PRINCESAS: ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

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Título: PRINCESAS : ESTEREÓTIPOS NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES Área Temática: Educação e Comunicação / Tec. Educacionais Autora: PAOLA BASSO MENNA BARRETO GOMES Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O trabalho que estou propondo é uma teorização multidisciplinar sobre o papel das imagens produzidas pela cultura de massas, no caso as princesas criadas e comercializadas pelas Disney Corporation, na constituição da subjetividade. Estou utilizando o conceito de subjetividade encontrado em textos de Deleuze e Guattari, que a definem como território existencial inapreensível que implica em modos de ser. A subjetividade compreende instâncias corpóreas, psíquicas e sociais dos sujeitos, mas, dentro do vasto campo em que atua, o que podemos vislumbrar, nas palavras de Suely ROLNIK, “é apenas um perfil de um modo de ser”. GUATTARI, um dos teóricos inspiradores de ROLNIK, define subjetividade

como

território

existencial

auto-referencial.

Neste

território,

acontecem as subjetivações e as sujeições que se imbricam no constante processo de formação, construção e renovação de identidades, processo que inscreve as marcas culturais na visibilidade dos corpos. Ao tratar da subjetividade na obra de FOUCAULT, DELEUZE alega que não há sujeito, e sim produção de subjetividade. Este trabalho tratará dos modos de subjetivação que se referem ao imaginário feminino, analisando representações de figuras femininas que oferecem-se como modelo identitário, não apenas pela sua vendagem na indústria cultural mas também por estarem atreladas a significados culturais que lhe conferem poder. Este poder subjetivante, presente nas imagens que figuram um tipo de modelo identitário, educa o sujeito para um tipo de olhar sobre os corpos, construindo modos de fazer julgamentos estéticos e morais sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo. Seguindo a trilha de autores como Peter MCLAREN, Stuart HALL, Henri GIROUX,

Jhon KINCHELOE e Shirley STEINBERG, parto do princípio de que a

educação é um processo onde a cultura é incutida dentro dos sujeitos em todos os


aspectos da vida social e psíquica. Nesta perspectiva, o processo educativo não está restrito às instâncias tradicionalmente reconhecidas para este fim, como as escolas, as universidades, a Igreja e a família, mas estende-se a todas as formas de propagação da cultura, desde as práticas cotidianas de caráter doméstico até os mais variados atos públicos. Entre estes múltiplos lugares de aprendizagem, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento ultimamente tem recebido bastante atenção pelos pesquisadores em educação, não apenas por fazerem parte efetiva do cotidiano de nosso tempo, mas também devido ao poder que exercem como formadores e propagadores de saberes. Apoio-me na tese defendida por minha orientadora, Rosa Maria Bueno FISCHER, que ao investigar os discursos da mídia atestou não apenas que a esta é uma poderosa produtora e veiculadora de verdades, mas também constatou que a mídia vem assumindo um papel pedagógico: artigos em revistas, programas de televisão e filmes, por exemplo, muitas vezes são considerados educativos e a informação contida nestes, legítima. Os filmes Disney são um exemplo consagrado do que aparentemente ensina o que é correto, como agir bem e a postura necessária para enfrentarmos as adversidades. Em seu artigo “A Disneyzação da Cultura Infantil”, Henri GIROUX debate o conteúdo de alguns filmes da Disney questionando as posições de raça e de gênero apresentadas e mostrando o quanto estes filmes colaboram para manter os lugares dominantes tradicionais. GIROUX também discute a exorbitância dos lucros obtidos dentro desta companhia e os fins comerciais com que são lançados todos os seus produtos, atentando para o poder da Disney como uma onipresente fábrica de imaginário. Minha intenção é tratar especificamente das questões da formação do imaginário, que na atualidade está sujeito a todos produtos visuais propagados pela cultura de consumo. Na profusão de ditos e imagens que povoam nosso cotidiano, educamos e somos educados a determinados modos de pensar, agir e sentir, a possuirmos modos de ser que nos colocam em lugares reconhecidos e nos constituem como sujeitos portadores de uma identidade. Estudando alguns textos de LACAN e de seus seguidores (KAUFMANN, FINK, NASIO e KEHL) encontrei subsídio teórico para explicar o que empiricamente já havia percebido como professora de artes: a


