Título: Revista Vallis Longus. História. Arte. Cultura. Património. Identidade. Cidadania
Numeração: Série II n.º 2 2024
Proprietário: Câmara Municipal de Valongo
Sede de Redação: Arquivo Histórico de Valongo/CMV
Diretor: Joel Mata
Comissão Científica: Francisco Castelo Branco, Lino Tavares Dias, José Manuel Pereira, José Manuel Tedim, Manuel Pinto, Paulo Amorim. Depósito legal: 6154/84
ISSN: 2975-979X
Página web: https://www.revistavallislongus.pt
Local: Valongo
Ano: 2024
Periodicidade: anual
Conceção gráfica: Ricardo Durão Designer Impressão e acabamento:
Tipografia Lessa | www.tipografialessa.pt
Tiragem: 250 ex.
Sumário
3
O sal da democracia
7 O 25 de Abril em Ermesinde e no município de Valongo
Manuel Augusto Dias
37 Valongo e a Panificação: história, estórias e tradição
Cláudia Andreia Ferreira da Silva
61 A indústria do pão no concelho de Valongo e as crises de subsistência. Elementos para a sua história
Joel Silva Ferreira Mata
93 Breve história do brinquedo de folha de flandres no concelho de Valongo, a tétrade de Alfena e Ermesinde
Carlos Magalhães
107 No centenário da morte de Humberto Beça (1877-1923) –o professor, escritor e patrimoniólogo
José Manuel Pereira
131 Fernando Lanhas e o território de Valongo
Domingos Loureiro e Maria Pinheiro
155 Historiografia de Alfena é vítima de maus tratos? Desmontando alguns «mitos urbanos» da História de Alfena.
Arnaldo Mamede
175 Imagens devocionais nas Igrejas Matrizes de Valongo
José Augusto Coelho Abreu Costa
197 Os caixotões da Igreja Matriz de São Martinho de Campo
José Augusto Coelho Abreu Costa
217 O limite ocidental do Concelho de Valongo. Revisitando as antigas demarcações de freguesias maiatas.
Ricardo Ribeiro
243 As raridades que o tempo esqueceu nas margens do Ferreira «Chão de Couce»*
Jacinto Soares
249 A vertente ritual e religiosa na festa de S. João de Sobrado: notas exploratórias.
Manuel Pinto
269 Estatuto Editorial e normas para apresentação de textos
O sal da democracia
A forma como o Município de Valongo se empenha na publicação da Vallis Longus insere-se – desde o relançamento da revista em 2023, depois de um número isolado em 1985 – no mesmo entendimento político que nos levou a lançar um ciclo de comemorações dos 50 Anos da Democracia Local no concelho no âmbito da celebração do cinquentenário do 25 de Abril. Este entendimento é o da valorização da atividade social, económica, cultural e administrativa que se desenrolou no território valonguense ao longo dos séculos, em particular das últimas décadas, e que formou uma identidade social e territorial bem definida e o caráter da nossa população.
O Poder Local Democrático é uma grande conquista nacional. Vale a pena, por isso, sublinhar que esta é, provavelmente, a transformação político-administrativa que mais impacto teve nas vidas dos portugueses neste meio século de vida democrática em liberdade.
A atividade cultural é, seguramente, um dos campos em que o trabalho autárquico se exprime de forma mais exuberante, tendo este transformado a nação baça, em boa parte analfabeta e imobilizada que o Estado Novo deixou em 1974, no país de hoje no qual se multiplicam espetáculos e eventos cultuais, equipamentos como bibliotecas, museus, teatros, salas de concertos e arquivos um pouco por toda a parte.
Valongo é disso o melhor exemplo, uma vez que na última década a sua agenda cultural se tem alargado, diversificado e sofisticado todos os anos a um ritmo impressionante.
É no interior desta dinâmica cultural que junta a expressão de académicos, de intelectuais e de artistas locais a talento vindo de fora, que surge a Revista Vallis Longus, orientada para o estudo académico e especializado da história, das artes, da cultura, do património, da cidadania e, portanto, da identidade rica, multifacetada e complexa do município de Valongo.
A Vallis Longus, sob a direção de Joel Mata e com a exigência da sua comissão científica, tem vindo a estudar Valongo e a refletir e a pesquisar sobre aspetos muito variados da sua construção como entidade territorial ao longo dos séculos e dos últimos anos.
suas indústrias, como a panificação e os brinquedos. Revisita também personalidades tão ilustres nas artes e na cultura como Humberto Beça ou Fernando Lanhas. Dedica-se ao património civil e religioso local e estuda, com grande minúcia, polémicas antigas quanto aos limites territoriais das freguesias do concelho.
Esta produção de conhecimento concentrada na realidade de Valongo, valoriza o respetivo território e, sobretudo, a consciência social da sua população. O estudo rigoroso do passado e da realidade com que lidamos no presente é uma base indispensável para, em democracia, encarar o futuro coletivo e fazer as escolhas que cada momento impõe.
A cultura, dizia Mário Soares, é “o sal da democracia”. É, justamente, o contributo deste tempero cívico que a Revista Vallis Longus pretende proporcionar à comunidade valonguense.
O número 1 teve um peso maior da historiografia do século XIX em Valongo, bem como da atividade cultural e recreativa no século XX. Este número 2, por seu lado, aprofunda o estudo de algumas das
José Manuel Ribeiro Presidente da Câmara Municipal de Valongo
O 25 de Abril em Ermesinde e no município de Valongo
Manuel Augusto Dias
(Mestre em História) (maugustodias@hotmail.com)
Resumo:
A Revolução do 25 de Abril de 1974 teve grande impacto na vila de Ermesinde, então a freguesia mais populosa do concelho de Valongo.
Aqui surgiram lutas políticas muito vivas em torno de pequenos partidos e de grupos políticos que se constituíram na conjuntura revolucionária.
Registaremos, por fim, os resultados eleitorais das primeiras eleições do pós-25 de Abril, para as Constituintes e das primeiras eleições autárquicas, no concelho de Valongo. Palavras-chave: Revolução; 25 de Abril; luta política; eleições; Ermesinde; município de Valongo.
Abstract: 25th April Revolution had a great impact on the village of Ermesinde, which was by then the most densely populated parish in the county of Valongo. Here very active political struggles appeared around small parties and political groups formed in the revolutionary context.
Lastly, we will register the electoral results of the first post- 25th April elections for constituents and for the first local elections in the county of Valongo.
Keywords: 25th April; political struggle; elections; Ermesinde; municipality of Valongo.
1. Introdução
No ano em que se comemoram os 50 anos do “25 de Abril” achei que seria de todo o interesse que a Revista Vallis Longus se debruçasse sobre as consequências da revolução democrática entre nós, divulgando, concretamente, algumas ações da oposição ao Estado Novo na freguesia de Ermesinde e no concelho de Valongo.
Na evocação desta memória, para além de desvendar alguns eventos menos conhecidos, referir-me-ei, também, a duas personagens valonguenses que foram protagonistas das grandes mudanças que nos trouxe a Revolução, nomeadamente, como deputados constituintes.
Tratarei do impacto imediato da Revolução dos Cravos a nível das lideranças políticas e associativas e recordarei a intensa luta política que se viveu em Ermesinde no período do PREC (Processo Revolucionário Em Curso).
Por fim, trarei à memória os resultados eleitorais, no município de Valongo, das primeiras eleições verdadeiramente democráticas que houve em Portugal (precisamente no primeiro aniversário da
Revolução, para as Constituintes) e das primeiras eleições autárquicas.
2. Atividade antifascista antes do 25 de Abril
No período da “Primavera Marcelista”, muitos democratas acreditaram ter chegado a hora do país evoluir politicamente para um regime democrático. Por isso, os opositores do Estado Novo, confiantes de que o novo Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, seria capaz de concretizar uma política verdadeiramente reformista e modernizadora, envolveram-se empenhadamente nas eleições legislativas, que se realizaram no dia 26 de outubro de 1969.
Em Ermesinde, algumas pessoas ligadas à oposição estiveram particularmente ativas. Diomar Santos, vários anos deputado da Assembleia Municipal de Valongo, e militante do Partido Socialista, viveu intensamente a política de oposição ao regime de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, revela que os votos eram «distribuídos não por uma Comissão Eleitoral independente que assegurasse a equidade do ato eleitoral, mas por
cada uma das listas concorrentes. Assim, os boletins de voto, embora de formato igual, apareceram em papel de diferente gramagem, tornando de imediato identificável o sentido de voto de cada um»1. Mas outros nomes de pessoas ligadas a Ermesinde, pelo nascimento ou longa residência, se fizeram notar nesta conjuntura eleitoral, nomeadamente o médico, Dr. Faria Sampaio; Adérito Moura (de uma família ermesindense tradicionalmente republicana que já aquando da campanha presidencial de 1958 tinha apoiado a candidatura do general Humberto Delgado); Joaquim Moutinho (de que falaremos mais adiante); Albino Maia e Paulo Emílio Martins (que acompanharam Diomar Santos nos atos de propaganda antifascista na CDE –Comissão Democrática Eleitoral)2.
1 Declarações ao jornal “A Voz de Ermesinde” de 15 de abril de 2014, por ocasião da comemoração dos 40 anos do 25 de Abril, num trabalho jornalístico assinado por Luís Chambell.
2 No trabalho jornalístico de “A Voz de Ermesinde” acima referido, Diomar Santos divulga os nomes de outros opositores, de filiação maoista, que também se envolveram em atividades revoltosas, como José Paiva (mais tarde anarco-sindicalista); e Carlos Basto (que, bastante tempo depois, foi deputado municipal pelo Bloco de Esquerda), ambos estiveram presos antes do 25 de Abril, no âmbito de ações ligadas à ARCO (Ação Revolucionária Comunista).
Foto 1 – Notícia na primeira página “Diário de Lisboa” de 9 de agosto de 1972.
Fonte: DL.
Já no início da década de 1970, um outro facto político pouco conhecido, aconteceu em Ermesinde. Foi no dia 9 de agosto de 1972.
O “Diário de Lisboa”, desse dia, trouxe a notícia logo na primeira página.
Nesse mesmo número, em que noticiava a última posse de Américo Tomás como Presidente da República, informava, sob o título “Actos de Violência”, o que se havia passado de madrugada na vila de Ermesinde: «Hoje por volta das cinco horas da manhã, rebentaram bombas em vários pontos do país,
destruindo postes de linhas de alta tensão e interrompendo a corrente eléctrica nalgumas localidades. Sete postes da freguesia de Ermesinde, próximo do Porto, foram totalmente destruídos por outras tantas cargas explosivas (…)».
Ainda hoje a assinalar o facto existe na toponímia da zona dos Montes da Costa, a Rua 9 de Agosto.
Estes atos de violência integravam-se na “Operação curto-circuito”, protagonizada pela ARA (Ação Revolucionária Armada) que «tinha decidido realizar uma acção nesse dia que consistiria no corte da energia eléctrica em todo o país. O plano pressupunha a realização de três acções de sabotagem em simultâneo: no Porto, em Lisboa, e em Coimbra, envolvendo um número maior de operacionais do que em qualquer operação anterior»3.
2.1. Dois antifascistas que conheceram a prisão antes do 25 de Abril
Antes de nos debruçarmos sobre a influência que a Revolução do 25 de Abril teve nesta cidade e no município, permitam-nos que apresentemos breves sínteses biográficas de dois homens que lutaram pela liberdade e pela democracia, antes da Revolução dos Cravos, um de Valongo, da área socialista, e outro de Ermesinde, da área social-democrata. Depois do “25 de Abril de 1974” ambos foram eleitos deputados constituintes.
3 In Ana Sofia de Matos FERREIRA (2015)Luta Armada em Portugal (1970-1974). Tese de Doutoramento em História Especialidade em História Contemporânea. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, pp. 244 e ss.
Foto 2 – Dr. António Macedo
No primeiro caso, trata-se do Dr. António Macedo, que tem o seu nome numa artéria da cidade de Valongo (o seu nome também consta da toponímia de outros municípios, nomeadamente, Porto, Gondomar, Matosinhos, Santo Tirso, Vila do Conde, Vila Franca de Xira, Lisboa, Amadora, Oeiras e Seixal) e no maior auditório da sede do concelho.
António Cândido Miranda Macedo, de seu nome completo, nasceu em Valongo, no dia 29 de setembro de 1906 e faleceu no Porto, no dia 9 de junho de 1989, com 82 anos. Foi um advogado e político português. Durante o seu percurso como estudante da Universidade de Coimbra, já no período da Ditadura Militar, iniciou-se, na Loja Maçónica “A Revolta”, de Coimbra (1930), exerceu as funções presidente do Centro Republicano Académico (1929-1930), e de secretário da direção da Associação Académica de Coimbra (1930) tendo participado em várias greves da Academia entre 1928 e 1931, altura em que viria a conhecer a situação de prisioneiro político. Depois de ter frequentado algumas disciplinas da Faculdade de Letras,
concluiria a sua licenciatura em Direito no ano de 1931, passando a exercer a advocacia no Porto, no ano seguinte.
Ao longo da sua carreira de jurista, defendeu alguns opositores ao regime, como foi o caso, por exemplo, de Agostinho Neto. Chegou a exercer o cargo de Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (entre 1958 e 1974).
A sua carreira de opositor ao regime, manifestou-se no seu envolvimento na criação do MUD (Movimento de Unidade Democrática), no Porto (1945), na candidatura do General Norton de Matos (1949) e integrando a comissão central da candidatura do general Humberto Delgado (1958). Foi candidato da oposição à Assembleia Nacional, pelo círculo do Porto, aos atos eleitorais de 1953, 1957, 1961, 1964. Amigo de Mário Soares, adere à Ação Socialista Portuguesa em 1964 e em 1969 é candidato à Assembleia Nacional, pela CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). Neste mesmo ano, foi um dos destacados organizadores do II Congresso Republicano, de Aveiro.
Em 1973 foi um dos fundadores, na clandestinidade, do Partido Socialista e seu presidente até 1986 (no VI Congresso do PS, em junho de 1986, foi eleito presidente honorário do partido).
Exerceu as funções de Deputado, primeiro como constituinte, e depois Deputado da Assembleia da República, eleito pelo PS da I à V Legislatura. Em 25 de abril de 1981 foi agraciado com a grã-cruz da Ordem da Liberdade e a 8 de janeiro de 1988 com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
No segundo caso, falamos do Eng.º Manuel Joaquim Moutinho. Nasceu no dia 12 de junho de 1942, no Hospital S.to António (Porto) e faleceu no dia 30 de julho de 2022, com 80 anos. Ermesindense de gema, serviu muitos corpos dirigentes de associações e coletividades ermesindenses de que são exemplo o Clube de Propaganda de Natação, o Centro Social de Ermesinde ou a Casa do Povo de Ermesinde onde, à data da morte, ainda exercia o cargo de Presidente da Assembleia Geral.
A sua atividade político-partidária foi também proeminente.
Aos 21 anos era dirigente do Movimento Estudantil “Prol Liberdade”, o que lhe custou 7 meses de prisão na PIDE, seguida de julgamento no Tribunal Plenário, tendo sido absolvido dos supostos “crimes” de que fora acusado pela polícia política do regime ditatorial.
Logo a seguir ao “25 de Abril” foi fundador e o principal impulsionador do PPD (Partido Popular Democrático – atual Partido Social Democrata) no concelho de Valongo. Como militante do PPD/ PSD desempenhou os seguintes cargos: Presidente da Comissão Política Concelhia da Secção de Valongo (1974-1986); Deputado à Assembleia Constituinte (19751976); Membro da 1.ª Comissão
Foto 3 – Eng.º Manuel Joaquim Moutinho
Administrativa da Câmara Municipal de Valongo, nomeada a seguir ao “25 de Abril” (1974-1975); Deputado à Assembleia da República (1976-1979); Vereador da Câmara Municipal de Valongo (1976-1979 e 1983-1985 – foi, então, que propôs a alteração do dia de feriado municipal, que era a 17 de agosto, dia de S. Mamede, para o dia de S. João, 24 de junho, alteração que seria aprovada pela maioria da vereação); Membro do Conselho Nacional do PSD (1977-1978); Membro da Comissão Política Distrital (19791980); Presidente da Assembleia Municipal do Concelho de Valongo (1980-1982); e Membro da Assembleia Municipal do Concelho de Valongo.»
Por deliberação do Plenário da Assembleia da República, em 31 de março de 2016, então presidida por Eduardo Ferro Rodrigues, foi-lhe atribuído o título de “Deputado Honorário” pelos «relevantes serviços prestados na defesa da instituição parlamentar no exercício do seu mandato de Deputado à Assembleia Constituinte de 197576».
3. O imediato pós-25 de Abril em Ermesinde
Em Ermesinde, o maior núcleo urbano do município valonguense há 50 anos, o “25 de Abril” causou grande efervescência associativa e política. Nessa altura, ainda vila, um grupo de ermesindenses que se identificava com o novo regime, terá pretendido, numa reunião realizada no dia 2 de maio de 1974, alterar as lideranças não só da respetiva Junta de Freguesia, como também das principais instituições e coletividades da terra, designadamente, os Bombeiros Voluntários, a Casa do Povo, o Ermesinde Sport Clube e o Clube de Propaganda da Natação.
Isto mesmo é explicitamente referido na ata da primeira reunião que o executivo da Junta da Freguesia de Ermesinde fez após o triunfo da Revolução do 25 de Abril de 1974. Este órgão administrativo era presidido, há já cerca de sete anos, por Joaquim Alves de Oliveira, que tomou a seguinte posição, conforme consta na ata da reunião de 4 de maio de 19744.
1.º Apoiar incondicionalmente as Forças Armadas rendendo-lhe as suas
4 Cf. Livro de atas da Junta de Freguesia de Ermesinde, n.º 22, fls. 143v. e 144.
homenagens, bem como à Junta de Salvação Nacional a quem se dirigem com todo o respeito e admiração;
2.º Não se podendo desafectar do facto de terem servido durante a vigência do anterior regime, pedem aceitem o que com toda a sinceridade expressam no n.º um;
3.º O facto de formarmos o corpo administrativo da Junta de Freguesia de Ermesinde é devido à proposta de paroquianos, que nos fizeram eleger e a nossa expressa vontade de servir o país nesta parcela do continente Português, pondo à consideração de Vossas Excelências, tanto as nossas personalidades, como as das pessoas que nos propuseram a sufrágio;
4.º O expresso no n.º três não é com o fim de nos ser tributada a continuidade das funções que vimos exercendo, pois muito bem aceitamos e concordamos em absoluto com uma completa remodelação geral de todos os corpos administrativos;
5.º Pedimos nos seja relevada a nossa discordância pelo que, numa reunião política, levada a efeito no passado dia 2, nesta Vila de Ermesinde, em que foi sugerida a “Tomada” da Junta de Freguesia, Bombeiros Voluntários de Ermesinde, Clube de Propaganda da Natação, Casa do Povo e Ermesinde Sport Clube, pois embora e como dissemos acima, estamos de absoluto acordo com uma remodelação geral de todos os corpos
administrativos, achamos essa atitude penosa e leviana, o que denegride e desrespeita os bons e sábios intentos da Junta de Salvação Nacional;
6.º Apresentamos a nossa mágoa pelo quase “ultimatum” que nos foi dirigido, “ultimatum” esse deliberado aquando da reunião a que nos já referimos e cujo texto transcrevemos:
“Ex.mo Snr. Presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde / Um Grupo de Democratas de Ermesinde vem informar V. Ex.ª de que deliberou reunir no edifício da junta a que V.ª Ex.ª preside, no próximo dia sete do corrente pelas vinte e uma horas. Para tal fim, solicita a V.ª Ex.ª se digne ordenar para que o referido edifício esteja aberto a partir das vinte e trinta horas. Saudações Democráticas: - Pela Comissão: Fernando António Vaz de Faria Sampaio”.
Uma vez que, anteriormente e de toda a boa vontade já tínhamos posto à disposição do referido grupo as instalações do edifício desta Junta.
Renovamos as nossas saudações, o nosso incondicional apoio e a nossa admiração (...).
Há um apoio inequívoco, da parte da Junta de Freguesia de Ermesinde ao triunfante Movimento das Forças Armadas e à sua Junta de Salvação Nacional, mas, ao mesmo tempo, manifestam
alguma mágoa pela forma como a Comissão de um Grupo de Democráticos de Ermesinde terá pretendido controlar, desde logo, a autarquia e algumas das instituições mais importantes da vila.
Quanto ao jornal, “A Voz de Ermesinde”, dirigido por Eduardo da Costa Gaspar, na primeira edição a seguir ao “25 de Abril”, com a data de “Maio de 1974”, o próprio diretor escreve, na primeira e última páginas, o texto que, a seguir, se transcreve; e, no final, publica uma foto bem elucidativa do apoio popular à Revolução Democrática – a Avenida dos Aliados (Porto) completamente cheia.
O MOMENTO HISTÓRICO QUE
ATRAVESSAMOS
Todo o país está a passar por um momento de esperança num futuro desanuviado, e, porque Ermesinde é parte de Portugal, também no nosso ambiente se vive intensamente esse clima de euforia.
É por isso que “A VOZ DE ERMESINDE»” no seu objectivo de pugnar pelo progresso de Ermesinde apela junto dos seus assinantes e leitores para, de mãos dadas, trabalharmos por um Portugal melhor,
4 – Capa do 1.º jornal de “A Voz de Ermesinde” que se publicou a seguir à Revolução
A política terá que ser moral, mas não é apenas isso, ela é uma arte que tem como objectivo o bem comum numa sociedade. A colaboração que todos poderemos dar, terá que estar na linha de respeito e promoção dos direitos e deveres da pessoa humana.
Tal promoção Social está enquadrada nos seguintes princípios: No respeito pelos pobres; Na defesa dos fracos; Na protecção aos estrangeiros; Na desconfiança perante as
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riquezas; Na condenação do domínio pelo dinheiro; Na destruição dos poderes totalitários; Este é o lema que anima a equipa que trabalha graciosamente no Centro de Assistência Social; pede-se aos mais favorecidos para ajudarem os menos favorecidos, amparando os pobres e defendendo os fracos.
O momento tem que ser de ordem, de trabalho, de respeito mútuo.
Todos colaboremos com o GOVERNO DA NAÇAO se começarmos por exigir de nós próprios o BOM SENSO.
Bom senso. Nas reivindicações – não pedirmos o impossível; bom senso nas afirmações – não fomentarmos os boatos que a ninguém convém nem trazem quaisquer vantagens; bom senso nas acções – não alimentando discórdias, mas trabalhando sempre e cada vez mais por um Portugal melhor.
Ainda na primeira página de “A Voz de Ermesinde”, toda ela dedicada à Revolução, é publicado o artigo intitulado “Portugal rumo ao Futuro”, com foto do Chefe de Estado, general António de Spínola, que havia recentemente (dia 15 de maio de 1974) assumido, na Sala dos Espelhos do Palácio de Queluz, as importantes funções de
Presidente da República. No dia seguinte (16 de maio), na Sala Luís XV, do Palácio de Belém foi a vez de tomar posse o Governo Provisório, que teve como Primeiro Ministro, o Professor de Direito, Adelino da Palma Carlos. Um outro artigo iniciado na primeira página do jornal de Ermesinde, declarava em título, que “Portugal vê despontar novos horizontes abertos pelo Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril”.
E, na última página de “A Voz de Ermesinde”, número de maio de 1974, quase como legenda de uma foto que enche, praticamente, toda a página, com a Avenida dos Aliados (Porto) completamente cheia de apoiantes da Revolução, escreve-se: «A VOZ DE ERMESlNDE, nesta hora gloriosa e altamente expressiva, escrita em letras de oiro pelo Movimento das Forças Armadas, julga interpretar o verdadeiro sentir do povo português que, subjugado a um regime político já ultrapassado, vê surgir, finalmente, perspectivas de um futuro mais risonho, igual a um passado longínquo em que os factos gloriosos evocam e estão indissoluvelmente ligados a nomes de Homens que, servindo
com nobreza e patriotismo a terra que foi berço de Camões, a Pátria Lusitana, servindo-A, nunca Dela se serviram».
4. Quem geria a Câmara de Valongo em 25 de Abril de 1974?
Quando se deu a Revolução dos Cravos, há 50 anos, a Câmara de Valongo tinha a seguinte composição, desde há cerca de dois anos (desde 28 de fevereiro de 1972): Dr. José Ribeiro Pereira (presidente) Eng. José Luís Pimentel Seara
Cardoso (vice-presidente), Manuel Joaquim Ribeiro de Sousa Magalhães, Fernando Rodrigues de Oliveira, José Alves da Costa, José Jorge Viterbo Fernandes das Neves, Dr. Manuel dos Santos Carneiro, Joaquim de Sousa Martins Almeida (seria substituído ainda em 1972) e José Ferreira Fontes.
O Dr. José Ribeiro Pereira era natural de Ermesinde, tendo sido dirigente de diversas instituições e coletividades locais, nomeadamente do Centro Social de Ermesinde. Foi também diretor do jornal “A Voz de Ermesinde”. Era no Porto que exercia a sua atividade profissional no Instituto do Vinho do Porto. Em termos políticos, foi presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde (entre janeiro de 1955 e agosto de 1957), tendo sido, então, nomeado vice-presidente da Câmara Municipal de Valongo, cargo que exerceu de 5 de agosto de 1957 a 14 de agosto de 1969, cujo exercício foi distinguido com louvores pela competência, zelo e dedicação que demonstrou durante doze anos no exercício do cargo. Em 1 de fevereiro de 1972 foi nomeado presidente, de que foi exonerado a seu pedido, no dia 14 de junho de 1974, sendo a Câmara
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Foto 5 – Dr. José Ribeiro Pereira
dissolvida por portaria datada de 7 de outubro de 1974.
5. A primeira Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Valongo, pós 25 de Abril
Foto 6 – Antigos Paços do Concelho de Valongo
A nova Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Valongo (a primeira que geriu os destinos do município de Valongo depois do 25 de Abril de 1974), empossada em outubro de 1974, teve a seguinte composição: Prof. Manuel Borges Rodrigues Aresta (presidente), Joaquim Moreira Pacheco (vice-presidente), António Gonçalves
Pereira, Eng.º Manuel Augusto Braga Lino (pediu a exoneração), Eng.º Técnico Manuel Joaquim Moreira Moutinho (eleito para a Assembleia Constituinte, em 25 de abril de 1975, foi substituído por Manuel Moreira Lamas, em 18 de julho de 1975), José Mário Alves da Rocha e João Moreira Dias.
O professor Manuel Borges Rodrigues Aresta era, com certeza, pessoa ligada ao movimento de opositores ao regime, pois era filho de Eugénio Aresta, um conhecido militar, filósofo e intelectual bem notado nos meios culturais portuenses e nacionais. que tinha combatido na 1.ª Grande Guerra e que havia apoiado a candidatura do General Norton de Matos, sendo vigiado e perseguido pela polícia política e pelo regime do Estado Novo, por causa dos seus artigos e livros publicados.
6. A primeira Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Ermesinde
No dia 25 de janeiro de 1975, finalmente, era nomeada uma nova Comissão Administrativa para a Junta de Freguesia de Ermesinde com a seguinte constituição:
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Joaquim Fernandes Teixeira (presidente), Carlos Manuel Teixeira
Matos de Carvalho (secretário) e José Dias Fernandes (tesoureiro)
Foto 7 – Prof. Joaquim Fernandes Teixeira
Joaquim Fernandes Teixeira era uma destacada figura de Ermesinde, onde nasceu no dia 12 de junho de 1931 tendo falecido na mesma localidade, no dia 11 de dezembro de 2000, com 69 anos. Como presidente da Comissão Administrativa da Junta da Freguesia de Ermesinde, no pós “25 de Abril”, reuniu com a população da freguesia na Casa do Povo, tendo surgido várias reivindicações (a que deu o necessário encaminhamento), entre as
quais se destacam a necessidade de melhores transportes para o Porto, de consultas domiciliárias noturnas em Ermesinde, de construção de edifícios próprios para instalar o Ciclo Preparatório e a Escola Industrial e Comercial de Ermesinde, e a melhoria das ruas e estradas.
Joaquim Fernandes Teixeira foi ainda eleito para a Assembleia de Freguesia e para a Assembleia Municipal. No campo do associativismo, teve também grande notoriedade, sobretudo como vice-presidente da Direção do Centro Social de Ermesinde (9 anos) e presidente da mesma Direção (6 anos).
Integrou também os corpos gerentes de outras Instituições e Coletividades ermesindenses, como é o caso dos Bombeiros Voluntários de Ermesinde, do Ermesinde Sport Clube, do Clube de Propaganda da Natação, do Rotary Clube de Ermesinde, do Grupo Columbófilo Ermesinde e Lidador da Maia, tendo sido fundador do Clube de Ténis de Ermesinde, de Os Amigos de Ermesinde e da Associação Académica e Cultural de Ermesinde.
Foi homenageado pela Câmara Municipal de Valongo, com a atribuição da Medalha de Mérito, grau ouro, de acordo com a sua deliberação de 24 de outubro de 1994. A entrega da merecida Medalha, ocorreu numa Sessão Solene, presidida pelo Dr. Fernando Melo, que teve lugar no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Valongo, no dia 1 de dezembro de 1994.
7. A luta política no pós 25 de Abril em Ermesinde
Foto 8 – Mural da FEC-ML (Frente Eleitoral dos Comunistas - marxistas-leninistas), Ermesinde, 1975
Logo após o triunfo da Revolução em Lisboa, fundou-se em Ermesinde uma associação política denominada “Frente Democrática Popular de Ermesinde”. 5
Da sua Comissão Executiva fizeram parte, entre outros, António Vilas Boas, Diomar Santos, Eduarda Santos, Fernando Bastos, Fernando Faria Sampaio, Maria Júlia Laúndes e Paulo Martins. Esta Frente Democrática animou várias iniciativas locais, como por exemplo, uma Exposição da Associação de Amizade Portugal-China-Albânia, que esteve patente ao público ermesindense, na Casa do Povo de Ermesinde.
Outra organização popular que se constituiu em Ermesinde, sobretudo na zona da Palmilheira, logo depois do “25 de Abril”, foi o DICUP (grupo de Divulgação Cultural Popular) de que fizeram parte alguns jovens, nomeadamente Rui Costa, Constantino Moreira e Capas Peneda. Ajudaram a esclarecer as pessoas, elaboraram cartas em seu nome para apresentarem reclamações junto do poder local, interpretavam canções de intervenção em
5 Cf. A Voz de Ermesinde, edição de 18-062014.
saraus culturais ao ar livre e organizavam provas de atletismo para entreter os miúdos.
São conhecidos, também, alguns panfletos de conteúdo político revolucionário e de campanha eleitoral, subscritos, respetivamente, pelo núcleo da UDP da Travagem (1975) e pela Frente Eleitoral Povo Unido (1976). Os primeiros, da UDP, queixam-se de violência contra alguns militantes do seu partido, evidenciando os tempos tumultuosos do PREC (acusando a existência de fascistas em Ermesinde e até de uma célula do Exército de Libertação na vila) e defendem a contínua vigilância popular; enquanto que o Programa da primeira candidatura da Frente Eleitoral Povo Unido à Assembleia de Freguesia de Ermesinde (ao ato eleitoral de 12-121976) toca nos grandes problemas desta terra daquele tempo: Saneamento, Abastecimento de Água, Iluminação, Transportes Públicos, Saúde, Ensino, Habitação, Arruamentos, Passagens de nível, Mercado, Creches, Infantários, Parques Infantis, Cemitério, Zonas Verdes, Marcos do Correio, Cabines
telefónicas e apoio aos desalojados das ex-colónias.
de 1975
Transcrevemos, a seguir, o conteúdo completo desses documentos históricos.
1. «À CLASSE OPERÁRIA E TRABALHADORES DE ERMESINDE
CAMARADAS:
Acusam a UDP de servir os interesses do reacção e nós perguntamos?
Quando um nosso camarada operário, no sábado passado dia 19 de Abril [deve ser 19 de Abril de 1975], procedia à venda do Jornal “A Voz do
Foto 9 – Panfleto da UDP Travagem - Abril
Povo” - um dos poucos Jornais populares que a classe operária tem - foi agredido por 3 indivíduos que se dizem amigos do Povo.
Dizemos nós, quem é que serve a reacção? - A UDP ou esse três indivíduos que até trazem na lapela o dístico do P”C” P, o partido que tem o nome de “Comunista” e aos operários da Lisnave, Tap, CTT, em greve, o seu chefe Cunhal lhes chama reaccionários.
O caso passou-se da seguinte maneira: - Ia esse nosso camarada com os Jornais para a venda, quando lhe apareceram esses três provocadores que lhe disseram que tanto este camarada como a UDP eram uns filhos da puta. Ora como é lógico, esse nosso camarada imediatamente protestou e então esses três canalhas, como estavam em número superior trataram de o maltratar e se não fora a aparição de 2 camaradas da FEC (ML) o nosso camarada teria sido bastante ferido.
- Perguntamos nós:
- Então são esses os “amigos do Povo”?
Não nos deixemos enganar pelas bonitas frases desses partidos burgueses e desmascaremos os traidores do Povo.
- MORTE AO FASCISMO E AO SOCIAL FASCISMO
- ABAIXO OS “FALSOS AMIGOS DO POVO”
- VIVA A CLASSE OPERÁRIA
- EM FRENTE COM A UDP.»
2. NÚCLEO
UDP DA TRAVAGEM
Aos trabalhadores e anti-fascistas de ERMESINDE
Camaradas:
A revolução pacífica do 25 de Abril nada contribui para acabar com o capitalismo. Capitalismo gera fascismo, por isso a U. D. P. diz que enquanto o capitalismo não for tocado haverá sempre perigo de fascismo.
Aqui em Ermesinde há um grande covil de fascistas que se reúnem para de novo implantarem em Portugal aquele regime brutal e terrorista que é o fascismo.
Estas reuniões têm lugar em casas de fascistas notórios como o Santos Rasteiro.
Aqui há dias ouvimos, na Churrasqueira do Norte um grupo de fascistas que aí se reúnem, dizer que se algum camarada da U. D. P. colasse cartazes nas suas casas (produzidas pelos operários que vivem em barracas) eles o matariam.
Aqueles que não querem que o Povo seja alertado para a vigilância popular ao fascismo, reagem ou mandam lacaios fazê-lo, os cartazes
dos anti-fascistas que querem alertar o povo para essa vigilância.
Temos ainda fortes suspeitas de que o ELP (Exército de Libertação) terá nesta vila uma célula. O ELP é uma organização fascista onde se reúnem fascistas, pides, bufos, legionários, grandes exploradores dos trabalhadores, alguns oficiais do Exército Colonialista Português e que devem vigiar fortemente para que não dêem qualquer passo.
Assim vimos alertar todos os trabalhadores desta vila, para que se organizem os núcleos de bairro, rua, etc. para exercer forte vigilância a esses fascistas para não permitir avanços á reacção.
Só uma vigilância popular cerrada é capaz de não permitir que a fera fascista levante de novo a cabeça volte de novo a criar aquele regime terrorista e opressor que nos esmagou durante tantos e tantos anos.
- CONTRA O FASCISMO, VIGILÂNCIA POPULAR
- JULGAMENTO POPULAR AOS BUFOS, PIDES, LEGIONÁRIOS E A TODOS OS REACCIONÁRIOS.
- ABAIXO A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA.
- VIVA A CLASSE OPERÁRIA.
NÚCLEO DA TRAVAGEM UDP»
3. «À CLASSE OPERÁRIA E TRABALHADORES DE ERMEZINDE:
CAMARADAS:
Chegou a altura de se reconstruir a “casa” dos elementos prejudiciais ao processo revolucionário em que a UDP está empenhada. Assim, foram expulsos do núcleo da UDP da Travagem alguns elementos, e outros foram afastados.
Esta acção de limpeza deve-se a que a UDP é uma organização da classe operária e como tal sabemos que nada nem ninguém, pode impedir tal processo de luta em que a UDP está lançada, assim, sempre que for preciso saberemos exigir o devido respeito e a consciência pela classe explorada deste País. Aos camaradas operários e trabalhadores desta vila isto serve para exemplificar a nossa vigilância sobre todos os contra-revolucionários no seio da UDP para que desta maneira a classe operária possa avançar nas suas lutas pela conquista de Democracia Popular.
- VIVA A CLASSE OPERÁRIA
VIVA A DEMOCRACIA POPULAR E O SOCIALISMO
EM FRENTE COM A UDP.
NÚCLEO UDP DA TRAVAGEM».
a responsabilidade de orientar e dirigir a ASSEMBLEIA DE FREGUESIA.
Nenhum democrata, nenhum antifascista, pode ficar indiferente perante a importância e as consequências destas eleições.
Graças à luta dos trabalhadores, das massas populares e dos militares fiéis ao 25 de Abril, vivemos hoje em Portugal um regine democrático regulado por uma Constituição progressista.
Produziram-se na sociedade portuguesa profundas transformações políticas, económicas e sociais, que a Constituição igualmente consagra e que apontam para uma sociedade nova, caminhando para o socialismo.
4. «FRENTE ELEITORAL POVO UNIDO
PROGRAMA DE CANDIDATURA DA FENTE ELEITORAL POVO UNIDO
À ASSEMBLEIA DA PREGUESIA DE ERMESINDE
Exercendo um direito conquistado com o 25 de Abril, vamos eleger no próximo dia 12 de Dezembro os homens e as mulheres que assumirão
No entanto, pesadas carências de toda a ordem condicionam ainda fortemente o nível de vida material e cultural das populações e muitos problemas precisam de ser enfrentados com capacidade e eficácia.
O programa que a lista POVO UNIDO apresenta, aponta para a solução das grandes necessidades das populações e dos problemas económicos locais e identifica-se com os mais justos interesses populares.
É um programa para avançarmos unidos para uma vida melhor, mais livre e democrática.
A sua realização está nas mãos de todos nós.
Foto 10 – Primeira página do Programa da Frente Eleitoral Povo Unido à Junta de Freguesia de Ermesinde (1976)
É um PROGRAMA que só o POVO UNIDO PODERÁ REALIZAR.
POVO
UNIDO - UNIU PARA CONSTRUIR
UNIR o povo PARA CONSTRUIR uma vida melhor a que temos direito, é o objectivo que apresentamos à população da Freguesia.
Os candidatos do POVO UNIDO saberão honrar a confiança que receberam da população, para levar a cabo, com ampla participação democrática uma política local, que corresponda aos interesses populares e aos interesses da Democracia.
Problemas como:
- SANEAMENTO, ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ILUMINAÇÃO
Propomo-nos defender: a instalação de esgotos em toda a freguesia; um abastecimento eficiente de água, bem como a criação de fontanários e lavadouros públicos onde a população sinta a sua necessidade; melhoria da rede de distribuição de energia eléctrica e das condições de iluminação pública.
- TRANSPORTES PÚBLICOS
Propomo-nos lutar pela melhoria dos transportes públicos, nomeadamente no que se refere à ligação da vila com a sede do concelho e ainda
dos transportes que servem determinadas zonas, como a da Formiga.
- SAÚDE
Propomo-nos envidar esforço no sentido de criar condições de boa assistência na doença; incentivar a criação de um Posto de enfermagem; rever os horários noturnos das farmácias; a recolha de lixo diàriamente em horários estabelecidos; a colocação em certos locais de receptáculos colectivos para lixo; a criação de instalações sanitárias públicas.
De realçar o problema da “FERTOR”, em relação ao qual se torna necessário encontrar urgente solução.
- ENSINO
Propomo-nos activar a criação de instalações condignas, com melhor localização, para o funcionamento do ensino preparatório e secundário; construção de mais salas de aula para o ensino primário e melhoria das condições existentes nas actuais.
- HABITAÇÃO
Lutar pela melhoria das condições de habitação da população.
- ARRUAMENTOS-PASSAGENS DE NÍVEL-TUNEIS
Arranjo, limpeza e pavimentação da maioria das ruas e caminhos;
supressão das passagens de nível sem guarda; alargamento dos túneis existentes; criação de passagens subterrâneas para peões a ligar o centro da Vila com as zonas da Gandra e Cancela; construção dum viaduto que substitua as passagens de nível existentes na Rua Rodrigues de Freitas.
- MERCADO
Abertura do mercado diário e coberto.
- CRECHES, INFANTÁRIOS E PARQUES INFANTIS
- CEMITÉRIO
Construção de novo cemitério, dado que o existente não satisfaz já as necessidades actuais.
- ZONAS DE CONVIVIO E RECREIO (ZONAS VERDES)
- MARCOS DE CORREIO E CABINES DE TELEFONE
Distribuídos pela Freguesia.
- DESALOJADOS DAS EX-COLÓNIAS
Propomo-nos estudar a sua situação e colaborar na solução dos seus problemas.
VOTO PELA DEMOCRACIA
VOTO PELA UNIDADE
VOTO NO POVO UNIDO
DEFENDE O TEU VOTO
Que os graves problemas que marcam a nossa vida, sejam enfrentados com iniciativa, com audácia, com entusiamo, com competência.
DEFENDE O TEU VOTO
Que as forças reaccionárias sejam de novo derrotadas e não ganhem ânimo para novos ataques e manobras contra a Revolução Portuguesa e as conquistas do povo trabalhador.
VOTA NA FRENTE ELEITORAL POVO UNIDO
VOTA NO POVO».
8. Resultados Eleitorais das
Primeiras Eleições no município de Valongo
Fiquemos agora com os resultados eleitorais das primeiras eleições verdadeiramente democráticas que ocorreram em Portugal, no primeiro aniversário da Revolução dos Cravos, para a Assembleia Constituinte. Como sabemos
saiu vitorioso o Partido Socialista (37,87% dos votos e 116 deputados eleitos, um natural de Valongo – Dr. António Macedo), seguindo-se o Partido Popular Democrático (26,39% dos votos e 81 deputados eleitos, um natural de Ermesinde, concelho de Valongo –Eng.º Manuel Joaquim Moutinho), o Partido Comunista Português (12,46% dos votos e 30 deputados eleitos), o Centro Democrático
Social (7,61% dos votos e 16 deputados eleitos), o Movimento Democrático Português (4,14% dos votos e 5 deputados eleitos). Os outros partidos que elegeram deputados constituintes foram a União Democrática Popular (com 0,79% dos votos e 1 deputado eleito) e a Associação para a Defesa dos Interesses de Macau (com 0,03% dos votos e 1 deputado eleito).
Fonte: Dados trabalhados pelo Autor, com base nos dados retirados do site da Secretaria Geral Ministério da Administração Interna. [Disponível em: https://www.sg.mai.gov.pt/AdministracaoEleitoral/Resultadoseleitorais/Paginas/default.aspx]. [Consultado em: 05/10/2024].
No concelho de Valongo, as primeiras eleições após o “25 de Abril”, ditaram o resultado que se apresenta no Gráfico 1, indicando-se, de seguida, o nome dos partidos por ordem decrescente dos votos obtidos neste município e, dentro de parêntesis, os dirigentes nacionais desses partidos nessa altura, nos casos em que o seu nome é conhecido: Partido Socialista (Mário Soares), Partido Popular Democrático (Francisco Sá Carneiro), Centro Democrático Social (Freitas do Amaral), Partido Comunista Português (Álvaro Cunhal), Movimento Democrático Português (José Manuel Tengarrinha), União Democrática Popular (João Pulido Valente), Movimento de Esquerda Socialista (Afonso de Barros), Frente Socialista Popular (Manuel Serra), Frente Eleitoral dos Comunistas, Partido Popular Monárquico (Gonçalo Ribeiro Teles) e Partido de Unidade Popular.
8.1. Os primeiros eleitos para a CMV, AMV e cada uma das 5 freguesias
Fonte: Dados trabalhados pelo Autor, com base nos dados retirados do site da Secretaria Geral Ministério da Administração Interna. [Disponível em: https://www.sg.mai.gov.pt/AdministracaoEleitoral/Resultadoseleitorais/Paginas/default.aspx]. [Consultado em: 05/10/2024].
Neste primeiro ato eleitoral, para a Câmara Municipal de Valongo, após a Revolução de Abril, votaram 22.795 eleitores (68,99%) dos 33.042 inscritos nos cadernos eleitorais, pelo que a abstenção correspondeu a 31,01% (conforme se pode ver no Gráfico 2).
A vitória coube ao Partido Socialista com 40,5% dos votos, elegendo o Presidente da Câmara e mais dois vereadores; em segundo lugar ficou o Partido Social Democrata, com 27,74% dos votos, que elegeu 2 vereadores; o terceiro partido com mais votos foi o Centro Democrático Social, com 14,74% dos votos, elegendo um vereador; a Frente Eleitoral Povo Unido teve 13,63% dos votos, elegendo também um vereador.
Vejamos, agora, quem foram os primeiros eleitos nas eleições autárquicas de 12 de dezembro de 1976, no município de Valongo, para a Câmara Municipal, para a Assembleia Municipal e para as Assembleias de Freguesia de Alfena, Campo, Ermesinde, Sobrado e Valongo.
A primeira Câmara Municipal de Valongo eleita, após a aprovação da Constituição de 1976, teve a seguinte composição (a posse foi conferida no dia 7 de janeiro de 1977):
Presidente – Dr. João Moreira Dias (Valongo)
Vereador – Eng.º Tec. Manuel Joaquim Moreira Moutinho (Ermesinde)
Vereador – Prof. António Ferreira dos Santos (Ermesinde)
Vereador – Dr. António Ferreira dos Santos (Ermesinde)
Vereador – Álvaro de Sousa Ribeiro (Valongo)
Vereador – Fernando Martins Ferreira Neves (Alfena)
Vereador – Dr. Fernando António Vaz de Faria Sampaio (Ermesinde)
É notória, mais uma vez, a proeminência da freguesia de Ermesinde, que tem 4 dos 7 elementos do executivo da Câmara Municipal, cabendo 2 a Valongo e 1 a Alfena.
Recordemos, em breve síntese, a personalidade de João Moreira Dias, primeiro presidente da Câmara Municipal de Valongo, eleito depois da Revolução do “25 de Abril de 1974”. Era natural de Valongo, onde nasceu em 1944. Faleceu em 18 de março de 2013. Em termos políticos, foi nomeado vogal da Comissão Administrativa de Valongo, em 7 de outubro de 1974 e, em 22 de dezembro de 1975, vice-presidente da mesma Comissão.
No dia 15 de outubro de 1976 assumiu a presidência da Comissão de Gestão até 12 de novembro de 1976, data em assumiu a presidência da Comissão Administrativa.
Nesse cargo se manteve até às primeiras eleições autárquicas (12-12-1976), quando foi eleito Presidente da Câmara de Valongo, nas listas do Partido Socialista. Nessa altura, já licenciado em História, era professor do ensino secundário.
Exerceu o cargo de presidente da Câmara até 16-12-1979, cumprindo um primeiro mandato. Nas eleições de 12 de dezembro de 1982 foi reeleito pelo PS e exerceu o cargo de presidente da Câmara de Valongo, até 12 de dezembro de 1993, cumprindo mais três mandatos. Também foi eleito deputado municipal.
Na reunião da Câmara de Valongo, no dia 21-3-2013, sob a presidência de Dr. João Paulo Rodrigues Baltazar foi aprovado um Voto de Pesar pelo seu falecimento e decretado um dia de luto municipal.
Foto 11 – Dr. João Moreira Dias
A Câmara Municipal de Valongo, da presidência do Dr. José Manuel
Ribeiro, distinguiu algumas personalidades, no âmbito do 183.º aniversário do Município, no dia 29 de novembro de 2019, uma delas foi precisamente o Dr. João Moreira Dias, a título póstumo, com a atribuição da Medalha de Honra (que foi entregue à viúva, Eduarda Dias).
A primeira Assembleia Municipal de Valongo, eleita em 12 de dezembro de 1976, era constituída pelos seguintes elementos:
Renato Alberto de Miranda de Sousa Chaves
José Avelino Abreu Aguiar
Francisco João Vieira Dias de Carvalho
Jaime da Silva Vale
José Macedo de Sousa Paupério
António Pinto Caetano
Manuel Augusto Braga Lino
Belmiro Moreira
Ildefonso Mário da Silva Ferreira
Manuel Joaquim Martins Coelho dos Santos
Ilídio Fernando do Nascimento Correia
José Dias Fernandes
Carlos Manuel da Silva Lopes da Silva
António Fernandes Monteiro
António Borges Pinto Teixeira Júnior
Alberto da Silva Gonçalves
Divulgamos, por fim, as primeiras Assembleias de Freguesia (Alfena, Campo, Ermesinde, Sobreda e Valongo), eleitas em 12 de dezembro de 1976.
ALFENA
Marílio Moreira Cardoso
José Moreira Marques
Adolfo da Conceição Santos
Manuel Augusto Ferreira da Mota
Alcido dos Santos Pereira
Jacinto Azevedo Maia
Alberto da Rocha Lopes
Alvarinho Leal Ramos
António Moreira de Sousa
Américo Viaje Lima
CAMPO
António Joaquim Tomé Rebelo
Joaquim Pinheiro Faria
António Augusto de Melo
Guimarães
Domingos da Silva Dias
Manuel Martins da Rocha
Timóteo Jorge Moreira
José Pedro Dias Moreira
Luís Ferreira Martins
Arlindo Rebelo Guimarães
ERMESINDE
Alberto de Oliveira Ramalho
António Gabriel Antunes Seisdedos
Fernando Correia Piçarra
Fernando de Oliveira Machado
António José da Purificação
Barbosa Horta
Adérito Ferreira de Moura
António Rodrigues Alves
Serdoura
Manuel Correia Simões
Maria de Fátima da Costa Magalhães Loureiro Dias
Carlos Agostinho de Azevedo Almeida
Joaquim Fernando Ferreira dos Santos
Rui do Nascimento Teixeira Gonçalves
Albino Fernando Moutinho
Alves Ascensão
SOBRADO
José Ferreira Marujo
José Pereira da Silva Bessa
Domingos da Costa Pereira
José Dias Pinto
José Carvalho Ferreira Marujo
António Costa Dias
Diamantino Carneiro Dias
Fernando Santos Abreu
José Moreira Martins
VALONGO
João Lino Marques Ferreira
Joaquim Augusto Castro Paupério
Ricardo Ferreira de Sousa Adão
António Augusto Castro Paupério
David Oliveira Campos
João António de Castro Paiva Queiroz
Francelino de Oliveira Ferreira
António Alves do Vale
António Ventura Teixeira do Vale
Albino da Silva Martins Poças
António Fernando Alves de Almeida
9. Conclusão
Pelo que fica escrito, parece óbvia a conclusão de que Ermesinde e Valongo tiveram a sua quota-parte na luta contra o regime ditatorial que durante quase meio século marcou a história de Portugal.
No ano em que se comemora o meio século de democracia deixamos aos leitores um apontamento histórico do combate travado por alguns democratas valonguenses, primeiro, para que o Estado Novo findasse e, depois, para que se construísse uma sociedade verdadeiramente democrática.
Aqui, como no resto do país, sobretudo nos meios mais urbanos, instruídos e politizados, houve um conjunto de pessoas que viveram
de forma muito intensa a conjuntura revolucionária.
Mas numa democracia a vontade do povo, livremente manifestada, nos atos eleitorais, é que decide quem se vai sucedendo no poder local e nacional (uma vez que a regionalização ainda está por cumprir).
Meio século depois da “Revolução dos Capitães”, quase 40 anos após a entrada para a Comunidade Económica Europeia, Portugal é um país bem diferente, para melhor, em todos os aspetos. Que esta evolução e progresso continuem para que todo o nosso povo experimente uma vida melhor, dispondo de tudo aquilo que é necessário para a viver com dignidade.
Bibliografia
Livros de Atas da Câmara Municipal de Valongo, e da Junta de Freguesia de Ermesinde (década de 1970).
BONIFÁCIO, M. Fátima (2007) –Estudos de História Contemporânea de Portugal. Lisboa: ICS.
CAPELO, Rui Grilo, et al. (1994) – História de Portugal em Datas. Círculo de Leitores.
DIAS, Manuel Augusto e PEREIRA, Manuel Conceição (2001) – Ermesinde, Registos Monográficos (2 volumes). Ermesinde.
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Barroso, et al. (2010) – República e Democracia. Coimbra: Editora Minerva.
FERREIRA, Ana Sofia de Matos (2015) – Luta Armada em Portugal (1970-1974). Tese de Doutoramento em História Especialidade em História Contemporânea. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.
MARQUES, A. H. de Oliveira (1991) – A Literatura Clandestina em Portugal, vol. II. Ed. Fragmentos.
MARQUES, A. H. de Oliveira (1983) – A Maçonaria Portuguesa e o Estado Novo Lisboa: Publicações D. Quixote.
MARQUES, A. H. de Oliveira (1977) – Dicionário da Maçonaria Portuguesa Lisboa: ed. Delta.
MARQUES, A. H. de Oliveira (1986) – História de Portugal, vol. II. Lisboa: Palas Ed.
MASCARENHAS, Óscar (1995) –Polícia Política “rebaptizada” para tranquilizar vencedores da II Guerra Mundial Com pés de veludo, in Diário de Notícias, de 22-10-1995.
MATA, Joel Silva Ferreira (2023) – História Económica, Social e Administrativa do concelho de Valongo (1836-1926). Volume II. Valongo: Câmara Municipal de Valongo.
OLIVEIRA, António Cândido de (2019) – Manual de Cidadania, 2.ª edição Braga: AEDRL.
ROSAS, Fernando (1994) – O Estado Novo (1926 - 1974), in “História de Portugal”, direção de José Mattoso, vol. VII. Círculo de Leitores.
SOARES, Jacinto (2008) – Ermesinde: Memórias da Nossa Gente. Ermesinde: Junta de Freguesia de Ermesinde.
SOARES, Jacinto (2014; 2016) – Ermesinde: Património da Nossa Gente. Ermesinde: Junta de Freguesia de Ermesinde.
SOARES, Jacinto (2020) – Ermesinde – Episódios da História da Nossa Cidade – Avanços e Recuos. Ermesinde: Junta de Freguesia de Ermesinde.
Voz de Ermesinde (A) – diversos números de vários anos.
Valongo e a Panificação: história, estórias e tradição
Cláudia Andreia Ferreira da Silva
Resumo:
Durante a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, Valongo assistiu à proliferação de padarias que abasteciam a cidade do Porto com pão de trigo, devido à dificuldade que a cidade Invicta sentia em se abastecer deste alimento. Consequentemente, a indústria panificadora ganhou um destaque significativo, enquanto atividade económica, bastante relevante para o desenvolvimento socioeconómico da região.
