Valongo. Uma História do Pão. de Olga Cavaleiro

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VALONGO. UMA HISTÓRIA DO PÃO.

NOTA DO PRESIDENTE

Inicio esta viagem, através das páginas repletas de histórias e sabores deste livro, com um profundo olhar para as raízes que nos sustentam.

Em cada canto deste nobre Município de Valongo encontramos uma história rica e única, carregada de um legado que definiu e distinguiu este território dos demais. Conscientes disso, desde 2014 que nos empenhamos em promover e revelar a singularidade do nosso Concelho, tendo neste percurso, identificado as nossas marcas identitárias, alicerçadas nos elementos que nos demarcam no contexto metropolitano em que estamos inseridos.

São marcas que não simbolizam apenas a nossa identidade, mas que também atuam como embaixadoras, transmitindo ao mundo a essência e os valores que nos definem e que abrangem as nossas tradições materiais e imateriais, o nosso rico património cultural, geológico, natural e humano. São testemunhas do nosso contínuo compromisso de preservar e celebrar as raízes que nos tornam únicos com os olhos postos no futuro, procurando desta forma, inspirar as novas gerações a contribuírem para o progresso de Valongo sem contudo, esquecerem as suas origens.

Crescer nesta terra, onde o aroma do pão e dos biscoitos desperta as memórias de infância, foi uma aventura inigualável que me enche de imenso orgulho. Ainda hoje, esse aroma é algo que me lembra de onde eu vim e quem eu sou. Passei a minha infância perto da fábrica de biscoitos Paupério, abaixo da padaria Moreira e em frente à Igreja Matriz. Cada um destes pontos, intrinsecamente entrelaçados com a história da panificação, representa uma prova viva e tangível da inestimável herança que nos foi deixada por estas e por outras tantas padarias e biscoitarias.

A panificação em Valongo é uma tradição ancestral, enraizada há quase meio milénio. Fomos um dos principais fornecedores de pão do Porto durante séculos, alimentando não apenas as pessoas, mas também os laços que nos unem como sociedade. Mesmo diante de desafios monumentais, como as invasões francesas que assolaram a região, as guerras que se seguiram ao longo dos dois séculos seguintes e, mais recentemente, perante a crise global provocada pela pandemia, os nossos padeiros e as nossas padeiras ergueram-se e superaram-se, garantindo que o pão nunca faltasse na mesa das pessoas.

O Concelho de Valongo é, por isso, um testemunho da resiliência e da determinação de um povo. Aqui, ergue-se uma comunidade que jamais se rendeu perante as adversidades, que soube adaptar-se, inovar e traçar novos caminhos.

Este livro é fruto de uma paixão pela história e cultura deste Município singular. É um tributo à sabedoria e coragem dos nossos antepassados, à resiliência dos nossos contemporâneos e à esperança nas nossas gerações vindouras. É, acima de tudo, uma ode à tradição dos nossos saborosos “moletes”, da afamada regueifa e dos deliciosos biscoitos e a um saber-fazer que há séculos encanta os paladares e mantém viva uma herança que me acompanhará para sempre, onde quer que eu vá.

Com estas palavras, convido-vos a embarcar nesta jornada emocionante pelo mundo do pão, dos biscoitos e das histórias que fazem de Valongo um lugar único e inesquecível.

À autora, Olga Cavaleiro, por ter aceitado o ambicioso desafio de escrever este livro e a todos os que se disponibilizaram para participar no projeto apresento o meu profundo agradecimento.

Bem hajam!

4 ÍNDICE

A NOSSA CASA É O PÃO.

11 Falar de Pão. Quanto mora de Alimento num Pão?

BREVÍSSIMA HISTÓRIA DO PÃO NA HUMANIDADE. DO MEDITERRÂNEO A PORTUGAL.

CAPÍTULO I.

15 Os Cereais

15 O Trigo.

19 O Centeio.

21 O Milho.

25 A Cevada

26 O Milho Miúdo e o Milho Painço.

27 Um apontamento na Cronologia do Pão.

27 Os cerea is, do alimento ocasional ao pão.

31 O Pão e o nascimento de Sociedades Organizadas.

32 O Pão no Ant igo Egipto.

36 O Pão Deificado. A Grécia.

39 A Global ização do Pão. Império Romano.

41 O Pão que é Vida, na Europa Medieval Cristã.

44 Na abund ância e na escassez, o pão em Portugal.

45 Do Trigo, do Centeio e a Introdução do Milho.

VALONGO, UMA HISTÓRIA DO PÃO.

CAPÍTULO II.

51 Os Traços de uma Geografia, do Douro Litoral em direção à Montanha.

51 O Anticl inal de Valongo.

54 O Rio Ferreira.

54 O Rio Leça

55 O Concel ho de Valongo e suas Freguesias.

57 Valongo. A Ocupação do Território.

57 Terras de Pão, entre a Serra e o Vale.

73 O Pão, Ali mento e Redenção.

76 Valongo e o seu Pão como fruto de um Território.

77 Valongo. O Milho e o Trigo. O Pão Doméstico e o Pão das Padarias.

81 Valongo. Terras de Pão. O Pão das Padarias.

82 Entre o Porto e Valongo, os Traços de uma Geografia Física e Social no fio da História do Pão.

85 No Porto, a H istória do Pão Conta-se pela Voz de Valongo.

96 Alimentar de Pão as Cidades.

99 Em Valongo, o Pão.

99 Em Valongo. Os almocreves.

105 Em Valongo. Os Moleiros.

108 O Trigo. Uma História do Cereal do Pão de Valongo.

121 Cozer o Pão.

123 O Pão de Valongo nos Mercados do Porto.

129 Os caminhos do Pão de Valongo.

133 O Pão de Valongo no Porto, Hospital D. Lopo de Almeida.

136 Padeiras e Padeiros. Do feminino ao masculino, uma história do Pão no seu todo.

143 Circunstâncias de uma Comunidade que criou o Pão de Valongo.

143 O Contributo do Pão na Construção da Igreja Matriz de Valongo.

147 O Pão de Valongo e as Invasões Francesas. Primeira Invasão.

149 A segund a Invasão. Valongo e o seu Pão na Ocupação Francesa.

154 Liberais e Miguelistas no contexto de Valongo.

161 O Pão, a Regueifa e o Biscoito.

161 O Pão. Moletes e Sêmeas.

165 O Pão. A Reg ueifa.

169 Os Biscoitos.

A NOSSA CASA É O PÃO. O PÃO DE VALONGO.

CAPÍTULO III.

175 Memórias de quem fez a história. As Padarias de Valongo.

184 As Famílias. As Padarias.

192 Antes do Pão, a Semente e a Farinha.

195 Receitas e Histórias do Trigo que se fez Pão.

198 A Tosta Doce e a Tosta Azeda.

201 Os Biscoitos.

207 O Bolo Rei

208 Os Fornos do Pão e as Pás do Forno.

212 As idas e vindas para vender o Pão.

215 Em Valongo, Outros Pães. O Milho.

217 A Padaria de Milho que era também uma Moagem.

218 Cozer a Broa.

220 As voltas da venda da Broa.

222 As Padarias no Concelho de Valongo.

O PÃO, UMA IMENSA CASA.

CAPÍTULO IV.

227 Terras de Pão.

230 O Pão nos Moinhos.

231 O Pão Sagrado.

231 O Pão das Romarias. O Doce Branco de Sobrado.

235 No Calendário, os Dias do Trigo e do Milho.

236 O Pão Nosso de Todos os Dias. Dias de Trigo. Dias de Pão de Milho.

242 Preparar o Inverno. A Matança do Porco, Dias de Milho.

250 Solstício de Inverno. Celebrar o Natal. Dias de Pão de Trigo.

262 O Fim do Tempo Velho e a Introdução ao Tempo Novo. Celebrar o Entrudo.

264 Depois da fartura, o Jejum. A Quaresma.

268 Os Rituais da Fertilidade. A Páscoa.

272 No Calend ário, Todos os Dias, o Pão.

278 As Receitas do Forno do Pão.

O PÃO: PROTAGONISTAS DE UMA HISTÓRIA.

CAPÍTULO V.

O MEU PÃO.

CAPÍTULO VI.

8 A NOSSA CASA É O PÃO.

A nossa casa é o pão e dela não quisemos sair desde que conhecemos aquele alimento. Nessa casa encontrámos o conforto, a segurança e o refúgio para os tormentos da fome. Antes do produto transformado, foram as sementes que nos alimentaram, o trigo que nos cativou. Apesar de pequenas e cobertas por uma impenetrável casca, as sementes de trigo souberam atrair a humanidade que, há cerca de 14 000 anos, habitava pelo Crescente Fértil. Perante a diversidade disponível no meio-ambiente, aos humanos não passaram despercebidos os grãos de trigo que, após ingestão, provocavam sensação de bem-estar. De dimensão reduzida, cada semente era de grande capacidade energética, prorrogativa de ser embrião de nova planta e em si condensar energia para gerar mais grãos, por isso, a sua ingestão resultava na certeza de saciedade, qual superalimento capaz de melhorar a possibilidade de sobrevivência.

Ainda, o grão que se colhia e que se mantinha são, não reduzido a um tempo curto de durabilidade, deu confiança aos humanos habituados à incerteza da sobrevivência alimentar. Armazenar e conseguir fazer durar, seduziu pelo descanso contra a armadilha da fome. Ao invés de tantos outros produtos transformados em alimentos, o trigo não perecia facilmente ao desgaste do tempo. Mantinham-se os grãos impolutos, saudáveis, sempre saborosos para além da passagem das estações.

O sabor, pela versatilidade permitida, tornou-nos fiéis, criou laços duradouros com os pequenos grãos de trigo. Primeiro como sementes que trincávamos e ingeríamos feito bolo alimentar, depois como farinha ao qual juntávamos água e da qual fizemos pão. Um inocente pão, primário pela inexperiência, rústico pela farinha sem o crivo da peneira, denso pela ausência do fermento. Contudo, saboroso, capaz de acalmar a repetitiva e infatigável fome. Cozido sobre superfícies quentes, não teria o requinte que, mais tarde, após a introdução do fermento e do forno em abóboda, veio a adquirir, mas deixou marcas profundas no palato dos humanos.

Desde as primeiras civilizações surgidas em redor do Mediterrâneo que nos apaixonámos pelo pão e fizemos dele a nossa casa. Sim, porque para além da energia, durabilidade, a este alimento soubemos ir buscar a versatilidade do cereal que, arduamente, conquistámos à mãe terra. Rico em glúten, permitia utilizações várias, permitindo aquela proteína a arte da panificação. À farinha tudo se podia juntar, pois que ela tudo envolvia e permitia a construção sem desagregação. Um salto grande na cozinha mediterrânica. O princípio de tudo. O motivo pelo qual o trigo passou a ser produto de eleição nas trocas comerciais, na posse da terra cultivável e fértil, na disputa entre impérios e civilizações, o sonho de todo o humano, ter pão.

Daquele que se cozia e se comia fresco ao que se deixava endurecer pela cozedura repetida de modo que a ausência de humidade permitisse a conservação, nasceu o pão feito biscoito que se mantinha no tempo e salvava os dias. Eram as infinitas possibilidades de uma planta que se fez notar e conquistou a atenção dos humanos. Mais uma vez, pela durabilidade e armazenamento após transformação das sementes, o pão descansou e acalmou a ansiedade perante a desgastante ameaça da falta de alimento. Foi uma questão de criatividade, pois que se percebeu que a junção de água e farinha permitia o pão, o biscoito, as papas, os bolos, as massas. Em todos eles, os mesmos ingredientes, apenas diferenciando-se pela quantidade de água e a arte culinária presente. Mas, a nutrição, o sabor e o bem-estar fizeram sentir que se estava no caminho certo para um futuro tranquilo.

Terá sido muito mais no trigo que em qualquer outro dos cereais, como a cevada e o centeio, que encontrámos o refúgio. Por aquele cereal definimos a geografia das primeiras civilizações situadas em lugares de grande fertilidade. Por ele lutámos, fizemos guerras pelas “terras de pão” e conquistámos impérios pela necessidade de força de trabalho para o ciclo do trigo. Percebemos o sabor importante do acordo entre vizinhos na partilha da terra e da água, evoluímos como civilização nos recursos e nas técnicas. Ao trigo como cereal eleito demos a importância do altar. Nos primórdios

da sacralização, consagrámos às deusas a força do trigo, fizemos da terra ventre sagrado e do sol força fecundadora. Os pães sagrados acompanham a história das civilizações do Mediterrâneo e a necessidade de afirmação de um estilo de vida. Terá sido por isso que o Cristianismo se funda sobre o valor sagrado do pão e do vinho, alimentos do corpo e da alma, da saciedade à tranquilidade espiritual. “Eu sou o pão da vida, quem me come não morrerá” o pão institui-se como o alimento que é e dá vida, que salva da morte física e espiritual.

Terão sido o pão e outros alimentos sagrados, como o vinho e o azeite, os pilares da construção de nações, pelo uso das melhores terras construíram-se laços de fidelidade entre senhores e vassalos. Assegurar o alimento guiou a construção de um modelo político, social e económico. Deu conteúdo a uma estrutura que visava a sobrevivência pela posse e usufruto da terra.

Em plena Idade Média, estava já longe o momento em que a humanidade, em volta do Mediterrâneo, se deixou conquistar pelas pequenas sementes de casca impenetrável, mas estava próximo e muito presente as qualidades do cereal.

As viagens e o alargamento das relações entre civilizações de geografias diferentes trouxe o conhecimento de outros cereais, contudo, a humanidade manteve-se fiel àquele cereal nunca esquecendo o seu valor nutricional, o seu sabor, a sua quase infinita versatilidade culinária. É sobre o trigo e no trigo que construímos a nossa casa alimentar. Ainda que outros cereais, como o milho e o arroz, tenham feito investidas no nosso palato, a fidelidade ao trigo faz deste o alimento omnipresente na nossa história gastronómica. Entre o mote para matar a fome, básico, simples mistura de farinha e água, à complexificação da sua utilização na linguagem culinária, até à sacralização e politização do pão, passaram-se milénios. Durante todo este tempo, não se tratou nunca de, somente, uma história política, económica ou religiosa. Foi uma história de sabor que se fez, de trocas entre populações que nunca se contentaram com o que a geografia de um determinado local lhes dava. Por isso, as viagens e as conquistas, a procura de alimento.

No trigo, encontrámos a nossa casa. Pelo trigo, desfiámos uma história feito em múltiplas linhas, traços desenhados pelos sentimentos humanos aos quais se misturou a história da humanidade. Não o sentimos pela proximidade que um simples pão de crosta crocante e miolo macio nos dá. Não está ao nosso alcance entender a sua força, pois que se tornou tão importante para nós que o desejamos como adquirido. Mas é o pão. Aquele que nos sacia, nos acalma, nos intima a viajar e a guerrear, aquele a quem damos o privilégio sagrado. Aquele que é a nossa casa.

Da casa comum da humanidade que fluiu à volta do Mediterrâneo, à casa pequena de cada cidade, vila ou aldeia dos países que se construíram à volta do pão, ao pão sempre presente no quotidiano alimentar português, à casa de cada um de nós onde o seu aroma e o sabor formaram prática cultural ancestral, descobrimos o valor daquele alimento.

Pode a vida das comunidades ser contada a partir de um pedaço de pão e de todo o fio que este traz consigo, da semente deitada à terra, à moagem, ao cozer?

Entre o princípio e o fim, fica a narrativa de quem fez os caminhos do pão, os traços da sua viagem. Em Valongo, fruto de um conjunto de circunstâncias físicas e culturais, desenhou-se um mapa temporal e espacial que escreve as linhas da história daquele alimento numa geografia muito precisa. Entre Valongo e o seu redor, vislumbra-se o visível e o invisível de uma arte que aqui se fez economia e cultura, quase um território distinto pelo que os traços do pão quiseram fazer evoluir.

Em Valongo, o pão fez-se casa para muitos, albergou histórias intensas de famílias, acercou o domínio familiar restringindo-o à riqueza que era ter o negócio do pão, fez do moinho lugar sagrado e da padaria espaço de alquimia para a eterna perfeição da arte da panificação, fez-se personagem viva para além daqueles que fizeram o seu caminho e com ele conviveram.

De um espaço de passagem, transição entre o Oeste carregado de urbanidade e o Este de onde soltam os uivos da liberdade sempre presentes na montanha, Valongo descobriu-se como lugar autónomo, capaz de reter memórias e gerar influência no todo que o rodeia. Fez-se lugar de identidade, fazendo do pão a casa de muitos. Daqueles que o faziam e de que dele viviam pela riqueza gerada. Daqueles que o comiam, saciados na expressão, simultaneamente, tão forte e tão singela que cabe numa dentada de pão. De tal ordem se expressa o pão como casa que passou a morar em cada valonguense uma história de pão, aquela que é de todos e de cada um.

É assim que viajamos pelas linhas bem presentes e desenhadas, ainda que fluidas, de uma história que merece ser contada sobre um território que se fez, cresceu e evoluiu pelas raízes que soube lançar em seu redor através do pão.

Bem-vindos a Valongo, a uma história do pão. Bem-vindos a uma casa que é de todos os que se apaixonaram pelo arte do pão, aquele que mora em nós.

FALAR DE PÃO. QUANTO

MORA DE ALIMENTO NUM PÃO?

Regressar à reflexão sobre origem do pão é sempre um exercício circunscrito aos critérios que julgamos determinante definir. Falar de pão não será o mesmo que referir os cereais, no seu todo ou o trigo em particular, mas a construção de uma civilização do pão deixou como legado o entrosamento entre ambos os mundos. Quase como se fossem sinónimos uns dos outros. Assim, os cereais podem ser entendidos, em alguns contextos, como pão.

Talvez por isso, na cultura portuguesa, as propriedades onde se cultivavam os cereais, eram «terras de pão». Não que ali se fizesse o pão amassado e cozido, mas porque eram os domínios do cereal que, depois de moído e peneirado, iriam dar lugar ao alimento saboroso e nutritivo. Espaço reservado à produção do alimento mais importante da alimentação, era, por isso, muito valorizado e defendido, oferecendo-se como uma antecâmara do poder que se tinha noutras esferas. Por essa razão, as «terras de pão» formaram-se como domínios dos que ocupavam lugares cimeiros na estrutura política, económica e social. Seriam os privilegiados a possuir os domínios agrícolas onde os cereais eram produzidos.

No mesmo sentido, o cereal já desfeito e triturado pela força das mós, também era chamado de pão. Pão sem o ser, mas já embrião do alimento. Ao grão que se levava ao moinho, se chamava pão. À farinha que resultava da moagem, se dizia pão. Aos moleiros, nunca faltou o pão da maquia.

Mas referir pão não reduz o conjunto de significados, antes alarga de acordo com o lugar e a cultura. Contudo, na súmula está a designação «pão». E a cultura popular portuguesa neste conceito inclui, o dito de trigo feito com a farinha alva sujeita ao crivo da peneira de malha fina, chamado de «pão alvo». O dito de trigo, contudo menos peneirado e, por isso, com mais casca, chamado de «meado», «terçado» ou «quartado» quando misturado com outros cereais como o milho, centeio, cevada, milho miúdo ou milho painço. A broa, tantas vezes chamada de pão de milho, cuja aspereza obrigava

à mistura com centeio ou trigo. O pão feito com farinha de fava, leguminosa que, nos séculos de menor produção cerealífera, salvou do sufoco e extermínio da fome. A hóstia que, após a consagração, se transforma no corpo de Cristo. Tal era a importância nutritiva, energética e cultural que todos exprimem que, para o povo, tudo era pão.

Do todo matricial, o pão, eleito na sua essência trigueira, ao pão que o era pelo conteúdo cultural e simbólico. Agarrados ao pão, quisemos sempre tê-lo na nossa vida, mesmo quando era apenas uma aproximação. Fluido entre várias expressões, oferecendo-se como produto processado a partir de cereais e revestido de grande expressão simbólica, o pão é a ideia para além do conteúdo. E é nessa riqueza que reside a importância para as comunidades, sobretudo, na multiplicidade gerada nos pontinhos de cada lugar.

O que é o pão? Semente, farinha, produto processado feito de farinha, água, sal e crescente? Como compreender a cultura gastronómica do pão sem olhar às receitas que nasceram e cresceram com o pão? Pão, alimento nutritivo e saboroso. Pão, linha fiel de uma estrutura culinária que desenhou receituários variados onde a partir do pão se fizeram as Bolas, os Bolos, as Sopas, As Açordas, as Migas, os Ensopados, as Rabanadas, a Aletria, as Papas, e tantas outras receitas que dão substância à cozinha portuguesa.

Falar de Pão e encontrar a ideia que dá forma ao sabor, quase forma cultural que dá amparo a uma linguagem alimentar, mas cujo miolo é diverso e amplo, universo infinito de braços que se desenham a partir do tronco comum. Dos cereais, da farinha, do pão, do que nos preenche o estômago e sacia o palato. “Bread should not be understood as a single type of food but defined by a series of potential variables.”1 Numa escrita que se irá centrar em Valongo, uma História do Pão, pretende-se que a viagem se faça pelo miolo rico que a realidade passada e presente oferece. Da semente, o embrião, ao pão, o alimento. Pelo caminho, irão desenhar-se os caminhos do pão que gerava riqueza e marcou o território de Valongo como fruto sagrado. Mas, a vivência com a realidade vai dar a conhecer outros pães. Em todos, encontramos a nossa casa. Longo e muito rico, como é o pão que nunca acaba nas nossas mesas e cujo miolo satisfaz a nossa fome.

1 CARRETERO, Lara González – On the origins of bread cultures in the Near East: a new archaeobotanical study of charred meals and cooking practices from Neolithic Çatalhöyük (Turkey) and Jarmo (Iraqi Kurdistan). London, 2019, Thesis submitted in fulfilment of the Degree of Doctor of Philosophy Institute of Archaeology, University College London, p. 23.

BREVÍSSIMA HISTÓRIA DO PÃO NA HUMANIDADE. DO MEDITER RÂNEO A PORTUGAL.

OS CEREAIS.

O Trigo.

A investigação à volta da origem do trigo envolve várias perspetivas, sobretudo, num período em que devido à manipulação genética deste cereal renasceu o interesse pelas espécies mais antigas. Contudo, nem sempre os modelos de investigação levaram às mesmas conclusões. Catherine Zabinski (2020) na biografia que descreve do trigo relata uma trajetória de evolução da planta que cruza várias espécies. Refere a espécie einkorn e a emmer que existiriam, já há 13 000 anos, aquando da domesticação daquele cereal na região do Crescente Fértil.

Einkorn é a espécie mais antiga e mais simples que se conhece de trigo. “It’s named for its reticence to procreate, with just a single grain of wheat developing from each flower (ein = one and Korn = grain, in German). 1 Terá sido cultivada durante muito tempo, sobretudo, pela sua enorme adaptação a solos pobres, sobretudo em terrenos de altitude, permitindo colheitas rentáveis. Na movimentação das comunidades a partir do Levante, esta espécie acompanhou as migrações humanas para todo o lado, menos para o Norte de África dada a sua dificuldade em se compatibilizar com climas muito quentes. Apesar da grande capacidade de produção, esta espécie terá sido progressivamente abandonada em virtude de a moagem dos grãos resultar numa farinha grosseira e não muito apetecível para consumo humano.

A espécie emmer, muito popular entre os egípcios, terá subsistido à passagem do tempo, não só pela sua capacidade de adaptação a climas quentes como também pelas suas caraterísticas que fizeram dele um antecessor do trigo duro, ideal para a produção de massas e de cuscuz. Terá sido um cruzamento entre ambas as espécies que permitiu o aparecimento de trigos mais apetecíveis e versáteis.

Será preciso olhar para a estrutura genética do trigo para compreender a sua evolução. A espécie einkorn dispõe de 14 cromossomas, duas cópias de cada um de 7 cromossomas. “A long time ago, maybe 500,000 years, a close relative of einkorn was fertilized by a pollen grass from a weedy goatgrass. (…) Emmer is the result of the hybridization between einkorn’s relative and a species of goatgrass. We know that because emmer wheat has 28 chromosomes: 14 from the einkorn parent and 14 from the goatgrass parent.”2 Apesar da diferença entre o número de cromossomas entre ambas as espécies de trigo, sobressaía o tamanho maior das sementes em comparação com as de outras plantas. Para além disso, estes grãos encontravam-se protegidos por uma casca. Embora de largo valor nutritivo, era preciso empregar muito esforço na sua transformação em alimento.

O trigo comum (Triticum aestivum L.) ao qual a humanidade se habituou para fazer pão será descendente da espécie emmer e terá surgido há cerca de 8000 anos. Terá sido por acaso, e não por intervenção humana, que uma planta desta espécie foi fertilizada por outra espécie sendo o resultado um trigo híbrido 42 cromossomas. Aos de 28 cromossomas de emmer (ou seja, os 14 referentes ao parente da espécie einkorn e 14 referente a uma outra planta) juntaram-se 14 cromossomas de uma qualquer erva daninha. Terão sido ambos os episódios, aquele cruzamento entre espécies e a adição de mais 14 cromossomas, que permitiram que as sementes fossem mais macias e mais fáceis de descascar facilitando, deste modo, o processo de separação da farinha do farelo.

1 ZABINSKI, Catherine – Amber Waves: The Extraordinary Biography of Wheat, from Wild Grass to World Megacrop. Chicago : The University of Chicago Press, 2020, p. 57.

2 ZABINSKI, Catherine – Amber Waves: The Extraordinary Biography of Wheat, from Wild Grass to World Megacrop. Chicago : The University of Chicago Press, 2020, p. 42.

Ainda, esta espécie de trigo, devido ao maior valor proteico, permitiu desenvolver massas com maior consistência e ligação. “Bread wheat, also known as common wheat, is an annual, predominantly autogamous species belonging to the Triticeae tribe of the grasses (Poaceae) family. It is an allohexaploid species, composed of 21 chromosome pairs organized in three subgenomes, A, B, and D, Genome BBAADD, 2n = 6X = 42.”3 É nesta espécie que a espelta se inclui como subespécie.

A partir do conjunto de territórios inseridos nos limites do Crescente Fértil, deu-se a expansão das várias espécies de trigo. Entre 9500 a.C. e 7500 a.C., dos lugares adjacentes aos rios Tigre e Eufrates, partiram para Norte e para Ocidente, para a Anatólia, hoje Turquia, as comunidades que levaram consigo as espécies emmer e einkorn. Por volta de 7500 a.C., por um diverso conjunto de fatores associados a mudanças climáticas, muitas dos agrupamentos humanos situados no Levante foram abandonados, deslocando-se para Creta por volta de 7000 a.C. onde praticavam a arte de fazer o pão. A partir daqui a movimentação acontece na direção Oeste e Norte por duas vias diferentes, uma delas tendo em conta o mar Mediterrânico e a outra o Rio Danúbio.

Na primeira, para Ocidente, pela costa do mar Mediterrâneo, chegam ao Norte de África agrupamentos humanos, que experimentam já a arte da agricultura, movendo-se pelo interior no encalço de vales férteis. Aparecem, por volta de 5000 a.C., junto ao rio Nilo comunidades agrícolas que cultivam trigo, cevada, leguminosas e criam cabras e ovelhas. Terá sido o deserto africano e o clima agressivo uma barreira natural a expansão agrícola por dentro de África. Por volta de 5800 a.C., chega o trigo à Península Ibérica.

Numa outra via de expansão, as comunidades seguiram o rio Danúbio e, por volta de 6000 a.C. dá-se a expansão da prática de cultivo de cereais, a partir da Bacia dos Cárpatos, por entre os terrenos associados aquele rio e seus tributários. Num território, atualmente, dividido entre a Hungria, Áustria, Sérvia, Croácia, Eslovénia, Eslováquia, Roménia e Ucrânia. Por volta de 4000 a.C., dá-se a chegada a prática agrícola à Alemanha, Polónia e Ilhas Britânicas.

A movimentação das espécies de trigo para outros locais do globo foi limitada por condições climáticas como aconteceu na Índia onde o clima tropical refreou o entusiasmo por este cereal. Do mesmo modo, o Mar do Norte com o seu clima frio e agreste constituiu um limite à progressão daquele cereal, ainda que o trigo tenha sido introduzido na China, por volta de 3000 a.C..

Nesta expansão das espécies de trigo verificou-se que as condições geográficas provocaram adaptações genéticas às plantas criando-se derivações muito associados ao local e a eventos aleatórios. “Genetic adaptations occur when a variant in the population has what is needed to survive and thrive in a new environment. With migrating humans carrying pouches of seeds to new environments, another evolutionary force is at play: genetic drift, which is the change in the populations caused simply by chance events. (…) Each new climate and set of soils selected for certain traits in the crops species that were unique to that area. This was the beginning of an eclectic set of populations of wheat, each adapted to its local climate, and each contributing to the breadth of genetic variation in the species.”4

O alargamento da área de influência do trigo como resultado das migrações humanas, condicionou a adaptação que as espécies foram sofrendo aumentando, simultaneamente, a diversidade de acordo com o clima e solos de cada lugar.

3 LEVY, Avraham A. e FELDMAN, Moshe – Evolution and origin of bread wheat IN: The Plant Cell [on-line] Volume 34, Issue 7, July 2022, Pages 2549–2567. [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1093/plcell/koac130.

4 ZABINSKI, Catherine – Amber Waves: The Extraordinary Biography of Wheat, from Wild Grass to World Megacrop. Chicago : The University of Chicago Press, 2020, p. 56.

No entanto, a afeição ao trigo e a sua versatilidade fizeram deste cereal um alimento muito procurado, contribuindo para a especialização da procura. Assim, algumas das espécies perderam importância alimentar e cultural, enquanto as pertencentes ao grupo Triticum aestivum L. ganharam influência e destaque. Dentro deste grupo, sobressai o trigo mole, de grão mais mole e com maior aptidão para o fabrico de pão, e o trigo duro, de grão vítreo mais favorável a produção de massas alimentícias. 5 Dentro do grupo Triticum aestivum está a espelta, uma das variedades de trigo mais antigas que ainda se encontra em produção e muito adequada à produção de um pão de qualidades organoléticas de grande qualidade.

De reter que, no conjunto dos cereais, o trigo será o mais exigente exigindo solos férteis e clima ameno e quente. Por isso, na geografia da expansão do trigo, o clima foi, simultaneamente, uma oportunidade e uma limitação. Terá sido conduzido pelos territórios de climas quentes e limitado pelos lugares com dias menos ensolarados e de temperaturas mais reduzidas. Pela Península Ibérica, mormente pelo território que se definiu como Portugal o trigo inicia o seu percurso pelo Sul, pois que vem com os povos que o trazem a partir do Mediterrâneo. O clima seco e quente a favorecer dias cheios de sol fez com se criasse uma relação profunda entre a geografia abaixo do Tejo e aquele cereal.

A vinda dos romanos com a expansão do Império para a Ibéria, fez com que a cultura do trigo proliferasse por todo o território. Dominados os povos, foram estes obrigados a descer a montanha e a cultivar o trigo para sustento dos hábitos alimentares da nova classe dominante. O trigo viaja, por isso, de Sul a Norte, desde regiões como o Baixo Alentejo, às planícies do Tejo, às terras saloias à volta de Lisboa, a o enclave mediterrânico situado no Douro Superior, os locais mais apropriados para a produção de trigo. 6

António H. de Oliveira Marques identifica os trigos que predominaram em Portugal, no decorrer da Idade Média. “A agricultura romana conhecia duas espécies de trigo principais: o chamado «triticum», onde se englobavam as duas variedades, trigo de Inverno («triticum vulgare hibernum») e trigo túrgico («triticum turgidum») e o chamado «far », qualidade de trigo duro, com duas variedades, o «triticum dicoccum» e o trigo espelta, «triticum spelta». Para a Península Ibérica os trouxeram os romanos, se é que todas ou algumas já não existiam como culturas do Neolítico. Os trigos vulgares de Inverno, surgem nos testemunhos medievais, com o nome genérico de «trigo galego» ou «trigo temporão». «Trigo Tremês» ou «tremesinho» é outra variedade que surge nos documentos. Avelar Brotero, em 1804, dava-lhe o nome latino de «Triticum aestivum» e, modernamente, a botânica inclui-o nos trigos duros. (…) O trigo duro parece revelar a sua origem islâmica através do nome com que nos surge na documentação medieva: trigo mourisco.” 7

A consciência, quer da importância do trigo na alimentação mundial, quer da dependência da humanidade em relação aquele cereal, criou na comunidade científica a necessidade de um melhor conhecimento da sua estrutura genética. Neste âmbito, surgiu o Consórcio Internacional de Sequenciação do Genoma do Trigo (IWGSC) que reúne um alargado lote de cientistas empenhados na concretização do objetivo definido. Oriundo de 68 países, os envolvidos conseguiram descrever a sequenciação do genoma

5 FERRÃO, José E. F. – As Plantas e a Alimentação Mundial. Lisboa : Fundação Francisco Manuel dos Santos. 2020, p. 122.

6 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 23.

