. “Acho que meu corpo não está ali para ser testado. Eu me vejo como parte integrante e não como principal”21, diz a artista. Berna, um corpo humano, atada como um 21 A descrição da performance foi embasada em fotografias de autoria de Berna Reale e pela reportagem de Marina Rossi para o jornal El País, onde encontram-se trechos de entrevista com a artista. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/13/cultura/1499967146_171656.html>. Acesso em 13 jun. 2019.

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cadáver animal, novamente coloca a si no lugar da carne, da mercadoria, o corpo humano vira carne diante da passividade dos transeuntes atravessados pela ação. Pontuo que durante a escrita deste trabalho, em junho de 2019, Berna produziu a performance “Ginástica da Pele” onde conduziu mais de 100 jovens que já sofreram abordagem policial, em sua maioria pretos, por uma rua em Belém (PA) que teve o trânsito interrompido para a performance. Foram organizados em fila e postos a marchar, sob o comando da artista que desempenhava um papel de general ou autoridade policial, aos jovens eram dadas ordens de movimentos que remetem tanto ao treinamento físico das forças armadas quanto aos gestos que devem fazer quando são abordados pela polícia. Não compactuo com a abordagem deste e de outros trabalhos de Berna que se vê livre para explorar corpos humanos e não-humanos (o cavalo pintado de vermelho em “Palomo”, a biga puxada por porcos em “Soledade”, ambos de 2013) devido a sua posição privilegiada de policial e artista patrocinada. Além disso, embora a violência policial seja um fato e precisa ser combatida, a última performance colabora para reproduzir uma visão negativa sobre corpos negros. A máscara de carne em “Anômalo” (2015) atua como ferramenta de transfiguração, ao mesmo tempo, como disfarce da identidade do performer para algo fora da linha de humanidade, criatura irreconhecível dentro do território urbano, portanto, excepcional, anômala. Ela [máscara de carne] traz a memória de um ser “mais animal” do que eu; trazer este “outro” em um contato direto com a minha pele torna-se instrumento de indução, uma linha de suspensão entre eu e a memória de outro animal. Na relação entre performer e público – a performance desmonta o tripé tradicional artista-obra-público, pois obra e artista são dissolvidos em uma mesma coisa –, não-humano e humanos, pode-se pensar a máscara de carne como mediadora pela possibilidade de chocar o humano bípede ao se deparar com a criatura anômala; ou, ainda, de acordo com Rocha (2014, p. 27) que discute a obra de Berna Reale, na dinâmica de ação (performance) e reação (público), o choque

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ocupa a posição de mediador que explicaria a passividade, ou melhor, imobilidade do público diante da performance. As obras de Berna Reale parecem ter o dom de retirar seu observador do real, transportá-lo para o universo da fantasia. Adentrar esse universo significa, porém, imediatamente ser expulso de volta à realidade, agora ressignificada: basta o espectador entregar-se à magia da ficção para perceber o mundo que se esconde por trás da arte, para absorver a imagem da barbárie como alegoria da civilização. (CARRION, 2015)

É no limite da fronteira humana, em vias de desumanização, que devenho animal; como nas obras de Berna Reale ou Rodrigo Braga, territorializo-me em uma ficção que se mistura com o real, pois ela acontece e devém de partículas reais. “Anômalo” tem a cidade como seu habitat, diferente de Braga que se desloca da grande urbe em um desejo eremita22, a redescoberta animal acontece no seio da “anti-animalidade”, Anômalo surge como exercício de anomalia em uma sociedade que cada vez mais procura negar a própria animalidade.

22 Ver a série de fotoperformance de Rodrigo Braga, “Desejo Eremita” (2009), disponível em: <https://www.rodrigobraga.com.br/Desejo-Eremita>. Acesso em: 13 de jun. de 2019.

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2. 2 PRÓTESES QUADRÚPEDES Foi reafirmando o lugar do espectador como participante ativo da experiência artística que em 2017, enquanto frequentava as aulas no ateliê de escultura, fui acometido pelo desejo de que a experiência da postura quadrúpede transpassasse o meu corpo. É o início de um movimento propositivo, experimentando a potencialidade interativa do objeto de arte, como descreve Melim (2008, p. 56), a performance aliada ao objeto de arte nos traz a ideia de “obra como uma ação, cuja qualidade específica consiste em realizar, fazer ou executar”. Surge a ideia de construir um objeto mediador da postura quadrúpede, onde o corpo é tão importante quanto o objeto, torna-se o agente da ação, movimento e postura, instrumento para devir. Resgato da experiência em Anômalo as diferentes qualidades que cada postura enuncia, a coluna vertical do humano condiciona o olhar onde o caminhar bípede permite uma visão contemplativa e mais abrangente, enquanto o andar quadrúpede desloca o olhar para baixo, nos colocando em lugar de vulnerabilidade, animal à espreita. Este lugar de diferença, enunciado pela postura quadrúpede, é base de pensamento para os objetos que viriam a ser construídos.