Fruto da modernização dos tempos, a panificação deste lugar perde a sua primazia para o mercado portuense, embora continuasse a vender biscoitos e regueifa na cidade. Dentre as várias vicissitudes, as padeiras de Valongo não perderam a fama, associada à qualidade dos seus produtos e
ainda hoje esta terra é conhecida como a terra do pão, da regueifa e do biscoito.
A atividade panificadora assume atualmente uma grande importância em termos patrimoniais sendo por isso preservada e promovida pela própria autarquia local como marca identitária da região.
During the second half of the 18th century and the first half of the 19th century, Valongo saw the proliferation of bakeries supplying the city of Porto with wheat bread, due to the difficulty the city of Porto had in obtaining this kind of supplies. Consequently, the bakery industry gained significant prominence as an economic activity
that was very important for the socio-economic development of the region.
As a result of the modernization of the times, the bakery industry lost its primacy in the Porto market, although it continued to sell cookies and regueifa in the city. Despite the various vicissitudes, the bakers of Valongo did not lose their fame, associated with the quality of their products and even today, this land is known as the land of bread, regueifa and cookies.
The bread-making activity is currently of great importance in heritage terms and is therefore preserved and promoted by the local authority itself as an identity mark of the region.
O pão encontrava-se na base da alimentação, sendo um bem essencial e de primeira necessidade e Valongo, desde muito cedo, se mostrou um local propício para o desenvolvimento do tratamento de cereais, através da moagem e
do próprio fabrico de pão, o que impulsionou o crescimento da atividade panificadora.
A panificação em Valongo, enquanto atividade económica foi muito importante para o desenvolvimento da região, desempenhando ainda hoje um papel significativo na comunidade.
Quando se fala na panificação em Valongo, entende-se essa atividade económica como parte essencial da identidade desse território.
Do mesmo modo, como essencial para a memória da coletividade, persistindo e mantendo-se viva nas recordações individuais transmitidas de geração em geração.
Valongo é uma região detentora de vários recursos patrimoniais que se assumem como o principal cartão de visita, nomeadamente, o património natural, o património arquitetónico (civil e religioso) e o património material e imaterial, no qual se destaca a panificação, desenvolvida fruto da proximidade com a cidade do Porto, afirmando-se como o maior estímulo no desenvolvimento socioeconómico da região. Neste sentido, é relevante compreender a panificação em Valongo, enquanto atividade
económica, mas também como marca identitária da região.
2. Valongo, terra de panificação
Pelos finais do século XVI, Valongo era já um povoado de vida intensa e laboriosa assente na agricultura. Apesar de as terras aráveis de Valongo apresentarem um vale fértil, banhado pelos rios Ferreira e Leça, sendo por isso, muito produtivo em vários géneros agrícolas, “cedo se mostraram insuficientes para prover o sustento de uma população sempre crescente, daí a apetência pela almocrevaria e o fabrico do pão”1. Sem descurar a importância dos almocreves, Valongo ficou conhecido como a terra do pão, da regueifa e do biscoito, cuja comercialização, que contribuiu para o seu desenvolvimento socioeconómico, não se limitou apenas ao seu termo. E, mais tarde, no século XVII, Valongo acabava por se tornar o centro abastecedor de pão da cidade do Porto.
Esta relação com a cidade do Porto foi um estímulo económico muito importante para o desenvolvimento e crescimento de Valongo. Protegidas pela abadessa e por mais religiosas do mosteiro de S. Bento de Ave-Maria, às quais pagavam significativos dízimos, as padeiras valonguenses “d’tempo antiquíssimo vendem o pão no largo do tirreiro da feira difronte do seu mosteiro”2.
A situação geográfica de Valongo foi essencial para o desenvolvimento desta indústria panificadora, uma vez que se encontrava entre moinhos, principalmente os do rio Ferreira e pela sua proximidade com a cidade do Porto, facilitada pela estrada que fazia ligação a Trás-os-Montes, conhecida como a estrada real. Rapidamente, esta passou “a ser uma estrada muito concorrida e tornou-se um dos principais fatores de desenvolvimento da Vila”3, uma vez que por aqui atravessavam inúmeros viajantes que, por causa desta estrada, tinham passagem obrigatória em Valongo.
1 AZEVEDO, M. J. (1999) – A Igreja Matriz de Valongo: arquitectura (1794-1836), (Vol. I e II). Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 23.
2 AZEVEDO, M. J. (1999), p. 23.
3 SILVA, J., Gomes, C.; COSTA, J. (2000)
– Valongo: da estrada e da viagem no tempo. Paços de Ferreira: Anégia, p. 30.
A indústria da panificação continuava em constante crescimento e, no início do século XVIII, a população deste lugar também começava a aumentar significativamente, “em 1680 Valongo tinha 282 fogos (…). Em 1700, diz o Padre Carvalho que Valongo era um grande arruado com 290 fogos e em 1767 tinha 582 fogos”4. Segundo Lima (2000), em 1764 existiam em Valongo 59 padeiros, duas décadas depois esse número crescia para o dobro e em 1793 estes representavam 23,2% da população ativa.
Em Valongo quase que não havia casa que não possuísse um forno para cozer trigo e as padeiras deste lugar, com os seus “chapeuzinhos de pano preto que lhes assentavam na cabeça por cima do lenço amarrado por baixo do queixo”5, apregoavam e vendiam o pão, sendo o molete e a famosa regueifa os produtos mais procurados. E, ainda que este tipo de pão
fosse mais caro, era o preferencial devido à sua grande qualidade.
Era pela antiga estrada real que as padeiras de Valongo levavam o pão aos portuenses e habitantes das terras circunvizinhas da cidade do Porto, que se alimentavam sobretudo do pão claro de trigo e dos biscoitos produzidos em São Mamede de Valongo, ou Lugar de Valongo, como também era conhecido, de tal forma que “a rua do Bonfim, por onde passavam obrigatoriamente, chegou a ter a popular denominação de estrada do pão”6.
4 CABRITA, A.; SILVA, M. (1973) – Monografia do Concelho de Valongo. Porto: (s.n.), p. 44.
5 REIS, J. A. (1904) – A Villa de Vallongo: suas tradicções e história, descripção, costumes e monumentos. Porto: Typographia Coelho, p. 285.
O pão produzido em Valongo era cozido em fornos a lenha e, apesar das vastas quantidades de lenha para a cozedura, as reduzidas quantidades de trigo produzidas neste lugar eram insuficientes para garantir o abastecimento da cidade do Porto, mercado em expansão e o principal da região. Deste modo, o trigo provinha doutros locais, nomeadamente de Trás-os-Montes, e era moído maioritariamente nos vários moinhos que se situavam ao longo das margens do rio Ferreira, na freguesia de S.
6 MARÇAL, H. (1967) – «A típica Feira do Pão, no Porto, em meados do séc. XIX», in O Tripeiro, 6(5), 139-141, p. 137.
Martinho de Campo e, também nos moinhos situados nas margens dos ribeiros em Valongo.
Em Gondomar, o lugar de Valbom é um dos suportes e escalas essenciais ao fornecimento do Porto: barcos que do Alto Douro vêm carregados de trigo, costumam abordar na paragem chamado Gramido, na aldeia de Valbom de Baixo, onde descarregam o pão, pela comodidade que tem de reconduzir por terra ao lugar de Valongo, onde moído e cozido pelos padeiros da freguesia, o transportam em cargas para o Porto7.
Os almocreves correspondiam a uma grande parte da população ativa em Valongo, colocando esta terra em comunicação com outras partes do país e até mesmo com o estrangeiro, e eram eles que conduziam o trigo desde Gramido até Valongo. Tanto por via terrestre como fluvial, os almocreves, “verdadeiros agentes das trocas comerciais de então”8, desempenharam um papel bastante importante,
7 CAPELA, J. V.; MATOS, H.; BORRALHEIRO, R. (2009) – As freguesias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758: Memórias, História e Património. Braga: Universidade do Minho, p. 73.
8 GOMES, O. (1992) – «Saudades da Padeira. O culto», in Boletim cultural
sendo estes “a coluna vertebral dos transportes internos”9. A sua importância estava relacionada com a sua capacidade de movimentação devido à facilidade que tinham em aceder a meios de transporte, podendo ainda utilizar atalhos, sendo responsáveis em parte pelo desenvolvimento da vida concelhia, “cujo progresso muito ficou devendo ao pertinaz trabalho realizado por estes agentes, na sua condição de autores duma autêntica malha apertada de comunicações entre todos os núcleos de ocupação humana do território”10. Posição que foi um pouco abalada em meados do século XVIII, no contexto de uma epidemia que começou a dizimar os animais de carga, tão importantes para os almocreves, pois eram estes que transportavam as mercadorias no seu dorso. Perante tal situação, e devotos de Santo António, aos olhos destes comerciantes, foi
Câmara Municipal de Valongo (1), 7-8, p. 7.
9 AZEVEDO, M. J. (1999), p. 23.
10 MORENO, Humberto Baquero (1985) – «A importância da almocrevaria no desenvolvimento dos concelhos durante a Idade Média», in Vallis Longus: Revista científica anual da secção de história e arqueologia dos serviços municipais da cultura da CMV (1), 15-20, p. 20.
este santo que trouxe o fim desta epidemia através de um milagre e, por esse motivo, decidiram honrá-lo e festejá-lo com a festa da Bugiada de Santo António dos Almocreves.
O pão produzido em Valongo era de elevada qualidade e, por esse motivo, também era fabricado com trigo que chegava da América, que apesar de ser “mais caro, era procurado com empenho por todos os padeiros por ser a sua qualidade mais superior e de melhores resultados pela excelência do pão que produzia”11. Este trigo era misturado com o trigo do reino, ou com o que chegava de “Hespanha com o nome de Barbella, e que é mais barato”12. Ainda antes do trigo ser utilizado, este era primeiramente “lavado em crivos n’uma pia d’agua, depois secco em grandes eiras de louza e por fim corrido n’uma saranda”13, onde lhe retiravam o pó, pedras ou trigo podre. Esta última tarefa era designada de “alimpadélla”, sendo feita a todo o trigo, independentemente da sua proveniência, para depois ser moído.
Já em casa de padeiros, a farinha era passada em grandes peneiras e os diferentes tipos de farinha eram separados segundo a sua qualidade e utilidade. Na noite anterior à cozedura do pão, era preparado o fermento e no dia era feita a massa, mais dura ou mais mole, dependendo da qualidade do pão que era feito a partir dela. Em seguida, era colocada sobre panos em gavetões para levedar e assim que estivesse no ponto era colocada, com grandes pás, no forno a lenha para cozer.
O fabrico de pão era um trabalho manual árduo, e a única máquina que existia para auxiliar esta atividade era o sovador, utilizado exclusivamente no fabrico de regueifa, uma vez que a sua utilização era indispensável para este tipo de pão. Tratava-se de uma máquina “feita de madeira, com dois rolos também estes de madeira, acoplados a umas rodas dentadas que se moviam manualmente por uma manivela”14. Todavia, o sovador
11 REIS (1904), p. 214.
12 REIS (1904), p. 324.
13 REIS (1904), p. 324.
14 AGUIAR, A. (2017) – Os padeiros e o seu trabalho. Confraria da Regueifa e do Biscoito. Disponível em: http://confrariadopaodaregueifaedobiscoitodevalongo.com/confraria/2017/10/27/ os-padeiros-e-o-seu-trabalho/. [Consultado em 7 de junho de 2024].
era mais utilizado, principalmente, pela Páscoa, período em que a regueifa era mais comercializada. Relativamente às outras fases de produção, “desde o amassar, confecionar, enfornar e desenfornar, era todo exercido com a força braçal”15.
A partir da década de 70 do século XVIII, os padeiros e moleiros passaram a ter a responsabilidade de comprar o trigo e a farinha a homens de negócio no Porto, o que levou a uma descida do número de almocreves em Valongo a partir dessa altura. Em 1764 encontravam-se registados nas listas de ordenanças 41 almocreves, em 1785 já só existiam 13 e em 1793 apenas constam 3 recenseados16. Ao contrário do que aconteceu com os almocreves, houve um aumento de padeiros recenseados na mesma altura. Provavelmente, foram as alterações inseridas no comércio interno que impulsionaram esta nova preferência, visto que até então, esta tarefa era
15 AGUIAR, A. (2017).
16 LIMA, M. A. (2000) – A padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade, caracterização socioprofissional de S. Mamede de Valongo na segunda metade do século XVIII. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 118.
desempenhada pelos almocreves. O pão de trigo era o pão de luxo e de excelência do lugar de Valongo e, esta nova facilidade de adquirir a matéria-prima, ficava mais em conta para os padeiros, sendo uma mais-valia para eles, pois os padeiros deslocavam-se, constantemente, para ir ao Porto vender o pão e aproveitavam as viagens de regresso para trazer esta mercadoria.
Sendo o pão de Valongo de excelência, a farinha utilizada na sua produção também o deveria ser. Para efetivamente comprovarem que a farinha era da qualidade desejada, os padeiros fabricavam “uma massa bem trabalhada em cuja composição entravam 12 onças de farinha e 8 de água fria”17. Após escorrerem a água deveriam ficar com uma massa mole e clara, que pesasse entre 4 e 5 onças, caso contrário, o pão produzido com essa massa seria de má qualidade. Além disso, a farinha também deveria ser acondicionada corretamente para não perder qualidade, e não provocar alterações no sabor. Em Valongo, apesar dos tipos de pão produzidos serem limitados, os 17 Lima (2000), p. 120.
padeiros valonguenses fabricavam a famosa regueifa tão apreciada por todos. A primeira referência à regueifa de Valongo surge em outubro de 1636, quando “se recomenda às padeiras e vendeiras de pão de Valongo (que levam o pão cozido à cidade) que forneçam pão branco da melhor qualidade «que não fação pão molette e que ainda usem de vender riquifaz (regueifas) como he costume»”18.
A regueifa deste lugar marcava pela diferença, principalmente quanto ao seu formato, sendo por isso também conhecida como rosca. Passou a ser um artigo muito popular entre os portuenses, devido à sua incomparável qualidade e um dos produtos mais procurados nos mercados citadinos, juntamente com os biscoitos, preferência que foi crescendo ao longo dos tempos.
Uma vez que a regueifa era um tipo de pão mais requintado, era também mais cara e, pela altura da Páscoa – quando era mais comercializada - havia a tradição de se oferecer uma regueifa, decorada com efeitos, em alto relevo, nomeadamente com espigas e flores,
18 OLIVEIRA, A. d. (2004) – «A revolta do Porto de 1638» in Revista da Faculdade de Letras: História (5), 15-30, p. 22.
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como folar pelos padrinhos aos seus afilhados, até estes atingirem a idade adulta ou até ao casamento. Era então costume ver-se “pelas ruas diversas crianças, carregando ao ombro, vaidosamente, com dificuldade, as suas regueifas. Algumas auxiliadas pelos seus familiares”19. Esta tradição manteve-se ao longo dos séculos e ainda hoje é comum haver em casa dos valonguenses o típico folar, na altura da Páscoa.
As padarias que proliferavam em Valongo eram quase todas unidades familiares, salvo algumas exceções. Normalmente, estas famílias encontravam-se envolvidas em todas as fases do negócio, desde a aquisição da matéria-prima, passando pelo fabrico do pão e terminando na sua comercialização.
Uma vez que a atividade panificadora em Valongo era bastante lucrativa, devido à excelência do pão que aí era produzido, o recurso à mão-de-obra familiar era habitual e bastante eficiente, pois a transmissão desses conhecimentos
19 MARQUES, J. M. (2020) – «A tradição do Folar de Valongo», in Jornal Novo Regional. Disponível em: https://www. jornalnovoregional.pt/2020/04/a-tradicao-do-folar-de-valongo/. [Consultado em: 10 de junho de 2024].
artesanais era como uma tradição familiar, sendo o ofício considerado como o legado para a descendência.
O recurso à mão-de-obra dentro do seio familiar apresentava-se duplamente proveitoso. Primeiro, o recrutamento de trabalhadores ficava mais em conta, pois em vez de serem renumerados monetariamente, tinham como garantia a sua alimentação, vestuário e calçado. Além disso, visto que as autoridades paternais e patronais estavam interligadas, os conflitos laborais resolviam-se com mais facilidade. Facto que justifica o elevado número de padarias que existiam em Valongo, pois, em grande parte, os filhos dos padeiros após adquirirem os conhecimentos deste saber-fazer, estabeleciam-se autonomamente e, muitas das vezes, as padarias dos filhos eram na mesma rua onde se localizava a dos pais. Numa fase inicial do negócio e de forma a ajudar, os pais ofereciam aos filhos uma volta de clientes.
Normalmente e em grande parte, os filhos dos padeiros namoravam e casavam com as filhas de outros padeiros, e assim, procurando a sua independência após o casamento e
por serem conhecedores da profissão, quando casavam, instalavam uma nova padaria, permitindo assim que no século XVIII existissem em Valongo mais de duzentas padarias. Este costume de casamentos entre jovens da mesma área profissional prolongou-se até ao século XX, porque ainda hoje há em Valongo muitos descendentes de casais desse género de uniões20.
O trabalho de padeiro, apesar de ser rentável, era bastante duro.
Relativamente ao trabalho prestado pelas mulheres, é difícil quantificar a sua participação na panificação, pois há falta de documentos que demonstrem essa informação. Contudo, é certo que a venda do pão estava encarregue às padeiras valonguenses que o iam vender ao Porto e a Penafiel, uma vez que os acórdãos camarários destas cidades o comprovam. Também se sabe que cabia às mulheres a aquisição do trigo, “facto comprovado pelas escrituras notariais ligadas ao crédito hipotecário privado”21.
Tudo isto leva a crer que tal como os homens, também as mulheres estariam ligadas ao fabrico do pão, tendo como exemplo, o Padre
20 AGUIAR, A. (2017).
21 LIMA (2000), p. 163.
Carvalho, que nos diz que em 1706 Valongo era habitado por muitas padeiras que sustentavam o Porto de pão e de muitos almocreves que traziam até Valongo o trigo para ser manipulado e cozido por estas mulheres22.
Depois de cozido nos fornos a lenha, era pelas ruas portuenses e terras circunvizinhas, às terças, quintas e sábados, que as padeiras valonguenses conduziam o jerico carregado com canastras cheias de pão, biscoitos e tosta azeda, convenientemente acondicionados entre panos alvos, dentro de grandes canastras procedendo à entrega de numerosas encomendas, tanto para casas comerciais como particulares. O pão de Valongo chegava ao Porto por encomenda, mas também podia ser encontrado em várias feiras e mercados onde marcavam presença as famosas padeiras.
Todas as terças-feiras, na praça de São Bento de Ave-Maria ou Largo da Feira (atual praça Almeida Garrett), tinha lugar a feira de comestíveis mais importante da cidade do Porto que se enchia de pessoas das aldeias vizinhas – cuja 22 REIS (1904), pp. 213, 214.
origem remonta ao último quartel do século XVI –, e na qual marcavam presença as famosas padeiras de Valongo. Esta feira acabou por ser suprimida a 24 de julho de 1838, em vereação.
No Passeio das Cardosas, da Praça Nova, “iniciou-se no começo do século XIX a primitiva feira do pão”23 que contava com a presença das padeiras valonguenses que vendiam pão, regueifa e biscoitos. Posteriormente, esta feira passou a realizar-se na Praça de Santa Teresa, um dos lugares intimamente relacionado com as tradições dos mercados portuenses. A 26 de maio de 1909 a feira foi extinta e as padeiras foram obrigadas a ir vender para uma das secções do Mercado do Anjo, onde ficaram até à sua demolição, em 1948.
Com início em 1720, desde o domingo de Lázaro até ao domingo de Ramos, no Largo de S. Lázaro, realizava-se a feira anual de S. Lázaro, transferida em 1876 para o Campo de Mijavelhas, atual Campo 24 de Agosto, até 1896. Posteriormente, foi transferida para a Praça da Alegria e Fontainhas, onde se
23 PACHECO, H. (1985). Tradições populares do Porto. Lisboa: Editorial Presença, p. 108.
realizou até à primeira metade do século XX. Nesta feira “participavam feirantes dos mais variados ramos de negócio, com barracas de fazendas, de ourivesaria, de quinquilharias, de diversões, de comes e bebes”24, sendo habitual comer-se queijo e a famosa regueifa de Valongo.
Em setembro, as padeiras valonguenses marcavam presença na feira de S. Miguel, na Cordoaria, onde o pão de Valongo tinha destaque ao lado das nozes e doces de Paranhos.
Pelos finais do século XVIII, ocorria no Passeio das Cardosas, em épocas festivas, como a Páscoa e o Natal, a feira dos doces, onde as padeiras valonguenses apareciam “todas ajoujadas de ouro nos seus trajes domingueiros, alegres, vivas, palradoras […] puxando à arreata os machos carregados de pão, que chegavam constantemente com os seus fornecimentos para as rabanadas”25.
No início do século XVIII, o pão de Valongo passou também a ser transportado para o Hospital D.
24 MARÇAL, H. (1965) – «O antigo Campo ou Terreiro de S. Lázaro», in O Tripeiro, 6(4), 108-111, p. 110.
25 PACHECO (1985), p. 108.
Lopo de Almeida, situado na rua das Flores, no Porto.
Com o crescimento da população no século XVIII e a consequente expansão urbana, multiplicaram-se os locais de venda pelos novos bairros nos extramuros e nos arrabaldes da cidade do Porto.
Tal como acontecia no Porto, também em Penafiel não existiam padeiras suficientes para abastecer toda a população e, deste modo, o pão de Valongo também chegava a este local. Aqui as padeiras vendiam o pão em feiras e mercados locais, onde concorriam com as padeiras do Marco de Canaveses.
O pão era para aí conduzido pelos padeiros que, carregando a mercadoria em bestas, utilizavam a antiga estrada real. De Valongo esta estrada seguia pela Ponte Ferreira, Baltar e Mouriz (Paredes) até Arrifana de Sousa, percurso que pouco divergia do leito da actual estrada Porto-Penafiel26.
Para além de todos estes locais, feiras e mercados, as padeiras valonguenses também vendiam o pão na feira que se realizava
26 LIMA (2000), p. 137.
quinzenalmente em Valongo, na qual apareciam pessoas das terras circunvizinhas.
Até ao final do século XVIII, as padeiras valonguenses tiveram uma posição favorável, uma vez que na cidade Invicta não existiam fornos suficientes, nem quem investisse grandes fundos nesta atividade, ou seja, não tinham uma concorrência forte e a cidade era dependente do pão que vendiam. Aproveitando toda esta situação, retiraram de lá os maiores lucros na venda de pão de trigo. Contudo, esta situação favorável viu-se alterada com a chegada do século XIX.
2.1. A perda da primazia do mercado portuense
Na viragem para o século XIX, a vida nacional atravessou um período conturbado que, inevitavelmente, se fez sentir no preço dos cereais levando a uma subida no preço do pão.
As padeiras de Valongo vendiam o pão de trigo sem peso determinado e pelo preço que queriam, o que gerou vários protestos, por parte da população portuense. Tudo isto levou a que fossem tomadas medidas e que as padeiras
valonguenses se vissem obrigadas a vender o pão a peso. No entanto, tiveram sempre liberdade para vender o pão a um preço superior e a peso inferior, mesmo quando estes privilégios lhes foram retirados no decorrer da primeira metade do século XVIII, uma vez que a cidade Invicta necessitava deste bem alimentar do qual tinha dificuldades em se abastecer autonomamente.
Todavia, de modo a tornar a cidade independente quanto ao fabrico de pão que de fora vinha, logo no início do século XIX, a Câmara do Porto mandou instalar mais fornos na cidade. A acrescentar a tudo isto, uma conjuntura de conflitos na defesa contra os invasores franceses, seguidas das lutas liberais, a inauguração da linha férrea do Douro e a chegada da moagem a vapor, afetou o papel importante que Valongo tinha no abastecimento de pão à cidade do Porto.
Contudo, apesar de ter existido uma quebra na venda do pão na Invicta, a relação de dependência do Porto com Valongo manteve-se até meados do século XIX, uma vez que há registos de que ainda nesta altura o principal sustento
da população portuense chegava de “Vallongo onde se fabrica paõ e bescouto de trigo”27. Ao longo do referido século, as padeiras de Valongo continuaram então a abastecer o Porto com as suas afamadas regueifas, e com os biscoitos e outros produtos associados à panificação. Em 1881, Valongo contava com 77 fornos, sendo 73 na vila e 4 nas restantes freguesias.
Por semana, saiam de Valongo 93 carros carregados de pão. Em média cada carro transportava cerca de 600 quilos, sendo que cada quilo correspondia ao valor de 110 reis, ou seja, “a exportação semanal ascende, portanto, a 6:138$000 reis que se tem conservado, apesar de em alguns pontos a grande indústria da moagem ter annexado o fabrico mecânico do pão”28 pois os clientes continuavam a preferir o pão a que estavam habituados. Anualmente, produziam em Valongo 3000 toneladas de pão e biscoito e a exportação anual, embora tivesse diminuído para o Porto, cresceu para os conce -
lhos vizinhos e “ascende à cifra de 331:452$000 réis”29.
Era três vezes por semana, aos dias de feira, que (…) ellas entravam na cidade. Pejavam as canastras d’esses pesados e saborosos pães trigueiros, especiaes para sopa fervida ou para as rabanadas do Natal; de regueifas, o pão favorito das nossas romarias e dos nossos arraiaes, (…) os biscoitos se sobrepunham, estrangulados por um atilho de cordel que os separava. Eram os biscoitos de tosta azeda, os biscoitos de argola e aquelles de feitios, pittorescos na sua ethnographia ingénua (…)30.
A fama do pão que produziam devido à sua excelência era notório e apesar das dificuldades dos tempos, em Valongo, “as padeiras continuaram a apregoar o produto genuíno aos viajantes”31. A partir de 1875, com a inauguração do caminho de ferro, o pão de Valongo e a imagem da padeira acabaram por se tornar familiares aos passageiros que viajavam de comboio. As padeiras vendiam as famosas
27 LIMA (2000), p. 153.
28 SOUZA, E. (1897) – O pão: dissertação inaugural. Porto: Typographia Occidental, p. 41.
29 VIEIRA, J. A. (1887) – O minho pittoresco. Lisboa: Livraria de António Maria Pereira, p. 597.
30 SOUZA (1897), pp. 38, 39.
31 GOMES (1992), p. 8.
Valongo ficou conhecido como a terra do pão e foi graças ao trabalho dos padeiros e dos impostos que pagavam, gerando importantes receitas, que construíram a Igreja Matriz de Valongo e foram possíveis arranjos noutras infraestruturas, através da imposição de cinco reis em cada alqueire de trigo a “respeito da edeficação da sua Igreja Matriz (…), e também para com a mesma Impozição se reedificar a Ponte da Carvalha, e se reparar a estrada real que vai do Porto até Ponte Ferreira”33.
O consumo de biscoitos confecionados em Valongo aumentou
32 PACHECO H. (1986), p. 192.
33 MOREIRA, P. F. (2012) – A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 128.
50 regueifas, o pão e os biscoitos, que traziam nas cestas envolvidos em panos, através das janelas das carruagens. Quando o comboio passava na estação de Valongo, os passageiros ouviam as padeiras a apregoar: “regueifa de Valongo, quem merca a regueifa”32, e os passageiros debruçavam-se nas janelas e compravam as famosas regueifas, o pão e os biscoitos.
significativamente no século XIX, pelo aumento da comunidade inglesa na cidade do Porto – ligada aos negócios do vinho do Porto –, associando os biscoitos ao ritual do chá.
Com a chegada do século XIX, até inícios do século seguinte, a Invicta deparou-se com um lento processo de transformação para a dotação de infraestruturas que permitissem uma maior independência relativamente ao abastecimento de produtos oriundos da panificação. Deste modo, as padeiras valonguenses começaram a sentir gradualmente a perda da primazia no abastecimento de pão à cidade Invicta, apesar de continuarem a marcar presença nas feiras e mercados portuenses.
A partir do final do século XIX, as padarias de Valongo adaptavam-se às exigências dos novos tempos e juntaram à produção de pão, a produção de bolachas e biscoitos –produtos que passaram a ser cada vez mais procurados.
3. A panificação em Valongo nos séculos XX e XXI
Durante as primeiras décadas do século XX, a indústria da pani-
ficação em Valongo encontrava-se numa situação de decréscimo significativa.
Em 1933 instalava-se em Portugal um novo regime político, o Estado Novo, que marcou um período com bastantes mutações e exigências para a indústria da panificação, com a imposição de novas regras. A partir da década de 30 começaram então a surgir organismos que controlavam a produção, a transformação e comercialização dos cereais em Portugal: Federação Nacional dos Produtores de Trigo (1932-1972), Federação Nacional dos Industriais de Moagem (1934-1974), Grémio dos Industriais de Moagem (19341974), Comissão Reguladora de Moagens de Ramas (1936-1972), Instituto Nacional do Pão (19361972), Grémio dos Industriais de Panificação (1936-1974)34.
34 Aquando da extinção de cada um destes organismos, entre 1972 e 1974, as suas atribuições, competências, património, serviços e pessoal foram integrados no Instituto de Cereais, criado através Decreto-Lei nº 283/72, de 11 de agosto, que tinha como função: organizar e controlar as atividades de produção, transformação e comercialização de cereais e todo o tipo de produtos relacionados com a panificação; garantir o abastecimento de cereais e dos diferentes produtos
Com a Segunda Guerra Mundial (1939/1945) instalavam-se tempos de fome e o consequente racionamento decretado pelo Estado Novo de Salazar. A contenção e a escassez de matérias-primas dificultavam o desenvolvimento da atividade panificadora em plena guerra mundial.
As quantidades de farinha e consequentemente de pão, eram poucas e “as pessoas só tinham direito a um pão por cabeça e depois as pessoas compravam por fora mais caro”35; deste modo, o setor da panificação estava sujeito a senhas de racionamento, quer para a compra das farinhas, quer para a compra do pão. Também o açúcar, necessário para as padarias e biscoitarias, foi racionado, sobretudo “na fase mais difícil da segunda guerra mundial: 1940/1941-1944”36.
cerealíferos, considerando a defesa da produção, as exigências do consumo e os interesses da economia nacional; realizar estudos técnicos e económicos; autenticar a proveniência dos produtos e a sua qualidade (S.a., Instituto dos Cereais, 2021).
35 MADUREIRA, N. L. (1998) – «O Estado, o patronato e a indústria portuguesa (1922-1957)», in Análise Social, 33(4), p. 796.
36 MADUREIRA, N. L. (1998), p. 796.
Mais tarde, a 29 de agosto de 1959, foi publicado o Decreto-Lei n.º 42 477, um novo Regulamento do Exercício da Indústria da Panificação, que agrupava em si inúmeras regras e medidas a serem adotadas nos estabelecimentos de modo a garantir condições técnicas, higiénicas e de segurança referentes a esta atividade.
Além destas medidas, os estabelecimentos necessitavam de licenças para manter as portas abertas e no seu licenciamento deveria ser considerado o tipo de pão a ser fabricado.
Para a concretização das imposições deste novo regulamento, a todos os estabelecimentos de fabrico de pão, foi estabelecido um prazo de quatro anos. Neste sentido, tudo leva a crer que o conjunto de todas as imposições e regulamentações do Regulamento do Exercício da Indústria da Panificação juntamente com o curto prazo para as satisfazer, terá levado a que um grupo de pequenas padarias de Valongo se juntasse num único posto de venda criando assim a Concentração, em São Martinho de Campo, em meados do século XX, de modo a darem
continuidade à sua atividade associada à panificação.
A Concentração foi, portanto, criada numa tentativa para que as pequenas padarias sobrevivessem e que em conjunto conseguissem ultrapassar aquela fase, garantindo todas as medidas impostas na época. O que é certo é que segundo alguns testemunhos presentes no documentário O Pão de Valongo realizado pela Câmara Municipal de Valongo, foi a Concentração que levou ao desaparecimento de muitas das padarias em Valongo: “cada um para ir para lá teve de deixar a sua padaria e fazer parte da Concentração e ali estava agregado a uma situação em que havia um que mandava e os outros acompanhavam. A causa de haver falta de padeiros, foi a Concentração”37.
É muito provável que a Concentração tenha sido a solução encontrada para conseguir corresponder às imposições previstas neste Decreto-Lei, mas o que é certo é que várias padarias em Valongo acabaram por fechar e o seu sucesso não foi o esperado.
37 Documentário: O Pão de Valongo, 2021.
Na segunda metade do século XX, existiam em Valongo as padarias “Ribeiro, do Calvário, Agostinho, Montez, Concentração e Ferreira”38. No entanto, segundo a análise do levantamento das padarias/biscoitarias feito pelo Arquivo Histórico de Valongo e, dos dados recolhidos junto da população, consultados em Silva, C. (2022), é possível dizer que, por essa altura, existiam em Valongo cerca de 27 padarias/biscoitarias39.
A industrialização portuguesa prosseguiu lentamente e, durante o Estado Novo, vários condicionamentos “contribuíram para que o crescimento industrial fosse moderado, até aos anos 50”40. Sendo precisamente a partir dessa década que começaram a surgir em Valongo as primeiras máquinas para auxílio da produção na indústria da panificação. Quanto à produção de pão, “quem podia começou a comprar,
38 PACHECO, H. (1986), p. 192.
39 SILVA, C. (2022) – A Panificação em Valongo: arte e tradição em torno de um saber-fazer. Dissertação de Mestrado, Escola Superior de Educação do Politécnico de Porto.
40 FARIA, M. F.; MENDES, J. A. (2010). I Atas do colóquio internacional Industrialização em Portugal no século XX: o caso do Barreiro. Lisboa: EDIUAL - Universidade Autónoma Editora, S. A., p. 84.
as amassadeiras os sovadores, porque a massa antigamente era tudo amassado à mão”41.
Relativamente à produção de biscoitos, recorda Maria das Dores Gonçalves da Silva, antiga biscoiteira da Fábrica Paupério, que “o que se fazia à mão, antigamente, mudou para se fazer à máquina. Os torcidos, os fidalgos, a rosca inglesa, vinho, familiares, isso tudo, fazia-se à mão e quando saí já era à máquina, já era há uns anos à máquina”42.
41 Documentário: O Pão de Valongo, 2021. 42 SILVA, C. (2022), p. 121.
Fonte: Arquivo pessoal de Maria das Dores Gonçalves da Silva.
E assim, com a evolução do modo de produção, uma vez que passou a ser auxiliado por máquinas, é possível verificar que ao longo dos tempos, o número de padarias/biscoitarias tradicionais em Valongo foi decrescendo e atualmente, dos estabelecimentos mais antigos, contam-se apenas dez ainda em atividade, sendo que nem todos eles continuam o fabrico de forma tradicional, utilizando a título de exemplo a Confeitaria Aguiar, que já não pertence à
família original e que optou por um modo de produção industrial.
Nos anos 60 começou-se a sentir uma certa abertura internacional, com a eliminação de normas protecionistas, que levou a uma “concorrência estrangeira, nomeadamente de Espanha”43. Mas só com o 25 de abril é que a política protecionista do Estado à economia e indústria portuguesas desapareceu e com ela as barreiras alfandegárias, levando à entrada, em solo nacional, de produtos vindos do estrangeiro a custos muito baixos. Esta abertura aos produtos estrangeiros viria a traduzir-se num período difícil para as padarias e biscoitarias valonguenses.
Embora acabasse por ganhar uma fama de dormitório suburbano, Valongo continuava a ser uma terra de traços identitários fortes e com um significativo património histórico e cultural, “um património que atravessou incólume os anos de crescimento atabalhoado e no qual se inclui a tradição biscoiteira entre outros
43 CAETANO, P.; MOTA, D. (2016) – O nome do biscoito é Paupério - desde 1874 Valongo: Paupério - Distribuição, Lda, p. 175.
Foto 1 - Maria das Dores Gonçalves da Silva a tirar a bolacha do forno eléctrico.
orgulhos”44. Tal tornou-se evidente com a viragem para o século XXI e o revivalismo que levou ao aparecimento do mercado da saudade e mercado gourmet, fez com que muitas marcas voltassem a relançar produtos e “algumas mesmo a saltarem da decadência para o mercado, de forma a saciar o apetite dos consumidores pelas marcas do passado, nas suas embalagens nada minimalistas, com decorações retro, cores intensas e ligação direta ao coração das pessoas”45. Esta procura alargou-se a todas as áreas do consumo e o vintage e retro começaram a ser novamente apreciados.
Além disso, o desenvolvimento do turismo e a aposta na divulgação e promoção do património, memória e identidade associados a esta indústria panificadora, também foi importante para gerar lucros para estes estabelecimentos que fizeram parte da história deste lugar.
A indústria da panificação local continua e, atualmente, é ainda assegurada por cinco padarias/ confeitarias – entre elas A Tradicional, a padaria do Susão, padaria
44 CAETANO; MOTA (2016), p. 190.
45 CAETANO; MOTA (2016), p. 225.
Irmãos Moreira, a padaria Irmãos Felgueiras e a padaria Costa e Capela – e por cinco biscoitarias, nomeadamente a Fábrica Paupério, a Biscoitaria Diogo, a Doceneves, a Valonguense e a Aguiar, que sobreviveram ao longo de vários anos e muitas delas ainda hoje permanecem na posse da mesma família, uma vez que ao longo do século XX, tal como já foi mencionado no capítulo anterior, o casamento entre filhos de padeiros era comum e o trabalho com base na mão-de-obra familiar também o era.
Atualmente, a indústria da panificação já não é a que lidera em número de empresas no município, no entanto, continua a ser relevante quanto ao volume de negócios e emprego gerados, além de que a sua importância em termos patrimoniais levou a um investimento na promoção, preservação e divulgação da memória e identidade de Valongo como terra do pão, da regueifa e dos biscoitos.
4. Panificação em Valongo: marca identitária
A relação entre o turismo e as cidades tornou-se cada vez mais notória, uma vez que, na verdade,
os lugares são produtos em que os valores e identidades devem ser planeados e promovidos. Desta forma, as cidades devem conservar, promover e divulgar as suas marcas identitárias, criando produtos e serviços atrativos, provocando experiências significativas para os visitantes, respondendo assim às necessidades da procura.
Nesta linha de pensamento, os municípios, enquanto veículos importantes para a construção de representações culturais, devem ser capazes de criar mecanismos para promover a diversidade, a criatividade, o dinamismo e a transformação contínua, de forma a estimular o crescimento e a evolução das próprias sociedades, criando condições de envolvimento entre a aprendizagem e o lazer, que se enquadre com os públicos, de forma a transmitir a sua mensagem com qualidade.
De acordo isto, o município de Valongo tem vindo a apostar nas suas marcas patrimoniais, e no caso em concreto da valorização e preservação da indústria da panificação destacam-se três importantes iniciativas, nomeadamente, a Feira da Regueifa e do Biscoito & Mercado Oitocentista, o Roteiro do
Grão ao Pão e a Oficina da Regueifa e do Biscoito de Valongo. O município, procura desta forma (re) valorizar a memória e identidade de Valongo associada à importância da panificação no desenvolvimento socioeconómico da região, através da identificação e promoção do seu património material e imaterial, contribuindo para a sua proteção e salvaguarda e para uma maior oferta no sector turístico.
5. Conclusão
É o peso do passado que mantem viva a importância da panificação em Valongo como atividade mais significativa para a região pois, apesar de ainda existirem padarias/biscoitarias que sobreviveram ao longo dos tempos, mais cedo ou mais tarde, estas acabaram por se modernizar e adaptar aos tempos atuais, ficando apenas a essência do que foi a panificação em Valongo preservada nas memórias e recordações. Neste sentido, com receio de se perder o que ainda resta desta atividade, é importante a recolha do que existe, criando assim condições para que este património e memória, que
formam a identidade deste local, não se perca no tempo e que estas lembranças sejam protegidas para que possam ser transmitidas às gerações vindouras.
É também pela incerteza do que farão as gerações futuras que se torna urgente preservar os bens e valores herdados do passado e a memória das vivências destas pessoas que, de um modo ou de outro, contribuíram para a história da panificação em Valongo.
Foi eventualmente, a partir desta premissa que o município de Valongo procurou (re)valorizar esta memória e identidade através da identificação e promoção do património material e imaterial que lhe estão associados, contribuindo para a sua proteção e salvaguarda, através de produtos culturais como a Feira da Regueifa e do Biscoito & Mercado Oitocentista, o Roteiro do Grão ao Pão e a Oficina da Regueifa e do Biscoito de Valongo, iniciativas que enriquecem a oferta turística no município mas que, principalmente, demonstram a importância deste setor para este lugar e que mantêm viva esta marca identitária.
Pode-se então concluir que a indústria da panificação, que teve um papel dominante no desenvolvimento da então vila de Valongo, assume-se hoje, principalmente, como uma marca identitária da região, para a qual o contributo das pessoas envolvidas na atividade panificadora e dos seus testemunhos orais sobre o saber-fazer técnico e todas as vivências associadas a esta profissão, foram essenciais para manter vivos os conhecimentos de cada indivíduo, mas também pela possibilidade de reconstruir esta memória coletiva, contribuindo assim para a consciencialização da importância para preservação, conservação e transmissão do património associado a esta atividade.
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A indústria do pão no concelho de Valongo e as crises de subsistência.
Elementos para a sua história
Joel Silva Ferreira Mata Universidade Lusíada (CEJEIA)
Resumo:
Os trabalhos recentes sobre o concelho de Valongo têm mostrado a diversidade da sua indústria, quer ao nível metalúrgico, têxtil, exploração de ardósia, mas sobretudo da produção de pão, que tinha como principal destino a cidade do Porto.
Os seus inúmeros moinhos que trabalhavam no rio Ferreira abasteciam, de farinha, as dezenas de padarias que fabricavam o pão na vila. A falta de matéria-prima era recorrente, o que perturbava a produção normal de pão, que para os pobres era uma importante fonte de alimento. Procuramos, com este estudo, apresentar alguns elementos que permitam uma reflexão integrada do fabrico
do pão neste concelho, desde os moleiros e os moinhos, os cereais e a sua carência, os padeiros e as crises que afectaram este sector, que desde a segunda metade do século XIX deu emprego a centenas de famílias. Palavras-chave: moleiros, padeiros, trigo, milho, centeio.
Abstract:
Recent work on the municipality of Valongo has shown the diversity of its industry, both in terms of metallurgical, textile, slate exploration, but above all in the production of bread, which had the city of Porto as its main destination.
Its numerous mills that worked on the Ferreira River supplied flour to the dozens of bakeries that manufactured bread in the village. The lack of raw materials was recurrent, which disturbed the normal production of bread, which for the poor was an important source of food. With this study, we seek to present some elements that allow an integrated reflection on bread manufacturing in this municipality, from the millers and mills, the cereals and their shortage, the bakers and the crises that affected this sector, which since the second half of the century XIX gave employment to hundreds of families.
Keywords: millers, bakers, wheat, corn, rye.
1 - Introdução
A indústria da panificação, designação genérica que vulgarmente é utilizada para englobar todos os que diariamente se dedicavam à sua produção, desde os moleiros aos profissionais especializados na confecção do pão nas suas diferentes apresentações regionais,
da regueifa e dos biscoitos que, no caso dos de Valongo, são muito afamados internacionalmente desde o século XIX. As fornadas destinavam-se ao mercado e, a sua venda estava regulada pela Lei Geral do Reino, cabendo ao almotacé a sua fiscalização1, mas também o Padre António Vieira, em meados do século XVII, chamava a atenção para a necessidade de impor vigilância às padeiras que ilegalmente praticavam preços não autorizados e diminuíam o peso2, do pão como era vedado às padeiras amancebadas na corte exercerem livremente o seu ofício3. Recebiam a pronto pagamento, mas podiam vender pão fiado, desde que
2 VIEIRA, P.e António (1652) – Arte de Furtar, espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral dos Reynos de Portugal, oferecida a El Rey nosso Senhor D. João IV para que se emende, Cap. IV. Amesterdam: Officina Elveriana, p.20.
respeitassem a lei4. Era uma actividade na qual “não havia horários de trabalho para ninguém, tudo funcionava de forma livre”5.
A indústria do pão no concelho de Valongo perde-se no tempo, e tal longevidade é devida essencialmente a três grandes factores: o percurso do rio Ferreira, o gosto e a apetência pela panificação e o clientelismo da cidade do Porto. O Relatório da Subcomissão encarregada da visita aos estabelecimentos industriais para preparar o Inquérito de 1881, redigido por Oliveira Martins, mostra que no distrito do Porto, os concelhos mais importantes da panificação eram o de Vila Nova de Gaia, Marco de Canaveses e o de Valongo6, transformando-se o pão num produto de terroir “que não poderia ser produzido noutro
lugar que não naquele terroir”7. É o caso de Valongo.
2. Os moleiros
Os moleiros exploram, quase sempre, sob a forma de arrendatários, moinhos essencialmente de cereal alvo, e milho, localizados ao longo do curso do rio Ferreira, que no início do século XX fazia girar 160 mós, instaladas em diversos engenhos8, que aproveitavam a corrente forte deste rio9, embora se conheçam diversas unidades moageiras nas diferentes freguesias. O seu labor destinava-se, desde logo, ao abastecimento local, mas a maior parte das fornadas visava o consumidor da cidade do Porto, sempre ávido de um pão da mais alta qualidade, cobiçado pelas elites e por todos os que têm dinheiro para comprá-lo, uma vez que havia pão saído dos fornos
4 Ordenações Filipinas (1984), Liv. IV, tít. XLIII, pp.102-103.
5 AGUIAR, António (2017) – O Baú das recordações. [Disponível em: https:// confrariadopaodaregueifaedobiscoitodevalongo.com/confraira/2017/27os-padeiros-e-o-seu-trabalho]. [Consultado em: 05/10/2024].
6 SOUZA, Eduardo de (1897) – O Pão. Dissertação inaugural apresentada às Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Porto: Typographia Occidental, pp.40-41.
7 SANTOS, Norberto; CUNHA, Lúcio (coord.) (2011) – Trunfos de uma geografia activa. Desenvolvimento local, ambiente, ordenamento e tecnologia. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, p.275.
8 REIS, P.e Joaquim Alves dos (1904) – A Villa de Vallongo. Suas tradições e história, descripção, costumes e monumentos. Porto: Typographia Coelho, p.214.
9 CAVALEIRO, Olga (2024) – Valongo. Uma história do pão. Valongo: Câmara Municipal de Valongo, p.54.
da urbe portuense, mas nem os presos da cadeia comum ou da Relação do Porto o apreciava.
A maioria dos moinhos estavam emprazados, contratos em três vidas, constituídas pelo marido, mulher e filho ou neto quando os dois primeiros formavam uma só pessoa, para efeitos contratuais. Conhecem-se alguns desses homens que, no seu isolamento e no silêncio quebrado pelo som gerado pelo movimento das mós e da água, viveram quase toda a sua vida a transformar o grão em farinha que outras mãos, com outro tipo de calejamento, manipulavam com o saber-fazer, nas múltiplas unidades familiares muito próximas umas das outras fixadas preferencialmente na zona histórica da vila.
Uma certa parte dos moinhos hidráulicos estavam dependentes das estações chuvosas e, por isso, trabalhavam intermitentemente, ficando abandonados uma grande parte do ano. Outros, de laboração contínua, no rio Ferreira, abasteciam as padarias. Era uma actividade desenvolvida maioritariamente por homens, mas havia igualmente mulheres valonguenses que depositavam nos
engenhos o cereal que era moído lentamente e sem grande pressa.
O moinho de Ponte Carvalha, no Inverno, causava problemas ao trânsito, por as águas correrem desenfreadamente, em prejuízo do trânsito. Os protestos despertaram a atenção da câmara que deliberou, depois de o auxílio do Governo ter sido recusado, e na falta de meios financeiros próprios, para a sua expropriação, aceitar dinheiro dos particulares valonguenses interessados na resolução de um problema viário causado pelo moinho, construído em tempo que a memória dos homens antigos não recorda10.
O caudal das águas que fazia mover as mós do moinho do Ouro, também na vila, inundavam os campos vizinhos o que não agradava aos seus proprietários11. Os moinhos de Riba aparecem referenciados para sinalizar e identificar outro tipo de bens patrimoniais12.
Na freguesia de Campo, no lugar de Fonte Velha, havia um moinho muito antigo que foi removido em
10 AHVLG/CMVLG, B/A 19, fl.108v.
11 AHVLG/CMVLG, B/A 16, fl.7.
12 AHVLG/CMVLG, B/A 15, fl.134.
185213; em Lamas do Ribeiro foi referenciado um moinho em ruínas que a câmara mandou destruir por intimação ao seu proprietário Manuel Joaquim Moreira Dias14.
O lugar do Moinho de Cima, na freguesia de Alfena, propriedade de Maria Rosa Martins, é uma referência toponímica de relevo15, mas encontram-se outros como os Moinhos de Riba que serviam para localizar minas de antimónio16.
em Sobrado, foi restaurada “uma casa de moinhos”17; no lugar de Fijos, por se encontrar em mau estado de conservação devido à sua longevidade; também o moinho da Fontelha, no lugar do Paço, junto à Ponte de Santo André18; na margem esquerda do rio Ferreira, servido por um caminho público, havia uma unidade moageira pertencente ao proprietário Francisco Dias dos Santos, residente no lugar da Igreja19.
Conhecemos, desde os finais do século XVI dezenas de almocreves
13 AHVLG/CMVLG, B/A 16, fl. 54v.
14 AHVLG/CMVLG, B/A 20, fl.26v.
15 AHVLG/CMVLG, B/A 20, fl.100.
16 ADP, C/10/8/2-7.38.
17 AHVLG/CMVLG, B/A 15, fl.95.
18 AHVLG/CMVLG, B/A 17 fl.3v.
19 AHVLG/CMVLG, B/A 20, fl.239.
que demandavam ao Porto, domiciliados na Rua de Santo Antão, Rua Velha, no Escoural e na Portela20, mas também se deslocavam à vila de Valongo almocreves oriundos de lugares do exterior para fazer o seu negócio em pão.
Seguiam com estes viajantes profissionalmente especializados, os albardeiros, homens de estatuto socioprofissional inferior aos almocreves para os auxiliarem e vigiarem as cargas transportadas no dorso de muares.
3. O pão: das padarias familiares à cidade do Porto
O pão e a biscoitaria rumavam à cidade do Porto, levados pelos diversos agentes ligados à indústria panificadora que, de madrugada, lá iam, com o seus animais de carga, carregados de largas cestas, em silêncio. Faziam a última paragem do seu trajecto, já nos calcanhares da urbe portuense, no Campo de Mijavelhas, “muito utilizado para descanso e abastecimento de água por quem percorria o «caminho
20 MATA, Joel Silva Ferreira (2017) –História económica e social do concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo: Câmara Municipal de Valongo, pp.331-341.
de Valongo»”21, onde já em 1384, as tropas fiéis ao Mestre de Avis passaram uma noite, quando se preparavam para combater os galegos comandados pelo arcebispo de Santiago de Compostela22. Era, então, no Campo de Mijavelhas que paravam “para ali se aliviarem da viagem as vendedeiras de biscoitos vindas de Valongo e as hortaliceiras vindas de Gondomar para vender na Feira de S. Lázaro”23, desde o início do século XVIII. Mas nos primeiros anos do século subsequente, fazia-se ajuntamento de vendedeiras e de consumidores no Passeio das Cardosas, da Praça Nova24, e, mais antiga era a feira diária e a feira anual de São Miguel, criada em 1682, na Cordoaria, que foi, mais tarde, em 1876, transferida
para a Rotunda da Boavista25, onde os fabricantes de pão e de biscoito podiam expor os seus produtos para venda.
A farinha, de várias qualidades, obtida pacientemente nos moinhos hidráulicos era levada no dorso de muares para as padarias, onde o saber-fazer adquirido ao longo de sucessivas e ininterruptas gerações, amassada, levedada e levada ao forno aquecido a lenha recolhida na floresta que circunda a vila e, em geral, transportada por mulheres, inicialmente sem encargos, mas à medida que a malha tributária se aperfeiçoa, durante a I República, a sua comercialização será doravante onerada, o que provoca a reacção dos industriais padeiros.
21 Sabia que... as raízes do campo 24 de Agosto tem mais de 600 anos? [Disponível em: https://cciporto. com/2020/12/28sabia-que-as-raizes-do-campo-24-de-agosto-tem-mais-de-600-anos/]. [Consultado em: 25/10/2024].
22 LOPES, Fernão (1990) – Crónica de D. João I, cap. CXIX, Vol. I. [s.l.]: Livraria Civilização- Editora, p.233.
23 COUCEIRO, Nuno (2024) – Morro da Pena Ventosa. Porto: Porto Editora, p.147.
Havia, no início do século XX, cerca de 100 padarias na vila26, número que terá baixado em relação ao século XVIII27. Este elevado número de unidades fami-
25 Associação Portuguesa dos jardins Históricos – Jardim da Cordoaria/Jardim João Chagas. [Disponível em: https:// jardinshistoricos.pt/ad/822]. [Consultado em: 21/10/2024].
26 REIS, P.e Joaquim Alves dos (1914), p.213.
27 AGUIAR, António (2017) refere que no século XVIII existiriam 200 padarias.
liares estava associado à “cultura endogâmica profissional”. Procurava-se casar “os filhos dos padeiros com as filhas de outros padeiros”28 e, cada novo casamento daria lugar a um novo forno, a um novo fornecedor de pão.
O Inquérito de 1881, baseado no levantamento prévio, casa a casa, a cargo de técnicos governamentais, regista apenas 77 fornos que empregavam (do exterior) 96 pessoas, repartidas entre homens (1/3) e mulheres (2/3), que recebiam salários diários diferentes: os homens entre 200 e 140 réis e as mulheres entre 120 e 100 réis “pois que para estas é a comida dada pelos patrões”29.
O principal cliente das padarias valonguenses, colectivamente considerado, é a cidade do Porto, que distava “duas legoas”30 da vila. O percurso, sendo aparentemente curto, era difícil, causando grandes dificuldades aos almocreves e animais de carga. O juiz do Couto de Campanhã, reconhecendo esta
28 AGUIAR, António (2017).
29 SOUZA, Eduardo de (1897), p.41.
30 FREIRE, Anselmo Braamcamp (1905) – «Povoação de Entre doiro e Minho», in Archivo Histórico Portuguez, vol. III. Lisboa, (s/n), p.259.
dificuldade, foi favorável ao relançamento dos trabalhos de abertura da Estrada Real para dar mais segurança e facilidade aos caminhantes, mas “principalmente às padeiras de Valongo”31 que, “três vezes por semana, aos dias de feira, que por essas manhãs rumorosas, ellas entravam na cidade, majestosamente repimpadas entre os enormes cestões que a cada lado se prendiam no dorso das suas éguas possantes ou dos seus nédios machos!”32.