7 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 82.

da variedade Chinese Spring, sobre a qual foram elaborados vários e aprofundados estudos entre 1950 e 1970. 8 Deste trabalho conjunto, surge informação determinante que pode garantir uma melhoria no cultivo do trigo no que se refere ao impacto sobre o meio ambiente e a vida humana.

O Centeio.

A informação disponível, sobre a origem genética do trigo e as migrações a que foi sujeito na sua expansão, é variada e múltipla, pois que a ampla investigação sobre um dos cereais mais desejados assim o permitiu. Contudo, sobre o centeio (Secale cereale) não se torna tão fácil delinear a sua origem e a geografia percorrida desde a sua expansão. Na verdade, de início, o centeio terá sido perspetivado pelos humanos como uma planta secundária, sem interesse para a alimentação humana e tida, até, como indesejável junto das plantações de trigo. O centeio terá sido, inicialmente, olhado como uma erva daninha. “It is difficult to prove the cultivation of rye, however, because rye is a secondary crop plant, which expanded originally as a weed in the cornfields and only later on achieved the status of a cultivated plant. Being harvested with the main crop, the primary weed form of rye (still with brittle rachis) developed a tough rachis through unintentional selection. This developed form of rye grows as a well-adapted weed in fields of wheat or barley. It was only with the change to its intentional cultivation, be it in mixed or separated fields, that rye, too, became a crop in its own right.”9

Por ter sido desvalorizada pelos primeiros humanos agricultores que, no Crescente Fértil, desenvolveram a domesticação do trigo e da cevada, há cerca de 10000 anos, o centeio não acompanhou a expansão geográfica daqueles cereais. Por outro lado, a diversidade genética e frequente hibridização da espécie Secale aumenta a complexidade do estudo da origem do centeio. Membro da família Pooideae, encontram-se cerca de 14 espécies diferentes do género Secale, contudo, apenas a espécie Secale Cereale foi domesticada. “Still, up-to-date genomic analyses suggest Secale cereale subsp. vavilovii was its wild ancestor and it is naturally distributed through Southwest Asia, where the earliest macroremains of rye have been found.”10

A evidência de que a planta do centeio foi percebida, inicialmente, como uma planta secundária potencia a dificuldade em perceber se os vestígios arqueológicos encontrados dizem respeito a produções independentes ou restos de centeio, inadvertidamente, misturados com a produção principal, fosse ela o trigo ou a cevada. A arqueologia botânica demonstra que são raros os indícios de centeio, quer no Neolítico, quer na Idade do Bronze reforçando a ideia de que, nestes contextos cronológicos, aquele cereal expande-se enquanto planta secundária e sem intenção deliberada de produção.

Será na Idade do Ferro que se inicia o cultivo de centeio como planta principal na Europa Central e de Leste, para onde migra a partir do Sudoeste Asiático, mais concretamente da Anatólia. Although, in the Baltics, it likely occurred only in the 2nd–3rd centuries CE. Still, the timing and social context of rye's introduction and

8 BEHRE, Karl-Ernst – The history of rye cultivation in Europe. IN: Vegetation History and Archaeobotany [on-line] October 1992, 1(3):141-156. Federal Republic of Germany : Niedersichsisches Institut for historische. [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://www.researchgate.net/publication/226772598_The_history_of_rye_ cultivation_in_Europe.

9 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023) – Th e introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/journal. pone.0284222, p. 2/26.

10 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023) – The introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/ journal.pone.0284222p. 2/26 e 11/26.

expansion in western Europe remain poorly known. In the British Isles, rye was recovered in reduced amounts in Late Iron Age and Roman contexts and its intentional cultivation was not certain, although it could have been a minor crop during the last period. (…) The dated Iron Age/Early Roman grains correspond to the oldest secure evidence of rye in the Iberian Peninsula. The Bayesian modelling suggests its introduction occurred between the 3rd century and the first half of the 1st century BCE (95.4%), most probably between the 3rd and 2nd centuries BCE (68.3%). The strong distribution of the Iron Age/Early Roman KDEPlot within this last period of time also supports this chronology. 11

Desenhar a cronologia e as vias de expansão do centeio na Ibéria não é tarefa facilitada, pois que, apesar da certeza de presença deste cereal assegurada pela arqueologia, os resultados obtidos não permitem concluir qual seria o papel daquele cereal. É que, se viaja e se expande como erva daninha, fica por explicar a concentração dos vestígios somente em alguns locais e não por onde se expandiu as espécies de trigo dominantes como a espelta.

Na Península Ibérica, ainda que seja possível identificar alguns vestígios arqueológicos de centeio desde o Neolítico, os mesmos não permitem concluir uma utilização agrícola e alimentar deste cereal. “Pollen data suggest rye is more frequent in Late Antiquity, and above all, in the Medieval period when it is found in several cores and throughout the Iberian territory. Globally, in this last period, rye pollen continues to be present in reduced amounts, but significant assemblages are observed in some cases.”12

A identificação, no Noroeste da Ibéria, de cerca de 50000 grãos de centeio destruídos por um incêndio que decorreu entre os séculos VI e VII a.C. permite concluir que, neste caso, aquele cereal seria já alvo de produção independente e que teria importância suficiente para ser armazenado. 13 Num período em que o trigo ocupava grande protagonismo no contexto alimentar, é de supor que o investimento no centeio como cultura agrícola poderá ter sido uma consequência da sua capacidade enquanto cereal resistente a climas agrestes e solos pobres.

Ou seja, paulatinamente, poderá ter sido notório para os humanos que, perante as frequentes flutuações entre períodos climáticos favoráveis e adversos capazes de alterar a rentabilidade das colheitas, o centeio poderia ser incluído na estratégia de produção agrícola complementar. Capaz de produzir no clima frio das terras altas, aquele cereal pode ter sido identificado como uma semente com maior adaptabilidade às regiões montanhosas e frias compensando, deste modo, as baixas produções conseguidas com o trigo. “Rye could have replaced the role fulfilled by hulled wheats, which are more resistant to pests and adverse weather conditions than naked wheats, and more adaptable to a winter growing season. The higher green fodder productivity of rye, in addition to their better growth on poor soils, could have meant an advantage over emmer and spelt in the cropping cycles.”14

11 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023)

– The introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/journal. pone.0284222, p. 3/26.

12 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023)

– The introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/journal. pone.0284222, p. 15/26.

13 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023) – The introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/ journal.pone.0284222, p. 15/26.

14 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023)

– The introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/journal. pone.0284222, p. 15/26.

Igualmente, no alargamento da influência do centeio enquanto produto alimentar, poderá ter estado a influência germânica que se fez sentir, por volta do século III, na Península Ibérica com o declínio do Império Romano e que irá resultar no domínio Suevo. “Considering that rye was a relevant crop in Central Europe since earlier periods, it is possible that these increasing contacts and migration led to the dissemination of this crop in the western most areas of the Roman Empire.”15

No contexto do território da Península Ibérica onde se desenhou a construção de Portugal o centeio afirmou-se, durante o período medieval, como uma importante cultura agrícola que permitia, por um lado, contrariar as dificuldades associadas à produção de trigo a norte do Tejo, nomeadamente, no perímetro moldado pela muralha montanhosa desenhada desde o Norte de Portugal até à Cordilheira Central. A resiliência deste cereal perante condições climas frios e solos delgados 16 fez dele o pão presente na cultura gastronómica das regiões serranas. Por outro lado, mesmo nas regiões onde o trigo proliferava com maior facilidade na produção, o cultivo de centeio era ação estratégica de complementaridade. Ainda que discreto e usado em poucas quantidades, pois que as produções de trigo assim o permitiam, o centeio era utilizado para fazer os pães meados, terçados ou quartados mais acessíveis no quotidiano dos que menos podiam, já que eram feito a partir de misturas de vários cereais.

Apesar da importância deste cereal na subsistência das comunidades e do sabor que a sua presença imprimia ao pão, terá sido alvo de desvalorização social. Por um lado, a cor da farinha estigmatizou-o como o «pão escuro», o menos considerado e, por isso, rejeitado pelas famílias abastadas. Em contraste com o pão branco feito com a flor da farinha moída nas mós alveiras, este era produzido com o centeio moído em mós negreiras. Na avaliação simbólica e cultural, o pão de centeio perdeu em comparação com o trigo.

Por outro lado, a proliferação do fungo Claviceps purpúrea, doença que atacava os grãos do centeio prejudicando o seu desenvolvimento, criou uma associação entre esta planta e alteração do estado mental e emocional dos indivíduos. Aquele fungo parasita ao modificar a estrutura dos grãos, fazia desenvolver a ergotina 17, substância indutora de estados alucinógenos. A ausência de conhecimento acerca dos malefícios do consumo destes grãos atacados pelo fungo fazia com que, na moagem, aqueles não fossem retirados. Da farinha resultante era feito pão que, ao ser consumido, provocava alucinações e sonolência, estados frequentemente relacionados com a embriaguez ou com forças sobrenaturais. Não percebendo a origem da alteração do estado emocional, criou-se uma relação entre o centeio e comportamentos socialmente menos respeitados.

O Milho.

A domesticação das espécies vegetais representou uma das maiores mudanças ocorridas na vida da humanidade pois, para além da alteração de modelos alimentares, proporcionou a introdução de novos hábitos de vida que levaram à sedentarização e ao florescimento de civilizações. Do mesmo modo que, há cerca de 10 000 anos, os humanos que habitavam em redor da região do Crescente Fértil selecionaram as sementes das espécies ancestrais de trigo, emmer e einkorn, que lhes permitiam produções mais rentáveis e de melhor resultado alimentar, na região

15 SEABRA L, Teira-Brion A, Lopez-Doriga I, Martín-Seijo M, Almeida R, Tereso JP (2023)

– The introduction and spread of rye (Secale cereale) in the Iberian Peninsula. PLoS ONE 18(5): [consult. em 21 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.1371/journal. pone.0284222, p. 15/26.

16 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 24.

17 FERRÃO, José E. F. – As Plantas e a Alimentação Mundial. Lisboa : Fundação Francisco Manuel dos Santos. 2020, p. 113.

central do continente americano, decorreu a domesticação da planta selvagem que veio dar origem ao milho. Na verdade, a domesticação do milho e do trigo decorreu, quase em simultâneo, em duas regiões diferentes do mundo sem que uma tivesse influenciado a outra.

A investigação arqueológica, nomeadamente a descoberta de espigas de milho armazenadas em caves do Vale de Tehuacán (Puebla) datadas com pelo menos 5 000 anos, indicia que o milho terá sido domesticado no México, num período entre 7 000 anos e 10 000 anos. Contudo, desenvolvimento de outras investigações situam a origem genética do milho nos Andes, numa área hoje partilhada pela Bolívia, Equador e Peru, devido à grande variedade genética encontrada no milho proveniente daquela região montanhosa. Na comunidade académica, perante os resultados da investigação, debate-se a questão de ter havido um único centro genético de expansão da planta ou, por outro lado, a origem do milho ter ocorrido dispersa por vários centros.

Não é seguro afirmar qual a planta selvagem a partir da qual resultou o zea mays, contudo, é comummente aceite que terá sido a partir da planta selvagem Teosinto, zea mays ssp. Parviglumis, uma planta selvagem presente nas terras baixas do México. De acordo com a investigação ao passado genético do milho, é referenciado que esta planta, ao ser levada para as terras altas do planalto central mexicano, ter-se-á debatido com os desafios de uma geografia agreste de altitude, como as temperaturas baixas. É neste contexto que, num período entre há 4 000 anos e 6 000 anos, se dá o encontro entre aquela espécie e a zea mays ssp. Mexicana, esta já bem-adaptada ao rigor das terras planálticas. “Mexican highland maize and mexicana share morphological traits (most obviously, pronounced stem pigmentation and pubescence) that are rarely seen in parviglumis and lowland maize. This common morphology presented the first indication of introgression between mexicana and maize, interpreted variously as the adoption of adaptive traits by maize or as mimicry by teosinte to evade removal from cultivated fields. Subsequent molecular studies have demonstrated shared ancestry between Mexican highland maize and Mexicana.”18

O teosinto zea mays ssp. Parviglumis será a planta ancestral do milho, enquanto a espécie mexicana deu-lhe diversidade pela capacidade de adaptação. O contato entre as duas espécies deu resistência à planta quanto ao frio, calor e necessidade de água.

A integração do milho na alimentação, levou as comunidades humanas a um esforço progressivo na domesticação, selecionando, de forma reiterada, as melhores sementes, aquelas que mais probabilidade teriam de desenvolver maiores espigas com mais fiadas de grãos. A promessa de maiores e melhores colheitas fez da escolha de sementes uma atividade contínua conseguindo-se, deste modo, uma evolução na espécie mais. Da América Central e do México saíram várias populações indígenas em migração que levaram com elas a planta do milho para diferentes regiões do continente americano. No México, a domesticação do milho foi acompanhada do desenvolvimento de estratégias culinárias que permitissem retirar a melhor vantagem do alimento. Por isso, foi desenvolvida a nixtamalização de modo a libertar a niacina (vitamina B3) permitindo a sua absorção pelo corpo humano. Evitava-se, assim, o aparecimento da doença, designada de Pelagra, provocada pela insuficiência daquele componente.

18 GONZALEZ-SEGOVIA, Eric et al – Characterization of Introgression from the teosinte Zea mays ssp. Mexicana to Mexican highland maize. Peer J. 2019 May 3; [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6501764/.

Para tal, o milho era envolvido numa solução de cal (hidróxido de cálcio) e depois moído até ficar uma pasta, denominada masa, a partir da qual se faziam as tortilhas. Com este processo de transformação do produto em alimento conseguiu-se, quer a libertação de niacina, quer a facilitação de uma melhor digestão. 19

Aquando da introdução do milho na Europa, verificou-se que as comunidades fizeram uma interpretação do produto criando um receituário bastante diferente do que era prática na América Central, lugar de onde aquele cereal era nativo. A ausência de conhecimento sobre a necessidade de transformar o produto através da nixtamalização favoreceu a expansão da Pelagra na Europa.

Fator de alargamento na utilização desta semente na alimentação humana foi a expansão marítima desenvolvida por portugueses e espanhóis na “descoberta” de novas terras geradoras de riqueza. Na conquista dos novos territórios no continente americano, Cristóvão Colombo ter-se-á cruzado com esta planta. Terá sido percebida a sua versatilidade para o fabrico de pão sendo que “the first mention of maize bread was made by Gonzalo Fernandéz de Oviedo who pubished the history of Indies in 1526, including a chapter on maize. This new crop was called «mahiz» by Oviedo and he frequently referred to it as «pan», which means bread in Spanish.”20

Trazida da América Central, local onde a planta zea mays era já alimento promotor de receituário local e suporte de crença cultural, são desenvolvidos esforços de produção daquele cereal junto ao Mar mediterrâneo, na região de Cádis, ao largo do rio Guadalquivir. Nos terrenos férteis adjacentes ao rio, a planta encontrou condições favoráveis para o seu desenvolvimento, nomeadamente, boa exposição solar e acesso a rega. No início do século XVI dá-se conta da existência da planta e da sua utilização alimentar em Espanha. Apesar dos habitantes estarem habituados ao consumo de pão de trigo, o milho vai, paulatinamente, afirmar-se como um cereal digno de atenção.

A vinda daquele cereal para o território português terá sido feita a partir de sementes trazidas de Sevilha. As primeiras plantações referenciadas observam duas fontes distintas. Por um lado, indicam que os primeiros ensaios terão decorrido nos campos de Coimbra 21 , local de onde irradiou por toda a Beira Litoral. Por outro lado, defende-se que terá sido na Feira, bispado do Porto, que um clérigo semeou esta nova planta originadora de colheitas abundantes. 22

O debate sobre o percurso que o milho fez em território nacional, desde a sua chegada até à expansão no cultivo, é sujeita a várias interrogações, sobretudo, porque, à época, nas fontes, nem sempre é explícito a diferença entre as espécies de milhos já conhecidos, o milho alvo (Panicum Miliaceum) e o milho painço (Stetaria Italica), e a nova planta trazida da América Central. Em algumas fontes, os autores afirmam a diferença entre estes e a nova planta designando-a de milho grosso, milhão, milho de maçaroca, milho graúdo, zaburro. Esta última designação terá, na investigação

19 PENA-ROSAS, Juan Pablo, GARCIA-CASAL, Maria Nieves, PACHON, Helena, MCLEAN, Mireille Seneclauze, and ARABI, Mandana – Technical Considerations for Maize Flour and Corn Meal Fortification in Public Health. In: Annals of the New York Academy of Sciences. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://nyaspubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/nyas.12434 , p. 106.

20 REVILLA, Pedro et al – Traditional Foods From Maize (Zea mays L.) in Europe. Front. Nutr. In: Sec. Nutrition and Food Science Technology. Volume 8 – 2021. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.frontiersin.org/journals/nutrition/articles/10.3389/ fnut.2021.683399/full.

21 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011, p. 156.

22 FERRÃO, José E. F. – As Plantas e a Alimentação Mundial. Lisboa : Fundação Francisco Manuel dos Santos. 2020, p. 165.

realizada, gerado dúvida quanto à planta utilizada, sendo difícil, para alguns autores, perceber se seria a planta trazida da América Central ou um sorgo vindo de África. Análise de rastreamento às fontes, permite concluir que, em certos lugares das Beiras e do Minho, a designação zaburro diria respeito à plant a zea mays. 23

De notar que esta nova planta veio revolucionar a paisagem, as práticas agrícolas e os hábitos alimentares dos portugueses. Ainda que de forma discreta, a espécie zea mays contribui para uma verdadeira revolução. 24 Por muito que a população estivesse habituada aos cereais migrados a partir do Mediterrâneo, como o trigo, o centeio e a cevada, rapidamente, o milho grosso afirmou-se como alternativa alimentar. Não só as produções eram rentáveis, como as sementes, após moagem, serviam para fazer pão, base alimentar da sociedade da época.

De grande relevância no contexto da produção cerealífera nacional e base de extenso receituário, o milho revolucionou a paisagem do Minho, onde as condições climáticas de feição atlântica permitiram a humidade favorável ao seu desenvolvimento. Contudo, também a Beira Litoral, a Beira entre montanhas e toda o Algarve fizeram do milho o seu alimento.

A Cevada.

A mudança de um estilo de vida recolector-caçador fez-se, sobretudo, em torno da domesticação de cereais onde o trigo e a cevada se destacaram. À semelhança do já referido para a domesticação das espécies ancestrais do trigo, terá sido na região do Crescente Fértil que, há cerca de 10 000 anos, ocorreram as primeiras práticas agrícolas de seleção de sementes a partir da planta selvagem Hordeum spontaneum Contudo, apesar da convicção de que aquele teria sido o único centro de difusão da espécie, evidências arqueológicas demonstram que outros locais podem ter sido centros de origem já que evidências de Hordeum spontaneum foi identificado em Marrocos, Argélia, Líbia, Egipto, Creta, Etiópia e Tibete. “For instance, archeological evidence suggests a diffuse «center» of origin for barley, and non-brittlerachis in oriental and occidental lines is controlled by two distinct genetic loci, indicating origins of oriental and occidental barleys.”25 As investigações desenvolvidas apontam para uma clara diferenciação genética entre as espécies que se desenvolveram na vertente sul e este da Ásia e as que proliferaram pela Ásia ocidental, Europa e Norte de África. O bloco oriental, que terá sido influenciado pela espécie domesticada no planalto tibetano, fez desenvolver da cevada de duas carreiras (Hordeum distichon L). O bloco ocidental, por influência da domesticação ocorrida no Crescente Fértil (Jordânia e Israel) terá desenvolvido a cevada de seis carreiras (Hordeum vulgare L). Assim, reforça-se a convicção de terão acontecidos eventos múltiplos na domesticação desta planta. No território da Ibéria, a cevada terá desempenhado importante papel durante o período do Império Romano e medieval pois que, na incerteza das produções agrícolas, a cevada coexistia com outros cereais nos pães terçados e quartados. Nunca terá sido a escolha para a produção de pão, contudo, ainda existem traços culturais que afirmam a sua importância. Cereal de Inverno, como o trigo e o centeio, mas capaz de possibilitar colheitas a partir de Abril e Maio, socorria a população entre colheitas,

23 ALMEIDA, Luís Ferrand de – A propósito de milho “marroco” em Portugal nos séculos XVI-XVIII [em linha]: Imprensa da Universidade de Coimbra [consult. Em 2 de fevereiro de 2024] Disponível na Internet: http://hdl.handle.net/10316.2/46376.

24 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011.

25 WANG, Yonggang, et al – Origin of worldwide cultivated barley revealed by NAM-1 gene and grain content protein. Front. Plant Sci., 30 September 2015, Sec. Evolutionary and Population Genetics, Volume 6 – 2015. [consult. em 2 março de 2024]. Disponível na internet em: https:// www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4588695/.

sobretudo, entre maio e junho. Chegado ao final do ciclo de produção dos cereais e não estando o trigo maduro e próprio para colheita, a colheita de cevada efetuada, ora em Abril, ora em Maio, aliviava nas baixas reservas cerealíferas. Era costume afirmar, “chamam-me rabuda, mas em Maio dou a minha ajuda”.

Terá sido na cerveja que a cevada se terá destacado enquanto recurso, nomeadamente, a espécie cevada-de-duas carreiras, utilizada para a produção de malte. 26

O Milho Miúdo e o Milho Painço.

Anterior à introdução da espécie trazida da América Central zea mays, no século XVI, já na Península Ibérica eram conhecidos as espécies milho alvo (Panicum Miliaceum) e o milho painço (Stetaria Italica). Apesar de, atualmente, não expressarem qualquer impacto no quotidiano alimentar, durante a Idade Média, estas espécies ocuparam algum espaço na produção agrícola e nas reservas alimentares.

Oriundos da Ásia oriental, conclui-se pela investigação arqueológica que a sua domesticação terá ocorrido 6 000 anos a.C., tendo a sua dispersão ocorrido por volta de 3 000 a.C. A partir de Este, estes milhos chegaram à Península Ibérica. “The data potentially suggest that the introduction of the cultivation of the two species followed two main avenues. The first is from the north and traversed the Pyrenees and the Cinca Valley as early as the 13th century BC, whereas the second, from the south and of Mediterranean origin, introduced the two millets along with other crops to settlements under Phoenician influence between the 10th and 9th centuries BC.”27

O milho miúdo e o milho painço, de caráter rústico, afirmaram-se por ser facilmente cultiváveis apresentando grande capacidade de resistência à falta de água. O seu sistema radicular bem desenvolvido permitia à planta ir em busca de reservas de água e assim resistir a períodos de seca prolongada.

Em Portugal, estes milhos tiveram expressão, sobretudo, a norte do rio Douro onde foram recurso alimentar até ao triunfo do milho zea mays. O milho painço (Stetaria Italica), de grão muito miúdo, era usado para o alimento de animais, saltando para a mesa apenas em épocas de grande escassez cerealífera. O milho miúdo (Panicum Miliaceum) “entrava habitualmente na dieta alimentar das populações da nossa região, em forma de pão, ainda que considerado pouco saboroso. Por isso, se misturava com outros cereais, de modo a torná-lo minimamente aceitável, fazendo-se assim o bem conhecido pão de mistura. Aliás, no século XVI, mais do que um cereal de complemento, o milho miúdo foi «o pão dos pobres» no dizer de Fernand Braudel.”28 Os milhos miúdo e painço eram cereais de recurso, não só pela reduzida rentabilidade agrícola, como também pelo impacto na alimentação, quer no sabor, quer na nutrição.

26 FERRÃO, José E. F. – As Plantas e a Alimentação Mundial. Lisboa : Fundação Francisco Manuel dos Santos. 2020, p. 113.

27 ALONSO, Natália e PÉREZ-JORDAN, Guillem – The Origins of Millet Cultivation (Panicum miliaceum and Setaria italica) along Iberia’s Mediterranean Area from the 13th to the 2nd Century. Agronomy 2023, 13(2), 584. [consult. em 2 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi. org/10.3390/agronomy13020584.

28 OLIVEIRA, João Nunes – A “Beira Alta” de 1700 a 1840 : gentes e subsistências. Viseu : Palimages Editores, 2002, p. 66.

UM APONTAMENTO NA CRONOLOGIA DO PÃO.

Os cereais, do alimento ocasional ao pão.

Diremos que, numa cronologia do pão, os nossos antepassados terão experimentado o sabor dos grãos de cereais como sementes que trituravam e ingeriam na tentativa de escapar à fome. Terá sido, simultaneamente, a sensação de nutrição permitida pela ingestão e o sabor agradável, os elementos que inspiraram uma utilização mais apurada daqueles recursos que o meio ambiente disponibilizada. Terá sido a ingestão dos cereais que ditou a sua domesticação e não o contrário. Tal significa que, quando ocorreu o início da agricultura e as comunidades humanas decidiram investir na apropriação da paisagem modelando o que era produzido, já se conheciam as potencialidades alimentares dos cereais, quiçá da sua utilização para fazer pão.

Certo é que o caminho terá sido longo e não é fácil determinar quando entraram os cereais no nosso quotidiano alimentar. Na verdade, na história da alimentação, os múltiplos estudos arqueológicos têm permitido progredir no conhecimento acerca da introdução dos alimentos e da tecnologia utilizada para os transformar. Neste contexto, os últimos anos têm sido profícuos em novas evidências que aclaram as informações sendo, por isso, de evitar verdades inquestionáveis. No estudo da história, a evolução é dinâmica e dependente do grau de conhecimento que novos recursos de investigação permitem.

Contudo, se até há bem pouco tempo, se relacionava a cultura do pão com o início do período do Neolítico (10 000 a.C.), momento em que as comunidades humanas, de forma progressiva se vão aproximando da sedentarização pelo recurso a um estilo de vida baseado na agricultura, evidências arqueológicas demonstram que pode recuar a 14 400 anos BP. Amaia Arranz-Otaegui et al 29 nas investigações arqueológicas desenvolvidas em Shubayqa, no nordeste da Jordânia, num antigo lugar de agrupamento de caçadores recolectores natufianos, identificou vestígios de pão em restos de comida carbonizados. Não seria o pão que hoje conhecemos, mas seria já o resultado de uma massa conseguida a partir da mistura de farinha e água cozinhada sobre as cinzas ou sobre superfícies quentes como pedras.

“Our finds provide empirical data to demonstrate that the preparation and consumption of bread-like products predated the emergence of agriculture by at least 4,000 years. The interdisciplinary analyses indicate the use of some of the «founder crops» Asian agriculture (e.g., Triticum boeoticum, wild einkorn) and root foods (e.g. Bolboschoenus glaucus, club-rush tubers) to produce flat bread-like products. The available archaeobotanical evidence for the Natufian period indicates that cereal exploitation was not common during this time, and it is most likely that cereal-based meals like bread become staples only when agriculture was firmly established.”30 Este registo arqueológico permite compreender que, antes da domesticação dos cereais e desenvolvimento da agricultura, já existia apropriação das sementes para transformação em pão. “In southwest Asia (Near East), where the wild ancestors of domesticated crops such as wheat and barley occur naturally, hunter-gatherers

29 Arranz-Otaegui, Amaia, CARRETERO, Lara Gonzalez, RAMSEY, Monica N., RICHTER, Tobias – Archaeobotanical evidence reveals the origins of bread 14,400 years ago in the northeastern Jordan. In: PNAS, July 16, 2018, 115 (31) 7925-7930. [consult. em 2 março de 2024]. Disponível na internet em: https://www.pnas.org/doi/full/10.1073/pnas.1801071115.

30 Arranz-Otaegui, Amaia, CARRETERO, Lara Gonzalez, RAMSEY, Monica N., RICHTER, Tobias – Archaeobotanical evidence reveals the origins of bread 14,400 years ago in the northeastern Jordan. In: PNAS, July 16, 2018, 115 (31) 7925-7930. [consult. em 2 março de 2024]. Disponível na internet em: https://www.pnas.org/doi/full/10.1073/pnas.1801071115

of the Upper Paleolithic period (c. 23 ka cal BP) were already producing flour from wild grasses and some authors claim that the invention of brewing, groats, porridge, and unleavened bread could have occurred as early as the late Epipaleolithic or Natufian period (14.6–11.7 ka cal BP). 31

Neste antigo local de agrupamento de caçadores recolectores foram encontrados vestígios de muitos alimentos, entre eles o trigo selvagem denominado de «einkorn» (Triticum boeoticum), cevada (Hordeum spontaneum) e aveia ( Avena sp.) resumindo a utilização destes cereais na produção de pães achatados. Também, as evidências arqueológicas denunciam que aqueles cereais terão sido repetidamente sujeitos a moagem resultando da fricção entre duas pedras, e ainda, peneirados, ou pelo menos criteriosamente escolhida a parte que interessava para a produção de pão.

A transformação dos grãos em farinha e, depois, em pão poderá ter sido motivada pela necessidade de tornar os produtos disponíveis no meio envolvente em alimentos de fácil digestão, de boa nutrição e de bom sabor. Na verdade, o impulso para o aparecimento da arte culinária terá sido proporcionar uma alimentação que providenciasse nutrição e prazer. Neste registo, fica claro que a comunidade que se agrupava neste local, ainda que tivesse como prática a recoleção e a caça perseguia já a arte de transformar o grão em pão. Não se saberá se o faziam de forma regular ou apenas em períodos festivos ou ocasionais, contudo, o conhecimento terá motivado uma ligação aos cereais e ao produto deles resultantes.

Nesta brevíssima história do pão, um outro registo da arqueologia evidencia fatos que importam relatar. Uma das primeiras formas de agricultura registadas surge numa região situada a este do mar Mediterrâneo, rodeada a norte pelas montanhas da Turquia e da Síria. Terá sido em Abu Hereyra situada na Síria, na proximidade do rio Eufrates, que desce das montanhas altas da parte oriental da Turquia e se dirige para o Golfo Pérsico, que agrupamentos humanos terão iniciado as primeiras tentativas de selecionar as melhores sementes e as deitar à terra. Antes como agora, seria esta região uma oportunidade para a sobrevivência pela visibilidade permitida, pela distância em relação à área alagável e, ainda, pela proximidade aos solos da planície fertilizados a cada primavera pelas inundações do rio Eufrates. Por isso, os agrupamentos humanos escolheram Abu Hureyra para se estabelecerem. Num primeiro momento de ocupação do espaço, há 13 300 anos BP, era este um local onde abundavam recursos alimentares disponibilizados pelo meio envolvente.

Contudo, uma mudança climática caraterizada, simultaneamente, por falta de chuva e um arrefecimento conduziu ao desaparecimento de muitas das plantas que suportavam a alimentação dos habitantes. Terá sido neste período que se registam as primeiras produções de cevada. “What appears around the same time is perhaps the first evidence of agriculture – domesticated rye grains and weeds that grow in cultivated fields. (…) One interpretation is that while wild stands of rye and wheat declined, the people of Abu Hureyra started cultivating their own cereals, or at least rye. This would be the earliest documented evidence of agriculture, about 12 000 years ago.”32 Num segundo momento de ocupação, há 10 500 anos, desenvolveu-se a prática agrícola com a produção de trigo e cevada, entre outros produtos. Em virtude da mudança do modo de vida da recoleção e caça para a agricultura, verificou-se um aumento da população. “Initially, people in the second settlement of Abu Hureyra farmed and gathered wild plants and hunted gazelles. In addition to rye, they grew

31 Arranz-Otaegui, Amaia, CARRETERO, Lara Gonzalez, RAMSEY, Monica N., RICHTER, Tobias –Archaeobotanical evidence reveals the origins of bread 14,400 years ago in the northeastern Jordan. In: PNAS, July 16, 2018, 115 (31) 7925-7930. [consult. em 2 março de 2024]. Disponível na internet em: https://www.pnas.org/doi/full/10.1073/pnas.1801071115

32 ZABINSKI, Catherine – Amber Waves: The Extraordinary Biography of Wheat, from Wild Grass to World Megacrop. Chicago : The University of Chicago Press, 2020, p. 34.

three kinds of wheat (emmer, einkorn and bread wheat), along with barley, lentils, peas, vetch, field beans, and chickpeas.”33 Um clima cada vez mais seco, ditou o abandono de Abu Hureyra, contudo para as gerações futuras ficou o registo da mudança gradual de modo de vida nómada para o sedentário e o florescimento da agricultura.