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Figura 9 Quadrúpede estático, 2017. Ferro e plástico, 1m x 1m x 1m. (Fonte: Acervo pessoal).

Figura 10 Quadrúpede dinâmico, 2017. Alumínio, ferro, plástico e rodas aro 8, dimensões variadas. (Fonte: Acervo pessoal).

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Aos objetos dou o nome de Quadrúpedes: estático e dinâmico que se compõem por estruturas de ferro com apêndices em plástico, desenhando o fantasma de um corpo a ser ocupado. Submetem o corpo humano a posturas pré-determinadas, diferente daquela habituada na cidade: bípede. Funcionam como próteses no momento em que os objetos se anexam ao corpo e dele passam a fazer parte, configurando novas funcionalidades como uma espécie de ciborgue, onde humano e máquina fundem-se para reivindicar uma postura esquecida (quadrúpede), cria-se “um híbrido de máquina e organismo, uma criatura da realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2016, p. 36).

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Figura 11 Quadrúpede estático em funcionamento. (Fonte: Acervo pessoal).

Figura 12 Quadrúpede dinâmico sendo utilizado, encaixa-se as pernas e movimenta-se com os braços. (Fonte: Acervo pessoal).

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A obra realiza-se em dois momentos, ora em estado estático: um cubo vazado de ferro ocupando o espaço de um metro cúbico, em que o indivíduo ocupa o fantasma de um tronco com braços, em outras palavras, o animalhumano encaixa os braços e apoia a barriga de forma a ficar semi-suspenso, apenas as pernas tocam o chão, permanecendo nessa postura de inércia e contemplação pelo tempo que achar necessário; ora dinâmico, onde o indivíduo bípede depara-se com uma readaptação da cadeira de rodas para quadrúpedes, suspendendo suas pernas e locomovendo-se apenas com os braços. Certamente há uma inspiração para construir estes objetos na operatividade das tecnologias que nós, humanos, construímos para atender algumas necessidades de locomoção ou transporte de outros animais. Objetos como cadeiras de rodas para cachorros que funcionam como réplicas, readaptações de tecnologias humanas ou ainda, caminhões boiadeiros que carregam bois e vacas sem nenhuma tentativa de empatia com o corpo do outro. Será tão difícil desumanizar o pensamento para colocar-se em lugar de alteridade com o animal-outro?

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Figura 13 Horses don’t lie (Cavalos não mentem), Eduardo Navarro, 9ª Bienal do Mercosul, 2013. Vídeo da performance disponível em: <https://vimeo.com/158878557>. (Fonte: NAVARRO, Eduardo. 2019. Disponível em: <http://www.navarroeduardo.com/projectos/201520010.pdf>).

Figura 14 Vestuário da performance em exposição na 9ª Bienal do Mercosul. (Fonte: Idem).

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Eduardo Navarro, artista argentino, participou da 32ª Bienal de São Paulo, Incerteza Viva, em 2016, e da 9ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre, Se o clima for favorável, em 2013. Após a construção das próteses, descobri Navarro como um potente integrante do bando. Na obra exposta durante a 9ª Bienal do MERCOSUL, “Horses Don’t Lie” (Cavalos não mentem), uma instalação apresenta os cinco vestuários criados para dançarinos convidados por Navarro a explorar um estado não-verbal de pensamento, através de imagens mentais que possibilitam um momento de transe. De acordo com Navarro, a obra teve inspiração na hipoterapia para crianças autistas, onde a partir do contato tátil com os cavalos visa desenvolver um senso de confiança e empatia. O artista contrapõe-se à ideia da psicanálise tradicional que enxerga o autismo como inabilidade para formação de si próprio e como uma incapacidade de se relacionar com o outro, propondo que consideremos as instâncias do encontro humano-animal, onde a ênfase em um sujeito aparece em segundo plano. Para ele “[...] os vestuários, que são em parte pequenos dispositivos mecânicos instruídos pela anatomia equina, são menos um traje que lembra um cavalo do que uma espécie de prótese humana-animal” 23. Os objetos foram construídos com a ajuda do meu amigo, mecânico, ferreiro e pai da artista Amanda de Abreu 24, amiga e integrante do bando. Seu nome é João, e nas noites que passamos em sua oficina na rua Alberto Rosa na cidade de Pelotas, deparo-me com novidades materiais e técnicas: ferro, solda, serra, dobrador, gambiarras; como artista sem ofício anterior, a maior parte do conhecimento e técnica para transformar algum material em arte acontece de forma empírica, isto é, experimentando e observando, momento de fazer, ação e movimento. Entretanto, mais interessante que um objeto finalizado são as trocas, a linguagem, a sociabilidade, as histórias, enfim, o afeto desenvolvido nestes momentos de fazer. Portanto, evidencio minha gratidão ao meu amigo João e a todas as outras amigas e amigos que somam