Por razões de segurança pública, a vereação portuense cerceou a actividade da panificação na cidade, devido à frequência de incêndios urbanos, e, para desencorajar eventuais novos industriais, foi criado um imposto sob o trigo que entrasse na cidade33, o que veio favorecer os industriais panificadores de Avintes e de Valongo que se tornaram nos principais fornecedores de pão à cidade do Porto.
31 AZEVEDO, Maria José Coelho (1999) –A Igreja matriz de Valongo. Arquitectura (1794-1836). Porto, FLUP (polic), p.88.
32 SOUZA, Eduardo de (1897), pp.38-39.
33 BARROS, Miguel (2024) – «Entrevista com a Padeira-mor [Rosa Maria Rocha] da Confraria do Pão, da Regueifa e do Biscoito de Valongo», in A Voz de Ermesinde, secção Destaque (5/10/2024).
Em 1577, as padeiras da freguesia de Alfena que vendiam pão na cidade prestaram juramento e foram licenciadas pelo juiz competente da cidade do Porto, para poderem vender livremente34, sob a condição de que “se obrigavam a lhe não faltar pão cozido”35, sob pena do pagamento de uma multa de quinhentos réis.
No século XVII, a cidade tinha carência de pão, e para obviar às dificuldades, a veação da câmara do Porto decidiu moderar as taxas sobre o pão, para atrair “os fornecedores de pão que, de outra forma, não viriam ao Porto”36. As padeiras de Valongo protestaram contra a imposição tributária, com base numa sentença antiga “que as isentava de vender o pão a peso, se alvorotaram contra a decisão do Procurador da cidade que queria forçá-las a subordinar-se à lei do reino e accordãos da vereação, sendo necessário, por decisão do
34 MATA, Joel Silva Ferreira (2017), p.358.
35 CRUZ, António (1967) – Algumas observações sobre a vida económica e social da cidade do Porto nas vésperas de Alcácer Quibir. Porto: Biblioteca Pública Municipal, p.LIII.
36 SILVA, Francisco Ribeiro da (1994) «Tempos Modernos», in História do Porto, dir. Luís A. de Oliveira Ramos. Porto: Porto Editora, p.278.
Senado, que para resolver o incidente se chamasse a nobreza e povo”37, que deu razão às queixosas, por deliberação de 30 de Janeiro de 1717. São, pois “muitos os padeiros que sustentão o Porto de pão que eles lá levão a vender”38.
O Relatório de 1881 mostra que a indústria panificadora da vila de Valongo é próspera, conduzindo semanalmente à cidade do Porto 93 carros de pão e biscoito, com a carga individual na ordem dos 600 kg aos quais corresponde o valor global de 6 138$00. Por mês, eram manipuladas largas dezenas de toneladas de farinha, em pão e biscoito, pelas mãos dos padeiros e padeiras da vila de Valongo, para a cidade portuense.
Terminada a jornada, no fim da tarde, antes do cair da noite, diz Eduardo de Souza que as padeiras regressavam “na lombarda das bestas, afundando-se entre os cestos vazios, prestas e contentes com o dinheiro tilintando no saquitel e a chinela na ponta do pé a bater toc, toc, toc, o compasso
37 SOUZA, Eduardo de (1897), pp.39-40.
38 COSTA, António Carvalho de (1868) –Corografia Portuguesa, 2.ª edição, vol. II. Braga: Typographia de Domingos Gonçalves, p.231.
do chouto leveiro da récua em fiada”39, depois de ter distribuído o pão aos diferentes grupos sociais que tinham possibilidades para o comprar, mas os pobres – essas “classes depravadas”40 – também, decerto, o comiam.
Em Valongo produzia-se vários tipos de pão. No século XVII, apareceu em França o “pain mollet”, feito de trigo alvo que rapidamente foi difundido por toda a Europa, acabando, também por entrar em Portugal, na cidade do Porto, no início do século XVIII, dando origem ao molete tripeiro “para fazer as iguarias dos chás de então (…)”41. Em 1920, Joaquim Leite de Vasconcelos refere o molete como “próximo do pão espanhol”42, género ao qual nem todos os industriais valonguenses terão aderido, continuando a dar preferência ao pão tipo «sêmea», “pão grande, com um quilo ou
mais, por unidade”43. Em todo o caso, nas festas do Corpus Christi do Porto, em 1494, na refeição da câmara. comia-se o “pão molete”44.
4. Os moleiros
Em primeiro lugar moíam o cereal que entrava nos seus engenhos originário dos imensos campos e searas das freguesias do concelho, tão férteis quanto a terra humosa o permitia com o uso de fertilizantes naturais, porque os fertilizantes industriais só entraram depois de vencida a relutância dos proprietários rurais já na década de 1910. Tanto o trigo como o milho, produzidos no município, eram escassos para alimentar a indústria crescente do fabrico de pão, e daí o estabelecimento de industriais e armazenistas, de algum cabedal financeiro que, no início do século XX se dedicavam à comercialização de géneros provenientes das colónias ultramarinas e do estrangeiro.
39 SOUZA, Eduardo de (1897), p.39.
40 SERÉN, Maria do Carmo; PEREIRA, Gaspar Martins (1994) – «O Porto Oitocentista», in História do Porto, dir. Luís A. de Oliveira Ramos. Porto: Porto Editora, p.386.
44 GONÇALVES, Iria (1996) – «As festas do “Corpus Christi” do Porto na segunda metade do século XV: a participação do Concelho», in Um Olhar sobre a cidade medieval. Cascais. Patrimonia Historica, p.169. p.117-190
A moleira Maria Antónia é referida no início do segundo quartel do século XVIII, viúva, e Maria Antónia da Fonseca que, tanto uma como a outra, teriam sido a segunda pessoa nos contratos de emprazamento45. Na freguesia de Campo, testemunhamos Maria Gonçalves (1593), da aldeia da Quintã, ou Isabel Gonçalves, da mesma época que, ao lado de Isabel Duarte, domiciliada na Rua Velha, exploravam o moinho do Eiro46, assim como Catarina Antónia que com o marido Francisco Gonçalves, enquanto lavravam o campo do Moinho, trabalhavam “hum moinho alveiro e outro negreiro”47.
Os moinhos construídos em granito de grão médio, e inicialmente cobertos de colmo, produziam farinha para fazer pão que alimentava os pobres, os senhores, os comendatários, as abadessas e religiosas dos conventos sediados no Porto, mas também por outros grupos sociais desqualificados como os vadios ou os preso que eram socorridos pela Confraria
45 ADP, E/27/6/1-2-3, fls.173 e 175v; E/27/6/2-5.1, fl.31v.
46 AN/TT, Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, liv.12, fl.110.
47 AN/TT, Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, liv.12, fl.14v.
da Santa Casa da Misericórdia do Porto48.
Conhecem-se cerca de cinco dezenas de moleiros valonguenses entre o início do século XVII a meados do século seguinte49, mas há outros na freguesia de Alfena como Manuel Fernandes (1689), morador no lugar da Rua; Domingos Gonçalves (1710) que trabalhavam nos moinhos do proprietário Pantaleão Pacheco e Maria João (1710) que exercia idênticas funções nos mesmos engenhos50.
Na freguesia de Campo encontramos Cristóvão, criado de António Manuel, ou o moleiro abastado, Álvaro Pires, nos finais do século XVI que mantinha o criado Silvestre para o seu serviço, na aldeia de Luriz51; no século XVII apontam-se os moleiros António Álvares, Diogo, Sebastião Afonso52, António da Silva53.
48 AHSCMP, Livro da Receita e Despesa. Série L, B.co, n.º 4.
49 MATA, Joel Silva Ferreira (2017), pp.349353.
50 ADP, E/27/4/2.5.2 e fl.66, fl.127.
51 ADP, E/27/4/3-9.1, fls.7, fl.15v
52 ADP, Dep. G., fls.26, 36 e 49.
53 ADP, E/27/4/3-10.1, fls.216-216v.
Na freguesia de Ermesinde, tirando partido do curso do rio
Leça e de outros rios de menor pendor, citam-se os moleiros Nuno Gonçalves, no início do século XVII, Tomé João da primeira metade do século XVIII, José da Silva e mulher Maria Ferreira (1807)54. Na freguesia de Sobrado regista-se José João e um outro chamado António, dependente e crido do primeiro55.
Muitos destes profissionais trabalhavam, com o mesmo ardor, campos e leiras de policultura, numa economia de subsistência com a moagem, para sustento familiar. Encontramos vários casos. Na aldeia da quintã, freguesia de Campo, o moleiro Santos Afonso e mulher Maria Gonçalves, em 1593, identificaram perante a autoridade competente cerca de três dezenas de parcelas agrícolas que, por via de contrato enfiteutico, herdaram de seus antecessores56, e outros que complementavam a actividade agrícola com o trabalho dos engenhos de moagem.
56 AN/TT, Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, liv.12, fl.182v.
5. Crise de cereais e o seu impacto na indústria da panificação da vila
5.1. Do trigo
Nos finais do século XIX, o concelho de Valongo passou por uma crise económica sem precedentes na sua história que já contava com mais de cinco décadas, que levou a câmara a enviar uma representação ao rei D. Carlos, assinada pelo presidente Oliveira Zina, em 21 de Setembro de 1892. Nessa petição, se descreve que os habitantes do concelho se manifestaram em comício em frente dos Paços do Concelho, pedindo que a deliberação tomada pela Comissão de Cereais do Mercado Central de Lisboa, que impedia a vila de importar trigo do estrangeiro, fosse revogada57. Esta medida, caso fosse implementada, teria como consequência com efeitos imediatos, o aniquilamento da indústria da manipulação do pão e, a montante, a indústria de moagem58.
Este apelo visava proteger “a quasi totalidade das famílias que habitam esta vila”59, umas como
57 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.101v.
58 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.101v.
59 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.101v.
moleiros, outras como padeiros, e os outros como comerciantes e almocreves que negociavam na cidade do Porto. Nesta exposição, Oliveira Zina não hesita em declarar que as 58 casas de moinhos instaladas no rio Ferreira iriam encerrar portas e levar à pobreza os seus trabalhadores que se veriam cerceados dos meios de subsistência familiar.
É bastante curiosa a informação que Oliveira Zina dá nesta petição acerca da rentabilidade dos moinhos do rio Ferreira, nos quais se produz anualmente 150 000 sacas de farinha, o equipolente a 18 000 toneladas de trigo utilizado, assim como vários dados de natureza contabilística e financeira mostrando a importância desta actividade no cômputo da indústria do pão valonguense.
Por outro lado, o concelho de Valongo, apenas com cinco freguesias era, no distrito do Porto, o terceiro mais colectado na contribuição industrial, sentindo-se prejudicado, por exemplo, em relação a vilas importantes, como Vila do Conde, Lousada e Felgueiras.
Aquela medida levaria Valongo à miséria e “com elle centenas
de famílias que vivem à sombra d’essas indústrias”60 e daí, o apelo desesperado do presidente Oliveira Zina ao rei D. Carlos para impedir que a Comissão de Cereais do Mercado Central de Lisboa impusesse a proibição de importação de cereais a esta vila que não se destina a satisfazer os caprichos dos industriais valonguenses, mas garantir “os sacratíssimos direitos de conservação d’uma villa rica e populosa que se vê ameaçada, e de centenas de famílias que antevêem para si e seus filhos um sombrio futuro de miséria”61.
Quadro n.º 1 – Padeiros identificados na vila (1895)
n.º nome
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
António Alves Marques Moreira
António Dias Bragado
António Ribeiro de Sousa Neves Júnior
Carlos Alves de Sousa
João Caetano dos Reis
João de Sousa Aguiar
João E. Magalhães de Carvalho
João E. Magalhães de Carvalho
João Gonçalves Pereira
João Marques de Carvalho Xavier
Joaquim Alves de Sousa Paupério
Joaquim Alves do Vale
Joaquim da Silva Reis
Joaquim de Sousa Adão
Joaquim Neves Grandão
Joaquim Pires Júnior
60 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.102.
61 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.102.
17 José Alves Marques Moreira
18 José Borges de Magalhães Júnior
19 José Caetano Correia Reis
20 José Carlos Figueira
21 José de Sousa Almeida
22 José de Sousa Paupério
23 José Lopes da Fonseca
24 José Moreira Magalhães
25 José Pedro Coelho
26 José Pereira de Azevedo
27 Lino Marques Nogueira
28 Manuel Alves de Sousa
29 Manuel de Sousa Aguiar Júnior
30 Manuel Gonçalves de Sousa Paupério
31 Manuel Marques do Vale
32 Manuel Marques Nogueira
33 Serafim Martins de Sousa Aguiar
34 Tomás Fernandes
Fonte: AHVLG/CMVLG, C/C 272. MATA, Joel (2023), p.336.
Oliveira Zina, interpretando o voto dos valonguenses, considerava aquela medida injusta por não resultar de um inquérito sobre a indústria panificadora, nesta vila, pois que a avaliação que daí resultaria iria mostrar a utilidade desta indústria e a necessidade da importação de cereais para a sua preservação e pelo serviço público que prestava no abastecimento de pão.
A preocupação dos moleiros e padeiros agudiza-se pela crescente impossibilidade de adquirirem trigo ou farinha nos concelhos circunvizinhos onde, pelas informações que circulavam, o trigo e
milho abundavam e não tinham, escoamento.
Os trigos moles eram os mais divulgados e havia-os de múltiplas variedades como o rapado, galego, barbela, trigo da terra, ribeiro, tremês, canoco, cascalvo, sete espigas, campanários, pombinho, rubião e o português62, entre outras, algumas das quais fazem parte das qualidades de trigo (ou farinha) que era levado para as padarias da vila. É um cereal que se adapta bem às regiões quentes e secas63. Os almocreves desciam a região transmontana com as suas récuas carregadas de trigo com destino à cidade do Porto, mas muitas vezes descarregavam em Valongo, por ser mais apreciado e de melhor qualidade do que o trigo do Douro Litoral64.
62 SOUZA, Eduardo de (1897), p.86; na Idade Média, identificam-se outras categorias de trigo. MARQUES, A. H. ed Oliveira (1978) – Introdução à História da Agricultura. Lisboa: Edições Cosmos, p.82.
63 GIRÃO, Amorim (1958) – Atlas de Portugal. Coimbra: Instituto de Estudos Geográficos, p.22.
64 BARROS, Miguel (2024).
Quadro n.º 2 – Padeiras identificadas na vila (1895)
n.º nome
1 Ana Alves Moreira
2 Ana Gonçalves Ferreira
3 Isabel de Castro Neves
4 Margarida de Castro Mendes
5 Margarida Gonçalves Martins de Sousa
6 Maria de Castro Neves
7 Maria Martins de Sousa
8 Teresa Alves dos Reis
Fonte: AHVLG/CMVLG, C/C 272. MATA, Joel (2023), p.336.
Valongo não era o único concelho com dificuldades. O País inteiro reclamava cereais, mas as importações implicavam a transferência de moeda para o estrangeiro, numa altura em que as finanças públicas não podiam responder às solicitações das câmaras municipais necessitadas. O Governo estabelecia quotas para os fornecimentos aos municípios, e Valongo, sempre na primeira linha, lutava pela alteração das magras quantidades que lhe eram fixadas.
A crise agudiza-se, entretanto, e decorridos dois anos, no primeiro dia de Julho de 1894, os padeiros reúnem-se de novo, em comício, em frente do edifício dos Paços do Concelho, do qual saiu uma
comissão para representar os manifestantes, junto da autoridade camarária para que esta, usasse todos os meios para pressionar o organismo administrativo competente e insistir com o Governo, usando a influência do monarca D. Carlos.
Constou, por essa altura, que iria ter lugar uma distribuição de trigo, consoante as quotas previamente atribuídas pela Comissão de Cereais do Mercado Central de Lisboa. A câmara imediatamente, pelo vice-presidente João Marques Saldanha, lavrou novo apelo lembrando o elevado número de moinhos que existiam não só na vila, como no concelho em geral, e que dele depende economicamente um número indeterminado de famílias e que já faltara cereal para manipular no ano antecedente e que por esse motivo muitos industriais pararam.
O apelo ao Governo serve para o alertar para as consequências da insatisfação geral da população e “evitar um estado menos satisfatório geral que seria o ficarem sem trabalho innumeras famílias aparecendo por esse motivo um elemento altamente perturbador muitas vezes da ordem e tran-
quilidade pública”65. A influência do rei D. Carlos poderia, segundo o vice-presidente João Marques Saldanha, evitar “consequências lastimáveis e desgostos profundíssimos, quaes seriam ficarem innumeras famílias privadas de angariarem honradamente os meios de subsistência indispensáveis para o seu viver”66.
A crise do primeiro quartel do século XX agravada pelo ambiente geral da Europa com a I Guerra Mundial aprofundou a agudização do problema dos moleiros e padeiros de Valongo. O que se previa, acabou por acontecer. Em 1912 não compareceram à aferição de Pesos e Medidas – uma obrigação anual de todos os industriais do concelho, que deviam confirmar os sus instrumentos de medição e de pesagem na repartição municipal da responsabilidade de um funcionário administrativo próprio – cinquenta e dois industriais de padarias, o que pressupõe que o número total fosse muito superior67. Em 1925 mantinham-se em funcionamento 60 padarias que diariamente prepa-
65 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.145.
66 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.146.
67 AHVLG/CMVLG, C/A 79 fl.113.
ravam cinco toneladas de pão e biscoito para a urbe portuense68, que representados pelo presidente da comissão executiva, João Marques Saldanha, discordavam do estatuto dado ao concelho de Valongo, relativamente à cidade do Porto. O protesto é levado ao Ministro da Agricultura, lembrando que o concelho de Valongo “é dentre todos os da comarca, o que mais efectiva e eficazmente contribue para o abastecimento de pão para a cidade do Porto”69. Era uma situação de injustiça
Que cria aos habitantes deste concelho uma inferioridade e uma desigualdade que magoam e prejudicam a qual consiste em não usufruírem, por lhe não serem extensivas as providências e regalias que sabiamente veem sendo decretadas pelo actual Governo, relativamente ao peso e tipos de pão e preços de farinhas, quando é o único concelho da comarca vítima de tal excepção70.
Salienta a petição que os prejuízos se elevam para além daquilo que os padeiros podem suportar, arruinando-os e com eles o município, pois para continuar a
68 AHVLG/CMVLG, C/A 86, n.os 92/93.
69 AHVLG/CMVLG, C/A 86, n.os 92/93.
70 AHVLG/CMVLG, C/A 86, n.os 92/93.
abastecer a cidade do Porto, eram obrigados a comprar a farinha nas fábricas da província, com forte impacto na subida do preço do pão pela incorporação do aumento das despesas de transporte, não podendo concorrer com os padeiros dos outros concelhos que também tinham como seu principal cliente a urbe portuense71, mais concretamente os de Vila Nova de Gaia e de Avintes.
O problema nevrálgico de todo este calvário era originado pela constante falta de matéria-prima. Os solos agrícolas do concelho eram, na sua grande maioria cultivados, embora no inquérito realizado em finais do século XIX fosse registada a informação de que muitos campos permaneciam incultos por falta de mão-de-obra e os elevados juros que oneravam o capital quando emprestado, apontando-se a emigração para o Brasil como a causa principal da actual paisagem agrícola. O problema estava ainda na baixa de produtividade e cansaço dos solos por falta de adubos industriais.
A insuficiência da produção municipal era então suprida pelo
recurso à importação de trigo internamente de várias regiões do País, mas a maior quantidade era proveniente do estrangeiro, o chamado “trigo exótico” ou “trigo do mar”, distribuído como se viu, na proporção das quotas fixadas por sorteio e atribuídas pelo Governo. Ao problema da fraca produtividade dos solos associava-se ciclicamente os chamados “maus anos agrícolas” motivados por pragas ou pelas intempéries sempre prejudiciais às culturas em fase de crescimento e maturação. É o problema circunstanciado, então, já no longínquo ano de 1861. A câmara, sob a presidência de João Rodrigues Alves, enviou uma petição ao Governo, alertando-o para as eventuais consequências sociais e distúrbios de ordem pública provocados pela falta de trigo no município72, que foi dirigida ao Rei, utilizando uma retórica interessante, recordando a Sua Majestade que a confiança dos povos na câmara, poder administrativo municipal, de proximidade, não podia deixar de se empenhar, nem ficar em silêncio perante a profunda crise que estava
71 AHVLG/CMVLG, C/A 86, n.os 92/93.
72 MATA, Joel Silva Ferreira (2023) –História económica, social e administrativa do concelho de Valongo (1836-1926), Volume II. Valongo: CMV, p.340.
no horizonte próximo, devido à “mediocridade da colheita de trigo no corrente anno, tanto n’este concelho como em todos os que o circundão”73, que parece ter atingido todo o Reino. Na influência do monarca junto do Governo poderia estar a salvação do concelho, pois a falta de trigo afecta “em geral os interesses de todas as classes da sociedade, fere, por assim dizer de morte os habitantes da vila de Vallongo, sede deste concelho”74.
Em anos anteriores e de colheita regular, o trigo cultivado era suficiente para consumo próprio. Porém, no ano de 1860 “ a colheita [foi] limitadíssima”75, situação comum na província de Trás-os-Montes quanto ao trigo “barbella” que era comprado para as padarias da vila. A falta de trigo conduz à inflação, contrariando a descida do seu preço em anos normais, e o recurso ao trigo importado do estrageiro implicaria, de forma mais evidenciada, a subida do preço do pão.
O presidente João Rodrigues Alves e a câmara com ele, nesta representação, sobe o tom nas consequências pela falta de matéria-prima e “em relação aos habitantes d’esta villa há quem mais directamente vem ferir; porque vivem quasi exclusivamente da agência do fabrico da farinha e de manipulação do pão para consumo da cidade e povoações circunvizinhas”76, levando ao encerramento de várias unidades transformadores e à perda dos meios de subsistência porque os padeiros não eram operários industriais das minas de metais ou de ardósia, mas também não eram agricultores, mas manipuladores do pão, uma actividade urbana, desenvolvida no coração da vila.
73 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fls.127v-129.
74 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fls.127v-129.
75 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fls.127v-129.
76 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fls.127v-129.
Gráfico n.º 1 – Produção de trigo no concelho
Fonte: AHVLG/VLG, B/A 170, fl.4. MATA, Joel (2023), p.355.
A câmara apela ao Governo que permitisse a importação de trigo, naturalmente sem prejudicar a produção nacional que nesta altura era diminuta.
As dificuldades voltam quatro anos depois devido às intempéries que devastaram o município. É o administrador do conselho que, preocupado com a situação dos proprietários rurais, incita a câmara a fazer com brevidade, o levantamento dos danos causados “à indústria agrícola deste concelho”77. Apontam-se os prejuízos
77 AHVLG/CMVLG, B/A 13, fl.68v.
devidos à queda anormal de pluviosidade entre a sementeira e a germinação de cereais causando, por estimativam segundo o parecer dos proprietários rurais, uma quebra de 50% em relação a uma colheita normal. Não haveria, portanto, trigo suficiente para alimentar a população do concelho e muito menos para o exterior. Este flagelo abate-se no ano seguinte. O Governo, entretanto, nomeou uma Comissão Central de Socorros para a atribuição de subsídios aos agricultores mais afectados e sem recursos.
Na freguesia de Sobrado, foram denunciados dois agricultores, com posses, e produções anuais entre 16 e 20 carros de cereal que na opinião da vizinhança podiam arcar com os seus prejuízos. Os dois, copiando os requerimentos a apresentar, um pelo outro, foram acusados de agirem “de má-fé e pouca consciência”78, quando havia lavradores mais carenciados nesta freguesia. Dois anos depois (Setembro de 1877) os agricultores que tinham concorrido a este subsídio viram os seus processos aprovados e já tinham recebido as respectivas indemnizações.
No Inquérito da Comissão Parlamentar para o Estudo da Emigração (1885) relativo ao concelho de Valongo encontram-se várias informações úteis para o sector agrícola: a falta de lavradores para o amanho de terras menos atractivas, falta de mão-de-obra, más vias de circulação, a emigração, falta de mecanização da agricultura, elevados juros do capital (4,5% a 5%), uma vez que a produção dos solos não daria apara pagar mais de 3%; a falta de mão-de-obra era também originada pela massa de assalariados que trocara o campo
78 AHVLG/CMVLG, B/A 55, fls.69v-70.
pela indústria mineira e da ardósia, preferindo um salário fixo, e coloca as padarias entre os quatro ramos mais importantes da vila, a par da indústria de antimónio, de ardósia e a fiação79.
As quotas de importação de trigo destinadas a Valongo obrigam a câmara a estar sempre em alerta. Constava, pois, pela imprensa que a Comissão Central de Cereais de Lisboa, em 1892, decidiu excluir os moleiros valonguenses no rateio para a importação de trigo estrangeiro no ano cerealífero seguinte. O presidente Francisco Maria Dias da Costa não pôde deixar de importunar o referido organismo para, no mínimo, manter a quota atribuída nos dois anos anteriores “sob pena de gravíssimos prejuízos para aquella indústria a principal d’esta villa”80, quer dizer, à frente da indústria metalúrgica e de ardósia e da têxtil, representada pela Fabrica da Balsa, em Sobrado, que em conjunto davam emprego e pagavam salários a muitas centenas de operários.
Apesar da promessa do Governo em manter os direitos dos moleiros do rio Ferreira, o certo é que logo
79 AHVLG/CMVLG, B/A 62.
80 AHVLG/CMVLG, B/A 20, fl.101v.
no ano subsequente, estes industriais representados por Cipriano de Castro Neves, insistiram com a câmara que voltasse a questionar o Governo sobre o fornecimento de trigo proveniente do estrangeiro, tarefa que o presidente António Gonçalves dos Reis aceitou “gostosamente a presente petição por ter a máxima consideração os interesses dos seus munícipes”81.
Quando as petições não resolviam a questão da entrega do trigo pela Comissão Central de Cereais de Lisboa, a câmara socorria-se da última “forma de luta” através do envio de telegramas, por exemplo, ao Ministro das Obras Públicas, protestando contra a exclusão de Valongo na distribuição de trigo que consequentemente originava “grande descontentamento e mizeria, se tal medida for avante!”82.
A falta de matéria-prima, na vila levava, ao açambarcamento de trigo e outros cereais. O vereador António Caetano Alves Pereira, em Novembro de 1916, e em nome da Comissão dos Industriais do Concelho, propôs ao senado municipal que fosse adoptado um preço único para o pão sêmea,
81 AHVLG/CMVLG, B/A 20, fl.127v.
82 AHVLG/CMVLG, B/A 20, fl.145.
de segunda qualidade, por doze centavos/kg, que era elevado, mas necessário para fazer face ao custo de produção, incluindo o transporte, lenha para os fornos e outros encargos associados83. Os padeiros da vila, descontentes com o preço tabelado, exigem a subida dos preços, mas a câmara declinou a responsabilidade de diminuir o aceso ao pão pelos pobres84, embora o vereador Carvalho Nogueira tomasse o partido dos padeiros, concordando com o aumento, mas o Dr. Maia Aguiar, enviou a resolução deste assunto sensível para a Comissão Executiva devendo harmonizar-se “tanto quanto possível os interesses da classe panificadores, com os do público consumidor”85.
Não havendo grão, os padeiros recorriam à cidade do Porto para comprar farinha, mas esta prática não agradava ao governador civil que a terá proibido. O vereador Manuel Martins Fernandes alertou aquele alto magistrado que tal decisão representaria “a futura ruína da indústria da panificação que constitui o negócio mais
83 AHVLG/CMVLG, B/A 25, fl.119.
84 AHVLG/CMVLG, B/A 25, fl.119.
85 AHVLG/CMVLG, B/A 25, fl.119.
importante aonde centenas de famílias vão auferir os meios de sustentação”86, em sessão realizada em 30 de Abril de 1917. Já se referiu que o número de padarias em laboração neste ano era somente de 60. Para empregar “centenas de famílias” deveria existir um maior número, mesmo contando com outras unidades de idêntico labor espalhadas pelo concelho.
A denúncia do vereador Manuel Martins Fernandes não terá passado de uma preocupação com base em informação volátil por que conhecemos vários industriais de Valongo e da freguesia de Ermesinde que compraram grandes quantidades de farinha, à saca, a empresas armazenistas do Porto: de Ermesinde, Manuel Lino, (CERES), Empresa de Panificação e Farinhas, Limitada) e Jacinto Figueiredo de Almeida (Empresa de Panificação e Farinhas, Limitada); de Valongo, António de Castro Neves, (Empresa Agrícola Comercial, Limitada), Manuel Ribeiro da Silva (cidade do Porto) e Marques Moreira (Empresa Comercial, Limitada87.
86 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fl.156v.
87 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fls.156v, 180v, 194v, 195v e 200; C/A 84, fls.33, 33v e 181.
Em finais de 1917 (28 de Novembro), uma comissão de padeiros foi recebida pela câmara, na Sala das Sessões, onde foi exposta a situação crítica da classe, advertindo-se que o sector estava em ruptura “resultando da paralisação das padarias um agravamento da crise de graves consequências para a indústria local e para a vida do consumidor quer de Valongo, quer dos concelhos limítrofes e especialmente do Porto”88.
A câmara preparou mais uma petição que foi enviada ao Ministro do Trabalho, e dela se encarregou o vice-presidente, José de Carvalho Nogueira.
A câmara, por intermédio da Comissão de Distribuição de Cereais e Farinhas, instava igualmente aquele Ministro que autorizasse a importação de cerca de 35 toneladas de farinha triga originária de Espanha89, mas tudo era burocrático, muito lento, pela necessidade de guias de transporte passadas superiormente.
No Livro dos Regimentos desta câmara, de finais do século XIX, encontramos referência a quantidades de trigo produzidas nos 88 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fl.184v. 89 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fl.185.
campos do concelho e seco nas eiras locais e tipos de grão que eram importados por alguns armazenistas da vila. O comerciante João Marques Nogueira declarou ter em sua posse mais de 22 toneladas de trigo mole que guardava no seu armazém, na Rua do Padrão, distribuído entre trigo barbelo (12,4 toneladas e 10 de trigo local; João Ventura da Fonseca possuía no seu domicílio, 43 toneladas de trigo mole; Joaquim Alves Jorge Malta pediu o manifesto de 29,4 toneladas de trigo nacional, repartido entre 19,7 de trigo valonguense e 9,7 de trigo serôdio que estava em sua casa, na Rua da Cerdeira; declarou mais 22 toneladas de trigo local e 9 de trigo serôdio; 29,7 de trigo mole, da terra, que tinha na Rua do Padrão e outras 15,3 toneladas de trigo mole e 6,8 de trigo das Ilhas, na mesma rua, cuja quantidade fora vendida ao comerciante Joaquim Ribeiro da Silva. Outro armazenista da vila, Ricardo Alves Fontes, vendeu à firma Moreira & Moreira, 4,5 toneladas de trigo das Ilhas e 40,2 de trigo da freguesia de Valongo, que estavam ensacadas na sua residência, na Rua de Malta90.
90 AHVLG/CMVLG, A/A 55.
5.2. Do Milho
Os campos do concelhos eram férteis na produção de milho91. As diferentes crises frumentárias atingiram também a sementeira de milho, o “cereal dos pobres” e algumas situações foi necessários que a câmara tomasse medidas administrativas para evitar alterações da ordem pública, por falta de milho.
Em 1854, a chuva torrencial prejudicou a colheita de milho no concelho em cerca de 50%, ou seja, somente foram recolhidos 1 000 moios92. Era um problema geral da região, concluindo a câmara que a falta de milho deveria ser colmatada com a sua importação do estrangeiro. A situação ficou regularizada no ano seguinte, pela normalização do ano agrícola. Não obstante, terem chegado à câmara notícias de más práticas comerciais e mercantis promovidas por alguns operadores que açambarcavam o milho, gerando consequentemente a inflação do seu preço
91 SOARES, Jacinto (2020) – Ermesinde. Episódios da história da nossa terra. Avanços e recuos. Subsídios para a sua monografia III. Ermesinde: Junta de Freguesia de Ermesinde, pp.35-38, indicações para esta freguesia.
92 AHVLG/CMVLG, C/A 72.
no mercado, e “é tal a mania dos monopolistas que muitos d’elles já se não limitão só a comprar nos mercados, mas até particularmente pelas cazas dos lavradores, aonde tem mandado agentes a fazer compra de tudo que podem encontrar, pagando pelo género um preço bastante subido”93.
Dos quatro cereais colhidos das searas do concelho, em 1859, trigo, milho, centeio e cevada, o milho teve uma quebra de 75%94. Na viragem do século XIX para o século XX a colheita de milho esgotou-se no fim do primeiro semestre.
Em Junho, o preço por hectolitro variava entre 800 e 900 réis, quando em condições normais era vendido em torno dos 200 réis95.
Em 1912, na presidência do Dr. Joaquim Maia Aguiar, foram requisitadas no Mercado Central de Lisboa, 100 toneladas de milho, que o Governo disponibilizou através da Direcção do Mercado de produtos Agrícolas, despachado na alfândega do Porto96.
Afixaram-se editais nos lugares de estilo, para captar a concorrência
93 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fl.5v.
94 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fl.59v.
95 AHVLG/CMVLG, C/A 73, fl.129.
96 AHVLG/CMVLG, B/A 24, fl. 48v.
de comerciantes para vender pequenas quantidades a preços tabelados e respectivas margens de comercialização. Em 1913, a pedido da câmara, o Governo aprovou mandar despachar mais 50 toneladas97.
Empregavam-se todos os meios para trazer milho às padarias da vila. Nos finais de Dezembro deste ano, uma multidão de pobres da freguesia de Ermesinde “invadiram hoje [28 de Dezembro] o edifício dos Paços do Concelho a solicitar milho o que lhes foi feito para evitar que essa gente sofresse debalde uma grande caminhada”98, que foram abastecidos de milho proveniente das colónias.
Em 1916, o desespero fez com que os pobres da freguesia de Alfena tomassem a mesma atitude, como refere o vice-presidente ao presidente da junta de freguesia, dando-lhe nota de que foi reduzida a quota destinada a este local “visto que uma grande parte dos populares dessa freguesia já veio aos Paços deste concelho solicitar o milho o que lhes foi satisfeito”99.
97 AHVLG/CMVLG, B/A 24, fl.194v.
98 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fl.137v.
99 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fl.138.
A câmara, através do Celeiro Municipal, procurava milho onde o houvesse. Em Braga foram carregados dois vagões dos Caminhos de Ferro, mas também em Caíde, Fafe e em Ponte de Lima várias toneladas aguardavam guias de transporte e a boa vontade dos respectivos administradores dos concelhos que nem sempre facilitavam o trânsito do cereal. Para desbloquear o milho retido, a câmara recorria à bonomia do Governador Civil, mas a eficácia perdia-se pela intransigência dos magistrados municipais que persistiam em retardar a saída do milho dos seus concelhos.
Em 1916, a câmara distribuiu pelas cinco freguesias 2 toneladas de milho, na razão de 1$06/15 kg100. A carestia deste cereal elevou o preço da saca com graves inconvenientes para os pobres que, se já comiam pouco pão de segunda, passaram a comer menos.
Havia, entre os municípios, que padeciam da mesma exiguidade de recursos cerealíferos, uns que em detrimento dos outros, procuram obter vantagens na distribuição de quotas, e entre os prejudicados, por denúncia do vereador José Carvalho Nogueira, estava o concelho de Valongo, assim como também se deparava com outro problema que era a falta de qualidade do cereal, que algumas vezes, já depois de pago, era considerado pelo subdelegado de saúde municipal, impróprio para consumo, dando origem a protestos que prejudicavam a população, uma vez que a devolução e nova reposição estava dependente de vários circunstancialismos e da chegada dos navios com novas remessas, que eram novamente sorteadas.
100 AHVLG/CMVLG, C/A 83, fl.138.
Gráfico n.º 2 – Produção de milho no concelho
Fonte: AHVLG/CMVLG, K/E 700. MATA, Joel (2023), p.374.
Se, ao menos, os administradores dos concelhos onde havia milho em excesso libertassem as quantidades excedentárias, podia Valongo ser abastecido mais facilmente, mas a resistência verificada relativamente ao trigo é a mesma em relação ao milho. As palavras do presidente Bernardo de Castro Neves são bem elucidativas da situação que se vive no concelho: “não pode calar a voz da fome que grita em quase todos os lares do proletariado”101 da vila, e numa carta dirigida ao Ministro
101 AHVLG/CMVLG, C/A 84, fl.20v.
das Subsistências e Transportes, o mesmo presidente diz: “do sócio duma empresa lousífera aonde trabalham centenas de operários, em que se descreve a debandada dos mesmos operários por falta de pão!”102.
As aquisições oficiais e de particulares sucedem-se e aparentemente em grandes quantidades, mas perante uma população faminta, de parcos recursos financeiros, a par do desemprego industrial na vila, tornam o trabalho da
102 AHVLG/CMVLG, C/A 84, fl.21v.
câmara sempre insuficiente, apesar dos esforços de todos quantos estão envolvidos.
Para evitar fraudes ou fornecimentos duplicados, em 1918, a câmara instruiu o presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde para “passar escrupulosamente guias às famílias pobres, indicando simplesmente o número de pessoas de que se compõe cada família”103, seguindo recomendação idêntica para a freguesia de Campo.
O aprofundar da crise geral, fez com que o abastecimento de milho, pelo Governo, fosse diminuindo, numa altura em que era “preciso acudir à alimentação pública do concelho que já luta com fome”104.
O Celeiro Municipal estava com grandes dificuldades “continuando a subsistir pavorosamente neste concelho a crise alimentícia pois que o milho ultimamente foi distribuído a esta câmara não chegou para satisfazer todas as freguesias aonde o povo está seriamente alarmado com a fome, que já se nota nos seus lares”105.
5.3. Do Centeio
No período republicano, recorreu-se à importação de centeio, através do Mercado Central de Produtos Agrícolas de Lisboa, havendo notícia de estar à disposição, da câmara, centeio de boa qualidade, proveniente de Hamburgo106. No entanto, o povo não apreciava muito o pão de centeio que, como diz o Dr. Maia Aguiar “o consumo entre nós é diminuto”107. Mas compareceram, na câmara, vários revendedores como Francisco Ribeiro da Silva, Manuel Ferreira Lino e Vicente Duarte Dias que no seu conjunto levariam à requisição de 140 toneladas, que a câmara recusou por considerar tal quantidade excessiva para o consumo interno, deixando a porta aberta para acorrer a situações que se tornassem prementes. Nesse sentido, foram distribuídas à freguesia de Ermesinde um vagão de centeio e às restantes dois vagões, que rondavam, no total, 50 toneladas, despachadas pela Casa Castanheira & Fonseca.
103 AHVLG/CMVLG, C/A 84, fl.85v.
104 AHVLG/CMVLG, C/A 84, fl.94.
105 AHVLG/CMVLG, C/A 84, fl.96v.
106 AHVLG/CMVLG, B/A 24, fl.152v.
107 AHVLG/CMVLG, B/A 24, fl.153.
Gráfico 3 – Produção de centeio no concelho
Fonte: AHVLG/CMVLG, K/E 700. MATA, Joel (2023), p.381.
Ao contrário do centeio originário de Hamburgo, de boa qualidade, o agora despachado, por esta empresa, estava estragado e por essa razão foi recusado pelo Celeiro Municipal108, gerando uma troca de correspondência entre a câmara e a Comissão Geral do Mercado Central de Productos Agrícolas acerca da ineficácia da fiscalização ou mesmo a sua falta. O caso subiu ao Ministro de Fomento que, por sua vez, remeteu o assunto para aquele organismo e para o agrónomo distrital, Palma de Vilhena109.
As informações sobre a produção de centeio neste concelho, não abundam. Em 1857, de acordo com as indicações prestadas pelos lavradores da terra, foi de 200 carros. Entre 1901 e 1911, a colheita variou entre 220 hectolitros nos anos de 1903 e 1904, e 100 nos anos de 1906 e 1907e 1910.
108 AHVLG/CMVLG, B/A 24, fl.157v.
109 AHVLG/CMVLG, B/A 24, fl.163v.
6. Conclusão
No concelho de Valongo primava a policultura cerealífera sobressaindo o trigo e o milho e, em menor quantidade o centeio, a cevada e a aveia, os dois últimos sem expressão significativa. O município está em expansão demográfica, nomeadamente na vila e na freguesia de Ermesinde. Centenas de homens, muitos jovens e algumas mulheres preferem o trabalho industrial, um salário certo, como actividade profissional principal, complementada com a agricultura. Em consequência, há terras agrícolas incultas que não são trabalhadas por falta de mão-de-obra. Às crises gerais, contextos internacionais como a I Grande Guerra, o município não passa impune.
A resiliência das suas vereações ao serviço da população tudo fez para mitigar o impacto da falta de cereais, mantendo tanto quanto as suas possibilidades o permitiram, o abastecimento de trigo e milho às padarias da vila, que apesar do choque mais devastador de 1917, subsistiu para manter o pão de qualidade que sempre distinguiu os industriais da panificação da vila de Valongo.
A indústria do pão, na sua qualidade e formas distintas faz parte da idiossincrasia valonguense, constituindo o pão, a regueifa e o biscoito um dos traços mais relevantes da identidade do município110, não só por ter origem secular, que transforma esta arte numa herança cultural, quando, por exemplo, a regueifa, por altura da Páscoa111 é geradora de sinergias familiares por ser usada como folar112.
Os pães trigueiros [de Valongo], especiaes para sopa fervida ou para as rabanadas de Natal, de regueifas, o pão favorito das nossas romarias e dos nossos arraiaes, «que liga tão bem com as nozes e com o verdasco, e d’esses compridos taleigos brancos em que, como camáldulas fragmentados, gigantes, os arráteis de biscoitos se sobrepunham estrangulados por um atilho de cordel que os separava. Eram os biscoitos de tosta azeda, os biscoitos de argola e aquelles de feitios pitorescos na sua ethnographia
110 Oficina da Regueifa e do biscoito de Valongo oficialmente inaugurada. [Disponível em: https:www.cm-valongo.pt/viver/notícias/noticias/ oficina-da-regeifa-e-do-biscoito-de-valongo-oficalmente-inaugurada]. [Consultado em: 05710/2024].
111 AGUIAR, António (2017).
112 MARQUES, Joaquim Manuel Pereira (2024) – «A Tradição do folar de Valongo», in Jornal N. Regional (11/04/2024).
ingénua, figurando a viola, a torcida, estrelas, os quarteis de lua, o homem, o cão (…)113.
Fontes e Bibliografia
Fontes:
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AHVLG/CMVLG, B/A 13.
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113 SOUZA, Eduardo de (1897), p.39.
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Breve história do brinquedo de folha de flandres no concelho de Valongo, a tétrade de Alfena e Ermesinde
Carlos Magalhães
Curso de Doutoramento em Estudos do Património carlosmagalhaes1954@gmail.com
Resumo:
O objeto deste artigo é o brinquedo em folha de flandres de Valongo, o seu fabrico em regime de meia indústria e os seus principais fabricantes, enquanto aspeto caraterístico e peculiar do património cultural lúdico e marca identitária da gente e do labor alfenense e ermesindense. Procura-se ainda inserir este segmento produtivo no contexto nacional, sendo que a região na historiografia do chamado brinquedo tradicional feito neste material revela um locus e um pathos sem paralelo no território português.
Palavras-chave: brinquedos, folha de flandres, meia indústria, Alfena, Ermesinde
Abstract:
The object of this article is the Valongo tinplate toy, its production under a semi-industry regime and its main manufacturers, as a characteristic and peculiar aspect of the recreational cultural heritage and identity mark of the people and work of Alfena and Ermesinde. We also seek to insert this productive segment into the national context, whereas the region in the historiography of the so-called traditional toy made from this material reveals a locus and a pathos without parallel in portuguese territory.
O brinquedo produzido em chapa de ferro estanhada (folha de flandres), vulgo lata, terá começado a ser produzido em Portugal de uma forma sistemática, em regime de meia indústria, no início de 1930. Mas, já no princípio do século XX, ou até mesmo no final do século anterior, se confecionaram brinquedos de chapa artesanais no nosso país.
Foi sobretudo na região do Porto que se deu o grande surto de fabricação de brinquedos em chapa estanhada. Na primeira metade dos anos de 1920, em Ermesinde, Luciano Moura já produzia com regularidade brinquedos com esse material e na segunda metade da mesma década, em Alfena, José Augusto Júnior fabricava gaitinhas e outros pequenos brinquedos em folha.
Os brinquedos alemães em folha litografada que aparecem em Portugal na década de 1920 estimularam a produção nacional que, de um modo geral, substitui a litografia pela pintura à mão ou à pistola. Do primeiro fabricante referido estão, contudo, identifi-
cados exemplares parcialmente litografados.
O artigo português era geralmente uma reprodução naïf do congénere estrangeiro, que era copiado à vista ou decomposto para a feitura do molde. A escolha do modelo a “imitar” obedecia normalmente a critérios de simplicidade e de exequibilidade técnica, sendo por vezes suprimidos certos mecanismos, como a fricção. O pioneiro do fabrico serial de brinquedos em folha em Portugal, Luciano Moura, utilizou na sua documentação a expressão “Brinquedos tipo Nuremberga”.
A pintura destes brinquedos é também um dos aspetos identificativos do brinquedo de folha português. É sabido, por exemplo, que os automóveis da época eram essencialmente pretos, brancos, cinzentos e de cor creme, mas as nossas miniaturas de lata apresentavam as mais variadas cores, com predominância das mais garridas. Também os brinquedos “de guerra”, por vezes, eram pintados com cores alegres.
Pode considerar-se Firmino Soares dos Reis, primo direito do grande escultor, como o primeiro
desenhista do brinquedo de folha em Portugal, porque concebia os modelos e modelava a peça. “Firmino, antes de se tornar colaborador do fabricante Luciano Moura, trabalhou no Bazar dos Três Vinténs onde funcionava uma oficina de reparação de brinquedos”1. Firmino terá sido também o autor dos desenhos originais patentes em um catálogo de brinquedos de Luciano Moura (fig. 1).
Fig. 1: Folha do catálogo n.º 1 do fabricante Luciano Moura, anos de 1920. Desenho e pintura à mão sobre cartolina (foto e documento do autor).
Segundo o arquiteto Fernando Lanhas, último diretor do extinto Museu de Etnografia e História do Porto e pioneiro no estudo e levantamento dos brinquedos tradicionais portugueses, “o desenvolvi-
1 MAGALHÃES, Carlos (1992.03.30) –«O brinquedo de folha na região de Ermesinde» in A Voz de Ermesinde, p. 18.
mento do brinquedo de folha de ferro estanhada, em artesanato e meia indústria, inicia-se a partir de 1922, nos concelhos do Porto, de Valongo e de Gondomar”2.
A contingentação das importações imposta pelo Estado Novo e o aumento da procura e o alargamento dos mercados, nomeadamente o ultramarino, incentivou os fabricantes, a partir do início da década de 1960, a incorporar progressivamente o plástico com vista à aceleração e embaratecimento da produção. Também a crise na importação de brinquedos do estrangeiro no pós-guerra tinha levado ao incremento da produção nacional e ao desenvolvimento de novas soluções formais e experimentação de processos técnicos inovadores.
A técnica de ligação dos diferentes componentes recortados e moldados da peça era feita através de solda de estanho e, mais tarde, por meio de engates (“aletas”), dobrados ou retorcidos, e anilhas (“moscas”).
2 LANHAS, Fernando (s. d.) – O brinquedo na região do Porto, caderno datilografado. Porto: Museu de Etnografia e História, p. 7.
No tempo da segunda guerra mundial, com a escassez da matéria-prima, alguns fabricantes, como Manuel Moreira da Silva, substituíram a chapa por cartão nas partes menos visíveis da peça, como as bases dos carros ou o fundo das caixas das camionetas. Outros, como Luciano Moura, combinaram a chapa com a madeira, utilizando esta nas cabines e nas bases das camionetas.
Outra caraterística peculiar, mas não exclusiva, do brinquedo de chapa da região do Porto era a reutilização dos materiais, por forma a desonerar o produto final. “Por volta dos anos 50 um brinquedo de lata reproduzido industrialmente, a partir de materiais de desperdício da indústria de embalagens de latas de conservas, custava nos mercados e lojas em média 1$50”3.
Do interesse historiográfico é de salientar a estampagem, muitas vezes feita a estêncil, de nomes de marcas e de topónimos, como, por exemplo, “Mobilgás” (autotanque), “Foguete” (locomotiva), “VW” (furgoneta), “CP” (elétrico), “Águia
3 BARROCO, Carlos; TEIXEIRA, Madalena Braz (1987) – O Brinquedo Português. Lisboa: Bertrand Editora, p. 34.
de Prata” (aeronave), “Mar Bravo” (embarcação), “Porto-Lisboa” (autocarro), “Porto-Braga” (automotora), “sorveteiro” (carro de gelados), “serviço” (pronto-socorro) ou “B. V. de Ermesinde” (autoescada), bem como de símbolos, como o escudo das quinas, a bandeira nacional e a cruz templária.
Acresce ainda a curiosidade dos “pretinhos” que aparecem como condutores de charretes e cavalos ou domadores de crocodilos, talvez com a finalidade de veicular uma imagem multirracial, embora discriminatória pelo papel desempenhado, mas sobretudo para sensibilizar o mercado colonial africano com um traço caraterístico.
Refira-se, por último, um aspeto sui generis do brinquedo de folha no concelho de Valongo, que não se manifesta em outros fabricantes do país. Trata-se das várias versões do mesmo brinquedo, com diferenças de pormenor, por vezes impercetíveis aos leigos. Assim, por exemplo, nos carros, quer o investigador quer o colecionador, distingue o produtor de um determinado modelo pela vincagem do cunho, a perfuração das rodas, o recorte dos para-choques e das grelhas frontais, etc., isto, claro,
quando a peça não está marcada com a sigla do fabricante. Para este fenómeno terão contribuído a proximidade geográfica entre os empresários, o que convidava a “copiar” o vizinho do lado ou ao intercâmbio de moldes.
2. Os principais protagonistas
Além dos dois fabricantes referidos na introdução, destacam-se ainda no concelho de Valongo as personalidades de Manuel Moreira da Silva e de Armindo Moreira Lopes, o primeiro de Ermesinde e o segundo de Alfena, de quem falaremos mais adiante.
Luciano Moura, que tinha sido relojoeiro no Porto, apesar de já fabricar brinquedos desde o início dos anos de 1920, abre a sua firma apenas em meados ou finais desta década na Rua Fernando Matos, n.º 6.
Adota a sigla “LM” que pinta à mão ou à pistola com máscara de impressão em vários dos seus modelos. Por vezes, o seu nome, ou parte dele, aparece estampado por extenso (fig. 2).
Fig. 2: Furgoneta do fabricante Luciano Moura, Ermesinde, anos de 1940. Folha de flandres pintada e arame (foto e objeto do autor).
Como já foi dito, Luciano contou nos primeiros anos com a colaboração do senhor Firmino que trabalhara no bazar portuense de Adelino Augusto Mesquita na secção de montagem e reparação de brinquedos estrangeiros, entre 1921 e 1928. “Era um empregado criativo que desenhava e moldava os modelos em gesso a partir dos quais eram feitos os moldes em ferro fundido”4.
Ao contrário de outros fabricantes do concelho, a utilização do mecanismo de corda (arame ou fita) não mereceu o seu interesse.
4 RIBEIRO, Jorge; MARQUES, Américo; MAGALHÃES, Carlos (2021) – A arte de fabricar brinquedos em Portugal. O contributo de Alfena e Ermesinde Valongo: Junta de Freguesia de Alfena, p. 84.
Luciano, que além de empresário foi autarca, faleceu no ano de 1948.
Nos brinquedos da família Moura (os irmãos Fernando e Aníbal Moura, também já falecidos, sucedem ao pai na arte de fabricar brinquedos) são curiosos os modelos (carrinhos de bebé, telefones, baús, etc.) decorados com motivos de arabescos em relevo de inspiração art nouveau. De Fernando Moura é icónico o peixe com rodas (fig. 3), que foi o logotipo do extinto Museu do Brinquedo de Sintra.
Fig. 3: Peixe com rodas do fabricante Fernando Moura, Ermesinde, anos de 1950. Folha de flandres pintada e arame (foto e objeto do autor).
Enquanto Fernando permanece nas antigas instalações da firma, Aníbal estabelece-se em 1949 em novas instalações na Rua Miguel Bombarda, n.º 472. Ambos acabaram por utilizar o termoplástico injetado nos seus artigos,
primeiro combinado com a chapa estanhada e depois em exclusivo.
Aníbal utiliza pontualmente a sigla “ITA”, em homenagem a uma filha, conhecida por “Laita”, que falecera com apenas sete anos de idade.
Em 1956, a “Luciano Moura, Sucessores”, de Fernando Moura, rejeita a encomenda de 20.000 artigos em chapa feita por uma instituição norte-americana, por falta de mão-de-obra e de capacidade de satisfação do pedido a curto prazo.
Com o final destas empresas, as instalações foram alugadas para outros fins. O velho edificado da Rua Fernando Matos, em 1992, é consumido pelas chamas quando estava alugado parcialmente à empresa “Moldacril” de reclamos luminosos e equipamentos em acrílico.
José Augusto Júnior nasceu em 1908, em Ervedosa do Douro, S. João da Pesqueira. O seu pai, Augusto José, foi agricultor e feirante antes de se estabelecer como ourives na localidade de Cabeda, Alfena, por volta de 1918. Entretanto, como possuía conhecimentos na área da latoaria, decide
alugar um espaço no lugar de Aldeia Nova, também em Alfena, onde instala uma pequena oficina e produz quinquilharias e brinquedos rudimentares em folha5.
Dez anos depois, José Augusto, encorajado pelo pai, estabelece-se como fabricante de brinquedos em casa, com um balancé e três operários, apesar de já ter anteriormente produzido umas gaitinhas em folha com palhetas feitas à mão com pedaços de fio. Com o tempo vai aprimorando os seus artigos (fig. 4).