Embora seja habitual pensar que a agricultura surgiu no Crescente Fértil, região situada entre os montes do Sudeste da Turquia, o Oeste do Irão e do Levante, devido à fertilidade dos solos enriquecidos pelas enchentes dos rios Eufrates e Tigre encontrando-se, por isso, ali as condições que favoreciam um modo de vida agrícola, alguns investigadores sugerem que terá sido a abundância de plantas selvagens que terá atraído as comunidades para a região. De seguida, perante o esgotamento de recursos provocado por fatores diversos, a fertilidade terá sido uma oportunidade para ensaiar as primeiras produções de modo a conseguirem os recursos alimentares que antes surgiam de forma aleatória. “People in the Levant had settled in villages before they ever farmed, and cultivation was perhaps what allowed them to remain in their villages after wild plants and animal population declined, caused by either overuse or climate change.”34

Não terá sido uma mudança brusca, aquela que caraterizou a aquisição de hábitos sedentários e crescente abandono de rotinas nómadas, ou seja, a passagem para um estilo de vida baseado na agricultura não terá acontecido de modo imediato. Foi lento, gradual e, na verdade, nunca se perderam os hábitos nómadas ligados à caça e à recoleção, apenas as comunidades deixaram de ter tanto tempo disponível para essas atividades.

Nas primeiras produções, os humanos agrupados nas várias regiões do Crescente Fértil tiveram a oportunidade de ir ensaiando os vários passos da domesticação das sementes e plantas, entendendo as oportunidades e dificuldades de todo o ciclo produtivo. O conhecimento que foram desenvolvendo permitiu que a agricultura surgisse de forma independente em vários lugares desta região sem ligação aparente entre si. Essa é também a visão do que ocorreu na domesticação de sementes e plantas em outros lugares no mundo.

Na verdade, não há uma relação de causa entre o que aconteceu no Médio Oriente, no Crescente Fértil, e o que se verificou noutros lugares do mundo. Por motivos diferentes e sob condições diferenciadas, sementes e plantas foram domesticadas, isto é, iniciou-se a prática reiterada de escolher os melhores exemplares para iniciar todo o ciclo produtivo da sementeira à colheita. “Outrora, os académicos acreditavam que a agricultura se tinha espalhado a partir de um só ponto de origem, o Médio Oriente, para os quatro cantos do mundo. Hoje em dia, concordam que a agricultura surgiu noutras partes do globo, não por ação dos agricultores do Médio Oriente que tinham exportado a sua revolução, mas de forma absolutamente independente. Na América Central, as pessoas domesticaram o milho e o feijão sem que soubessem o que quer que fosse sobre o cultivo do trigo e das ervilhas no Médio Oriente. Os sul americanos aprenderam a cultivar batatas e a criar lamas sem o que se estava a passar no México ou no Levante. Os primeiros revolucionários chineses domesticaram o arroz, o milho miúdo e os porcos. Os primeiros jardineiros da América do Norte foram aqueles que se cansaram de passar o chão a pente fino em busca de cabaças comestíveis e decidiram cultivar abóboras. Os habitantes da Nova Guiné domesticaram a cana-de-açúcar e as bananas, ao passo que os primeiros agricultores da África Ocidental obrigaram o milho-miúdo africano, o arroz africano, o sorgo e o trigo a conformarem-se às suas necessidades. A partir destes focos

33 ZABINSKI, Catherine – Amber Waves: The Extraordinary Biography of Wheat, from Wild Grass to World Megacrop. Chicago : The University of Chicago Press, 2020, p. 35 e 36.

34 ZABINSKI, Catherine – Amber Waves: The Extraordinary Biography of Wheat, from Wild Grass to World Megacrop. Chicago : The University of Chicago Press, 2020, p. 37.

iniciais, a agricultura disseminou-se por todo lado.”35 A cronologia da domesticação de sementes e plantas ocorrida em todo o planeta foi diferenciada e motivada por fatores regionais, sendo o mais presente a existência da semente, planta ou animal naquele lugar em particular e a sua propensão para a domesticação.

No Médio Oriente, outras sementes e plantas estariam disponíveis, mas terá sido o trigo que mais chamou a atenção dos primeiros humanos que ensaiaram a agricultura nesta região do mundo. Apesar de se constituir com sementes muito pequenas, devidamente protegidas por uma casca fina difícil de remover e de ter um núcleo duro a exigir a moagem, o trigo seduziu o apetite humano tornando-se no principal recurso alimentar das comunidades humanas do Crescente Fértil. Sendo um embrião para uma nova planta, cada semente de trigo tinha em si elevada capacidade nutritiva e energética, facto que foi notado pelos humanos. Para além disso, após trituradas, permitiam uma produção diversificada na junção com outros recursos gerando receitas de sabor variado. Por fim, a durabilidade das sementes e a capacidade de resistir às mudanças de estação deu a segurança de se saber no celeiro armazenamento até ao novo ciclo produtivo.

A domesticação do trigo não terá sido por acaso. Na verdade, a seleção de sementes de trigo e a melhoria constante dos métodos de produção ocorreram porque a humanidade atribuiu àquele cereal a capacidade de nutrir e de gerar alimentos saborosos. Sabe-se que a cevada não terá recebido o mesmo investimento e atenção, pois que se percebeu que as suas qualidades culinárias ficariam muito aquém. Os humanos não desistiram da cevada, mas utilizaram-na apenas para os momentos em que o trigo faltava. Ou seja, aquela afirmou-se como um cereal de complementaridade não ocupando nunca o protagonismo do trigo. Tal terá sido o resultado de uma decisão que decorreu das qualidades nutritivas e organoléticas deste cereal.

O Pão e o nascimento de Sociedades Organizadas.

No contexto das primeiras civilizações que se desenvolveram no Médio Oriente, terá sido o trigo o grande agente mobilizador da agregação social transformando-se no produto mais solicitado. Por ele, desbastaram-se as melhores terras, queimando áreas extensas de floresta de modo a criar área de produção, disputaram-se as propriedades com maior capacidade fértil, desenvolveram-se métodos e artefactos de modo a conseguir colheitas mais produtivas, criou-se a escrita pela necessidade de contabilizar as sementes guardadas para novas sementeiras, as que seriam trocadas por outros produtos e as utilizadas para satisfazer a fome.

Ainda, o trigo favoreceu o aumento gradual da população dos pequenos agrupamentos humanos. A possibilidade de a partir de uma única semente se gerarem muitas mais e a respetiva capacidade de, após armazenamento, as mesmas sobreviverem à passagem do tempo, permitiu a confiança no futuro, criou uma janela de esperança para o aumento do número de filhos. Por isso, o trigo seduziu de forma tão intensa as comunidades humanas, nele encontraram a segurança de um futuro de abundância onde a fome não teria lugar.

Paulatinamente, acreditando que as melhores terras e as melhores sementes dariam colheitas mais rentáveis, achou-se no trigo um seguro de vida para o futuro de tal modo que a população foi crescendo em redor dos locais mais férteis. Assim, nasceram as cidades, aglomerados que exigiam maior nível de organização económica e política para a qual se teve de formar uma elite. As grandes cidades, as quais favoreceram a construção de impérios cresceram com a evolução agrícola sendo que, numa relação de poder entre as comunidades e as elites que as governavam, seriam os de menor

recurso a trabalhar arduamente a terra e a elite urbana a beneficiar dos frutos agrícolas. “Em 7500 a.C. a cidade de Çatal Höyük, na Anatólia, tinha entre 5 000 a 10 000 indivíduos. Pode muito bem ter sido a maior povoação do seu tempo. Durante os quarto e quinto milénios antes de Cristo, surgiram no Crescente Fértil, cidades com milhares de habitantes e cada uma imperava sobre muitas aldeias próximas. Em 3100 a.C., todo o baixo vale do Nilo estava unido no primeiro reino egípcio. Por volta de de 2250 a.C., Sargão, o Grande, forjava o Império Acadiano, tido como o primeiro império. Entre 1000 a.C. e 500 d.C. surgiram os primeiros megaimpérios no Médio Oriente: o Império Assírio Tardio, o Império Babilónico e o Império Persa.”36 Fundados sobre o registo da importância agrícola onde a exploração dos recursos assegurava o funcionamento organizacional e promovia a paz, os Impérios que se formaram na área geográfica do Crescente Fértil atribuíram aos cereais a categoria de recurso valioso e ao pão estatuto social elevado, quase sagrado. Era, por isso, o pão relatado como símbolo de união e, por isso, utilizado em cerimónias que envolviam o compromisso entre partes. “No poema babilónico da Criação, quando os deuses procuram, entre si, um campeão para combater o Mar (a deusa Tiamat) que quer destruí-los, é o deus Anshar, o mais ilustre de todos, que se encarrega de os reunir. Estes festins são descritos como uma ocasião de regozijo: «entraram perante Anshar, rejubilaram, abraçaram-se um ao outro, reuniram-se em conselho, conversaram, sentaram-se no festim, comeram cereais, mataram a sede com cerveja forte [e] encheram as suas taças com cervoise doce». 37 A referência aos cereais é dupla, quer na comida, quer na bebida, percebendo-se a importância dos mesmos.

Registo relevante contido num documento do II milénio antes de Cristo enfatiza o caráter místico e congregador do pão, indo o seu conteúdo muito além do simples alimento disponível para matar a fome. “«Comemos o pão, bebemos a cerveja e ungimo-nos com óleo».”38 Nas ruínas do antigo palácio de Mari, situadas junto ao Eufrates na Síria junto da fronteira com o Iraque, informação datada do II milénio a.C. a propósito de um banquete real percebe-se a importância da farinha. “«Basta que se inclinem duas vezes; [mas] quando estiverem sentados diante de mim para a refeição, deverão inclinar-se em função do número de pratos que eu lhes apresentar.» Os teus servos sentavam-se, portanto, na minha presença para a refeição [quando] sobre a farinha que eu saboreava, pus comida de lado, sobre essa farinha e apresentei-a a um dos teus servos; ele inclinou-se então. Disse para comigo: «A farinha agrada-lhe.» Juntei mais comida e mais farinha, uma segunda vez, [apresentei-lha].”39 Depois de feitos os rituais de preparação, com a água para lavar as mãos e o óleo perfumado para ungir, são apresentados os pratos que irão constituir a refeição. A acompanhar a carne surgem os bolos de pão e na sobremesa bolos adoçados com mel em múltiplas formas.

O Pão no Antigo Egipto.

A transformação de grãos permitiu uma maior absorção das qualidades nutritivas dos cereais e, simultaneamente, proporcionou uma ampla e diversa utilização da massa obtida da mistura da farinha com a água. O pão transformou-se em sinónimo de alimento, em muitos casos, base para receber a carne, o peixe ou os legumes. Contudo, os primeiros pães seriam achatados e isentos das leveduras que poderiam provocar

36 HARARI, Yuval Noah – Sapiens : uma breve história da humanidad e. Elsinore, 2019, p. 129.

37 JOANNÈS, Francis – “A função social do banquete nas primeiras civilizações”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 41.

38 JOANNÈS, Francis – “A função social do banquete nas primeiras civilizações”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 43.

39 JOANNÈS, Francis – “A função social do banquete nas primeiras civilizações”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 46.

a fermentação. “The «flat breads» include a multitude of bread types different from each other but are always relatively thin, ranging from a few millimetres to a few centimetres in thickness. These breads, whose origin is very ancient, as demonstrated by the findings from Mesopotamia, ancient Egypt, and the Indus civilization, were probably the first processed foods.”40

Fáceis de fazer e de cozer, estes pães achatados serviam, frequentemente, de prato, onde se colocavam outros alimentos já cozinhados, e de garfo, usando uma parte para apanhar a comida. Por outro lado, facilitavam a desidratação por uma segunda cozedura afastando a possibilidade de aparecimento de bolores e aumentando o prazo em que poderiam ser consumidos. Todos estes fatores contribuíram para que, mesmo após a introdução da fermentação, os pães achatados mantivessem a sua popularidade, senão enquanto pão na aceção corrente de crosta e miolo, pelo menos como biscoito ou outras formas massa cozida em forma de disco.

Contudo, na cronologia do pão urge referir a evolução sentida no Antigo Egipto. As férteis margens do Nilo, fecundadas pelas nateiros trazidos pelos rio a cada enchente de Verão, permitiram a proliferação da prática agrícola com a devida prometedora abundância de cereais. As fartas colheitas de trigo, cevada e espelta, davam ao Egipto a certeza da autossubsistência e, ainda, permitiam a troca com outros povos. O enquadramento religioso deste povo antigo enfatiza a importância da terra fecunda, representada por Osíris, e o poder fecundador do Sol, representado por Rá.

A independência e supremacia deste povo dependia da sua capacidade de produção.

A abundância cerealífera determinou o sistema alimentar dos egípcios onde o pão, entendido como produto feito à base de cereais, assumiu um lugar matricial. Seriam, por isso, comedores de pão e, pelo estudo dos vestígios arqueológicos encontrados, percebe-se a centralidade que aquele alimento teria no quotidiano alimentar. Ainda que não seja possível identificar as diferenças entre os vários tipos de pão, é possível enumerar, pelo menos, quatorze tipos diferentes no Velho Império e quarenta no Novo Império 41 sendo que os mesmos podiam expressar formatos diferenciados como cónico, oval, redondo, circular, semicircular, triangular. 42

A diversidade de formatos e de constituição de pães, que as fontes permitem identificar, dizem do espaço que este alimento ocupava na alimentação da época e de como a prática da panificação era criteriosamente desenvolvida de forma a conseguir o melhor resultado. Os grãos eram, primeiro, postos ao sol de forma a desidratarem e, assim, facilitarem o processo de moagem. De seguida, eram triturados numa almofariz de pedra e, depois, moídos numa placa de pedra ligeiramente inclinada. Da farinha resultante, usava-se apenas a parte mais fina já que a mesma era peneirada. Para amassar o pão, usavam a farinha, água e sal.

No que respeita à cozedura, as fontes arqueológicas permitem perceber que a mesma dependia, quer do estrato sociocultural a que pertencia a família, quer do momento cronológico em que se situa análise, pois que foi evoluindo o modo como se executava esta tarefa. O mais simples seria cozer os pães usando uma pedra aquecida pelo lume,

40 PASQUALONE, Antonella – Traditional flat breads spread from the Fertile Crescent: Production process and history of baking systems. In: Journal of Ethnic Foods, Volume 5, Issue 1, March 2018, Pages 10-19. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www. sciencedirect.com/science/article/pii/S235261811830009X.

41 DELWEN, Samuel – Their staff of life: initial investigations on ancient egyptian bread baking. In Amarna Reports. Pp. 253-290. London: Egypt Exploration Society. 1989.

42 BRESCIANI, Edda – “Alimentos e Bebidas no Antigo Egipto”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 53.

contudo, é possível perceber nos registos arqueológicos a prática de cozer os pães colados às paredes internas do forno e, ainda, a utilização de moldes pré aquecidos para fazer pães de diferentes formatos. 43 É bem possível que, pela tecnologia envolvida, tal acontecesse em famílias pertencentes à elite política e religiosa.

De notar, a evidência através de pinturas que mostram um forno para cozer pão que funciona como um espaço fechado permitindo, deste modo, uma melhoria na qualidade da cozedura. “Paintings in the tomb of Pepiankh also show another type of baking, with a style of oven also known from tomb models. Three round or square slabs are propped up against each other and covered with a fourth slab laid horizontally over the others, forming a small enclosed chamber. These simple ovens appeared towards the end of the Sixth Dynasty and perhaps were used for cooking bread directly on cinders.”44

No Antigo Egipto terá acontecido um grande desenvolvimento na tecnologia da panificação, pois que seriam os cereais o grande recurso disponível. Da moagem à cozedura, foram várias as inovações deste povo. Contudo, o grande salto civilizacional na tecnologia do pão ocorreu com a introdução de leveduras que poderá ter ocorrido entre 1300 e 1500 a.C.. 45 Tal não significa que não fossem utilizadas em período anterior, pois que é bem provável que o desenvolvimento da produção de pão tenha sido acompanhado pela curiosidade e investimento na fermentação 46 , ainda que rudimentar. Contudo, terá sido no contexto da cultura egípcia que se vulgarizou a sua utilização.

Na verdade, os cereais seriam utilizados de forma diferenciada. O trigo (triticum monococcum) era utilizado, sobretudo, para a produção de pão enquanto a cevada (hordeum vulgare) era aproveitada para a cerveja. A espelta (triticum dicoccum) era o sustento das classes de menores recursos. A partir de cenas desenhadas nas paredes dos túmulos, é possível perceber que o método de produção consistia em colocar pedaços de pão de cevada ou de trigo, malcozidos, em água e trigo triturado, potenciando assim o florescimento de enzimas de fermentação Saccharomyces cerevisiae. De seguida, o líquido resultante era filtrado e ficava a repousar em vasilhas de barro cozido. 47

Tendo em conta que, o pão e a cerveja, eram ambos produzidos a partir de cereais, era habitual que a sua produção decorresse no mesmo espaço, ou seja, que a padaria e a cervejaria partilhassem as mesmas instalações e instrumentos. Tal promiscuidade poderá ter potenciado a migração de leveduras entre a cerveja e o pão tendo, este último, beneficiado no resultado obtido da presença da levedura. “The spread of fermented beverages such as wine and beer, which were linked to bread making through the sharing of yeasts between brewers and bakers, is better studied. Because devices and vessels were often used to store yeasts from beer to later (even months

43 DELWEN, Samuel – Their staff of life: initial investigations on ancient egyptian bread baking. In Amarna Reports. Pp. 253-290. London: Egypt Exploration Society. 1989.

44 DELWEN, Samuel – Their staff of life: initial investigations on ancient egyptian bread baking. In Amarna Reports. Pp. 253-290. London: Egypt Exploration Society. 1989.

45 LAHUE, Caitlin et al. – History and domestication of Saccharomyces cerevisiae in bread baking. In: Sec. Evolutionary and Genomic Microbiology. Volume 11 – 2020 . [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.frontiersin.org/journals/genetics/articles/10.3389/ fgene.2020.584718/full#B4

46 LAHUE, Caitlin et al. – History and domestication of Saccharomyces cerevisiae in bread baking. In: Sec. Evolutionary and Genomic Microbiology. Volume 11 – 2020 . [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.frontiersin.org/journals/genetics/articles/10.3389/ fgene.2020.584718/full#B4

47 BRESCIANI, Edda – “Alimentos e Bebidas no Antigo Egipto”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 57.

later) make bread it is possible that ancient yeast proteins, genomes, and maybe even living cells, may be recoverable and would prove a rich data source for comparative analysis. However, the burden of proof to document that the yeasts that have been discovered are truly ancient is and should be very high.”48

A utilização das leveduras aumentou a qualidade do pão. Quer a textura, quer o sabor, diferenciaram-se do que até aí as pessoas tinham à sua disposição, pois que foi possível conseguir um pão de crosta fina e crocante com miolo macio. “A função principal da levedura (Saccharomices cerevisiae) é fazer a conversão de açúcares fermentáveis presentes na massa em dióxido de carbono (CO2) e etanol. Além de produzir CO2, que é o gás responsável pelo crescimento do pão pela estrutura porosa, leveza e volume. A levedura também exerce influência sobre as propriedades reológicas da massa, tornando-a mais elástica. O álcool produzido contribui para a expansão da massa, durante a sua cozedura e é responsável por grande parte do aroma do pão.”49

Este degrau na história do pão teve um impacto grande pela inovação organolética que permitiu. Se até aqui o pão era já tido como alimento fundacional, chegando a ser sacralizado e testemunhado como divino, com esta inovação passa a ser ainda mais desejado. Os testemunhos da cultura egípcia são profícuos na enunciação de pães, uns salgados, outros doces enriquecidos com ovos, mel, frutos, e muitos outros produtos.

A centralidade do pão na cultura do Egipto Antigo presente-se através dos testemunhos acerca da paz social. Ptah-hotep, um sábio do III milénio, enunciava “«o homem que tem o ventre vazio é um [potencial] acusador». O conselho de dado pelo faraó Khéti ao seu filho Mérikarê sobre a maneira de reprimir as rebeliões «um pobre pode transformar-se num inimigo, um homem que vive na necessidade pode transformar-se num rebelde. Acalma-se uma multidão em revolta com comida; quando a multidão está em fúria, deve ser guiada até ao celeiro».”50

O Pão Deificado. A Grécia.

Fruto da importância dos cereais na alimentação dos povos que viveram adjacentes à região do Crescente Fértil, as civilizações da Antiguidade Clássica, Grécia e Roma, expuseram o pão à sua condição de alimento principal deificando-o. “Durante toda a Antiguidade, desde a época dos poemas homéricos até ao Império Romano, a civilização mediterrânica é o mundo do pão, ou pelo menos, dos cereais e dos alimentos que servem para preparar as papas, o pão e os bolos. (…) Homero identifica os homens como «comedores de pão»”. 51

Fruto da transformação do grão em alimento saboroso e nutritivo, o pão inspira, em conjunto com o vinho e o azeite, a cultura de que as sociedades civilizadas não dispõem da natureza sem a transformarem. Prorrogativa essencial da cultura grega, os cidadãos gregos veem-se como símbolos de uma postura civilizada não dispostos a ceder ao uso dos recursos sem o uso do conhecimento. É nesta ideia fundacional que os habitantes da Grécia suportam a diferença com os «outros» aqueles que se valem dos recursos sem critério na sua transformação. O pão, enquanto arte da transformação dos pequenos grãos, afirma-se como um símbolo do grau civilizacional daquele povo.

48 LAHUE, Caitlin et al. – History and domestication of Saccharomyces cerevisiae in bread baking. In: Sec. Evolutionary and Genomic Microbiology. Volume 11 – 2020 . [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.frontiersin.org/journals/genetics/articles/10.3389/ fgene.2020.584718/full#B4.

49 FREITAS, Paula C – Estudo das propriedades do pão sem glúten: efeito da adição de diferentes farinhas e hidrocoloides. Viana do Castelo : Instituto Politécnico de Viana do Castelo, 2012, p. 31.

50 BRESCIANI, Edda – “Alimentos e Bebidas no Antigo Egipto”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN –História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 57.

51 GROTANELLI, Cristiano – “A carne e os seus ritos” In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 103.

Os cereais, no seu todo, representavam o alimento prioritário, aquele que dava suporte energético e era a base da refeição. Na sociedade grega, o trigo e a cevada representavam traduções culinárias diferenciadas, mas todas se faziam valer da proximidade cultural à base comum dos cereais. A cevada seria comummente consumida como maza, uma preparação culinária feita à base de cevada pré-cozinhada à qual era adicionada algo líquido como água, leite, mel ou azeite, e ainda, alguns condimentos. Já o trigo era reservado para a produção de pães achatados, pães fermentados e bolos. No século V, nas cidades gregas ganham fama os padeiros que, nas suas padarias, moem o cereal, amassam e cozem o pão que vendem a uma clientela cada vez mais solícita em experimentar novas versões daquele produto.

Fruto do desenvolvimento das técnicas agrícola, moageira e da panificação, o pão, entendido como suporte de um sistema alimentar, exige no contexto dos mitos fundacionais uma representação deificada. A total dependência do trigo para a confeção de alimentos aos quais os gregos se habituaram ditou essa necessidade. Em períodos de colheitas menos abundantes, seria necessário contar com a ajuda divina. É na consequência da ligação alimentar que os gregos têm com o pão que se convoca a Deméter como a personificação deificada dos cereais, em especial do trigo.

Arquéstrato de Gela (Século IV a.C.), no seu poema gastronómico, dedica-lhe algumas palavras. “Em primeiro lugar são os dons de Deméter [Os “dons de Deméter” são uma expressão metafórica para cereais, de que o poeta mais abaixo no poema especifica as espécies mais cultivadas e apreciadas para a produção de farinha e pão: a cevada e o trigo] de farta cabeleira que vou mencionar, meu caro Mosco. Presta bem atenção ao que te digo. Os melhores e mais finos de todos (limpos das impurezas da mais comum cevada) podem arranjar-se em Lesbos, na colina rodeada pelo mar da famosa Éreso – mais brancos que a neve pura! Os deuses, se porventura comem farinha de cevada, é aí que, para eles, Hermes a vai comprar. Também a há razoável em Tebas das Sete Portas, em Tasos e noutras cidades – mas assemelha-se a grainhas, quando comparada àquela! Não tenhas qualquer dúvida a respeito disto. Compra um pão da Tessália, que tenha sido bem enrolado à mão até formar uma bola, aquele a que os locais chamam krimnites e outros pão kondrinos. Em segundo lugar o meu elogio vai para o filho da farinha de trigo de Tégea, o pão escondido. No entanto, quando se trata de pão feito para vender na praça, é a ilustre Atenas que oferece aos mortais o de melhor qualidade. Mas em Éritras, de abundantes cachos, um pão branco, a sair do forno no momento em que atingiu o ponto exato de cozedura, é esse que faz as delícias da refeição.”52 Homero, autor dos poemas épicos Ilíada e Odisseia, escreveu poemas em honra dos vários deuses gregos, tendo ficado conhecidos por Hinos Homéricos. Dois deles são dedicados a Deméter, e um dos dois, é um dos mais extensos do conjunto, sobressaindo a importância desta deusa no conjunto dos deuses gregos. Seria na sua força e poder de dádiva que os gregos confiavam para conseguirem boas colheitas e, assim, terem pão para saciar a fome. Neste contexto, “o dom de Deméter é coroar a labuta diária do lavrador dando-lhe uma terra fecunda.”53

52 SOARES, Carmen – Arquéstrato, iguarias do mundo grego: guia gastronómico do Mediterrâneo Antigo. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra. 2016.

53 MASSI, Maria Lucia Gili. Deméter : a Repulsão Medida [doi:10.11606/D.8.2001.tde-28102003-154241].

São Paulo : Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2001. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas. [acesso 2024-07-15], p. 59.

“«Ele, então, depois de chamar para a ágora seu numeroso povo, Mandava que fizessem, para Deméter de belos cabelos, um opulento templo e um altar sobre proeminente colina.

Muito prontamente obedeceram e ouviam aquele que falava, e faziam como ele determinava. A obra crescia segundo o destino da deusa. Depois que acabaram e abandonaram o esforço, cada um caminhou para ir para casa. Porém, a loura Deméter ali sentando-se, longe de todos os bem-aventurados, permanecia consumindo-se com saudade da filha de funda cintura.

Terribilíssimo ano sobre a terra multinutriz, fez para os homens e o mais malífico, a terra nem sequer uma semente fazia brotar, pois ocultava-a bem coroada Deméter.

Muitos arados encurvados inutilmente os bois arrastavam no campo e muita cevada branca vãmente caiu na terra.

Ela teria completamente aniquilado a raça dos homens mortais pela fome penosa, e teria privado os que têm o palácio Olímpio da honra muito gloriosa dos privilégios e dos sacrifícios, se Zeus não compreendesse e refletisse em seu ânimo.»”54

Neste excerto, Homero relata o desgosto de Deméter ao perder a sua filha Perséfone levada para a companhia de Hades, irmão de Zeus. E o desgosto fá-la retirar aos homens a maior dádiva que eles poderiam ter, o fruto da terra. Alguns trechos adiante, o poema traz o apaziguamento de Deméter com o reencontro com a filha.

“«Concordou que sua filha do ano que evolui, (permanecesse) a terceira parte sob a treva nevoenta, e as duas (outras) junto à mãe e aos outros mortais. Assim falava. A deusa não desobedeceu às mensagens de Zeus.

E com impetuosidade precipitou-se dos cimos do Olimpo, e veio então para Raros, seio nutriz do campo, mas inativo colocava-se todo sem folha, pois escondia a cevada branca, por desígnios de Deméter de belos tornozelos. Mas em seguida, quando a primavera crescesse, devia, de um golpe, colmar alongadas espigas de trigo e, então, em seu solo opulentas fileiras carregar-se-iam de espigas de trigo que seriam atadas em feixes. (…)

Prontamente faz crescer o fruto nutriz para os homens. Assim falava.

A bem coroada Deméter não desobedeceu e prontamente fez brotar o fruto dos campos fecundos.

Toda a vasta terra ficou carregada de folhas e flores.»”55 Homero, neste poema que conta as desventuras da separação da deusa Deméter e da sua filha Perséfone e da suavidade do respetivo encontro, evidencia a importância do mito fundacional que explica a abundância do trigo conseguida pela generosidade da deusa.

Na cultura grega, apesar da importância da cevada, será o trigo que irá ser procurado para a produção de pão, esse alimento que os padeiros gregos tão bem souberam fazer evoluir no sabor e na textura, favorecendo a sua sacralização.

54 MASSI, Maria Lucia Gili. Deméter : a Repulsão Medida [doi:10.11606/D.8.2001.tde-28102003-154241].

São Paulo : Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2001. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas. [acesso 2024-07-15], p. 35 e 47.

55 MASSI, Maria Lucia Gili. Deméter : a Repulsão Medida [doi:10.11606/D.8.2001.tde-28102003-154241].

São Paulo : Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2001. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas. [acesso 2024-07-15], p. 49.

A Globalização do Pão. Império Romano.

Ainda que o Império Romano diga respeito a um todo extenso, no tempo e no espaço, sendo de todo sensato evitar afirmações generalistas, é possível garantir a importância dos cereais para aquela sociedade. Num primeiro momento da cronologia do Império, seriam os cereais utilizados para a confeção de papas ( puls) sendo os romanos conhecidos por serem «comedores de papas». O trigo de qualidade superior não seria um cereal tão disponível e, por isso, não tendo caraterísticas que lhes permitissem fazer bom pão, eram os grãos torrados, moídos, cozidos em água e, depois, em leite. Só mais tarde, será o pão o alimento corrente no Império.

Contudo, o trigo terá tido grande relevância no quotidiano da sociedade romana afirmando-se como o elemento matricial da alimentação daquele povo. A instituição da Lei Frumentária, proposta pelo Tribuno da Plebe, que ocorre por iniciativa de Caio Graco (século II a.C.), é disso prova. O constante clima de guerra (Guerras Púnicas), tanto levou muitos camponeses para o campo de batalha afastando-os do ambiente rural e do cultivo agrícola, como também não resultou num maior no acesso às propriedades que iam sendo conquistadas. Ou seja, a guerra endureceu a distância entre a propriedade da terra e os que dela poderiam beneficiar, resultando numa evidente desigualdade social e num empobrecimento de uma parte substancial da população. As dificuldades em conseguir trigo para as necessidades alimentares inspirou a criação daquela lei que visava a distribuição de cereal a baixo custo de modo que, quem menos podia, não vivesse a exclusão alimentar.

“A dependência do trigo importado por via marítima e fluvial, com as suas contingências, é suscetível de causar problemas de abastecimento (annona), com carestia, flutuação de preços, açambarcamento e especulação. Em consequência, vêm a imporse medidas de caráter providencial por parte do Estado, o qual, à míngua de um sistema de segurança social, exerce a caridade pública através da curadoria da annona, benemerência iniciada com as distribuições de trigo a baixo preço (frumentationes) previstas na lex Sempronia frumentaria de 123 a.C., de Gaio Semprónio Graco, e possíveis graças aos recursos provenientes da expansão.”56

Para socorrer as necessidades da plebe romana, do Norte de África vinham grandes quantidades de cereal. “Plínio, o Velho, afirmou que as terras norte-africanas haviam sido consagradas totalmente a Ceres, i. e., à produção cerealífera; facto notado igualmente por Salústio, que definiu o húmus áfrico como ‘fértil em cereal’.”57

O acesso a trigo de melhor qualidade permitiu que, paulatinamente, as papas passassem a ser substituídas por pão e este ganhasse grande destaque no conjunto da alimentação do povo romano. “De manhã, mal se levantavam, os Romanos comiam o ientaculum, constituído por pão, queijo, ovos, leite, às vezes apenas água (por conselho médico e sobretudo no Império). Apreciavam também pão embebido em vinho aquecido ou regado com azeite e depois esfregado com sal e alho. (…) O pão era muito variado. Basicamente havia três qualidades: o panis mundus (candidus), pão de primeira; o panis secundarius (sequens), de farinha de segunda com mais farelo, mas de que Augusto muito gostava; o panis sordidus (ater, durus, niger, cibarius), pão escuro, dito também plebeius ou rusticus, porque era aquele a que os pobres podiam chegar. Havia ainda pães especiais, como o ostrearius, para comer com ostras, um pão com leite, outro com ovos, outro para os cães (panis furfureus).

56 BRANDÃO, José Luís; OLIVEIRA, Francisco – História de Roma Antiga: das origens à morte de César. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra. Vol. I [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: http://hdl.handle.net/10316.2/36908 DOI: DOI:http://dx.doi. org/10.14195/978-989-26-0954-6, p. 255.

57 BRANDÃO, José Luís; OLIVEIRA, Francisco – História de Roma Antiga: das origens à morte de César. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra. Vol. I [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: http://hdl.handle.net/10316.2/36908 DOI: DOI:http://dx.doi. org/10.14195/978-989-26-0954-6, p. 61.