fundamentabilidade da imagem da figura humana nos processos de identificação e na formação do “Eu”. Embora as imagens parentais e a auto-imagem no espelho sejam a gênese da identificação, considero a continuidade deste processo ao longo da vida do sujeito e considerar os mais diversos dispositivos imagéticos com os quais constituímos nosso “Eu”, incluindo aqui, as personas culturais que assimilamos ao longo de nossas histórias. A grande incidência de representações figurativas em toda a história da arte, a insistência das imagens midiáticas no corpo humano e mesmo a crença judaico-cristã de sermos “a imagem e semelhança de Deus” demonstram a importância psíquica das representações figurativas do corpo humano. Minha análise tratará destas representações pictóricas, substâncias oculares que embasam as identificações inconscientes e que muitas vezes ocupam o espaço do significante. Contudo, ao analisar as representações

pictóricas

também

abordarei

as

representações

culturais

envolvidas nestas imagens, considerando não apenas sua relação com o “Eu” imaginário, instância psíquica de nível inconsciente, mas também com as identidades assumidas pelo sujeito e com a personalidade com que se reconhece conscientemente dentro da cultura. Quero tratar de figuras humanas que circulam nos meios midiáticos e também na indústria de consumo, e que por sua incidência quantitativa no decorrer das últimas décadas estabelecem visualidades que padronizam um determinado modelo comportamental. Dentro da vastidão de nossos imaginários culturais escolhi analisar as imagens de figuras femininas produzidas nos estúdios Disney porque além de serem representações típicas de um protótipo de feminilidade ideal, são produtos consumidos em grande escala, sob as formas mais diversas. Além de serem assistidas nos cinemas e em fitas VHS, aparecem nos mais variados espetáculos e nos mais prosaicos produtos. Estampadas em biscoitos, mochilas, cadernos, escovas-de-dente, embalagens de xampu, peças de vestuário, lençóis, toalhas de banho e decoração de aniversários, como bonecas, ilustradas em jogos, adesivos, figurinhas e livros de histórias, as personagens das histórias Disney são amplamente comercializadas, vendendo um suposto ideal de feminilidade que é consumido globalmente. Embora meu olhar


esteja atento para as heroínas Disney surgidas nos últimos dez anos, minha análise será feita sobre as três princesas chamadas “clássicas”, Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida. Embora todas tenham sido criadas há mais de quarenta anos e tenham subjetivado várias gerações, os filmes que protagonizam são assistidos em grande escala através do comércio e locação de fitas VHS e comercializadas na forma de diversos produtos. Antes de proceder a análise crítica das figuras das princesas, pretendo fazer um levantamento sobre os produtos culturais, da atualidade e das últimas décadas, que veicularam a imagem e os discursos referentes a este tema. (ver levantamento de dados) Os significados que a cultura atribui a estas imagens está relacionado a um lugar de origem histórica que mitificou-se na figura social ou fictícia chamada “princesa”. O tema de análise “princesa’ não refere-se apenas aos sujeitos do sexo feminino que ostentam este título aristocrático, mas sim à personagens e personalidades que apresentam-se no imaginário cultural como figuras pertinentes a um conteúdo mítico específico. Dentro da concepção barthesiana de mito, que analisa os sistemas semiológicos e as falas ideológicas apresentadas por produtos e práticas sacralizados dentro da cultura de massas, considero as figuras das princesas e suas equivalentes como mitificação de um tipo de feminilidade conveniente para os discursos dominantes. As incidências deste mito na mídia e no imaginário social são muitas e pretendo narrrá-las no primeiro capítulo de minha dissertação. Além das memoráveis Grace Kelly e Lady Di, pretendo citar exemplos como Xuxa, Angélica e a modelo Shirley Mallman, assim como os modos glamourizados que a mídia utiliza para apresentar a vida pessoal de mulheres famosas. Quero descrever a personagens que ocupam esta posição ou posição similares em filmes, novelas, comerciais, assim como produtos que por ventura reproduzam características e formas reportados à este tipo de representação, como por exemplo, as bonecas “Barbie”, as jovens de classes abastadas identificadas como “patricinhas”, as práticas sociais dos bailes de debutantes, festas tradicionais de casamento, concursos de beleza e a mistificação da carreira de modelo.