23 Tradução livre de texto no portfólio do artista. PROJECTOS 2010-2015. In: Eduardo Navarro. Texto por Sofia Hernandez Chong Cuy. Disponível em: <http://www.navarroeduardo.com/projectos/2015-20010.pdf>. Acesso em: 20 de nov. de 2019. 24 Amanda de Abreu é artista e professora de Pelotas/RS, também integra o coletivo Mugra Comix. É possível visualizar seu trabalho pela rede social Instagram: @a____ssma.

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com seus modos de existência e vivência, singulares ou plurais, tornando a vida nesse planeta e nessa cidade, muito mais possível. Quadrúpedes: estático e dinâmico exprimem seu sentido da física para o mundo real: as condições de movimento e repouso são relativas e dependem de quem as observa, assim como acontece com o ser anômalo, pois são condições que estão alinhadas com um bando e com a visão desse bando sobre um indivíduo específico pertencente a ele e, principalmente, a visão deste em relação ao bando quando ocupa o lugar de borda. Em outras palavras, ocupar estes objetos mediadores da postura quadrúpede é, também, situar-se na borda do bando e perceber o mundo de outra forma. O trabalho insere o espectador participante em uma espécie de ficção (quarta senha), uma vez que o animal que se torna não é real, mas sim, a construção de um imaginário em torno de uma criatura ciborgue.

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3 DOMESTICAÇÃO Sabe-se que hoje a exploração da vida de animais não-humanos acontece em uma escala sem precedentes, muito por conta do avanço desenfreado

das

tecnologias.

Portanto,

se

por

um

lado

temos

o

desenvolvimento de meios técnico-científicos capazes de solucionar problemas ecológicos, de outro lado, nos confrontamos com “a incapacidade das forças sociais organizadas e das formações subjetivas constituídas de se apropriar desses meios para torná-los operativos” (GUATTARI, 2001, p. 12), ou seja, a tecnologia mantém-se a serviço daqueles que exploram e a utilizam para explorar: o Estado, as grandes empresas, os militares; e permanece inalcançável

para

aqueles

que

realmente

precisam

e

almejam

um

desenvolvimento harmônico. Portanto, percebe-se que nossa relação com os outros animais vem sendo transformada continuamente e, proporcionalmente, ao desenvolvimento técnico-científico, como expõem o filósofo magrebino, Jacques Derrida: No decurso dos dois últimos séculos, estas formas tradicionais de tratamento do animal foram subvertidas, é demasiado evidente, pelos desenvolvimentos conjuntos de saberes zoológicos, etológicos, biológicos e genéticos sempre inseparáveis de técnicas de intervenção no seu objeto, de transformação de seu objeto mesmo, e do meio e do mundo de seu objeto, o vivente animal: pela criação e adestramento a uma escala demográfica sem nenhuma comparação com o passado, pela experimentação genética, pela industrialização do que se pode chamar a produção alimentar da carne animal, pela inseminação artificial maciça, pelas manipulações cada vez mais audaciosas do genoma, pela redução do animal não apenas à produção e à reprodução superestimulada (hormônios, cruzamentos genéticos, clonagem etc.) de carne alimentícia mas a todas as outras finalidades a serviço de um certo estar e suposto bem-estar humano do homem. (DERRIDA, 2002, p. 51)

Neste capítulo, procuro falar de uma violência específica: a do adestramento ou domesticação (quinta senha), este processo se inicia há milhares de anos, quando nossos ancestrais desceram das árvores, dominaram a técnica da agricultura e tornaram-se criaturas sedentárias. Nesta fase inicial, os animais do gênero Homo atraíram as espécies que não respondiam agressivamente a sua presença e partiram para uma decisão autônoma de dominá-las, houve uma segregação do que seriam os fins para