Fig. 4: Lavatório com jarro e bacia do fabricante José Augusto Júnior, Alfena, anos de 1930. Folha de flandres pintada, arame e solda de estanho (foto do autor).
Como tinha pouca experiência aprendeu a arte com Luciano Moura de Ermesinde, mas sempre com a ideia de melhorar as peças e ultrapassar o seu concorrente no mercado.
Por volta de 1930, compra um terreno em Alfena, no lugar do Outeiro, e monta uma fábrica ao lado da sua casa. Foi a feiras de brinquedos na Alemanha (Nuremberga), onde visionou modelos e conheceu técnicas de fabrico e mecanismos, como o da corda de fita metálica.
5 RIBEIRO, Jorge; MARQUES, Américo; MAGALHÃES, Carlos (2021), p. 101.
Em 1946 cria uma nova fábrica em novas instalações na Rua 5 de Outubro, Ermesinde, estrategicamente próxima da estação do caminho de ferro, a que deu o nome de “A Industrial de Quinquilharias de Ermezinde”, assinalando o início do período áureo da fabricação do brinquedo em Portugal no pós-guerra. Esta fábrica foi até ao ano de 1974 a maior unidade industrial de fabrico de brinquedos em Portugal, chegando a ter cerca de oitenta operários. O galo com rodas (fig. 5), ao que hoje sabemos talvez já produzido em Alfena, é um conhecido exemplar desta fase. Consta da capa do livro “A Arte de Fabricar Brinquedos em
Portugal - O contributo de Alfena e Ermesinde”, uma edição da Junta de Freguesia de Alfena.
Fig. 5: Galo com rodas do fabricante José Augusto Júnior, Ermesinde, anos de 1950. Folha de flandres pintada e arame (foto e objeto do autor).
Segundo o próprio (em entrevista concedida ao autor destas linhas e ao colecionador Carlos Anjos, no ano de 1984), Augusto Júnior produziu o primeiro carro de corda de fita de aço em Portugal, cópia da marca estrangeira “Gama”, e fez um investimento avultado em maquinaria para produzir moldes, chegando a ter uma equipa de oito serralheiros, com o duplo objetivo de reduzir custos e evitar que os seus modelos pudessem ser pirateados pelos próprios fabricantes de moldes.
100
Utilizou as siglas “JA”, “JAJ”, ainda na fase de Alfena, e “JAJ” e “Jato”, em Ermesinde, sendo que esta última corresponde já ao período em que José Augusto combina o polietileno e a borracha com a chapa de ferro.
No ano de 1977 cede as licenças e alvarás de produção aos seus filhos Joaquim e Valdemar dos Santos Penela, que prosseguem a produção de brinquedos com a sigla “Pepe”, acrónimo de Penela & Penela.
José Augusto faleceu em 1987, depois de uma vida quase inteiramente dedicada aos brinquedos.
Manuel Moreira da Silva. Conhecido por “Nicró”, dos quatro empresários referidos neste artigo é o menos noticiado, apesar dos seus brinquedos estarem bastante familiarizados entre os colecionadores.
Segundo o catálogo da “1.ª Mostra de Automóveis Miniatura”, realizada em 1981 no Ateneu Comercial do Porto, com o espólio do Museu de Etnografia e História, Manuel Moreira já fabricava carros de chapa nos anos de 1928 a 1930. “Com apenas vinte e cinco anos, decide criar o seu próprio
negócio, uma fábrica de graxas para calçado, localizada na Rua 5 de Outubro, em Ermesinde”6. Daí talvez a sua vocação para o fabrico de brinquedos no mesmo material, de que foi um original produtor.
Foi o grande massificador do sistema de corda em Portugal, uma vez que introduziu o mecanismo de corda em rolo de arame, como os brinquedos da marca “Lehmann” dos anos de 1930, antes de José Augusto Júnior ter iniciado nos anos de 1950 o mecanismo de corda de fita metálica, que também utilizou massivamente. Muitos dos seus modelos de viaturas apresentam a versão com corda e a versão sem corda.
Utilizou também um curioso mecanismo de disparo (fig. 6) que permitia o “lançamento” dos bólides de corrida, em alternativa ao mecanismo de corda mais lento.
e arame, com mecanismo de disparo (foto do autor)
Nos seus brinquedos utilizou as siglas “MMS”, “MM”, “MS” ou “M” e as suas peças são inconfundíveis pela escala ligeiramente superior à dos modelos congéneres dos fabricantes conterrâneos, pela robustez dos mesmos e, como já referimos, pelos mecanismos introduzidos.
Nos anos de 1960, alguns dos seus modelos de elétricos, automotoras e autocarros, que na década de 1980 ainda eram comercializados em bazares portuenses, foram litografadas pelo fabricante e comerciante portuense Adriano Coelho de Sousa, que os siglava com a sua própria marca.
6 RIBEIRO, Jorge; MARQUES, Américo; MAGALHÃES, Carlos (2021), p. 161.
Armindo Moreira Lopes. Filho de agricultores, nasceu em Alfena no ano de 1919. É o último da tétrade de fabricantes de folha de flandres de Valongo, pois foi o que
Fig. 6: Carro de corrida do fabricante Manuel Moreira da Silva, Ermesinde, anos de 1950. Folha de flandres pintada
começou e encerrou mais tarde o negócio. Antes de ser empresário foi picheleiro. Depois foi empregado de Augusto Júnior e casou com uma antiga empregada de Luciano Moura.
Quando aos dezoito anos de idade se estabelece na Rua do Outeirinho, no lugar da Codiceira, Alfena, já sabia da arte. A sua oficina começou a laborar com quatro operários, as ferramentas que trouxe do seu ex-patrão e os dois balancés manuais que, entretanto, adquiriu7.
Propôs-se editar tantos modelos quantos os dias do ano. A inspiração para tal façanha ia buscá-la ao dia a dia. Via um novo carro, por exemplo, e vinha para casa modelar em gesso. A obsessão era tal que foi proibido pelo médico de trabalhar num projeto seu que consistia em fazer uma harmónica que tinha visto numa revista alemã.
As suas siglas foram “AL” e “AML”, quando não um simples Δ, estilização do “A” de Armindo. A sigla “SCR” que aparece impressa nos laterais do seu camião de reboque assinala a encomenda de brin-
quedos que teve da “Sociedade Corticeira Robison”, de Portalegre, para esta firma oferecer aos filhos dos colaboradores no Natal de 19808.
Armindo Lopes foi o primeiro empresário da região a substituir as carreteiras, mulheres que transportavam mercadorias em carretas, adquirindo para o efeito uma carrinha da marca “Fordson”, hoje propriedade da Junta de Freguesia de Alfena.
Em 1960, quando se deu a invasão do plástico, Armindo tinha 28 funcionários e para não fechar a fábrica passou a produzir ferragens e artigos para escritório.
No final dos anos de 1970, aquando do fluxo de interesse pelas questões do património etnográfico e cultural, e do artesanato em particular, começou a ser visitado por escolas de todo o país. Ofereceu quinze coleções para mostruários nas escolas, nomeadamente à Escola Augusto Gil do Porto.
7 RIBEIRO, Jorge; MARQUES, Américo; MAGALHÃES, Carlos (2021), p. 185.
8 RIBEIRO, Jorge; MARQUES, Américo; MAGALHÃES, Carlos (2021), p. 192.
Fig. 7: Camioneta de carga do fabricante Armindo Moreira Lopes, Alfena, anos de 1960. Folha de flandres pintada e arame, com mecanismo de báscula (foto e objeto do autor).
Apercebendo-se que os brinquedos tinham novamente saída, começou a fazer amiúde novas remessas, para satisfazer pequenas encomendas de um número limitado de artigos.
Os seus filhos gémeos Carlos Manuel e Carlos José da Silva Lopes, sócios do pai, ganharam também o gosto pela arte, atendendo a pedidos do estrangeiro e de Portugal, mormente por parte de colecionadores e de lojas de artesanato. Mas queixavam-se, como o pai, de não haver qualquer tipo de apoio estatal para um artigo em vias de extinção. Mantiveram teimosamente um mostruário reduzido da vasta produção da fábrica, procurando em feiras de trocas e junto de colecionadores recuperar alguns dos seus modelos, um dos quais foi facultado pelo autor do presente
artigo - uma camioneta de carga basculante, diferente do modelo fotografado (fig. 7), mais antigo.
Armindo Lopes faleceu em 2006 e os seus dois filhos na década seguinte.
3. Conclusão
Além da chegada ao país de brinquedos provenientes do Japão, de Macau e da China, fortemente competitivos no mercado nacional, e da convulsão social pós pronunciamento militar de abril de 1974, que conduziu a uma justa valorização da mão-de-obra e ao incremento dos direitos laborais, precários no Estado Novo, também a apertada legislação comunitária sobre a segurança dos brinquedos obstou irremediavelmente ao eventual relançamento desta indústria, nomeadamente a norma europeia EN71-1 que regulamentou as propriedades mecânicas e físicas dos brinquedos, publicada em 1979 no âmbito de uma comissão técnica criada pelo Comité Europeu de Normalização (CEN). O conteúdo desta norma foi depois revisto por forma a aproximar as legislações dos Estados
membros quanto à segurança dos brinquedos. Em 1982, Portugal como país membro do CEN aprovou a referida norma.
Até ao final dos anos de 1940, os brinquedos da região não aprimoravam pela técnica, fruto da fraca qualidade da maquinaria (prensas e cunhos) e dos moldes, o que provocava na peça as típicas engelhas, ou seja, a imperfeita correspondência entre o molde e o contramolde. Também a pintura, nesta “primeira época” do brinquedo de folha português, era feita com tintas oleosas pouco obliterantes e de secagem lenta, que se traduzia na “transparência” das cores, handicap que foi sendo ultrapassado com a progressiva utilização de tintas de esmalte das marcas “Ripolin” ou “Atlantic”.
A litografia da chapa não foi muito utilizada pelos artífices locais, à exceção da sua insipiente utilização nas primeiras peças de Luciano Moura e dos modelos de Manuel Moreira da Silva, já aludidos, e das pás e baldes de praia de Armindo Moreira Lopes.
Em relação à pintura patenteiam-se também as cores irrealistas dos brinquedos de “guerra”
(embarcações, aviões e carros de combate), por vezes pintados com cores vivas, “mais lembrando uma peça de circo do que uma cópia de um canhão de guerra”9.
Mas estas dificuldades do foro tecnológico conferiram ao brinquedo português, e concretamente aos artigos produzidos em Valongo, um “estilo” próprio, quase uma marca identitária, hoje tão procurados pelos colecionadores e curiosos precisamente pela sua rusticidade e permissividade cromática que os torna tão “humanos” e vibrantes.
Também a parafernália de escalas (que subvertem a escala 1/43 das tradicionais miniaturas do colecionismo), de motivos decorativos (geométricos e vegetalistas, por exemplo) e de tipos (viaturas, mobílias e equipamentos domésticos, animais e figuras humanas com rodas e pás giratórias, etc.) os torna tão apreciados.
Há hoje uma tendência para chamar a estes brinquedos “tradicionais”, o que resulta do facto de os mesmos não se poderem liminarmente catalogar como
“artesanais” ou “industriais”, daí preferirmos considerá-los como produtos de uma “meia indústria” que combina a metodologia industrial, nomeadamente a produção em série, com processos de fabrico de feição artesanal, como a pintura à mão. “Os brinquedos em Valongo nasceram em indústrias, umas familiares, outras de vulto, ou seja enquadrados nas duas últimas categorias”10.
Respingue-se, por último, que estes brinquedos em folha de flandres, apesar da sua relativa importância no contexto produtivo nacional, nunca alcançaram uma dimensão comercial considerável, cuja razão “poderá estar [n]o facto de o brinquedo não ser exportado e de o consumo interno se destinar a um pequeno mercado […] Portugal não tinha nesta época uma classe média endinheirada”11.
10 RODRIGUES, Sandra (2019) – Brinquedo
Tradicional Português - uma história a descobrir no concelho de Valongo Valongo: Câmara Municipal de Valongo, p. 25.
11 ANJOS, Carlos; MOREIRA, João Arbués; SOLANO, João (1997) – O Brinquedo em Portugal. 100 anos do brinquedo português, 1.ª edição. Porto: Livraria Civilização Editora, p. 16.
Bibliografia
ANJOS, Carlos; MOREIRA, João Arbués; SOLANO, João (1997) – O Brinquedo em Portugal. 100 anos do brinquedo português, 1.ª edição. Porto: Livraria Civilização Editora.
DIAS, Cynthia (1982) – Brinquedos, caderno datilografado. Lisboa: (s. n.).
LANHAS, Fernando (s. d.) – O brinquedo na região do Porto, caderno datilografado. Porto: Museu de Etnografia e História.
MAGALHÃES, Carlos (1992.03.30)
– «O brinquedo de folha na região de Ermesinde» in A Voz de Ermesinde.
RIBEIRO, Jorge; MARQUES, Américo; MAGALHÃES, Carlos (2021) – A arte de fabricar brinquedos em Portugal. O contributo de Alfena e Ermesinde. Valongo: Junta de Freguesia de Alfena.
RODRIGUES, Sandra (2019) –Brinquedo Tradicional Português –uma história a descobrir no concelho de Valongo. Valongo: Câmara Municipal de Valongo.
No centenário da morte de Humberto Beça (1877-1923) – o professor, escritor e patrimoniólogo
José Manuel Pereira
Doutorando em História jomape62@gmail.com
Como muitos, para melhor percorrer o seu percurso de vida, bastaria somente limitarmo-nos à dimensão do seu epitáfio, nascido que foi no ano de 1877, inesperadamente desaparecido em 1923. Mas não. Tivemos de ir mais longe, para o conhecer de perto.
Resumo:
Com alguma recorrência, ligamos o nome de Humberto Beça apenas e somente, à autoria da primeira Monografia de Ermesinde, publicada em 1921. Ao fazêlo, reduzimos e minimizamos o seu intenso e vasto percurso em diferentes áreas do saber, no ensino comercial, no jornalismo, no património, no romance histórico ou na poesia. Mais atentos, encontramos em Godofredo Humberto Ferro de Madureira Beça, um incontornável contestatário onde a
alma, de quando em vez, se tornou o laboratório da sua incómoda escrita e do seu pensar..
Palavras-chave: Ermesinde, militar, professor, escritor, patrimoniólogo .
Abstract:
With a certain degree of recurrence, we associate Humberto Beça’s name exclusively with the authorship of the first Monograph of Ermesinde, published in 1921. In doing so, we reduce and mini-
mise his intense and vast career in different fields of knowledge, in commercial teaching, journalism, heritage, historical novels and poetry. More attentively, we find in Godofredo Humberto Ferro de Madureira Beça an unavoidable contester, where the soul, from time to time, became the laboratory for his unsettling writing and thinking.
É em meados do séc. XVIII que vamos encontrar no Distrito de Bragança, as raízes e identidades dos denominados Beças1 de Outeiro. Naturais do Nordeste Transmontano, os Concelhos de Bragança, Freixo de Espada à Cinta,
1 O apelido Beça é um aportuguesamento da forma Baeza ou Baeça, sobrenome de origem espanhola originário da tomada da praça com o mesmo nome no sul de Espanha aos mouros. No reinado de D. Fernando, a sua migração torna-se evidente em todo o território luso, onde o apelido original tomou a forma de Beça ou Bessa. Cfr. Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura. Certo é que nas Memórias do Abade de Baçal, encontramos nos registos documentais brigantinos, múltiplas referências a este antropónimo já em finais do séc. XVI.
Izeda, Miranda do Douro, Mirandela, Moncorvo, Vila Real e Vinhais, registam desde logo, os testemunhos do seu nascimento e das suas diferentes influências na História desta região, destacando-se desde logo, Abílio Augusto Madureira Beça, grande impulsionador da construção e abertura da linha do Tua até Bragança. Na sua maioria deixaram assinalável e reconhecido legado em diversas áreas de intervenção local, regional e nacional, tais as carreiras enveredadas e os cargos e funções desempenhados, também estes, nos diferentes domínios de intervenção política, civil, educativa e militar.
Ainda na centúria de Setecentos, o casamento de Manuel José Ferro com Rita de Beça, deixa-nos uma extensa árvore genealógica que nos últimos três séculos e até aos dias de hoje, se radicou nos três Continentes: Europa, África e América.2 De todos eles, igual-
2 Numa breve abordagem genealógica, deste casamento, nasce em 1775 Sebastião António Ferro de Beça Morais Loureiro que casa com Angélica Teresa Martins Mora. Do casal, nasce José António Ferro de Madureira Beça, cujo enlace com Maria Augusta de Morais Beça, nasce António José Ferro de Madureira Beça. A descendência prossegue com Aníbal Augusto
mente com maior evidência e bem familiarizado com a antiga Aldeia de S. Lourenço de Asmes, salientaremos a figura de Godofredo Humberto Ferro de Madureira Beça, destacando neste, os percursos de um ex-militar que, nas diferentes áreas, maioritariamente através da escrita, defendeu e propagandeou algumas causas, com maior evidência no ensino e na incessante defesa do património militar e monumental.
Às 14 horas do dia 10 de setembro de 1877, a freguesia de Santa Maria (Bragança) regista o nascimento de Humberto Beça, nome pelo qual é vulgarmente conhecido, mas bem diferente do registado no seu assento de batismo que o identifica como Gothofredo Humberto Bello dos Santos Salgueiro3 filho de Carlos Augusto Salgueiro4 e de Ernestina Adelaide Ferro de Madureira Beça.
Ferro de Madureira Beça (1856) que viria a casar com Mercedes de Magalhães Beça. Desta sucessiva linhagem, resulta o nascimento de dois filhos: a primeira mulher, Maria do Céu Beça Vaz de Oliveira, solteira que foi, não deixou descendentes e Alfredo Magalhães Beça que casado no Brasil com Clarice Miranda Corrêa, tem Aníbal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto que viria a casar com Eugénia Turenko Beça. Uma longa geração que perdura até aos dias de hoje, como, entre outros, Antónia da Assunção Ferro de Beça (1805), António Joaquim Ferro de Beça (1818), Arminda Adelaide Ferro de Madureira Beça (1842), António José Ferro de Madureira Beça (1846), Adriano Acácio Madureira Beça (1857), Maria Fernanda da Silva Fidalgo Ferro de Beça, Francisco Alberto Fidalgo Ferro de Beça, Mariana Ferro de Beça, Geninha Ferro de Beça, Pedro Ferro de Beça, Ana Margarida Salina Ferro Rodrigues, Ana Luísa Rosa Ferro de Beça ou Francisco Alberto Ferro de Beça.
Assento nº 13 - Aos dezasseis dias do mez de Fevereiro do anno de mil e oito centos setenta e oito n’esta Igreja parochial da Sé desta cidade, concelho e Diocese de Bragança, o reverendo Cura coadjuntor Felis Antonio de Novaes, baptisou solennemente um individuo do sexo masculino, a quem deu o nome de Gothofredo Humberto Bello dos Santos Salgueiro, que nasceu na freguesia de Santa Maria d’esta cidade pelas duas horas da tarde do dia dez do mez de
3 Aqui, como em múltiplos outros exemplos, confirma-se o tradicional hábito dos rapazes herdarem os apelidos dos pais e as raparigas a herdarem os sobrenomes das mães. No caso de Humberto Beça, esta designação onomástica prolonga-se enquanto ao serviço do exército, alterado posteriormente, para o sobrenome Beça, tal como ocorre aquando do seu casamento.
4 Oficial do Exército, filho de José Pedro Salgueiro e de Joana Augusta de Belo Salgueiro, nasceu em Bragança a 17 de abril de 1853.
setembro do anno de mil e oito centos setenta e sete, filho legítimo de Carlos Augusto Salgueiro, sargento primeiro de Cavallaria sete, natural da freguesia de Santa Maria d’esta cidade, e de Dona Ernestina Adelaide de Madureira Beça, natural da freguesia d’Outeiro, deste Concelho, recebidos na dita freguesia de Santa Maria, parochianos da Sé, moradores na rua do Pa?o, neto paterno de José Pedro Salgueiro, e Dona Joanna Augusta Bello Salgueiro, materno de José António Ferro Madureira Beça. Foi padrinho o avô materno José António Ferro Madureira Beça, casado, escrivão de Direito desta comarca, e ? como madrinha o avô paterno José Pedro Salgueiro, casado, capitão de cavalaria sete 5
No ano seguinte, a 9 de junho nascia a sua irmã Sara Eugénia. Posteriormente, a residir na
5 Informação disponibilizada por Ricardo Ribeiro (Fundador e Presidente da Al Henna) que na última década, pesquisou e recolheu, informação histórica e textos inéditos sobre a Freguesia de Alfena, mas, não obstante o trabalho profícuo, publicamente reconhecido pelo Arquivo Distrital do Porto, continua sem receber a atenção e direito que a própria legislação autárquica determina e impõe. Dá que pensar…
Freguesia de Esgueira (Aveiro) vamos encontrá-lo a frequentar os estudos primários e liceais que se estendem ao Porto onde, matriculado no Liceu Rodrigues de Freitas, conclui-os em 1893. Em 1896 inscreve-se no Instituto Industrial e Comercial do Porto, saindo em 1899, diplomado com o Curso de Guarda-Livros. e na Escola do Exército, no curso de Administração Militar. Eventualmente, esta última opção surgiria pelas influências de seus tios Desidério Augusto Ferro de Beça (Militar, Senador e Governador Civil de Bragança), Celestino Jacinto de Madureira Beça (Major), Augusto César de Madureira Beça (Coronel de Infantaria) e Adriano Acácio de Madureira Beça (General).
Logo, no percurso de seus familiares diretos, em 30 de julho de 1895, Humberto Beça assenta praça no Regimento nº 18 de Infantaria do Príncipe Real “como Voluntário, para servir por doze annos”6, pronto de instrução de recruta em 25 de setembro do mesmo ano. Progredindo na carreira militar, é promovido a aspirante a 4 de novembro de 1900 por ter terminado o respetivo curso. Em maio de 6 Livro de Matrículas do Exército.
1902, já Alferes, é afastado da vida militar por ter tido um acidente equestre que o incapacitou para a continuidade ao serviço. Tendo ingressado na carreira militar aos 17 anos e sendo esta a tradição de seus antepassados, acreditamos que a sua saída precoce, em muito alterou o seu comportamento e atuação nos anos seguintes.
De regresso à vida civil, a 11 de abril de 1904 assistimos ao enlace matrimonial com Maria José Gomes de Brito e Beça, iniciando-se igualmente, com o Jornalismo, um novo percurso profissional. Desde então, a sua vida entrelaça-se alternadamente em espaços geográficos, diferentes e simultaneamente complementares: Bragança, Aveiro (Esgueira), Murtosa, Ermesinde e Porto. Factos e leituras que abordaremos seguidamente e em diferentes dimensões, encontrando nos seus escritos e preleções, escondidas metáforas que aqui e ali, regista com fervor, combatendo nelas a disciplina militar que o marcara.
2. O Professor
Inesperada e prematuramente retirado da vida e carreira militar, é na cidade do Porto e no exercício da docência que virá a encontrar igualmente a sua relevante atividade, primeiro como professor efetivo da Escola Prática Comercial Raúl Dória, lecionando as cadeiras de Contabilidade (1912/13) e, no início dos anos 20, no Instituto Comercial do Porto. Ainda no início do século, foi igualmente professor no Colégio de Ermesinde.
Na área da instrução comercial, é-lhe reconhecida a publicação de uma extensa linha editorial, obras e manuais escolares, opções de estudo e leitura a outros estabelecimentos de ensino da prática comercial. Com a implantação da República surge a dirigir o Guarda-Livros7 e dois anos depois, assume a direção da Escola Secundária de Comércio, da qual foi fundador.
Da sua autoria, temos o Anuário da Escola Raul Dória (1911-12); Anuário da Escola Raul Dória (191213); Anuário da Escola Secundária de Comércio (1912-1913); Borrão nº 1 (1913); Noções de Comércio – 1º vol. (1913); Prática de Escrituração
7 Propriedade da Escola Prática Comercial Raúl Dória. Cfr. VIEIRA, Mário Lázaro Santos - A Escola Prática Comercial Raul Dória: memória de um espaço de Ensino Comercial (1902-1964). Dissertação de Mestrado em História e Educação. Porto: FLUP, 2020. p. 76.
Comercial - 1º ano (1913); Noções de Aritmética (1914); Anuário da Escola Secundária do Comércio (1915); Prática de Escrituração – 2º vol. (1917); Noções de Comercio – 2º ano (1917)8; O Ensino Comercial em Portugal (1918); Noções de Comércio, 1ª parte – 2ª ed. (1922); Borrão nº 3; Pratica da Escrituração Comercial - 2ª ed. (1921) e Noções de Aritmética e Correspondência Comercial (1921).
Na Escola dirigida por Raúl Dória, em alguns atos comemorativos, insurge-se com as reformas do ensino comercial e industrial, defendendo que o Ministério da tutela deveria iniciar as suas reformas educativas, primeiro pelo ensino comercial e depois o industrial. Já em 1918, menciona a “baralhada de preparatórios” com que se apresentavam à frequência no IICP os alunos interessados, denunciando a flagrante desconexão organizacional dos cursos comerciais que aí se professavam.
8 Obra dedicada a seus Tios, o General Adriano Acácio de Madureira Beça e o Coronel de Infantaria Augusto César de Madureira Beça. Ambos participam na Monarquia do Norte, cfr. SANTOS, Miguel António Dias – Antiliberalismo e Contra-Revolução na I República (19101919). Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009.
No início da Década 20, por diploma de nomeação de decreto de 27 de outubro se 1920 e o visto dado pelo Conselho Superior de Administração Financeira do Estado de 6 de Dezembro do mesmo ano, o então Ministro do Comércio e Comunicações, Francisco Gonçalves Velhinho Correia, nomeia-o professor efetivo do Instituto Comercial do Porto, Assistente da 11ª Cadeira, onde tinha sido aluno, lecionando agora, a partir de Janeiro de 1921, a cadeira de Contabilidade Geral.9 Na verdade, a Folha de Vencimentos de Janeiro
de 1921, coloca-o a auferir o vencimento mensal de 162$52.10
Aqui, ao serviço da docência, conhece outros colegas, também professores, ora a lecionar no Instituto Superior de Comércio11 como no Instituto Comercial do Porto,12 alguns deles com carreira firmada na política, e, naturalmente com a matriz republicana dos anos 20. Alfredo Henrique da Silva, António Dias Pimentel, Artur Malheiro, Caetano Vasques Calafate, Damião
10 Em Observações, o Mapa Económico para a gerência de 1920-1921, do Instituto Comercial do Porto, refere que: “Acumula com o lugar de professor provisório da 2ª Disciplina do Curso Especial de Aperfeiçoamento Comercial, com o vencimento de Esc. 35$00.”
9 Cfr. Diário do Governo, I série, nº 219, de 29 de outubro de 1920, pp. 14821495. Regente da 11ª cadeira (1ª parte) do Curso Médio do Comércio.
11 Av. Rodrigues de Freitas, nº 267, posteriormente instalações da PIDE/DGS. 12 Rua de Entreparedes, à Batalha.
Marques Moura, Ezequiel Campos, Francisco Xavier Esteves, José
Domingues dos Santos13, Luiz
Inácio Woodhouse, Mem Roberto
Couceiro de Melo Leote, e Raúl
António Tamagnini de Miranda
Barbosa, são alguns dos docentes influentes com quem se cruzou na sua curta passagem pelo Ensino
Comercial Médio e Superior.
A 2 de abril de 1923 é-lhe renovado o diploma de nomeação no
Instituto Comercial do Porto.14 Em junho de 1923, a acumulação de funções docentes estende-se à Escola Preparatória Mouzinho da Silveira.15
Nesta vertente educativa, em 1912 participa no 3º Congresso Pedagógico, organizado pela Liga Nacional de Instrução, com a comunicação sobre “Educação cívica na escola primária”: Refere que no período das conquistas, a alma nacional retemperava-se na refrega das batalhas ou no assalto e defesa das fortalezas; na época presente essa renovação da consciência coletiva, esse renascer da vitalidade nacional, só se faz por intermédio da Escola nos seus diferentes degraus, mas principalmente por intermédio da Escola Primária com quem a grande massa
13 Professor, advogado, jornalista e Primeiro-Ministro. Natural de Matosinhos, entre 1918 e 1926 foi deputado em três legislaturas, desempenhando igualmente cargos ministeriais (Trabalho, Agricultura, Comércio, Justiça e Justiça e Guerra interinamente). Entre 22 de novembro de 1924 e 15 de fevereiro de 1925 foi chefe de Governo, assumindo simultaneamente o Ministério do Interior. Filiara-se no Partido Democrático de Afonso Costa, onde viria a ocupar lugares cimeiros na sua orgânica. Candidatou-se como deputado pelo Porto e foi sucessivamente eleito durante três legislaturas, entre 1918 e 1926.
14 O Visto do Conselho Superior de Finanças é dado em 13 de junho de 1923.
15 “Acumula com o lugar de professor provisório da Escola Preparatória Mouzinho da Silveira com o vencimento de 600$00, recebe mais 35$00 mensais por este Instituto por estar a reger um desdobramento em Calculo, do Curso Especial.” Cfr. Folha do Ano Económico de 1922/1923, do Instituto Comercial do Porto (Folha de Vencimentos do Pessoal do Quadro Provisório e Contratado. – junho de 1923).
popular está mais diretamente em contacto.
A educação cívica tem de começar imediata e intensivamente nas escolas existentes e deve começar a dar à criança, na idade que a pedagogia o entender, a noção de homem - cidadão, ligar esta noção com a noção de família – o lar -, depois a Pátria, a colectividade nacional, o solo, a língua, os costumes, o símbolo da Pátria – a bandeira.” Num outro plano, Humberto Beça defende “a necessidade de organizar com urgência o ensino comercial, aquele justamente de que todos esperam o ressurgimento do país, mas aquele também que tem sido sempre, tanto na monarquia como na República, votado ao mais completo desprezo”16.
3. O jornalista, publicista e escritor
Não obstante o percurso na sua formação cívica, militar e educativa, será através do jornalismo, notoriamente como articulista e publicista que o encontramos, amiúde, preenchendo páginas e 16 NÓVOA, António (Dir.) (2003) – Dicionário de Educadores Portugueses. 900 biografias de homens e mulheres que se dedicaram ao ensino e à educação nos séculos XIX e XX, 1ª Edição, [s. l.]: Edições ASA, pp. 157-158.
colunas, nos diferentes periódicos que proliferam em várias regiões do país.
Através da imprensa, munido da persistente resiliência de um destemido transmontano, Humberto Beça dá largas aos seus manifestos, defendendo e propagandeando os diferentes temas que o aborrecem ou indignam, zarpando nas diferentes colunas, laivos incómodos, fiel que é à sua matriz republicana e evolucionista. Sem demora, com ligações a Aveiro, o seu batismo no jornalismo é-nos dado como redator do Jornal da Murtosa. Findado este, assume a direção do semanário ilustrado O Murtosa que apenas sobreviveu seis meses.
De imediato, assume igualmente a direção de O Povo da Murtosa, período em que a sua colaboração se estende à A Ilustração Portuguesa, A Ilustração do Povo, O Espelho, O Século e no Campeão das Províncias, este em Aveiro. No jornalismo, foi redactor do Jornal de Murtosa, diretor de O Murtosa e
do Povo de Murtosa. Colaborou em: O Século, Campeão das Províncias (de Aveiro), O Cunha, Gazeta das Aldeias, Foto-Revista, Diário de Notícias, O Norte, Gazeta de Bragança, Pátria Nova, Democrata (de Aveiro), A Capital, A Imprensa Portuguesa, O Primeiro de Janeiro, A Montanha, O Correio da Feira, o Correio do Minho. Foi redator da revista técnica: O Guarda-Livros e da Escola Secundária de Comércio (que ele fundou).
Incessantemente, em novos quadrantes geográficos, outros periódicos aguardam os seus escritos e desabafos. No Porto, colabora em O Cunha, Gazeta das Aldeias, O Norte, O Primeiro de Janeiro e A Montanha. Em Bragança, chega à Gazeta de Bragança e à Pátria Nova. Em Guimarães, publica n’ A Velha Guarda. Em Lisboa, entra no Diário de Notícias, n’ A Capital e na Imprensa Portuguesa. Aveiro concede-lhe colaboração no Democrata. Entre outras localidades, O Correio da Feira e o Correio do Minho registam igualmente artigos da sua lavra. Em 1917, na obra Noções de Comércio - 2º ano, confessando que a matéria ali vertida é toda de sua autoria, faz eco de um plagiador17
17 Refere-se a João Camilo Félix Correia.
que acusando dessa façanha, ele próprio se escondia dos artigos publicados e reconhecidamente plagiados. A contenda estende-se à imprensa onde O Democrata18 e A Monarquia19 dão eco à troca de galhardetes.
Em “Os alemães… hão-de vencer…” incomoda-se e satiriza a permanente legião de agourentos e falsos patriotas que, a todo o momento vaticinavam a irremediável desgraça da legião de combatentes portugueses na Primeira Grande Guerra que, não mais esperançavam na Flandres,
18 Semanário Republicano Radical d’Aveiro, Ano 11, nº 527, de 7 de junho de 1918, p. 1.
19 Diário Integralista da Tarde, nº 419, de 19 de julho de 1918, p. 1. Também Campeão das Províncias, ano 70, nº 6749, de 2 de julho de 1921, p. 3.
um cemitério de alma caídas e derrotadas pelo vigoroso exército alemão. Cumulativamente, à extensa produção de escrita jornalística, a igual percurso ocorre com a produção literária em diferentes temáticas. Vamos, pois, encontrar a sua autoria em A Tomada de Chaves – poemeto comemorativo do centenário da Guerra Peninsular (1909); Justiça de Castela – poemeto sobre a morte de António Ferrer (1909) e Sonhos d’ Alma – plaquete de versos (1910). Neste mesmo ano, O Tripeiro publica No Cerco do Porto: um episódio de combate de Valongo. 20 Nos anos seguintes, deparamo-nos com A Bandeira Portuguesa – versos de resposta a outros, sob igual título (1911)21; A Árvore – poesia para a Festa da Árvore, promovida pelo Século (1911); Azulejos – versos
20 BEÇA, Humberto (1910) – «No Cerco do Porto: Um Episódio do Combate de Valongo», in O Tripeiro. Porto: Tipografia Industrial Portuguesa, Ano 3, nº 75, (20 de julho de 1910). pp. 43-44.
21 Resposta à Ilustre Poetiza D. Lutgarda de Caises. O debate sobre as cores da nova bandeira teve grande repercussão, chegando a ter interpretação poética numa polémica que estalou na imprensa entre duas personalidades destacadas da literatura portuguesa da época, a poetiza Luthegarda de Caires, defensora da manutenção das cores azul e branco, e o poeta Humberto Beça, defensor do verde-rubro.
(1912) e Excertos da Juventude –versos (1917)22. Em Sob a Metralha –
Episódios da Grande Guerra (1919)23 adverte:
“Dos meus contos de guerra não me cumpre falar, eles são apenas a trasladação mais ou menos dramatizada, mas real, de descrições encontradas nos livros de guerra estrangeiros, nas inúmeras revistas e volumes franceses, ingleses, suíços e portugueses, que constituem a minha biblioteca da guerra.”
Em 1921, sai a público Ermezinde – monografia rural. A sua edição, justificada por motivos que adiante iremos referir, é igualmente, ponderadas as limitações à época, um importante recuerdo sobre uma pequena Aldeia campestre, cortada pelas águas do Leça. À fecundidade monográfica referida, acrescente-se ainda – sem data de publicação – Fiat Lux; Musa
22 Dedicado à sua esposa, Maria José Brito e Beça.
23 A 19 de janeiro de 1918, em Sob a Metralha, insurge-se contra Vicente Blasco Ibánez pelas suas posições sobre o papel de Portugal na Primeira Grande Guerra. No ano seguinte, agora em setembro, acudindo ao apelo de “A Junta Patriótica do Norte” que “pedira em circular aos jornais do norte do país, que a coadjuvassem na propaganda da guerra”, fá-lo, representando o Jornal “O Democrata”, resultando os seus escritos na republicação em outros periódicos, nomeadamente nos jornais ingleses.
Trocista; Flocos de neve e Os Castelos das Beiras. Ainda no ano de 1921, encontramos outras duas obras em preparação: Dicionário Universal e Noções de Geografia Geral.
3.1 – Sobre a monografia de Ermezinde
Os séculos XIX e XX, por motivos políticos, escolásticos e de assinaláveis convulsões sociais, deu lugar, dentro e fora das Academias, de forma generalizada, a uma assinalável procura, pesquisa e recolha de documentos antigos, escritos sobre factos e memórias, desencadeando em si, no nascer de novas ciências e ramos de saber, outras abordagens sobre estudos históricos e humanísticos. Trata-se da Escola dos Annales, alargando o território
do historiador, numa concepção global e interdisciplinar. É neste mesmo enquadramento que surgem as primeiras crónicas, monografias temáticas e locais, registo e divulgação de diferentes localidades em variadas latitudes, com maior ou menor observância nas suas contínuas descrições sociais, biográficas, geográficas, etnográficas, antropológicas e outras. Desta forma, onde tudo é e faz História, melhor nos identificamos com quem estamos e onde, quais as nossas pertenças, trajetos e aventuranças, enquanto povo e animais sociais.
Entre nós, cem anos depois da sua breve passagem por terras de
Asmes, desconhecendo a extensão da sua produção monográfica e o seu conturbado inconformismo, apenas nos habituamos a ligar o nome de Humberto Beça a duas realidades mais conhecidas e evidentes: a publicação de Ermezinde – monografia histórico-rural (1921) e, mais recentemente a atribuição toponímica na Cidade, através da Rua Humberto Beça e Praceta Humberto Beça. Mas antes destas datas, já a Ilustração Portuguesa, em diferentes capas ou no seu interior, destaca paisagens de uma aldeia perdida nos arredores do Porto, com maior expressão nos anos de 1918 e 1919. Na verdade, a sua memória e trajeto, deveriam ter ido mais longe para ser conhecida mais perto. Nesta matéria, a Comissão de Toponímia, de cariz restrito e pessoalizado, não atende e pouco se cuida em diferenciar os homens bons dos bons homens. Uma mera e simples inversão de palavras que, em tudo, apenas e somente traduz significados muito diferentes, alterando de todo, a verdade histórica.
Das “duas palavras de prólogo” avançadas por Humberto Beça, encontramos as verdadeiras razões, fundamentos e preocupações que
fizeram trazer à luz do dia, a necessária e pertinente publicação da mais antiga Monografia sobre as antigas Terras de S. Lourenço de Asmes.
“A monografia de Ermezinde está iniciada desde que em julho de 1909 foi aberto pelo ministério das obras públicas do extinto regimem um Concurso de Monografias24 a que esta era destinada, mas o que o próximo advento da República não permitiu”25
Na verdade, o Portugal Monárquico desconhecia de todo, a realidade profunda e distante vivida quer nas grandes como nas pequenas terras do seu Reino. Para não ir mais longe, as Inquirições de 1758, embora importantes, não conseguiam dar a resposta capaz, suficiente e desejável, na dimensão real sobre as verdadeiras limitações territoriais, a identificação e localização das terras agrícolas e seus proveitos no cultivo dos montes e pastos; as identidades locais nos diferentes
24 Com a instauração da República o Concurso das Monografias viria a ser revogado, razão pela qual a monografia só veria a luz do dia em 1921.
lugares, aldeias e vilas, áreas raramente cadastradas; e, consequentemente com notória ineficácia e prejuízo na arrecadação de receitas sobre o verdadeiro modo de vida as suas dispersas populações. Neste sentido, a preocupação com a imediata recolha de informação para o melhor conhecimento da realidade do país, leva o Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, António Alfredo Barjona de Freitas, em 1909, a lançar um concurso anual de Monografias das Freguesias Rurais. O relatório em que o apresenta é explícito quanto aos objetivos que o orientam. Trata-se, afinal, de iniciar o tão necessário inquérito à vida económica e social da nação portuguesa a partir da unidade administrativa mais pequena e homogénea, com uma larga tradição histórica, que é a freguesia rural. Conhecer melhor através da descrição do seu povo, importava bastante, para mais saber sobre quantos somos, o que fazíamos, onde estávamos, como e com quem. O que se produzia, onde, com quem e em que quantidades. A justificar e validar tal empreitada é igualmente assumida por Humberto Beça.
“por toda a parte, pois, será possível, por uma investigação histórica, mesmo ligeira, descobrir a linha de evolução da unidade administrativa da nação”26.
E mais adiante acrescenta:
“que outra razão influiu para adóção do progresso monográfico… O predomínio crescente da população urbana que se está fazendo sentir nocivamente no empobrecimento da vida rural, que não é compensada pelo desenvolvimento industrial e comercial das cidades.”27
Antes de entrar na época dos loucos anos 20, vamos encontrar Humberto Beça a residir no Porto, cidade onde deambulou e permaneceu até à sua morte em 1923. A docência na Escola Prática Comercial Raúl Dória, a frequência e ocupação na escrita e a publicação das suas obras juntamente com a intensa colaboração em diferentes jornais locais, regionais e nacionais, justificavam aqui, a sua fixação como residência permanente, mais
26 BEÇA, Humberto (1921a), p. 8.
27 BEÇA, Humberto (1921a), p. 8.
perto dos meios de transporte, das fontes documentais e dos inevitáveis percursos que faria para as provas tipográficas e dos contactos necessários que com muitos se acostumara. Entre outros pousos, terras várias da região norte e centro, em 1921, ano da publicação da Monografia de Ermezinde, vamos encontrá-lo nesta mesma cidade Invicta, última vivida e palco da comemoração do 16º aniversário do seu casamento.28
Como referimos, a Monografia, iniciada que foi em 1909, embora, constitua um importante documento de recolha e registo sobre múltiplos aspetos da aldeia de Asmes, apresenta-nos, como explicita o próprio autor, breves referências ao seu território, clima e
28 Campeão das Províncias, ano 70º, nº 6738, de 16 de abril de 1921.
Na paisagem que nos é dada, “uma pequena Cintra da capital do norte”30, destaca, na ruralidade da mesma, o cenário rupestre emprestado pelas tranquilas e límpidas águas do Leça, constante refúgio
29 Contudo, e com maior predominância na Revista Illustração Portuguesa, a maioria dos clichés que ilustram os seus textos, são da sua própria autoria.
122 população. Mesmo esta, face ao relativo e natural desconhecimento de Humberto Beça, recentemente chegado, teria contado com a prestigiosa informação e disponibilidade de alguns ilustres e bem abonados de Homens Bons de Ermezinde que, melhores conhecedores e com maior agilidade de relacionamento com a população local, mais facilmente se movimentavam, cedendo ou disponibilizando as diferentes fontes, os vários documentos e alguns clichés que a Monografia acaba por nos apresentar.29 Não estranhamos pois, por agradecimento e reconhecimento, a dedicatória prestada na Monografia de Ermezinde obra aos Ilustres, Joaquim Maia Aguiar, Amadeu de Sousa Vilar e António da Costa e Almeida.
e estância das gentes da urbe e alguns outros que por cá ficaram e deixaram marcas e descendência. Os seus clichés, registam em espaços diferentes, paradisíacos ou bucólicos, as quintas, as casas e os palacetes mais importantes; os seus proprietários e figuras de maior destaque e influência local, enquadrando na pequena Aldeia, a antiga Igreja matriz e a Capela de S. Silvestre. O espaço rural e agrário, mostra-nos igualmente as estruturas ferroviárias criadas em 1875, a sua estação antiga, as escassas vias de comunicação e as pontes que as suportam. O postal e ícone das primeiras décadas, é-nos dado pelo Colégio de Ermesinde e as festas religiosas de Santa Rita e São Lourenço d’ Asmes. Aqui e ali, aborda igualmente as tragédias das cheias do Leça, os hábitos e costumes destas gentes, trabalhadores locais presos à Lavoura, ao pequeno comércio e indústria, esta última a enraizar-se em torno do Comboio, meio de chegada e partida, rápido fator de mudança, de procura e de abrigo de milhares de sonhos e vidas. Nunca sonhara Humberto Beça, o quanto a sua “Cintra do Norte” estaria irremediavelmente diferente, se por cá
andasse umas décadas depois. Com outros olhos e outros ares, não acreditaria na transformação de uma Aldeia que rapidamente deixou de o ser, tão perto estava o êxodo rural marcado pelos movimentos migratórios internos, à procura de novas e melhores vidas que o interior, esquecido e abandonado, nada mais podia dar ou prometer.
Não obstante, longe da Capital e já descrentes de uma Primeira República conflituosa, golpista, elitista e reconfortante, o Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, pouco ou nada, alteraria na desejada configuração nacional. O país, maioritariamente católico e praticante, rural estava e rural ficou. Sensivelmente um ano
após o lançamento do Inquérito Económico-Agrícola e ainda antes do seu primeiro volume sair a público, a Direção Geral da Ação
Social Agrária lançava em Diário do Governo de 1933 um (novo) “concurso de trabalhos monográficos sobre o regime e organização do trabalho rural, englobando a questão de higiene e conforto rural”.31 Esta pretensão, apenas se quedou pelo mérito na produção e divulgação das monografias locais, complementando muitas vezes, as fomentadas em 1909. A iniciativa dirigia-se não só aos técnicos dos serviços agrícolas nacionais, mas igualmente a outras entidades. Cada monografia deveria conter o “estudo e observação” de cada um dos tópicos gerais propostos, num ou mais concelhos administrativos, desde que limítrofes.32 Até aos dias de hoje, proliferam as publicações de monografias locais, registos de memórias cronológicas, percursos e tradições. Verdade que muitas delas, por desconhecimento suficiente de matéria pretendida, e porque a sua feitura não estaria ao alcance daqueles – agricultores,
31 Cf. Aviso em Diário do Governo n.º 39, 2.ª série, de 16 de Fevereiro de 1933.
32 Para as monografias consideradas de mérito previra-se a remuneração de 250$00 e, entre essas, a atribuição suplementar de 2000$00 para a melhor e de 1000$00 para as duas imediatamente seguintes, com direito a publicação no Boletim do Ministério
jornaleiros e outros trabalhadores rurais - as temáticas abordadas saíram do âmbito inicialmente pretendido, ressalvando, no entanto, em muitas delas, descrições e clichés, impulsionando e generalizando, desde então e por todo o país, o aparecimento de muitas monografias descritivas do Portugal de então.
4. O patrimoniólogo da monumentalidade
De especial relevo e de consubstancial desconhecimento para muitos, Humberto Beça surge-nos igualmente como personagem interventiva na preocupação da proteção e salvaguarda dos vestígios históricos, um dos precursores sobre o seu restauro e implementação de medidas interventivas e preventivas como práticas de proteção e salvaguarda destes valores identitários da história portuguesa. Assim ocorre com o Património Militar, com maior incidência sobre as suas fortificações defensivas, destacando alguns Castelos de Portugal e Espanha. Tais referências surgem nos três textos apresentados em outros
tantos congressos (Castelos de Portugal: os Castelos das Beiras, em 1922;33 Castelos de Portugal: os Castelos de Entre-Douro e Minho em 192334 e Castelos de Hespanha, Castelos de Portugal também no mesmo ano.35
Nestas suas publicações, encontramos uma abordagem evocativa da importância e memória de tais monumentos arquitetónicos para a História de Portugal, constituindo desta forma, verdadeiras e estimáveis referências cronológicas à sua existência e função, importantes baluartes na defesa contra as investidas do inimigo, feitos e factos que remontam ao processo da Reconquista e à sua delimitação fronteiriça.
É na evidência do estado ruinoso de muitas destas estruturas defensivas, motivando apelos contínuos e persistentes pedidos à sua
33 BEÇA, Humberto (1921c) – Castelos de Portugal: os Castelos das Beiras. Porto: Companhia Portuguesa Editora. Conversão em Livro da Tese apresentada ao Congresso Beirão, realizado em Viseu.
34 BEÇA, Humberto (1923a) – Castelos de Portugal: os Castelos de Entre-Douro e Minho. Famalicão: Tipografia Minerva.
35 BEÇA, Humberto (1923b) – Castelos de Hespanha, Castelos de Portugal. Porto: Tipografia Artes & Letras.
recuperação e reabilitação, de forma a defender e salvaguardar estruturas e marcos históricos do seu lusitano povo que encontramos os apelos de Humberto Beça. Em sua defesa, entende que a salvaguarda e preservação dos Castelos Medievais, possibilitam, ao longo dos tempos, como estruturas duradouras, reconstituir a história guerreira e militar do povo português e os traços étnicos patentes nas suas qualidades militares, bem como, ao longo dos séculos, a definição das fronteiras que haviam existido. O seu entusiasmo no estudo deste património reflete-se na ligeira crónica que nos deixara:
“A 1 de setembro instalei em Espinho com sete alunos a colónia de férias da minha Escola Secundária de Comércio e imediatamente marquei para o dia 10 uma visita com eles ao
monumento da Feira. Acompanhavam o grupo algumas famílias amigas; ao todo, entre alunos e senhoras, 19 pessoas… Acompanhava-me, entre outras pessoas, meu primo José Beça Portugal, terceiranista de engenharia”36
A Ilustração Portuguesa,37 de quando em vez, chamava às suas páginas, os escritos que Humberto Beça vertia, insistentemente sobre a urgente necessidade de tomar
36 «O Castelo da Feira: impressões de um passeio escolar», in O Democrata: semanário republicano radical d’Aveiro. Ano 9º, nº 145, de 27 de outubro de 1916. p. 2.
37 Ilustração Portuguesa (1920), 2ª série, 29º volume, p. 382.
medidas preventivas e de restauro face ao estado de verdadeiro abandono de muitos Castelos e Fortificações existes de Norte a Sul. Visitando-os, além dos clichés que fazia publicar, cedia igualmente, de seu punho, as plantas deste mesmo património edificado. Entre os muitos existentes, mereceram oportuno destaque, o Mosteiro de Leça do Balio, o Castelo da Feira, a Fortaleza de Braga, o Forte de Aveiro e o Rego da Fonte ou o Castelo de Arnoia.
Tão atuais se manifestam estas preocupações que um século após a sua morte, as referências aos apelos de Humberto Beça são múltiplas, atestando a atualidade e o interesse dos seus trabalhos. A 6 de setembro de 2018,38 a edilidade de Celorico de Basto reúne para aprovação de proposta para transferência para o Município, a gestão do Castelo de Arnoia.
MUNICÍPIO DE CELORICO DE BASTO CÂMARA MUNICIPAL REUNIÃO
ORDINÁRIA REALIZADA NO DIA 6 DE SETEMBRO N.º 17/2018.
1 – Introdução - O Castelo de Arnoia, classificado como monumento nacional, tem tutela do estado através do Ministério da Cultura. A proposta agora apresentada para transferência deste imóvel para a competência da autarquia faz todo o sentido, do meu ponto de vista, dado que na prática é já o município que leva a cabo as intervenções de limpeza do Castelo e envolvente, dinamiza o “núcleo interpretativo instalado na antiga escola primária do Castelo e tem suportado todos os encargos decorrentes das intervenções de valorização deste imóvel e sua envolvente”.
38 Cfr. Ata da Câmara Municipal de Celorico de Basto, reunião ordinária realizada a 6 de setembro de 2018.
Humberto Beça denuncia, precisamente no ano em que viria a morrer, o estado de quase abandono em que se encontrava então o Castelo de Arnoia: a torre de menagem apresentava uma fenda resultante de uma descarga elétrica, o pano norte da muralha tinha um buraco “por onde cabe um homem, [e se] uma das pedras que aguenta a silharia superior, cair, a
muralha vem toda abaixo” (Beça, 1923: 21). Num discurso ainda imbuído dos valores românticos de nacionalismo, lamenta o facto de não haver “um gesto de decidida boa-vontade, de lídimo patriotismo, de santo amor pela sua terra, pela sua história, de orgulho pelo seu passado, lhe lance a escora misericordiosa que o aguente mais algum tempo no tôpo do seu altaneiro cabeço” (Beça, 1923: 21).39
Não só na Arquitetura Militar encontramos as referências deste republicano. Na Murtosa, por onde andara Humberto Beça entre 1903 e 190540, deixa-nos referências sobre as características da Casa da Murtosa e seu espaço interior, cuja tipologia corresponde diretamente às necessidades demográficas, primeiro, alterando as mesmas de acordo com a “grande fecundidade da mulher murtoseira”41 e posteriormente com a sangria da emigração. Além da sua participação nos Congressos dos Castelos
39 Rota do Românico – O Castelo de Arnoia, p. 166.
40 BEÇA, Humberto (1912) – Azulêjos: versos. Porto: Tipografia da Escola Raúl Dória.
41 TAVARES, Ana Margarida Henriques Bandeira – Conversemos sobre casas: uma reabilitação na Murtosa. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2016. (Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Arquitetura).
de Portugal (1922 e 1923), neste último ano vamos encontrá-lo em Salamanca, no Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências.42 Foi Sócio da Sociedade de Estudos Pedagógicos, da Sociedade de Geografia de Lisboa, do Instituto Etnológico da Beira, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, da Associação dos Jornalistas do Porto e do Centro Republicano Rodrigues de Freitas.
5. Na sua morte…
Aparentemente, e na ausência de outros elementos biográficos, nada fazia transparecer o seu precoce desaparecimento. Pelo contrário, os últimos anos mostraram intensa atividade, cívica e literária, nada compatível com o inesperado desenlace com a vida. Contudo, a 21 de julho de 1923 é feito o seu testamento.
Registo do testamento público com que faleceu no dia vinte e cinco de Julho de mil novecentos vinte e três no Hospital da Irmandade do
42 FERREIRA, Paulo Bruno RodriguesIberismo, hispanismo e os seus contrários: Portugal e Espanha (1908-1931). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade Nova de Lisboa, 2016. Dissertação de Doutoramento em História Contemporânea, 2016. p. 306.
Terço e Caridade desta cidade onde estava em internamento Gothofredo Humberto Ferro de Madureira Beça, casado, professor, morador que foi na Rua do Bonjardim, requeria de santo repouso, deste bairro.