Quero descrever tanto as personalidades da mídia como as personagens fictícias que ocupam este lugar, embora minha análise será pormenorizada sobre as figuras das três princesas Disney clássicas: Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida. Aprofundarei minha análise no aspecto formal das figuras desenhadas nos estúdios Disney: o estilo de seus traços, os cânones estéticos que obedecem, as musas que inspiraram os desenhistas, o tipo de figurino, a movimentação que as anima e a constituição destas figuras como personagens. O papel que ocupam dentro da estrutura dos filmes que protagonizam, suas ações, falas e as posturas assumidas no interior da narrativa serão observados e descritos. Também pretendo contextualizar a época em que cada uma destas princesas foi criada, observando os acontecimentos mundiais e a história da vida cotidiana. Ao descrever as incidências deste tema na mídia e ao analisar detalhadamente as princesas Disney, pretendo discutir a gama de significados que envolvem estas figuras. Como posição feminina que goza de privilégios sociais, o primeiro aspecto que analisarei refere-se ao título de nobreza que as princesas ostentam ou acabam ostentando após unirem-se com um príncipe. Em relação a este aspecto, gostaria de analisar os símbolos e as práticas que distinguem a classe culturalmente dominante e levantar os elementos revestidos de significados aristocráticos. Aqui, pretendo abordar as questões sobre o valor histórico do sangue

e

pureza

racial,

sempre

traçando

paralelos

com

a

realidade

contemporânea. Como as práticas das classes dominantes envolvem ritos que complexificaram o cotidiano, gostaria de pontuar algumas considerações sobre trabalho doméstico e a responsabilidade pela manutenção do lar, assim como as posturas cerimoniais e espontâneas apresentadas por estas figuras. Um segundo aspecto a ser discutido também parte da posição histórica ocupada pela princesa: a moça cujo valor social é conferido por estar apta a contrair matrimônio. Este lugar foi incrementado ao longo do século XX com características delimitadas, que não só indicam uma idade cronológica, mas principalmente especificam a obrigatoriedade de um tipo de beleza, enquadrada dentro das normas estéticas vigentes. Ao discutir o ideal de beleza propagado por estas figuras, não estarei


apenas tratando de um cânone de corpo considerado perfeito, mas também a todos os elementos e artifícios que manipulamos e usamos sobre nossos corpos para torná-los mais “belos”. Descrevendo o padrão de beleza veiculados na mídia e as práticas culturais que visam atingi-los, pretendo debater a imperialidade dos corpos jovens e magros e questionar as possíveis sujeições que nos submetemos para nos tornarmos estes corpos. A beleza nos interessa porque seus padrões regulam os lugares onde permitimos amarmos e sermos amados e a partir deste lugar conferido pela beleza, a figura da princesa apresenta-se como apta para protagonizar o amor. Esta posição que lha coloca como ente desejante e desejado, abre um último aspecto a ser discutido em relação aos significados sociais contidos na figura da princesa: o mito do amor romântico, quase sempre coroado pelo ritual de casamento. Não preciso trazer exemplos para atestar a hegemonia deste mito na contemporaneidade: novelas, livros best-sellers, filmes de grande bilheteria, reforçam a crença de a possibilidade de realização amorosa está no encontro sentimental com alguém do sexo oposto. Distinguimos aqui, uma subjetividade intrincada nos discursos de nobreza, beleza e amor romântico, uma subjetividade que pode ser representada pela figura cultural reconhecida como “princesa”. Os sujeitos, principalmente meninas, moças e mulheres, a quem estes discursos são explicitamente dirigidos, regulamse dentro de padrões que envolvem a idealidade de um prestígio social (nobreza), adequação à norma estética numa concepção dada de corpo e indumentária corretos (beleza) e principalmente através do mito de que a realização plena só é possível através do amor. Estes discursos permeiam um lugar marcadamente feminino, cuja figura da princesa congrega qualidades idealizadas dos aspectos que a cultura dominante atribui como significativos para a feminilidade. Submetidas às normas e às leis sancionadas no interior destes discursos, as figuras de Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, foram criadas pela Disney dentro de padrões determinados pela sociedade onde está inserida a corporação que as produziu. A vigência de suas imagens na cultura de massas ao longo de no mínimo quatro décadas, confere a estas figuras um importante papel subjetivador na vida de meninas de várias gerações. Muitas imagens da indústria