Para melhorar o sabor do pão cobria-se-lhe a côdea, já depois de cozido, com ovo e salpicava-se com sementes aromáticas (de dormideira, de anis, de funcho...). Os figos, que se comiam frescos ou secos mas não como sobremesa, acompanhavam o pão: por isso Catão propõe que, quando abundam, se reduza a ração de pão a dar aos escravos.”58

Outro indício da importância que os cereais ocupavam no âmbito da alimentação romana, era a constituição de reservas de trigo e de fundos permanentes de cereais. Armazenar para evitar períodos de carestia tornou-se importante para uma sociedade que sustentava no pão toda o quotidiano alimentar. “Em Samos, por volta de 200 a.C., em circunstâncias que ignoramos, 130 pessoas pagaram uma contribuição para um fundo cerealífero. Este dinheiro foi investido e permitiu comprar cereais que foram gratuitamente distribuídos a todos os cidadãos residentes de Samos enquanto as reservas duraram (…)”. 59 Devido à possibilidade de corrupção e desvio de fundos numa matéria tão importante como os cereais, é criado um conjunto de normas que procura regulamentar o modo como o dinheiro era gerido e aplicado na compra de cereais e como estes eram distribuídos pelos cidadãos. “O povo agrupado por tribos elegerá os gestores do fundo cerealífero e aprovará as cauções e as garantias apresentadas pelos gestores; (…) os funcionários cerealíferos especiais comprarão cereais com os rendimentos da taxa de 5% sobre os domínios do templo de Hera no Anaia a um preço mínimo de 5 dracmas e 2 óbolos; (…) os montantes provenientes dos juros não serão obrigatoriamente gastos na compra de cereais pelo comissário cerealífero, poderão ser emprestados a outrem, mediante uma caução e garantias adequadas, para adquirir cereal em situação mais vantajosa; (…) a distribuição aos cidadãos residentes será realizada por tribo, mensalmente, a duas medidas por pessoa, a começar no mês de Pelusion, e prosseguirá até ao esgotamento dos cereais. (….)”60

De uma fase inicial em que a confeção do pão acontecia no espaço doméstico e era assegurado pelas mulheres, assiste-se no século III a.C. a, ao aparecimento das «pistrinae» onde profissionais produzem o pão e o vendem para o consumo na urbe. Dá-se conta, nessa época, da existência de 258 padarias, repartidas por várias regiões de Roma. Com o recurso a melhores variedades de trigo e a profissionalização da panificação conduz a uma redução do uso de papas ( puls) e um aumento do consumo de pão.

Para esta mudança, muito contribuiu, não só a mudança de técnicas agrárias que permitiram uma rentabilização agrícola superior, quer na quantidade, quer na qualidade, e ainda, a absorção de práticas culinárias gregas, nomeadamente, no tema do pão. Eram famosos os padeiros gregos que, levados para Roma, engrandeceram a produção do pão aumentando, ainda mais, o consumo de cereais.

A popularidade do pão e o aumento populacional verificado com o alargamento das fronteiras do Império geraram uma crescente necessidade de reservas de trigo.

Na sua expansão, foi sempre tido em conta os territórios que ofereciam boas condições para o cultivo de cereais, da oliveira e da vinha. Terá, porventura, sido o limite do clima a definir as fronteiras da expansão para Norte.

À medida que os romanos iam atravessando e dominando os territórios, quer a Oriente, quer a Ocidente, carregavam consigo os hábitos da vida quotidiano onde a alimentação teve grande expressão. Impondo e obrigando os povos conquistados a descer das montanhas e a ocupar os vales e planícies propícios, divulgavam as técnicas

58 BRANDÃO, José Luís; OLIVEIRA, Francisco – História de Roma Antiga: das origens à morte de César. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra. Vol. I [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: http://hdl.handle.net/10316.2/36908 DOI: DOI:http://dx.doi. org/10.14195/978-989-26-0954-6, pp. 158 e 159.

59 GARNSEY, Peter – “As razões da política: aprovisionamento alimentar e consenso político na antiguidade”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 213.

60 GARNSEY, Peter – “As razões da política: aprovisionamento alimentar e consenso político na antiguidade”. In: MONTANARI, Massimo e FLANDRIN – História da Alimentação, dos Primórdios à Idade Média. Lisboa : Terramar, 2008, p. 213 e 214.

de produção de pão e favoreciam o impacto deste sobre os territórios conquistados. Na verdade, verifica-se que os povos dominados aceitam o modo de vida romanizado e o adotam. É essa força da cultura gastronómica do pão, do vinho e do azeite que vai permitir a construção de uma Europa Medieval governada pelos novos senhores, os «bárbaros», os povos que contribuíram para o desmembramento do Império e o dominaram.

O Pão que é Vida, na Europa Medieval Cristã.

Na construção de uma Europa medieval nascida dos escombros da desagregação do Império Romano, sobressai a afirmação do cristianismo como religião oficial e instituição fundamental na definição dos novos territórios políticos. Companheira insubstituível na definição dos poderes emergentes, a igreja católica determina, regula e avalia os comportamentos sociais tendo por base a filosofia religiosa que, paulatinamente, se forma a partir de dogmas.

Proposta mística de regulamentação da vida dos demais, a igreja católica impõe uma visão religiosa fundada nos preceitos inquestionáveis e, ainda, procura aproximar-se da realidade dos seres humanos conduzindo-os para um modo de vida dito cristão. Ao fazê-lo, ao invés de recorrer a elementos estranhos à vida das sociedades, apoia-se em sistemas simbólicos já reconhecidos e validados, outrora, incluídos no Império Romano.

O pão, alimento determinado como fundador de um sistema alimentar, quer pela nutrição, quer pela fruição, é institucionalizado como valor fundamental de vida e gerador de comunhão entre o Deus, uno, omnipotente e misericordioso, e os humanos sempre sujeitos ao livre-arbítrio e, por isso, à possibilidade de pecado. Na verdade, sendo o pão uma realidade mística, para além de alimentar, desde a Antiguidade Clássica, pelo qual eram realizadas cerimónias às deusas Deméter (Grécia) e Ceres (Roma) de modo a nunca faltar aquele alimento, fez daquele alimento suporte favorável à aceitação da nova religião monoteísta.

O pão, base da alimentação e da sobrevivência humana, adquire no contexto da religião católica uma importância fundacional. Tal como nas sociedades da Antiguidade Clássica, a sua importância como fundamental e imprescindível na sobrevivência humana, posiciona-o como alimento divino. Sinónimo de vida pela capacidade de alimentar no quotidiano, com a fé cristã é definido como capaz de resgatar o humano da sua finitude e erro e levá-lo à comunhão com o Deus sempre misericordioso. Vida material e espiritual, o pão dá a salvação e a progressão a quem dele comer. Esta sacralização do pão permite que a Igreja Católica verta nos sistemas de crença já existentes o valor da nova religião. Pela consagração, o pão transforma-se em corpo de Cristo e, em conjunto com o vinho, pacifica o cristão e ampara-o nos erros cometidos. O pão, o vinho e o azeite, são glorificados como símbolos de uma comunidade cujo quotidiano pretende obedecer às leis cristãs. Para além de alimentar e gerar bem-estar físico, o pão é, igualmente, alimento para a alma, elemento pacificador de uma existência ensombrada pela mácula do pecado.

Na alvorada dos novos poderes de uma Europa medieval ainda precoce na afirmação da sua geografia política, a sacralidade do pão vai definir o acesso à propriedade agrícola dando-lhe o protagonismo total na demonstração de poder.

O sistema feudal inaugurado pelo período medieval fazia da posse da terra uma representação do poder do senhor, sobretudo das terras de solos férteis que permitiam a produção de cereais, de vinha e de azeite. A formação dos novos núcleos políticos

e económicos vai fazer-se com recurso à titularidade de feudos a partir dos quais é exibida a centralidade do poder. Pelo rei é atribuído um território aos homens de confiança que, de algum modo, contribuíram para a defesa militar da causa comum. Estes prometem defender e cuidar de modo que o poder central não se dilua.

Na propriedade feudal, a produção agrícola destina-se ao proveito do dono da terra, o senhor. É este que retira usufruto da exploração agrícola efetuada pelos camponeses. Estes, impedidos de aceder à titularidade da propriedade, limitam-se a servir como mão de obra de um sistema agrícola que lhe dá acesso apenas a uma ínfima parte da produção. Os tributos pagos em cereal ao senhor feudal deixam ao camponês pouca margem na utilização de sementes. Das restantes após pagamento da renda, uma parte é reservada para a próxima sementeira e a outra destina-se à alimentação.

Tendo em conta que as produções agrícolas dependiam de um alargado conjunto de fatores não dependentes da vontade humana, era sempre aleatória a rentabilidade da produção cerealífera. O clima, a qualidade das sementes, a fertilidade dos solos, a guerra, as pragas, contribuíam para a imprevisibilidade das colheitas sendo frequente a carência de cereais, nomeadamente, do trigo.

É neste contexto que a estratégia agrícola passa a incluir o cultivo de cereais diversificados como o centeio, a cevada, a aveia, o milho miúdo e o milho painço. Ainda que fosse o trigo o cereal mais valorizado e mais procurado pela capacidade em fazer um pão de crosta crocante e miolo macio, a plebe via nos outros cereais uma escapatória em maus anos agrícolas. Assim, fazia-se a diferença entre o pão de trigo, também designado somente de trigo ou de pão, e o pão de segunda. Na verdade, todo o pão que não fosse de trigo, era dito de segunda. Tanto poderia ser um pão feito com farinha de trigo, mas com mais farelo, ou então ser um pão feito com outro cereal que não trigo. Também se usavam os pães meados, terçados e quartados. Ainda que estas designações tenham sido usadas para caraterizar o conteúdo do pagamento dos foros revelando a quantidade de cereais que seria incluída no tributo, quando se referiam a pão cozido, indicavam a quantidade de cereais utilizados na amassadura. 61

O pão, enquanto suporte do sistema alimentar medieval, vai revelar as discrepâncias sociais de uma sociedade tripartida. Os que detinham a posse da terra e usufruíam do protagonismo social e económico, beneficiavam do acesso ao pão alvo, branco e fofo, resultante da mistura de farinha de trigo com água. Era o pão de trigo, branco, sinónimo de pureza e de espírito sagrado. Os camponeses, por seu lado, usariam a farinha de trigo apenas em situações festivas, sendo o pão escuro, de centeio ou cevada, o alimento corrente disponível no quotidiano. “Podia o lavrador humilde não consumir diariamente pão de trigo e substituí-lo por pão de centeio ou milho; ele possuía, contudo, os meios suficientes para adquirir com regularidade, talvez aos domingos ou aos dias santos, o seu pão alvo de real ou de dois reais.”62

Se isto se verificava me meio rural, onde os camponeses sentiam a pressão do tributo em cereal como uma limitação ao acesso de pão, em meio urbano a discrepância social também era notória. Algumas das famílias mais poderosas tinham as suas terras no contexto rural e de lá recebiam os pagamentos. Por outro lado, as famílias mais abastadas conseguem aceder ao cereal que é comercializado pelos mercadores que, não sendo proprietários de terras de cultivo de cereal, dispõem de recursos financeiros que lhes permite comprar o cereal logo que este é colhido. Em épocas de escassez de cereais, será a população urbana de menores recursos que vai sofrer com maior intensidade a falta de pão.

61 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 84 e 85.

62 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 226.

Se no ambiente rural, a produção do pão era tarefa das mulheres que o produziam em casa e o coziam em forno comum, na cidade, essa tarefa é profissionalizada através do ofício das padeiras. Porque era um alimento fundamental na estrutura alimentar portuguesa, a produção de pão era seguido atentamente pelas autoridades que procuravam, não só vigiar a sua qualidade, preço e quantidade, como procuravam garantir que não faltariam padeiras a trabalhar para satisfazer as necessidades da população urbana. 63

Na abundância e na escassez, o pão em Portugal. Por influência da presença de povos do Mediterrâneo no território de Portugal, o pão afirmou-se como “o alimento por excelência, aquele que ninguém podia dispensar, aquele sem o qual todos os outros perdiam, por assim dizer, muito do seu interesse e valor e até, talvez do seu sabor.”64

Pilar, tronco comum, suporte de inúmeros braços que se desenharam a partir das qualidades daquele alimento, em Portugal, a sua importância foi gerada dentro da relevância enquanto suporte energético, alimento saboroso e alimento espiritual, sinal de vida dentro da liturgia cristã.

Capaz de alimentar o corpo, na exigência do trabalho e na fruição do lazer, versátil na apresentação e no sabor, à mesa queria-se pão para que a refeição nutrisse e proporcionasse bem-estar. Pelas suas qualidades, valia como alimento de maior estima. No uso quotidiano, o pão seria de trigo para os que a este tinham acesso. Nas sociedades rurais, aquele estava reservado aos que detinham a propriedade da terra. Em contexto urbano, seriam os elementos da nobreza e do clero que teriam a possibilidade de o consumir.

Porque a subsistência assim obrigava, os elementos do povo, contentavam-se com os pães meados, terçados ou quartados, em mistura com outros cereais. Sendo o trigo um cereal difícil de conseguir em abundância, até pelas caraterísticas geográficas de Portugal, os camponeses e o povo das cidades recorriam ao centeio, cevada, aveia, milho painço e milho miúdo e com estes cereais amassavam o seu pão. Para estas camadas sociais, o trigo que se conseguia guardava-se para as situações festivas, quer fossem religiosas ou profanas. As regueifas, as fogaças, os folares, as bolas, são exemplos de pães simbólicos associados a prática culturais que exigiam a utilização da farinha mais valorizada.

No entanto, também a apropriação do pão dentro do receituário nacional fez dele protagonista da história da cozinha portuguesa sendo, por isso mesmo, pilar de uma matriz alimentar. A partir do pão desenharam-se receitas como as açordas, as migas, as sopas, os ensopados, as massas, os bolos. Também a farinha para além de pão, foi identificada como ingrediente de papas.

Se o trigo e o pão definiram grande parte do nosso receituário até à aceitação da batata, ocorrida no século XIX, no que respeita à doçaria sente-se de forma intensa o protagonismo daqueles dois elementos. O pão como elemento central das rabanadas, sopas secas, formigos, papas doces, pães doces secos, pães doces húmidos e, tantos outras receitas. A farinha de trigo é quase indissociável do conjunto do receituário doce português, sempre útil para as massas e, ainda, para alguns recheios.

63 GONÇALVES, Iria – “A alimentação” In MATTOSO, José – História da Vida Privada em Portugal – a Idade Média. Lisboa : Círculo de Leitores, 2010, p. 233.

64 GONÇALVES, Iria – “Uma pequena cidade medieval e o seu pão na Baixa Idade Média: o caso de Loulé” In Abastecer a Cidade na Europa Medieval. Castelo de Vide : EM – Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2020, p. 180.

Do Trigo, do Centeio e a Introdução do Milho.

Na construção de um Portugal enquanto nação, nos alvores do século XII, a alimentação era representativa da pertença de classe. A distância social manifestava-se pelo que se tinha à mesa, para além do modo como os alimentos eram consumidos. Tal será uma tendência até à democratização do pão, já em pleno século XX quando o regime político, económico e social permitiu a liberalização do produto e facilitou o acesso.

Ao consumo estratificado do pão correspondia uma diferente apropriação da paisagem agrícola. Ao longo da história portuguesa, na organização política, económica e social evidenciou-se sempre a importância das terras do pão, assim chamadas pela relevância simbólica do alimento que proporcionavam. Pela importância nutritiva e cultural, as terras onde se cultivavam os cereais, mormente o trigo, eram propriedade de senhores ou ordens religiosas a quem os camponeses pagavam tributo pesado pelo usufruto. Pela necessidade de produção cerealífera, foram as terras desbravadas, naturalizadas como espaços agrícolas, institucionalizadas como as terras produtoras de alimento. Mas essa apropriação foi sempre indicadora de poder político, económico e social.

O mesmo seria dizer que, nas melhores terras, eram produzidos os cereais, sobretudo, aquele que mais satisfazia, o trigo. Cereal exigente na qualidade do solo e do clima, para ele ficavam reservadas as propriedades de melhor aptidão. Ainda que fosse no Sul, abaixo do Tejo, que se reuniam as condições para melhores produções devido à forte exposição solar e solos férteis, em todas as regiões de Portugal, mesmo naquelas onde predominavam os solos delgados e o clima era frio, se semeava trigo. Assim, em cada lugar, as terras mais solarengas eram aproveitadas para o trigo, enquanto os terrenos de maior altitude serviam para semear o centeio e outros cereais menos valorizados. A cevada e os milhos miúdos e painço não receberiam grande espaço de cultivo, contudo tinham utilidade em anos de colheitas mais reduzidas.

Assim, para além das mudanças políticas, económicas e sociais ocorridas na cronologia de Portugal, a tendência desde o período medieval até ao século XX terá sido sempre a diferença de consumo entre os estratos sociais de maior poder e os que suportavam a base da pirâmide. Os primeiros, ora detinham a posse da terra, ora dispunham de recursos económicos que permitiam o acesso ao pão alvo, feito dos grãos de trigo moídos em mós alveiras e peneirados em peneiras de seda. Comer pão de trigo era representativo de estatuto social elevado.

O povo, quer camponês e subserviente na obrigação de pagar o tributo com os melhores cereais, quer residente nas cidades e representativo de profissões necessárias à vida urbana, aceitavam o pão escuro, feito de centeio, cevada, milho miúdo e painço, moídos nas mós negreiras. Neste contexto social, os pães de mistura iam acompanhando a maior ou menor disponibilidade de cereais, tudo dependendo da rentabilidade das colheitas e do preço de venda. Sempre que possível, àqueles cereais adicionava-se um pouco de trigo para que a ligação permitida pela proteína do glúten resultasse numa massa consistente e una. Mais do que um pão caraterístico das classes que ocupavam a base da pirâmide social, no meio rural e urbano, a produção de pão ia acompanhando a disponibilidade de cereal, sendo que, em algumas situações de crise, também leguminosas, como a fava, eram utilizadas.

Capaz de traduzir a situação económica e social, o pão branco alimentava as classes ligadas ao poder e o pão escuro socorria as mais financeiramente débeis. Daí que uma das prioridades do poder real tenha sido assegurar que o trigo não faltava. Apesar da exigência de solo e de clima, aquele era produzido em todas as regiões e terá sido um dos cereais mais cultivados durante a Idade Média. 65 A procura de portos trigueiros, como aconteceu com a expansão marítima portuguesa iniciada em 1415 com a conquista

65 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 63.

de Ceuta, traduziu a procura da estabilidade do fornecimento de cereal. Na análise histórica acerca dos motivos que fizeram avançar os portugueses para a aventura ultramarina, terá sido António Sérgio que viu na tomada de Ceuta, não um arrebate de conquista nacional, mas uma oportunidade de contrariar as inúmeras crises cerealíferas com que o século XIV se tinha debatido. “Cabe a Vitorino Godinho o ter provado definitivamente que Marrocos era zona importante de produção e exportação de cereais, (…) que por tais motivos um país deficiente em trigo como Portugal tinha vantagens na ocupação de Ceuta.”66 Convém recordar que a colonização da Madeira iniciou-se com o ciclo do trigo, cereal que, ainda hoje, tem grande destaque na cozinha do arquipélago.

Se até ao final do século XV, se verificou uma dicotomia entre o pão branco e o pão escuro, revelador do posicionamento social das famílias, o século XVI irá testemunhar uma mudança nos hábitos agrícolas e alimentares dos portugueses com a introdução da espécie zea mays vinda da América Central. Pela morfologia da planta e do grão e pela oposição com os milhos já conhecidos, esta espécie era, igualmente, chamada de milho grosso, graúdo, milhão, de maçaroca ou zaburro. É com esta espécie de milho cujos grãos, abundantes na maçaroca e grandes no tamanho, permitiam boas moagens de farinha, que se vai fazer o pão que irá alimentar muitos dos portugueses e que vai permitir uma revolução alimentar.

No período medieval, apenas as espécies milho alvo (Panicum Miliaceum) e o milho painço (Stetaria Italica) seriam conhecidos. Pouco considerados, tinham utilizações distintas. O Painço servia, sobretudo, para alimento do gado, enquanto o Milho Miúdo servia para fazer pão, ainda que somente em mistura com outros cereais dado as suas reduzidas capacidades nutritivas e organoléticas. Em Portugal, nunca terá tido expressão suficiente para se fazer notar ou autonomizar, era somente um complemento no conjunto dos cereais mais procurados. Perante o posicionamento do trigo e do centeio na alimentação do período medieval, estes milhos de grão miúdo não teriam grande expressão.

Terá sido após os primeiros ensaios do milho zea mays chegada a partir de Cádis que, alguns investigadores situam nos férteis campos adjacentes ao Mondego 67 , e outros posicionam no Bispado do Porto, na região da Feira 68 , que aquela planta se expande pela região da Beira Litoral, Minho e, mais tarde, pelo Algarve. Apesar da forte expansão a Norte do Tejo, terá sido na região minhota que a sua introdução terá deixado maior marca. A paisagem agrícola foi reestruturada para receber esta planta e, pela produtividade que permitia, rapidamente conquistou os melhores terrenos junto aos cursos de água. Ainda que esta cultura aguentasse a produção em sequeiro, o acesso à água aumentava, substancialmente, a rentabilidade das espigas e o tamanho do grão. Por isso, no desenho da apropriação da paisagem, os lameiros ou terras fundas junto à água tornaram-se nos domínios desta nova planta. Planta que revolucionou o sistema agrícola e alimentar português, no dizer de Orlando Ribeiro 69 , pois que permitiu maior abundância de cereal para fazer o pão, suporte da alimentação. Ao invés do trigo e do centeio, cujos longos ciclos de produção decorriam entre o Outono e o princípio do Verão, ou seja, nove meses,

66 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978, p. 237.

67 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011, p. 156.

68 FERRÃO, José E. F. – As Plantas e a Alimentação Mundial. Lisboa : Fundação Francisco Manuel dos Santos. 2020, p. 165.

69 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011.

o milho zea mays permitia um ciclo curto, entre três e quatro meses, sendo que cada maçaroca era abundante em grãos. Assim, cada semente de milho era capaz de dar origem a uma nova espiga repleta de várias fiadas de novas sementes. Por isso, o milho representava abundância.

A importação do hábito de cultivar esta semente em conjunto com o feijão e as abóboras aumentava a disponibilidade e diversidade de alimento e, simultaneamente, evitava o esgotamento do solo. Enquanto as canas do milho eram usadas como suporte para a planta do feijão trepar, esta última nutria o solo com a transmissão de azoto. À volta do campo, cultivavam-se abóboras, planta de crescimento radicular que evitava a propagação de ervas daninhas. Assim, para além de uma produção abundante, os terrenos do milho eram também aproveitados para semear feijão e abóboras, dois elementos que vão servir de complemento nutritivo e saboroso na alimentação nacional. Por isso, ainda que de forma discreta e quase silenciosa, o milho vai-se afirmando como o pão dos que menos têm, aquele que alimenta, nutre, satisfaz.

Não tardou que o proveito destas sementeiras resultassem num acréscimo de alimento disponível até porque a população portuguesa investiu na farinha de milho para fazer pão contrariando, deste modo, as eternas e sempre presentes faltas de cereal vividas no âmbito da história nacional.

O sucesso do milho no contexto alimentar português esteve muito relacionado com a capacidade nutritiva deste cereal, mas igualmente pelo sabor que a sua inclusão acrescentou ao pão e, ainda, ao variado receituário que fez desenvolver. Ao milho, ora se misturava trigo, ora centeio, ora ambos os cereais, tudo dependia das colheitas conseguidas. No final, resultava uma pão saboroso que se popularizou como pão de milho ou broa. A expressão desta terá sido tão abrangente que, em algumas regiões, a broa era o pão e as terras de milho eram as terras de pão.

O milho tornou-se determinante na alimentação nacional, igualmente pela sua capacidade em permitir o desenvolvimento de um receituário alargado. A farinha de milho utilizada para engrossar caldos que se transformaram em papas e o milho escarolado que, cozinhado, parecia substituir o arroz acrescentou uma alargada panóplia de receitas que acrescentaram imenso ao imaginário culinário português.

Ainda, é de reter que a introdução de milho teve um forte impacto no quotidiano das populações portuguesas já que permitiu uma melhoria da alimentação dos animais domesticados como as galinhas, porcos e vacas. Quer o farelo, a casca do milho, quer as diversas partes da planta (bandeira, folhagem, cana), após secagem, serviam para robustecer a alimentação animal. Em algumas regiões em que o milho progrediu de modo acelerado, verificou-se o aumento do consumo de carne de vaca.

No século XVII já estariam bem firmadas, quer a prática do cultivo do milho, quer a sua vulgarização na alimentação humana e animal sendo possível assegurar que melhoraram, sobremaneira, as condições de vida das populações. A descoberta do milho como importante recurso alimentar fez com que para este cereal ficassem guardadas as melhores terras, as mais próximas aos cursos de água. Graças à adaptabilidade decorrente das espécies genéticas que deram origem ao milho, esta planta manifestou grande resiliência para subsistir em terrenos, quer de solos férteis, com acesso a água e de boa exposição solar, quer de solos pobres, distantes da água e com temperaturas de altitude. No entanto, sempre que possível, eram utilizadas as terras fundas, de regadio, para o cultivo de um cereal a que, cada vez mais, os portugueses se habituavam.

Com a revolução do milho, descreve-se uma linha de produção que situa a produção de milho junto aos rios e seus afluentes, enquanto o centeio e o trigo são destacados para lugares de monte ou serra afirmando-se como cereais de sequeiro. De um modo geral, ainda que nem todas as regiões oferecessem as melhores condições para todos os cereais, as fontes históricas como as Memórias Paroquiais, descrição

de tributos e foros, posturas municipais, vêm demonstrar que, em cada lugar, se fazia a divisão entre as terras de trigo e centeio e as terras de milho. Numa estratégia de complementaridade que visava fazer face as dificuldades em assegurar colheitas abundantes e seguras, a produção de vários cereais reduzia o risco de falta de cereais.

O aumento da área de produção dedicada ao milho e a crescente inclusão deste cereal na cozinha portuguesa contribuiu para o quase desaparecimento do milho miúdo e do milho painço, assim como, desvalorizou o papel da cevada, ficando esta reservada para períodos de carência de cereal como acontecia, ainda no século XX, entre Maio e Junho, período que antecedia a ceifa do trigo e a colheita do milho ainda vinha longe. O centeio, ainda que tenha permanecido presente, foi, gradualmente, sendo substituído pelo trigo dada a industrialização da produção deste cereal e consequente liberalização.

Após a chegada do milho, nas práticas agrícolas, terá acontecido uma polarização entre o trigo, o milho e o centeio nomeadamente, a Norte do Tejo. Em quase todos os territórios se produziam estes três cereais, contudo, a expressão que cada um deles teve ficou dependente das caraterísticas da geografia regional. Na metade portuguesa que dista entre o litoral e a linha montanhosa que se define desde o Minho até às Beiras, o milho ocupou quase a área de produção e, por consequência, quase todo o espaço alimentar. O trigo, cereal muito enraizado nos hábitos alimentares, nunca perdeu a sua importância. Se não era possível produzi-lo, comprava-se, tentava-se obter para que nunca faltasse o alimento quase divino.

O trigo terá, por isso, mantido sempre um papel destacado no contexto do quotidiano alimentar português. Em contexto rural, sempre que possível, era o cereal que se misturava no amassar da broa mantendo-se, igualmente, como predileto na confeção de pães doces e doçaria. Nas cidades, permanece o pão branco como o mais procurado e desejado. Terá sido, por isso, que terão predominado iniciativas municipais de motivação para abastecimento às cidades e ações de fiscalização na qualidade e pesos dos mesmos.

VALONGO, UMA HISTÓRIA DO PÃO.

OS TRAÇOS DE UMA GEOGRAFIA, DO DOURO LITORAL EM DIREÇÃO À MONTANHA.

São traços em forma de meia lua, aqueles que se desenham, na paisagem, quando de Oeste se viaja para Este e se atravessa Valongo. Semicírculos que deixam perceber o amparo que as montanhas de média-altitude dão a todo aquele concelho, pois que, em cada linha curva se encontra a distância entre o ponto mais alto e o ponto mais baixo de cada uma das Serras que ladeiam aquele território. É um registo contínuo que relaciona o cume com o vale, o pico com a planície.

A viagem pelas terras planas do vale, acompanhada daquelas meias luas montanhosas, deixa antever que a montanha terá sido sempre lugar de fertilidade, pela riqueza do seu ventre, pela esplendor da sua vista guardando o vale sempre que necessário. Para lá e de lá da montanha, o salto, a necessidade de atravessar o ventre sagrado rico em minerais e em água, a passagem para outras paragens. Por isso, o simbólico e o espiritual fez-se edificação e as comunidades fizeram do lugar, espaço de crença e de devoção.

Nunca as comunidades viraram as costas à montanha, pois que da altitude não tiveram medo, nem da inefável solidão se afastaram. Na verdade, mais depressa a vertente olha a encosta que a liga ao cume e com ela se relaciona, do que atravessa a montanha como se o seu topo não abençoasse a travessia. Por isso, é milenar e duradoura a relação entre as comunidades do concelho de Valongo e as Serras que acompanham aquele território.

Porque geograficamente amparam e são referencial simbólico para a comunidade, importa referir as Serras de Pias e de Santa Justa aquando de uma breve descrição da geografia do concelho de Valongo. Até porque, ambas em conjunto com as Serras de Castiçal, Santa iria, Flores e Banjas, constituem uma unidade paisagística que se evidencia na ligação entre os pontos Este e Oeste da paisagem do Douro Litoral. Miradouro atento, mas também ventre fecundo pelas rochas e minerais que, ao longo dos séculos, deram riqueza.

O Anticlinal de Valongo.

As Serras de Santa Justa e Pias suportam-se no Anticlinal de Valongo enfatizando a importância deste evento geográfico na história da formação geológica daquele lugar. As rochas que formam o esqueleto da montanha, como os xistos e grauvaques, ter-se-ão formado no início do Paleozoico, há 542 milhões de anos, num espaço cronológico em que o mar cobria a região e esta se encontrava no hemisfério sul. São daquele tempo os xistos, que resultaram dos sedimentos depositados em zonas mais profundas, e os quartzitos, vaques e conglomerados que se sedimentaram em locais menos profundos, adjacentes à linha de costa.

Há 540 MA, no período Câmbrico, por ação do embate das placas continentais (Orogenia Caledónica), ocorre nova transformação com o recuo do mar. Na passagem do Complexo Xisto-Grauváquico para o início do Ordovício, regista-se a presença do conglomerado de base assente em discordância angular provocada por uma fase de deformação sarda. No início do Ordovício (485 – 443 MA), por ação de uma fratura que levou à separação das placas continentais, verifica-se a formação de um novo mar de pouca profundidade. É neste contexto que se acumulam os sedimentos que irão dar origem aos quartzitos do armoricano, alternâncias de bancadas de quartzitos, siltitos e pelitos. O aumento da profundidade deste mar contribuiu para que os sedimentos ficassem mais finos, dando, mais tarde, origem aos xistos de Valongo, muito

Capítulo II, Fotografia: Os Biscoitos. Uma Narrativa.

conhecidos por ardósias. Na sequência da formação da geologia do local, verifica-se no Silúrico (443 – 419 MA) a formação dos xistos carbonosos, liditos, quartzitos que, com o recuo do mar, transitam para formações gresoso-pelíticas, fossilíferas do Devónico (419 – 358 MA).

No final do Devónico (370 MA), devido à primeira fase da orogenia varisca, com o choque entre o continente Gondwana, do qual a atual Península Ibérica fazia parte, com o continente Laurentia Báltica, dá-se a constituição da megaestrutura Anticlinal de Valongo. Neste embate tectónico, na constituição da dobra, dá-se o descaimento de um dos flancos, chamado de flanco inverso, ficando este numa posição invertida, ou seja, com os estratos mais antigos por cima e os mais recentes em baixo. “O Anticlinal de Valongo corresponde a uma dobra assimétrica, com direção noroeste-sudeste (direção das cristas quartzíticas que formam as serras), prolongando-se próximo de Esposende de Lagoa Negra até Castro Daire.”1

Monumento natural moldado pelas transformações que aconteceram ao longo do tempo, o Anticlinal revela, pela erosão sofrida, as “bancadas de quartzito que originaram duas cristas alongadas com relevos acentuados, correspondendo, cada uma destas cristas, a um dos flancos do Anticlinal. O flanco normal (oriental) tem uma inclinação de aproximadamente 35º para Nordeste prolongando-se desde Valongo até leste de Castelo de Paiva por uma extensão de 20 km onde é cortado por granitos Variscos, enquanto o flanco inverso (ocidental) é muito mais inclinado (subvertical) e prolonga-se para sul por uma extensão de mais de 50 km até perto de Castro Daire onde também é cortado por granitos Variscos.”2

No período do Carbónico (358-298 MA), há pelo menos 300 MA, a deposição de sedimentos conduz à formação da Bacia Carbonífera do Douro dando origem a xistos, arenitos, conglomerados e carvões. De notar, que esta ação geológica será contemporânea da constituição dos granitos que se formaram no anel que circunda o Porto.