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cada espécie subjugada pelos humanos: vacas, búfalos, ovelhas, porcos, galinhas… classificados como animais de criação, a estes couberam o fim do sacrifício; os cães, por outro lado, descendentes dos lobos selvagens, foram atraídos pelos restos de carcaça de outros animais deixados pelos caçadores humanos, pois que passaram a viver cada vez mais perto enquanto nós passamos a selecionar os lobos mais mansos, em um processo ainda confuso e nebuloso na história, até chegarmos ao que hoje classificamos como animais domésticos ou de estimação. Minha família, por exemplo, convive com dois cães: um vira-lata pequeno, adotado quando ainda era bem novo, e uma beagle, que era cobaia de experimentos na universidade onde minha irmã estudava (UFRRJ). A domesticação destes animais familiarizados e, frequentemente, humanizados, inicia na infância pela atribuição de nomes na língua humana, respectivamente: Geoffrey e Bohemia. Portanto, ao “ser chamado, escutar-se nomear, receber um nome pela primeira vez, é talvez saber-se mortal e mesmo sentir-se morrer” (DERRIDA, 2002, p. 43), paradoxalmente, receber um nome é buscar-se imortal, não ser esquecido. Aliás, a domesticação começa muito antes, quando nomeamos todos os animais que não são humanos de “Os Animais”. É por isso que a taxonomia (classificação dos seres vivos) – que foi introduzida no primeiro capítulo como um movimento necessário para inserir-me e localizarme neste vasto repertório animal –, começa a parecer-me apenas como um instrumento de dominação, um freio onde encarceramos a multiplicidade de outros viventes em alguns grupos: reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie. Os animais domésticos ou familiares convivem com humanos dentro de suas habitações e estão sujeitos a serem objetificados e subjugados, em outras palavras, pertencem a algum humano. Nessa relação unilateral, os animais acabam sofrendo de uma “humanização” excessiva, da qual Farina (2006, p. 12) chama de “próteses emocionais”. Do animal que cuidava a casa do seu exterior, o cão passou a ser aquele que é cuidado. Foi adotado pela família e, familiarizado, converteu-se em uma espécie de prótese, filho, brinquedo, com sua

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própria cama, roupas, vitaminas, xampus e manicure. Nas grandes cidades, especialmente nas zonas em que as necessidades básicas de sobrevivência estão atendidas, os cachorros se converteram em uma espécie de pássaro enjaulado, com a vantagem de serem mais ‘interativos’. (FARINA, 2006, p. 11)

Questiono-me o tempo todo se nosso comportamento com os nãohumanos tem sido correto e qual é o comportamento certo? Afinal, os humanos comercializam todo tipo de animais: gatos, cachorros, cobras, aranhas, ratos... São vários que sofrem dessa condição de domesticado, animal de estimação – s. f. “Ação de estimar, de mensurar hipoteticamente o valor de; avaliação, estimativa: estimação de preços”25 –, e cada um reage a seu modo. Animais são amplamente difundidos na cultura humana, sua imagem, assim como seus corpos, é explorada economicamente e, frequentemente, aparecem nas fábulas, comportando-se, vestindo-se e falando como nós. Para estas, Derrida dá o alerta: Seria preciso, sobretudo evitar a fábula. A afabulação, conhecemos sua história, permanece um amansamento antropomórfico, um assujeitamento moralizador, uma domesticação. Sempre um discurso do homem; sobre o homem; efetivamente sobre a animalidade do homem, mas para o homem, e no homem. (DERRIDA, 2002, p. 70)

Os animais estão em último na hierarquia dos seres viventes e, não deixam de fugir dessa posição inferiorizada, sem antes passarem por um processo de “humanização”, a domesticação urbana compreende uma enorme problemática e faz parte da nossa vida cotidiana, não é preciso ir longe para compreender, as relações estão dentro de nossas casas e todas parecem passar por um julgamento de valor, ame a uns mais que os outros. Os valores atribuídos a certos animais como os cães, por exemplo, são diferentes quando estes vivem em um lar humano e pertence a alguma raça desenvolvida para agradar esteticamente os humanos, normalmente, de olhos maiores e pelagem esbelta; diferentemente dos animais que vivem nas ruas, vira-latas, reproduzindo-se livremente, ainda que tentemos controlar isso por meio do incentivo à castração, por outro lado, os chamados “cães de raça” têm sua reprodução controlada para serem comercializados. Apesar de terem mais valor que os cães vira-latas, também sofrem maus tratos: as fêmeas são 25 ESTIMAÇÃO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/estimacao/> Acesso em: 20 de nov. de 2019.