do entretenimento, principalmente os desenhos da Disney e da Warner, povoam o cotidiano infantil, contudo estas princesas, principalmente por serem desenhadas em proporções compatíveis com a anatomia humana, apresentam-se como modelos potenciais para os processos identificatórios. Nas imagens das princesas podemos vislumbrar o que Guattari chamou de “cristalização de um modelo de identidade”, o que faz com que eu aborde estas figuras como material empírico diretamente relacionado com a propagação do que Suely ROLNIK chamou de “kits de perfis-padrão”, referências identitárias produzidas “de acordo com cada órbita do mercado para serem consumidos pelas subjetividades”. Ao tratar destes modelos identificatórios trabalho com o conceito de estereótipo para designar a imagem reproduzida exaustivamente, sempre obedecendo a um padrões formais delimitados pelo fácil reconhecimento. Além de debater o papel dos clichês visuais na produção de subjetividade, o conceito de estereótipo fundamenta a discussão sobre a recorrência das figuras míticas e as formas iconológicas, estáticas e mutantes, que estas assumem dentro de uma cultura. Quando falo de figuras míticas, não estou apenas me referindo às personalidades mitificadas pela mídia e pela cultura de massas, mas também a mitos arcaicos e a todas as figuras que, de um modo ou de outro, consagraram-se em lugares de idealidade, como santos, personagens históricos, personagens da indústria cultural, personalidades sociais e as personas da mídia. A recorrência de temas e representações nas mais variadas épocas e culturas chamou a atenção da psicanálise na medida que possuem inegável força psíquica. Partindo de uma base psicanalítica, mas rompendo com a concepção de que o conteúdo destas forças era apenas de ordem libidinal, JUNG denominou-as arquétipos. O conceito de arquétipo é útil na identificação de representações culturais arcaicas de arraigado poder psíquico, pois aponta matrizes simbólicas, como as posições parentais, por exemplo, que incidem nas estruturas culturais dos mais diferentes povos ao longo da história da humanidade. Contudo as representações destas matrizes arcaicas apresentam manifestações específicas que variam de acordo com o contexto. O historiador das religiões, Mircea ELIADE, concebe os mitos e símbolos como criações culturais elaboradas e veiculadas


dentro da sociedade, mesmo quando seus significados tangem a forças de ordem natural. O lugar arquetípico de uma determinada figura juntamente com a representação formal estereotipada que esta figura assume dentro de um dado contexto são pontos relevantes na reflexão sobre os modelos identitários e a produção de subjetividades. A figura arquetípica da jovem heroína de um conto oriundo da tradição popular oral é revestida de formas diversas no transcorrer dos processos históricos e dos deslocamentos que sofre. As versões Disney destas heroínas além de estarem submetidas a versões condicionadas a determinadas situações culturais (como transcrições de PERRAULT durante o absolutismo aristocrático na França do século XVIII ou os balés criados por PETIPA dentro dos ideais românticos do século XIX), produzem um tipo específico de princesa, subordinada aos discursos vigentes durante a situação em que emergiram. As princesas que proponho analisar são criações oriundas da industria cinematográfica, que a partir da década de cinqüenta promoveu a reprodução, com fins explicitamente comerciais, de imagens evocativas dos filmes. Os personagens tornaram-se ícones de acesso fácil, vendáveis não só através de um eficiente sistema mercadológico, mas devido aos significados culturais imbuídos em suas figurações. Analisando as personagens Disney que representam uma potência identificatória específica, pretendo evidenciar quais os significados que são mantidos e que novos significados são construídos no transcorrer destas quatro décadas, de 1959 a 1999, em que foram e são consumidas como ícones de uma feminilidade idealizada. Esta análise pretende embasar a reflexão sobre as seguintes questões: A eficácia destas imagens envolve um possível conteúdo arquetípico? A estandardização destas imagens esvazia ou reforça sua força psicológica? Até que ponto uma figura considerada arquetípica reforça um representação dominante? Que tipo de modelos identificatórios a estereotipia produzida por uma representação formal de grande reprodutividade nos submete? Como situar o “eu” dentro desta paisagem imaginária colonizada pelas imagens fabricadas na cultura dominante? E como se sentem os sujeitos femininos ou com