Chancela do notário a tinta violeta. Nota número desaseis, folhas cincoenta e nove. Testamento de Gothofredo Humberto Ferro de Madureira Bessa – em vinte e um de julho de mil novecentos vinte e três, nesta cidade do Porto, na rua do Bomjardim, casa numero quatrocentos setenta e dois, aonde eu notário Antonio Borges d’ Avelar, fui chamado aqui, perante mim e as testemunhas idóneas, adiante assinadas compareceu Gothofredo Humberto Ferro de Madureira Beça, casado, professor, morador nesta casa, o qual eu e as mesmas testemunhas conhecemos pelo próprio e nos certificamos estar em seu perfeito juizo e livre de qualquer coacção. E por ele, nos foi dito que faz testamento do modo seguinte: - Que é casado com Dona Maria José de Brito e Beça, não tendo descendentes, mas ainda é viva a sua mãe, dona Ernestina Ferro de Madureira Beça, que é a sua única herdeira necessaria. – Que deixa á mesma sua esposa, a meação ou quota disponível dos seus bens, instituindo-a única herdeira, se sua mae não lhe sobreviver. – Assim o disse, sendo testemunhas, Henrique José Mendes Guimarães, casado, Custódio José Mendes Guimarães, solteiro, maior, ambos negociantes, desta rua do Bomjardim, quatrocentos setenta
e seis, e Alfredo César de Brito, casado, oficial do exército, do logar d´Ariosa, desassete, todos portugueses, desta comarca, e assinam este Testamento com o Testador e comigo depois destes, foi por mim, escrito e lido em voz alta, em presença das referidas testemunhas e do Testador. – Todas estas formalidades foram praticadas em acto continuo, de cujo cumprimento dou fé. E, eu, notário, o escrevi e assino. – Vai ter três escudos de sêlos. – Gothofredo Humberto Ferro de Madureira Beça, Henrique José Mendes Guimarães, Custódio José Mendes Guimarães. Alfredo César de Brites. Antonio Borges d’ Avelar. Logar dos sêlos devidos, todos bem inutilizados. – Está conforme o original.
Dias depois, a 25 de julho, confirmava-se a sua prematura morte aos 46 anos. Entre outros, O Debate torna público o seu desaparecimento.
Humberto Beça Faleceu na cidade do Porto este valioso republicano que tantos e havia distinguido já no professorado e nas letras. A doença arrancou-o ao carinho dos seus numa idade em que muito havia ainda a esperar da sua bela inteligência e da sua brilhante cultura. Sentimos a perda deste prestimoso cidadão, e a família enlutada apresentamos as nossas condolências.43
43 O Debate, de 2 de agosto de 1923. p.1.
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Fernando Lanhas e o território de Valongo
Domingos Loureiro
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
Investigador integrado no Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Maria Pinheiro
Mestre em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Resumo:
Fernando Lanhas é um dos mais relevantes autores da cultura nacional, tendo desenvolvido pesquisa em áreas tão variadas como a Arquitetura, a Pintura, a Paleontologia, a Etnografia, a Arqueologia, a Astronomia, entre tantos outros. Conhecido pela sua obra pictórica, sendo considerado o seu papel na pintura abstrata geométrica, Lanhas traçou um percurso de difícil mapeamento, pela amplitude das suas pesquisas. Entre elas, destacamos a pintura, o estudo dos fósseis e a catalogação do brinquedo da região do Porto, por terem Valongo como objeto de estudo. Desta forma, preten-
de-se abordar a ligação entre o autor e o território do Município de Valongo, enquanto se pretende compreender a importância que tiveram no percurso do artista e na consolidação de uma identidade do Concelho de Valongo. Apresenta-se o trajeto do autor e a sua ligação e impacto, por vezes não conhecidos, no contexto local, nomeadamente com a pesquisa realizada no contexto da III Bienal de Ardósia de Valongo, dedicada ao autor.
Palavras-chave: Fernando Lanhas, Valongo, trilobites, brinquedos, pintura.
Abstract:
Fernando Lanhas is one of the most significant figures in national culture, having researched fields as varied as Architecture, Painting, Speleology, Ethnography, Archaeology, and Astronomy, among many others. Known for his pictorial work and recognised for his role in geometric abstract painting, Lanhas followed a path that is challenging to map due to the breadth of his investigations. Among these, we highlight his painting, the study of fossils, and the cataloguing of toys from the Porto region, with Valongo as the subject of study.
This approach aims to explore the connection between the author and the territory of the Municipality of Valongo while seeking to understand the importance these elements had in the artist’s journey and in consolidating an identity for the Municipality of Valongo. The text presents the author’s trajectory and connection to and impact on the local context—sometimes not widely recognised—mainly through the research carried out in the context of the III Biennial of Valongo Slate, which was dedicated to the author.
Keywords: Fernando Lanhas, Valongo, trilobites, toys, painting.
Não pode ser evitado o desejo de querer saber.
Foi a pouco e pouco que os homens começaram a fazer arte.
E um dia repararam na sua evidência!
A arte nasceu nesse dia em que o homem viu e viu mais do que aquilo que tinha feito.
(Fernando Lanhas, in Para um livro de horas de Fernando Lanhas, entrevista mantida com Joaquim Matos Chaves, 1992, p.14).
Introdução
Fernando Resende da Silva Magalhães Lanhas, amplamente reconhecido como Fernando Lanhas, nasceu na freguesia da Vitória, no Porto, em 1923, e faleceu na mesma cidade em 2012. Desde a infância, manifestou uma profunda inquietação com questões relacionadas com a compreensão da existência e do cosmos, o que o levou,
precocemente, a registar e a tentar interpretar as suas reflexões e preocupações.
Licenciado em Arquitetura pela Escola de Belas Artes do Porto em 1947, Lanhas contou, entre os seus colegas de formação, com figuras proeminentes da cultura portuguesa, como Nadir Afonso e Júlio Pomar. Manteve também proximidade com personalidades de relevo no campo da arquitetura, como Viana de Lima, Fernando Távora, Arménio Losa e Cassiano Barbosa, bem como no campo da pintura e em outras áreas do saber, destacando-se o seu convívio com Amândio Silva e Júlio Resende, seu primo.
Lanhas foi um dos pioneiros da pintura abstrata em Portugal, traçando um percurso singular onde a geometria assumiu primordial lugar, com exposições em prestigiados contextos internacionais, incluindo a Bienal de São Paulo, no Brasil e a Bienal de Veneza, em Itália. Em Portugal destacam-se várias exposições na Fundação de Serralves e Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Centro de Arte Moderna, no Museu Nacional de Soares dos Reis ou no Museu Amadeo de Souza-Cardoso. No
entanto, o seu interesse foi muito além das artes visuais, abrangendo diversas áreas do conhecimento, sempre na busca de respostas para as suas inquietações intelectuais. Em 1963, elaborou o “Quadro Geral do Universo”, seguido, em 1965, pela construção de um modelo reduzido do “Grupo Local das Galáxias”. No final da década de 1960, dedicou-se ao estudo de um modelo do universo com um predomínio progressivo de um vazio central. Nos anos 1970, na Escola Secundária Garcia de Orta, criou a “Sala de Cosmografia”, a primeira do género em Portugal, reconhecida pela NASA pelo seu valor pedagógico, o que resultou no convite a um aluno da escola para assistir ao lançamento da nave Apollo 141. Em 1974, construiu o “Cosmoscópio”, uma obra que compilava programas sobre eventos do universo, e, em 1982, instalou um “Diorama de Astronomia” no Museu Municipal de Paredes. Em simultâneo, desenvolveu a “Carta das distâncias e das rotas dos planetas do sistema solar e de algumas estrelas” (1969), bem como o “Quadro das gran-
1 https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base. gera_pagina?p_pagina=antigos estudantes ilustres - fernando lanhas.
dezas físicas” (1971/86) refletindo as suas investigações no domínio da astronomia. Estas pesquisas foram parcialmente registadas num conjunto de 17 publicações realizadas entre 1994 e 20112, entre outras publicações realizadas por entidades como a Galeria Quadrado Azul, a Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, e a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
No campo da arqueologia, mesmo como arqueólogo amador, Lanhas desempenhou um papel de relevo, coordenando vários projetos de organização e disponibilização de coleções e arquivos. Entre os museus que beneficiaram da sua colaboração destacam-se o Museu Municipal da Figueira da Foz, o Museu Monográfico de Conímbriga, o Museu de Mineralogia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, o Museu Militar do Porto, entre outros.
2 Fernando Lanhas, Coleção de 17 Publicações de Autor realizadas entre 1994 e 2011, Porto: Anitex Comércio de Importação e Exportação, Lda, Caixa Geral de Depósitos, Faculdade de Ciências do Porto, Fundação Ciência e Desenvolvimento, Fundação Eng.º António de Almeida, Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea e Ribeirinho Soares.
Destaca-se ainda o seu papel na preservação da história e cultura locais, relevando o seu papel na criação e organização do Museu de Etnografia do Porto, do qual foi diretor durante vários anos.
O fascínio de Lanhas pela arqueologia e astronomia era uma manifestação da sua busca incessante pelas origens, um impulso que também se materializou no colecionismo, tendo sido ávido colecionador de fósseis, seixos, areias de diferentes partes do mundo, rochas, brinquedos, rótulos e anúncios publicitários, organizando essas coleções com grande rigor e etiquetação meticulosa. Interessou-se desde muito cedo pelos astros e pelas atividades ocorridas no espaço, pelo que relatou vários eventos, nomeadamente a queda de meteoros, o percurso de alguns corpos celestes e mutações ocorridas na superfície solar.
Embora não se autodenominasse poeta, Lanhas produziu composições literárias marcadas por um rigor formal e uma contenção expressiva, refletindo a sua preocupação com a clareza e a precisão das ideias. Desde cedo — o primeiro foi aos 5 anos —, dedicou-se ao registo dos seus sonhos,
um exercício que complementava o seu interesse pela dimensão subconsciente da existência.
Em 1964, Fernando Lanhas propôs a criação da “Estrutura para a inventariação arqueológica” (Fig.1), uma metodologia inovadora para o levantamento sistemático de áreas arqueológicas em Portugal. Esta estrutura baseava-se numa rede de parcelas numeradas, permitindo uma organização rigorosa e eficiente da investigação arqueológica em qualquer região do país. A sua proposta visava não só a sistema-
tização do trabalho arqueológico, como também a padronização dos métodos de registo e catalogação dos achados.
Este sistema foi aplicado no “Inventário de Objetos e Lugares com Interesse Arqueológico”, desenvolvido em colaboração com D. Domingos de Pinho Brandão a partir da década de 1960, cujos resultados foram parcialmente publicados em quatro artigos na Revista de Etnografia entre 1965 e 1972. Uma das grelhas arqueológicas apresenta a região delimi-
Fig. 1: Estrutura para a inventariação arqueológica, 1964.
Fonte: Revista de Etnografia, nº8, 1967.
tada entre Espinho, a sul, Peso da Régua, a leste, o Oceano Atlântico, a oeste, e Guimarães, a norte, sendo a área circundante do rio Douro dividida em nove grandes áreas, cada uma subdividida em 32 parcelas. Um exemplo desta subdivisão é a “Parcela 124 - 6”, correspondente ao Concelho de Penafiel, documentada no número 8 da Revista de Etnografia, em 1967. Por sua vez, as parcelas “123 - 1” e “123 - 2” englobavam parte do território valonguense, embora não seja conhecida investigação arqueológica aí realizada. Se, em algumas destas parcelas, como as de Penafiel, Labruge e Porto, foram obtidos resultados importantes, como a descoberta do Castro de São Paio (1967) ou as gravuras rupestres no Monte da Luz, Foz do Douro (1972), no caso de Valongo não existem ainda dados concretos publicados.3
3 Assim, é provável que possa existir no imenso arquivo de Lanhas algum registo da identificação de marcas como os povoados romanos das serras de Pias e Santa Justa ou da mineração romana da região, embora se assuma a especulação desta afirmação.
Sabe-se, no entanto, que Lanhas tinha uma forte ligação a Valongo, realizando várias jornadas com grande regularidade, desde a década de 1940 (Fig. 2). Aqui empenhou frequentes expedições e pesquisas em diferentes âmbitos, desde a procura de fósseis, à pintura, à intervenção direta na paisagem, e ao arquivo de brinquedos e artesãos da região. Este território parece ter funcionado como um “laboratório” de exploração científica e pessoal, onde conduziu, de forma mais ou menos sistemática, estudos de paleontologia, mineralogia, geologia, etnografia e arqueologia, embora muitos dos resultados dessas incursões permaneçam desconhecidos. Estas viagens estão documentadas desde o início dos anos 1940, sendo que existem pinturas datadas de 1943, realizadas a partir do território, mantendo-se recorrentes ao longo da sua vida, segundo o filho Pedro Lanhas, em conversa tida em 2022. As suas frequentes visitas e o interesse pelo concelho sugerem uma exploração aprofundada das serranias de Pias, Cuca Macuca e Santa Justa, mas também pelas áreas de Alfena e Ermesinde, onde
fez levantamentos sobre fabricantes e tipologias de brinquedos.
No contexto de Valongo, destacam-se três áreas principais de atuação de Lanhas: o estudo das trilobites, o mapeamento dos artesãos e brinquedos do concelho, e a intervenção artística a partir de e na paisagem local. Outras atividades incluem o registo dos sonhos por vezes ligados ao território, o uso de pigmentos minerais, recolhidos na região, nas suas pinturas e, muito provavelmente, a arqueologia. Lanhas via, na nossa
perspetiva, este território como um microcosmo para a exploração do universo, sendo local de eleição ao longo do seu percurso.
Todavia, o conhecimento do autor no concelho é realizado de forma muito segmentária, de acordo com as fontes e os assuntos, nomeadamente devido aos âmbitos e canais de informação por vezes aparentemente tão distantes entre si. Repare-se que o estudo dos fósseis — hoje uma das logomarcas do Município — não parece ter qualquer relação com o brin-
quedo — outra das logomarcas — ou até da importância das serras — ainda uma outra das logomarcas. Assim, o estudo dos fósseis é realizado pelo canal da espeleologia e das ciências, sendo o Museu de História Natural e a Faculdade de Ciências os principais canais para apresentar estes estudos, com os quais o autor trabalhou recorrentemente. Por sua vez, o estudo dos brinquedos tem como canal privilegiado a etnografia e as indústrias locais, sendo o Museu de Etnografia do Porto, o canal para Lanhas. Por fim, a prática artística, que no caso de Lanhas, arquiteto de formação,
torna-se algo muito distante dos restantes eixos, e do qual, pouco se conhecia no interior do Município. Se a estes, juntássemos a arqueologia, num outro canal de comunicação, a astronomia, a arquitetura, a poesia, a rede seria difícil de classificar, e provavelmente de se conseguir fazer a associação entre Lanhas e Valongo.
Por isso, Pomar terá designado Lanhas como o mais “desirmanado”, porque será essa a complexidade dos homens singulares como Lanhas, Leonardo da Vinci, Santo Agostinho, Padre Himalaia, Martins
Sarmento, Abel Salazar, Aristóteles, que não parecem encaixar num lugar único,mas que pertencem a todos os lugares.
S206, 3-4.11.1988
Sonhei esta noite que era um grande bloco de ardósia.
O bloco estava alojado numa parede, a meio de um talude de terra. A ardósia tinha cerca de cinco metros de comprido por dois de altura. Entrava para dentro do talude um metro.
Eu estava aí, nesse bloco. Faltavam-me, eu sabia-o, as faculdades dos seres vivos. Sentia no entanto que pensava.
Em certo momento, a lousa que eu era adoece e começa a desconjuntar-se em lâminas.
Fiquei desfeito.
A inquietação pela compre-ensão da essência das coisas do mundo e da vida
Embora possamos falar de algumas obras concretas deste artista4, interessa salientar que Lanhas é realmente importante
4 Assumindo que a designação de Artista poderá enquadrar a perspetiva interdisciplinar de Lanhas, como uma
pela forma holística como fez manifestar a sua inquietação pela compreensão da essência das coisas do mundo e da vida. Muitos se referem a Lanhas como Arquiteto, Pintor, Arqueólogo, Astrónomo, um homem da Ciência. No entanto, e apesar de a sua inquietação ter precisamente a ver com a origem do mundo e do ser, a sua postura enquanto investigador — embora possa tomar muitas formas de ação — é essencialmente5 poética: de puro questionamento e procura de algo que existe no sítio onde nasce a vida. Assim, pensamos Fernando Lanhas como Artista, como aquele que através do fazer poético por excelência, encontra não uma resposta, mas uma elevação perante o mundo, uma vizinhança6 que, nunca o satisfazendo por
dimensão onde a intuição e a técnica se cruzam de forma orgânica.
5 Essencialmente porque diz diretamente respeito ao ímpeto essencial do ser.
6 “(...) ao indefinido não falta nada, e sobretudo determinação. Ele [o indefinido] é a determinação do devir, a sua própria potência, a potência de um impessoal que não é uma generalidade, mas uma singularidade ao mais alto nível (...) alcançando uma zona de vizinhança onde já não nos podemos distinguir daquilo que devimos.” (Deleuze, 2000, 92).
inteiro, lhe revela a sensação de uma grandeza que acolhe todo o seu ser, libertando-o.7 Há, em Fernando Lanhas, uma procura pelas essencialidades. Dizia até gostar de saber as coisas de maneira elementar.
No entanto, aliada à sua enorme curiosidade e seriedade num estudo metódico e rigoroso8 das ciências — que lhe permitiam por sua vez, um esclarecimento racional e intelectual sobre os fenómenos da vida —, está uma capacidade extraordinária e altamente poética de síntese. De achar na imensidão misteriosa do mundo, um qualquer esclarecimento. Como um corpo que é robusto o suficiente para mergulhar nas profundezas de um oceano escuro,
7 Como quando regista consecutivamente as experiências vividas em sonhos, tomando-as parte da forma como percebe e procura compreender o mundo. Diz serem revelações do subconsciente, aqueles que exaltavam o seu espírito, e por isso tão relevantes quanto o céu que também sempre olhou e procurou mapear. Ou as pinturas que diz serem “aproximações de uma outra que sempre se me distancia.” (Chaves, 1992, 11).
8 “De enorme rigor, rigor que é uma irrepreensível indisciplina, Lanhas exibe, ao falar, essa indisciplina, afinal, como soberana disciplina. (...)” (Chaves, 1992, 7).
compreender e interiorizar a sabedoria do seu íntimo, e regressar para contar uma história emocionante, alegre e de linhas simples, que só o é porque se tornou, também ela, sua. E este é, talvez, o sinal mais puro, claro e evidente, da potência poética da sua obra: a capacidade de se compreender profundamente no outro.
Compreendemos ainda que o seu estudo da Astronomia bem como o questionamento sobre o tempo e o espaço à escala do cosmos, pressupõe uma disponibilidade para acolher ao pensamento o próprio mistério da existência num sentido mais amplo do que a escala do corpo — ou de uma possível individualidade: o sentido de ser ganha terreno. Pensar estas questões, procurar entender a sua escala, confronta o ser com o espectro das possibilidades infinitas, permite compreender ou pelo menos perceber num sentido mais alargado que o tempo é uma grandeza “imemorial e que o espaço, se finito, é certamente inúmero” (Chaves, 1992, 67). É o encontro com a possibilidade pura de ser, e que ultrapassa os muros daquilo que se conhece. A chuva de estrelas
que Lanhas viu em criança9, espantou-o profundamente porque, de alguma forma, expandiu o campo da sua percepção para uma imensidão cósmica misteriosa reveladora de uma interioridade que é sua e igualmente profunda, agora capaz de a imaginar e de a pensar para além dos limites aparentes do seu corpo.
Nesse sentido, percebemos ainda que registar por escrito os seus sonhos e admiti-los como fonte, ou matéria, para o pensamento sobre si e sobre o mundo, é em rigor, a proposta mais arriscada, mas também a mais terna e atenta que Lanhas podia fazer para
9 Na entrevista conduzida por Joaquim Matos Chaves, editada pela Galeria Quadrado Azul, Fernando Lanhas rememora “Nasce- se sensível à observação da Natureza. Uns mais. Cedo, muito cedo, há uma grande vontade de conhecer a explicação das coisas. (...) A Extraordinária ‘chuva de estrelas’ de 1933, foi o assombro dos meus 10 anos. Não imaginava uma coisa assim! (...) A minha tia Emília Resende, a mãe do Resende, levou um ano a resolver-se a dar-me outro livro, a Iniciação Astronómica também de Camille Flammarion. Receava que a leitura do livro me trouxesse graves preocupações, como de facto trouxe! Quando me deu o livro disse-me que o lesse devagar. Estávamos em 1937, eu tinha 14 anos. Prendas que reconheciam uma escolha.” (Chaves, 1992, 8).
com as suas intensas inquietações primeiras.
Reconhecemos assim a elevação de Lanhas para com a vida inteira, numa vizinhança íntima que conquista continuamente e de forma nova, por breves momentos, sempre atento à terra e ao céu em parcelas bem equilibradas, porque registadas.
Fernando Lanhas conta ainda, no filme Lanhas, o mais desirmanado (2002), que o primeiro sonho que registou foi em criança, aos 5 anos. Esse sonho, conta Lanhas, era sobre uma “coisa que nessa altura me perturbava”10. Tinham-lhe dito que o mundo não tinha fim. Ora, Lanhas descreve o sonho onde apareciam muitos homens com ferramentas a derrubar um muro na tentativa de encontrar o tal fim do mundo. Este exemplo que aqui acolhemos é-nos útil pela atenção prolongada que dedicou a essa estranheza sentida tão cedo na infância. Ou seja, pela clara necessidade de esclarecer o mistério do tempo, que sabemos estar intrinsecamente relacionado com o mistério do espaço e da percepção,
10 Citação livre do filme documental Lanhas, o Mais Desirmanado (2002), Jorge Campos.
que se afigura como central na questão da descoberta de si. Perceber-se no mundo, é perceber-se no tempo e no espaço. Pensar a possibilidade de um fim do mundo é admitir a possibilidade de algo muito mais amplo do que aquilo que se conhece. Mais tarde, e a par dos seus estudos arqueológicos ligados à origem da vida na terra, e que certamente serão um fruto maduro dessa mesma inquietude da infância, Lanhas publica um poema (1999) que canta:
“Porque não era escusada, a vida nasceu água numa repetição química recopiando-se.
— Como soubeste?
— Li e ouvi e assim estudei.
— Nem quando está escrito ou se diz é verdade.
— É verdade que sim ou não. É de cada um saber quando é possível.”
Lanhas apresenta-se como um artista no sentido em que a curiosidade sobre o que ainda não conhece é sempre alimentada pela descoberta que vai conquistando. Neste caso, as respostas são sempre novas questões, numa dúvida imensa gerada pela atenção que dedica a tudo o que está ao seu redor. Saber mais é ter mais dúvidas, diríamos, mas igualmente é compreender a necessidade de estar conectado com tudo para perceber o lugar que podemos ocupar. Lanhas era um homem religioso. Um homem de fé que teria, como se deve imaginar, necessidade de também a questionar. Todavia, havia no seu percurso uma aparente expectativa de compreender a força que estaria subjacente a tudo, que seria certamente superior a qualquer humano, ao nível de algo supremo e divino, onde parece tentar perceber a dimensão e imensidão de Deus, enquanto questiona tudo o que ao seu redor se manifesta. Deus será, como na sua constante busca, uma fonte de curiosidade, um desconhecido que exige uma vontade enorme de tornar conhecido.
Valongo como um laboratório:
Pintura / Trilobites / Brinquedos
Sabemos que Lanhas trabalhou a partir do território de Valongo em diversos momentos. Entre 1942 e 1947, enquanto frequentava a Escola de Belas Artes do Porto, desenvolveu um interesse crescente pela pintura, representando várias vezes o município, como as pinturas “Casas de Valongo” e “Serra de Valongo” (Fig.4), datadas
de 1943. Tratam-se de duas obras de pequeno formato, onde a figuração ainda é visível. Estas obras integram um conjunto de outras realizadas em locais como Esposende (“Casa de Esposende”, 1943), “Praia do Castelo” (1943), ou “Cais 44” (1943/44), uma das mais importantes obras da História de Arte portuguesa.
Este período, coincidente com a sua formação académica, representa uma fase de profunda transformação na sua obra, tornando-se mais abstrata e geometrizada.
Fig. 4: Fernando Lanhas, Serra de Valongo, 1943, Óleo sobre cartão, 22,5 x 37,5 cm Col. privada, em depósito na Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea, Porto. Depósito em 2005
5: Fernando Lanhas a pintar os rochedos da Serra de Valongo, 1952 Fotografia montada em aglomerado (2 elementos) 118,8 x 75 cm (cada) Col. privada, em depósito na Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea, Porto. Depósito em 2005
Trata-se de um processo de afirmação do autor que, contra as correntes vigentes em Portugal, radicadas no neo-realismo, se aproxima de noções como medida, geometria, força, equilíbrio, entre outros elementos que se aproximam de uma dimensão especulativa e experimental. A pintura, como toda a prática de Lanhas,
encaminha-se para um espaço de questionamento constante, um lugar em si, num ecossistema próprio, como parte do mesmo cosmos de toda a existência.
Em 1945, concebeu uma intervenção artística nos rochedos da Serra de Valongo (Fig. 5), durante pesquisas sobre fósseis. Este projeto foi concretizado em 1952, ano em que realizou uma intervenção diretamente sobre as rochas da serra, num processo, que precocemente indicia os movimentos da Land Art e da Earth Art, embora, com propósitos distintos.
Valongo assume-se como um laboratório onde se poderiam exercitar muitas das questões que assolariam o autor, desde a manifestação da magnitude das forças geológicas que deram origem ao Anticlinal de Valongo, até ao aparecimento de sucessivas jazidas de fósseis, entre as camadas de ardósia e de xisto da região. Assumia-se ainda como um lugar quase primitivo, ‘muito distante’ do Porto, onde algumas das atividades eram ainda muito rudimentares e simultaneamente manifesto de autenticidade. Além do mais, a possi-
Fig.
bilidade da proximidade com a natureza e as marcas da exploração mineira que desenham de forma muito evidente o terreno. Valongo de meados do século XX é um lugar de grande pobreza e simultaneamente marcado pela presença de algumas atividades com forte impacto social e cultural, como a produção de pão, a biscoitaria, as atividades agrícolas, a mineração e tratamento da lousa, a produção de brinquedos, a moagem nas margens do rio Ferreira, a pastorícia.
Pedro Lanhas, filho do autor, referiu numa das conversas que realizamos, que o seu pai andava, sempre que podia, à procura de alguma coisa — fósseis, seixos rolados, pedras com marcas ancestrais da utilização humana, ou a recolher areias de diferentes locais do mundo —, para a sua coleção. Fazia-a sempre que podia, deixando-se intrigar por tudo o que o rodeava.
Foi num desses encontros, juntamente com Antonio Regis da Silva, que Pedro Lanhas, nos indicou o local onde teria sido executada a intervenção de Lanhas, nos Rochedos de Valongo. Local ermo e de difícil acesso, parece carregar
a responsabilidade de ocultar o gesto de simbiose que Fernando Lanhas realizou 70 anos antes. Pedro não quer partilhar publicamente o local deste rochedo, mantendo no anonimato a sua existência, da mesma forma que o maciço pareceu ocultar as marcas de tinta que o seu pai realizara. Lanhas referia que a pintura que fazia nas pedras era uma continuidade com o que o material já apresentara, num diálogo direto com os elementos, mais do que uma sobreposição. Desta forma, as suas pinturas aproximam-se de uma relação simbiótica com o território
Fig. 6: Fósseis descobertos por Fernando Lanhas em Belói (1945) e Vilarinho (1943)
e com as coisas mais simples, como o pó, a pedra, os elementos primordiais. Assim, Lanhas inicia um processo de seleção de seixos que, além de os utilizar como ‘suporte’ das suas pinturas, servem de paleta cromática que irá aplicar aos seus quadros, definindo as diferentes cores que os seixos apresentam como orientação das cores a aplicar nas telas e madeiras. Mas também a moer as mesmas pedras, reduzindo-as a pó, que vai incorporar diretamente na mistura de tintas que aplica nos quadros. Desta forma, as suas obras geométricas abstratas partilham da mesma essência primordial de toda a natureza, como se afirmassem que são todos constituídos pelos mesmos elementos e partículas. Esta génese é clarificadora do pensamento de Lanhas, onde todo o universo se poderia refletir numa partícula de pó, ou numa estrela de uma galáxia longínqua, mas igualmente no pensamento de que subjacente a tudo existe uma geometria transcendental — talvez a marca divina —.
A intervenção nos rochedos da Serra de Valongo é francamente significativa na História da Arte nacional — infelizmente
não será conhecida internacionalmente por razões de disseminação —, pela sua singularidade e por anteceder o que irá marcar as vanguardas internacionais das décadas seguintes, sobretudo em Inglaterra e Estados Unidos da América, ou com Alberto Carneiro, já na década de 1970. Por sua vez, o gesto de Lanhas parece anteceder uma dimensão de simbiose com o natural, num processo que poderá explicar como a sua obra é singular e proeminente. Assim não será de estranhar o fascínio pelos fósseis, como reconhecimento dos processos de transformação da existência, onde o passado fica plasmado, mas não apagado. Os fósseis são o registo das mutações, que originam o aparecimento do Homem, enquanto manifestam uma existência pré-humana. Assim, são significativos os estudos que Lanhas realizou também com áreas de registo de dinossauros, tendo descoberto inclusive uma área de pegadas de dinossauros na região de Loures.
Os fósseis dão-nos uma marcação da temporalidade, da distância entre momentos, da proximidade entre cada uma das etapas. Dão-nos ainda uma compreensão
dos processos de transformação e metamorfose das espécies, da sua relação com o território e das contínuas mutações que operam ao nosso redor.
Como referimos, Lanhas percorreu frequentemente o território na busca de fósseis, referindo com frequência o gesto de Leonardo da Vinci, também ele, um colecionador de fósseis.
Tinha um particular fascínio pelo estudo das trilobites (Fig. 6), o que o levou a organizar um mapa da sua existência, com especial foco nos espécimes de Valongo11, culminando nas publicações Câmbrico (1997) e Trilobites – Quadro Sinóptico (1998).
11 Recorda-se aqui uma história que o Sr. Domingos Loureiro (pai de um dos autores deste texto) refere de ter conhecido em criança um senhor que andava a procurar ‘pedras com desenhos’ a que retribuir com pão com queijo às crianças (pobres) da zona da Azenha, no lugar da Carvoeira. Não sendo possível de confirmar que se trataria de Fernando Lanhas, será facto que não deveria haver muita gente a procurar fósseis na região na década de 1950, pelo que se partilha esta pequena memória como um relato.
S322A, 16-17.12.1992
Sonhei esta noite com trilobites vivas
Uma das trilobites tinha um pigídio que alargava em leque sempre que ela fazia uns movimentos em que parecia saltar.
Muitas vezes as trilobites ficavam voltadas de costas, mexendo então muito as pleuras para ficarem direitas.
Em certo momento, vi uma trilobite grande, de cor dourada que estava mutilada nas pleuras.
Peguei na trilobite sem qualquer receio, para a ajudar.
Era uma trilobite muito sossegada e meiga.
As crianças até lhe faziam festas.
Fig. 7: TRILOBITES — QUADRO SINÓPTICO, 1998
Porto: Faculdade de Ciências do Porto; Fundação Ciência e Desenvolvimento
Fig. 8: CÂMBRICO, 1997
Porto: Faculdade de Ciências do Porto; Fundação Ciência e Desenvolvimento e Caixa Geral de Depósitos
Entre 1979 e 1998, dedicou-se ao estudo do brinquedo tradicional na região Norte de Portugal, culminando nas publicações O Brinquedo (2000) e O Brinquedo na Região Norte de Portugal (2000), consolidando o seu interesse pela cultura material e tradições artesanais. Uma vez mais, o autor percorre o território de Valongo, sobretudo Alfena e Ermesinde, onde regista as oficinas, os artesãos e os brinquedos aqui produzidos, catalogando-os e incorporando-os na coleção do Museu de Etnografia do Porto. Sobre esta pesquisa, Lanhas realiza um quadro com a “Cronologia da fabricação do brinquedo na região do Porto” (Fig.9)
Um desconhecido em Valongo
Exposição, Mesa Redonda, Divulgação
Apesar do prestígio que o autor representa, a comunidade de Valongo tem ainda pouco conhecimento sobre esta personalidade e sobre o papel que desempenhou na preservação da história local e na capacidade de identificar no
território, aspetos hoje tão relevantes para a cultura do Município. Nesse sentido, e por ocasião do centenário do seu nascimento, foram organizadas algumas iniciativas que propunham a abertura de uma porta para o conhecimento do autor. Assim, por ocasião da III edição da Bienal de Ardósia de Valongo, em 2023, realizou-se uma exposição no Museu Municipal de Valongo e uma Mesa Redonda sob o tema “Lanhas e o território de Valongo” (Fig. 10). A exposição, coordenada pela equipa do Museu Municipal, nomeadamente a Dra. Paula Machado e a Dra. Maria João Gonçalves, com o apoio consultivo de Domingos Loureiro e de Pedro Lanhas, apresentou obras relativas ao artista e à sua relação transversal com o território de Valongo. Esta exposição antecedeu as que vieram a realizar-se em Coimbra no Centro de Artes Visuais — “Sabe o que não sabe”, com curadoria de Miguel Von Hafe Perez, entre 16 de dezembro de 2023 e 24 de março de 2024 —, e em Chaves, no MACNA - Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, — organizada pelo Museu de Serralves e com curadoria de Marta Moreira de Almeida, “Fernando Lanhas: O
Homem É Fenómeno Magistral” —, entre 18 de junho de 2024 e 12 de janeiro de 2025.
Na exposição de Valongo foram apresentadas obras, documentação e publicações que o autor realizou sobre Valongo, entre outras obras.
A 30 de setembro de 2023, realizou-se uma Mesa Redonda sob o tema “Fernando Lanhas no território de Valongo” (Fig. 11), coordenado por António Quadros Ferreira, Professor Catedrático Emérito da Faculdade de Belas Artes da Universidade e Membro da Academia Nacional de Belas Artes, que apresentou “Lanhas, Opus Laudat Artificem”; com a participação de: Fernando Rosa Dias, Professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, que realizou a comunicação “A Pintura de Fernando Lanhas – A Sedimentação da Inscrição”; António Choupina, Arquiteto pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, e fundador do atelier CH.A (CHoupina.Arquitectos) “Fernando Lanhas: BauKunst - Arte da Construção”; António Guerner Dias, Formado em Geologia e Professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, “Fernando Lanhas
e a Sua Costela de Naturalista”; e Domingos Loureiro, Professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, que apresentou “A Paisagem de Valongo como Laboratório de Fernando Lanhas”.
Conclusão
Considera-se que Fernando Lanhas será um dos mais singulares artistas portugueses de sempre — talvez até internacionalmente —, sendo essencial que a sua obra seja disseminada e estudada em âmbitos quer específicos de uma área disciplinar, quer em diálogo transversal, permitindo um conhecimento sedimentar do seu papel na cultura nacional e mundial. Por sua vez, Fernando Lanhas terá sido um dos mais raros e singulares vultos a cruzar o território de Valongo, tendo-lhe dedicado mais tempo e atenção de que muitos dos seus habitantes.
Valongo deverá conhecer Fernando Lanhas, mas simultaneamente encontrar no autor o valor que o território lhe ofereceu, e que, tão singularmente lhe permitiu escrever o seu nome na história nacional. A ligação de Lanhas a Valongo foi mais do que uma
relação passageira. Valongo foi um laboratório de estudo, onde a grandiosidade da curiosidade de Lanhas encontrou sempre incentivo. Assim, tal como Valongo tem vindo a assumir as suas maiores riquezas, plasmadas nas 9 logomarcas do Município, será de estranhar que Valongo conheça mal alguém como Lanhas, que se dedicou profundamente a dar a conhecer, a estudar e a colocar no mapa, o que só recentemente, Valongo passou a valorizar.
Este documento, redigido por Domingos Loureiro, um cidadão de Valongo, e por Maria Pinheiro, uma lisboeta, dedicada a conhecer Lanhas, só se tornou possível porque em 2022, numa conversa pessoal com Francisco Laranjo (1952-2022) — que nos deixou pouco depois —, refere que Fernando Lanhas dedicou-se a Valongo como ninguém, e que merecia ser conhecido e celebrado, pelo lugar que o território teve no seu percurso, mas simultaneamente, pelo papel que ele desempenhou na construção da identidade do Município.
Assim, celebra-se a memória de ambos — amigos e admiradores simultâneos —, como um percurso de ligação profunda com a Arte e a Vida, que nos obriga a manter a atenção e a curiosidade ativa para não deixar passar algo tão relevante como esta presença e este legado, que merece e deve ser celebrado.
O legado deste autor é uma obra que permite a compreensão quase enigmática de que o fazer poético — lançado pela presença do corpo no mundo — dá a ver a manifestação mais pura da essência do ser humano. A poesia, a que chamamos toda a sua obra, assume-se como a matéria resultante do encontro do ser com o mundo, mas também como fruto de um fazer que acolhe a estranheza do mundo e se desafia a compreendê-la. Lanhas alimentou a sua curiosidade imensa e, sem o saber, deu corpo a uma identidade nem sempre valorizada pelos habitantes locais. Lanhas compreendeu Valongo, como poucos. Dediquemo-nos a conhecer Lanhas também!
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Lanhas, Fernando: Coleção de 17 Publicações de Autor realizadas entre 1994 e 2011, Porto: Anitex Comércio de Importação e Exportação, Lda, Caixa Geral de Depósitos, Faculdade de Ciências do Porto, Fundação Ciência e Desenvolvimento, Fundação Eng.o António de Almeida, Fundação de Serralves — Museu de Arte Contemporânea e Ribeirinho Soares
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Historiografia de Alfena é vítima de maus tratos?
Desmontando alguns «mitos urbanos» da
História de Alfena.
Arnaldo Mamede
Vice-Presidente da Direcção da AL HENNA adocarquejal@gmail.com
“Filipe II tinha um colar de oiro, tinha um colar de oiro com pedra e rubis.
(…)
Foi dono da Terra, foi senhor do Mundo, nada lhe faltava,
Filipe Segundo. (…)
Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho éclair.”1
1 GEDEÃO, António (2022) – Obra Completa – 3.ª Ed. Lisboa: Relógio d’Água Editores, p.202-203 (Poema do Fecho Éclair, 1967)
Resumo:
O acumular, nas últimas décadas, de erros historiográficos em obras relativas à História de Alfena, a maior parte das vezes, motivados pelo não cruzamento de informações de diversas fontes e a não consulta de fontes primárias, por estas serem, normalmente, menos acessíveis, erros esses que, pela sua recorrência, começam a constituir verdadeiros «mitos urbanos» justifica que nos debrucemos, um pouco, sobre esses mitos e sobre a sua origem, numa tentativa de os desmistificar.
Palavras-chave: Alfena, São Lázaro, Nossa Senhora da Ponte, Ponte Pina, erros historiográficos.
Abstract:
The accumulation, in recent decades, of historiographical errors in works relating to the History of Alfena, mostly motivated by the failure to cross-reference information from different sources and to consult primary sources, as these are normally less accessible, errors, which, due to their recurrence, begin to constitute true “urban myths” justify us focusing a little on these myths and their origins, in an attempt to demystify them.
Keywords: Alfena, Saint Lazarus, Our Lady of the Bridge, Pina Bridge, historiographical errors.
1. Introdução
Socorramo-nos da obra do Pe. Domingos Moreira,2 que consideramos ser uma espécie de Biblia da Historiografia de Alfena. Nela, o referido autor, reconhecido nos meios académicos pelo seu profundo saber e extremo rigor intelectual, faz um levantamento de muita e variada documentação relacionada com a nossa terra, que não deixa quaisquer dúvidas rela-
2 MOREIRA, Domingos A. (1973) - ALFENA, a terra e o seu povo. Cucujães: Esc. Tip. das Missões
tivamente à realidade de alguns factos, os quais nos permitem desmontar vários «mitos urbanos» que, infelizmente, teimam em persistir.
Quer a persistência, quer a resiliência de tais «mitos» reside, essencialmente, no recurso sistemático a fontes secundárias, terciárias, ou mesmo imaginárias, de mais fácil acesso e consequente consulta, em vez de se privilegiar as fontes primárias que nos facultam uma imagem mais rigorosa da realidade histórica.
Na extensa relação de «mitos urbanos», no que se refere a Alfena e à sua História, salientamos o «Casarão», edifício assim popularmente designado, por influência das telenovelas brasileiras dos anos de 1970/80, que uns afirmam ter sido o hospital dos leprosos, outros sede da Câmara Municipal de Valongo, na Primavera de 1838, quando, na verdade, nunca foi uma coisa, nem a outra; foi apenas uma casa apalaçada, típica de um emigrante bem sucedido no Brasil,3 o típico «brasileiro de torna-
3 Trata-se de António Marques da Fonseca (1856 - 1913), popularmente conhecido por «Marques Padeiro»
-viagem» construída nos inícios do Século XX.4
Um outro exemplo é a persistente troca da localização da Gafaria (Hospital dos Leprosos), no lugar da Rua de Alfena, quando na realidade as estruturas de apoio aos gafos (leprosos) se situavam na margem oposta do rio, no sopé do monte de Santa Margarida, logo na margem esquerda do Leça, “antes de entrar nesta ponte, vindo da cidade do Porto”.5
Relacionado com o «mito» anterior temos ainda a designação das capelas que existiam em cada margem do rio, próximas da ponte. Vários autores que recentemente abordaram este tema, incluindo
4 MAMEDE, Arnaldo (2013.12.15 e 2013.12.31) – «A Emigração para o Brasil e as suas marcas na paisagem urbana de Alfena» in A Voz de Ermesinde, N.º 911 p.12 e N.º 912 p.12 [disponível em https://alhenna.pt/publicacoes/ artigos-a-voz-de-ermesinde/alhenna-artigos-iv-2/]. [Consul-tado em 29/09/2024].
5 CARDOSO, Pe. Luís (1747) – Diccionario geográfico, ou noticia histórica de todas as cidades, villas, lugares e aldeas, rios ribeiras, e serras dis Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontrão, assim antigas, como modernas. Lisboa: Regia Officina Sylviana e da Real Academia.
Fig. 1 - «O Casarão» - Casa de António Marques da Fonseca, no lugar da Rua – Alfena. Fonte: Foto do autor (2013).
mesmo a placa que a Câmara Municipal de Valongo mandou colocar junto à capela na margem direita, afirmam que a Capela de Nossa Senhora da Ponte ou dos Remédios se situava na margem esquerda do rio e a de São Lázaro na margem direita.6 A realidade histórica,
6 Veja-se CLETO, Joel, et al. (2023) – O Vale Sagrado – Património Religioso no Concelho de Valongo. Valongo: Câmara Municipal de Valongo. p.77 e 92, onde o autor troca a localização das capelas; e MATA, Joel Silva Ferreira (2018) –História Económica, Social e Administrativa do concelho de Valongo (1258-1836) – Vol. I. Valongo: Câmara Municipal de Valongo, p.176 e 178-179, onde o autor, apesar de não trocar as capelas,
alicerçada em várias fontes primárias que não nos deixam dúvidas, era precisamente a oposta: a capela que subsiste era a original capela de Nossa Senhora da Ponte ou dos Remédios, que sempre se localizou na margem direita do rio; sendo que a capela em honra de São Lázaro, que era parte integrante do complexo da Gafaria, situada na margem esquerda, tendo desapa-
recido com a ruína desta, fez com que as suas imagens, e respectivo culto a São Lázaro, transitassem para a capela da margem oposta.
O culto a São Lázaro, pelo facto de suscitar maior fervor e devoção, originando maior proeminência, provocou a alteração da designação popular da capela.
fazendo a leitura correcta da obra do Pe. Luís Cardoso, erra ao localizar as estruturas da Gafaria, como estando na margem direita do Leça, na legenda da foto da actual Capela de São Lázaro (antiga Capelas de Nossa Senhora dos Remédios) indicando que era exclusiva dos gafos, e ainda ao indicar que a Vila de Alfena era toda habitada por gafos, quando as inquirições de 1258 apenas nos indicam que a propriedade de toda a vila de Alfena pertencia à Gafaria.
Fig. 2 -Reconstituição do lugar da Ponte (Alfena), no Século XVIII.
Fonte: Desenho de Ricardo Ribeiro in BRANCA, Fernando, et al. (2024) – As Capelas de São Lázaro e da Senhora da Ponte ou dos Remédios – o estranho caso de uma troca de identidades, 2.ª edição – revista e ampliada. Alfena: AL HENNA p.12-13.
Outro «mito urbano», este mais recente, publicado num jornal local,7 refere que a estrada medieval do Porto para Guimarães, no seu traçado entre a Igreja antiga de Alfena e a ponte medieval de São Lázaro, antes Ponte de Alfena, no lugar da Rua, passava pela Rua Central da Costa, a meia encosta do monte de Santa Margarida. A verdade é que este troço da referida estrada seguia pelo sopé do referido
monte, passando frente à Igreja de Alfena e do Centro Cultural, sensivelmente coincidente com o actual traçado da N105-1 e, depois, pelas traseiras da Junta de Freguesia e do Centro de Saúde, inflectindo, em angulo recto, para Nascente junto à ponte da N105-1 (vulgo «ponte do Penteeiro»), sempre pelo sopé do monte, pela frente da antiga Gafaria, paralelamente ao Rio, até desembocar na ponte.
7 MARQUES, Carlos (2024-06-25) – «Várias foram as passagens de D. João I por S. Lourenço d’Asmes (2)» in A Voz de Ermesinde, N.º 1039 p.26
Fig. 3 - Traçado da via medieval do Porto a Guimarães (troço entre a actual Igreja de Alfena e o lugar da Rua de Alfena (a laranja), contornando o monte de Santa Margarida pelo sopé.
Fonte: Desenho do autor sobre imagem do Googlemaps (2024).
Fig. 4 - Traçado da via medieval do Porto a Guimarães (troço entre a Agra de Azevido e a actual Igreja de Alfena (a laranja), contornando o monte de Santa Margarida pelo sopé.
Fonte: Desenho do autor sobre imagem do Googlemaps (2024).
Feitas estas declarações introdutórias, passaremos a centrar a nossa atenção em dois verdadeiros «mitos urbanos», os quais nos suscitaram grandes e sérias preocupações: o primeiro refere-se à designação oficial da ponte medieval e o segundo ao designado «marco indicativo do restauro da Capela de São Lázaro» popularmente também apelidado de «pilarete».
2. Ponte Pina ou Ponte de São Lázaro, no lugar de Pina, como terá surgido mais este «mito urbano»?8
A ponte de S. Lázaro, também chamada Ponte Pina, situa-se, sobre o rio Leça, na antiga via medieval Porto-Guimarães, entre a Capela de São Lázaro e o monte do Picoto, no lugar da Rua da freguesia de Alfena…9
Assim começa o relatório de acompanhamento arqueológico às obras de restauro da Ponte de São Lázaro, executadas pela Câmara Municipal de Valongo (CMV), em 1994, sob a orientação científica e técnica da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP).
Já anteriormente, aquando da classificação da ponte como imóvel de interesse concelhio, vem refe -
8 Este capítulo constitui um artigo autónomo do autor, ainda inédito, e a publicar proximamente numa colectânea de textos da AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena.
9 LOPES, António Baptista et al. (1994)A ponte medieval de São Lázaro (Alfena, Valongo) - Notas sobre o acompanhamento dos trabalhos de conservação e restauro. Revista Portvgalia, Nova Série, Vol. XV. Porto: FLUP, p.161.
rida a “Ponte de S. Lázaro, no lugar de Pina, freguesia de Alfena.”10
«Ponte Pina», «Ponte de S. Lázaro, no lugar de Pina, da freguesia de Alfena»?
Haverá algum Alfenense, minimamente interessado pela toponímia da nossa freguesia que alguma vez tenha conhecido, ou sequer, ouvido falar da existência de um lugar denominado «Pina» em Alfena?
A que propósito terá surgido esta absurda designação que viria a conquistar força de Lei?
É precisamente sobre este verdadeiro mito urbano que nos vamos debruçar neste capítulo, na tentativa de contribuir para a sua total desmistificação.
Como terá surgido?
Em 13 de Setembro de 1955 foi publicada a seguinte notícia no jornal «O Primeiro de Janeiro»:11
10 Decreto N.º 129/77, de 29 de Setembro – Diário da República N.º226/1977 – I Série – p.2395
11 Primeiro de Janeiro – citado no Processo 26-NP-14 – Ponte de São Lázaro (Alfena). Lisboa: Arquivo da Direcção Geral do Tesouro e das Finanças (1955-2011)
A Ponte Romana de Alfena está a ser desmantelada para a construção de muros…
Um nosso leitor de Alfena conta-nos um caso que, nem por ser, infelizmente, muito frequente, deixa de ser digno de registo e, sobretudo de ser tomado em consideração pela entidade ou entidades que superintendem na defesa do nosso património artístico.
Refere aquele nosso leitor que em Alfena, no lugar de Pina, existe uma ponte romana, denominada de S. Lázaro que está a ser bàrbaramente mutilada.
«As suas guardas de granito começaram a ser vítimas da cobiça de alguns proprietários que por ali tinham muros para fazer. E, então, iniciou-se a nefanda pilhagem»acrescenta o nosso correspondente.
E depois de apelar para nós, no sentido de fazermos eco do seu reparo, o nosso leitor comenta:
«Se o desinteresse continuar a manter-se como até aqui é natural que, passados uns tempos, fique a restar da velhinha ponte apenas um montão de escombros».
Parece-nos que, na realidade, uma ponte romana, documento valioso de velhas civilizações e preciosos marco da nossa própria história, deveria ser defendida de tais assaltos, pois as suas pedras, que resistiram ao tempo,
deveriam manter-se, evitando-se que fossem parar a muros e paredões rústicos, como qualquer calhau informe e sem valor, arrancado de uma pedreira de emergência…
Como se pode verificar pelo teor da notícia publicada é aqui que tem origem o famigerado mito, ao qual voltaremos mais tarde.
A referida notícia, não o topónimo, mas sim o facto de estar a ser desmantelado um monumento, alertou as entidades ligadas à defesa do Património Nacional, as quais viriam a encetar um processo de averiguações, quanto à tutela e classificação do monumento «ponte romana» que estava a ser alvo de pilhagem e destruição.
Fig. 5 - Ponte de Alfena ou de São Lázaro
Fonte: Foto da Direcção-Geral do Património Cultural (1955).
Com a única e honrosa excepção da Junta Autónoma de Estradas (JAE), embora afirmando que a ponte não se encontrava sob sua jurisdição, declara que o “lugar de Pina não existe naquela freguesia” [Alfena] e que a “ponte de S. Lázaro (…) fica situada sobre o Rio Leça, no lugar da Rua, freguesia de Alfena”, todas as restantes entidades consultadas dão como sendo correcta a designação de “Ponte de S. Lázaro, no lugar de Pina” iniciada pela notícia do jornal.12
Será que esta informação da JAE terá a ver com o facto de o Engenheiro Director ter consultado os cabos cantoneiros, Sr. Oliveira e Sr. Sousa, ambos naturais de Alfena, por certo bons conhecedores da nossa Freguesia ao ponto de afirmar peremptoriamente que não existe «lugar de Pina» mas que a ponte se situa no lugar da Rua?
Curiosamente no processo desencadeado pela notícia de «O Primeiro de Janeiro», nota-se a omissão persistente da CMV que nunca se deu ao trabalho de responder às diversas solicitações requeridas pela Direcção Geral da Fazenda Pública, apesar de o refe -
rido monumento ser sua propriedade, como atesta uma afirmação da Direcção de Finanças do Distrito do Porto, de 11.11.1974, que informa “que a Ponte de São Lázaro, em Pina, concelho de Valongo, é pertença da Câmara Municipal do mesmo Concelho.”13
Aliás, o próprio relatório dos arqueólogos, atrás citado, também lamenta a actuação pouco cuidada do Município, em 1994. 14
As obras foram efectuadas por iniciativa da Câmara Municipal de Valongo, tendo ficado a nosso cargo a orientação científica e técnica dos trabalhos de conservação e restauro. Cumpre-nos, no entanto, lamentar não ter sido possível o acompanhamento da intervenção desde o início, uma vez que o tabuleiro fora desmontado sem nosso conhecimento prévio.
Recorrendo às mais diversas fontes históricas, até meados do Século XX, nunca a ponte ou o lugar onde se encontra foi designado de «Pina». Segundo a documentação mais antiga, a ponte surge desig-
13 Processo 26-NP-14
12 Processo 26-NP-14
14 LOPES, António Baptista et al. (1994), op. cit. p.161.
nada como «Ponte de Alfena, no lugar de Alfena», no tempo em que a freguesia era denominada de «São Vicente de Queimadela». Esta designação aparece nos primeiros documentos relacionados com a Gafaria de Alfena, importante instituição de assistência situada nesse local, tais como o testamento de Estevaínha Soares Silva15 (1214), ama de El-Rei D. Sancho II, nas Inquirições de D. Afonso III16 (1258), nas Inquirições de D. Dinis17 (1307), no relato de Erich Lassota von Steblau, peregrino alemão a Compostela18 (1581), nos diversos emprazamentos de terras da Administração da Gafaria19 e
da Comenda de Águas Santas 20 (Séc. XVI, XVII e XVIII), bem como no Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso (1747) que transcrevemos parcialmente:21
Além de outras Ermidas, de que daremos notícia quando descrevermos os Lugares, e povoações em que estão fundadas, há a da Senhora dos Remédios, vulgarmente chamada a Senhora da Ponte, por estar sita no fim da rua vindo de Guimaraens para a cidade do Porto, ou passada a ponte, que aqui tem o rio Leça.
Antes de entrar nesta ponte, vindo da cidade do Porto, há outra Ermida de S. Lazaro, e tem esta a obrigação de prouer hum Hospital de Lazaros, cujas casa estão junto da dita Ermida, mas já arruinadas.
15 Testamento de D. Estevaínha Soares da Silva; Cabido; Gavetas dos Testamentos, n.º 10; : Arquivo Distrital de Braga, 1214.
16 Portugaliae Monumenta Historica – Inquisitiones, Vol. I, fasc, 4-5, p 506 a 508 e 512; Lisboa: Academia de Ciências, 1897.
17 Corpus Codicum Latinorum et Portugaliensium,Vol. I, p 152; Porto: Câmara Municipal do Porto, 1891
18 LISKE, Javier (1879) - Viajes de Extranjeros por España y Portugal, en los Siglos XV, XVI e XVII. Madrid: Casa Editorial de Medina, p.132 e 142.