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forçadas a se reproduzirem continuamente em ambientes insalubres e os filhotes separados de sua mãe para as vitrines de pet shops. O bom cão não é aquele que late e fede, o bom cão é aquele que usa sapato, veste calça jeans e usa lacinho, para ser bom precisa parecer humano. Citando novamente Derrida: Não se poderia falar, não se o faz jamais em todo caso, da besteira ou da bestialidade do animal. Isto seria uma projeção antropomórfica do que permanece reservado ao homem, como a única segurança, finalmente, e o único risco, de um “próprio do homem”. (DERRIDA, 2002, p. 77)

Enfim, parece que estamos estagnados em um pensamento consumista onde tudo é mercadoria, inclusive nós mesmos. Se o homem condena outras espécies como inferiores, não deixa de julgar dentro de sua própria espécie aqueles que representam alguma ameaça para o humano perfeito capitalista: loucos, pobres, sem-teto, homossexuais; sendo o cidadão perfeito o homem: branco, heterossexual, afortunado, consumista. Logo se há algo próprio do homem, este algo é a nossa estupidez.

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3.1 FETICHE DO AUAU

Figura 15 Registro da performance Pet, 2016, gravado por Julia Pema. (Fonte: Acervo Pessoal)

Figura 16 Idem. (Fonte: Acervo pessoal)

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Em 2016, me deparei com uma matéria na revista estadunidense Dazed Digital26 que entrevistava o fotógrafo Zak Krevitt, o qual relatava sua participação em uma comunidade de humanos que se travestiam de cachorro e, também, sobre sua exposição de fotografias sobre tais comunidades, intitulada Alpha, Beta, Omega – em alusão às posições caninas na composição de uma matilha. Nas fotos que acompanham a entrevista, percebo que a exposição foi montada para ser visualizada de maneira confortável por um espectador quadrúpede, pois as fotografias encontram-se bem próximas do chão no qual está preenchido por tapetes de EVA, reforçando o diálogo com a postura praticada pelos pertencentes aos grupos de fetiche. Entrar em contato com essa matéria, inspirou-me a produzir a performance Pet – palavra da língua inglesa, que significa “any domesticated or tamed animal that is kept as a companion and cared for affectionately/qualquer animal domesticado ou domado que é mantido como companheiro e cuidado com carinho” (tradução livre). A performance consistiu na elaboração de um vestuário que simulasse os pelos de um cão da raça poodle que é originária da França, junto com a roupa utilizo uma focinheira e uma coleira, enquanto sou levado para passear por algum humano. Além da estética irônica de um humano-poodle, o vestuário é montado para causar desconforto, machucar e privar os sentidos de quem o usa. Neste mesmo ano, 2016, fui carregado pela artista do bando, Mariana Mazzetti27, em uma ação que durou pouco mais de 10 minutos ao redor do Centro de Artes. Andar como um cachorro significa curvar-se antes da passagem do tempo, mostrando a passagem do tempo! É proclamar que a utopia de andar em pé em nossa sociedade animalesca é uma promessa não cumprida. (VALIE EXPORT, 1970, tradução livre)428

26 KANE, Ashleigh. Behind the closed doors of the Human Puppy fetish community. Dazed & Confused, Londres, 2 de set. 2016. Disponível em: < https://www.dazeddigital.com/photography/article/32635/1/zak-krevitt-goes-behind-the-closeddoors-of-the-human-puppy-fetish-community >. Acesso em: 20 de nov. de 2019. 27 Mariana Mazzetti, ou Mari, artista de Pelotas/RS, trabalha com mídias diversas: desenho, performance, vídeo e objetos. É possível conferir seu trabalho no Instagram: @mmz_ztt. 28 RE-VISITING Feminist Art: Le chien ne va plus. Hamburgo, Alemanha, 2006. Disponível em: <http://artwarez.org/projects/refeministart/lechiennevaplus/eng.html>. Acesso em: 20 nov. 2019.

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Figura 17 From the Portfolio of Doggedness, 1968, VALIE EXPORT. (Fonte: NY TIMES, Archive. Disponível em: <https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/imagepages/2008/09/12/arts 12streCA02ready.html>).