identidades sexuais femininas que não se enquadram no padrão de idealidade que estas imagens impõem? Formulei estas questões para debater o problema teórico que esta temática suscita: a ressonância psicológica, portando subjetivadora, evocada pelas imagens que espelhamos nossos “eus". Conceituá-las em estereotipadas ou arquetípicas auxilia-me na abordagem dos significados portados por estas imagens, se estas figuras possuem força simbólica ou são apenas significantes de um dado lugar social. Este problema teórico inclui problemas empíricos que dizem respeito a vida de todos nós, na medida em um modelo de feminilidade, amplamente figurado na mídia, é imposto como “certo, correto”. Tratando deste modelo de mulher, que se apresenta sempre jovem, clara, dócil, esguia, sem ventre proeminente, pretendo refletir os significados que a cultura tem privilegiado em relação a feminilidade. Por exemplo, assisti na semana anterior algumas propagandas comerciais da véspera do dia das mães e observei que as mães representadas eram todas magras e jovens, sendo que uma delas a figura da filha adolescente e de sua mãe eram propositadamente confundidas. Este anúncio me fez lembrar de um texto de minha orientadora que falava da “jovem mulher de quarenta anos”, que suscitou em mim o desejo de discutir o mito da “eterna juventude” e suas implicações subjetivas. Por que a mídia e a indústria cultural investem de positividade este aspecto da existência feminina, tão bem representado pela figura das princesas? Observando a insistência de nossa cultura nos signos da juventude suponho que o papel este seja um lugar adequado para protagonizar o que instituímos como amor, esta instância indefinida e etérea que mobiliza mercados e norteia as diretrizes da grande indústria do entretenimento. O amor é instituído como ideal de felicidade, o discurso do amor romântico é imperante em nossa cultura, não apenas sendo consumido como entretenimento mas também fazendo circular inúmeras crenças, práticas e saberes, ocupando uma parte significativa de nossas buscas e histórias pessoais. As representações mais vigentes em torno do amor, muito bem exemplificadas pelas figuras das princesas Disney, reforçam as situação dominante onde os sujeitos do gênero feminino dependem do afeto e da atenção


masculinas para se realizarem como mulheres, o que exige o disciplinamento do corpo e da aparência com vistas de atrair e conquistar o outro. A aparência adequada para o amor é inexoravelmente subordinada à modas, estilos, cânones estéticos e hábitos culturais em relação à higiene corporal. Muitas são as situações onde percebemos o poder da aparência no que se refere às estratégicas posições de amar e ser amado. Em seu livro de memórias, Zélia GATTAI conta que convenceu Jorge Amado a “arrumar os dentes quebrados da personagem Teresa Batista”, alegando que ninguém ia gostar de ler um romance em que a heroína abria a boca e aparecesse um buraco. Após assistir ao filme americano “O Guarda-costas”, com Withney Houston e Kevin Costner, perguntei para minha falecida avó o que ela tinha achado, ela respondeu hesitante: - O filme é bom, mas não sei, não gostei muito. - Por quê?- perguntei. - Porque ela é meio negrinha para ele. Nestes exemplos cotidianos estão inscritos os preconceitos que estabelecem formas não só para os modos de amar, mas também estereótipos em relação a quem pode amar quem, a quem merece amor, a quem é digno ou não digno de viver o amor. Aos excluídos do amor, o que resta, se o amor instaura-se como esperança compensatória de todas as outras exclusões? Com este trabalho quero atentar não apenas para as estereotipias dos modos de ser e de vivermos o amor, mas também para a rigidez de um lugar social marcadamente feminino e regulado por normas estéticas que sancionam quais são as mulheres passíveis de serem amadas ou odiadas. Investigando se estes estereótipos são naturalizados devido à força psíquica de um suposto conteúdo arquetípico ou se estabelecem seu poder dentro de uma complexa rede de submetimento imaginário, pretendo atentar para a maneira de como operam as forças e constituem os padrões que marcam nossas subjetividades, inscrevendo em nossos corpos as possibilidades ou a impossibilidade de gozo. DELEUZE