19 Cartório Notarial de Felgueiras, cota J/2/1/6333.293, f. 121-126v; Arquivo Distrital do Porto, 1738.
Mais recentemente (1968), o insigne Prof. Carlos Alberto Ferreira de Almeida, estudioso das vias medievais refere que “todas as leprosarias de Entre Douro e Minho, ou estão em centros viários, ou colocadas junto de pontes e cami-
20 Tombo da Comenda de Águas Santas, cota K/15/4 - 35; Arquivo Distrital do Porto, 1596
21 CARDOSO, Pe. Luís (1747). op. cit
nhos de grande circulação”, como era o caso da “Ponte de Alfena”.22
Ressalta de toda a documentação citada que a Ponte de Alfena, ou Ponte de São Lázaro, se situa no histórico lugar de Alfena, hoje lugar da Rua, da freguesia de Alfena, sendo totalmente inexistente qualquer referência ao topónimo «Pina».
Aproveitamos, ainda, a ocasião para corrigir outra informação errónea do relatório dos arqueólogos de 1994, muito provavelmente também transmitida aos técnicos por alguém com fracos
conhecimentos da toponímia local, quando designam o «monte de Santa Margarida» de «monte Picoto».23 Recuperando o parágrafo por que iniciamos o presente artigo, de forma correcta, a sua redacção deveria ser a seguinte:
A ponte de S. Lázaro, também chamada Ponte de Alfena, situa-se, sobre o rio Leça, na antiga via medieval Porto-Guimarães, entre a capela de São Lázaro e o monte de Santa Margarida, no lugar da Rua da freguesia de Alfena…
Fig. 5 - Figura 6 - Ponte de Alfena ou de São Lázaro. Fonte: Foto de Celestino Neves (2019).
22 ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de (1968)Vias medievais - Entre Douro e Minho - Tese de Licenciatura em História, Vol. I - Porto: Faculdade de Letras - Univ. Porto, p.41, 72 e 172.
23 LOPES, António Baptista et al. (1994), op. cit. p.161.
Voltando à questão do mito urbano, qual a origem deste estranho topónimo «Pina»?
Em finais do Século XIX, foi publicada a «Carta Chorographica do Reino de Portugal»,24 cuja coordenação coube ao geógrafo militar Filipe Folque. Aí, como se pode comprovar pelo pequeno extracto que anexamos, o topónimo «Rua» surge com uma grafia estranha em que o «R» mais parece um «P» e a haste inferior direita mais parece um «i». Por outro lado, o traço que
representa o rio Leça passa pelo meio da palavra, gerando mais alguma confusão ao leitor, pelo que o «u» pode ser confundido com um «n».
Todas estas possíveis interpretações, aliadas a eventuais dificuldades de leitura paleográfica e desconhecimento da toponímia local, poderão ter conduzido, erradamente, à troca de «Rua» por «Pina» na notícia original de «O Primeiro de Janeiro», de 13.09.1955.
24 Carta Chorographica do Reino de Portugal, dir. Gen. Filipe Folque, folha 7; Lisboa: Direcção geral dos trabalhos geodésicos do Reino, 1880.
Fig. 7 - Extracto da Carta Corographica do Reino de Portugal – Folha 7.
Fonte: Direcção Geral do Território – Museu Virtual.
3. O «marco indicativo do restauro» ou «pilarete de São Lázaro», um «mito urbano» de «parentalidade incógnita»?
O certo é que em 1777, pelo menos, a capela de São Lázaro sofreu obras de beneficiação e de restauro, desconhecendo-se, porém, se a mesma acção abrangeu o estabelecimento humanitário dos leprosos.25
O autor inicia o parágrafo com a expressão “o certo é que…”, pelo que nos interrogamos se terá mesmo essa certeza, dado que, pelas pesquisas que efectuamos relativas a este tema, nada encontramos que o confirmasse.
Na ilustração, que atrás reproduzimos, identifica como fonte o Museu Municipal de Valongo (a julgar pela abreviatura indicada) mas, também aí, não nos foi possível encontrar qualquer documento que pudesse corroborar esta tese.
Aliás, fotografias da capela anteriores ao Século XXI, e são muitas, confirmam que tais pilaretes ou «marco indicativo» não existiam no local.
25 MATA, Joel Silva Ferreira (2018), p.180.
Fig. 8 - Extracto do livro onde vem referido o «marco indicativo do restauro» da capela Fonte: MATA, Joel Silva Ferreira (2018),p.180
Fig. 9 - Capela de São Lázaro (antiga Senhora da Ponte) sem pilaretes...
Fonte: MOREIRA, Domingos A. (1973), p.98.
Fig. 10 - Fotografia da capela sem os pilaretes
Fonte: Foto da Direcção-Geral do Património Cultural (1993)
Mas existe uma outra versão referente a estes factos, a dos trabalhadores da Paróquia de São Vicente de Alfena,26 os quais nos relataram uma versão, porventura, mais desinteressante e isenta de pruridos científicos, dado tratarem-se de nossos conterrâneos, gente humilde e de poucas letras.
Há cerca de uma dúzia de anos, o então pároco, Pe. Carneiro Dias, vivia atormentado com os atropelos à capela de São Lázaro. O veículo de recolha dos resíduos sólidos urbanos (vulgo camião do lixo), ao passar frente à capela, manobrando para a recolha do lixo urbano preveniente do Parque de São Lázaro e respectivas estruturas de apoio, colidiu, bastas vezes, com o beiral do telhado da galilé. O senhor Padre, farto de constantes despesas com as reparações do telhado da capela, convocou os seus trabalhadores para o ajudarem a encontrar uma solução que, de uma vez por todas, resolvesse o problema.
Foi-lhe sugerido a colocação de obstáculos salientes dos cunhais, por forma a obrigar os veículos a afastarem-se o necessário da 26 Entre os quais, Eduardo Moreira de Sousa («da Catrina»).
capela para evitar novas colisões com o beiral. Para o efeito, indicaram-lhe umas pedras, em cantaria de granito, depositadas no Polo II, provenientes da demolição de um edifício antigo, localizado para os lados de Paredes ou Penafiel. De entre essas, a peça escolhida foi um pilar de granito, com cerca de dois metros de comprido, com a forma de um prisma octogonal, com lados iguais quatro a quatro, e com cerca de dois palmos de diâmetro, o qual, cortado ao meio, teria o tamanho ideal para cada um dos obstáculos a colocar, sem destoar, em termos estéticos, da antiguidade do lugar. Com uma ferramenta rebarbadora, com a profundidade que o disco permitia, foi feito um corte a toda a volta do pilar e, depois, com uma pancada certeira, o pilar partiu-se em duas partes iguais. Voltadas para cima, escolheram as melhores bases, as mais regulares, as que resultaram do corte, facto bem perceptível a olho nu. Daí resultou que uma inscrição pré-existente numa das faces laterais («1777»), provavelmente a data de construção do edifício que havia sido demolido e ao qual o pilar pertencia originalmente, ficasse em posição inver-
tida, existindo, inclusivamente, o cuidado da parte dos trabalhadores de voltar a inscrição para o lado da parede para, de certa forma, a ocultar ou, pelo menos, a tornar menos visível.
Com inscrição ou sem ela, comprova-se que, de facto, a ideia do pároco Carneiro Dias, posta em prática pelos seus humildes colaboradores, resultou em pleno, os camiões obrigados a desviarem-se do «marco indicativo» (julgo «pilarete») por eles colocados, deixaram de colidir com o beiral da galilé da capela de São Lázaro.
Perante duas versões, aparentemente tão contraditórias, fica-nos a dúvida, de que lado estará a razão? De um lado humildes trabalhadores alfenenses, nossos conterrâneos, gente de poucas letras, que comungaram das preocupações do senhor Pe. Carneiro Dias e o ajudaram a encontrar uma solução para as recorrentes colisões; de outro, gente instruída, letrada, conhecedora do método cientifico, que sustenta convictamente que o marco indica a data de um restauro da capela de São Lázaro, em 1777, embora desconhecendo se essas
obras teriam sido extensivas às estruturas de apoio da Gafaria que, como sabemos, se localizavam na margem oposta do rio. Por essa data a Gafaria ainda estava em funcionamento, como atestam as referências da Memórias Paroquiais de 175827 e, como vimos atrás, a capela de São Lázaro estava anexa a ela, na margem esquerda do Leça; já a capela da margem direita, a que hoje subsiste, ainda se designava de Nossa Senhora da Ponte ou dos Remédios. Aliás, julgamos que uma boa parte das confusões que o autor denota na abordagem ao tema da Gafaria de Alfena, neste livro,28 residirão nesta confusão, também ela já um «mito urbano», acerca da verdadeira localização das duas capelas.
Talvez por um sentimento básico de «bairrismo», por se tratar de alfenenses humildes como nós, orgulhosos por terem conseguido ajudar o Pe. Carneiro Dias a preservar um lugar histórico da nossa terra; mas sobretudo porque, depois de muitas pesquisas, nunca conseguimos encontrar qualquer
27 PT/TT/MPRQ/2/54
28 MATA, Joel Silva Ferreira (2018), p.176180.
fonte primária, ou secundária, ou mesmo terciária que fosse, que corroborasse a tese do restauro, resta-nos optar pela versão dos nossos conterrâneos, por se afigurar, infinitamente, mais verosímil, até porque, se Filipe II não tinha fecho éclair, D. José I também não tinha rebarbadora…
4. Conclusão
Aqui chegados, e com a esperança de ter contribuído para a desmistificação de algumas ideias erradas relacionadas com a História de Alfena que, infelizmente, vão persistindo, resta-nos lembrar que, em nome da ética, da deontologia e do rigor por que se deve pautar o trabalho de quem é profissional da área, bem como a devida parcimónia na correcta aplicação dos nossos dinheiros, deve existir o cuidado mínimo de se confrontarem as fontes e prevenir a queda neste tipo de erros crassos, que, para além de desvalorizar o trabalho de quem os comete, denota uma falta de consideração pela inteligência dos alfenenses, ciosos da História da sua Terra. Alguns alfenenses também sabem ler e perceber quem tem o
cuidado de, com seriedade, investigar e escrever sobre a História de Alfena.
Neste trabalho de investigação e defesa da História e do Património, todos somos poucos, mas não devemos cair em ligeirezas que só desvalorizam esse trabalho. Pela nossa parte, na AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena, apesar de não contarmos com apoios autárquicos às nossas publicações, continuaremos a desenvolver esse tipo de trabalho sério que preconizamos, prosseguindo, também, o contributo para a desmistificação dos «mitos urbanos», os ora abordados e outros que despontem.
Bibliografia
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de (1968) - Vias medievais - Entre Douro e Minho - Tese de Licenciatura em História, Vol. I - Porto: Faculdade de Letras - Univ. Porto
BRANCA, Fernando, et al. (2024)
– As Capelas de São Lázaro e da Senhora da Ponte ou dos Remédios – o estranho caso de uma troca de identidades, 2.ª edição – revista e ampliada. Alfena: AL HENNA.
CARDOSO, Pe. Luís (1747) –Diccionario geográfico, ou noticia histórica de todas as cidades, villas, lugares e aldeas, rios ribeiras, e serras dis Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontrão, assim antigas, como modernas. Lisboa: Regia Officina Sylviana e da Real Academia.
CLETO, Joel, et al. (2023) – O Vale Sagrado – Património Religioso no Concelho de Valongo. Valongo: Câmara Municipal de Valongo.
LISKE, Javier (1879) – Viajes de Extranjeros por España y Portugal, en los Siglos XV, XVI e XVII. Madrid: Casa Editorial de Medina.
LOPES, António Baptista et al. (1994) – «A ponte medieval de São Lázaro (Alfena, Valongo)Notas sobre o acompanhamento dos trabalhos de conservação e restauro», in Revista Portvgalia, Nova Série, Vol. XV. Porto: FLUP.
MAMEDE, Arnaldo (2013.12.15 e 2013.12.31) – «A Emigração para o Brasil e as suas marcas na paisagem urbana de Alfena», in A Voz de Ermesinde, N.º 911 e 912.
MARQUES, Carlos (2024-06-25)
– «Várias foram as passagens de D. João I por S. Lourenço d’Asmes (2)», in A Voz de Ermesinde, N.º 1039.
MATA, Joel Silva Ferreira (2018)
– História Económica, Social e Administrativa do concelho de Valongo (1258-1836) – Vol. I. Valongo: Câmara Municipal de Valongo,
MOREIRA, Domingos A. (1973)
– ALFENA, a terra e o seu povo. Cucujães: Esc. Tip. das Missões
Outras fontes manuscritas e impressas
Carta Chorographica do Reino de Portugal, dir. Gen. Filipe Folque), folha 7; Lisboa: Direcção geral dos trabalhos geodésicos do Reino, 1880.
Cartório Notarial de Felgueiras, cota J/2/1/6-333.293, f. 121-126v; Arquivo Distrital do Porto, 1738.
Corpus Codicum Latinorum et Portugaliensium,Vol. I, p 152; Porto: Câmara Municipal do Porto, 1891.
Decreto N.º 129/77, de 29 de Setembro – Diário da República N.º 226/1977 – I Série
Portugaliae Monumenta Historica – Inquisitiones, Vol. I, fasc, 4-5, p 506 a 508 e 512; Lisboa: Academia de Ciências, 1897.
Processo 26-NP-14 – Ponte de São Lázaro (Alfena). Lisboa: Arquivo da Direcção Geral do Tesouro e das Finanças (1955-2011).
PT/TT/MPRQ/2/54 – Memórias Paroquiais de Alfena (1758).
Testamento de D. Estevaínha
Soares da Silva; Cabido; Gavetas dos Testamentos, n.º 10; : Arquivo Distrital de Braga, 1214
Tombo da Comenda de Águas
Santas, cota K/15/4 - 35; Arquivo Distrital do Porto, 1596.
Imagens devocionais nas Igrejas Matrizes de Valongo
José Augusto Coelho Abreu Costa
Licenciado em Ciências Históricas
Técnico superior na Rota do Românico vallispatrimonium@gmail.com
Resumo:
Na primitiva igreja matriz de São Mamede de Valongo e na atual, ao longo de mais de oito séculos, diversas mudanças ocorreram, tanto ao nível arquitetónico e decorativo quanto em objetos cultuais. Este trabalho tem como objetivo apresentar os diversos registos devocionais, ou seja, as pinturas e imagens de vulto de Cristo, da Virgem Maria e dos Santos que estiveram, e as que ainda permanecem, ao culto dos fregueses de Valongo.
In the original parish church of São Mamede de Valongo and the current one, various changes have occurred over more than
eight centuries, both architecturally and decoratively, as well as in cult objects. This work aims to present the various devotional records, that is, the paintings and statues of Christ, the Virgin Mary, and the Saints that were, and those that remain, in the worship of the parishioners of Valongo.
A paróquia de São Mamede de Valongo é mencionada pela primeira vez em 1062, quando o seu padroado foi doado às monjas do mosteiro beneditino de São Cristóvão de Rio Tinto1. Esse padroado passou para as mãos das monjas do mosteiro, também beneditino, de
1 ADP, Mosteiro de S. Bento da Avé-Maria, livro n°4674, fl.9v.
São Bento de Avé Maria do Porto, no final da década de 30 do século XVI. Com a extinção das Ordens Religiosas em 1834, o direito de padroado foi extinto.
Curiosamente, ao longo da documentação consultada, muitas foram as querelas entre as monjas e os fregueses de Valongo devido ao mau zelo da capela-mor da igreja, obrigação das monjas como padroeiras, além das elevadas contribuições/impostos que recebiam.
A primitiva igreja, provavelmente românica, construída entre os séculos XII e XIII, era muito pequena em 1781 para acomodar os fregueses de uma vila em franco desenvolvimento e encontrava-se em estado deplorável2. Ela foi substituída pela atual igreja, de traça neoclássica, construída entre os finais do século XVIII e o final da década de 30 do século seguinte.
Este artigo abordará os registos devocionais destas duas igrejas, recorrendo a documentos escritos e fotográficos, percorrendo assim um caminho que se inicia no século XVI e chega até os dias atuais.
2. Primitiva igreja de São Mamede de Valongo
A primitiva igreja de São Mamede de Valongo, como mencionado anteriormente, foi construída com características românicas e era de pequenas dimensões, conforme os documentos de 16703 e 17584. Observamos que a nave se manteve inalterada, tendo apenas a capela-mor sido aumentada para se adaptar ao período pós-Concílio de Trento.
Considerando que as Constituições Sinodais exigiam, no final do século XV e no século XVI, a pintura do orago na parede de fundo e a pintura de Cristo, da Virgem e Santos na restante igreja5, podemos supor que a igreja de Valongo recebeu nessa época uma campanha de pintura a fresco que adornou o edifício. Contudo, não encontramos documentos que comprovem essa campanha.
O primeiro documento que menciona imagens, neste caso
3 ADP, Fundo Monástico, livro n°4655, fl. 453.
4 ADP, Fundo Monástico, livro n°4646, fls. 16v.-17v.
2 ANTT, Desembargo do Paço, Minho e Trás-os-Montes, maço 173, n°26, fl. 2f.
5 BESSA, Paula (2019) – A Pintura Mural na Rota do Românico - 2ª Edição. Lousada: Centro de Estudos do Românico e do Território, p.13.
em um retábulo, data de 1593, do Tombo Antigo das terras de Valongo6, onde estavam pintados
São Mamede, São João Batista, São Pedro, São Bento, Nossa Senhora e São Miguel, o Anjo. A descrição do retábulo indica que era maneirista, estilo que unia pintura e escultura.
dores8, é mencionada a existência de dois retábulos colaterais: um dedicado a Nossa Senhora do Rosário e outro a Jesus e à Senhora da Purificação. O inventário também menciona uma coroa de prata de Nossa Senhora do Rosário, com sua veste de festa, e outra de
Foto 1: Retábulo da Capela-mor.
Fonte: ANTT, Mosteiro de S. Bento da Avé-Maria do Porto II, livro n°12, fls. 2 e 2v.
Em 1 de maio de 1598, no inventário dos bens pertencentes às padroeiras, há nova referência ao retábulo, que havia sido repintado alguns anos antes7.
Na mesma data, no inventário das peças pertencentes aos mora-
tafetá branca, sugerindo que essa imagem era uma imagem de vestir, talvez até de roca.
6 ANTT, Mosteiro de S. Bento da Avé-Maria do Porto, II, livro n°12, fls. 2 e 2v.
Foto 2: Despesas dos paroquianos de Valongo. Fonte: ADP, Fundo Paroquial, Valongo, bobine 462, fl. 227.
No inventário da Confraria do Santíssimo Sacramento9, também da mesma data, é referenciado um sacrário dourado com um cofre dourado em veludo carmesim, onde estava o Santíssimo Sacramento, que certamente estava colocado no retábulo-mor da igreja. Este inventário também menciona que a igreja possuía um púlpito e
um coro com órgãos, todos feitos às expensas da confraria.
A Confraria de Nossa Senhora do Rosário, em 14 de maio de 1617, no seu inventário10, não menciona diretamente a imagem dedicada a ela, mas sabemos que continuava a existir, pois são referenciadas, além da coroa de prata, uma série de vestimentas. O inventário alude ainda à existência de uma Nossa Senhora pequena para ser usada em procissões.
Novamente, no inventário das peças pertencentes às padroeiras11, é mencionado o retábulo da capela-mor. No inventário dos moradores12, também de 1617, sabemos que, entre outras peças, permaneciam os dois retábulos colaterais e dois panos de altar, cada um com seu passo da Paixão. É credível supor que, durante a Quaresma, os retábulos eram cobertos com panos pintados com cenas alusivas à morte de Cristo. O inventário também menciona um painel para o arco cruzeiro, que deveria representar o Calvário13, conforme as recomendações das Constituições
Sinodais da época.
No inventário da Confraria de Jesus14, pelas vestes do crucifixo, temos a certeza da existência de Cristo Crucificado, além de uma coroa de prata de Jesus, certamente uma coroa de espinhos. Também aparece no inventário uma carrela em forma de charola (andor), onde ia a imagem na Quinta-feira de Endoenças.
Em 22 de agosto de 1670, no inventário dos pertences das padroeiras, temos a seguinte descrição15: “Hum retabollo grande, no Altar, Maior, dourado, com suas imagens de Pintura, e neste Altar Maior, esta a imagem de Sam Mamede que he dos freiguezes, Padroeiro da dita igreija, e da outra parte esta sam Pedro de vulto, e no meio hum sacrário dourado, em que esta o santisimo, que pertence aos freigezes.” Isso indica que continuamos a ter o retábulo-mor referenciado em 1593, com as suas pinturas, mas, desta vez, indica a existência de duas imagens de vulto, de São Mamede e de São Pedro, que já poderiam estar na igreja no final do século XVI, mas que não foram declaradas, assim como o sacrário, por pertencerem aos fregueses.
No século XVIII, assistimos a um conjunto de obras de “embelezamento” na igreja, substituindo os primitivos retábulos por retábulos que, pela sua descrição, se enquadravam no estilo barroco nacional (merecendo um estudo separado). Assim, em 1724, é contratado o mestre entalhador
15 ADP, Fundo Monástico, livro n°4655, fl. 452v.
Caetano da Silva16 para executar o retábulo e a tribuna da capela-mor. Este entalhador era de boa fama, tendo trabalhado nos retábulos laterais da Sé do Porto. A Confraria de Jesus e de Nossa Senhora do Rosário contratam, em 1729, o mestre José Marques17 para fazer os retábulos colaterais e a talha do arco cruzeiro. Somente nessa data ficamos a saber que o retábulo da Confraria de Nossa Senhora do Rosário ocupava o lado colateral do Evangelho, e o da Confraria do Senhor Jesus, o lado da Epístola.
Nas memórias paroquiais de Valongo18, datadas de 1758, assinadas pelo Reitor Joachim de Souza Dias em 17 de abril, é mencionado que “tem a igreja cinco altares; a saber, o altar do Santíssimo Sacramento que está na capella mor, a cuja fabrica e factura da dita capela hé obrigada abadeça de Sam Bento. Tem o altar do Senhor Jesus, o altar de Nossa Senhora do Rosário, o altar das Almas, o altar de Santo António”.
Foto 3: Altares da Igreja de São Mamede. Fonte: ANTT, Memórias Paroquiais, vol.38, memória 34, fl. 182.
O mesmo documento também indica que, dos cinco retábulos nomeados, apenas o dedicado a Santo António não tinha irmandade. Portanto, na igreja de Valongo, havia quatro irmandades:
Confraria do Santíssimo Sacramento, Confraria de Nossa Senhora do Rosário, Confraria do Senhor Jesus e a Confraria das Almas, que, como veremos adiante, tinha como patrona Nossa Senhora da Purificação.
No mesmo ano, em 8 de maio, nos documentos de medição do edifício, casas de residência e passais19, encontramos uma descrição quase completa da igreja. Na capela-mor, havia um altar com frontal de madeira, de talha dourada, com sacrário e porta também dourados, um retábulo e tribuna eucarística que tinham no trono a imagem, de vulto, do orago da igreja, São Mamede. Na parte da Epístola estava a imagem de São Francisco, e do lado do Evangelho, a imagem de São Pedro.
No arco cruzeiro, havia dois retábulos colaterais: do lado da Epístola, dedicado a Nossa Senhora do Rosário, e do lado do Evangelho, dedicado ao Senhor Jesus; além de dois retábulos laterais, um do lado da Epístola, dedicado à Invocação do Altar das Almas, e outro do lado do Evangelho, dedicado a Santo António.
19 ADP, Fundo Monástico, livro n°4646, fls. 15v.-22v.
O retábulo colateral dedicado a Nossa Senhora do Rosário possui duas imagens da Virgem: uma de maior vulto no alto do retábulo e outra menor sobre a banqueta.
No retábulo colateral dedicado ao Senhor Jesus, é mencionada apenas a imagem de um Cristo Crucificado.
No retábulo lateral com a Invocação do Altar das Almas, havia um quadro em relevo representando as Almas do Purgatório; Nossa Senhora da Purificação, patrona da Confraria das Almas, estava colocada no alto do altar, ladeada pelas imagens do Menino Jesus e de Santa Apolónia. O retábulo com mais imagens é o de Santo António, que apresenta a imagem do santo no alto, com uma imagem das Santas Mães abaixo, referidas no documento como “Senhora Santa Anna, Nossa Senhora e o Menino”, ladeadas, do lado da Epístola, por São Roque e São Bartolomeu, e do lado do Evangelho, por Santa Justa e Santa Rufina. Até a sua demolição, em 1794, não encontramos mais registos.
3. Atual Igreja Matriz de São Mamede de Valongo
A atual igreja matriz teve sua construção iniciada em 5 de março de 1794 e concluída apenas em 1836. Ao longo de quase quarenta anos, sofreu avanços e interrupções devido à conjuntura política da época, que incluiu as invasões francesas, as guerras liberais e a falta de vontade das monjas de São Bento de Avé Maria em custear a construção de uma nova capela-mor, obrigação que lhes competia como padroeiras de São Mamede de Valongo.
Para a sua construção, foram estabelecidos alguns impostos. Em 4 de abril de 178620, foi aprovado o pagamento de um real por cada arrátel de carne e por cada quartilho de azeite e vinho. Em 30 de outubro de 179621, foi complementado com outro imposto de cinco reis sobre cada alqueire de trigo comercializado para abastecer a cidade do Porto, sendo que esse imposto era dividido em partes iguais: metade para as obras da igreja e a outra metade para a
20 ANTT, Desembargo do Paço, Minho e Trás-os-Montes, maço 173, n°26.
21 ADP, Provedoria da Comarca do Porto, livro n°96, fls. lv.-2.
reconstrução da ponte da Carvalha e a reparação da estrada real que ia do Porto até a ponte Ferreira.
A missa nova foi celebrada em 20 de setembro de 182322, tendo sido realizada com um retábulo junto ao arco cruzeiro, uma vez que a capela-mor ainda não estava terminada. Curiosamente, a capela-mor foi a última parte da igreja a ser concluída, pois os valonguenses sentiram a necessidade de aumentar a capela-mor inicialmente programada, risco esse feito pelo arquiteto Joaquim da Costa Lima Sampaio em 182623.
Através da leitura dos livros da Junta da Paróquia da Freguesia de Valongo, conseguimos acompanhar o embelezamento da igreja e tomar conhecimento de alguns dos autores das imagens e pinturas da mesma. Assim, o primeiro retábulo a ser encomendado foi o retábulo-mor, a um riscador real, seguido pelos restantes retábulos, nomeados nos livros como segundos, terceiros e quartos.
22 REIS, Joaquim Alves Lopes (1904) — A Villa de Vallongo. Suas Tradições e História, Descripção, Costumes e Monumentos. Porto: Typographia Coelho, p.238.
23 ADP, Provedoria da Comarca do Porto, livro n°81, fl. 138.
O retábulo-mor recebeu, já na década de cinquenta, as imagens que ainda hoje estão em culto: de São Mamede e de São Pedro, da autoria do escultor Manuel da Fonseca Pinto24, com pintura e encarnação feitas por António José da Costa Veiga25.
Foto 4: Capela-mor. Fonte: Foto de Brás Mendes.
Os seis retábulos da nave foram construídos do arco cruzeiro em direção à entrada, sendo os
primeiros quatro, chamados de segundos e terceiros, dedicados às confrarias existentes na igreja à época, que já possuíam retábulos próprios na antiga igreja. Do lado do Evangelho, está o retábulo do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Purificação, enquanto do lado da Epístola está o retábulo do Senhor Jesus e de Nossa Senhora do Rosário.
Os chamados quartos retábulos foram dedicados, do lado do Evangelho, a São João Batista e, do lado da Epístola, a Santo António, que já recebia honras de altar na primitiva igreja.
O escultor das imagens do Senhor Jesus, Nossa Senhora do Rosário e Santo António pode ter sido João José de Campos26, já que é referido como autor das figuras que adornavam esses retábulos.
O escultor da imagem de São João Batista foi o mesmo que esculpiu as de São Mamede e São Pedro, ou seja, Manuel da Fonseca Pinto, com pintura e encarnação realizadas por António Cunha27.
A imagem colocada no retábulo de Nossa Senhora da Purificação,
26 HVLG/JFVLG/B/005. pp.38 e 38v.
27 HVLG/JFVLG/B/005. p.53v.
tendo em conta o seu estilo, provavelmente foi reaproveitada do primitivo retábulo.
De meados do séc. XIX, são as pinturas feitas para os sete retábulos da igreja. A tela da Ascensão de Cristo ainda se encontra na igreja, enquanto as outras seis estão em depósito no Museu Municipal de Valongo. Cinco delas são do pintor João Batista Ribeiro: Ascensão de Cristo28, para o retábulo-mor; Nossa Senhora da Purificação; Nossa Senhora do Rosário; São João Batista; e Santo António29, estas para seus devidos retábulos. As telas da Adoração do Santíssimo Sacramento e do Senhor Jesus são da autoria de João António Correia.
Em 21 de novembro de 1875, existe uma referência ao Senhor Exposto, possivelmente o Cristo Morto, e em 19 de fevereiro de 1877, há a oferta de um manto de cetim azul bordado a ouro fino com estrelinhas e ramos, oferecido à Nossa Senhora das Dores. Essas imagens ainda estão em culto no Retábulo do Senhor Jesus.
De Francisco José de Resende é o quadro que, até os dias de hoje,
28 HVLG/JFVLG/B/005. p.11.
29 HVLG/JFVLG/B/005. p.29v.
permanece no batistério, com o Batismo de Jesus30, que foi oferecido pelo pintor à paróquia e teria um valor de 500$000 réis. A D.ª Miquelina Dias Alves Queirós Braga deu uma gratificação ao pintor de 76$500 réis, tudo em 1878. Nesse mesmo ano, foi rejeitado um órgão feito por José Joaquim Fonseca31, devido a graves imperfeições, mas a Junta da Paróquia ficou obrigada a pagar, 50$000 réis, pela figura da alegoria da Caridade, que se encontra atualmente sobre o órgão da igreja.
A 16 de maio de 1883, há uma referência ao altar de Nossa Senhora das Dores32, informação que nos permite aferir que o retábulo do Senhor Jesus também era denominado como sendo de Nossa Senhora das Dores.
Chegamos agora a 1911, época em que os bens da igreja foram nacionalizados e houve a necessidade de fazer um inventário dos mesmos.
Em Valongo, o inventário foi feito no dia 1 de agosto33, e, além
30 HVLG/JFVLG/B/007. pp.28v a 30.
31 HVLG/JFVLG/B/007. pp.36 e 28v.
32 HVLG/JFVLG/B/008, p.31v e 32.
33 PT/ACMF/CJBC/PTO/VAL/ARROL/005.
de vários itens que não se encaixam neste artigo, foram inventariados os quatro evangelistas dourados, São Mamede, São Pedro, e ainda “As imagens da Senhora das Dores, Senhor Morto, São João, Santo António; As imagens pequenas de São Mamede, São Pedro, Santa Luzia, São Sebastião, São João; Uma imagem de Christo Crucificado; Uma imagem de Nossa Senhora do Rosário; Uma imagem do Coração de Jesus e Beata Maria; e uma imagem de Santa Justa e outra de Santa Rufina, estando estas duas imagens na residência parochial”.
Foto 5: Inventário de 1911. Fonte: Arquivo Contemporâneo Ministério das Finanças.
Neste inventário para além das imagens mencionadas ao longo do estudo dos livros da paróquia, encontramos também as imagens dos quatro evangelistas dourados: São João Evangelista, São Mateus, São Marcos e São Lucas, que já faziam parte do património da antiga igreja, considerando sua filiação ao estilo barroco, o mesmo ocorrendo com as pequenas imagens de São Pedro e São Mamede. A novidade é a referência aos advogados da peste e dos olhos, São Sebastião e Santa Luzia. A imagem do Sagrado Coração de Jesus e da Beata Maria, cuja devoção surgiu no final do século XIX e início do XX, ainda hoje está presente sobre o sacrário existente no retábulo do Santíssimo Sacramento.
No dia 3 de fevereiro de 1950, o pároco de Valongo, José dos Reis Paupério, ao responder no Inventário dos Bens Eclesiásticos, à pergunta sobre altares e sua invocação responde que a igreja tinha além do altar-mor, os altares do Sagrado Coração de Maria, Imaculada Conceição, São João, Senhora de Fátima, Rosário e Dores. Ter-se-á esquecido de referir o altar dedicado a Santo António.
Pela primeira vez, é feita referência a um novo retábulo, o oitavo, dedicado a Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Afirma, igualmente que existiam trinta e duas imagens de diversas invocações.
Foto 6: Inventário de 1950.
Fonte: Arquivo Diocesano do Porto.
No inventário de 1954, ordenado pela Diocese do Porto, o padre da época descreve os altares da seguinte forma: “Altar mor, Coração de Jesus, Senhora da Conceição e Purificação, São João, N. Senhora de Fátima, Santo António, N. S.ª do Rosário, N. Senhora das Dores”. Assim, notamos que alguns dos altares/retábulos mudaram seu
orago: o do Santíssimo Sacramento passa a ser Coração de Jesus; o de Nossa Senhora da Purificação passou a incluir Nossa Senhora da Conceição; e o retábulo do Senhor Jesus passou a ser denominado de Nossa Senhora das Dores. Mantêm seu orago os retábulos dedicados a São João, Santo António e Nossa Senhora do Rosário.
Foto 7: Inventário de 1954.
Fonte: Arquivo Diocesano do Porto.
Se até agora as nossas fontes foram sempre escritas, agora iremos utilizar fontes fotográficas, com fotografias tiradas em 2008. Iremos descrever os retábulos, começando pelo retábulo-mor, seguido dos três retábulos laterais em direção à porta principal e, depois, os quatro retábulos laterais na da porta principal em direção da capela-mor.
No retábulo-mor, encontramos a tela da Ascensão, que cobre a tribuna eucarística. No lado do Evangelho, está a imagem de São Mamede e, do lado da Epístola, a de São Pedro.
No retábulo do Santíssimo Sacramento, além das já mencionadas imagens do Sagrado Coração de Jesus e da, entretanto canonizada, Santa Margarida Maria de Alacoque sobre o sacrário, encontramos ainda Santa Rita de Cássia e São João de Brito, cuja imagem apresenta uma rara iconografia do seu martírio, esculpida por José
Ferreira Tedim, o mesmo escultor que realizou a imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, que se encontra na Capela das Aparições.
Foto 8: Retábulo do Santíssimo Sacramento / Sagrado Coração de Jesus.
Fonte: Foto do autor (2008).
No retábulo de Nossa Senhora da Purificação, ao centro, está a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que substituiu a Nossa Senhora da Purificação como orago, estando esta a ladeá-la assim como São José.
No retábulo de São João Batista, encontramos a figura do orago ladeado pelo Santo Franciscano, São Gerardo, e pelo Menino Jesus de Praga.
Foto 9: Retábulo de Nossa Senhora da Conceição / Nossa Senhora da Purificação.
Fonte: Foto do autor (2008).
No retábulo dedicado a Santo António, estão o Santo Papa Alexandre, São Sebastião e São Francisco de Sales.
No retábulo dedicado a Nossa Senhora do Rosário, encontramos São Judas Tadeu, Santa Luzia e Santa Teresa de Lisieux, popularmente conhecida como Santa Teresinha do Menino Jesus.
Foto 10: Retábulo de São João Batista.
Fonte: Foto do autor (2008).
Foto 11: Retábulo do Santo António.
Fonte: Foto do autor (2008).
Fonte: Foto do autor (2008).
No retábulo do Senhor Jesus, está a imagem de Nossa Senhora das Dores, e, dentro da mesa do altar, temos o Cristo Morto, já identificado em 1875 como sendo o Senhor Exposto.
13: Retábulo do Senhor Jesus / Nossa Senhora das Dores.
Fonte: Foto do autor (2008).
A igreja passará por uma campanha de restauro em 2009, e, após a conclusão, retornarão aos retábulos apenas as imagens titulares, com a exceção do retábulo do Santíssimo Sacramento, onde permanecerão as imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Santa Margarida Maria de Alacoque, assim como o retábulo de Nossa Senhora da Purificação, que manterá a disposição de 2008, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição ao centro, ladeada por Nossa Senhora da Purificação
Foto 12: Retábulo de Nossa Senhora do Rosário.
Foto
e por São José. Esta é a disposição atual das imagens nos retábulos de Valongo.
Pintados sobre a abóbada da capela-mor, sem data nem autor conhecidos, temos os quatro evangelistas: São João Evangelista, São Mateus, São Marcos e São Lucas.
Na abóbada da nave, encontramos emblemas marianos, como podemos observar na imagem 14. No quadro seguinte, estão com fundo branco as legendas originais em latim, e em sombreado, a sua tradução. A leitura é feita do arco cruzeiro para a porta principal.
Quadro 1 – Emblemas marianos
Lado do Evangelho Lado da Epístola
Sede de Sabedoria Porta do Céu
Sedes Sapientae Janua Coeli
Refugio dos Pecadores Espelho de Perfeição
Refugium Pecatoris Speculum Justitiae
Torre de Marfim Torre de David
Turris Eburea Turris Davidica
Tabernáculo de Eterna
Glória Fonte da Nossa Alegria
Vas Honorifico Causa Nostrae Laetitiae
Rosa Mística X
Rosa Mystica X
Em 1965, a igreja vai ser coberta, exteriormente por azulejos da Fábrica de Cerâmica do Carvalhinho, com desenhos de Fernando
Foto 14: Teto da Nave.
Fonte: Foto de Brás Mendes (2015).
Gonçalves. Nas torres sineiras podemos encontrar quatro painéis dedicados à vida de São Mamede: Nascimento de São Mamede, São Mamede apascentando o rebanho, São Mamede dando esmolas e ainda o Martírio de São Mamede. Através do painel do martírio, podemos aferir por que razão é que o São Mamede é o patrono das doenças dos intestinos, já que podemos observar um soldado romano, com um tridente na mão, pronto para esventrar São Mamede.
:
Para concluir este longo percurso, mencionamos um quadro exposto na sacristia, que vem sendo identificado como a Coroação da Virgem34, mas cuja iconografia vai além de uma simples coroação. Na parte superior da pintura, vemos o Espírito Santo em forma de pomba branca, ladeado por Cristo e Deus Pai. A coroa é colocada sobre a cabeça da Virgem apenas por Deus Pai. Jesus Cristo, que frequentemente segura a coroa, é representado com as duas mãos numa espada, em gesto de a desembainhar, enquanto sua Mãe, com a mão direita, tenta impedi-lo. Esta ação da Virgem de aplacar a ira do Filho pode ser explicada pelo facto de ela estar vestida com o hábito da Ordem da Santíssima Trindade para a Redenção de Cativos35, uma ordem mais dedicada à hospitalidade e às obras de misericórdia do
34 CLETO, Joel, et al. (2023) – O Vale Sagrado – Património Religioso no Concelho de Valongo. Valongo: Câmara Municipal de Valongo, p.205. O hábito da Virgem é erradamente atribuído à Ordem de Malta.
35 «Arte», in Excelsis – exposição do património artístico e religioso do concelho de Valongo. [Disponível em: https://www.cmvalongo.pt/ cmvalongo/uploads/writer_file/document/3974/catalogo_arte_in_excelsis. pdf.
Foto15: Painel de azulejo com o Martírio de São Mamede.
Fonte
Foto do autor (2008).
que a atos militares. Ao longo dos séculos, os membros dessa ordem ofereciam-se em troca da libertação de prisioneiros.
Fonte: Foto de Brás Mendes (2015).
4. Conclusão
Este levantamento, realizado através da documentação por nós consultada, embora possa existir mais documentação à qual não tivemos acesso, permitiu elencar um grande número de devoções existentes ao longo de seis séculos de história nas igrejas matrizes de Valongo.
Algumas devoções mantêm-se desde o início, como é o caso do orago São Mamede, sempre acompanhado por São Pedro, ora na pintura do retábulo do século XVI, ora na sua presença contemporânea em escultura no retábulo-mor, o que já acontecia no final do século XVI.
Da mesma época e inícios do século XVII, há referências às Confrarias do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário, das Almas, tendo como patrona a Senhora da Purificação e do Senhor Jesus. Cada uma destas confrarias viu mantido na igreja nova o seu direito a um retábulo próprio, tendo sido acrescentados, mas já existentes na velha igreja, um retábulo de Santo António e um de São João Batista. Já nos anos 30 do século XX, a igreja atual recebeu um oitavo retábulo dedicado a Nossa Senhora do Rosário de Fátima.
Neste momento, ainda estão em atividade a Confraria do Santíssimo Sacramento e a Confraria das Benditas Almas de Valongo, que tem, como referido, como patrona Nossa Senhora da Purificação.
Foto 16: Coroação de Nossa Senhora da Santíssima Trindade.
Alguns dos retábulos mudaram de nome, como é o caso do retábulo do Santíssimo Sacramento, que passou a ser o Sagrado Coração de Jesus, e do retábulo do Senhor Jesus, que acolhe o nome de Nossa Senhora das Dores, mudanças que nos remetem para outras devoções. Apesar do retábulo de Nossa Senhora da Purificação dar o lugar principal a Nossa Senhora da Conceição, ainda hoje aí está sediada a Confraria das Benditas Almas de Valongo.
Este estudo permitiu também perceber que algumas imagens de capelas estariam na igreja durante o ano e só iriam para o seu lugar de origem na altura das festas, como é demonstrativa a presença de Santa Justa e Santa Rufina nas igrejas. Outras sofreram o caminho inverso, como é o caso de São Francisco e de São Roque, que estavam na igreja primitiva de Valongo e agora se encontram na Capela de Nosso Senhor da Restauração, vulgarmente conhecida como Capela do Calvário.
Por último, um agradecimento a Maria José Coelho de Azevedo36,
36 AZEVEDO, Maria José Coelho de (1999)
– A Igreja Matriz de Valongo – Arquitectura (1794-1836). Vol. I e II [Disponível
que, através do seu estudo da atual igreja de Valongo, nos forneceu várias fontes documentais e bastantes temas que poderão ser estudados no futuro, como é o caso das estruturas retabulares que poderão ser estudadas através da cripto-história.
ADP, Mosteiro de S. Bento da Avé-Maria, livro n°4674.
ADP, Secção Notarial P0-9a, 3a série, livro n°21-F.
ADP, Fundo Notarial, PO-9a, 3a série, livro n° 25-D.
ADP, Provedoria da Comarca do Porto, livro n°81.
ADP, Provedoria da Comarca do Porto, livro n°96.
Arquivo Diocesano do Porto (ADPorto)
ADPorto, Inventário de 1950.
ADPorto, Inventário de 1954.
Arquivo Histórico de Valongo / Junta de Freguesia de Valongo (HVLG/JFVLG)
HVLG/JFVLG/B/005.
HVLG/JFVLG/B/007.
HVLG/JFVLG/B/008.
Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT)
ANTT, Desembargo do Paço, Minho e Trás-os-Montes, maço 173, n°26.
ANTT, Memórias Paroquiais, vol.38, memória 34.
ANTT, Mosteiro de S. Bento da Avé-Maria do Porto II, livro n°12.
Portugal / Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças / Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais / Porto / Valongo / Arrolamento (PT/ACMF/CJBC/ PTO/VAL/ARROL)
PT/ACMF/CJBC/PTO/VAL/ ARROL, Inventário de 1911.
PT/ACMF/CJBC/PTO/VAL/ ARROL, 005.
Bibliografia
«Arte», in Excelsis - exposição do património artístico e religioso do concelho de Valongo. [Disponível em: https://www.cmvalongo. pt/cmvalongo/uploads/writer_ file/document/3974/catalogo_ arte_in_excelsis.pdf].
AZEVEDO, Maria José Coelho de (1999) A Igreja Matriz de Valongo – Arquitectura (17941836). Vol. I e II [Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/ handle/10216/14517].
BESSA, Paula (2019) – A Pintura Mural na Rota do Românico, 2ª Edição. Lousada: Centro de Estudos do Românico e do Território.
CLETO, Joel, et al. (2023) – O Vale Sagrado – Património Religioso no Concelho de Valongo. Valongo: Câmara Municipal de Valongo.
REIS, Joaquim Alves Lopes (1904) – A Villa de Vallongo. Suas Tradições e História, Descripção, Costumes e Monumentos. Porto: Typographia Coelho.
Os caixotões da Igreja de São Martinho de Campo
José Augusto Coelho Abreu Costa
Licenciado em Ciências Históricas
Resumo:
A igreja matriz de São Martinho de Campo em termos de arquitetura é dos inícios do séc. XX, mas detém no seu interior um património de tempos mais remotos. Desse vasto património, destacam-se os trinta caixotões, de linguagem barroca, do teto da capela-mor, sendo que quinze são dedicados ao Rosário e os restantes à vida do orago da igreja, São Martinho de Tours.
Palavras-chave: Barroco, Caixotões, Rosário, São Martinho.
Abstract:
The main church of São Martinho de Campo, in architectural terms, dates back to the early 20th century, but it holds within it a heritage
Técnico superior na Rota do Românico vallispatrimonium@gmail.com from earlier times. Among this vast heritage, the thirty box panels in Baroque style on the ceiling of the main chapel stand out, with fifteen dedicated to the Rosary and the remaining ones depicting the life of the church’s patron, Saint Martin of Tours.
Keywords: Baroque, Box Panels, Rosary, Saint Martin.
1. Introdução
Os caixotões da igreja matriz de São Martinho de Campo são testemunhos do período pós-concílio de Trento1. Devido às decisões que
1 “O Concílio Ecuménico de Trento (1545-1563), realizado durante os papados de Paulo III (1534-1549), Júlio III (1549-1555) e Pio IV (1559-1565), tentou encontrar respostas às questões candentes colocadas pelo confronto
saíram deste Concílio vai ocorrer, por todo o mundo cristão, uma adequação das antigas igrejas e, em muitos casos, a demolição das mais velhas para construir, no mesmo local, novas igrejas que respondam aos novos preceitos emanados.
As igrejas vão ser assim “cobertas” por uma nova ornamentação e uma nova luminosidade, onde a arte vai tomar um importante papel como veículo pedagógico para uma comunidade cristã maiormente analfabeta e que, assim, através da imaginária, da pintura e da azulejaria vai conhecer, através de imagens, a vida de Cristo, da Virgem Maria e dos santos. O dito “horror ao vazio” vai preencher, quase na totalidade, o espaço das igrejas, ora com estruturas retabulares, ora com painéis azulejares ou ainda com a pintura dos tetos das naves e capelas-mores das igrejas.
dos ministérios temporal e espiritual da Igreja de Roma, no século XVI, procurando uma renovação interna como resposta às correntes protestantes que por então se afirmavam no Ocidente Europeu.”
ROSAS, Lúcia Maria Cardoso, et al (textos) (2014) – Rota do Românico. Volume II. Lousada: Centro de Estudos do Românico e do Território, p.43.
É assim que, em pleno séc. XVIII, a capela-mor da primitiva igreja de São Martinho de Campo, que possivelmente terá sido aumentada na mesma época, vai receber trinta caixotões com um programa caracteristicamente tridentino.
Foto 1- Vista geral dos caixotões – Foto do autor (2024)
Os caixotões, já usados na arquitetura clássica, vão ter o seu expoente nos séculos XVII e XVIII, como meio catequético, com pinturas sobre as próprias abóbadas, como acontece na igreja do Mosteiro de Vila Boa do Bispo2 e ainda na igreja de Santo André de Vila Boa de Quires3, ambas no Marco de Canaveses.
2 ROSAS, Lúcia Maria Cardoso, et al. (textos) (2014) – Rota do Românico. Volume I. Lousada: Centro de Estudos do Românico e do Território, pp.357-387.
3 ROSAS, Lúcia Maria Cardoso, et al. pp.331 a 355
Em outros templos, com caixotões de madeira, em divisões quadrangulares ou retangulares, onde se vai usar o seu espaço interior para se proceder à sua pintura, como acontece na igreja de Campo, e por uma questão de proximidade deixamos mais dois exemplos, um na igreja de São Miguel de Gandra e outro na igreja de São Tomé de Bitarães, ambas em Paredes.
Os caixotões de Campo, dos quais desconhecemos a autoria tanto do pintor como do entalhador, têm a particularidade de a obra de talha ser de qualidade muito superior à pintura naïf dos mesmos. Nota-se a inabilidade do pintor, mas, apesar disso, conseguiu com as suas pinturas alcançar o objetivo catequético que lhe terá sido proposto.
Com a demolição da primitiva igreja, logo nos inícios do séc. XX, muito do seu património vai ser reaproveitado. Desde os azulejos figurativos do séc. XVIII, agora na sacristia, aos retábulos com o expoente do belíssimo retábulo-mor barroco da capela-mor, à imaginária religiosa e, claro, aos caixotões, tudo vai ser usado com o mesmo pendor catequético, sendo que a igreja ainda vai ser ornamentada com novos “ensinamentos” dos quais destacamos os azulejos
figurativos do séc. XX, que ladeiam as paredes da capela-mor.
Os trinta caixotões estão divididos em dois temas. Os quinze caixotões mais próximos do retábulo-mor reportam aos três Mistérios do Rosário, subdivididos em Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Os restantes quinze caixotões, neste caso mais próximos do arco triunfal, são dedicados à vida de São Martinho.
É nossa opinião que na passagem dos caixotões para o atual sítio, estes terão sido “completados” com legendas, sendo que, os que são dedicados aos Mistérios do Rosário estão dispostos na ordem correta, mas os dedicados a São Martinho foram colocados de forma aleatória, o que prejudica a sua correta leitura, o que nos leva a apresentar uma proposta de leitura iconográfica.
1. Mistérios do Rosário
Segundo a tradição, terá sido São Domingos de Gusmão (11701221), o fundador da Ordem Dominicana, que implementou e divulgou o costume de se rezar um Rosário. São Domingos terá, em 1208, rumado a França para lutar contra a heresia albigense, heresia que defendia a existência de um Deus bom e um Deus Mau.
Não conseguindo resultados, foi rezar para um bosque e pedir à Nossa Senhora que lhe desse uma arma espiritual para vencer aquela batalha. Ao fim de três dias a rezar a Nossa Senhora, esta apareceu a São Domingos com um terço com as cinquenta ave-marias que começou a ser conhecido como o Saltério da Bem-aventurada Virgem Maria.
Mais tarde, Nossa Senhora apareceu ao beato Alano de Rupe (1428-1475), também da Ordem de São Domingos, e lhe pediu para avivar novamente o culto ao Saltério. Alano criou as agrupações de cinquenta ave-marias conhecidas como Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Acrescentou também os Pai-Nossos no início de cada dezena. Surgia assim o Rosário, como nós o conhecemos hoje, como o grande meio de rezar.
A devoção ao Rosário era de tal maneira intensa, que o Papa Pio V (1566-1572), da Ordem Dominicana, pediu aos soldados que rezassem um Rosário antes da batalha de Lepanto, em 1571. Os soldados assim o fizeram e após a vitória, no dia 7 de outubro, este dia passaria a ser comemorado como o dia de Nossa Senhora do Rosário. Em todo o mundo católico, as igrejas vão receber imagens de Nossa Senhora do Rosário e vão ser fundadas imensas confrarias dedicadas ao Rosário.
O papa João Paulo II (1978-2005) acrescentou ao Rosário mais um mistério, composto por cinco passos Luminosos4 com a seguinte
4
Os mistérios luminosos – [Disponível em: [https://www.vatican.va/special/
Foto 2 – Mistérios do Rosário – Foto do autor (2024)
ordem: Batismo de Jesus no rio Jordão; Autorrevelação de Jesus nas Bodas de Caná; Anúncio do Reino de Deus; Transfiguração de Jesus e Instituição da Eucaristia.
Assim sendo, é com naturalidade que vemos aparecer os quinze passos do Rosário plasmados no teto da igreja de Campo, assim como em outras igrejas, como é o caso da de São Miguel de Tresouras, em Baião, e ainda na igreja do antigo convento dominicano do Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia.
Situados nas três fiadas mais próximas do retábulo-mor, na fiada mais afastada, encontramos os mistérios Gozosos, na fiada central, os Mistérios Dolorosos, e, na fiada mais próxima do retábulo-mor, os Mistérios Gloriosos.
Usaremos, para identificar os Mistérios, os títulos dados pela página eletrónica5 do Vaticano assim como usaremos as citações bíblicas da mesma página. A sua leitura, e o mesmo acontecerá com os restantes mistérios, deverá ser rosary/documents/misteri_luminosi_ po.html] [Consultado em 21/06/2024].
5 Os mistérios do Santo Rosário - [Disponível em: https://www.vatican.va/special/ rosary/documents/misteri_po.html]. [Consultado em 21/06/2024].
feita do lado da Epístola para o lado do Evangelho, nomenclatura geralmente usada nas igrejas, que passamos a explicar: colocando-nos de frente para a capela-mor, a nossa direita corresponde ao lado da Epístola e a nossa esquerda corresponde ao lado do Evangelho.
1.1 Mistérios Gozosos6
No primeiro caixotão, com a legenda “ANUSIASÃO” - Anunciação a Maria - “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria” (Lc 1, 26-27).
No segundo caixotão, com a legenda “VISIT.” - Visitação de Nossa Senhora a sua prima Isabel“Naqueles dias, Maria se levantou e foi às pressas às montanhas, a uma cidade de Judá. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1, 39-42).
4 – Visitação – Foto do autor (2024)
No terceiro caixotão está representado o passo do Nascimento de Jesus - “Naqueles tempos apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este recenseamento foi feito antes do governo de Quirino, na Síria. Todos iam alistar-se, cada um
na sua cidade. Também José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à Cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, para se alistar com a sua esposa Maria, que estava grávida. Estando eles ali, completaram-se os dias dela. E deu à luz seu filho primogênito, e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,1-7).
Foto 5 – Nascimento – Foto do autor (2024)
No quarto caixotão, com a legenda “CIRCUNC” – Circuncisão – “Completados que foram os oito dias para ser circuncidado o menino, foi-lhe posto o nome de Jesus, como lhe tinha chamado o anjo, antes de
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ser concebido no seio materno. Concluídos os dias da sua purificação segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentar ao Senhor, conforme o que está escrito na lei do Senhor: Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor; e para oferecerem o sacrifício prescrito pela lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos”
(Lc 2, 21-24).
No quinto caixotão, com a legenda “DTORES” - Perda e encontro de Menino Jesus no Templo - “Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Tendo ele atingido doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa. Acabados os dias da festa, quando voltavam, ficou o menino Jesus em
Jerusalém, sem que os seus pais o percebessem... Três dias depois o acharam no templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. Todos os que o ouviam estavam maravilhados da sabedoria de suas respostas” (Lc 2, 41-47).