Em 1968, VALIE EXPORT leva seu companheiro para passear pela coleira nas ruas de Viena, ele anda de quatro como um cão e ela usa um casaco de pele. Toda a ação foi documentada em fotos, também registrando a reação dos passantes. A performance chama-se Portfolio Doggedness, acabei descobrindo-a posteriormente à ação Pet de 2016, relaciono ela a meu trabalho mesmo que existam diferenças. Ao contrário da performance de VALIE EXPORT e Peter Weibel, em Pet utilizo uma roupa e uma máscara que me tornam anônimo. O anonimato traz certa segurança da identidade do performer, além disso, ao disfarçar um rosto humano, evidencio um rosto cachorro. Embora minha premeditação

com aquela

performance

fosse apenas

experimentar uma perspectiva de cão-domesticado, usando coleira, focinheira e caminhando de quatro na rua, a ação, quando executada da forma como foi, carrega sentidos e interpretações das questões de gênero: uma mulher puxando um homem pela coleira. Penso em como seria se fossem performers diferentes, de gêneros diferentes, certamente, trariam outros questionamentos.

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Portanto, a ação que visava perceber as relações de poder entre humano-animal, passou a ter interpretações sobre a violência entre gêneros, mas também foi possível perceber – por relatos de amigos presentes, pois minha percepção estava bem limitada – reações, ou melhor, agressões de alguns espectadores. Estar em uma postura quadrúpede, abaixo da altura dos humanos bípedes, gerou um território de conforto para que alguns me depreciassem; ao mesmo tempo, tornei-me um corpo estranho aos olhos de um cão que rosnou quando atravessei seu território. O animal doméstico tem seus sentidos privados, a domesticação poda o desejo, entretanto, toda essa repressão parece intensificar a vontade que se manifesta na forma de segredo ou fetiche. Neste caso, o meu fetiche em ser animal, me cobrir de pelos e andar quadrúpede: um humano em contágio com cachorro.

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3.2 O GATO DE ROUPAS

Figura 18 Cat Power deitada sobre objeto Cama de Gato, 2017. (Fonte: Acervo pessoal).

Em meados de 2016, adotei uma gata. A ela foi atribuído um nome que faz alusão ao poder felino ou à cantora estadunidense, Cat Power, em português, Gata Poder. Três anos desde que a adotei e, provavelmente, não exista quem saiba mais dos meus hábitos quanto ela. A observação é mútua no tempo que passamos juntos, mas quando se trata de necessidades básicas, como alimentação, surge uma dependência, pois a gata domesticada não vive mais em liberdade, vive confinada a um território poucos metros quadrados na rua Marechal Deodoro, em Pelotas. Portanto, sem liberdade de ir e vir, é privada de forragear – buscar o próprio alimento. Isenta nas vezes em que persegue algum inseto e, por algum motivo, escolhe deixá-los a minha vista, como um presente ou convite para aprender, talvez uma pergunta: por que você não experimenta ir atrás da sua comida?

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Falo da gata, não quero falar minha gata, a linguagem costumeira é traiçoeira se quisermos sair desse lugar antropocêntrico. Diz-se um gato, “é um ‘gato real’ que me vê nu, é para assinalar sua insubstituível singularidade” (DERRIDA, 2002, p. 26). Escrevo sobre uma gata específica, que se lambe, uma atividade tão comum a ela, dotada de uma flexibilidade própria que a torna capaz de contorcer-se e encostar a língua na maior parte de seu corpo. Percebo-me, então, ocupando este corpo não-felino, não consigo nem encostar a língua no próprio cotovelo. Logo, o desejo de lamber-se como um gato parte dessa visão de um corpo humano insuficiente, a vontade é de dilatar minha carne, músculos e ossos. Os movimentos e os órgãos felinos são inapreensíveis em relação a nós [humanos] e não cabe aqui simplesmente explicar essa diferença, mas apropriar-se dela como vetor criativo para um trabalho de arte.

Figura 19 Ação de lamber-se sobre o objeto Cama de Gato. Registro por Carlos Henrique dos Santos. (Fonte: Acervo pessoal)

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Cama de Gato configura-se a partir de um tecido de 1,40 x 1,40 m, sintético, que apenas remete visualmente a uma lembrança afetiva: os pelos da barriga da Cat Power. O tecido é suspenso por correntes ou cordas, preferencialmente em um canto. De acordo com BACHELARD (1978, p. 287): “o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor de ser: a imobilidade”; ou ainda quando evidencia o canto como um lugar de segurança: “Um aposento imaginário se constrói em torno do nosso corpo que se acredita bem escondido quando nos refugiamos num canto” (Ibidem). Imerso nesse lugar de segurança e solidão o olhar entra em si: “sonhador voltado a si próprio”.