Na geomorfologia, hoje visível nesta megaestrutura (90 quilómetros) do Noroeste da Península Ibérica, é possível perceber os diferentes tempos geológicos a partir dos estratos rochosos visíveis, expostos à erosão. Destacam-se, de forma visível, as cristas quartzíticas de orientação Noroeste-Sudeste que se alinham de acordo com as linhas de cumeadas das serras e que correspondem aos flancos ocidental e oriental, respetivamente. No primeiro, situa-se a Serra de Santa Justa e, no segundo, a Serra de Pias.

A Serra de Santa Justa, localizada a Norte, regista uma altitude de 376 metros.

A partir desta serra, definem-se dois braços de elevações quartzíticas de topos aplanados e estreitos, orientados para sudeste, um situado a ocidente e outro a oriente. O primeiro alberga a Serra do Castiçal (ou Serra da Valongueda) e Serra das Flores (ou Serra dos Açores). O segundo, erguendo-se por 35km em linha reta, inclui as Serras de Pias (ou da Pia), de Santa iria e das Banjas, prolongando-se para sul do rio Douro.

A Serra de Pias apresenta uma altitude de 384 metros. Ambas as serras, de Santa Justa e de Pias, apresentam declives geralmente superiores a 16%.

Situada a pouca distância do litoral, apresentam um clima marcadamente de influência atlântica com os ventos húmidos vindos do litoral a contribuírem para ocorrência de chuvas frequentes.

Suportadas pelas encostas formadas pelas serras, registam-se as terras baixas por onde serpenteiam os rios Leça e Ferreira, alimentados por diversos afluentes que atravessam o concelho de Valongo.

1 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011, p. 251.

2 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011, p. 251.

PORTO

VALONGO PAREDES SANTO

GONDOMAR

O Rio Ferreira.

Entre a paisagem consumida pela urbanização e aquela que ainda suporta um ar rural, descrevem-se os meandros do rio Ferreira. Após a passagem pelo núcleo de Valongo, são múltiplos os encontros com aquele curso fluvial e, à vista, saltam, os campos verdejantes que ladeiam as margens. Subitamente, do núcleo urbano e fechado, visualizam-se áreas abertas, apenas demarcadas por antigas divisões de terrenos agrícolas. As latadas oferecem uma visão de outrora e da importância que a vinha detinha no conjunto do concelho.

Mas, é o fresco da água, sempre fluida, sempre de corrente forte. É o verde húmido e vicejante dos campos, das terras fundas, outrora ocupadas por milho. São as pontes que, para além de proporcionarem a travessia, oferecem um elegante traçado arquitetónico. Com a passagem do rio Ferreira, não é só um curso fluvial que se sente a atravessar o concelho. É uma artéria que propaga vida por todos os lugares do concelho, mesmo àqueles onde ele não chega.

Ganhou o nome pelo concelho onde nasce, Paços de Ferreira, em Raimonda. Com uma extensão de 43 quilómetros, encontra-se sob a influência hidrográfica do Rio Douro, sendo que a sua bacia corresponde a uma área de 185 km 2 . É limitada, a norte pela região hidrográfica do Cávado, Ave e Leça, a nascente pela bacia hidrográfica do rio Ave, a Sudoeste, pelas bacias hidrográficas dos rios Torto e Tinto, a Oeste, pela bacia hidrográfica do rio Leça e a Sudeste pela bacia hidrográfica do rio Sousa.

Afluente do Rio Sousa, sendo este um tributário do Douro, é em lugar de Ribeira de Cima, na freguesia de Foz de Sousa que se encontra com o rio principal. Rio de corrente forte, atravessa os concelhos de Paços de Ferreira, Paredes, Valongo e Gondomar. Num território onde predominam elevações de altitudes moderadas, o rio Ferreira não apresenta grandes desníveis no seu trajeto. É junto ao ponto da nascente que aquele curso fluvial expressa maior valor altitudinal, a Noroeste. Já junto à foz com o rio Sousa, a Sudoeste, os valores altitudinais são mais baixos.

No concelho de Valongo, o rio Ferreira serpenteia pelas freguesias de Sobrado, Campo e Valongo expressando, pelos seus meandros encostados a campos agrícolas, o passado rural do concelho. Nestes terrenos, outrora, crescia, entre Abril e Setembro, o milho que arduamente era trabalho diário de muitas famílias. Também, neste rio de corrente forte rodavam sem descanso os rodízios que faziam mexer as mós de moer o cereal. Seriam muitas os moinhos que, aproveitando a força motriz da corrente, faziam o ganha pão dos moleiros.

Rio com forte marca de humanização, tem nas pontes erigidas em vários pontos do seu curso evidências da beleza do trabalho humano. Evidenciam-se as pontes de Luriz, de Terrafeita, de Pinguela, de Santo André, do Açude, da Balsa e a ponte-aqueduto dos Arcos. Será a Ponte Ferreira, na freguesia de Campo, a que mais se destaca, sobretudo, pela sua importância histórica. Terá sido, no período medieval, importante lugar de passagem entre o Porto e Amarante. Contudo, a sua fama estará ligada ao momento em que liberais e absolutistas se defrontaram, em 1832, nas lutas ocorridas no início do século XIX no contexto do cerco do Porto.

O Rio Leça.

A oeste, o concelho de Valongo é drenado pelo Rio Leça que, no seu percurso, atravessa parte do concelho, nas freguesias de Alfena, Valongo e Ermesinde. A paisagem que este rio atravessa denota, pela evidência das rochas deixadas a nu pela erosão, a passagem do tempo geológico. São fatias de tempo da cronologia da terra que expõem as camadas de xisto, grauvaques e quartzitos. Reluzentes pela luz, roçam o olhar de quem passa não sendo possível não se deixar intimidar pelo passado da geomofologia. É o tempo que se mantém seguro por ali e vigia o futuro no alerta da transformação.

O Rio Leça, não desbrava tamanha paisagem, apenas se deixa guiar pelo percurso autorizado. Nos 45 quilómetros de percurso, este curso fluvial cuja nascente se situa na freguesia de Monte Córdova, concelho de Santo Tirso, atravessa, de Este para Oeste, uma paisagem muito diversificada entre os concelhos de Santo Tirso, Valongo, Maia e Matosinhos.

A bacia hidrográfica deste rio ocupa 190km 2 e é delimitada, a norte, pela bacia hidrográfica do rio Ave e, a sul, pela bacia hidrográfica do Douro. De pequena densidade hidrológica aquando do ponto da nascente, com o contributo de outros cursos fluviais, aquele rio vai aumentando o caudal. Os principais afluentes situam-se na margem direita como as ribeiras do Arquinho, Leandro, Junqueira e Pizão. Na margem esquerda, realçam como afluentes as ribeiras de Cabeda e Tabãos. A sua foz acontece já em Matosinhos, no Porto de Leixões.

Em toda a extensão da bacia do Leça, evidenciam-se, a montante, numa área dominadas por rochas granitóides, valores de densidade de drenagem relativamente moderados. Por oposição, na sua secção média, onde predominam formações metamórficas, aumenta da densidade de drenagem.

O Concelho de Valongo e suas Freguesias. Falar do concelho de Valongo obriga a recuar no tempo em que as freguesias que, atualmente, o constituem, eram propriedades que se encontravam sob a alçada real, religiosa ou nobiliárquica. S. Mamede de Valongo, Alfena e S. Lourenço de Asmes (Ermesinde) terão sido parte integrante do concelho da Maia, cujo foral foi doado, em 1519, por D. Manuel I. As restantes duas freguesias, S. Martinho de Campo e Sobrado pertenceram ao concelho de Aguiar de Sousa, igualmente, atribuído por D. Manuel I, em 1515.

Valongo, à entrada da época moderna era um julgado do Termo do Porto. “O julgado era uma «povoaçom, que não tem pelourinho, nem goza de privilegias de villa, mas tem Justiças, & Juizes que julgão», gozando de uma autonomia jurisdicional incompleta, já que não dispunha de jurisdição crime.”3 Por esta razão, mantinha-se uma relação de dependência entre o Porto e os vários julgados que integravam o seu termo. Valongo, como os restantes, ficavam obrigados a respeitar a confirmação dos procuradores, ouvidores, meirinhos, almotacés e quadrilheiros. A partir de 1608, considera-se que a escolha para o exercício daqueles cargos deve ser feita entre a comunidade circunscrevendo o poder do Senado do Porto. No entanto, quase tudo o que acontecia em Valongo estava dependente do que era decidido pela administração municipal e do que era aprovado.

Hoje, constituído pelas freguesias de Valongo, Ermesinde, Alfena, Ermesinde, Campo, Sobrado, a constituição do concelho de Valongo representa uma conjunto de acontecimentos em torno do reconhecimento da sua importância económica, social e política.

Criado pelo Decreto de 6 de Novembro de 1836 e publicado no Diário do Governo em 29 do mesmo mês, na sua constituição estiveram seis freguesias, outrora, pertencentes a outros concelhos. Do concelho da Maia foram subtraídas as freguesias de Alfena, S. Lourenço de Asnes (mais tarde, designado de Ermesinde) e Valongo. Gandra, S. Martinho do Campo e Sobrado, pertencentes anteriormente a Aguiar de Sousa, passaram a integrar o novo concelho. À data da constituição do concelho, sobressaiu São Mamede de Valongo como sendo a unidade de freguesia com maior número de habitantes tendo sido, por isso, escolhida como cabeça de concelho.

3 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2000, p. 51.

Pouco tempo após o reconhecimento do novo concelho, a sede do mesmo, Valongo, foi elevada a vila por Decreto de 17 de Abril de 1837. Por iniciativa do executivo que presidia à câmara municipal, a 3 de Março de 1837, foi apresentado à Rainha D. Maria II o propósito de elevação a vila exaltando o papel determinante da Batalha ocorrido em Ponte Ferreira, momento episódico na luta entre Miguelistas e Liberais. Como forma de agraciar Valongo em tão importante luta, a rainha D. Maria II atribuiu o reconhecimento solicitado.

Período de reorganização municipal, a primeira metade do século XIX testemunhou movimentações várias por parte dos diferentes concelhos que, à época, viram a sua área ser reduzida de modo à constituição de novos centros municipais. Assim, a preservação e continuidade do novo concelho de Valongo obrigou a um conjunto de desenvolvimentos de índole diplomática. No conjunto das ações e reações a tal reorganização, saldaram-se, em Valongo, pela preservação das mesmas freguesias, apenas pela perda de Gandra.

Hoje, constituído pelas freguesias de Valongo, Alfena, Ermesinde, Campo e Sobrado, o concelho de Valongo ocupa uma área de 75,1 km 2 e limita, a sudoeste, com Gondomar, a oeste, com a Maia, a nordeste com os concelhos de Santo Tirso, Paços de Ferreira e Paredes.

O ponto mais a ocidente do conjunto do concelho, Ermesinde é, por essa razão, a freguesia mais próxima do centro urbano do Porto. Confronta a norte com a freguesia de S. Pedro Fins, a oeste, com a freguesia de Águas Santas, a este com a freguesia de Valongo, a nordeste, com a freguesia de Alfena e a sul com a freguesia de Baguim do Monte. Na descrição geográfica desta freguesia, importa salientar que a mesma é atravessada pelo rio Leça, poucos quilómetros antes da sua foz no Atlântico. Anteriormente designada de S. Lourenço de Asnes, é com a instituição da República que se passa a designar de Ermesinde.

A norte do concelho, fica a freguesia de Alfena que confronta, a nordeste, com a freguesia de Água Longa (Santo Tirso), a noroeste com a freguesia de Folgosa (Maia), a sudoeste, com a freguesia de Ermesinde, e a sudeste, com a freguesia de Valongo. Distribuída por terras baixas e alguns planaltos de média altitude, o seu território é atravessado pelo rio Leça permitindo este que, em alguns trechos, sobressaia a ruralidade que, outrora, caraterizou esta freguesia.

No miolo de concelho, a fazer a ligação entre as faixas oriental e ocidental do município, encontra-se Valongo, a sede do concelho. Num olhar mais atento, é possível discernir os pontos de evolução de um centro urbano que cresceu, quer com a intensa atividade comercial decorrente da indústria da panificação, quer com a centralidade dos serviços municipais. Assim, é notória a diferença entre a área de construção mais antiga e a que cresceu, nos últimos anos. Por entre as ruas mais estreitas, íngremes a mostrar os antigos caminhos que levavam os viajantes e almocreves até ao Porto, exibem-se os muros, construídos com placas de xisto devidamente ordenadas e acamadas. Território, por isso, humanizado numa perfeita simbiose entre o território e as pessoas. Por entre as camadas de xisto, feitas divisões entre propriedades, fruto de uma humidade que se mantém constante, crescem umbigos de Vénus e outras plantas cujo verde contrasta com o negro xistoso.

A mais meridional das freguesias, Campo, revela a paisagem que acompanha o traçado do rio Ferreira, quer pelos campos férteis onde ainda perduram as latadas de vinha, quer por entre a montanha de rocha descarnada que impressiona o olhar. É na envolvente de um cenário, tão bucólico pelo silêncio, quanto agreste pela imponência rochosa, que se dá o encontro entre as águas dos rios Simão e Ferreira, fazendo o primeiro o devido tributo ao segundo.

Ponte Ferreira e a ponte de Luriz constituem pontos de interesse no que respeita ao traçado arquitetónico da freguesia. Da memória oral, ainda se desprendem alguns

relatos que falam dos moinhos que, no rio Ferreira, moíam a farinha utilizada para fazer o pão, sobretudo o de milho, que pelas casas rurais alimentava no quotidiano. Outrora designada de S. Martinho de Campo, esta freguesia faz fronteira, a norte, com a freguesia de Sobrado, a oeste, com a freguesia de Valongo e, a este e a sul, com Paredes.

A freguesia de Sobrado, anteriormente designada de São João de Sobrado, pertence ao perímetro de maior expressão rural no concelho de Valongo. É o rio Ferreira que ainda aviva a memória da importância agrícola deste território, ainda que hoje a força urbana seja ponto de atração para a população. Confronta com as freguesias de Alfena, Campo, Valongo, e ainda, com Gandra e Lordelo (Paredes), Água Longa e Agrela (Santo Tirso), e Seroa (Paços de Ferreira).

No seu todo, Valongo afirma-se como um concelho de transição, entre o corrupio urbano que a proximidade ao Porto favorece e que é reforçado pela linha ferroviária do Douro que ali tem paragem, e o entranhar num mundo rural onde o rigor da montanha faz suspender a progressão do vício urbano. Ponto de paragem na estrada PortoAmarante, Valongo é um ponto de ligação entre o Oeste, litoral onde o urbano parece querer crescer sem consequência, e o Este, quieto, dormente, que se enfia pelo interior e deixa pressentir a proximidade de elevações montanhosas maiores, aquelas que serão o limiar de fronteira para outras regiões.

Terá sido no contexto da fixação romana pelo território que se definiram duas importantes traçados viários, também estas promotoras da centralidade do atual concelho de Valongo. As ligações viárias entre, Porto-Guimarães e Porto-Amarante, terão permitido a centralidade do território no eixo de viagem entre diferentes geografias, o litoral e o interior norte e este. A primeira atravessava Ermesinde, Alfena e São Martinho de Campo. A segunda, seguia por Valongo e era um dos caminhos mais utilizados pelos peregrinos para seguirem destino para Roma. O atual território de Valongo encontra-se no domínio do cruzamento de importantes vias seculares que ligavam o interior e o litoral, o norte e o sul. Hoje, num registo de exigência de deslocação rápida, há que olhar a centralidade de Valongo entre os eixos viários que ligam Porto e Amarante e, consequentemente, a ligação para Trás-os-Montes. Contudo, no equilíbrio possível entre a atração da paisagem e a força da cidade, é o Grande Porto que se sente, é a pertença à região Norte, Douro Litoral, atração centrífuga à qual Valongo, desde tempos imemoriais que se ligam à construção da nacionalidade, não se desliga e para o qual caminha.

VALONGO.

A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO.

Terras de Pão, entre a Serra e o Vale.

Entre a serra e o vale, dispõe-se o território do concelho de Valongo. Não terão sido as terras baixas a primeira escolha dos povos que, há milénios, ocuparam esta faixa de território. Mais seguros no alto da montanha, de onde a visibilidade lhes permitia antecipar ameaças de perigo, escolhiam pontos estratégicos para os momentos de descanso e de recolhimento. “Devido às condições naturais que o vale de Valongo oferecia ao homem, quer pela sua disposição no centro de uma muralha natural, quer pela imensa riqueza dos seus bosques primordiais que garantiam frutos e caça, todos os indicadores apontam para uma célere ocupação deste território. A este tempo,

Cacos.

o tipo de economia que então caracterizava os ajuntamentos humanos, residia sobretudo na caça e na recoleção, pois ainda não se conhecia o poder económico redentor da agricultura. Por isso mesmo, não se poderá dizer que, a este tempo, aqui residiram comunidades humanas, mas sim que por aqui passaram grupos humanos.”4

Há 6 000 anos, pelas terras de Valongo, o modo de vida descreve-se entre o nomadismo e a passagem para a prática, ainda que incipiente, da agricultura. Nunca a transição foi definitiva, nem nunca os povos perderam os hábitos de recoleção e de caça que caraterizou o período do Paleolítico. Ao invés, condicionalismos vários fizeram com a sua atenção se centrasse na tentativa de domesticar espécies do mundo vegetal e animal. Contudo, muito antes da sedentarização que levou à formação de aglomerados urbanos, os povos deslizaram entre hábitos de produção agrícola, de recoleção e de caça. A necessidade de sobrevivência obrigou à complementaridade entre as escolhas possíveis que a realidade oferecia.

Seria esta a altura em que, no regime alimentar, a algumas sementes se juntavam bagas, frutos, raízes e animais de caça. Com a utilização de técnica culinária rudimentar, os alimentos eram transformados de modo permitir nutrição e bem-estar. A agricultura, enquanto prática constante, não seria ainda uma realidade, mas presume-se que existiria já uma alimentação complexa até pela necessidade de conservação dos alimentos, quer vegetais, quer animais.

Registo de um tempo remoto que recua até há 6 000 anos, a Mamoa de Brandião regista a presença humana no território. Datada do IV milénio a.C., este monumento megalítico evidencia o cuidado dos habitantes em registar a morte, o momento de passamento dos seus familiares. “A sedentarização neolítica despertou o culto dos mortos que já não ficariam abandonados no percurso nómada. Para memória perpétua foram erguidas as construções megalíticas (…)”. 5 Monumento funerário pré-histórico, orientada a Nordeste e construída a partir de esteios de quartzito, traduz a escolha do território por povos que ali sentiram, quer segurança para sobreviver, quer o conforto para o enterramento dos mortos através da sacralização do espaço.

É provável que a facilidade de armazenamento criada pelas primeiras atividades de domesticação de sementes tenham contribuído para o aperfeiçoamento da prática agrícola. A existência de vestígios de aglomerados castrejos, no território, indicia a opção pela sedentarização com a criação de estruturas habitacionais fixas, a partir das quais, os povos realizavam as suas atividades quotidianas. Neste contexto, por uma necessidade de antecipação do que poderiam ser fatores de perigo, as comunidades vão posicionar-se a média encosta, escolhendo locais a cerca de 300 ou 400 metros de altitude. Capazes, assim, de prever e eliminar situações de perigo, os povos escolheram locais situados nas serras de Pias e de Santa Justa para estabelecer o fortificado castrejo capaz de defender o aglomerado habitacional. Os castros de Couce, Pias e Alto do Castro emergem no concelho de Valongo como vestígio da ocupação humana no Neolítico. Ainda muito centrados na montanha e nos privilégios que a mesma lhes davam, os povos castrejos irão fomentar uma prática alimentar em que os recursos naturais serão a base. Dos primeiros ensaios agrícolas a uma prática corrente, generalizada e evoluída da agricultura, teremos de esperar pela ocupação romana, contudo, haverá já a ocupação do solo com culturas e prática da pastorícia. “Nas planuras, nas encostas e nas cumeadas o fogo abria clareiras nas florestas, em cujo renovo eram pastoreados os rebanhos, germinando nas cinzas as primeiras sementes de cereais pobres. (…) No Norte, os cômoros na meia encosta, a dominarem a selva dos cursos

4 COSTA, J. C. P. D – História de Valongo. In J. D. Silva, C. Costa, & J. Costa (Eds.), Valongo, um salto para a modernidade... (pp. 8-37). Anégia, 2000, pp. 8-37.

5 CALDAS, Eugénio de Castro – A Agricultura na História de Portugal. Lisboa : E.P.N. – Empresa de Publicações Nacionais,1998, p. 23.

dos rios e ribeiros torrenciais, passaram a ser ocupados por comunidades tribais que deificavam os primeiros aglomerados que tendiam assumir a configuração de «castros». O pastoreio deixava na paisagem a marca humanizada dos espaços pisados e queimados nas planuras e nas encostas e cumeadas, mantendo-se preservada a selva das terras baixas onde se acoitavam as feras.”6

À falta de investigação arqueológica no domínio da botânica que permita saber em concreto as espécies vegetais presentes neste contexto geográfico, é possível perceber que não seria de contraste como deixa transparecer a escrita de Estrabão (63 ou 64 a.C. – 24 d.C.) sobre a Península Ibérica. Autor do amplo tratado Geografia, aquele autor situa os habitantes da Lusitânia a partir da visão que solidificava o Império Romano como o berço da civilização. Numa perspetiva de contraste entre o “eu” civilizado que leva a cultura, presente em todo o império, aos “outros”, povos bárbaros, incapazes de conhecer, pelo isolamento, o modo de vida romano, aquele autor faz uma descrição de menoridade cultural dos povos no Norte da Península. Refere “que alguns dos que habitam junto ao rio Douro vivem à maneira lacónica, utilizando lugares específicos para se ungirem duas vezes por dia, tomando banhos de vapor produzido por pedras aquecidas, banhando-se em água fria e fazendo uma única refeição diária, com limpeza e simplicidade. Todos os habitantes das montanhas são frugais, bebem água, dormem no chão, deixam o cabelo cair pelas costas abaixo, à maneira das mulheres, mas combatem cingindo as frontes com uma fita. Comem sobretudo carne de bode e é um bode que sacrificam a Ares, e também cativos de guerra e cavalos; e fazem ainda hecatombes de cada espécie, à maneira grega (como diz Píndaro: “de tudo se sacrifica à centena”). (…) Os habitantes das montanhas, durante duas partes do ano, utilizam bolotas, depois de as terem secado e triturado; logo as moem e as transformam em pão, de modo que se conservem por algum tempo. E utilizam também cerveja, mas têm falta de vinho: o que arranjam, todavia, depressa o consomem, banqueteando-se com os parentes. Em vez de azeite, usam manteiga. Tomam a refeição sentados, em bancos construídos em torno das paredes, e acomodam-se de acordo com a idade e a honra (a refeição circula) e, enquanto bebem, dançam em círculo ao som da flauta e da trombeta, mas também saltam e põem-se de cócoras. (…) É este o modo de vida dos habitantes das montanhas (…).” 7

Suportado num olhar distante, quase interlocutor do povo que queria justificar a conquista do território da Ibéria, Estrabão salienta um conjunto de elementos que dão uma descrição parcial do que seria a alimentação na época. Na verdade, como refere aquele autor, da rotina alimentar faria parte a carne de bode (e de cabra, por suposição), mas as evidências arqueológicas permitem incluir também o gado ovino, bovino e suíno. 8

A bolota teria um importante papel na dieta dos povos que habitavam a Lusitânia, pois que correspondiam a um produto que a natureza providenciava e que era de fácil conservação, contudo, tal a observação de Estrabão centra-se na necessidade, quer de demonstrar o estágio selvagem deste povos procurando determinar a escassa atividade agrícola dos mesmos, quer de levar a marca da civilização pela transformação da natureza. Era preciso expandir o trigo enquanto cereal de maior valor na cultura gastronómica do Mediterrâneo, até para benefício do próprio Império. Na verdade, evidências arqueológicas permitem constatar a utilização de cereais como o trigo,

6 CALDAS, Eugénio de Castro – A Agricultura na História de Portugal. Lisboa : E.P.N. – Empresa de Publicações Nacionais,1998, p. 23.

7 DESERTO, Jorge e PEREIRA, Susana da Hora Marques – Estrabão, Geografia. Livro III: introdução, tradução do grego e notas. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6501764/, pp. 63,64 e 65.

8 DESERTO, Jorge e PEREIRA, Susana da Hora Marques – Estrabão, Geografia. Livro III: introdução, tradução do grego e notas. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6501764/, pp. 63,64 e 65.

o milho miúdo, a cevada, e ainda, o cultivo de favas e ervilhas. 9 Estrabão sustenta a sua apreciação do pão de bolota que os habitantes da Ibéria comeriam por oposição ao pão de trigo tão afamado no território do Império Romano. Levar esta cultura do pão de trigo era também política que justificava a expansão do Império.

Assim, as palavras de Estrabão terão de ser incluídas num discurso justificativo de ocupação do Norte da Ibéria, sendo que a arqueologia permite concluir a existência de uma rotina alimentar diversificada e já centrada em exploração agrícola do solo. No que respeita ao espaço geográfico que, atualmente, corresponde ao território do concelho de Valongo, é de concluir que, nos aglomerados castrejos, certamente, se faria o cultivo de cereais como o trigo e a cevada, ainda que a bolota pudesse integrar a dieta. É, por isso, importante evitar uma perspetiva estereotipada antes e após ocupação romana da Ibéria que evidencia uma situação de contraste entre os hábitos da cultura “civilizada” romana e as rotinas selvagens dos “bárbaros”. Contudo, há que aceitar que, embora existisse já o hábito de consumo de pão feito, ora com vários cereais onde se inclui o trigo, ora com bolota, a entrada e ocupação romana trouxe uma mudança de paradigma no que respeita aos modos de vida.

A ocupação romana trouxe a transformação da ocupação do território e dos hábitos do quotidiano. Habituados ao alto da montanha, resguardados pela visão ampla permitida pela altitude e a salvo de perigos vários, com a vinda dos romanos, os habitantes castrejos do Norte da Ibéria foram obrigados a descer para a planície. Do modo de vida montanhês, sucedeu-se um outro aproveitamento das terras baixas, a utilização para a agricultura. Orlando Ribeiro sintetiza que “a romanização manifestou-se em todo o território português por uma profunda transformação das paisagens e modos de viver. Ao povoamento das colinas da época castreja sucedem as villas rusticas – isto é, quintas – nas terras baixas, germes de povoações maiores. A telha substituiu na cobertura das casas o colmo, a lousa ou o barro, o ladrilho o chão de terra batida. A economia de montanha, com episódicas culturas de cereais nas encostas e larga utilização de produtos dos bosques, cedeu lugar ao aproveitamento intensivo dos bons solos da planura e do vale com emprego regular do arado de madeira. Se não se introduziram plantas novas, desenvolveu-se o cultivo do trigo, da vinha, da oliveira, das árvores de fruto (…). Rasgaram-se estradas, (…) surgiram indústrias – olarias, pedreiras, minas, salgas de peixe, tecelagem doméstica.”10 É a oficialização da mudança no modo como as populações se relacionavam com o meio ambiente. Se até à vinda dos romanos, permanecia uma complementaridade entre a prática agrícola e o aproveitamento da montanha, após a ocupação, as elites que coordenam a ordenação do território vão requerer a quem vivia na montanha a deslocação para a planície de modo a trabalhar a terra e dela retirar os frutos tão apetecidos. Da montanha, as comunidades desceram para o vale ficando aquela recurso para exploração esporádica. “O alto dos montes, onde os castrejos praticavam a agricultura, volveu-se maninho e cobriu-se de arbustos, a floresta nunca se reconstituiu. Mas nas encostas, o carvalho alvarinho e o castanheiro misturaram-se ao tojo das bouças, onde cada um se abastecia de lenha e de mato para estrume e cama dos gados.”11

Esta mudança de paradigma é, no contexto do concelho de Valongo, de grande relevância, pois que, tendo sido aquele território desejado pelos romanos devido

9 DESERTO, Jorge e PEREIRA, Susana da Hora Marques – Estrabão, Geografia. Livro III: introdução, tradução do grego e notas. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6501764/, p. 65.

10 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011, p. 86 e 87.

11 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Letra Livre, 2011, p. 155.

às reservas de minerais, nomeadamente de ouro, a montanha terá ficado para a exploração mineira, enquanto a planície se transformou num vasto campo de produção agrícola onde os solos férteis eram coadjuvados pelo acesso à água. Com a ocupação romana (século I d.C. e séc. IV d.C.) os aglomerados populacionais, antes situados a meia encosta, são deslocados para o vale reservando-se a montanha para a exploração de ouro. “Enquanto alguns povoados castrejos funcionariam como pontos de controlo, há uma deslocação do povoamento para a meia encosta ou mesmo para zonas mais planas, emergindo, concretamente, os povoados abertos e os povoados/oficinas junto aos locais de exploração do ouro.”12

Se a presença dos romanos no território do concelho de Valongo tem sido muito valorizado pelas reservas auríferas do seu subsolo, pois que se sabe que um dos motivos da expansão romana para a Ibéria era o acesso a recursos da extração mineira, a oportunidade de aproveitamento do solo para a agricultura terá, igualmente, despertado a atenção do Império. Refere Estrabão, a prosperidade, no Norte da Ibéria, em pepitas de ouro, mas também em frutos e gado. 13

Por isso, é de aceitar que com a romanização do território tenha acontecido um investimento na potencialidade agrícola de todo o território com claro aproveitamento dos recursos existentes. As terras férteis junto aos rios terão atraído sobremaneira um povo habituado à prática agrícola e aos frutos da terra. “O que não oferece dúvida ter chegado com os Romanos ao território hoje português, foi a primeira mensagem da Agronomia como Ciência ao serviço do bem comum.”14 A presença de uma elite hierárquica capaz de organizar a ordenação e exploração do território tendo em conta os interesses do Império obrigava à produção de bens alimentares capazes de satisfazer os hábitos do povo conquistador. Neste contexto, a produção de cereais como trigo, centeio e cevada, de legumes e leguminosas já presentes na dieta romana foi incentivada e melhorada.

Não só se aumentou a produção agrícola associada aos cereais, por consequência da aplicação de novos conhecimentos agrícolas e formas inovadoras de utilização do solo, como se verificou uma disseminação da prática da panificação com importação de saberes-fazer já dominantes noutras partes do Império. A produção de pão recebe novo incentivo de conhecimento técnico e de receituário associado. Embora as fontes sejam escassas em relação à prática da panificação na Península Ibérica, afigura-se como consequência natural que a presença de uma estrutura social representativa do poder de Roma exigisse a importação do estilo de vida a que estava habituado, nomeadamente, na alimentação. Tendo em conta a importância que a panificação tinha, no mundo clássico, nomeadamente em Roma, é de esperar que tenham sido incentivadas novas práticas de produção de pão.

Os tempos que se seguiram à derrocada do Império Romano trouxeram a progressão do desnorte pelo conflito entre os povos bárbaros e a desorganização das várias estruturas que asseguraram a romanização. Contudo, para além das lutas e conflitos que se sucederam entre o desfalecer do Império e a progressão dos povos invasores, permaneceu a crença de que a agricultura seria determinante para a sobrevivência dos povos. “Daí por diante, quando a paisagem rural era ferida pelas guerras, havia de permanecer o que Alberto Sampaio referiu como «reminiscência

12 Plano de Gestão do Parque das Serras do Porto – Relatório de Estudos Prévios. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível em: https://www.altorelevo.org/web/images/Documentos_anexos/ PSeP-Estudos_Previos(Fev2018).pdf. p. 255.

13 DESERTO, Jorge e PEREIRA, Susana da Hora Marques – Estrabão, Geografia. Livro III: introdução, tradução do grego e notas. Coimbra : Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016. [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6501764/, p 61 e 62.

14 CALDAS, Eugénio de Castro – A Agricultura na História de Portugal. Lisboa : E.P.N. – Empresa de Publicações Nacionais,1998, p. 42.

vaga e confusa das antigas vilas romanas», e os homens, quaisquer que eles fossem, submetidos ou invasores, servos ou senhores, deitavam-se ao trabalho para repor a agricultura no lugar exato, a garantir a segurança e o alimento sem o qual a paz não pode ser, nem sequer, tentada.”15

Do mesmo modo que, com o ocaso do Império não se desvaneceram as práticas agrícolas, também o consumo do pão revela profundas raízes no âmbito dos povos presentes na Península Ibérica recebendo a glorificação através da consagração como símbolo religioso. É no âmbito da construção da identidade medieval, em que o Cristianismo assume enorme relevância como fundamento não só da organização religiosa, mas também política, que a produção do pão e a necessidade de assegurar o controlo das terras do pão, assumem primordial função.