1.2. Mistérios Dolorosos7
No primeiro caixotão, com a legenda “Horto”, o passo da Agonia de Jesus no Horto - “Retirou-se Jesus com eles para um lugar chamado Getsêmani e disse-lhes: “Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar”. E, tomando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu,
Foto 7 – Cristo entre do Doutores – Foto do autor (2024)
começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes, então: “Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai comigo”. Adiantou-se um pouco e, prostrando-se com a face por terra, assim rezou: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (Mt 26, 36-39).
No terceiro caixotão, com a legenda “CROASAO” - Coroação de Espinhos. “Os soldados do governador conduziram Jesus para o pretório e rodearam-no com todo o pelotão. Arrancaram-lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate.
No segundo caixotão, temos o passo da Flagelação de Cristo“Então lhes soltou Barrabás; mas a Jesus mandou açoitar, e o entregou para ser crucificado” (Mt 27,26).
Foto 8 – Horto das Oliveiras – Foto do autor (2024)
Foto 9 – Flagelação – Foto do autor (2024)
Foto 10 – Coroação de Espinhos – Foto do autor (2024)
Depois, trançaram uma coroa de espinhos, meteram-lha na cabeça e puseram-lhe na mão uma vara. Dobrando os joelhos diante dele, diziam com escárnio: Salve, rei dos judeus!” (Mt 27, 27-29).
No quarto caixotão, encontramos o passo de Jesus carregando a cruz a caminho do calvário - “Passava por ali certo homem de Cirene, chamado Simão, que vinha do campo, pai de Alexandre e de Rufo, e obrigaram-no a que lhe levasse a cruz. Conduziram Jesus ao lugar chamado Gólgota, que quer dizer lugar do crânio” (Mc 15, 21-22).
lugar chamado Calvário, ali o crucificaram, como também os ladrões, um à direita e outro à esquerda. E Jesus dizia: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”... Era quase à hora sexta e em toda a terra houve trevas até a hora nona. Escureceu-se o sol e o véu do templo rasgou-se pelo meio. Jesus deu então um grande brado e disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. E, dizendo isso, expirou” (Lc 23, 33-46).
1.3. Mistérios Gloriosos8
No quinto caixotão, temos o passo da Crucifixão e morte de Jesus - “Chegados que foram ao
No primeiro caixotão, com a legenda “RESUR” - Ressurreição de Jesus - “No primeiro dia da semana, muito cedo, dirigiram-se ao sepulcro com os aromas que 8 Mistérios Gloriosos – [Disponível em: [https://www.vatican.va/special/ rosary/documents/misteri_gloriosi_ po.html]. [Consultado em 21/06/2024].
Foto 11 – Caminho do Calvário – Foto do autor (2024)
Foto 12 – Crucificação – Foto do autor (2024)
haviam preparado. Acharam a pedra removida longe da abertura do sepulcro. Entraram, mas não encontraram o corpo do Senhor Jesus. Não sabiam elas o que pensar, quando apareceram em frente delas dois personagens com vestes resplandecentes. Como estivessem amedrontadas e voltassem o rosto para o chão, disseram-lhes eles: Por que buscais entre os mortos aquele que está vivo?
Não está aqui, mas ressuscitou” (Lc 24, 1-6).
No segundo caixotão, com a legenda “ASCENS” - Ascensão de Jesus ao Céu - “Depois que o Senhor Jesus lhes falou, foi levado ao céu e está sentado à direita de Deus” (Mc 16, 19).
No terceiro caixotão, com a legenda “ESPIRITO.S.” - Vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos - “Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At 2, 1-4).
Foto 13 – Ressurreição – Foto do autor (2024)
Foto 14 – Ascensão – Foto do autor (2024)
No quarto caixotão, com a legenda “ASOBINDO AO CEU”Assunção da Virgem Maria - ”Por isto, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações, porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo” (Lc 1, 48-49).
No quinto caixotão, com a legenda “COROACÃO DA V:M:” - Coroação de Maria no Céu“Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap 12, 1).
Foto 15 – Pentecostes – Foto do autor (2024)
Foto 16 – Assunção da Virgem – Foto do autor (2024)
Foto 17 – Coroação da Virgem – Foto do autor (2024)
O orago da paróquia de Campo é São Martinho e já aparece assim referenciado nas Inquirições de Afonso III, de 1258. Este santo, com várias paróquias a ele dedicadas em todo o mundo cristão, foi e continua a ser um dos mais venerados no mundo da igreja Cristã. Com o dia 11 de novembro como o seu dia de festa, o dia da sua morte é ligado desde tempos imemoriais ao vinho, sendo por todos conhecido o provérbio “em dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. É também muito conhecido como o santo da caridade, devido à partilha da sua capa militar com um pobre cheio de frio, assunto a que voltaremos mais à frente, e
é padroeiro e protetor de muitas outras situações9.
É assim, com naturalidade, pelas razões já expostas atrás, que no séc. XVIII, a capela-mor da primitiva igreja de São Martinho vai receber os quinze caixotões com a vida deste santo, tal como tinha acontecido nos finais do séc. XVII, na igreja de São Vicente de Sousa10, Felgueiras, aqui com vinte caixotões dedicados à vida de São Vicente e dez aos seus milagres.
Com a demolição desta igreja e a feitura de uma nova nos inícios do séc. XX, os caixotões foram reaproveitados e colocados no teto da capela-mor e na nossa opinião, como já referimos, foram legen-
9 Padroeiro: dos alfaiates, armeiros cavaleiros, curtidores de pele, fabricantes de escovas, fabricantes de luvas e chapéus, fabricantes de roupa, dos hoteleiros e hospedeiros, dos moleiros, militares, vindimadores, pastores, tanoeiros, tecelões, vinhateiros, viajantes; padroeiro do cantão de Scwytz e de Burgenland. Protetor: dos pobres e mendigos, dos presos, dos animais domésticos, contra as erupções cutâneas, contra a erisipela, contra as mordeduras venenosas, invocado contra a infertilidade dos campos. SILVA, Alberto Júlio (2012) – Os nossos Santos e Beatos… Lisboa: A Esfera dos Livros, p. 250.
10 AZEVEDO, Carlos A. Moreira (2016) Estudos de Iconografia Cristã. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, p.159 -162.
2. Vida de São Martinho
Foto 18 – Vida de São Martinho – Foto do autor (2024)
dados nessa época, catorze com S. MARTO e um erradamente como S. TIAGO, escrito em espelho11. É nossa opinião que a sua ordem de colocação foi completamente adulterada e por esta razão, iremos proceder à sua ordenação tendo por base a leitura do capítulo a ele dedicado do livro Flos Sanctorum12 que terá sido usado pelo pintor dos caixotões para aí plasmar partes da vida de São Martinho.
No quadro seguinte, que representa os quinze caixotões, podemos encontrar com letras a sua atual colocação e com números a sua ordenação proposta, mediante a linha cronológica da vida de São Martinho.
Não faremos a descrição das pinturas, podendo estas ser observadas nas fotos, mas iremos usar trechos do já citado livro, Flos Santorum, que explicam cada um dos quadros que vão ser apresentados por ordem cronológica.
Caixotão 1 - “Sendo de 10 annos foy à igreja, contra a vontade de seus pais, amoestado pelo Spirito divino e fez-se catecúmeno.13”.
Foto 19 – São Martinho torna-se catecúmeno –Foto do autor (2024)
O/4 N/11 M/8 L/10 K/14
11 Moreira, Paulo Caetano (2023) - «Itinerários do Caminho de Santiago no Concelho de Valongo: Algumas breves evidências», in Revista Vallis Longus. História. Arte. Cultura, série II nº 1 (2023). Câmara Municipal de Valongo: Valongo, p.177.
12 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681) – Flos Sanctorum… Lisboa: Antonio Craesbeek de Mello, p.813-819.
Caixotão 2 - “Logo maravilhosamente se mudou no serviço de Deus e sendo de doze annos dezejou ir ao hermo, e puzerão por obra, se a pouca idade se lho não impedira.14”.
13 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 813.
14 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681) – Flos Sanctorum… Lisboa: Antonio Craesbeek de Mello, p. 814.
Caixotão 3 - “Mas como mandassem os Emperadores que os filhos dos Cavaleyros velhos se armassem cavaleyros, e fossem servir em lugar dos pays, foi armado S. Martinho Cavaleiro contra a sua vontade, sendo de idade de quinze anos.15”.
Caixotão 4 - “E foy constrangido a ir servir no seu officio, e não quiz levar consigo mais que um criado consigo, e muytas vezes servia S. Martinho ao seu criado, e descalçavao, e alimpavalhe os çapatos e faziao comer consigo à mesa.16”.
Caixotão 5 - “Não tinha mais que huma capa militar com que hia vestido, tudo o mais tinha gastado em obras pias, arrancou da espada que levava cingida, e cortou a capa pelo meio e deu a metade ao pobre e com a outra parte se tornou a cobrir.17”.
15 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814.
16 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814.
17 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814.
Foto 20 – São Martinho vai a um lugar ermo –Foto do autor (2024)
Foto 21 – São Martinho é armado cavaleiro – Foto do autor (2024)
Foto 22 – São Martinho lava os pés do criado –Foto do autor (2024)
Caixotão 6 - “Na seguinte noite estando dormindo lhe apareceu Nosso Senhor Jesu Christo vestidoo a parte da capa que dera ao pobre. E disse em clara voz à multidão de Anjos que com ele vinham, Martinho não sendo ainda bautizado me cobrio com esta capa.18”.
do autor (2024)
Caixotão 7 - “Vendo isto o Varão Santo, não se ensoberbeceo, mas
18 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814.
conhecendo na sua obra a bondade de Deos, sendo de dezoito annos foy receber o bautismo.19”.
Caixotão 8 - “E parecendo-lhe que então tinha tempo conveniente em que podia despedirse da milícia, e não ser justo receber premio, determinado de deyxar a guerra, disse ao Emperador. Tè agora Cesar te servi em tuas batalhas, daquy a diante ei de servir a Deus nas suas, e por tanto não quero o teu soldo, mas dao a outrem.20”.
19 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814.
20 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814.
Foto 23 – São Martinho partilha a sua capa militar com um pobre – Foto do autor (2024)
Foto 24 – Aparição de Cristo a São Martinho restituindo a capa – Foto
Foto 25 – Batismo de São Martinho – Foto do autor (2024)
Foto 27 – São Martinho torna-se exorcista – Foto do autor (2024)
Caixotão 9 - “Vendo Santo Hilario o fervor e santidade, deste glorioso Santo Varão, querendoo mais obrigar às cousas divinas quilo ordenar Diácono, mas resistindo muitas vezes S. Martinho, dizendo que era indigno de tal officio, offereceolhe o officio de exorcista (como em lugar de injúria) o qual elle não enjeitou.21”.
Caixotão 10 - “Porque indo entre os montes Alpes, o tomarão ladrões, e hum deles levantou a espada pera lhe dar, e o outro recebeo o golpe tendo mão nelle, que lhe não desse, e romaram-no, e ataraõlhe as mãos atraz, e deram-no a hum deles que o guardasse, o qual lhe perguntou se tinha medo, e elle respondeu. Nunca estive mais seguro, porque sei que nunca falta ao homem nas tentações a misericordia divina e começou pregar ao ladrão e converteuo à fé de Nosso Salvador, e o ladrão o levou ao caminho, e recolheose a servir a Jesu Christo.22”.
21 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 814 e 815.
22 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 815.
Foto 26 – São Martinho renuncia ao estatuto de Cavaleiro – Foto do autor (2024)
Foto 28 – São Martinho converte um ladrão –Foto do autor (2024)
Caixotão 11 - “Passando São Martinho junto da cidade de Milão, apareceolhe o Demonio em forma humana, e perguntou onde hia. Respondeoelle, que ia onde Deos o guiasse e disselhe o Spirito mao. O Demonio terá contra ti donde que rque fores. Respondeo o Santo: o Senhor he meu ajudador, por tanto, não temerey o que o homem possa fazer. Ouvindo isto o demónio desapareceo e nunca o mais vio.23”.
Foto 29 – São Martinho expulsa do demónio –Foto do autor (2024)
Caixotão 12 - “Chegando o Santo Varão à terra converte a mãe à ´fé Catholica, mas o pay não se quis converter.24”.
Foto 30 – São Martinho converte a sua mãe –Foto do autor (2024)
23 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 815.
24 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 815.
Caixotão 13 - Neste caso, temos São Martinho representado na cidade de Milão.
Caixotão 14 - “Crecendo por todo o mundo a heresia dos Arrianos e sendo-lhe mais que S. Martinho contrarios, foy açoutado e lançado da cidade, e tornou-se pera Milão.25”
Caixotão 15 - “Tendo hum discípulo São Martinho, que era ainda catecúmeno e estando São Martinho ausente, um seu discípulo adoeceu aquelle discípulo e morreo. E tornando o Varão de Deos, e achandoo morto sem bautismo, tomou o seu corpo levouo para sua cella e lançouse sobre elle fazendo oração ao Senhor e resucitouo, e recebeo logo o santo bautismo, e viveu por muytos anos.26”.
Foto 33 – São Martinho ressuscita um seu discípulo – Foto do autor (2024)
Conclusão
25 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 815.
Os caixotões da igreja de São Martinho de Campo com pinturas sobre os três Mistérios do Rosário e com quinze quadros da vida de São Martinho de Tours, cumprem, ainda hoje, o preceito para o qual foram pintados: dar a conhecer, a 26 ROSÁRIO, Frey Diogo (1681), p. 815.
Foto 31 – São Martinho permanece em Milão –Foto do autor (2024)
Foto 32 – São Martinho é expulso da cidade –Foto do autor (2024)
uma população que à época era analfabeta, através da pintura, temas tão queridos da Igreja como é o caso dos Mistérios do Rosário e a vida do orago.
Este meio de ensinar pela imagem foi igualmente usado, nos inícios do séc. XX, nas paredes laterais da capela-mor com azulejos que retratam personagens bíblicas. Algo que aconteceria possivelmente na primitiva igreja, como se pode observar na sacristia do lado do evangelho, onde se encontram azulejos figurativos do séc. XVIII, com cenas da vida de São Jerónimo.
Este trabalho tem assim como objetivo principal valorizar a pintura existente nos caixotões e ao mesmo tempo sugerir, numa futura obra de conservação e salvaguarda do edifício, a colocação dos caixotões dedicados à vida de São Martinho no seu devido lugar.
Bibliografia
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ROSÁRIO, Frey Diogo (1681) –Flos Sanctorum... Lisboa: Antonio Craesbeek de Mello.
ROSAS, Lúcia Maria Cardoso, et al. (textos) (2014) – Rota do Românico. Volume I. Lousada: Centro de Estudos do Românico e do Território.
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O limite ocidental do Concelho de Valongo. Revisitando as antigas
demarcações de freguesias maiatas.
Ricardo Ribeiro
Licenciado em Economia – U. Porto Presidente da Direcção da AL HENNA ricardo.jorge.m.ribeiro@gmail.com
“Indivíduos que não sabem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma, nem de nenhuma pessoa, não devem ir à urna, para não se dizer que foi com carneiros que confirmamos a República.”1
“Sabe V. Exa. qual é o nosso mal? Não é má vontade dessa gente; é muita soma de ignorância. Não sabem. Não sabem nada. Eles não são maus, mas são umas cavalgaduras!”2
Resumo:
1 Afonso Costa, discurso no Parlamento a 12 de Junho de 1913, no âmbito do debate do Código Eleitoral. Veja-se PALMA, Nuno (2023) – As causas do atraso português. Repensar o passado para reinventar o presente, 4.ª edição revista. Lisboa: Publicações D. Quixote, p.195 e COSTA, Afonso (1976) – Discursos Parlamentares 1911-1914 (compilação por A.H. de Oliveira Marques). Lisboa: Livraria Bertrand, p.533.
Considerando que os limites oficiais entre as freguesias dos concelhos de Valongo e da Maia, ainda permanecem como «não confirmados», tendo em conta que estão em curso negociações entre os dois municípios para se proceder à correcção desses limites oficiais, entendemos ser pertinente
2 QUEIRÓS, Eça de (1888) – Os Maias. Porto: Livraria Chardron. 5.ª Edição (1992). Lisboa: Livraria Ulisseia de Autores Portugueses. p.156.
revisitar as antigas demarcações de algumas freguesias maiatas de outrora, limites históricos, mas também naturais, com a preocupação de ajudar a elucidar e a evitar que se repitam erros do passado recente.
Palavras chave: Limites, Alfena, Ermesinde, Folgosa, São Pedro Fins, Águas Santas
Abstract:
Considering that the official limits between the parishes of the municipalities of Valongo and Maia still remain “unconfirmed”, taking into account that negotiations are ongoing between the two municipalities to correct these official limits, we believe it is pertinent to revisit the old demarcations of some Mayan parishes of the past, historical limits, but also natural ones, with the aim of helping to clarify and prevent mistakes from the recent past from being repeated.
Keywords: Limits, Alfena, Ermesinde, Folgosa, San Pedro Fins, Águas Santas.
1. Introdução
Quando recebemos o convite do Prof. Joel Mata para colaborarmos com um texto para a Revista Vallis Longus, de entre os temas que surgiram na mente, rapidamente nos inclinamos para um texto em torno do tema que, em 2010, serviu de gatilho para a fundação da nossa associação, a «AL HENNA – Associação para a Defesa do Património de Alfena»3, a grosseira discrepância entre os limites administrativos constantes da CAOP4 e aqueles que conhecemos como históricos ou até, como veremos, até certo ponto, naturais. Como demonstramos no trabalho elaborado em 2010-11, e publicamente apresentado no CCA5, em 30 de Novembro de 20116, a origem dessa discrepância
3 RIBEIRO, Ricardo (2012.06.30) – «AL HENNA – Em defesa do Património de Alfena» in A Voz de Ermesinde p.13 [disponível em https://alhenna.pt/ publicacoes/artigos-a-voz-de-ermesinde/alhenna-artigos-i-1/]. [Consultado em 29/09/2024]
4 Carta Administrativa Oficial de Portugal
5 Centro Cultural de Alfena
6 RIBEIRO, Ricardo (2011) - «Alfena, a Cidade e seus Limites» [disponível em https://alhenna.pt/publicacoes/ limites-territoriais/]. [Consultado em 29/09/2024]
divide-se em dois momentos históricos:
- o primeiro relacionado com a Comissão Nacional do Ambiente, criada em 1971 e que, de entre os primeiros trabalhos, decidiu levar a cabo a elaboração da Carta do Ambiente, que incluía a Carta Administrativa de Portugal, mapa onde apareceriam representados os limites das freguesias portuguesas. O modus operandi desse levantamento dos limites administrativos foi o do inquérito, “juntando em volta de uma mesa os conhecedores da área (párocos, caçadores, lenhadores, simples homens idosos, etc) e os responsáveis locais”7 foram definidos, freguesia a freguesia, os limites que viriam a constar dessa primeira Carta Administrativa de Portugal. Ocorre que, por essa altura, na sequência da chamada «Questão da Bouça das Escolas», existiu um certo alheamento dos «homens antigos» da Junta de Freguesia de Alfena e um afastamento da Câmara Municipal de Valongo, que se terá apoiado na figura do Pároco, também
7 CUNHA, José Correia da (1980) – A Carta Administrativa de Portugal e a sua contribuição para a investigação urbana e regional. Lisboa: Comissão Nacional do Ambiente.
ele de recente nomeação e sem grande conhecimento do território, daí resultando o «desenho em losango» para a freguesia de Alfena, surgido na carta de 1979, mas cuja primeira aparição data de 1793, na capa da monografia da freguesia;8
- o segundo momento ocorre na Primavera de 2000, nos trabalhos preparatórios dos Censos 2001, quando o INE9 vem ao terreno reunir com os responsáveis das freguesias no sentido de definir, com mais rigor, os limites das freguesias, para fins estatísticos, reunião essa que teve lugar a 4 de Abril de 2000, com representantes da Câmara Municipal de Valongo e das Juntas de Freguesia10. Mais uma vez, a falta de conhecimento e a ausência de consulta das pessoas mais velhas ou com mais conhecimentos da matéria, redundou em erros ainda mais grosseiros, agravados pelo facto de, em Agosto de 2002, um grupo de trabalho criado no Ministério do Planeamento para tentar “alcançar uma solução para
8 MOREIRA, Domingos A. (1973) - ALFENA, a terra e o seu povo. Cucujães: Esc. Tip. das Missões
9 Instituto Nacional de Estatística.
10 Segundo informação prestada pelos serviços do INE, por carta de 2009.10.30.
o problema da delimitação administrativa”11 ter adoptado como base, precisamente esse trabalho recolhido pelo INE.
A par disso temos ainda os limites administrativos entre municípios, que surgiram, pela primeira vez, nas Cartas Militares das décadas de 1940-50, e cujos fundamentos, infelizmente, já se perderam, segundo informação obtida junto do Arquivo do IGeoE.12
Após esse nosso trabalho de 2010-11, foi possível «serenar os ânimos» das freguesias vizinhas e alcançar um acordo que permitiu aproximar os limites de freguesia interiores ao município dos limites históricos e vertê-los na Lei N.º 33/2017, de 2 de Junho.13
Permanece, então, ainda em aberto a questão dos limites exteriores do município, os quais constam na CAOP como «limites não confirmados». E sabemos, através de várias fontes, que, sobre estes, decorrem negociações entre
11 Segundo informação prestada pelos serviços do IGP, por e-mail de 2005.05.27.
12 Instituto Geográfico do Exército.
13 Diário da República N.º 107/2017, de 2 de Junho de 2017, pp.2743-2745.
os Municípios de Valongo e da Maia com vista à sua correcção. É precisamente para tentar evitar que se repitam os mesmos erros do passado que nos leva a redigir o presente artigo. Para alertar quem tem o processo em mãos que existem várias pessoas com conhecimentos na matéria e várias fontes documentais, «papéis velhos» como alguém recentemente classificou, que explicam quais são os limites históricos das freguesias, no caso os limites ocidentais e setentrionais das freguesias de Alfena e Ermesinde, com as suas congéneres da Maia e que formam o limite ocidental do município de Valongo.
Por fim, uma pequena explicação para as citações que prefaciam o presente artigo, a de Eça de Queirós, julgo que dispensa grandes explicações, porquanto terá sido o escritor português que melhor nos descreveu, nas nossas idiossincrasias; mas a aparentemente estranha escolha de uma citação do líder jacobino da I República, Afonso Costa, que ultimamente parece ter alguns seguidores na política nacional, esta última, julgo que merece um pouco mais de explicação. Pretende-se, tão só,
recordar esses seguidores que, na visão do «Grande Líder Jacobino», alguns deles, por desconhecerem “os confins da sua paróquia”, não deveriam sequer ter direito de voto, quanto mais o de ser eleito…
2. Alguns conceitos de História e Geografia relacionados com limites
2.1. Freguesia vs. Paróquia
O paralelismo entre as mais pequenas das divisões civis e eclesiásticas do território é tal que, durante muito tempo, ostentaram a mesma designação, «Paróquia», só assumindo a actual designação de «Freguesia» em 1916, e mesmo esta designação está intimamente ligada à Igreja, uma vez que a freguesia é o conjunto dos fregueses, e «freguês» deriva da expressão latina «fillius ecclesiae», ou seja, «filho da igreja»14.
Deste modo, facilmente chegamos à conclusão que as actuais freguesias herdaram um território que tinha sido definido para as paróquias eclesiásticas. Socorrendo-nos de um trabalho do
14 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1936), Vol. XI. Lisboa; Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia. p.819.
Prof. Espinha da Silveira em torno da chamada «Reforma Administrativa Liberal»,15 em parte citando o Prof. José Mattoso,16 ficamos a perceber a razão que levou à delimitação das paróquias:
A origem das paróquias é coetânea das dioceses. Aquelas surgiram como igrejas dependentes das catedrais situadas nas cidades. No início, as paróquias possuíam áreas relativamente extensas que, com o andar dos tempos, se foram fragmentando. Até ao século XIII, à semelhança das dioceses, não teriam um território claramente definido: «A igreja paroquial concebia-se mais como um lugar onde se reuniam pessoas do que com centro de um espaço geográfico; pertenciam à paróquia os fiéis que nela se baptizavam e recebiam os sacramentos.» É a cobrança dos dízimos, que se vai tornando obrigatória naquele século, que leva à necessidade de delimitar a área paroquial e a submeter ao pároco os habitantes de uma determinada zona.17
15 SILVEIRA, Luís Nuno Espinha da (1997)Território e Poder. Nas Origens do Estado Contemporâneo em Portugal. Cascais: Patrimonia Historica.
16 MATTOSO, José (2015) - Identificação de um País. Oposição. Composição. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). Lisboa: Temas e Debates (1.ª Edição, em 2 vol: 1985). p.475
17 SILVEIRA (1997) p.44-45.
Aqui chegados é importante referir o direito de padroado, ou seja, o direito de apresentar (nomear) o pároco, bem como o de cobrar o imposto religioso, o dízimo.18 Esse direito podia competir ao Rei, ao Bispo da Diocese, a Mosteiros ou Ordens Religiosas, ou mesmo a Nobres, que se designavam de padroeiros. Os padroeiros tinham, pois, todo o interesse em manter bem delimitada a área da respectiva paróquia, de modo a evitar perdas de cobrança do imposto ou outros direitos.
A partir do século XIII vão começar a surgir demarcações de paróquias, por exemplo a paróquia de São Pedro de Agrela, por ser terra reguenga, teve a demarcação dos seus limites transcrita nas Inquirições de 1258 e sabemos que o limite sul (que é também o limite com a freguesia de Sobrado) corresponde à cumeada da Serra do Penedo («Marmoralia de Ansaroy»);19 mas é sobretudo a partir
18 RIBEIRO, Ricardo (2012.10.31) – «A Delimitação da freguesia de Alfena – 1689/90» in A Voz de Ermesinde p.9 [disponível em https://alhenna.pt/ publicacoes/artigos-a-voz-de-ermesinde/alhenna-artigos-iii-1/]. [Consultado em 29/09/2024].
19 Portugaliae Monumenta Historica –Inquisitiones (1897), Vol. I, f.525 Lisboa:
do Século XVII que se vão intensificar esses procedimentos de demarcação, sempre com base em Provisão Régia (para lhes dar «força de Lei») na qual o monarca nomeava um Juiz (normalmente Desembargador) para presidir ao processo de inventariação dos bens ou direitos dos padroeiros, demarcação da área paroquial e julgar as eventuais reclamações.
Para o presente artigo são importantes os Tombos do Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra; da Comenda de Santa Maria de Águas Santas; e Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, padroeiros de Alfena, Águas Santas e São Pedro Fins, respectivamente, que realizaram processos de demarcação dessas paróquias.20
Academia das Ciências de Lisboa
20 Infelizmente, o Mosteiro de Santo Tirso, que era o padroeiro de São Lourenço de Asmes (actual Ermesinde), de Salvador de Folgosa e de Santa Cristina do Coronado (actual lugar de Santa Cristina – Folgosa), parece não ter sido tão rigoroso como os restantes pois, a ter havido demarcação destas paróquias, essas não constam do espólio monástico que chegou até nós. No caso da Comenda de Águas Santas, por ser o senhorio da totalidade das terras da aldeia de Baguim de Alfena, também são importantes as demarcações que aquela comenda fez dessa aldeia da paróquia de São Vicente de Alfena,
2.2. A Geografia e a Economia na determinação dos limites
Numa economia essencialmente agrária, especialmente no Minho após a Revolução do Milho,21 a água e a sua gestão assumiam uma importância determinante, pelo que vamos encontrar muitos critérios de natureza orográfica e hidrográfica na fixação dos limites.
Um dos mais antigos critérios de fixação de limites é o da divisão das águas («aquarum divortium»), as linhas de cumeada, ou como muitos dos textos de demarcação que chegaram até nós referem, as «augas vertentes»:
Os acidentes mais bem marcados, como as linhas de cumeada e os cursos de água, serviram sempre ao homem para traduzir no espaço as suas convenções territoriais, quer ao simples nível de delimitação da propriedade, quer ao da partilha administrativa, quer, ainda, quando se trata de estabelecer as fronteiras entre estados soberanos. Estas resultam sempre de um facto político, da vontade dos homens, mesmo quando assinalados por vigorosos acidentes físicos que apenas contribuíram para especialmente na parte confrontante com Santa Cristina do Coronado.
21 RIBEIRO, Orlando (1945) - Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre (2.ª edição – 2021) p.156-167.
neutralizar e equilibrar duas forças antagónicas.
Nas regiões montanhosas, as populações estabelecem-se nos vales e agricultam os fundos e as encostas mais suaves, a partir das quais sobem nas vertentes com as suas actividades complementares de tipo silvo-pastoril. Assim, as linhas de cumeada são frequentemente assumidas como limite de áreas de influência, posse ou partilha do território. Por isso, elas nos aparecem muitas vezes a coincidir com os contornos das circunscrições administrativas.22
Quando o relevo assim o impunha, normalmente os limites das áreas de influência das comunidades eram fixados nas linhas de cumeada; ou no caso dos rios mais caudalosos, de mais difícil atravessamento, pelo leito do rio; quando partilhavam o mesmo vale, uma a montante e outra a jusante, normalmente o limite das comunidades era definido por uma linha,
22 MARQUES, Bernardo de Serpa (1986) – «Notas acerca da evolução do mapa administrativo da área da bacia do Douro (séculos XIX e XX)» in Revista Observatório - N.º 1 – Dezembro de 1990 – Actas do 1.º Congreso Internacional sobre o Rio Douro – 25 de Abril a 2 de Maio de 1986. Vila Nova de Gaia: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. p.141162
mais ou menos, equidistante das aldeias; nas regiões mais planas, a divisória nem sempre era tão «linear», existindo mesmo a figura dos «terrenos promíscuos», terras de uma comunidade encravados nos de outra comunidade, como forma de uma mais justa partilha das melhores terras aráveis, por ambas as comunidades.
Uma outra definição geográfica que será importante para o presente trabalho é a de saliente. Em geografia chamamos saliente a uma parte, longa e estreita, do território que sobressai da restante área. Ficaram famosos os salientes que resultaram da partilha de África, principalmente os das colónias alemãs, destinados a permitir o acesso dos germânicos a recursos fluviais do interior do continente; ou mesmo, o corredor de Wakhan, um estreito corredor nas montanhas do Pamir, entregue ao Afeganistão, durande o «Grande Jogo», para impedir que os impérios Russo e Britânico se tocassem.
A freguesia de Ermesinde, no seu extremo Norte, também dispõe de um saliente, o saliente das Cardosas, cuja razão de ser, como veremos mais à frente, é muito mais prosaica.
3. O limite de Alfena com Folgosa e São Pedro Fins
Pode parecer estranho que se fale em limite entre as freguesias de Alfena e São Pedro Fins, quando a generalidade dos mapas recentes, incluindo a famigerada CAOP, nos apresentam apenas um limite entre Alfena e Folgosa, mas «de facto» e «de jure» esses mapas estão errados, como demonstraremos mais à frente.
Mas dado que este limite tem alguns cambiantes, fazendo uso da demarcação contante do Tombo da Igreja de São Vicente de Alfena23 mas aproveitando, complementarmente, outros documentos, iremos dividi-lo em três trechos, para melhor percebermos a sua lógica.
3.1. O limite entre as aldeias das Ferrarias e de Vilar de Luz
Em 25 de Junho de 1689, o Doutor Cristóvão Alão de Morais, Juiz do Tombo da Igreja de Alfena, Desembargador da Relação do Porto e antigo Corregedor da Comarca de Coimbra, seguindo uma provisão 23 Tombo da Igreja de São Vicente de Alfena (1689-90) – Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra, ColCarmo10, Arquivo da Universidade de Coimbra (Cópia digitalizada em 2012.05.11)
régia do Príncipe Regente (o futuro D. Pedro II) de 2 de Agosto de 1681, dava início à Demarcação no sítio de Saínhas, no exacto ponto onde se separam três freguesias, Alfena (para Sul), Folgosa (para Poente) e Água Longa (para Nascente), mandando que se colocasse um marco de granito com as letras «CARMO» voltadas para o lado de Alfena.24 Para que a Demarcação fosse segura e justa, o Juiz fez-se acompanhar no acto pelo Procurador do Colégio do Carmo (do lado
1 - Marco de Saínhas (CARMO).
Fonte: Foto do autor (2010).
24 Marco apresentado na Fig. 1, com letras do monograma «CARMO» realçadas, para melhor percepção. Neste mesmo lugar, hoje apenas se encontra um prisma mais recente e regular (que na foto se avista por detrás), assinalando esta divisória, uma vez que o marco original, por se encontrar solto e se temer o seu desaparecimento, por sugestão da nossa Associação, em 2019, foi retirado do local, estando à guarda da Junta de Freguesia de Alfena.
de Alfena), pelo Abade de Folgosa (Rev. Pedro da Fonseca Coutinho), por dois louvados (um de cada freguesia), pelo escrivão do Tombo e pelo porteiro ou pregoeiro, o qual, após colocar cada um dos marcos lançava pregão “para que, com pena de quatro anos de degredo para as partes d’África e cem mil cruzados para as despesas da repartição ninguém mexesse ou arrancasse o dito marco“.25
Fig. 2 - Limite entre as aldeias de Vilar de Luz (Folgosa) e das Ferrarias (Alfena)
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
25 Tombo da Igreja de Alfena, fls. 34v-36 e 38-38v
Fig.
Neste primeiro trecho de limite, pretende-se separar as áreas de influência de duas aldeias históricas que repartem entre si o vale do Rio da Canza:26 a montante, Vilar de Luz (Folgosa) e, a jusante, Ferrarias (Alfena), pelo que, como vimos atrás, o limite evoluirá por uma linha sensivelmente equidistante entre as duas aldeias, entre o lugar de «Saínhas» e a cumeada da «Serra dos Vales».27 Em 1689, neste trecho, o Doutor Cristóvão Alão de Morais ordenou a colocação de cinco marcos: em Saínhas; na estrada de Vila do Conde; no monte aberto após a Bouça de Francisco Carneiro de Alfena; na Bouça dos Vales, no principio da divisão das Serras; e pelo Regueirão das Serras até ao cimo das ditas serras.
3.2. O limite entre as aldeias das Ferrarias e de Arcos
O segundo trecho deste limite demarcado a 25 de Junho de 1689 vai desenvolver-se próximo da cumeada do monte de São Miguel-o-anjo. Do último marco seguiram pelo cimo da serra até encontrar um marco da Demarcação da freguesia de São Pedro Fins.28 Aqui chegados e verificada a ausência da Madre Superiora de S. Bento de Avé Maria que, apesar de citada, não compareceu, o Juiz decidiu continuar a demarcação à sua revelia, uma vez que a demarcação de São Pedro Fins era recente e os marcos se encontravam no seu local. A demarcação é feita pelo cimo do monte de São Miguel-o-anjo, e por detrás da Capela de São Miguel-o-anjo, ficando águas vertentes para Alfena, até chegar a um outro marco tripartido de Alfena/São Pedro Fins/Folgosa,
26 Afluente do Leça, conhecido durante o séc. XX como «Ribeiro da Junqueira» e que, recentemente, numa atitude que pode ser considerada de «neo-colonialismo» viu a sua designação «homologada» para «Ribeiro da Ferraria» (cfr. Resposta da CMV à participação da AL HENNA no processo de consulta pública referente à Revisão do Plano Director Municipal, em 2015). Como diz o nosso Povo «Santa Ignorância»…
27 Monte de São Miguel-o-anjo.
28 Auto de Demarcação da freguesia de São Pedro Fins do Concelho da Maia, realizado em 23 de Janeiro de 1671 e também presidido pelo Dr. Cristóvão Alão de Morais, Juiz do Tombo do Convento de São Bento de Avé Maria da cidade do Porto, igualmente por Provisão Régia. Tombo do Convento de São Bento de Avé Maria do Porto, PT/ ADPRT/MON/CVSBAMPRT/0177, fl. 559v-585
Fig. 3 - Limite pela cumeada de São Miguel-o-anjo.
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
terminando a demarcação com S. Pedro Fins e reiniciando a demarcação com Folgosa, agora com a aldeia de Santa Cristina, continuando pelo cimo do monte até chegar a um marco da Comenda de Águas Santas.29
29 A Comenda de Santa Maria de Águas Santas, enquanto senhorio da totalidade das terras da aldeia de Baguim de Alfena, também fez demarcar esta aldeia, para reforçar os seus direitos. Conhecemos cinco demarcações (1631, 1668, 1695, 1725 e 1771), sendo a segunda demarcação realizada poucos anos antes, também presidida pelo Dr. Cristovão Alão de Morais, enquanto Juiz do Tombo da Comenda de Santa Maria de Águas Santas, igualmente
Na demarcação de São Pedro Fins, os marcos surgem com a designação toponímica dos respectivos lugares: o alto das cavadas por cima da Fonte de São Miguel e o monte por cima da Fonte Doce.30
Fig. 4 - Aspecto do caminho construído sobre o limite das freguesias de Alfena e São Pedro Fins, nas traseiras da Capela de São Miguel-o-anjo (vista de Sul)
Fonte: Foto do autor (2024)
Este segundo trecho do limite segue próximo da linha de cumeada, ficando as terras de Alfena a Nascente e as terras de Folgosa e São Pedro Fins a Poente, por Provisão Régia. PT/ADPRT/MON/ CSMASMAI/005
30 Tombo do Convento de São Bento de Avé Maria do Porto, PT/ADPRT/MON/ CVSBAMPRT/0177, fl. 559v-585.
e tal é comprovado por um documento de 1312, pelo qual D. Dinis, determina que o limite de um Casal Reguengo da Ferraria, em Alfena, percorre a “espiga do monte de São Miguel”.31
Uma outra referência bem mais recente, data de 1898, nas primeiras matrizes prediais de Alfena,32 surge-nos o artigo 2185, em nome de José Moutinho de Ascensão, de Folgosa, com a designação de «Bouça da Costa da Boavista» e com as seguintes confrontações: Nascente, EN N.º 32;33 Poente, extrema de freguesia. Ou seja, trata-se de um terreno de Alfena localizado a poente da actual N105-2, o que, a acreditar no limite estipulado pela já citada CAOP, seria de todo impossível.
31 Carta de Foro do Casal Reguengo da Ferraria - Chancelaria de D. Dinis – Livro IV, fl 62, PT/TT/CHR/C/001/0004/06201.
32 Matriz Predial da freguesia de Alfena (1898-1942) – Arquivo Histórico e Intermédio da Direcção Distrital de Finanças do Porto.
33 A Estrada Nacional N.º 32, sucessora da Estrada Real N.º 8, era a estrada que foi projectada para ligar o Porto a Vila Pouca de Aguiar, via Santo Tirso e Guimarães. No plano rodoviário nacional de 1945, esta estrada passou a ser a N105, até ao limite entre Ermesinde e Folgosa, e, depois desse limite, a N105-2 (conhecida por «Santo Tirso pela serra»).
3.3. O limite entre as aldeias de Baguim de Alfena e de Santa Cristina
O terceiro trecho do limite demarcado a 25 de Junho de 1689 vai aproveitar as anteriores demarcações da aldeia de Baguim de Alfena, desenvolvendo-se mais afastado da cumeada do monte, uma vez que a localização da aldeia de Santa Cristina a uma cota elevada, já próximo da cumeada, fez empurrar a sua área de influência um pouco para nascente da linha de cumeada, e terminando a demarcação na Agra de Monforte, junto à estrada real do Porto para Guimarães (esta, a estrada do Séc. XVII, não confundir com a via medieval que entrava em Alfena pelo Reguengo de Cabeda, mais a Sul).
Neste troço, são referidos oito marcos, com as respectivas referências toponímicas:34 alto da Serra Branca, Monte Grande ou Porta do Lobo; Chã de Sobre-Barbeitos; Vale de Penas; tapagens da Agra de Barbeitos; Pedreira da Bouça
34 Na demarcação do Tombo da Igreja de Alfena, vários dos marcos aparecem indicados como «marco da Comenda», pelo que também recorremos às Demarcações da Aldeia de Baguim, pela Comenda de Águas Santas.
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
de Vale de Marinha; Bouça de Riba de Vale de Marinhas; Bouça das Corgas; e Agra de Monforte.
Aqui chegados, recordamos que esta Demarcação foi presidida por um Juiz Desembargador com larga experiência (pelo menos 21 anos) de trabalhos de reconhecimento de propriedades nestas freguesias, foi acompanha pelo Pároco de Folgosa e não mereceu qualquer reparo, bem pelo contrário, considerou “a dita demarcação e divisão da sua freguesia de Folgosa por bem feita e acabada e que não duvidava que
nesta forma se sentenciasse e se lançasse em Tombo”.35
4. O limite entre Ermesinde e Santa Cristina (Folgosa)
O padroado de ambas as freguesias era do Mosteiro de Santo Tirso, mosteiro que não terá efectuado demarcações das suas freguesias, pelo menos a julgar pelos documentos que chegaram até nós dos Tombos do Mosteiro de São Bento de Santo Tirso de Riba de Ave.
Fig. 6 - Limite de Ermesinde com Santa Cristina (Folgosa).
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
35 Tombo da Igreja de Alfena, fl.36
Fig. 5 - Limite entre as aldeias de Baguim (Alfena) e Santa Cristina (Folgosa).
No entanto esta pequena extensão de limite não trará grandes dúvidas, desenvolvendo-se desde o marco da Agra de Monforte, pela cumeada da Serra de Vilar, atravessando o vale da ribeira de Liceiras e prosseguindo entre os antigos lugares de Liceiras (Ermesinde) e Monforte (Folgosa) até ao antigo caminho de São Paio para Alfena (a norte da passagem superior da variante da N105 sobre a Linha do Minho).
Neste troço de limite conhecemos alguns marcos de freguesia modernos (na Rua Elias Garcia e na Rua de Liceiras) que assinalamos na imagem.
5. O limite entre Ermesinde e São Pedro Fins
Como vimos atrás, a demarcação da freguesia de São Pedro Fins foi efectuada a 23 de Janeiro de 1671, também presidida pelo Doutor Cristóvão Alão de Morais, sendo efectuada em sentido contrário ao que levamos nesta análise, pelo que daremos um salto até ao “outeiro da pedra das donas por cima da Bouça da Cardosa”36, o
36 Demarcação da freguesia de São Pedro
Fins - Tombo do Convento de São Bento
local onde se iniciou a dita demarcação.
Este trecho da delimitação volta a corresponder ao atravessamento de um vale, desta feita, o do Rio Coronado (hoje conhecido como Ribeiro de Leandro), separando a aldeia das Paredes (São Pedro Fins), a Norte, das aldeias de Vilar de Matos e São Paio (Ermesinde –então, São Lourenço de Asmes), a Sul.
Fig. 7 - Limite entre S. Paio e Vilar de Matos (Ermesinde) com Paredes (São Pedro Fins).
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
de Avé Maria do Porto, PT/ADPRT/MON/ CVSBAMPRT/0177, fl. 559v-585
Para além, do marco colocado no local atrás referido, o Juiz ordena a colocação de mais onze marcos, sucessivamente nos seguintes locais: na Bouça da Cardosa; no Ribeiro Ancho da Agra das Paredes; no canto da Bouça de Pedro António, de Sampaio; no canto da Bouça de Taím, junto à devesa de António Afonso de S. Pedro Fins; no canto sul da Bouça de Taím, na parte de fora, na Bouça de Francisco António, de Sampaio; no canto nascente da Bouça de Francisco António, de Sampaio; no canto dos campos da Agra Selada, no Ribeiro que vem de Ribeiros Anchos; no canto do campo de Baltasar André, de Ardegães, onde o ribeiro anterior se mete no Ribeiro da Ponte de Asneiros;37 no canto do campo de André António, de Vilar, na parte de fora, na devesa das Paredes; no mato que está junto da Estrada da Cancela das Paredes; e no caminho que vai para Alfena, junto às tapagens de Monforte, onde se separam as três freguesias, São Pedro Fins, Ermesinde e Folgosa.
6. O saliente das Cardosas
37 Julgamos tratar-se do Ribeiro de Leandro, ou como é conhecido em Ermesinde, o Rio da Balsinha.
Como vimos atrás, no extremo Norte do território, no lugar das Cardosas, a freguesia de Ermesinde apresenta um saliente, uma estreita faixa de território que se estende, entre as freguesias de São Pedro Fins e Águas Santas, desde São Paio até ao limite com Silva Escura.
Como referimos atrás a razão de ser deste saliente é muito prosaica. Ao consultarmos as primeiras duas demarcações da freguesia de Águas Santas (1631 e 1668), o limite entre o Ribeiro dos Ganchas e o Monte dos Pedrogos aparece registado como sendo entre as freguesias de Águas Santas e São Pedro Fins.
Na terceira demarcação (1694), o escrivão dá-nos esta pequena explicação:
(…) athe outro montinho mais alto tãobem chamado dos pedrogos aonde em hum grande e mayor penedo se achou hua antigua crus da Insignia da Com.da ou de Malta q serve de marco por ser penedo de q se não prezume se aja de quebrar e junto della mandou elle Juis se abrise outra e aqui acaba a demarcação de todas as terras e lemites entre a Com. da de Aguas Santtas, ficando as desta p.ª a banda do Poente, e entre a freg.ª de São Lorenço de Asmes, q ficão p.ª a banda do Nascente, asim as Lavra-
dias como as de monte maninho e solto por q suposto dos marcos au tras vinte e cinco em trasnaro? Athe o penedo desta ultima demarcação a dos Tombos antecedentes se confrontasse com a freg.ª de S. P.dro Fins e fica se acabando os lemites da d.ª freg.ª de S. Lorenço no ditto marco do Rib.º dos Ganchos, contudo disserão elles enformadores e os moradores da d.ª aldea de S. Payo q se acharão prezentes q abayxo vão assignados q estão em posse antigua, de uzarem e aproveitaremse do d.º m.te aberto athe este ultimo penedo q the tocava e pertensia porq.to a demarcação dos moradores da freg.ª de S. P.dro Fins q não aparecerão corria hum pouco mais por baixo, pela banda do Nascente, como se vê por huns marcos altos q disserão serem postos pela parte da freiras de S. Bento q.do fizerão a d.ª demarcação de S. P.dro Fins, por lhes tocarem os dízimos desta e disse tãobem o R. Joseph de Mag.es, abade de S. Lorenço de Asmes, q asestio a esta demarcação dos Lemites entre huma e outra freg.ª, q ao redor da Agra do Espinheiro estava hum campo q chamão do pe de Pedroiços do qual hoje hé possuidor M.el An.to o chossa, de Ardegais, e que delle está de posse de aroçadas?, e the pertensião os dízimos como tãobem de outras das sobred.as agras do Espinheiro e Varsea, e q p.lo testava não prejudicar ao dir.to e pose da sua d.ª Igreja
q.to à cobrança dos d.os dízimos esta demarcação, (…)38
Na demarcação de São Pedro Fins, realizada catorze anos antes e que abordamos no capítulo anterior, talvez porque, como afirmam os louvados de S. Lourenço de Asmes, em 1695, os montes maninhos também serem usados por eles há séculos, os demarcadores de São Pedro Fins traçaram o limite uns metros mais abaixo no monte, deixando uma estreita faixa de monte, com aproximadamente 100m de largura, para a freguesia de São Lourenço de Asmes (hoje, Ermesinde). Ter-se-á tratado, por ventura, de uma espécie de partilha do monte maninho das Cardosas entre os moradores das Paredes (S. Pedro Fins) e S. Paio (S. Lourenço de Asmes).
Nas Demarcações seguintes da Comenda de Águas Santas (1725 e 1771), o limite entre o Ribeiro das Ganchas, ou Anchos, e o penedo do monte do Pedrogo já será declarada com confrontando com a freguesia de São Lourenço de Asmes.
38 Tombo da Comenda de Águas Santas (1693-1695), PT/ADPRT/MON/ CSMASMAI/005/0016, fl. 346v-347
Fig. 8 - Saliente das Cardosas - S. Paio (Ermesinde) Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
Desde 1989 que esta estreita faixa ficou separada do restante território da freguesia de Ermesinde, pela construção da Auto-Estrada do Minho (A3), razão pela qual, recentemente, algumas vozes ligadas à autarquia valonguense têm posto a hipótese de existir um acordo de troca de territórios entre a freguesia de Ermesinde e as suas congéneres de São Pedro Fins e Folgosa.
Na extremidade norte do saliente das Cardosas, existe ainda um pequeno troço de limite entre as freguesias de Ermesinde e Silva Escura, relativamente ao qual não conseguimos localizar qualquer documentação.
7. O limite entre Ermesinde e Águas Santas
O Fundo da Comenda de Santa Maria de Águas Santas, que a AL HENNA tem estudado, por esta entidade ter sido Senhoria de uma boa parte da freguesia de Alfena, incluindo a totalidade da aldeia de Baguim de Alfena, apresenta-nos cinco demarcações da freguesia de Santa Maria de Águas Santas, cujos dízimos eram pertença desta Comenda.
Todas as demarcações têm o seu início no extremo sul da freguesia de São Lourenço de Asmes, no Ribeiro dos Baiões, e evoluem para norte até ao penedo do monte do Pedrogo, portanto, em sentido contrário ao que levamos na análise que efectuamos.
Por este limite ser intersectado pelo rio Leça,39 vamos dividi-lo em duas secções, uma a norte do rio e outra a sul.
39 O rio Leça divide o limite em duas partes, sensivelmente, um teço a norte e dois terços a sul.
7.1. A Sul do Rio Leça, com as aldeias de Rebordãos, Maia e Granja
A sul do rio Leça, o limite separa as aldeias históricas de Rebordãos, Maia e Granja (Águas Santas), das suas congéneres de São Lourenço e Ermesinde (Ermesinde).
Partindo do sítio dos Baiões, junto ao Ribeiro (rio Tinto), o limite segue, genericamente, para norte, tendo os juízes dos Tombos feito referência a vinte e três marcos, colocados: os três primeiros ao longo do Ribeiro dos Baiões; depois nas Sapeiras, após a estrada
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
da Granja para Ermesinde; nas testadas do Pinheiro do Patacão; na quelha do Porto para Ermesinde; na Rochea/Campo das Maias/Agra da Sobreira; na estrada para Alfena; no Seixo; no Seixo das Cavadas; no Penedo do Seixo; na Agra Nova; no Seixo Lameiro; na Fonte Amanha; na Agra Nova quasi na Gândara; na Devesa da Gândara; na cancela da Devesa da Gândara; na Bouça do Pisão; na Devesa de Além; no Ribeiro do Pomarinho; nos Codeçais e Gândara de Baixo; na Quelha do Aresto; e à entrada da Ponte das Tábuas (na margem esquerda do Leça).
7.2. A Norte do Rio Leça, com a aldeia de Ardegães
A norte do Rio Leça, o limite separa duas aldeias históricas: Ardegães (Águas Santas) e São Paio (Ermesinde).
Considerando o texto das Inquirições de 1258 que nomeia aldeias de Ardegães em ambas as freguesias (Águas Santas e São Lourenço de Asmes)40 e o facto de alguns documentos antigos se referirem
40 Portugaliae Monumenta Historica –Inquisitiones (1897), Vol. I, f.505 Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa.
Fig. 9 - Limite entre Ermesinde e Águas Santas (a sul do rio Leça).
Fig. 10 - Limite entre Ermesinde e Águas Santas (a norte do rio Leça).
Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal – Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) – IgeoE.
à aldeia ermesindense como «S. Paio de Ardegães», aliado ao facto que, em certas partes do limite, existirem referências a «terrenos prosmícuos»,41 somos de opinião que, originalmente se tratava de uma aldeia apenas (Ardegães), que posteriormente terá sido dividida em áreas de influência das duas igrejas paroquiais.
Começando então na Ponte das Tábuas, no rio Leça, o limite atra-
41 Terrenos promíscuos correspondem a terrenos que pagavam dízimo a uma freguesia encravados em terrenos que pagavam dízimo à outra freguesia.
vessa a zona agrícola de Ardegães / São Paio, para norte, até chegar ao penedo do Monte dos Pedrogos, troço onde os Juízes dos Tombos de Águas Santas fazem referência a sete marcos contendo a insígnia da Comenda42 colocados, respectivamente: na Agra da Várzea; no canto do campo de André António, de Sampaio; na Quelha de Ardegães para S. Paio; na Agra do Espinheiro; no lugar de Trás da Agra; no sítio das Ganchas; e no monte dos Pedrogos (cruz esculpida no penedo).
Uma das particularidades deste troço do limite é a existência de terrenos promíscuos nas zonas das agras da Várzea e do Espinheiro, situação que eventualmente, pode ter sido ultrapassada por operações de emparcelamento efectuadas após 1771 e que ainda não nos foi possível comprovar.
8. O limite entre Ermesinde e Baguim do Monte (Rio Tinto)
Apesar de não ser um limite com uma actual freguesia do Concelho da Maia, mas por ter sido o Couto de Rio Tinto uma parte integrante
42 Cruz de Malta gravada em baixo relevo.
da Terra da Maia,43 vamos também abordar o limite sul da freguesia de Ermesinde (hoje, com a freguesia de Baguim do Monte).
É certo que, tradicionalmente, os autores ermesindenses44 que têm abordado esta questão têm privilegiado a referência ao Decreto de 24 de Dezembro de 1903 que, teoricamente, estabelece o limite entre as freguesias dos concelhos de Valongo e Gondomar, no entanto, por esse decreto ser demasiado vago e conter incorrecções insanáveis nos topónimos referidos,45 aliado ao facto de todo o
43 AZEVEDO, Pe. Agostinho de (1939)A Terra da Maia (Subsídios para a sua monografia). Maia: Câmara Municipal da Maia, p.196.
44 Veja-se, por exemplo: DIAS, Manuel Augusto e PEREIRA, Manuel da Conceição (2001) – ERMESINDE, Registos Monográficos, vol I. Ermesinde: Câmara Municipal de Valongo, p.18-19; SOARES, Jacinto (2016) – ERMESINDE, o património e a nossa gente (mosaicos e histórias) – Subsídios para a sua monografia II. Ermesinde: Junta de Freguesia de Ermesinde, p.311-313; MATA, Joel Silva Ferreira (2021) – História Económica, Social e Administrativa do Concelho de Valongo (1836-1926) –vol I. Valongo: Câmara Municipal de Valongo, p.120-128.