Figura 20: Idem. (Fonte: Acervo pessoal)

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O objeto é construído para uma ação, trata-se de replicar, como uma molécula de DNA, um momento íntimo de uma gata, duplicando uma experiência genuinamente Cat Power: lamber-se como um gato em seu canto de intimidade. Derrida fala sobre o pudor que é um sentimento inerente apenas aos humanos, pois o homem foi o único a inventar uma vestimenta para cobrir seu sexo: O animal, este, nu por não ter consciência de estar nu, crê-se que permaneceria tão alheio ao pudor quanto ao impudor. E ao saber de si que isso implica. O que é o pudor se só se pode ser pudico permanecendo impudico, e reciprocamente? O homem não seria nunca mais nu porque ele tem o sentido da nudez, ou seja, o pudor ou a vergonha. O animal estaria na não-nudez porque nu, e o homem na nudez precisamente lá onde ele não é mais nu. (DERRIDA, 2002, p. 18)

A ação é registrada em vídeo por Carlos Henrique dos Santos 29, animalartista do nosso bando, e também de outros bandos aqui do sul do país, bandos que vivem nas grandes planícies de terra vermelha, bandos de São Borja. Os registros são feitos em várias etapas enquanto performo para o olhar da câmera, tratando-se então, de uma ação pensada para o vídeo, em que a câmera torna-se meio de comunicação e como afirma a pesquisadora em Artes Cênicas, Verônica Veloso: “ao direcionar a performance para uma câmera, o artista adia o encontro com o outro, deixa de agir diretamente no presente e opera ao mesmo tempo em materialidades distintas” (VELOSO, 2017, p. 116). Entretanto, enfatizo que ainda é possível que outros venham a acessar a experiência proposta pelo objeto quando este se encontra em exibição. Quando o acesso à obra se dá em ambiente virtual, posterior à ação, estamos nos deparando com um espectador ausente, isto é, “aquele que tem acesso ao acontecimento cênico mesmo sem tê-lo presenciado; pela internet, ele encontra fotografias, vídeos e narrativas produzidas a partir dos eventos” (VELOSO, 2017, p. 109).

29 Carlos Henrique dos Santos é artista natural de São Borja/RS, atualmente reside em Pelotas/RS. Sua produção é variada e gira em torno de fotografia, desenho e performance. Seu trabalho pode ser consultado pelo Instagram: @carlinhoshotwheels.

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Figura 21: Frame do vídeo Cama de gato. (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch? v=KL-iyK02NJk>)

O vídeo30 é gravado e editado de forma a simular um circuito fechado de televisão, trazendo em quatro perspectivas o homem higienizado lambendo-se. Busco uma maneira de construir uma narrativa voyeur: a invasão de um humano que assiste a privacidade do banho felino, um banho sem pudor de uma gata que não conhece o pudor. Quando a façanha tem como agente o corpo humano é que se atribui esse sentimento de vergonha do corpo nu. No vídeo quem se lambe está vestido de um traje branco, novamente, higienizado, algo como uma pele artificial, cobrindo-se por conhecer o pudor.

30 O vídeo “Cama de gato” (2017) está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KLiyK02NJk>. Acesso em: 20 de nov. de 2019.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga que o esforço não valeu a pena. No mais, não quero nenhum julgamento dos homens, quero apenas difundir conhecimentos; faço tão somente um relatório; também aos senhores, eminentes membros da academia, só apresentei um técnico relatório. (KAFKA, F. Um relatório para uma Academia. In: Um Médico Rural. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.)

Neste trabalho de conclusão no curso de Artes Visuais faço um relato de parte da minha produção onde abordo questões de um tema específico: animal. No decorrer da escrita, percebo o quão vasto é este tema, o que me leva a um pensamento labiríntico acerca dos meus trabalhos, referencias e filosofias sobre as mais distintas questões dentro deste tema. Proponho aqui, como, Kafka, não mais que um relatório da minha passagem nesta universidade, entretanto, o texto está recheado do meu pensamento crítico, reforço, pois se trata única e exclusivamente da minha visão sobre alguns problemas que encontro ao meu redor observando nossa relação com os outros viventes. Vejo o sistema da arte, tratando-se neste caso da arte no Brasil, como um lugar pouco acessível para parte da comunidade e para os artistas emergentes. As galerias e museus são espaços pouco acessados pela população que não compõe a elite, além disso, a competição imposta pelo mercado capitalista atinge também o campo da arte, ela existe dentro do ambiente acadêmico e também fora dele, quando o artista busca a representação de uma galeria. Sabemos que o sistema da arte privilegia artistas homens e brancos, deixando de fora uma diversidade potente de mulheres e negros. Além disso, o caminho percorrido me afasta da ideia de autoria, pois, ao mesmo tempo em que me proponho a experimentar novas posturas com o mundo, estou produzindo objetos com a intenção de possibilitar ao outro essa experiência e não me importaria de ver outras pessoas fazendo a mesma coisa, pelo contrário, mais perspectivas são essenciais para que se desenvolvam estas experimentações.