A disseminação da fé cristã acontece, ainda, na vigência do Império Romano e, se inicialmente, se trata de movimentos esparsos também contrariados pela força da crença politeísta romana, no decorrer do século III, já se encontram comunidades cristãs devidamente organizadas. Quando Teodósio Magno (379-95) oficializa o Cristianismo como religião oficial do Império, já parte da Ibéria substituíra os deuses antigos pela figura de Cristo. As modificações políticas e religiosas com o desabar do Império trazem novas formas de organização do território onde se destacam as dioceses como residência e domínio dos bispos. É neste contexto que alguns lugares de culto, aos quais se associavam domínios territoriais, são anexados ao poder dos bispos afirmando-se, por outro lado, no decorrer do Alta Idade Média, a formação de uma classe firmada pelo poder militar, a nobreza. Esta passa a exercer uma importante função na defesa dos domínios religiosos.

É no âmbito de domínio senhorial por parte das estruturas religiosas e militares que surge a primeira referência a Valongo. “Em 897, o prócer Gondesindo Eres, filho do conde Ero Fernandes e da condessa Adosinda, portugalenses, faz doação ao mosteiro de Sanguedo (Sanguinhedo) das igrejas de S. Pedro de Couço, Santa Eulália de Gondomar e S. Martinho de Valongo.”16 Pinho Leal, na extensa obra Portugal Antigo e Moderno (1873-1890), refere que S. Martinho do Campo era conhecida, na data de 897, como S. Martinho de Valongo. “De facto, Valongo pertencia àquela freguesia, onde pagava certos direitos e côngruas que, com o nome de “cabaço”, a aldeia de Susão pagava aos párocos da referida freguesia.”17

Terá sido, ainda, durante a Alta idade Média que se formaram alguns dos aglomerados que, mais tarde, vieram a fazer parte do concelho de Valongo. Abandonada a média altitude por incentivo da romanização, verificou-se a concentração de comunidades nos terrenos planos entre as Serras de Pias e de Santa Justa, irrigados pelos rios Leça e Ferreira, dos quais tiravam farto proveito para a fertilidade dos solos. Suportados numa matriz de utilização agrícola do território, o qual era pertença de entidades nobres e eclesiásticas, concentram-se comunidades humanas que serão o embrião de povoados como S. Lourenço de Asmes (mais tarde, designado de Ermesinde), Cabeda, Rua, Ferraira, Transleça, Baguim, Alfena, Malta, Susão, Valongo de Cima, Campo e Sobrado.

Numa matriz de organização feudal do território, a correlação entre o poder militar e o poder religioso surgia como vínculo natural entre duas estruturas que se apoiavam mutuamente na afirmação do poder. A doação de edifícios religiosos e terras adjacentes constituía, na grande maioria das vezes, ofertas que visavam, quer a ligação entre o núcleo senhorial e o representante do clero, quer a conquista do

15 CALDAS, Eugénio de Castro – A Agricultura na História de Portugal. Lisboa : E.P.N. – Empresa de Publicações Nacionais,1998, p. 44.

16 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999, p. 21.

17 COSTA, J. C. P. D – História de Valongo. In J. D. Silva, C. Costa, & J. Costa (Eds.), Valongo, um salto para a modernidade... (pp. 8-37). Anégia, 2000, pp. 8-37.

Cacos.

perdão e salvação da alma. Esta última constituía crença fundamental para a sociedade medieval. De notar que, a doação de igrejas correspondia, igualmente, ao usufruto do que era produzido nas imediações do domínio do edifício e, por isso, à fé era acoplada a existência da obrigação de tributo sendo na sua maioria em cereais, base da alimentação.

O clero e a nobreza serão, no Norte de Portugal, as estruturas que irão administrar o território e quem, por consequência e conveniência, vai deter a posse das terras de cultivo, sobretudo, do pão. Para além da pequena parcela individual onde a horta ocupava de forma organizada todo o espaço de cultivo não sujeito a tributo, a grande propriedade, a que gerava semente de cereais como o trigo e o centeio, eram domínio dos que tinham poder. Era privilégio senhorial.

Com as terras de pão concentradas na mão de senhorio nobre e religioso, ao povo restava pagar os tributos pela utilização da terra. Ligados por um vínculo de enfiteuse era realizada “(…) uma escritura tabeliónica, em que o senhorio cedia o domínio útil das parcelas nela referidas, em geral, pela via do emprazamento, em três vidas: marido, mulher e um filho; em certas circunstâncias, não sendo novidade, a primeira vida era atribuída, em simultâneo ao marido e mulher, que à morte do último cedia, por escritura de nomeação, a titularidade a um filho, que, por sua vez, nomearia um seu descendente, terminando um ciclo familiar (…).”18 Os enfiteutas ficavam obrigados ao pagamento de um foro pelo arrendamento das terras.

Guiado pela expetativa da defesa do território e a proteção de um Deus justo, imparcial e soberano, o povo não deixava de cumprir o que lhe era exigido pelo domínio da terra, o pagamento de tributo do melhor que produzia e a aceitação do domínio feudal. Num contexto, de grande importância do pão enquanto suporte alimentar, os cereais eram a principal moeda de pagamento.

Neste contexto, importa referir que o território do concelho de Valongo terão sido terras de pão, pois que “o território agrícola, bastante fértil, com bons recursos hídricos foi disputado, desde a Idade Média, por diversos senhorios: a Coroa, a Igreja e alguns senhores laicos e outros de foro militar.”19

Neste âmbito, evidencia-se, já “em 1062, a freguesia de Valongo, cujo padroeiro foi dado às freiras de S. Bento de Rio Tinto – Mosteiro fundado por D. Diogo Trutisendes e seus filhos Trutisendo Dias, Gonçalo Dias e sua filha Onisce Dias que lhe legaram muitas rendas e o padroeiro de 12 igrejas, uma das quais era Valongo.”20 O padroado da igreja de Valongo exigia o pagamento de tributo, o qual a população cumpria com a entrega de parte da produção cerealífera. Isso mesmo traduz o texto de 1540 que descreve o auto de posse da renda da Igreja de Valongo aquando da integração do mosteiro de Rio Tinto no Mosteiro de São Bento de Avé Maria que refere “e logo ele corregedor se foi há igreja do dito lugar que é do mosteiro de Rio Tinto e estando presente D. Inês Borges abadessa que foi do dito mosteiro ele corregedor lhe deu logo a posse da dita igreja e frutos dela e apareceram logo Alavaro Anes e (…) todos fregueses da dita igreja de S. Mamede do dito lugar os quais todos pagam dizimo à dita igreja e deles foros de pam e dinheiro e o dito corregedor em sua pessoa empossou a dita D. Inês Borges da dita igreja e lhe deu a posse a dela (…)”. 21

As Inquirições de 1220 ao território do Entre Douro e Minho, de Trás os Montes e do Norte da Beira, ordenadas pelo rei D. Afonso II com o propósito de promover o poder real na administração do reino, vêm reforçar a necessidade de o monarca

18 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 240 e 241.

19 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 233.

20 Esboço Histórico de Valongo [S.L., S.N., 19--?].

21 ADP – Fundo Monástico, livro nº 4639, fl 201f.v.

perceber a titularidade da propriedade. Num reinado marcado pela disputa com membros da família real e com a hierarquia da igreja, os inquéritos traduziram-se na inventariação das terras e dos direitos pertencentes ao poder real, simultaneamente, averiguando o que estava sob a alçada do poder do poder da nobreza e do clero. 22

No âmbito do conflito aberto que D. Afonso II teve com o Arcebispo de Braga, Estêvão Soares da Silva, são efetuados os inquéritos na região de influência bracarense. São enunciadas, nestas Inquirições as Igrejas de S. Martinho de Campo e de Santo André de Sobrado, atualmente, freguesias do concelho de Sobrado. A primeira é indicada como pertencente ao padroado do Mosteiro de Vilela e, segundo o Censual da Mitra do Porto, aquela igreja andava taxada em 40 libras. A segunda tinha o padroado do Mosteiro de Landim e a taxação estava fixada, em 1230-1321 em 30 libras. 23

Estas primeiras inquirições destinadas a inventariar o património real evitando a transferência deste para o domínio de estruturas eclesiásticas foram, apesar de tudo, de alcance reduzido. Contudo, não terão deixado de inspirar D. Afonso III a repetir novas ações de inquirição sobre o território. Neste contexto, nas Inquirições de 1258, consegue-se um outra caraterização da estrutura social do Entre-Douro-e-Minho, “(…) não se limitando, como o fizeram as de 1220, a receber informações sobre o protagonismo da coroa e dos eclesiásticos. Mais abrangentes e rigorosas do que estas, não só iniciam a informação relativa a cada paróquia inquirida com a quantificação da totalidade das unidades de exploração agrária aí existentes, os casais, como procuram classificar socialmente os seus proprietários e a natureza dos bens e serviços pagos pelas famílias que as ocupam e trabalham.”24

Neste contexto, a titularidade da propriedade que é reconhecida é indicativa de que as terras do concelho de Valongo seriam cobiçadas pelos proveitos que davam.

Em São Vicente de Alfena, o senhorio das terras pertencia à Gafaria (Alfena), ao Mosteiro de Águas Santas (Baguim, Ferraria e Transleça), à Coroa (Cabeda e Ferraria).

Em S. Martinho de Campo, a titularidade das propriedades estava distribuída pela Coroa (Balselhas e São Gemil), Sé do Porto (Luriz e São Gemil), Mosteiro de Rio Tinto (São Gemil). Em São Lourenço de Asmes (Ermesinde), o senhorio distribui-se por Mosteiro de Santo Tirso de Riba de Ave (Ermesinde, São Lourenço, “Azomes”), Coroa (Ermesinde, S. Lourenço), D. Julião do Porto (Ermesinde). Em Santo André de Sobrado, Vilar pertence à Coroa, enquanto Sobrado tem terras que são propriedade da Coroa, Mosteiro de Santo Estevão de Vilela, Herdadores, Militium. Em Valongo, Susão é pertença da Coroa, Herdadores e do Mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto e Valongo tem terras pertencentes à Coroa, Mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto, Sé do Porto e D. Vierum 25 Como refere Joel Mata, “o território do atual concelho de Valongo era ocupado e explorado na sua vertente vocacionada para a lavoura da terra, por camponeses que aceitavam trabalhar para os diversos senhorios que detinham património rural muito significativo.”26

22 VILAR, Hermínia Vasconcelos – “As Inquirições no contexto do reinado de Afonso II” In: Andrade, A. A., & Fontes, J. L. (2015). Inquirir na Idade Média: Espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV) – Tributo a Luís Krus. (Coleção Estudos; No. 12). Instituto de Estudos Medievais (IEM). [consult. em 22 março de 2024]. Disponível na internet em: https://doi.org/10.34619/u42y-u2ip.

23 FERNANDES, Aires Gomes – Os cónegos regrantes de Santo Agostinho no norte de Portugal em finais da Idade Média: dos alvores de trezentos à Congregação de Santa Cruz. Coimbra : [s.n.], 2011. Tese de doutoramento em História (História da Idade Média) apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, p. 195 e 77.

24 MARTINS, Alcina Manuela de Oliveira – “O concelho de Valongo em meados do século XIII. Uma época de expansão.” In: Estudos em homenagem a Joaquim M. da Silva Cunha. Porto : Fundação Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 1999, p. 785.

25 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 236 e 237.

26 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 240.

As questões incluídas no inquérito determinado por D. Afonso III determinam a importância que as terras de pão teriam no cômputo das propriedades. Iria Gonçalves refere que só a propriedade régia foi tida em consideração, no entanto, outras informações adicionadas pelos inquiridores permitem uma perspetiva do que seria cultivado. “Na maior número dos casos ao monarca cabia uma parte alíquota da colheita e esta podia ser igual para todos os grãos, ou diferente consoante se tratasse de cereais de Inverno ou de Primavera, ou ainda, consoante o cultivo se efetuasse no monte ou nas terras chãs. Nesses casos, raramente as plantas em causa foram especificadas, cobertas todas pela designação genérica de «pão», algumas vezes substituídas por essas outras, um pouco menos abrangentes, de «segunda» ou de «Outono». Mas englobando o primeiro daqueles termos e todos os cereais com a única exceção do trigo, e os segundo as sementeiras de Outono, isto é, quase todos os trigos e centeios – só com exclusão dos tremeses – e ainda algumas cevadas, continuam a ser suficientemente latas para muito dificultarem a sua utilização. Resta, no entanto, um bom número de referências aproveitáveis (…) de modo a permitir-nos uma visão de conjunto.”27

Do resultado da investigação de Iria Gonçalves sobre as Inquirições de 1258, efetuadas Entre-Douro-e-Minho, resulta a conclusão de que, no século XIII, seria o centeio o cereal mais produzido. Por um lado, era o que mais se adequava ao tipo de solos predominante e ao clima e, por outro lado, permitia uma rentabilidade maior, quer em farinha, quer no ciclo de produção. O trigo, ainda que presente, seria sempre de menor produção. 28

Alcina M. de Oliveira Martins, no estudo elaborado sobre o território de Valongo nas Inquirições de 1258, refere o milho, o trigo e o centeio. 29 Ora, em primeiro lugar, há que acentuar que o milho referido seria referente às espécies milho miúdo e milho painço, pois que, à época, ainda não se teria disseminado a espécie zea mays. Contudo, ainda que a introdução do milho grosso tenha alterado a paisagem rural contribuindo para a sucessiva desvalorização dos milhos miúdo e painço, estes teriam presença no período medieval.

Por outro lado, há que perceber que o que é referido nas referidas Inquirições é o que era pago como tributo pelo uso da terra e não, necessariamente, o que era mais produzido e consumido. Por outro lado ainda, o território abrangido pelas Inquirições incluía, quer terrenos de solos diferenciados e sujeitos a influências climáticas diversas. Assim, no entrosamento entre a visão global do Entre-Douro-e-Minho e o território de Valongo, é de aceitar que haveria uma produção de centeio, trigo e milhos, sendo que, provavelmente, pela exigência do trigo quanto a solos e climas, seria a produção canalizada para a entrega de pagamento do foro e o centeio e os milhos utilizados no consumo comum.

Fiável será constatar, pelas Inquirições de 1258, que os frutos da terra seriam de extrema importância, quer para quem trabalhava a terra e ficava com uma parte da produção, quer para quem titulava a propriedade e recebia a grande parte da produção como pagamento de foro.

Será a partir do século XVI que as fontes disponíveis irão permitir informações mais próximas da produção cerealífera do concelho, nomeadamente, a partir das obrigações do pagamento de foros por parte dos que conseguiam contrato de

27 GONÇALVES, Iria – Por Terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de D. Afonso III. Porto : Afrontamento : CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”, D.L. 2012. p. 87 e 88.

28 GONÇALVES, Iria – Por Terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de D. Afonso III. Porto : Afrontamento : CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”, D.L. 2012. p. 92.

29 MARTINS, Alcina Manuela de Oliveira – “O concelho de Valongo em meados do século XIII. Uma época de expansão.” In: Estudos em homenagem a Joaquim M. da Silva Cunha. Porto : Fundação Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 1999, p. 796.

Tosta Azeda.

emprazamento das terras. “No Livro das Notas e Prazos Antigos, que abrange a segunda metade do século XV e a primeira metade da centúria de Quinhentos constam dois emprazamentos individuais sobre um campo e um meio campo, de aptidões agrícolas diferentes. O primeiro situa-se na freguesia de São Mamede de Valongo, que o comendatário Brás Brandão, do mosteiro de Santo Estevão de Vilela, outorgou a Afonso Gonçalves, mulher e um filho. (…) A renda era de baixo valor, no montante de um alqueire e três quartas de trigo, a entregar aos senhorios por dia de São Miguel de Setembro. A mesma renda pagavam Sebastião Martins, Catarina Gonçalves, sua mulher e o filho que lhes viesse a suceder, por um campo demarcado «por marcos com terra de Gonçalo Fernandes de Valongo Susão»”. 30

O foral 31 , dado por D. Manuel, em Évora, a I5 de dezembro de 1519 ao concelho da Maia e que integrava as terras de Vallongo da Estrada e Vallongo Jusão reafirma a obrigação de entrega de cereal (pão meado) como pagamento dos foros já presentes noutros documentos anteriores. “Dom Manuel, Per graça de Deus, Rey de portugal e dos algarves, daquem e dalem mar em Africa. E senhor de Guinnee e da comquista, Navegaçons e commercio de ethiopia, arabia, Persia e da India: A quantos esta nossa carta de foral dado para sempre ao concelho da Maya, virem, fazemos saber que posto que os foros e tributos e direitos Reaes desta terra e concelho da Maya fossem antigamente postos em inquirições da nossa torre do tombo e em algumas outras lembranças. Porem ao fazimento d’este foral nem se pagavam os ditos foros e direitos pelos ditos tombos nem escrituras antigas somente per prazos e outros conçertos e posses antigas em que os foreiros dos ditos direitos estão pacificamente com os senhorios e possuidores d’elles na feitura deste foral. (…) Titulo de Vallongo sussaão e Vallongo da estrada. Item ham de pagar estes logares, a saber os moradores deles que sam os reguengueiros antre todos de pam meado noventa e seis alqueires; E assy am de pagar antre todos mais vinte dous frangaãos e de ouos duzentos e vinte e dous capoões e com eles vinte ouos.”32

Assim, decorrente da atribuição do foral, no tributo pago como renda de utilização dos terrenos que integravam o conjunto da propriedade real em Valongo da Estrada, em 1519, sobressai a importância dos cereais, nomeadamente do pão meado, por comparação com o pagamento em moeda. Também a produção de galináceos tem aqui largo destaque com o pagamento em frangões, capões e ovos. No mesmo ano, em Valongo de Susão acentua-se, sobremaneira, a preponderância do pão meado pela elevada quantidade de alqueires entregue. De referir o pagamento de 18,5 alqueires por Gonçalo Martins, 27,5 alqueires por Gonçalo Fernandes, 16 alqueires por João Anes, o Velho, 3 alqueires por Luís Anes, 6 alqueires por Gonçalo Afonso, 6 alqueires por João Pires e João Anes, 3 alqueires por Maria Anes. 33 A diferença tão acentuada entre as quantidades entregues pelas propriedades de Valongo de Susão e as de Valongo da Estrada podem estar relacionadas com a maior capacidade agrícola das primeiras. Na freguesia de São Vicente de Alfena, no ano de 1519, as rendas pagas pela utilização da propriedade real situam o trigo numa posição preponderante, quer enquanto cereal único no pagamento, quer acompanhado por outro como o centeio ou o milho (pão meado). O centeio, será a seguir ao cereal alvo, o de maior destaque. 34

30 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 258.

31 SANTANA, Maria Olinda Rodrigues – Liuro dos foraes nouos da comarqua de Entre Douro e Minho : contextualização histórico-cultural e edição paleográfica. Vila Real : Fundação para a Ciência e a Tecnologia : Centro de Estudos de Letras, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2014.

32 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 129 e 130.

33 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 308 e 309.

34 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 310.

Ainda em 1519, na freguesia de São Lourenço de Asmes, numa propriedade titulada pela Coroa, cumpria o tributo de dois alqueires de trigo. Contudo, nesta freguesia era o Mosteiro de Santo Tirso de Riba de Ave que tutelava a maioria das terras de cultivo. Importa notar que, neste caso, surge o milho como protagonista na entrega dos foros. De todas as propriedades daquele cenóbio emprazadas a diversos enfiteutas, distingue-se o milho como cereal de pagamento. De realçar que, em três emprazamentos, para além do pagamento em milho, há, igualmente, a obrigação de entregar pão terçado que, se supõe, integrar o milho, o trigo e o centeio. 35

Tendo em conta a data das fontes (1519), não é expetável que o milho a que se referem seja a espécie zea mays que se veio a disseminar com grande intensidade pelo Minho após o século XVI. Neste caso, surge como fiável a indicação de que seria milho miúdo ou painço, as variedades que se conheciam na Europa medieval antes da introdução da espécie vinda da América Central. Não deixa de ser relevante reter a singularidade deste caso, já que traduz uma situação em que o trigo e o centeio não constam da prioridade da entrega de tributo.

Por decisão de D. Manuel I, em 1518, é mandado construir o mosteiro de S. Bento de Avé-Maria do Porto com o propósito de “«incorporar perpetuamente os quatro antiquíssimos mosteiros de religiosas benedictinas»: S. Cristóvão de Rio Tinto, S. Salvador de Tuias, S. Salvador de Vila Cova de Sandim e Santa Maria Maior de Tarouquela. Concluídas as obras em 1527, somente no ano de 1535 se procedeu à transferência das monjas dos quatro mosteiros para a nova Instituição, tendo o rei D. João III (1502-1557) designado como primeira abadessa perpétua, D. Maria de Melo, «pessoa tão cheia de Virtudes, e de merecimentoz, como era preciso para governar quatro Rebanhos de Epozas de Christo que de quatro Montanhas se vinham ajuntar neste novo Parayzo».”36

Nos finais do século XVI, por ocasião do levantamento feito pelo juiz do Tombo dos Bens do que seria o património do Mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto, incorporado este em 1530 no Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, são identificados em Valongo de Susão duas famílias que detêm o direito de exploração de 26 prédios agrícolas. Estes, independentemente da rentabilidade agrícola conseguida, todos os anos estavam obrigados a pagar as rendas em trigo, pão meado e duas galinhas. 37

Em 1571, escritura de emprazamento de terras, pertencentes ao Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, a Margarida Anes, de Valongo da Estrada, estabelecia o pagamento de uma renda de um alqueire de trigo, três alqueires de pão meado (trigo e centeio) e três galinhas. 38

Nos documentos do Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto consta, datado de 1593, assinatura do termo que relata “(…) que da dita igreja (de Valongo) se paga de centúria ao senhor bispo e cabido da Sé do Porto 30 alqueires de pão meado, 3 alqueires e 3 quartos de trigo e 118 réis em dinheiro e de direito de visitação 130 réis. E logo a requerimento do procurador do mosteiro de São Bento fez o dito juiz pergunta ao vigário da dita igreja de São Mamede do lugar de Valongo quanto tinha de porsão e ordenado em cada um ano por curar a dita igreja e ministrar nela os sacramentos assim

35 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 313.

36 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Volume I, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, p. 26.

37 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 279.

38 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 247.

em dinheiro como em pão, (…) e por ele foi dito o seguinte: disse que era cura e capelão da dita igreja de Valongo e suas ermidas com 4 mil réis de porsão. Declarou que além da dita porsão declarada acima por ser pequena lhe acrescentaram outros 10 cruzados e mais 30 alqueires de pão meado (…)”. 39

Numa vedoria realizada em 1605 por ordem do Mosteiro de Santo Estevão de Vilela identifica que, na aldeia de Vilar, da freguesia de santo André de Sobrado, o meio casal de Cimo de Vila vago por morte de Graça Domingues é passado para o seu filho com obrigação de pagamento de trigo, milho, centeio, cera, uma galinha e dinheiro.

O meio casal do Paço, na mesma aldeia que, em 1606, passa para a filha dos enfiteutas por renúncia destes mantém a renda de sete rasas de pão meado, duas galinhas e meia libra de cera. 40

Um outro emprazamento feito a Jerónimo Pedro, realizado em 1625, de terras da freguesia de Santo André de Sobrado pertencentes ao Mosteiro de Santo Estevão de Vilela obrigava à entrega de trigo, milho, galinhas, ovos, cera, mel e carne de porco. 41 Do mesmo mosteiro, documento de emprazamento datado de 1603 fala da produção de trigo, azeite, frutas, soutos e vinha.

Na verdade, a estrutura económica assente no privilégio da posse da terra foi, até à imposição do liberalismo, o pilar gerador de riqueza. Importava ter a propriedade para dela retirar usufruto em bens, nomeadamente, cereais como o trigo, o centeio, o milho e a cevada, todos eles de extrema importância na dieta medieval. Um grupo restrito detinha a propriedade que, depois, arrendava a quem a trabalhava. A estes cabia o trabalho e, nem tanto, os benefícios da exploração já que ficavam obrigados ao pagamento de rendas nem sempre justas, pois que não respeitavam as dificuldades do trabalho agrícola.

Numa sociedade em que o pão era o «alimento» do corpo e da alma importava conseguir os cereais necessários a estabelecer uma produção contínua. Por isso, a angariação de rendas em cereais era tão importante. Os dados coligidos por Joel Mata permitem identificar a preponderância dos cereais no pagamento dos foros dos emprazamentos feitos com os terrenos do Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto. “No seu conjunto, as rendas pagas nas várias freguesias, somente em espécie monetária, representavam cerca de 13% do total dos registos; entre os cereais dominava a recolha de trigo (43%) em relação ao centeio (32%). Se incluirmos o pão meado, o cereal alvo continuava a ser o mais relevante atingindo cerca de 25% das entregas cerealíferas, seguindo-se o centeio e, por fim, o pão de mistura.”42 Tomando como referência somente os dados da freguesia de S. Martinho do Campo é evidente a preponderância do trigo (38%) seguido do centeio (29%). O pão meado, que usualmente representava a entrega de dois cereais como o trigo e o centeio, representa 23% das rendas e o pão terçado (entrega de 3 cereais) ocupa 10% do total. 43

Também através da existência de moinhos é possível averiguar a importância de Valongo como terras de pão, já que para além da produção, também nos rios Ferreira e Leça se aproveitava a força motriz da água para mover as mós dos moinhos. A propósito do arrolamento efetuado pelo Mosteiro de São Bento da Avé Maria do Porto, nos finais do século XVI, na freguesia de São Mamede de Valongo são identificados duas estruturas moageiras, uma destinada ao trigo e outra ao cereal de segunda,

39 ANTT – Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto, II, Livro 12, fl.3v e 5v.

40 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, pp. 292 e 293.

41 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 254.

42 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 302.

43 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 303.

o mesmo que dizer, todos os outros cereais. 44 Em S. Martinho do Campo, em terras pertencentes ao mesmo mosteiro, se verifica a existência de vários moinhos para a moagem do «pão». A referência genérica a «pão» não deixa perceber quais seriam os cereais envolvidos, contudo, “(…) o casal do Moleiro, na aldeia de Quintã, no qual havia um moinho de três mós, duas alveiras e uma negreira (…)”45 permite entender que seriam ali moídos trigo, centeio e, provavelmente, milho e cevada. As mós alveiras destinavam-se, exclusivamente, à moagem de trigo que permitia obter a farinha alva com o qual se fazia o pão mais solicitado. As mós eram chamadas de negreiras quando moíam cereais ditos de segunda, ou seja, aqueles com o qual se fazia o pão mais escuro e denso como o de centeio, milho e cevada.

As terras do concelho de Valongo terão sido terras de pão. Numa estrutura social em que os cereais eram base da riqueza individual, consequência da sua importância alimentar, as fontes consultadas esclarecem a relevância agrícola dos terrenos situados no atual concelho de Valongo, desde o período medieval. A constatação do trigo como cereal prioritariamente elencado no pagamento de foros não significa que seria aquele o mais produzido no território, traduz somente que a preferência de quem tutelava a propriedade ia no sentido da obtenção do cereal mais valorizado para a produção de pão. Com o trigo moído nas mós alveiras, fazia-se o pão alvo, não tão denso como acontecia com o de centeio. Tendo em conta que o senhorio das terras se divida entre a Coroa e alguns mosteiros, compreende-se que os mesmos, habituados ao consumo de pão branco, procurassem assegurar através das rendas o fornecimento adequado às necessidades alimentares. No entanto, a insistência de pão meado deixa entender que, nem sempre, seria possível conseguir trigo e que, a este, se juntava outros como o centeio ou o milho.

Olhando ao clima que predomina na faixa territorial que, hoje, é berço do concelho de Valongo, conclui-se que as sementes de trigo deitadas à terra não teriam ali a mesma rentabilidade que noutras geografias de menor influência atlântica e de temperaturas mais quentes. Não terá sido, por isso, aquele território lugar de terras de trigo. Este era cultivado, nos terrenos que ofereciam melhor localização para a exigência daquele cereal, contudo, não era este o que predominava. Tendo em conta as referências a pão meado nas descrições dos foros, é de supor que o centeio, assim como os milhos miúdos e painço, fossem os cereais mais presentes na alimentação local. No entanto, nunca o trigo ali faltou, sobretudo, para a intensa e pujante atividade da panificação que ali se desenvolveu.

Terá sido a introdução da espécie zea mays que, no decorrer do século XVI, terá contribuído para uma alteração da paisagem rural e uma mudança na alimentação. Como já referido, o milho grosso, também designado de maçaroca ou milhão pela diferença morfológica com os milhos medievais miúdo e painço, potenciou a promessa de abundância. Não só aquele cereal encontrou no Minho Litoral condições climatéricas adequadas à sua propagação por comparação com o trigo e com o centeio, como cada semente gerava uma maçaroca carregada de novas sementes num curto ciclo de produção. Orlando Ribeiro fala da revolução do milho por todo o Minho e descreve a mudança que este cereal institui nos modos de vida local. 46

44 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 322.

45 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 325.

46 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa : Letra Livre, 2011.

O Pão, Alimento e Redenção.

Alimento essencial dos povos, há quase 14 000 anos, o pão afigurou-se como a prioridade de quem possuía o poder da organização política e económica. As terras de pão eram as mais cobiçadas e em nome da necessidade de produção de cereais, desbravam-se florestas e aumentava-se a área dedicada a agricultura. Estrutura marcante ao longo da história dos territórios associados ao Mediterrâneo e sob a sua influência, o pão transformou-se em elemento simbólico.

Foi em torno do pão, conjuntamente com o vinho, outro alimento bem demonstrativo da capacidade transformadora do ser humano civilizado, que a sociedade europeia ocidental estruturou o seu sistema cultural. Herdeiro da força simbólica que ganhou na Antiguidade Clássica onde foi deificado e patrocinado pelas deusas Deméter e Ceres, o pão, com o florescimento do Cristianismo, foi sacralizado como alimento redentor, capaz de permitir a comunhão entre o ser humano e Deus.

Elevado a alimento sagrado, o pão constitui-se como pilar absoluto da vida material e espiritual, a ele sendo dada prioridade absoluta. Contudo, no todo em que aquele alimento se materializava, também a hierarquia se fazia sentir. Desde sempre, o pão de trigo, alvo e fofo, foi o que se distinguiu como alimento maior. Os pães meados ou terçados, feitos com mistura de cereais, nunca terão conseguido atingir o caráter sagrado do pão de trigo. Terão sido, sempre, remédio contra a fome, marca estigmatizada de quem estava na base da pirâmide social.

De alimento no quotidiano e suporte da vida humana, a alimento espiritual e redentor da condição imperfeita de cada ser humano, a pão votivo, capaz de redimir as faltas e abrir caminho à salvação. É neste contexto que o pão se transforma em voto ao sagrado, espécie de apelo para a salvação no mundo após a morte. Transversal a todo o universo feudal e cristão, o pão como oferta votiva afirma-se, igualmente, no concelho de Valongo como elemento salvador da alma, espécie de garantia de perdão pelas faltas cometidas.

Neste concelho, era prática, por morte de um familiar, a oferta do «cesto», sendo tal uma forma de pedir pela salvação espiritual do falecido, evitando a permanência no limbo da justiça de Deus. Joel Mata sinaliza, nas fontes lidas, a importância do pão na constituição do cesto. “Maria Gonçalves, mulher de Gaspar Fernandes, o manco, da aldeia de Vilar (São Lourenço d’Asmes), não dispôs de testamento mas seus filhos e herdeiros deram de esmola três alqueires de pão e a obrada do «cesto» no valor de oito vinténs e «hum carneiro que valeria doze vinténs». (…) Na aldeia de Vilar, o morador António Fernandes (1654) destinou aos pobres uma obrada de dez alqueires de pão e a «obrada do dia do cesto» no valor de seiscentos e cinquenta mil réis, e na aldeia de Ermesinde, a freguesa Maria João (1662) instituiu a obrada de cinco alqueires de milho «estreme», um carneiro de um ano de idade e por capar e de obrada do cesto cento e oitenta réis.”47 De destacar que, se nos dois primeiros exemplos, a oferta se faz em pão permitindo concluir que estamos a falar de trigo, neste último, a referência é ao milho estreme, permitindo concluir que a oferta seria apenas de milho. Importa referir que, em meados do século XVII, altura a que se reporta a referência, o milho dito de maçaroca ou milhão era já o cereal dominante nas terras a norte do Douro transformando-se no «pão» para muitas comunidades. Assim, é interessante notar que a oferta, no caso referido, se faz no pão que alimentava a comunidade, o milho, e não de trigo, o cereal mais valorizado à época.