pergunta: “A subjetividade moderna reencontraria o corpo e seus

prazeres contra um desejo tão submetido à Lei?” . O que é incutido através da mídia e das grandes corporações produtoras de imaginário tem resultados


esmagadores, tamanha as imposições hipnotizadoras de algumas imagens. A hipnose talvez seja irreversível dentro de sujeitos que cresceram aprendendo a adorar o Mickey Mouse e que depositaram nos ícones aparentemente inofensivos de sua infância as crenças que consideram elevadas? Como romper com o encantamento que fábricas de imaginário, tão poderosas como a Disney, promovem? Como buscar modos de ser não submetidos aos padrões globalizadores que colonizam nossos territórios existenciais? Como não levar nossas vidas de forma estereotipada, não nos deixando levar pelos apelos da hiper-realidade? Como vivermos a realidade sem sermos “bonecos de marionetes”, manipulados por redes de poder que se auto regulam de acordo com nossos movimentos involuntários? Ao trabalhar com o princípio de que somos assujeitados pelos significados dominantes e pelas formas imaginárias pelas quais estes significados se revestem, tenho a intenção de descrever a hegemonia de determinadas representações, representações que se apresentam em formas de estereótipos. As versões estereotipadas que revestem certas identidades culturais precisam ser combatidas a fim de que formas diversificadas de subjetividade possam ser aceitas e as variadas formas de identidade possam ser respeitadas. Em autores de escolas diferentes, como GUATTARI e KINCHELOE, encontro o argumento de que a arte é o instrumento mais eficaz no que se refere a “produção de novos modos de subjetivação” (GUATTARI, 1998), pois como “epistemologia alternativa” (KINCHELOE, 1997, p. 72) é um campo onde podem ser operadas possibilidades de reversão e subversão dos saberes produtores de estereotipias. As possibilidades de reconstrução do imaginário e criação do que GUATTARI

chamou de “subjetividades mutantes” serão o foco final de minha

dissertação,

onde

pretendo

trazer

exemplos

de

trabalhos

artísticos

contemporâneos que trazem outros olhares sobre a feminilidade. Na medida em que a produção do imaginário hegemônico envolve elaborações formais advindas da arte popular e erudita, é através da arte como estratégia de mobilização que poderemos desconstruir os modelos estéticos vigentes, as formas que cristalizam o olhar em padrões que servem aos discursos dominantes.


Como professora de artes, sei o quanto as questões que estou propondo dissertar atravessam o cotidiano de sala de aula, onde a bagagem imagética dos alunos está muito distante das novas linguagens da arte contemporânea e minada de referências da cultura de massas midiática, onde a subjetividade dos alunos reproduz padrões estereotipados ao invés de manifestar as singularidades, onde a diferença é rechaçada em prol de comportamentos homogêneos e invisíveis. Com vistas de trazer o que tenho elaborado conceitualmente para os problemas concretos enfrentados no ensino das artes e na conflituosa relação do grande público com a arte contemporânea, inclui, no texto da minha proposta de dissertação, um complemento da pesquisa que envolveria a participação de outras professoras de artes, onde colheria depoimentos sobre os filmes e debateria questões sobre o tema em que estou trabalhando. Devido a brevidade do tempo disponível para a conclusão da dissertação e a complexificação de dados que este procedimento acarretaria, tenho reconsiderado esta parte do trabalho, pensando em reduzir a extensão desta questão, que por si poderia desenvolver outra dissertação, em um capítulo sobre artistas locais que abordam temas pertinentes à minha análise. Minha intenção é mostrar que as imposições imaginárias podem ser reinventadas e reconstruídas na medida em que são absorvidas por outras culturas, que artistas e pessoas sensíveis aos movimentos artísticos podem expressar outras formas de representação feminina e revertendo assim, as posições tradicionais, a iconologia estanque e os padrões estereotipados.


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