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Pensando nessas problemáticas que procuro afastar-me destes territórios e, ainda, levar adiante minha produção em desenho que transformo em zines – publicações de baixo custo normalmente fotocopiadas (xerox) –, que são distribuídas em terrenos mais democráticos, como feiras autônomas, de mão em mão nas ruas ou pela internet. Pois, de acordo com Anne MœglinDelcroix: Finalmente, no contexto de uma desconfiança das estruturas tradicionais de distribuição da arte, algumas vezes em conflito aberto ou insidioso contra as instituições, uma brochura, impressa com baixo custo, dá ao artista plena liberdade de fazer o que quiser, como quiser, quando quiser e para quem ele quiser. (MŒGLIN-DELCROIX, 2015, p.164)

Diante deste cenário que surge a Mugra Comix31, coletivo de arte gráfico criado por Amanda de Abreu, Érico Noronha 32 e eu33, pela crescente necessidade de gerenciar nossa produção gráfica de quadrinhos, zines, adesivos, pôsteres e serigrafias. Criamos, então, nosso próprio selo editorial de pequenas publicações, autopublicações, pensando além da produção individual e nos aproximando de uma criação como bando. Percebendo os desequilíbrios existentes na nossa relação com os animais é que, a partir da leitura de “As Três Ecologias” de Felix Guattari, desperto em mim uma ecologia animal, começando pelo questionamento dos modos como se dão essas relações hoje para então despertar novas possibilidades de pensar animal, neste caso, através da expressão artística, e viver uma relação mais saudável com o planeta e os seres que nele habitam. Portanto, devo evitar constantemente a “humanização” de outros animais para enxergar além de uma reprodução de sentimentos e pensamentos humanos, vê-los como são a partir dos órgãos que se têm, do modo que se organizam, do que se alimentam e, reconhecendo minha incapacidade de ocupar o corpo 31 A produção do coletivo está disponível na internet, basta acessar no Instagram: @mugracomix ou pelo Facebook: <http://www.facebook.com/mugracomix>. 32 Érico Noronha, nasceu em Ilhéus/BA e estudou Artes Visuais na UFPel, atualmente reside em Porto Alegre/RS onde dá continuidade a sua produção gráfica. Seu trabalho pode ser acessado pelo Instagram: @ericonoronha. 33 Quanto a mim, pode-se acessar minha produção em desenho pelo blog: <https://carinhadebunda.tumblr.com/>. Já meu trabalho sobre este tema de pesquisa está disponível em: <https://zoofagia.tumblr.com/>. Além disso, você pode acompanhar minha vida e as coisas que faço pelo Instagram: @henri_eta.

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que ocupam, eu tensiono o meu próprio corpo em movimentos animais, como um exercício de alteridade onde espero despertar a empatia e o respeito pelo corpo do outro. Retornando no pensamento sobre territorialização: quando abrimos o círculo estável que nos encontramos, não o abrimos para um lado onde se acumulam as forças do caos, ao contrário, escolhemos algum lugar familiar para expandir nosso território. Portanto, abri meu círculo para territorializar-me animal, pois foi onde devim, ou seja, um lugar não caótico para mim, o animal se territorializa em mim para que eu me territorialize no animal, essa troca agrega um conforto calmante no seio do caos. São movimentos rítmicos de passagem, onde não é necessário e até, talvez impossível, sair do corpo humano, mas sim, abrir espaço para novas subjetividades como uma condição exploratória ao andar entre os meios. O humano bípede desperta de sua fantasia de humanidade pela proposição de postar-se diferente, ora como um animal quadrúpede, ora como uma pomba ciscando, ora como um gato se lambendo, e assim, enunciando uma série de desejos e percepções sobre a animalidade que se manifestam em diferentes contextos – habitats – e resultam em diferentes consequências. O processo inicia no contágio com outra espécie animal, não-humana, e a partir do encontro, perceber as semelhanças e diferenças no atravessamento dos corpos humanos e não-humanos (animais); é um processo de subjetivação que funciona como uma troca, o humano torna-se animal para o animal tornarse outra coisa.

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