Em 1690, o padre José de Magalhães escreve na abertura do Libro de Baptismos e Casados e Crismados da freguesia de São Lourenço d’Asmes “achey por estillo nesta freguesia observado que nos enterramentos que os padres tinhão no primeiro officio

47 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 227.

de corpo prezente tantos alqueires de pão o acompanhavam a sepultura de obrada para o parocho e hum carneiro e o sesto mas sendo cabaneiro não tem carneiro. Falecendo no principio da somana no seguinte domingo são obrigados a ofertar e (?) o sobrado numero de alqueires achey ser the des que passando os padres de 20 nem por isso tem o parocho de obrada mais que 20 alqueires.”48 A presença do pão no conjunto dos bens ofertados pela morte é sinal evidente da sua relevância simbólica e redentora. Igualmente, é isso que se infere da ordem incluída no testamento do abade António Manuel Baldaia de Magalhães, em 1755, ficando os testamenteiros obrigados “(…) que no dia do seu enterro se dece de esmolla a cada pobre a vinte reis e cento e vinte alqueires de pam e vinho se reparteria pellos desta freguesia (Santo André de Sobrado) (…).”49 A distribuição de pão seria, neste contexto, um apelo ao sagrado pela pacificação e perdão dos pecados.

Em São Mamede de Valongo, também as ofertas de pão por altura da morte correspondem a um voto pelo socorro e paz da alma do falecido. Em 1636, na hora da morte, Maria Francisca transmite aos familiares que seja dado obradas no valor de um tostão de pão, um de vinho e um carneiro em cada um dos ofícios em trigésimo dia de aniversário. Em 1638, no passamento de Margarida Marques é oferecido um carneiro, cento e vinte réis de pão e duas canadas e meia de vinho. Em 1641, por ocasião da morte de Maria Benta é dado aos pobres da freguesia cem réis de pão, um carneiro e três canadas de vinho. 50 Joel Mata refere o hábito das “missas de pão, vinho, azeite e moeda”51 que, no contexto da estrutura social da época, permitiam aliviar as carências dos pobres e famintos com a distribuição de alguns bens alimentares tão essenciais à sobrevivência humana. Ainda que diminuta e circunstancial, a dádiva de pão pelos que menos tinham era sentida como um alívio nas dificuldades terrenas, enquanto garantiam aos crentes a paz na vida após a morte.

Em 1760, perante a morte inesperada do padre José António Sol (S. Lourenço d’Asmes) é entregue dez alqueires de pão, um carneiro e o cesto numa tentativa de remissão dos pecados cometidos em vida. Na mesma freguesia, lugar de Igreja, pela morte da mãe, o padre António José da Fonseca determina a distribuição pelos pobres de sete alqueires de pão, um carneiro e o cesto. Na aldeia de Sá, a viúva Josefa Ferreira, por morte do marido, entrega ao pároco local dez alqueires de pão e o cesto. 52

Joel Mata identifica nas fontes históricas que a “(…) viúva Eufrásia de Oliveira (1814) reservou cerca de sessenta e seis mil réis para a celebração de duzentas missas «dentro do espírito do sistema do dom e do contra-dom», mas para os pobres mencionou pouco mais do que três alqueires de pão.”53

Ainda que a evolução social e cultural tenha feito cair em desuso as ofertas de pão, a sua presença na memória histórica do concelho é evidência da importância do pão como elemento redentor, consequência do posicionamento matricial enquanto fonte de vida.

48 MARTIN, José Luís – “La pobreza y los pobres en los textos literários del siglo XIV”. In: Actas das primeiras Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, Tomo II. A Pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média. Lisboa : Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Históricos, 1973, p. 588.

49 ADP, E / 27 / 4 / 6-21, fls. 204v-205.

50 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 230.

51 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 231.

52 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 228.

53 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, pp. 226 e 227.

Valongo e o seu Pão como fruto de um Território.

Ainda que Valongo, enquanto núcleo populacional possa ser situado em tempo anterior ao neolítico, com particular destaque para o período da ocupação romana onde teve importante papel enquanto fornecedor de recursos auríferos, será com a atividade da panificação que o concelho se vai desenvolver e vai crescer como centro urbano de grande relevância. Na génese de tal preponderância estará um conjunto de circunstâncias que fez desenvolver e aperfeiçoar a arte da panificação.

Na história e cultura gastronómica, interroga-se sempre o momento de origem de uma determinada arte culinária. Questionam-se as circunstâncias que fazem nascer um produto que, mais tarde, perdura como símbolo de uma comunidade. É tentador ouvir os ecos de um ego local que propaga uma história onde os atributos se transformam em mito. Contudo, há muito que a história da alimentação se afasta do culto da origem das receitas, aproximando-se, antes, de uma abordagem que deixa sentir a importância das condições físicas e humanas.

É preciso, por um lado, olhar as marcas da geografia física e sentir que força impregnaram às escolhas de um povo. Por outro lado, serão as comunidades sempre a força maior das escolhas tomadas. Para além das limitações territoriais, do vale que alonga ou da serra que ampara, tanto quanto circunscreve, serão sempre as pessoas que farão a diferença. Pela criatividade na conquista de soluções, pela ousadia na procura de caminhos, pelo que transformam em cultura a partir do que a natureza lhes dá. É essa a força da gastronomia, as pessoas.

Muito mais do que a circunstância física ou cultural, são as pessoas que transformam essas mesmas circunstâncias e as condicionam a seu favor. A oportunidade marca a existência humana, mais do que a dificuldade. É a capacidade de ouvir a condição natural, o mapa físico, e criar cultura, a maior oportunidade da espécie humana. Do ponto físico à marca cultural, onde os sentimentos tão caraterísticos da evolução da humanidade imprimem e definem caminhos nas escolhas do que se faz. É a filosofia, muito mais do que a história que permite apreender o sublime e o belo desse ponto de transformação.

Em Valongo, o produto pão desenha-se como uma consequência da arte humana das pessoas que habitaram naquele lugar. É esse o encanto de todo o caminho traçado, de toda a história desenhada. Da semente, o pão, fez-se raiz profunda que se propagou, em ramos vários, linhas que seguiram as opções que o tempo obrigou a fazer. O extraordinário caminho que o pão de Valongo fez, deve-o às pessoas, aquelas que o sentiram como uma semente de um percurso maior. Poderia ter sido mais um pão, igual a tantos outros que, pelo país, alimentava as comunidades. Afinal, desde a Antiguidade Clássica, era aquele o pilar alimentar dos povos, o alimento do quotidiano, do sagrado e do profano, do trabalho e da festa. Mas, em Valongo, o pão fez-se glória de uma arte que nasceu da rotina e se transformou em produto sublime. É essa a história do molete, da sêmea, da regueifa, do biscoito.

Da semente, as pessoas fizeram a arte. Da moagem, da amassadura, da cozedura, da transformação da sobra em alimento, da adaptação às necessidades, o grão de trigo deu frutos que entrelaçam fios de histórias de pessoas, famílias, comunidades. A glória do Pão de Valongo, é um traço firmado pela garra, ousadia, confiança e criatividade do povo daquele concelho. É essa a sua solidez, firmeza e força motriz.

Dele, do pão de trigo, se expandiram linhas onde o receituário é somente camada que se acrescenta ao enunciado da criatividade. Outros braços cresceram e se fizeram firmes na cultura da gastronomia local. As rabanadas, a sopas seca, o bolo enrolado, o pão de ló. Pontos concêntricos que à origem retornam, ao pão.

Importa reter que na construção da arte da panificação, o embrião da atividade e o miolo de todo o desabrochar aconteceram em Valongo. O núcleo de padarias,

ainda que alimentado pela produção e moagem de trigo que acontecia nos arredores, concentrou-se em Valongo. O pão, aquele que será suporte financeiro para as famílias e base para a riqueza, vai sempre estar ligado aquele lugar. Foi Valongo que fixou a reputação e as pessoas que a fizeram acontecer. Este pão, fruto de uma atividade, pilar económico, base de sustento das famílias, será o pão base de uma atividade de panificação e comercial, aquele que irá crescer porque a sua reputação o fará voar para fora dos limites da freguesia de Valongo. Contudo, a produção ficará sempre agarrada ao lugar como acontece com os produtos que são fruto de um território. Podem surgir outros, mas a história de uns não se confunde com a dos outros. É essa a singularidade do produto, cuja atividade não migra para além das fronteiras do lugar. É essa a marca de um povo que é responsável por tal fenómeno.

Mas não será só o pão que se transformou em ícone de qualidade e que, durante séculos, alimentou a cidade do Porto e as comunidades do Termo desta cidade, que fazem a história do pão de Valongo. Nesta, também sobram linhas para o pão dos dias comuns, aquele que, todos os dias, nutria o corpo e pacificava a fome das comunidades do concelho, aquele que não era branco, nem de trigo, mas que era pão. A broa de milho, o pão para muitos, tem uma importância simbólica pelo afeto da mesa farta que aquele alimento proporcionava. É outro braço que se desenha, outra linha que desabrocha de uma semente comum, o pão, entendido como pilar alimentar. Este é o pão doméstico, aquele que, feito no regaço da família, encontrava no espaço da casa o seu pequeno feudo.

Do pão base de uma atividade comercial ao pão doméstico, do que se concentrou em Valongo e do que era reconhecido como pão pelo concelho, desabrocharam linhas que o levaram pelos caminhos da cozinha que transforma, cria, inova e modifica. Do pão sustento da atividade da panificação, as Rabanadas e a Sopa Seca. Do pão doméstico, o Bolo e as Papas. Do alimento ao simbólico, as hóstias feitas com o trigo, cujos restinhos eram aproveitados como alimento saboroso.

Do todo ao pormenor, da semente aos frutos, do pão ao molete, à sêmea, à regueifa, ao biscoito, à hóstia, à broa de milho e a um extenso receituário feito com o milho, pão para muitos os que dele dependiam, uma história de glória. Pelo sublime da transformação, da circunstância da geografia ao recurso sempre presente da inovação.

Não é a tradição do pão de Valongo suportada em verdades imutáveis e exclusivas ou em frases escritas em publicações históricas, é um desenrolar de vontades onde o vislumbre de novas possibilidades sempre foi acompanho do sabor que podia proporcionar. Nunca Valongo ficou fechada sobre o “Pão”, mas fez dele pilar, suporte, sustento para caminhos inovadores, diferenciados, onde a capacidade dos moleiros e moleiras, padeiros e padeiras, biscoiteiros e biscoiteiras, arrastou o fio da história e fez-se motor. Não de uma fábula encantada, de um mito atravessado na história da cidade, mas na vida real, concreta, que revela a potência de uma comunidade que nunca perdeu a capacidade de se reinventar.

Alicerçado no Pão, cresceu Valongo. É este fio que se pretende seguir e desbravar.

Valongo. O Milho e o Trigo. O Pão Doméstico e o Pão das Padarias. Olhando ao clima que predomina na faixa territorial que, hoje, é berço do concelho de Valongo, conclui-se que as sementes de trigo deitadas à terra não teriam ali a mesma rentabilidade que noutras geografias de menor influência atlântica e de temperaturas mais quentes. Não terá sido nunca, por isso, aquele território lugar de terras de pão de trigo. Este era, ali, cultivado nos terrenos que ofereciam melhor localização para

a exigência daquele cereal, contudo, não era este o que predominava. Tendo em conta as referências a pão meado nas descrições dos foros, é de supor que, durante o período medieval, o centeio, assim como os milhos miúdos e painço, fossem os cereais mais presentes na alimentação local.

A introdução da espécie zea mays, no decorrer do século XVI, terá contribuído para uma alteração da paisagem rural e uma mudança na alimentação. Como já referido, o milho grosso, também designado de maçaroca ou milhão pela diferença morfológica com os milhos medievais miúdo e painço, potenciou a promessa de abundância.

Não só aquele cereal encontrou no Minho Litoral condições climatéricas adequadas à sua propagação por comparação com o trigo e com o centeio, como cada semente gerava uma maçaroca carregada de novas sementes num curto ciclo de produção de quatro meses.

Na verdade, terá introduzido uma melhoria nas condições de vida pela facilidade com que se cultivava e pela nutrição que permitia. A disseminação da sua produção e a fartura permitida fez deste cereal a base da alimentação local. Capaz de ser utilizada para fazer pão, ainda que sempre com mistura de uma outra farinha como trigo ou centeio de modo a conseguir a devida liga, a farinha de milho mostrou-se muito versátil para o desenvolvimento de receituário que a passagem do tempo veio acentuar como fundamental na identidade gastronómica local.

Embora sem dados que permitam uma exaustiva análise no que respeita à introdução deste cereal na agricultura local, algumas descrições traduzem o crescimento do milho no panorama da produção agrícola. António Carvalho da Costa (1650-1715) descreve que “no mais alto da montanha está um poço altíssimo que de Inverno se seca e de Verão tem tanta água bem fria que com ela se regam muitos milhos”. 54

Serão as Memórias Paroquiais (1758) que irão traduzir a preponderância do milho grosso em meados do século XVIII. De reter que para Valongo, o pároco memorialista refere que “os frutos a maior quantia ham milho e centeio algum trigo milho branco e painço.”55 Já o pároco de São Lourenço de Asmes identifica que “os frutos que com maior abundancia recolhem os moradores nesta freguesia he milhão e das mais espécies pouco”. 56 Em Sobrado, regista-se “milam, centeio e grande copia de mel. Os moradores desta freguesia, se utilizam todos livremente das suas aguas para cultura dos seus campos reconhecendo por elas ao Abade hua pequena pensam de milho”57 A entrega de milho como pensão ao abade de Sobrado denuncia a preponderância da produção e a valorização social e alimentar do cereal que, neste caso, serviria de tributo. O pároco de Alfena descreve como principais produções “milham, senteyo, pouco triguo e milho meudo.”58 Em S. Martinho de Campo, as Memórias Paroquiais elencam o “milho grande e senteyo, deste menos.”59

Interessante relato é o que faz Joaquim Alves L. Reis faz da capacidade agrícola do concelho e da fertilidade do solo onde “(…) nelle se semeia o milho cujo producto anual sobe para cima de 150 carros, e se colhe centeio, embora não renda tanto, porque a maior parte é cortada em verde para alimento dos animaes, contudo atinge sempre uma grande quantidade de medidas. Há ainda muita abundância de feijão que se semeia por entre o milho nos campos. (…) As terras, principalmente semeadas de milho, são regadas pelas aguas de furnas e poços a que chamam presas. (…) Os mezes de sementeira dos milhos são os de abril, maio e ainda junho, chamando-se ao temporão

54 CARDOSO, Luís – Diccionario Geografico, ou noticia histórica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal e Algarve … que escreve, e oferece ao muito alto Rey D. João V nosso Senhor o P. Luiz Cardoso. Lisboa : na regia Officina Sylviana, e da Academia Real, p. 373.

55 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 38, nº 34, pp. 181 a 188.

56 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 33, nº 46, pp. 317 a 322.

57 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 35, nº 186, pp. 1385 a 1388.

58 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 2, nº 54, pp. 473 a 478.

59 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 8, nº 76, pp. 499 a 516.

milho de folha e ao mais serôdio milho de restibo. Quando é nas temporadas das sachas, grupos de mulheres e homens, velhos e rapazes, de largos chapéus de palha, se juntam nos campos, palrando e cantando, quasi como ao pôr do sol as aves em espesso choupo, e na época da colheita, que se estende pelos mezes de setembro e outubro, fazem-se as celebres e poéticas folhadas ou desfolhas, ora debaixo do sol ameno da estação de outonno, ora pelo meigo luar da noute, onde á porfia e com invejinha de creança se disputa a feliz invenção d’um rei ou rainha que dá a quem o encontra o direito de governar sobre o rancho encantador. Muitas vezes também serve de incentivo ao trabalho a crença, poucas vezes certa, de que no ultimo montão de espigas jaz para ser sofregamente devorada uma enorme melancia.”60

Se o milho grosso ocupou a paisagem, sobretudo as terras fundas junto aos cursos de água, permitindo a disponibilidade de grão para fazer o pão de milho, na transição do século XIX para o século XX, os mapas de produção permitem concluir que a produção de cereais era constante pelo concelho de Valongo e, embora, os valores relativos ao milho fossem superiores ao trigo e ao centeio, a diferença não era elevada. Em 1901, produziu-se 6 000he de trigo, 8 000he de milho e 5 000 de centeio. Em 1902, atingiu-se 6 500he de trigo, 7 500he de milho e 4 500he de centeio. Em 1903, conseguiu-se 7 350he de trigo, 8 500he de milho e 5 030he de centeio. Ou seja, os valores ainda que deixem transparecer o predomínio do milho e a menor preferência pelo centeio, traduzem proximidade entre o que seria a produção de uns e de outros. 61

Quando a análise contempla os valores de consumo, consegue-se uma visão mais alargada no que seria o destaque de cada cereal. Assim, no ano de 1901, foram consumidos 90 000he de trigo, 30 000he de milho e 6 000he de centeio. Em 1902, o trigo atinge 95 000he de consumo, o milho 32 000he e o centeio 6 500he. Em 1903, verifica-se o consumo de 98 500he de trigo, 35 000he de milho e 70 00he de centeio. 62

Apesar de limitados a apenas três anos, os valores indicados no que respeita ao consumo traduzem um claro protagonismo do trigo por comparação, quer com o milho, quer com o centeio. O cruzamento entre os mapas de produção e os mapas de consumo permite concluir que, no concelho de Valongo, o trigo e o milho ocupavam espaços diferentes sendo que, em cada um deles, cada um tinha a sua relevância.

Na verdade, se atendermos ao que a memória oral ainda hoje revela, percebe-se que o milho era o cereal com o qual se fazia o pão doméstico, sobretudo, nas zonas rurais do concelho. Era do milho, cereal mais acessível porque mais bem-adaptado às condições climáticas locais, que se fazia a farinha com que se amassava o pão. Para as famílias rurais, o pão era de milho. Joaquim Reis, em 1904, reitera que “o pão de que este povo se alimenta é de milho e trigo. Os pobres misturam com o milho, ora trigo, ora centeio para que o pão fique mais doce e agradável ao paladar.”63

Por seu lado, o trigo seria canalizado para a produção do pão que, em Valongo, era a atividade que gerava riqueza para muitas famílias. De notar que os valores de consumo apresentados, quer de milho, quer de trigo, em muito ultrapassam os de produção reiterando a ideia de que Valongo seria abastecido por cereal vindo de fora.

Os valores de consumo indicados traduzem dois caminhos divergentes, ainda que paralelos, na utilização do cereal. O milho ocupava o espaço de produção rural e assumia centralidade na mesa do agricultor, não só na forma de broa, mas também na utilização da farinha de milho para um diversificado receituário. O pão de milho, o pão doméstico reinava nos limites rurais de todo concelho, com exceção de Valongo.

60 REIS, Joaquim A. Lopes – A Villa de Vallongo. Porto, 1904, p. 316 e 317.

61 AHVLG / CMVLG – Mapa demonstrativo do cultivo e consumo de cereais no ano de 1903.

62 AHVLG / CMVLG – Mapa demonstrativo do cultivo e consumo de cereais no ano de 1903.

63 REIS, Joaquim A. Lopes – A Villa de Vallongo. Porto, 1904, p. 321.

Já o trigo era o cereal mais desejado porque dele havia necessidade para fazer o pão que era, depois, comercializado no Porto e seu Termo. Este era a base do sustento das famílias e era o grande protagonista do núcleo de Valongo. Entre o pão doméstico e o pão comercial, nunca o concelho se desuniu, antes viu a oportunidade de crescer, desenvolver e gerar riqueza.

Valongo. Terras de Pão. O Pão das Padarias. Tal como em todo o território português, as terras de Valongo terão sido geografia de pão. Pão que era alimento diário, ponto basilar do quotidiano de todas as camadas sociais. Os camponeses tinham no pão o seu principal sustento e dele precisavam para todas as refeições. Os estratos sociais ligados à nobreza e ao clero, também dele tinham necessidade, por isso, das terras que possuíam, mas que não trabalhavam, procuravam retirar o maior rendimento possível através dos emprazamentos que geravam rendas. Estas, na grande maioria dos casos, constituíam-se de cereais.

O pão presente na mesa real, nobre e eclesiástica terá sido, sempre que possível, de trigo. O pão alvo. Já, os camponeses e mesteirais teriam de se contentar com os pães meados, terçados e quartados, onde a complementaridade entre trigo, centeio, cevada, milhos miúdo e painço, terão permitido contornar os ciclos de produção irregular e contrariar a presença da fome. Após a introdução do milho grosso, o pão do povo, sobretudo das zonas rurais, passa a ser de milho. É o pão que se faz em casa e que alimenta toda a família.

Mas, se no concelho se assiste, como de resto no restante território a norte do Mondego, ao desenvolvimento do pão de milho como o pão doméstico da maioria das famílias, em Valongo, surge um importante núcleo que vai fazer da arte do pão o seu principal modo de vida e o seu principal símbolo cultural. O pão de trigo, privilégio das classes abastadas e das populações urbanas, surge como fenómeno ativo para gerar riqueza, mas também elemento cultural capaz de caraterizar o espírito de um povo. Sempre procurado, desejado e avidamente consumido, o pão de trigo representou para a população urbana do termo do Porto casa segura, na satisfação das necessidades alimentares e na conquista do prazer.

Nasce o pão comercial, aquele que vai alimentar o território adjacente, mormente, o incluído no Termo do Porto. Nasce o pão que se transmuta em múltiplas versões, no pão pequeno acessível, capaz de brilhar nas mesas ricas no acompanhamento do caldo ou conduto, e alimento portentoso da população trabalhadora sempre que recheado com o que havia à mão. Nasce o pão de domingo e dos dias de festa, feito regueifa delicadamente entrançada e enfeitada. Fina no paladar, suculenta e gulosa na textura, a regueifa, mimo das ocasiões festivas. Nasce o pão de ocasião, entretém de uma sociedade urbana com disponibilidade para comprar mimos feitos biscoitos, o pão, que é doce ou não, acompanha o descanso relaxado do palato. Nasce a tosta, entre a azeda e a doce, a versatilidade de um pão que na ânsia de se fazer duradoiro se descobriu prazeroso.

Do pão que era alimento fiel, determinante, insubstituível, fundamental, ao pão que é prazer, mais do que necessidade, que revela a disponibilidade de uma cidade e o caráter de um povo que, pelos caminhos do Termo do Porto, fez do pão a sua vida e da padaria um culto à perfeição.

Entre o Porto e Valongo, os Traços de uma Geografia Física e Social no fio da História do Pão.

Entre o centro e as suas periferias, desenham-se círculos que confluem uns nos outros, Tal é a mole humana que, diariamente, os constroem e os desfazem, enfatizando o significado de cada lugar ou retirando-lhe expressão, de acordo com os ciclos de trabalho ou de lazer. Não é de agora, o vaivém de intenções que se desloca mesmo quando a vontade não acompanha. Os núcleos enchem-se como se os limites fossem elásticos, tanto quanto se esvaziam restando o lugar solitário, que fala sozinho.

São assim os lugares que se fazem cidade, que crescem pela importância do que inspiram, pela expetativa do que socorrem na sobrevivência ou na opulência do centro político, decisor. Do núcleo vem a força centrífuga que gera economia de escala pela multidão que faz circular, cria riqueza pela oposição de estilos de vida, pela vontade de conquista social.

Não é de agora, as cidades que se formaram com a acumulação de pessoas num só espaço. Suportam as dinâmicas que fazem a comunicação entre pontos desiguais em distância e importância simbólica. Alimentam-se do que as alimenta e transformam a paisagem.

Falar das cidades que se instituíram urbes ao longo dos séculos, nunca poderá ser feito com o limite da fronteira do que é e do que não é cidade. São fronteiras fluidas, permeáveis, indistintas que se escondem na necessidade de quem traz e de quem leva. Círculos que se entranham uns nos outros e arrastam um movimento contínuo, impossível de parar, pois que o rosto da cidade precisa do seu corpo, do que a mantém viva. É uma relação bidirecional que conjuga o que entra e o que sai, que gera novos núcleos secundários por saturação do principal, que se prolonga para além do nome da cidade. Talvez por isso, na identidade de uma cidade caiba muito mais do que a soma das partes, aquelas que se erigem como fronteiras.

Talvez por isso, no entendimento do que é o Porto tenha de se ver todo o território que se estende para Este e que flutua com o Douro para o interior do país, tanto como se tem de ver o quanto lhe chega por mar e que a cidade absorve. Urbe erigida em promontório rochoso, o Porto afirmou-se como centro urbano na capacidade que teve de corresponder ao que fluía entre os quatro pontos cardeais, no movimento das águas do Douro, nas marés do Atlântico a Oeste, nos caminhos terrestres vindos de Este, de Norte e de Sul. “Debruçada sobre o Douro, por ela vinha passar a grande via romana, construída sobre a estrada natural que liga, de Norte a Sul, toda a costa da Península Ibérica. O seu porto, ao mesmo tempo fluvial e marítimo, era o escoamento natural dos excedentes de produção de praticamente todo o Norte do país e, ao mesmo tempo, o ponto de aportação e irradiação das mercadorias estrangeiras. O Douro, então era navegável numa extensão de mais de cem quilómetros, (…) como possibilitava a comunicação por cabotagem com outros rios nortenhos. Embora edificada em solo ingrato, ao seu redor estendia-se, por muitas léguas, a região mais populosa e rica do país. A acrescentar a tudo isto, uma importante e bastante completa rede vial facilitava ao Porto o seu contacto com quase todas as populações nortenhas.”64 Por esta capacidade de atrair a si, uma população flutuante entre vias que ali se cruzavam, o Porto nunca terá sido só o Porto, mas terá sido a cidade e todo território adjacente, aquele que o suportou e engrandeceu.

64 GONÇALVES, Iria – Para o Estudo da Área de Influência do Porto nos fins do Século XIV. Lisboa : Sep. de: “Rev. da Faculdade de Letras”, 4 série, 2. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1978, p. 390.

Por isso, antes de analisar a evolução de Valongo, há que perceber a relação que este criou com a cidade grande, aquela que, atenta ao que poderia conquistar, puxava aquele núcleo para o seu âmago, tratando-o como território seu, mas nunca deixando de lhe conferir individualidade.

Outrora, como hoje, o Porto afirmou-se como o rosto de uma região, tanto que, institucionalmente, se refere o Grande Porto como a região para além da cidade. A história da cidade demonstra que o Termo ou Alfoz do Porto incluía, no século XVI, um conjunto de outros lugares adjacentes ao perímetro urbano. “Um Concelho não se esgotava na vila ou cidade que lhe era cabeça mas estendia-se por uma zona circundante, mais ou menos vasta, a que se chama Termo ou Alfoz. O Termo do Porto era, na época moderna, integrado por 7 Julgados, desiguais em extensão e número de moradores, a saber: Bouças, Maia, Refojos de Riba d’Ave, Aguiar de Sousa, Penafiel, Gondomar, a norte do Douro; e Gaia, a sul do mesmo. Alguns lugares importantes sob o ponto de vista demográfico e económico, embora situados dentro das referidas circunscrições, merecem destaque em perspectiva institucional. São eles, Vila Nova de par de Gaia, a sul do rio; S. João da Foz, Matosinhos, Leça de Matosinhos, Azurara, Leça da Maia, Rebordões, Alfena, Valongo e Arrifana de Sousa a norte.”65 Contudo, remonta ao século XIV e ao rei D. Fernando a instituição do Alfoz do Porto. Aquele monarca, no intuito de acudir às solicitações que reivindicavam a necessidade de alimentar a cidade, concedeu ao Porto o julgado de Melres, a 15 de Novembro de 1369. D. João I, agradecido pelo apoio que a cidade manifestou aquando da sua disputa pelo reino, concede-lhe, em 12 de Abril de 1384, os julgados de Bouças, Maia e Gaia e, no mês seguinte, Penafiel de Sousa e Vila Nova de par de Gaia. Porque tais doações contrariavam outras, feitas a nobres, no passado, foi necessário confirmar por carta régia, a dádiva dos julgados de Bouças, Maia (ao qual pertenciam as freguesias de Valongo e Alfena), Aguiar de Sousa, Refojos, Penafiel de Sousa, Gaia e Vila Nova de par de Gaia, ao qual o rei acrescentou a terra de Zurara e Pindelo.

Cidade de vocação mercantil e burguesa pela relação que detinha, quer com o rio Douro, quer com o mar, quer ainda no cruzamento das rotas terrestres, o Porto afirmou-se como ponto onde uma multidão humana cruzava atividade comercial de toda a ordem. “A actividade comercial era exercida por uma substancial mas heterogénea franja da população que ia desde a mulher que na praça da Ribeira ou calcorreando as ruas da cidade vendia a retalho as castanhas e a fruta, os legumes e as hortaliças, a sardinha e o polvo seco até ao grande negociante com ligações internacionais bem firmes.”66

Embrião do espírito liberal, as trocas comerciais faziam parte do desenvolvimento da cidade. Contudo, se a posição geográfica sempre inspirou e fomentou o espírito comercial, também condicionou no desenvolvimento agrícola. As caraterísticas morfológicas do solo, não limitaram, mas também nunca favoreceram a produção agrícola. Por outro lado, a ocupação do espaço de cidade pelas atividades mercantis contribuíam para que aquela não fosse constante e a cidade necessitasse de abastecimento diário de bens alimentares. “As cidades amuralhadas não são lugar ideal para o desenvolvimento de actividades do chamado sector primário. A exiguidade

65 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 57.

66 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 124.

e a distribuição do espaço não permitem grandes tentativas de exploração agrícola. Assim aconteceu no Porto moderno onde, embora quase todas as casas dentro de muros fossem complementadas com um pequeno quintal ou enxido de vária utilidade, não achámos nenhum caso de habitante cuja profissão declarada fosse a de lavrador.”67

Se a geografia não impõe a vocação, condiciona-a fortemente. Parece evidente que, estando a cidade do Porto implantada nas margens de um grande rio, quase junto à sua foz, e integrando o seu Termo uma vasta área do litoral, o burgo crescesse e se desenvolvesse em íntima relação e dependência com o Atlântico e com o Douro. Como muitas vezes declararam os Vereadores em cartas oficiais para Madrid ou Lisboa, a cidade em si era estéril e improdutiva porque assentava sobre enormes massas graníticas que dificilmente lhe garantiriam o sustento diário: «e por esta cidade ser exterile cituada sobre fraguas e não ter de sua colheita outros mantimentos senão o que lhe vem de fora por as terras do circuito e termo delia serem fracas e delguadas…» Embora haja nestas afirmações evidente exagero, a economia da cidade desenrolava-se no contacto com o exterior, assegurado naturalmente pela via marítima.”68

Uma cidade que fervilhava em torno do negócio, do pequeno e mundano ao grande e de ostentação, tinha uma considerável população flutuante que necessitava que as necessidades mais básicas, como a alimentação, fossem asseguradas e o ritmo de fornecimento não fosse quebrado. Neste contexto, e tendo em conta as dificuldades que a situação geográfica impunha ao dinamismo agrícola, tornava-se fundamental assegurar a vinda de produtos alimentares do exterior da cidade.

Neste contexto, ainda que, para fora dos muros, a cidade contasse com algumas quintas de boa produção agrícola, o enxame humano que progredia com as atividades mercantis exigiam a constante entrada de bens. Tendo em conta que a cidade do Porto se constituiu, de forma administrativa, desde longa data, como integrando um núcleo urbano, mas igualmente um conjunto de lugares satélites pertencentes ao seu Termo, terá sido consequência natural a relação de interdependência entre ambos. Ou seja, se o centro urbano, político, económico e religioso administrava, os restantes contribuíam para a vida da cidade. Talvez, por isso, ainda hoje, estes territórios sintam a pertença identitária ao Grande Porto.

No Porto, a História do Pão Conta-se pela Voz de Valongo. Abastecer as cidades nunca será tarefa fácil. Seja pelo inóspito das condições da geografia física, seja pela ocupação do espaço urbano para atividades relacionadas com o comércio, serviços e administração pública e religiosa, os grandes centros crescem também condicionados pela força que recebem das regiões. Apoiados numa dinâmica de interdependência, os centros e as periferias alimentam-se mutuamente. Terá sido o que aconteceu entre o Porto e os lugares pertencentes ao seu Termo, nomeadamente, com o concelho de Valongo. Dos territórios adjacentes ao centro urbano, era com a cidade do Porto que existia uma relação, quer fosse por vínculos de coutos, quer fosse pelo fornecimento de inúmeros bens necessários ao quotidiano da cidade, como produtos alimentares.

67 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 192.

68 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 121.