45 O Decreto de 24.12.1903 (publicado a 28) faz referência à «Serra da Mulher Morta» como estando no limite entre Rio Tinto e S. Lourenço de Asmes, no entanto, o «Cabeço da Mulher
processo que rodeou a publicação do citado decreto ser demasiado nebuloso, sendo que a edilidade valonguense não fica nada bem na fotografia,46 somos de opinião que devemos esquecer este decreto e recuar mais, pelo menos a 1670, à Demarcação do Couto de Rio Tinto, presidida também ela pelo Doutor Cristóvão Alão de Morais, curiosamente numa altura em que os padroados das freguesias de São Mamede de Valongo e São Cristóvão de Rio Tinto pertenciam à mesma entidade, o Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, sucessor do Mosteiro de Rio Tinto.
Apesar de esta demarcação não fazer referência às freguesias confinantes com o Couto, deixamos aqui um extracto da demarcação que, julgamos, incluí o troço do antigo limite entre São Lourenço de Asmes e São Cristóvão de Rio Tinto, sendo certo que investiga-
Morta» situa-se entre as freguesias de Alfena, Ermesinde e Valongo, afastado, portanto do limite que o Decreto queria fixar. Facilmente se conclui que quem passou a informação ao Governo Central não sabia o que estava a fazer… 46 Veja-se OLIVEIRA, Camilo de (1931) – O Concelho de Gondomar – Apontamentos Monográficos v. I Gondomar: Câmara Municipal de Gondomar, p176-184 e MATA, Joel (2021), p.116-128.
ções mais aprofundadas acerca dos topónimos e da evolução da titularidade das propriedades, podem ajudar a dirimir as incógnitas ainda existentes.
Assim reza o Tombo:
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e setenta anos, aos dezoito dias do mês de Maio do dito ano, neste couto de Rio Tinto aonde estava presente o Doutor Cristóvão Alão de Morais, Juiz do Tombo do Mosteiro da Avé Maria de São bento das freiras de São Bento do Porto, por especial provisão de Sua Alteza (…)
E daí para a parte do poente na quelha de Baguim onde chamam a Carreira outro marco com seu bago.
E daí à congosta de São Mamede outro marco pegado ao campo do Souto, que possui António Gonçalves com uma pedra redonda pegada o qual marco fica encostado ao valo do dito António Gonçalves.
E daí aonde chamam o monte da porta do Capelão está outro marco para a parte do norte.
E daí para a parte do nascente direito às bouças e campo de Gonçalo Seabra está outro marco dentro do mesmo campo, com seu bago e outro marco pequeno pegado.
E daí para a parte do norte junto ao monte no alto junto a umas bouças de
Baguim está outro marco para a parte do poente com um bago, por cima do Rio de Bajoujes.
E daí para a parte do poente outro marco junto ao mesmo Rio, com um bago.
E daí para a parte do poente junto à Presa da Lage, outro marco com um bago.
E daí vai divisando pelo Ribeiro da Presa da Lage a outro marco junto ao valo de Domingos Gonçalves pegado ao caminho que vai da Granja para o Porto, com seu bago e com duas letras grande para o norte, as seguintes «R» «M» e uma cruz no alto.
E daí indo para o norte outro marco com bago aonde chamam o Ribeiro.
E daí indo para o norte à estrada que vai do Porto para Alfena, junto da estrada estava um marco com seu bago, o qual eles louvados mandaram levantar, e se levantou, e depois de levantado, ele dito juíz mandou ao porteiro do Tombo, Tomé da Costa, botasse pregão que nenhuma pessoa de qualquer qualidade que fosse derribasse o dito marco com pena de incorrer na pena da Lei, ao que foi satisfeito pelo dito porteiro, de que eu escrivão dou fé. (…)47
47 Demarcação do Couto de Rio TintoTombo do Convento de São Bento de Avé Maria do Porto, PT/ADPRT/MON/ CVSBAMPRT/0177, fl. 391-393v.
Como não estudamos convenientemente este troço de limite e porque não se trata de limite com o Município da Maia, não arriscaremos a traçar o percurso do limite, como fizemos com os anteriores.
9. Conclusão
Aqui chegados, podemos dizer que, relativamente aos limites traçados referentes à freguesia de Alfena, dispomos de um nível de certeza da ordem dos 99,9% (isto porque, como cautela, admitimos que possam existir ligeiríssimos desvios). Já no que toca aos limites traçados relativos à freguesia de Ermesinde, o nosso nível de certeza será da ordem dos 90-95%, ou seja, perfeitamente aceitável para apresentarmos a figura com que fechamos o presente artigo, como a representação do limite histórico do Município de Valongo com o seu congénere da Maia.
Resta pois, que os responsáveis autárquicos (eleitos e não eleitos) assumam as suas responsabilidades e apresentem comportamentos informados que contribuam para a resolução pacífica das divergências que por ventura possam surgir entre comunidades
vizinhas, ao invés de ser remeterem a «negociações de gabinete», sem ter perfeito conhecimento da matéria em questão e que, normalmente, geram mais conflitos que soluções.
A forma como os antigos conduziam estes processos de demarcação, sempre na presença de «pessoas antigas» conhecedoras dos locais, e o reduzido número de reclamações que surgiam (sendo que essas eram, pronta e rapidamente, julgadas pelo Juiz presente) é bem revelador da forma séria como estes assuntos então eram resolvidos e contrasta radicalmente com a leviandade com que, por vezes, eles hoje são tratados.
Por fim, lembrando que a nossa Associação nunca contou com apoios públicos autárquicos ao seu trabalho, gostaria de agradecer a todos os que têm colaborado com a AL HENNA, desde que iniciamos o nosso caminho há catorze anos, a todos os membros da Associação, em especial, aos elementos do núcleo de investigação, José Manuel Pereira, Fernando Branca e, em particular, ao Arnaldo Mamede, que me acompanhou nas numerosas caminhadas, por montes e vales, em busca dos «calhaus
Fig. 11 - Limite histórico do Concelho de Valongo com o da Maia Fonte: Desenho do autor sobre a Carta Militar de Portugal –Folha 110 (1951) – Ermezinde (Valongo) - IGeoE
antigos», como alguns designam, ou no estudo dos «papéis velhos», cruzando informações de diversas fontes. Ainda um agradecimento especial ao Sr. José Carvalho, de Vilar de Matos, que nos deu uma preciosa ajuda no limite norte de Ermesinde.
Como sempre, continuaremos disponíveis para contribuir com os nossos modestos conhecimentos para o bem comum, assim haja humildade em quem tem a responsabilidade de gerir o que é de TODOS.
Bibliografia
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Outras Fontes Manuscritas e impressas
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Diário da República N.º 107/2017, de 2 de Junho de 2017.
Diário do Governo N.º 292/1903, de 28 de Dezembro de 1903.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1936), Vol. XI. Lisboa; Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia.
Matriz Predial da freguesia de Alfena (1898-1942) – Arquivo
Histórico e Intermédio da Direcção Distrital de Finanças do Porto.
Portugaliae Monumenta Historica – Inquisitiones (1897), Vol. I. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa.
Tombos da Comenda de Santa Maria de Águas Santas – Maia, PT/ ADPRT/MON/CSMASMAI/005, Arquivo Distrital do Porto.
Tombo da Igreja de São Vicente de Alfena (1689-90) – Colégio do Carmo da Universidade de Coimbra, ColCarmo10, Arquivo da Universidade de Coimbra.
Tombo do Convento de São Bento de Avé Maria do Porto, PT/ADPRT/ MON/CVSBAMPRT/0177, Arquivo Distrital do Porto.
As raridades que o tempo esqueceu nas margens do Ferreira «Chão de Couce»*
Jacinto Soares
Resumo:
A aldeia de Couce perde-se no tempo, e algumas das suas estruturas tinham uma matriz comunitária num contexto de agricultura de subsistência, complementadas pelos moinhos do rio Ferreira, onde se produzia grande parte da farinha que era utilizada no fabrico do pão de Valongo. A capela, do século XVIII, muito simples, é o centro da comunidade..
* N.R. – Este texto foi escrito pelo autor, há mais de quarenta anos. Muitas das situações aqui relatadas estão alteradas, ou mesmo desapareceram. Couce, é evidente, já não é o que era. Convém, contudo, recordá-lo. Este artigo utiliza a antiga ortografia. As fotos são propriedade do autor.
Abstract:
The village of Couce is lost in time, and some of its structures had a community matrix in a context of subsistence agriculture, complemented by the mills of the Ferreira river, where much of the flour that was used in the manufacture of Valongo bread was produced. The chapel, from the eighteenth century, very simple, is the center of the community.
Keywords: Couce, Community threshing floor, cereals, popular architecture.
«O meu paraíso», como o designava Hélder Pacheco no seu livro, «O Grande Porto»1 fica sensivelmente a meio de um conjunto de «linguetas» de terra, que se contorcem ou distendem ao longo das margens deste afluente do Rio Sousa, entre o Alto do Castelo e o Alto do Ramalho. Toda esta área entre a serra de Santa Justa e a serra de Pias é conhecida genericamente por «Chão de Couce.»
A aldeia propriamente dita, é constituída por casas pobres edificadas com xisto da zona e mesmo com seixos do rio, no meio da qual se descobre uma pequena e humilde capela. Junto à estrada que acompanha o Rio Ferreira pela margem direita, uma pequena eira de ardósia, outrora comunitária e hoje destinada a dois proprietários, documenta bem a agricultura de subsistência de que dependiam estas gentes.
Algumas peças deste conjunto urbanístico, que pela sua integração no meio, são autênticos modelos de arquitectura popular estão, infelizmente, a acusar os
1 PACHECO, Hélder (1986) – O Grande Porto: Gondomar, Maia, Matosinhos, Valongo, Vila Nova de Gaia. Lisboa: Editorial Presença, p.190.
efeitos do tempo, apresentando indícios de ruína. O cimento, o azulejo e o alumínio, ainda há alguns anos fora deste mundo, começaram, aos poucos, a fazer o seu aparecimento.
A capela, de linhas simples e com altar-mor em madeira, data, à semelhança das outras construções, dos meados do século XVIII. Junto ao seu sacrário existia, pelo menos até há pouco, um lindo presépio, protegido por uma caixa em vidro, com figuras e paisagens bíblicas, modeladas em madeira, provavelmente da autoria de um artesão local. A rodear todo este núcleo habitacional ainda se distinguem vestígios da vegetação primitiva, constituída por castanheiros, sobreiros, carvalhos e medronheiros. A maioria do actual manto vegetal, contudo, é composto por pinheiros, eucaliptos e mimosas, as quais de forma intrigante florescem no início, ou antes da Primavera, fenómeno este que muitos atribuem ao microclima que ocorre na zona. Os amieiros e salgueiros, de porte imponente, sobrevivem ainda junto às margens do rio.
Fot. 1 - Pode ver-se distintamente cereais de diversos agricultores nesta eira comunitária.
Fonte: Arquivo do Autor.
Dos inúmeros moinhos existentes nos finais do Seculo XIX, restam hoje alguns exemplares e apenas um a funcionar. Eram ao todo «cento e sessenta rodas, que produziam a farinha com que se fabricava o afamado pão de Valongo», como nos conta o Padre Joaquim Alves dos Reis na sua monografia a «Villa de Vallongo»2. Os historiadores universitários do Porto, numa das suas antigas pesquisas nesta zona, ainda sinalizaram alguns vestígios de moinhos desaparecidos, num descampado da margem esquerda do rio, onde
2 REIS, P.e Joaquim Alves do (1904) – A Villa de Vallongo. Suas tradições e história, descripção, costumes e monumentos. Porto: Typographia Coelho, p.214.
se tinha pensado fazer um parque de campismo. Couce vale também pelas suas raridades no campo da geologia e botânica. Pode-se dizer mesmo que estamos perante um autêntico laboratório vivo de observação da natureza, tal é a sua riqueza e variedade de espécies vegetais e a abundante ocorrência de fenómenos e transformações na superfície terrestre.
Para não nos alongarmos muito, porque este aspecto mereceria um outro trabalho, realça-se apenas, entre todas estas raridades, as «escombreiras», pequenos amontoados de cascalho branco que a natureza se encarregou, através da erosão, ao longo dos séculos, de esboroar dos bancos quartzíticos dos cumes de Santa Justa e Pias e arrastar e depositar nas margens do rio Ferreira. Outros defendem que a sua origem se deve às escórias da mineração romana, que o tempo se encarregou de separar primeiro e amontoar depois.
Infelizmente, continua a verificar-se a delapidação deste património natural, dada a sua utilização na construção civil, como substituto do cascalho granítico, inexistente na zona. As célebres «plantas carnívoras» que, ao contrário do que alguns pensavam, estariam em risco de desaparecimento, pelo menos na sua variedade mais importante, constituem o que poderemos considerar o seu «ex-libris». Estamos a falar concretamente de uma colónia de «Drosophylum Lusitanicum Lin», a meia centena de metros da desembocadura do Rio Simão (afluente do Ferreira), a que o saudoso Professor Jubilado da Faculdade de Ciências- Resende Pinto (Área da Botânica), que vivia em Valongo, dedicava um interesse inusitado, de que eram prova as suas visitas quase semanais ao local. De futuro incerto, também, uma outra colónia de carnívoras, junto á capela da «Senhora das Chãos (Chães)», nos limites do concelho com S. Pedro da Cova. Esperemos, contudo, que o seu destino não seja o mesmo de outros exemplares desta espécie que, segundo Humberto Beça e outros tratadistas, como o Dr. Gonçalo Sampaio,
Fot. 2 - Drosophylum lusitanicum.
Fonte: Arquivo do Autor.
ligados ao Convento da Formiga, teriam existido na Faixa Carbónica dos Montes de Sá, em Ermesinde. Ainda no domínio da Botânica, não nos podemos esquecer de outro tipo de plantas aí existentes, e já em vias de extinção, como a murta mediterrânica, algumas espécies de heras, e as conhecidas pteridófitas, da família dos «fetos dos fojos». Por último, o grandioso «Anticlinal de Pias», cujos vestígios o povo denominava «Fragas do Diabo» e que o ilustre jornalista e autarca Joaquim Pacheco, que nos deixou há anos, defendia e sustentava ter sido objecto de algumas obras importantes de pintura. Em cada um dos seus flancos, o nascente sobreposto à Serra de Pias e o poente representado pela Serra de Santa Justa. Entre os dois flancos corre o Rio Ferreira
Fot. 3 - Anticlinal de Chão de Couce Fonte: Arquivo do Autor.
A vertente ritual e religiosa na festa de S. João
de Sobrado: notas exploratórias
Manuel Pinto
investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho
Resumo:
O presente artigo apresenta e analisa as manifestações do religioso institucional e popular na Festa de S. João de Sobrado. Propõe algumas hipóteses interpretativas, colocando essa vertente em diálogo com as restantes vertentes da festa sobradense. Sendo a primeira vez que esta abordagem é feita, procura-se reunir os traços diferenciados do religioso, desde as celebrações católicas evocativas do Precursor até à lenda subjacente à festa tradicional.
Palavras-chave: Festa de S. João de Sobrado; Bugiada e Mouriscada; lenda da imagem de S. João; vertente religiosa da festa.
Abstract:
This article presents and analyses the manifestations of the institutional and popular religion in St John’s Festival at Sobrado. It proposes some interpretative hypotheses, placing this aspect in dialogue with the other aspects of the Sobrado festival. As this is the first time this approach has been taken, the aim is to bring together the differentiated features of the religious, from the Catholic celebrations evoking the Precursor to the legend underlying the traditional festival.
Keywords: Feast of St John at Sobrado; Bugiada and Mouriscada; Legend of St John’s image; Feast’s religious approach.
1.
Introdução
A componente religiosa da festa sanjoanina que ocupa a totalidade do dia 24 de junho de cada ano na vila de Sobrado, no Município de Valongo, é fácil de distinguir e de caraterizar, se olhada à “vista desarmada”. E talvez pelo seu carater aparentemente óbvio e comum, essa dimensão tem sido pouco estudada1.
De facto, ela constaria da missa festiva que tem lugar a meio da manhã e da procissão solene que se lhe segue, com um trajeto que sai pelo lado norte do Passal, a leva até à Capela das Alminhas, circundando-a e regressando pela estrada principal e pela rua central do Passal até ao ponto de partida, na igreja matriz.
Sendo um pouco mais completo, poder-se-iam incluir também mais dois elementos festivos. Um é a “banca de pagamento de pro-
1 O próprio autor do presente texto chegou a sugerir, em abordagens iniciais ao estudo desta festa tradicional, que a componente religiosa não integraria verdadeiramente a Festa da Bugiada e Mouriscada, sendo antes uma espécie de incrustação, para não dizer excrescência da festa. O presente texto constitui um distanciamento e uma crítica a essa perspetiva.
messas” a S. João, que funciona durante todo o dia na igreja paroquial e que recebe donativos em dinheiro ou objetos em cera que representam, por norma, partes do corpo (cabeça, braço, perna…) que tiveram algum problema que motivou a promessa. Todos recebem uma pagela alusiva à festa do santo. O outro elemento é a transmissão do ramo (e da responsabilidade pela organização da festa) à comissão do ano seguinte. Esse ato costuma ter lugar no adro da igreja paroquial, já ao começo da noite, é acompanhado pela Banda Musical de S. Martinho de Campo e representa a entrada em funções dos novos juiz e mordomos (cujos nomes costumam ser anunciados pelo pároco no final da missa de festa). No mesmo ato, a comissão que entrega o ramo cessa formalmente o seu mandato.
Como se pode facilmente concluir, todos estes elementos são comuns a qualquer outra festa aldeã, seja ou não o orago da paróquia2. A estas cerimónias e rituais juntam-se habitualmente, os pe -
2 Em Sobrado, o orago é Santo André, que se festeja a 30 de novembro, com festa de cunho essencialmente religioso.
ditórios para a festa, ao longo do ano; a parte “profana”, na qual se destaca o “arraial” com a(s) sua(s) noitadas(s), atuação de grupos musicais, bandas de música, “comes e bebes”, divertimentos vários, fogos de artifício e outras manifestações pirotécnicas, grupos de bombos e tambores, etc…
Tudo isto está também presente na Festa de S. João de Sobrado. Acontece que esta tradição se distingue por um conjunto de outras manifestações que adquirem uma tal preponderância, exotismo e exuberância, que chegam, pelo menos para uma parte dos interessados na festa, a remeter a componente religiosa e o arraial para segundo plano ou mesmo para a invisibilidade, para não dizer irrelevância.
Dessas manifestações destacam-se, em primeiro lugar, as danças e lutas entre dois grupos social e geracionalmente distintos, os Mourisqueiros e Bugios, ou seja, Mouros e Cristãos, que se iniciam ao começo do dia e só terminam ao cair da noite do dia 24; e incluem-se ainda, paralelamente ou intervalarmente ao evoluir das danças, encenações ambulantes de críticas aos acon-
tecimentos do ano (Entrajadas); rituais agrícolas de sementeira realizados na sua ordem inversa (semear, gradar e lavrar); e encenação de peripécias da vida quotidiana (Dança do Cego ou Sapateirada).
Foto 1 - Remoeiro o Guias “de guarda” a S. João na igreja matriz, durante a missa se festa.
Fonte: Festivity. Jpg.
Estando a descrição destas várias vertentes festivas já publicada3, limitar-me-ei aqui a enunciar alguns aspetos relevantes para o foco e os objetivos perseguidos neste texto, a saber:
a. Os Bugios são a comunidade local na sua diversidade etária e socioeconómica, com a sua liderança (através do Ve -
3 Cf. PINTO, M. (2024) «A Festa de São João de Sobrado como ela se faz» in Ribeiro, Rita et al. São João de Sobrado –A Festa da Bugiada e Mouriscada. Edição da Comissão de Festa de São João de Sobrado 2017.
lho, dos Guias e dos Rabos), mas, ao mesmo tempo, com a sua desorganização, efusividade e irreverência, facilitadas e potenciadas pelo uso da máscara, dos guizos e castanholas;
b. Os Mouriscos representam o grupo dos jovens –obrigatoriamente rapazes e solteiros – e surgem organizados com caraterísticas militares (marcha, espadas, polainas, caixa…); são um grupo marcado pela ambiguidade do ponto de vista simbólico, já que exprimem ‘o diferente’, gerador de tensão e conflito, mas, ao mesmo tempo corporizam a ordem do grupo que, de rosto descoberto se apresenta à comunidade;
c. As danças e lutas de Bugios e Mourisqueiros tem por referência uma lenda centrada na disputa de uma imagem reconhecida como milagrosa de S. João, detida pelos Bugios, que é crucial para salvar a filha do rei mouro (Reimoeiro) que vive nas redondezas (serra de Cucamacuca);
d. Quando, no final do dia da festa, o conflito latente entre as duas formações desemboca na guerra, a vitória do ponto de vista militar cabe aos Mourisqueiros, que levam o Velho da Bugiada preso; os Bugios recorrem a um dragão (a Serpe) para libertar o seu líder e colocar a situação final no ponto de equilíbrio em que ela se encontrava no início;
e. Todas as manifestações referidas, incluídas as Entrajadas, Sementeira e Dança do Cego, têm em comum o recurso à máscara; a exceção são os Mourisqueiros que andam sempre de cara descoberta;
f. As caraterísticas específicas, os intercâmbios e duplicação de papeis entre o que é da Bugiada e das restantes manifestações (sobretudo a Sementeira e a Dança do Cego) permitem enunciar uma e outra realidade como, respetivamente, o lado solar/diurno/cerimonial e o lado lunar/noturno/telúrico da festa.
Aqui chegados, temos, por conseguinte, que na festa de Sobrado encontramos várias portas que abrem, de modo diferenciado e com diferentes graus de intensidade, para uma dimensão que, em termos amplos, se poderá designar como religiosa. Um nível visível e até ostensivo, ocorre em torno da celebração eucarística e da procissão, ambas no dia 24 de junho, pela manhã. Nessas duas manifestações, o protagonismo e o controlo cabem à Igreja Católica, na pessoa do responsável máximo da paróquia, ou seja, do pároco, e da comunidade cristã local. Mas o centro e motivo dessas práticas é S. João Batista.
2. A figura de João Batista
Segundo o Novo Testamento e, em particular, o evangelho de Lucas, João Batista é um familiar e coetâneo de Jesus, nascido seis meses antes deste, de Isabel, prima da mãe de Jesus, e de Zacarias4.
Apesar de, mais tarde, ele surgir tematizado em representações da infância de Jesus como um seu companheiro de brincadeiras, praticamente nada se sabe da sua infância e juventude. Quando surgem os primeiros relatos da sua vida pública, ele surge como portador de uma mensagem radical, de apelo à mudança de vida, batizando no rio Jordão os que se queriam converter. Jesus foi um deles.
A todos os que dele se aproximavam ia dando conselhos tais que começaram alguns a pensar se João não seria o próprio Messias. Mas ele tirou-lhes as dúvidas:
Eu batizo-vos na água, mas vem aí aquele que é mais forte do que eu, ao qual eu não sou digno de desatar a correia das sandálias: Ele batizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo (Mt 3, 11).
4 Não confundir com João, o mais jovem dos apóstolos, “o discípulo que Jesus amava”, que é autor de um dos evangelhos, bem como do livro do Apocalipse e de três cartas ou epístolas. Este era filho de pescadores, originário das margens do Lago de Tiberíades, na Galileia.
Em Lucas 7, encontramos o relato em que João envia discípulos a Jesus, para o questionar se é ele “o que está para vir” ou se devem esperar outro. A resposta de Jesus é indireta: “os cegos voltam a ver, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciada a boa nova”.
Foto 2 - Mourisqueiras transportam andar do santo.
Fonte: Festivity. Jpg.
João, que ficou conhecido como o Precursor, é descrito e representado em obras de pintura e escultura, ao longo dos séculos, Não hesitou em criticar o governador Herodes Antipas por este se ter divorciado e ter passado a viver com uma cunhada, de nome Herodíades. Numa festa, a filha da amante, de nome Salomé, encantou Herodes de tal modo, com as suas danças, que ele lhe concedeu o privilégio de pedir o que quisesse. Por influência da mãe, Salomé pediu a cabeça de João Batista. Herodes mandou, assim, decapitar o profeta (Mt 14,3-11). Deste modo morreu aquele de quem Jesus disse ser “o maior homem nascido de mulher”, que diz bem da impressão que João lhe causou.
Tudo somado, fica a ideia de
uma figura bíblica caraterizada pela simplicidade de vida, pela coragem no afrontamento de poderosos, pela humildade em assumir que deve apagar-se para que aquele que vem seja exaltado.
De João Batista disse o Papa Francisco que “morreu como mártir”. “Não um mártir da fé - porque não lhe pediram para renegá-lamas um mártir da verdade5. Ele era um homem ‘justo e santo’ (At 3,14), condenado à morte pela sua liberdade de expressão e fidelidade ao seu mandato”6.
A par destes aspetos hermenêuticos, de fundo bíblico-teológico, este santo assume ao mesmo tempo, nas formas como o seu percurso e papel foram recebidos, um cunho de estranheza, separação, frugalidade e ascetismo, partilhado também pelos seus discípulos, incluindo na apresentação e no
5 O manto vermelho com que surge representado em obras de arte tem precisamente a ver com a cor do sangue do martírio.
6 Homilia do Papa Francisco na Casa Santa Marta, no Vaticano, 8 de fevereiro de 2019. [Disponível em: https:// www.vaticannews.va/pt/papa-francisco/missa-santa-marta.pagelist.html]. [Consultado em: 12/11/2024].
vestuário7. Ele é alguém especial, desde a sua concepção, marca uma transição, ou, se se quiser, uma rutura, com a mensagem que traz e o papel de Precursor que assume. A violência da sua decapitação e o contexto em que ocorreu poderão ter também contribuído para acentuar essas facetas de raridade, de caráter extraordinário.
A devoção popular ao santo precursor parece documentada desde os primeiros tempos do cristianismo e a festa religiosa acontece no dia do seu nascimento o que é raríssimo (o outro caso é o de Maria, mãe de Jesus). Normalmente a evocação dos santos acontece no dia da morte, porque entendida como partida para o céu. No caso de João, porém, os evangelhos mostram que o nascimento deste filho tardio de Zacarias e Isabel teria obedecido a um plano de Deus, para preparar a vinda de seu filho.
7 Com a descoberta dos rolos manuscritos do Mar Morto (Qumran), em 1946/1948 e a transcrição e interpretação do seu conteúdo, houve estudiosos que admitiram a possibilidade de João, cujos pais poderão ter morrido cedo, dada a idade avançada com que o tiveram, ter sido adotado e educado pelo grupo dos essénios, mais por proximidade do que por pertença a esse grupo. Cf., por exemplo, MATTA, Mendonça, Sandrelly da, (2009) – O Cristo-Luz no quarto evangelho e o tema da “luz” em QumranPerspectiva literária do quarto evangelho a partir da sua relação com a Regra da Comunidade. Tese de doutoramento apresentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. URL. [Disponível em: https://www. maxwell.vrac.puc-rio.br/13812/13812_1. PDF]. [Consultado em: 10/11/2024].
A devoção tem em muitos casos uma componente contextualizada de apropriação e gestão autónoma das figuras religiosas, em termos de significados e de práticas. No caso de São João Batista, tal apropriação desenvolveu-se com distintas modalidades e em contacto e sob a influência de múltiplos agentes, religiosos, artísticos, literários e, mesmo, políticos. Numerosas figuras da teologia e da história, nomeadamente as que se dedicaram à incarnação de Jesus, prestaram atenção à figura do Precursor; foram surgindo, ao longo da época medieval, diversas hagiografias (Vidas…) em prosa e em verso e algumas congregações religiosas, como
os frades da recém-criada ordem dominicana, encarregaram-se de as divulgar e popularizar, nomeadamente através das suas pregações8. Um subcampo de indagação interessante é o dos relatos de peregrinações à Terra Santa, nos finais do século XIV e sobretudo no séc. XV, os quais dão conta da unção com que os devotos percorriam os caminhos de Jesus e deparavam com os lugares e o lugar de S. João. Também muitas das grandes catedrais da Idade Média não podiam furtar-se à representação do Santo, fosse na decoração dos pórticos, fosse no seu interior. Artistas como
8 Cf. “Apaixonados pelo mistério da Redenção, os Padres e Doutores da Igreja estudaram e comentaram incansavelmente a história de São João Batista. Sobre este assunto, as suas obras acumularam-se num corpus imponente que teria escapado à massa dos fiéis, se as hagiografias medievais não se tivessem baseado fortemente nele. A partir do século XIII, os dominicanos popularizaram todo este material compondo lendas hagiográficas abreviadas, organizadas segundo a ordem do ano litúrgico, que gozaram de imenso e secular sucesso” (SURDEL, Alain-Julien (2002) – «L’ hagiographie médiévale de saint Jean-Baptiste - Evangiles, légendiers sanctoraux et récits de voyage en Terre Sainte», in Connochie-Bourgne, Chantal, et al. Jean-Baptiste, le précurseur au Moyen Âge. Presses universitaires de Provence, URL, pp. 201-216. [ Disponível em: https://doi. org/10.4000/books.pup.4157].[Consultado em: 10/11/2024].
Dürer, Rafael, Mantegna ou Leonardo da Vinci pintaram cenas da vida de Maria, em que João surgia em interação com o menino Jesus. O próprio Dante concede-lhe destaque, num jogo subtil entre a figura do Batista e do Evangelista9.
O culto a S. João disseminou-se de forma generalizada na cristandade, especialmente na Europa e na América Latina, aqui, muito em sequência da expansão e colonização dos países ibéricos. É um culto bastante associado à água (do batismo), às ervas e às fogueiras. Já na Idade Média se sublinhavam práticas cultuais a que aderiam sobretudo as mulheres. A quem se indignava que um santo que tamanho sofrimento tinha vivido por causa das mulheres as tivesse como protetor, a investigadora Marie-Geneviève Grossel responde10 que um motivo pode residir nas circunstâncias especiais em que S. João foi concebido11, as quais fizeram dele um protetor da gravidez.
9 Os dados aqui referidos foram colhidos sobretudo do campo francófono, a partir do trabalho de Connochie-Bourgne, 2002, já citado.
10 Connochie-Bourgne, 2002, já citado.
11 Como se lê em Lc 1, 5-7, Isabel era estéril e tanto ela como Zacarias tinham idade avançada.
Os grandes festejos que em numerosas cidades, vilas e aldeias invocam São João surgem frequentemente associados ao solstício de Verão (no hemisfério norte). Há autores que questionam esta associação, referindo a não coincidência das respetivas datas e a anterioridade dos rituais solsticiais relativamente aos festejos sanjoaninos. Não sendo de aceitar uma norma que se pudesse aplicar universalmente, o que é razoável aceitar, pelo menos em algumas dessas manifestações festivas são processos de associação e de re-significação para práticas que ocorrem numa mesma “quadra”12.
Foto 3- Amortalhada descalça, na procissão. Fonte: Festivity. Jpg.
12 Isso terá acontecido, no solstício de inverno, com a festa do Natal, em que o nascimento de Jesus, “luz das nações”, se sobrepôs e impôs aos cultos antigos adotados pelos romanos do Sol Invicto ou de Mitra.
As práticas rituais e religiosas são realidades vivas, dependendo com frequência, de processos e dinâmicas socioculturais, em que intervêm necessariamente os contextos espácio-temporais. Um desses processos, relativamente documentado, consiste em fazer trasladar elementos de uma tradição para outra que lhe esteja próxima pelas caraterísticas ou pela contiguidade temporal. Há, assim, casos como o do S. João de Braga, que incorpo -
ra, no dia 24, depois das tradições noturnas, a Dança do Rei David, assemelhada a uma Mourisca, e que alguns estudiosos admitem poder ter sido trazida da esplendorosa procissão de Corpus Christi que na cidade se fazia.
De igual modo, na vila de Sobrado, são tão díspares as caraterísticas das diferentes componentes da festa que etnógrafos como Benjamim E. Pereira levantaram a possibilidade de se tratar de uma manifestação que atraiu outras tradições que, no passado, estariam porventura associadas a outras festas, visíveis nas Mouriscadas, no combate entre mouros e cristãos, e na serpe, o dragão que ocupa um papel decisivo no restabelecimento do equilíbrio entre as duas partes, depois da derrota dos cristãos.
3. A lenda da “imagem milagrosa”
O São João de Sobrado tem por detrás um referente narrativo, que se transmite oralmente de geração em geração, e que é frequentemente contado como se de um facto histórico se tratasse. Refere-se a um tempo e a um espaço. O in illo tempore [naquele tempo] reporta-
-se ao período em que os árabes ocupavam grande parte da Península Ibérica. Concretamente, houve um grupo de mouros13 que se instalaram na Serra de Cuca Macuca, hoje designada por Santa Justa, no sopé da qual está, hoje, a cidade de Valongo. Esse grupo com o seu líder, a que a narrativa chama rei, dedicava-se à exploração do ouro, nos fojos daquela serra. Lá do alto avista-se à distância uma boa parte do território de Santo André de Sobrado, cuja comunidade se dedicava à agricultura, nos dois lados do vale banhado pelo rio Ferreira. Essa comunidade professava a fé cristã e tinha grande devoção pelo santo Precursor, S. João Batista.
Conta, então, a lenda que, em dada ocasião – a data precisa, como em todas as lendas, esfumou-se no tempo – a filha do rei mouro, com a idade de 15 anos, adoeceu gravemente, sem que os médicos da corte conseguissem encontrar forma de aliviar o seu mal. Em desespero 13 Nas últimas décadas, surgiu em Sobrado a designação de tribo para se referir a esse agrupamento. Há versões da narrativa onde essa designação não aparece. Por muito sugestiva que seja, não deixa de ser um processo de exorticização, alimentado por quem fazia, através do altifalante, a narrativa da festa, durante a Prisão do Velho, no dia 24 de junho.
de causa, chegou aos ouvidos do rei a notícia de que a imagem de S. João que os habitantes de Sobrado tanto veneravam tinha já curado a filha do velho chefe local. Estabelecidos os contactos, foi obtida permissão para que a imagem viajasse para a corte dos mouros e pouco tempo bastou para que o milagre da cura da jovem se tivesse operado.
Os mouros convidaram os cristãos para um banquete, com o objetivo de agradecerem tão valioso empréstimo e, supunham os que emprestaram, devolver o santo à procedência. Fosse por movimentações e gestos que causaram estranheza, fosse por palavras claramente ditas, a verdade é que se foi criando entre os comensais visitantes a ideia de que os mouros congeminavam ficar com aquele S. João taumaturgo. A tensão entre os dois lados foi-se agravando e acabou por redundar num conflito aberto e violento, que restabeleceu a ordem das coisas anterior.
Cabe referir que esta lenda da imagem de S. João, que se saiba, correu sempre por transmissão oral nas famílias. Pode supor-se que se integrasse no recheado acervo de histórias, de lenga-len-
gas e de memórias que passavam de geração em geração uma sabedoria que, intencionalmente ou não, ajudava a organizar e a dar sentido ao mundo da experiência individual e à vida social no seu todo. Foi isso que aconteceu com o autor deste texto, que registou a versão que recebeu no seu primeiro trabalho sobre a festa14. Mas, como seria lógico para uma transmissão oral ao longo de muitos anos, existem em Sobrado diferentes versões, como bem documentou um trabalho-tese de mestrado, realizado na Universidade do Porto, nos inícios deste século15.
14 PINTO, Manuel (1982) – Bugios e Mourisqueiros – Subsídios para o Estudo da Festa de S. João de Sobrado. Valongo: Edição da Associação para a Defesa do Património Cultural do Concelho de Valongo (imagens do repórter fotográfico do Jornal de Notícias Armando Moreira - Marco). O essencial do conteúdo deste pequeno livro resultou de um trabalho académico do autor, apresentado na disciplina de Etnologia Portuguesa, lecionada pelo Prof. Carlos Alberto Ferreira de Almeida, no Curso de licenciatura em História da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
15 ARAÚJO, Maria Cristina C. (2004) –Bugios e Mourisqueiros: o Outro Lado do Espelho. Dissertação de mestrado. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto (não publicada).
A Festa de S. João de Sobrado seria, segundo as diferentes versões da lenda, a forma de a comunidade sobradense comemorar esse acontecimento fundador, que é tanto de exaltação dos poderes do santo quanto de afirmação da própria comunidade, enquanto guardiã desse bem simbólico que também a identifica. A representação – no duplo sentido da palavra: encenação e voltar a fazer presente – evoca, celebra e atualiza uma relação da comunidade com o seu santo.
Porém, como se referiu já, esta festa sobradense é forte em operações de inversão e de subversão e a própria devoção ao Santo Precursor é apresentada de forma sui generis no acontecer da festa. A manifestação mais paradoxal dessas operações poder-se-ia observar no momento culminante dos atos festivos, a Prisão do Velho da Bugiada. Aí se põem bem à vista de todos as hostilidades entre o lado mourisco e o lado cristão, que procuram ser dirimidas, num primeiro tempo, pela via diplomática, através de embaixadas de um mensageiro, seguida da via da negociação entre advogados de ambas as partes, e, finalmente, a guerra que, como sugeriu Clausewitz, “é a continuação
da política por outros meios”, que não anula a continuidade dos restantes.
A guerra desenvolve-se, numa primeira etapa, entre cada um dos castelos, numa sucessão infindável de tiros de canhão. A dada altura, os mouros apercebem-se de que o castelo adversário não tem mais poder de fogo, porque se lhe acaba a pólvora. Decidem, então, atacar o castelo bugio, aprisionar o Velho da Bugiada e levá-lo para o cativeiro. Estava aparentemente consumada a derrota do lado cristão.
Ora, o que seria de esperar, numa festa a S. João, que tem subjacente a proteção que o Santo assegura aos seus devotos e os seus poderes de taumaturgo? Seria que ele, de algum modo, ajudasse os cristãos a sair do abismo da derrota e interviesse para salvar o Velho, símbolo, ali, da própria comunidade de que é líder.
Acontece que, nesse momento crucial e decisivo, em que se atinge o clímax da narração, o Santo não comparece nem intervém. E os seus devotos também parecem terem-no esquecido, já que não existe qualquer sinal que indicie um pedido de ajuda. O recurso a
que se agarram é um elemento do maravilhoso pagão: uma Serpe gigantesca de boca vermelha bem aberta e cauda longa, com a qual, atalhando caminho, aparecem de surpresa à formação mourisca, abrindo brechas para a libertação do seu líder.
encontra a sua imagem, é prestada pela Bugiada e pela Mouriscada.
4. Uma história de bons e de maus?
Cada formação, entretanto, recompõe-se e as duas, cada uma na sua vez, despedem-se da festa, com a “Dança do Santo”. O que poderá significar que o Santo não pertence a uma das partes, mas pertence a todos. Restabelecida a situação inicial com que as duas formações começaram o dia, restabelecem-se as condições de poder voltar a fazer a festa, no ano seguinte. Não deixa de ser uma forma de prenunciar o futuro e continuar a festejar, esperando até que a Terra volte a dar nova volta em torno do Sol.
Pode, por conseguinte, dizer-se que, a Festa da Bugiada e da Mouriscada encerra com uma Dança que homenageia o Santo festejado e que essa homenagem, feita junto do adro da igreja paroquial onde se
Outro sinal de aparente inversão, que pode suscitar perplexidade, está na relação entre os Mourisqueiros e as cerimónias religiosas em honra de S. João e que decorrem na manhã do dia da festa, como foi já referido. Manda a tradição que uma delegação dos Mourisqueiros, constituída pelo Reimoeiro e pelos dois Guias, avançando por um atalho privado16, entrem na Igreja quando a missa vai “a Santos” e se posicionem junto à imagem de S. João, de cabeça descoberta (sem barretina) e de espadim em riste. Os restantes Mourisqueiros aguardam no exterior do
16 Tanto a missa solene como a procissão que se lhe segue ocorrem antes das Danças de Entrada. Ora há um tabu não escrito, mas que todos os Bugios e Mourisqueiros têm de respeitar, segundo o qual não podem circular em qualquer zona do extenso Passal no dia 24 de junho até àquelas Danças que terminam precisamente em frente à igreja matriz. Nem sequer podem cruzar esse território, mesmo que isso obrigue a voltas grandes, quando, por exemplo, se encaminham, logo de manhã, para casa do Reimoeiro ou do Velho da Bugiada. É por essa razão que os Mourisqueiros, ao encaminharem-se para a procissão, se dirigem para a igreja por um terreno pertença da paróquia, que permite o acesso ao adro por uma porta lateral.
templo, entrando apenas no final da missa para carregar o andor de S. João (e, em tempos recentes, os restantes andores) que seguem na procissão.
Corre em Sobrado a interpretação de que esta entrada a destempo dos Mourisqueiros a meio da cerimónia litúrgica configuraria um ato subversivo de invasão simbólica e de tomada de controlo do Santo, que eles exibiriam, depois no percurso processional por algumas ruas da localidade. Tal leitura não deixa de ser problemática, dado que a tradição nem sempre existiu e seria de admirar que a Igreja Católica tolerasse uma tal ousadia, mesmo que simbólica, desde logo por parte de párocos que conviviam mal com uma festa com tantas facetas subversivas e licenciosas como é a do S. João de Sobrado.
Foto 4 - A Serpe com os Bugios obtêm a libertação do velho.
Fonte: M. Pinto. jpg.
Gostaria de introduzir outra pista, suscetível de alargar e, porventura, enriquecer as leituras existentes, a qual tem a ver com o papel dos Mourisqueiros, o que representam e que significados corporizam nesta festa. A narrativa comum apresenta-os como os “maus da fita”, os invasores, os que se opõem a “nós”, os autóctones. Sobretudo desde que começou a introduzir-se o altifalante e a haver um narrador que faz o relato da lenda e descreve a festa como re-presentificação dessa lenda, tem crescido a tendência para reforçar a lógica dos “bons e maus”, dos cristãos contra os muçulmanos, “inimigos da fé cristã” e, mais amplamente, a festa de Sobrado como manifestação da supremacia do cristianismo, que só
poderia terminar com a vitória dos Bugios.
Há vários elementos objetivos que podem ser convocados para questionar esta abordagem dualista e mesmo maniqueísta, suscetível de reforçar e promover visões estigmatizantes do outro diferente.
A festa de S. João de Sobrado põe em jogo um conflito entre dois grupos diversos. O da Bugiada, o numeroso – nas últimas décadas, têm sido sempre largas centenas – parece representar a comunidade, com gente de todas as idades e géneros, com o seu líder; e o da Mouriscada – em número reduzido, mas, em contrapartida, jovem (só rapazes solteiros), organizado e hierarquizado, autónomo, com normas próprias. Representa a diferença. Foi-se buscar como referência uma civilização que ocupou este território durante séculos, tendo sido das experiências mais longas de convivência com uma cultura e uma religião diferentes, que deixou na Península marcas indeléveis na ciência, na técnica, na língua …Mas podia ter sido outra a referência.
Logo aqui deparamos com um paradoxo: os jovens da comunidade destacam-se, organizam-se como grupo coeso, sério e de retoques quase militares (nas barretinas, polainas e espadins), desenvolvem formas próprias de iniciação (através da dança, da cooperação, do exercício de responsabilidades na estrutura do grupo) e ousam defrontar a comunidade de que procedem; a comunidade, por seu turno, escondida por detrás da máscara e do ruído dos guizos e castanholas, é a expressão de um certo caos gozoso e desbordante, uma mistura que chega a confundir, uma alma coletiva tão pujante que chega a amedrontar os mais pequenos, enfim, uma folia chega a roçar a hubris.
Aparentemente, os papeis invertem-se. Mas não será que a comunidade no seu todo está, através desta inversão completa, a falar de si própria, das suas memórias e sonhos, do seu passado e do seu futuro?
Quem notou, de entre quantos, até hoje, se debruçaram sobre esta festa, que os Mourisqueiros eram um polo mais complexo e rico do que parece à primeira vista, não foi
nenhum antropólogo encartado, mas um médico de uma freguesia vizinha, António Costa Rangel de seu nome, num desenvolvido artigo de jornal, publicado no Porto, em 196317. O autor, aparentemente marcado pelo valor da ordem e da disciplina na sociedade, que caraterizava o regime político de então, acaba por colocar o grupo mourisco como modelo a seguir, designando-o como constituído por mouros cristãos.
Poder-se-ia dizer, ao fim e ao cabo, não são apenas os Bugios que representam a comunidade, mas também os Mourisqueiros. Ambos podem ser considerados polos de uma sociedade tensional que, procura, através da linguagem festiva e da luta simbólica, gerir os seus conflitos e contradições. E referimos uma sociedade tensional porque não podemos esquecer que os Mourisqueiros não eram uns jovens quaisquer: tradicionalmente, cabia às famílias dos “lavradores”, ou seja, dos detentores de terras e gados,
17 Cf. RANGEL, António C. (1963) – «Dança dos Bugios e Mourisqueiros», in Praça Nova, Setembro, 1963, pp. 8–10. O autor era médico, natural de Rebordosa, freguesia contígua a Sobrado, e chegou a ser presidente da Câmara Municipal de Paredes.
apresentar um dos filhos para integrar a Mouriscada18.
Regressando à procissão, cujo andor do Santo é transportado pelos Mourisqueiros, a conclusão seria esta: a lenda da luta pela posse da imagem tem uma relação apenas indireta e com a festa da Bugiada e da Mouriscada, uma vez que em nenhum momento é requerida a sua convocação; e por outro lado a lenda não tem qualquer relação direta com a festa religiosa católica. Assim, pode afirmar-se que é a comunidade, mediada pela liturgia e rituais católicos, que assume o tributo a S. João Batista, no dia a ele dedicado, e quem o executa são os jovens dessa mesma comunidade, os quais, ao fazê-lo, estão a afirmar a promessa da continuidade da tradição.
Pelas razões aduzidas, ler a narrativa da Bugiada e da Mouriscada sobradense como uma luta entre cristãos e muçulmanos ou entre bons e maus, e, mais ainda será
18 O costume dos Mourisqueiros de exibir cordões de ouro era um sinal de distinção social. Com o tempo e as transformações da estrutura económica e social, a pertença à Mouriscada foi-se, por assim dizer, democratizando. Os cordões continuam, mas são de imitação.
sempre adotar uma leitura simplista de um processo socio-antropológico complexo, com o risco de
5. Notas conclusivas e prospetivas
As reflexões críticas que aqui deixo, a propósito de alguns aspetos da vertente religiosa da festa sanjoanina de Sobrado não pretendem ser nem a primeira nem a última palavra sobre a matéria. Serão mais indagações exploratórias, levantando hipóteses interpretativas, no sentido de contribuir para um conhecimento mais aprofundado desta manifestação da cultura popular tradicional.
Tenho a clara consciência de que ficam a faltar vários aspetos desta problemática, que ficarão para uma nova oportunidade. E, porque o trabalho cientifico deve ser aberto, ficam aqui enunciadas, para que outros estudiosos se sintam motivados a deita mãos à tarefa. Referirei três em particular:
1. Como se manifesta hoje a devoção ao Santo? Os exvotos que alguns devotos levam na procissão ou que deixam eventualmente no
altar de S. João correspondem a que tipo de vivências? Que visão tem das promessas e do cumprimento das promessas agentes como o responsável da banca ou o pároco? Que relação têm os devotos do Santo e praticantes das cerimónias religiosas da manhã do dia da festa com os restantes festeiros e com as restantes vertentes da Bugiada e da Mouriscada? Quem são, afinal, esses devotos? A devoção circunscreve-se à festa ou manifesta-se todo o ano e de que modos?
2. Que outras manifestações do foro religioso e/ou ritual se podem encontrar na Festa da Bugiada e Mouriscada? Desde as formas de cooperação e solidariedade familiar e de vizinhança ao nível dos lugares onde habitam quer o Velho da Bugiada ou da Mouriscada às diversas práticas de comensalidade, antes, durante e depois da festa, passando pelas bênçãos (com água benta trazida da Igreja), com que os
líderes das duas formações aspergem cada um dos participantes e sem esquecer possíveis significados das Danças do Doce, no pátio da residência paroquial – estamos perante sinais a que vale a pena prestar atenção, inscrevendo-os na lógica mais ampla da festa e da vida. Acresce que a festa sobradense vai muito para além da Bugiada e da Mouriscada e suas danças, compreendendo manifestações e registos que entram completamente no conceito de carnaval, proposto por Bakhtin19: a paródia da vida de todos os dias; a crítica ou supressão das hierarquias; o manuseamento do grotesco; o contacto com os elementos; a subversão dos valores dominantes são experiências que comportam um nãodito que deverá ter formas de ser partilhado, captado e interrogado.
19 BAKHTIN, M. (1994). The Bakhtin Reader: Selected Works. New York: Oxford University Press (section 4: Carnival Ambivalence).
3. Finalmente, se a paixão é a grande palavra-chave da festa sobradense, envolvendo os corpos e os corações, as emoções, os sonhos e os fantasmas, a proximidade com a força contagiante dos elementos; se essa paixão envolve não apenas os diretamente implicados nas manifestações festivas, mas os que com eles interagem nas margens e até os que, nas comunidades da diáspora, seguem à distância vários dos momentos da festa, em direto através das redes sociais, cabe deixar a questão: como poderemos entrar nesses territórios, de modo a dar espaço às vivências, relações e partilhas que se desenvolvem na vivência dessa paixão?
Perguntar pelo lado religioso (no sentido etimológico da palavra) da festa é, assim, bem mais do que constatar certas manifestações especificamente desse foro, institucionais ou não. É (também) indagar sobre a busca sentido dos que festejam, pessoal e comunitariamente. É romper fronteiras entre mundos que frequentemente se
fecham entre si. É valorizar e celebrar o que liga as pessoas e afastar os muros que as separam. É aprender, através do festejar, a celebrar a festa da vida.
Bibliografia
ARAÚJO, Maria Cristina C. (2004)
– Bugios e Mourisqueiros: o Outro Lado do Espelho. Dissertação de mestrado. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto (não publicada).
BAKHTIN, M. (1994) – The Bakhtin Reader: Selected Writings. New York: Oxford University Press (section 4: Carnival Ambivalence).
Homilia do Papa Francisco na Casa Santa Marta, no Vaticano, 8 de fevereiro de 2019. [Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/ papa-francisco/missa-santa-marta.pagelist.html]. [Consultado em: 12/11/2024].
MATTA, Mendonça Sandrelly da, (2009) – O Cristo-Luz no quarto evangelho e o tema da “luz” em QumranPerspectiva literária do quarto evangelho a partir da sua relação com a Regra da Comunidade. Tese de doutoramento apresentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. URL. [Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio. br/13812/13812_1.PDF]. [Consultado em: 10/11/2024].
PINTO, Manuel (1982) – Bugios e Mourisqueiros – Subsídios para o Estudo da Festa de S. João de Sobrado. Valongo: Edição da Associação para a Defesa do Património Cultural do Concelho de Valongo.
PINTO, Manuel (2024) – «A Festa de São João de Sobrado como ela se faz», in Ribeiro, Rita et al. São João de Sobrado – A Festa da Bugiada e Mouriscada. Edição da Comissão de Festa de São João de Sobrado 2017.
RANGEL, António C. (1963) – «Dança dos Bugios e Mourisqueiros», in Praça Nova, Setembro, 1963, pp.8-10.
SURDEL, Alain-Julien (2002) – «L’hagiographie médiévale de Saint Jean-Baptiste – Evangiles, légendiers sanctoraux et récits de voyage en Terre Sainte», in Connochie-Bourgne, Chantal, et al. (coord.) – Jean-Baptiste, le précurseur au Moyen Âge. Presses universitaires de Provence, URL, pp. 201-216. [ Disponível em: https:// doi.org/10.4000/books.pup.4157 ]. [Consultado em: 10/11/2024].
VALLIS LONGUS
Revista de História. Arte. Cultura. Património. Identidade. Cidadania
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as seguintes (mesmo autor, obra) de forma abreviada:
1MATA, Joel Silva Ferreira (2018) – História Económica, Social e Administrativa do concelho de Valongo (1836-1926). Volume I. Valongo: Câmara Municipal de Valongo.
2 MATA, Joel Silva Ferreira (2018), p.325.
As citações até três linhas, dentro do corpo do texto devem ser identificadas por “ “1, remetendo para a nota pé-de-página; as citações com mais de três linhas devem ser apresentadas fora do texto, fonte 11, recuada para a linha do parágrafo, sem aspas, espaçamento 1.15, sem recuo da margem direita, remetendo para a nota pé-de-página.
7. Monografia:
Um autor:
MATA, Joel Silva Ferreira (2018) – História Económica, Social e Administrativa do concelho de Valongo (1836-1926). Volume I. Valongo: Câmara Municipal de Valongo, p.378.
Até três autores:
DULLIN, Sabine; JEANNESSON, Stanislas; TAMIATTO, Jérémie (2022) – Atlas da Guerra Fria. Lisboa: Guerra & Paz, p.74.
Mais de três autores:
FREIRE, Maria Raquel, et al. (2011) – Política Externa. As Relações Internacionais em Mudança. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, p.87.
8. Artigo científico citado de revista científica:
CERVO, Amado Luiz (2001) – «A Política externa brasileira dos anos 1990 e as relações com Portugal», in Revista de Relações Internacionais. Universidade Lusíada do Porto, n.º2 (2201). CEUL: Porto, pp.63-78.
9. Referência a actas apresentadas em congresso:
GOMES, Saul (2012) – «Leitura e espiritualidade nas Ordens Militares em Portugal Medieval», in Actas do VI Encontro sobre Ordens Militares. Palmela: Município de Palmela, 2012. pp.265-278.
10. Artigo de dicionário/enciclopédia:
Autor referenciado:
PASQUINO, Pasquale (1993) – «Augusto Wilhelm Rehberg. Pesquisas sobre a Revolução Francesa, 1793», in Dicionário das Obras Políticas, coord. F. Chatelet; O. Duhamel, E. Pisier. Rio de Janeiro: Civilização Editora, pp.983-991.
Autor não referenciado:
SOUSA, Fernando de (Dir.) (2005) – «Relações Internacionais e História Internacional», in Dicionário de Relações Internacionais. Porto: Edições Afrontamento, p.162.
11. Referência a um artigo electrónico: GOMES, Manuel Carmo (2020) – História: os primeiros passos: da variolação a Edward Jenner. [Disponível em: https://webpages. ciencias-ulisbia.pr/~mcgomes/vacinacao/ historia/index.html]. [Consultado em 21/08/2020].
12. Artigo de Jornal: DIAS, Manuel Augusto (2018.07.31) –«Ermesinde foi elevada a vila há 80 Anos» in A Voz de Ermesinde, p.19.