Dos vários alimentos que, diariamente, entravam na cidade, como os legumes, as frutas, o azeite, a carne e o peixe, sobressaía o pão que Manuel Pereira de Novaes descreve como «admirável» que se fabricava na cidade, bem como em Valongo, Maia, Arnelas, Arcozelo e Gaia. 69

Considerando que o pão terá sido até ao século XIX o suporte da matriz alimentar, a base para o conduto dos que menos tinham, um regalo e um mimo para os que tinham situação económica abastada, impunha-se como fundamental garantir que a cidade do Porto tinha abastecimento regular de pão. É certo que à cidade, chegava o trigo e restantes cereais vindos, quer do interior, por via fluvial e terrestre, quer do exterior, vindos pelo mar. Contudo, para uma cidade que ostentava riqueza impulsionada pela facilidade mercantil, o gosto pela abundância e qualidade dos produtos era uma necessidade. A disponibilidade financeira de muitas famílias permitia o bom negócio, do mesmo modo que a toda a multidão que girava em torno do movimento comercial precisava de pão para a mesa.

As fontes documentais relatam, na cidade do Porto, uma falta crónica de pão (entendido enquanto cereal) à semelhança do que acontecia por todo o território.70

Na sessão de câmara de 12 de Março de 1411, é afirmado a necessidade de fornecimento de cereal por aquela “(…) terra estaua mujto gasta de pam.” 71 A 22 de Junho, “(…) falarom em como esta çidade/staua muyto falida de todo pam (…)” 72 sendo ponderado o fornecimento de cereal por mar. Na verdade, terá sido a falta de trigo um dos motivos da expansão marítima portuguesa com a oportunidade de conquista de portos trigueiros. Sendo o pão o suporte de toda a matriz alimentar até ao século XIX, altura em que o arroz e a batata ganham espaço, o pão, aqui entendido como cereal, era muito procurado de modo a alimentar os habitantes das cidades. Estas viveriam maior escassez pois que, não constituindo espaço agrícola, afirmavam a sua dependência do fornecimento vindo de fora. Pela míngua de cereal, as posturas municipais reforçam a proibição de deixar sair remessas da cidade.

Na sessão de 9 de Setembro de 1391, é feito o “acordo do pam/que sse nom tire/pera fora. Juys ueradores e procurador e concelho e homens boons da nossa leal Çidade/ do Porto nos ElRey uos enuiamos mujto saudar fazemos uos saber que nos acord/ damos por nosso serujço e prol e bem da nossa terra de se nom tirar nem leuar do/ nosso Senhorio nem huum pam pera outras nem humas partes fora da nossa terra (…).” 73 Em sessão de 1392, é relatado o caso de embargo de uma barca cheia de pão pronta a sair de fora da foz do Douro.74

A 20 de Dezembro de 1393, por ata de vereação ficamos a conhecer “(…) que a dita Çidade era edificada posta e/assentada em tal logar que de ssy nom há nem pode auer cousa nem huma/dos mantymentos que a ella eram necessarios e a que a ella conpria e per que sse os vezinhos e moradores della auyam de manteer ssenom de carreto/E que este carreto de mantymentos de pam vinhos e outras coussas que/a ella vynham todo sse fazia por da dita çidade leuarem carregas/de pescado e de ssal E que ffora acordado dantiguidade e era ora que taaes/carregos de pescado nem de ssal nom leixassem tirar da çidade ssem tragendo a ella carregas doutros mantymentos e per alvaraaes dos vera/dores ssynaados per ssuas maaons. E que esto ffaziam pera a dita cida/de e termhos della serem mantehudos e abastados e sse os ditos/

69 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 779.

70 MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura. Lisboa : Edições Cosmos. 1978.

71 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 446.

72 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 470.

73 “Vereaçoens”: Anos de 1390-1395, Porto : CM Porto, [1972], p. 101.

74 “Vereaçoens”: Anos de 1390-1395, Porto : CM Porto [1972], p. 147.

pescados e ssal della nom sair ssoltamente E que a dita ordenaçom se guardaua na dita çidade. E que ora lhis era dito que em gram/dano e per juízo da dita çidade contra as ordenaçoens ueraçoens priuilegios/da dita çidade os rrecoveiros de bragança e de chaues e de mujtas/outras partes com grandes arracouas de bestas caualla/res e asnares ssem tragendo nem huuns mantymentos aa dita/çidade como dito se hiam aa moroça e a matosinhos e a sam johane da foz e a gaya e a villa nova que eram/termhos da dita çidade e leuauam dhy os pescados ssecos frescos/ssardinhas (…) porem acordarom/ que nem huum morador em matosinhos nem em moroço nem de sam/Johane nem gaya nem vila noua nom venda pescado a nem huuns rregatoens nem rregateiras// de nem humas partes e sse o venderem que o nom leixem dhy tirar/ssem tragendo carregas aa dita çidade ou aos ditos logos.” 75 Nesta decisão está presente a necessidade de não deixar que os mercadores que vinham de fora do Termo do Porto levassem mercadorias importantes como o sal e a sardinha sem, em troca, deixarem uma contrapartida de bens necessários à subsistência da cidade.

A 21 de Abril de 1401, nova decisão reforça o compromisso de saída de produtos apenas com a entrada de bens alimentares. “Os sobre dictos acordarom por quanto pousauom castellaaos em cassa/de vasco pires estalegadeiro da Rua chaam que comprarom huma soma de sauees e doutro pescado E nom lhes declarou as hordenaçoes do Concelho que nem huuns nom mercassem nem tirassem da çidade carregas/nem humas de pescado ssem tragendo carrega de pam a dicta çidade//. Ou doutros mantymentos que fosem pera comer polla qual rrazom/agora forom tomadas as carregas aos dictos castellaos E e/lhes alegarom que nom ssabiom (…) polla qual rrazom os dictos castellaaos/ficarom a trager outras tantas carregas de pam a dicta çidade/ quantas carregas teem tomadas de pescado ante que lhe sseia liurado o dicto pescado.” 76 Enquanto cidade de extraordinária vocação mercantil, o Porto fazia valer a relação com o seu Termo na necessária troca de produtos. Pela situação geográfica privilegiada, eram vários os caminhos que levavam bens até à cidade e que ali eram comercializados. Era o espírito comercial da cidade, mas também seria a necessidade de abastecer a urbe que não produzia. Por isso, havia que saber atrair quem vinha de fora e atrair à cidade quem poderia fornecer os bens essenciais. “A política de atração de fornecedores passava pela luta contra o excessivo peso fiscal.” 77 Tal prática correspondia, na cidade do Porto, a prática antiga. No Foral dado por D. Hugo ao Porto, em 1123, regulamenta-se que “qualquer que trouxer pão a esta vila, para vender, não paga por isso portagem alguma, e a medida do pão será uma só e igual em toda a vila, tanto para comprar, como para vender.” 78 No século XVI, mantém-se a prática de favorecer a entrada de produtos essenciais como o pão beneficiando quem o fazia. “Em 1588, o Corregedor João Homem de Vasconcelos ordenou às justiças e porteiros da cidade que não dificultassem as vendedeiras de pão cozido que vinham de fora e dos arrabaldes «por ser muito necessário favorecer a estas pessoas» para trazerem mais alimentos.” 79

75 “Vereaçoens”: Anos de 1390-1395, Porto : CM Porto [1972], p. 218 e 219.

76 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 171.

77 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 780.

78 LEAL, Pinho. Portugal Antigo e Moderno: Diccionario Geographico, Estatistico, Chorografico, Heraldico, Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades, villas e freguesias de Portugal. Facsimile da ed., Lisboa : Livraria Editora de Mattos Moreira, volume VII, 1873-1890, p. 470.

79 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 781.

O fornecimento de “pão” referido, amiúde, pelas fontes das atas de vereação parecem referir-se ao cereal a partir do qual, após a moagem e confeção, se cozia o pão que serviria de alimento às famílias da cidade. Intriga, contudo, onde seria esse pão amassado e cozido, pois que a julgar pelo tamanho e densidade da cidade, desde longa data, estranham-se as escassas referências à regulamentação da atividade da padaria. As fontes documentais asseguram que à cidade não faltava o cereal, no entanto, importa analisar a ausência de regulamentação quanto à produção de um bem alimentar tão importante como o pão, até por semelhança ao que acontecia noutras cidades. Entre 1390 e 1499, destaca-se, somente, a decisão dos vereadores, procuradores e homens bons de instituir regulamentação para as padeiras, em 28 de Abril de 1403, referindo que “(…) acordarom por quanto amasarom com as pateiras da/dicta çidade que daqui em diante façam pam de iiijº onças E seia/boo bem aluo E bem amassado

E bem feito E sseia o pam/de quinze ssoldos em quanto o trigo valler asy pella guissa que/ora vaall a ix Reais o alqueire E que outros façam pam de çenteo/de dez soldos E sseia boom E quall quer que o contrairo fezer page/polla primeira vez Cynqoenta libras E polla Segunda Çento/E polla treçeira sser empicotada E as dictas pateiras Se conten/tarom de fazerem o pam pela guissa que dito he.”80 Francisco R. da Silva, no estudo que fez das instituições do Porto, realça a intervenção dos almotacés junto das padeiras nos anos 1584, 1606, 1624 e 1639, com o objetivo de assegurar que o pão vendido tinha o peso legal estabelecido. 81 Contudo, só em 1664 se assiste à publicação do Regimento das Padeiras, também conhecido como Regimento das Onças.

Nas atas de vereação entre 1390 e 1449, realça-se o número de indicações referentes às regateiras (vendedeiras) e nem tanto às padeiras. Em relação a estas, são indicadas algumas, mas como sendo de Azurara 82 , lugar pertencente ao termo do Porto. Ainda, sobressai as inúmeras referências a Afomso Anes pateiro como fazendo parte do núcleo de homens bons com assento nas reuniões de vereação sendo que o seu contributo terá sido de valor pois que, a 22 de Maio de 1402, “(…) os sobre ditos acordarom que por quanto afomso anes pateiro tomaua grande trabalho e afam por o dicto Conçelho em outras cousas que eram prol e honra da Cida/de aalem da procuraçom que lhe dessem mays aalem das duas mil libras que lhy mandarom dar mil e v libras.”83 Em 1404, no dia 13 de Outubro, por decisão da vereação é acordado “(…) que por quanto se as pateiras e eso/mesmo Regateiras entendyam afazer opam demajs pequeno pezo/do que lhes era mandado e por theerem aazo de nom quebrantarem/o que lhes era mandado mandarom que daquj em dyante qual/quer Regateira que pam vendese que se trabalhasse deter cada huma/sua balança e peso per que cada huma Reçebese opam per// peso e do peso que lhes fosse mandado per os almotaçees E quallquer/Regateira que o contrairo fezer e aque for achada que nom tem o peso e ho reçeber/para o auer de vender demajs pequeno peso do que lhe for mandado que dhy em dyante seja lançada cada huma denunca majs husar do dicto ho/fiçyo e se husar majs delo que dcadea pague pella primeira uez acojma/que he ordenada pello doutor Gonçalo fernandez Corregedor da corte e eso mesmo pella segunda/uez se cumprir em ellas há ordenaçom asy sobelo pam como sobelas codeas.”84 Ainda que sejam referidas as padeiras, é notória a ênfase no dever de honestidade das regateiras no que respeita à venda do pão o que permite pensar que estas últimas seriam intermediárias no processo de venda.

80 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 174.

81 Silva, Francisco Ribeiro. O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. II volume, Porto, 1985, p. 790.

82 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 174, 192 e 193.

83 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 131.

84 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 225.

Na sessão de 30 de Dezembro de 1401, sobressai a ordenação de “(…) todas as/ Regateyras do pescado que ouuer na dicta Çydade/E outrossy as Regateiras das caças e carnes e das/outras cousas e do pam Cozido aluo e de semea//. Que se venham todos escreuer no lyuro da vereaçom per maaom/do scripuam dellas (…)”. 85 Nesta ordenação municipal é de destacar a referência a pão cozido alvo, o mesmo será dizer, pão de trigo, que era o mais procurado pela sociedade do Porto.

A escassa referência a padeiras com produção na cidade, a regulamentação da venda de pão pelas regateiras, podem ser informações indicativas de que, na cidade, fazia-se o comércio de cereal, contudo, a produção de pão cozido seria feito, em lugares pertencentes ao Termo do Porto, mas para lá dos limites da urbe. Ou seja, não só o Porto era alimentado com bens agrícolas que vinham do exterior, mas igualmente de pão cozido.

Esta conclusão é corroborada pela política de atração que o senado do Porto promovia no abastecimento de pão à cidade isentando as padeiras de fora de cumprirem obrigações que as que laboravam no perímetro urbano tinham de cumprir. No ano de 1576, a vereação determina que “(...) nenhum acordaõ feito athe gora sobre o pezo do paõ e balanssas e mais couzas tocantes ao pão cozido naõ se emtenda em nenhua pessoa que vender paõ que vier de fora desta Cidade e a seos haredores vindo elle a esta cidade e arabaldes por ser muito necessario favoresser a estas pessoas para que o tragaõ como trazem para asim esta Cidade ser mais abastada, de maneira para que as tais pessoas naõ emcorreraõ daqui por diante nas pennas do pezo do paõ e em ter balanssas como se emtende nas desta Cidade seos arrabaldes, e que o possaõ as tais pessoas vender pello pressa que quízerem o que asím esta assentado por acordão da Camera (...)”. 86

Os incentivos dados pela câmara do Porto às padeiras que vinham do termo pode ter sido um estímulo ao desenvolvimento da atividade da panificação que se verificou em Valongo. Ainda que, por vezes, a viagem fosse tormentosa pelos riscos e pela dificuldade dos caminhos, a isenção de licença, o não estabelecimento de regimento em relação ao peso e ao preço do pão, eram prorrogativas que favoreciam a produção do pão como atividade lucrativa. Já as padeiras que laboravam na cidade ficavam obrigadas ao cumprimento de regras quanto ao peso e preço, e a sua atividade estava sujeita ao escrutínio constante e vigilância dos almotacés.

Algumas fontes orais, reclamam para fora do Porto a localização de padarias como uma forma de segurança, pois que a existência de fornos numa cidade onde as casas se encavalitavam num morro rochoso poderia ser de consequências drásticas em caso de descuido que provocasse incêndio. Contudo, tal informação não surge como clara em fontes documentais. Francisco R. da Silva identifica que “(…) na cidade existiam muitos fornos: os que eram foreiros à cidade aparecem registados no Tombo de 1614. Eram, pelo menos, 7 – situados na Rua escura, Rua dos Pelames, Rua das Taipas, Rua da Lagem, Rua de Belmonte, Rua da Ponte Nova, Rua das Cangostas. Muitos outros haveria dos quais de momento não possuímos notícia.”87 Contudo, o mesmo autor reconhece que “sobre o amassar e cozer o pão, muito vinha de Valongo e de Gaia”88 apesar de, também na cidade, existir a atividade de padaria. “Sabemos que em 1587, as padeiras da cidade comprometeram-se a fazer pães que não excedessem os 8,4 e 2 reis. E em 1628, acordou-se que o pão alvo fosse vendido a 16,8 e 4 reis, sendo o seu peso

85 “Vereaçoens”: Anos de 1401-1449, Porto : CM Porto [1980 imp.], p. 76.

86 AHMP – Processos, L. n° 4, fls.324-324v.

87 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 803.

88 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 803.

respetivamente de 20,10 e 5 onças, ou seja, 600, 300 e 150 gramas. (…) Os acórdãos municipais adoptavam o princípio do número limitado e certo de padeiras, as quais, depois de escolhidas tiravam as suas licenças na câmara. Só estas poderiam amassar e vender pão. Em 1590 se obrigaram a vender trigo – 31 padeiras da cidade, 8 de Vila Nova, 37 do termo; em 1599, obrigaram-se a vender pão – 29 padeiras da cidade, 6 de Vila Nova; em 1604 obrigaram-se 27 padeiras da cidade, 7 de Vila Nova, 40 do Termo.”89 A discrepância existente, em 1604, entre o número de padeiras da cidade e as do Termo é informação indicativa de que haveria uma forte atividade de produção de pão para além dos limites da cidade. No entanto, tendo em conta as benesses de que usufruíam as padeiras residentes fora do Porto, não se estranham os números apresentados. As informações contidas nas fontes documentais concorrem para a conclusão de que, no Porto, a atividade da panificação terá sido escassa. Não só o reduzido número de padeiras existentes nos vários momentos da história da cidade, como a limitada regulamentação, permitem identificar que o pão cozido viria de fora. A determinação de posturas municipais destinadas a regular a atividade da produção do pão era uma preocupação em quase todos os aglomerados, sobretudo, os urbanos. Por isso, surpreende que o único Regimento das Padeiras, também conhecido por Regimento das Onças, tenha sido estabelecido, apenas, em 1664. Nele determina-se que “que cada alqueire de trigo, depois de feito em pão, tinha 355 onças, que equivaliam a 22 arráteis e 3 onças, medida superior à de Lisboa que era de apenas 260 onças.”90

Surgem, por isso, enquadrado neste contexto, as primeiras referências ao pão vindo de Valongo que era vendido no Porto, afirmando-se, assim, a certeza da prática pelo registo que tal motivava. “Logo atestarão que se lance pregão que todas as Valongueiras que a esta cidade venham vender Rigueifas como he costume virem dellas, e não façam pão molette e que fazendo, ou trazendo a esta cidade.”91 A decisão da vereação de 20 de Outubro de 1636 transcrita para o livro de atas municipal surge como a referência mais antiga às mulheres de Valongo que ao Porto iam vender o pão e a regueifa.

Em 1639, no âmbito da defesa da linha de costa próxima ao Porto pelas tropas de Álvaro de Sousa, o mestre de campo pede à Câmara Municipal, entre outros bens e serviços, 200 alqueires de pão cozido a serem entregues diariamente e 7 ou 8 almocreves com 15 ou 16 bestas para serviço do Terço. 92 Na resposta, a entidade municipal refere que aproveitem os almocreves que trazem o pão de Valongo, confirmando que grande parte do consumo de pão na cidade era, na primeira metade do século XVII, assegurado pela produção feita naquele aglomerado do Termo do Porto. Estas duas referências assumem grande relevância na história que o Pão de Valongo traça ao longo dos séculos, pois vêm confirmar uma relação de proximidade entre o Porto, a cidade cosmopolita, mercantil e burguesa, e Valongo, um aglomerado do seu Termo que, aproveitando um conjunto de circunstâncias, soube apostar na especialização na arte do pão. E, saber que, em 1636, os vereadores determinam o lançamento de pregão sobre as Valonguenses que iam à cidade vender o pão e a regueifa, não marca o início de uma prática, ao invés, reforça que seria um hábito tão profundo capaz de provocar uma decisão da vereação. Ou seja, o destaque da informação contida nesta ata deixa perceber a fama que, na primeira metade do século XVII, o pão e a regueifa de Valongo já teriam. Tal significa que, a prática terá sido iniciada em período muito anterior e repetida até criar reputação capaz de suscitar a individualização à sua referência.

89 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 803.

90 AHMP – Acordãos ou Posturas, Regimento do Almotacé-mor, L. 2°, fl. 88v.

91 AHMP – Livro de Vereações do Porto, nº 47, Fl. 296 e 296v.

92 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, pp. 885 e 886.

Contudo, na história que a cidade do Porto conta sobre o pão de Valongo, deslizam episódios que realçam a reputação deste, como também descrevem os desafios enfrentados pelos padeiros e padeiras de Valongo. As determinações municipais de 1576, com o usufruto de privilégios para as padeiras vindas de fora da cidade, e o regimento de 1664 visando a regulamentação da atividade no núcleo urbano, colocavam em plano de desigualdade as padeiras de um e outro sítio. Tal diferença de obrigações terá merecido contestação, levando à fermentação da decisão municipal de 12 de Dezembro de 1701 de “(...) revogar o Acordam antigo per donde se tinha dado alguma faculdade pejudiseal a esta Cidade as Padeiras de Valongo (...) as posturas que excetuavaõ e prevellegiavaõ as ditas Padeiras que vem a esta Cidade vender Pam de Vallongo as haviaõ per revogadas, por mostrar a expiriencia a abuzaçaõ da faculdade que pellos ditoz Acordaõs se lhe haviaõ dado, e que ficassem sugeitas a Almotaçaria, e a ter ballanças, e vender na forma da Ley e sogeitas as pennas daz mais Padeiras que exçedam as posturas.”93

Com esta determinação municipal, as padeiras vindas de Valongo vão sentir algumas restrições à atividade, nomeadamente, o dever de vender o pão a peso. Apesar da mudança, será só, em 1717, que é enviada uma petição à vereação do Porto solicitando a isenção de vender o pão a peso. Para dar suporte à sua demanda, socorrem-se da determinação municipal decretada em 1576, que isentava as padeiras de Valongo do cumprimento de algumas obrigações, e ainda, referem a sentença de 1593 em que as rés Isabel Gonçalves e Catarina, criada de António Nis, padeiras residentes em Valongo, são ilibadas da acusação de vender, na Praça da Ribeira, o pão a preços superiores ao estipulado. Na leitura da sentença é referido “(...) neste integerrimo Senado que as padeiras de fora desta dita cidade e seus arrebaldes se lhe não pezasse o pão, considerandose o muito trabalho que tinhão em conduzir a ella o dito pão de tanta distançia como a de duas legoas que he dei/a ao dito lugar (...).”94

A resposta do Procurador da cidade não terá ido ao encontro dos anseios das padeiras de Valongo, já que a mesma declina qualquer aceitação das pretensões das valonguenses por o pretendido ser de “(...) tempo passado, e tão antigo (…) e de se lhes não poderem (...) aproveitar para o tempo prezente, e pera o futuro, pois segundo o tempo se regula o valor das couzas.”95 Perante tal posição, as padeiras de Valongo veem-se na necessidade de aceitar o estipulado pelo Senado do Porto, não lhes restando outra alternativa.

Apesar das decisões da vereação que colocavam em pé de igualdade as padeiras da cidade e as do Termo, o Porto manteve a sua dificuldade em garantir o abastecimento de pão, até porque todo o contexto anterior tinha favorecido o desaparecimento da atividade da panificação no núcleo urbano. Neste contexto, o testemunho das fontes do poder municipal realçam a relevância do pão de Valongo ao admitir a dependência do “(...) provimento do pão que se cozia no lugar de Valongo e que se este o deíxace de cozer em algum tempo peresería a cidade (...) as padeiras que nesta cidade costumam cozer pão trigo se achavam extintas.”96 Tal falta de pão de trigo incentivou a decisão camarária de, 25 de Outubro de 1724, que obrigava as padeiras da cidade a cozerem pão de trigo, ao invés de milho.

Em 1744, a 25 de Janeiro, a requerimento do Juiz e Procuradores do Povo, a vereação decide recuar na decisão que obrigava as padeiras de Valongo a aceitarem

93 AHPM – Acordãos ou Posturas, L. 3°, fls. 87v. – 88.

94 AHMP – Próprias, L. 10, fl. 67.

95 AHMP – Próprias, L. 10, fl. 67v.

96 AHMP – Acordãos ou Posturas, L. 3°, fls. 105-105v.

as obrigações quanto ao peso e preço do pão. Assim, “decidiu-se novamente que nenhuma pessoa pudesse vender o pão branco por peso e preço inferior ao que estava estipulado, «(...) exçeto as ditas padeiras do dito lugar de Vallongo».”97 Tal situação de privilégio só será posta em causa na segunda década do século XIX.

Os episódios que marcam o debate e a relação agitada entre a vereação do Porto e as padeiras de Valongo vêm demonstrar, mais do que a dependência da cidade mercantil em relação ao seu Termo, a reputação e a qualidade do pão que era produzido naquele aglomerado do Termo do Porto. Era absolutamente fundamental contar com o abastecimento que Valongo fazia à cidade, sendo que tal era reconhecido pelos representantes dos mais altos cargos municipais. Perceber que, neste hiato de debate entre as partes, nenhum outro lugar se impôs como possível mercado abastecedor de pão, conduz à certeza de que haveria em Valongo uma grande produção, mas sobretudo uma arte onde o aperfeiçoamento dependia do trigo utilizado, da moagem, da amassadura e da cozedura.

Esta longa e acesa discussão entre as partes vem evidenciar a reputada fama de uma comunidade que fez do pão a sua atividade principal. Isso mesmo é reforçado, em 1789, pelo Padre Agostinho Rebelo da Costa, na sua descrição da cidade do Porto. O autor diz que sobre o pão de trigo “(...) há dentro da cidade alguns padeiros que o cozem e vendem, mas a sua qualidade não é tão boa e por isso tem pouca saída.”98 Reitera, no seu testemunho a qualidade do pão trabalhado em Valongo e vendido, no Porto, todas as terças-feiras, quintas-feiras e sábados. 99 De acordo com o que já vinha sendo hábito no passado, na cidade não havia muita produção de pão. Tal verifica-se, igualmente, entre 1780 e 1785, já que as fontes documentais apenas permitem o registo de seis padeiros na freguesia da Sé, enquanto nas freguesias de S. Nicolau e Vitória não é documentada a existência de qualquer padaria. 100

O aumento do preço do trigo, verificado em finais do século XVIII, e toda a turbulência política que Portugal enfrentou no início do século XIX, contribuiram para fortes flutuações no preço dos cereais, o que teve consequências na venda do pão. Em 1811, a falta de trigo e o encarecimento do mesmo, repercutiu-se em vários abusos observados pelos almotacés. Estes identificam que “(...) a dezordem que praticaõ igualmente as padeiras do pão de trigo assim as desta cidade como as de Vallongo, vendendo o pão desta qualidade sem pezo determinado e por preço arbitraria tem motivado a carestia deste genero de primeira necessidade, e o clamor universal.”101

Os excessos praticados, por um lado, e a necessidade de pacificar uma atividade de tão grande relevância para a subsistência da cidade, despertou sugestões extremas, como a proibição de venda para quem não cumprisse as regras, e a inclusão de propostas complementares como o estabelecimento de “(…) fornos publicos nesta cidade, quando os que nella existem não bastarem; meio este nada dispendiozo pella concorrencia de muitas pessoas que a isso se hão de prestar, e meío assaz precízo para cohibír a extorção e fraude dos mesmos padeíros (...).”102

A questão do pão no Porto mantém-se e será em 1816, no seguimento do alerta feito pelo Procurador da cidade, a 21 de Fevereiro, acerca dos abusos verificados no

97 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 148.

98 COSTA, Agostinho Rebelo da – Descripção topografica, e historica da cidade do Porto : que contém a sua origem, situação e antiguidades ... Porto : Officina de António Alvarez Ribeiro, 1789, p. 55.

99 COSTA, Agostinho Rebelo da – Descripção topografica, e historica da cidade do Porto : que contém a sua origem, situação e antiguidades ... Porto : Officina de António Alvarez Ribeiro, 1789, p. 55.

100 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 142.

101 AHMP – Suplemento As Próprias, L. 2, fl. 202.

102 AHMP – Suplemento As Próprias, L.2, fl. 202v.

fabrico e venda do pão que a vereação manda afixar editais “(...) para que todos os padeiros, que vendem, e vem vender pam a esta cedade no perenptorio tempo de oito dias aprontem balanças com pezos de aratel meio aratel, e dahi para sima, e naõ vendaõ paõ algum seja da qualidade que for sem ser por pezo que exporaõ a todo o cumprador para a vista dele e da qualidade que for pactuarem sobre o peso.”103 A esta ordem, mandava o edital sujeitar todos os padeiros, os da cidade e os de fora, sendo que o não cumprimento gerava uma pena de cadeia e seis mil réis de coima. Sendo esta uma decisão que afetava também os padeiros e padeiras de Valongo, de imediato surge grande contestação liderada por Lino António de Sousa Pinto. No entendimento daqueles, a decisão anunciada não seria a melhor solução já que, sob a ameaça da concorrência com as padeiras da cidade do Porto, poderiam, em Valongo, fazer o pão mais pesado, mas tal não iria contribuir para a sua qualidade. Na argumentação, é referido que “(...) resultava o fabricar-se paõ muito inferior em qualidade, pois que lhes era facillimo fazerem paõ mais pesado, mas o seu maior pezo lhe diminue a bondade (…) 104 . Acentuam que o menor peso, facilmente era compensado com a maior qualidade, podendo o público escolher o que mais lhe satisfazia. No requerimento ao Senado do Porto, pedem a suspensão do edital, no entanto, o mesmo é recusado. Insatisfeitos com a decisão do Senado, intentaram levar o caso até à Relação de modo a conseguir uma resposta que fosse ao encontro dos seus objetivos. No entanto, da análise do juiz sobreveio a necessidade de considerar a mudança que o volver dos tempos exigia negando os propósitos da comitiva valonguense. “Se em tempos passados os padeiros de Valongo vendiam o pão sem peso, agora se determinava o contrário, ficando-lhes, no entanto, o «(...) livre o arbítrio de hum justo, e razoavel preço (…)». E fundamentava as anteriores decisões camarárias no facto de nésses tempos não existirem fornos, padeiros e negociantes que em trigos e farinhas investissem alguns fundos, o que tornava a cidade «(...) dependente do favor dos padeiros de Valongo, os quaes tiranamente tem colhido o maior partido de tam mizeravel falta (...)”. No entanto, o «(...) estabelecimento de fabricas (...)» na cidade veio quebrar os laços de dependência, pelo que a Câmara se achava autorizada a regular este ramo de primeira necessidade, começando por obrigar a que se pesasse o pão.”105

No seguimento desta decisão, que veio a ser confirmada a 9 de Março de 1816, as padeiras vindas de Valongo, apesar de poderem continuar a vender o pão pelo preço que considerassem justo, obrigatoriamente, passam a vendê-lo a peso.

Encerra-se um ciclo em que a história do pão no Porto se conta, quase de forma exclusiva, pela voz de Valongo. Dependentes do pão que Valongo trazia à cidade, os portuenses aceitaram, durante séculos, os privilégios que os padeiros e padeiras valonguenses usufruíam. No contexto de que a cidade do Porto sempre se pautou por um forte dinamismo mercantil e comercial, sendo o seu crescimento e expansão o resultado de uma posição económica liberal, é de acreditar que a aceitação, por um lado, das benesses atribuídas aos padeiros e padeiras de Valongo, e a longa reputação do pão por estes produzido, indicia a qualidade que era preferida por quem comprava. Apesar das disputas entre os valonguenses e o Senado do Porto, quem comprava mantinha a preferência pelo pão de trigo de Valongo.

A fama e a reputação dos produtos de Valongo ganham espaço, expressão e a preferência pela qualidade e diferenciação. Na verdade, em Valongo, durante séculos aperfeiçoou-se a arte da panificação, melhorando procedimentos e anulando o erro, sobrevindo por parte dos portuenses uma enorme estima pelos produtos daquele lugar.

103 AHMP – L. V. nº 100, fl. 301v.

104 AHMP – Processos, L. n° 4, fl. 344.

105 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 152.

Por outro lado, as fontes orais permitem concluir que, após se tornar evidente o desenvolvimento de centros de panificação no núcleo urbano, os padeiros e padeiras valonguenses conseguiram desenvolver novos produtos mantendo, deste modo, uma relação de proximidade com o Porto. Se o pão e a regueifa eram já de grande estima na cidade, o biscoito adquire em finais do século XIX extraordinário protagonismo que permite a algumas famílias viver exclusivamente deste produto.

Alimentar de Pão as Cidades.

Falar da origem deste núcleo da arte da panificação exige um olhar atento à ligação de Valongo ao Porto e a necessidade que esta cidade tinha de ir, ao seu termo, buscar os bens necessários para a sua subsistência. O Porto, enquanto cidade, compunha-se de um território situado em promontório rochoso, muito bem posicionado geograficamente no que respeita a ser elo entre os vários pontos cardeais, mas incapaz de gerar produção agrícola para sustento dos que lá viviam. Por isso, foi sempre preocupação da administração da cidade envolver o seu termo, o alfoz, de maneira que este se encarregasse de produzir o que tanto fazia falta à população urbana.

Iria Gonçalves acentua a dependência dos centros urbanos ao afirmar que “a cidade, sob o ponto de vista do seu abastecimento e sobretudo do seu abastecimento alimentar, era uma estrutura frágil, artificial mesmo, impossível de se bastar a si própria, mas ainda assim exigente e imperiosa, embora também largamente compensadora. Um aprovisionamento do exterior, tanto dos seus arredores mais próximos como das regiões circum-vizinhas ou de longínquas partes era obrigatório para qualquer cidade (…).”106

Por outro lado, é necessário entender que o Porto foi, desde a data da sua formação como cidade, local de grande comércio, de espírito mercantil, de visão de oportunidade de mercado. Era, por isso, cidade avançada e arrojada e com grande capacidade financeira. Na composição da sua estrutura social, ressaltava o povo que trabalhava nas inúmeras funções associadas ao comércio, nas cargas e descargas do que entrava e saía por via fluvial, marítima ou terrestre, mas dominava uma elite que era exigente nos seus hábitos de consumo.

Enquanto núcleo urbano constituído por um largo número de famílias de elevados recursos económicos, o Porto não queria comer broa, o pão que era associado a alimento de classes menos favorecidas. No centro da cidade, queria-se à mesa o pão de maior reconhecimento social, aquele que era branco e fofo. O posicionamento económico e social da cidade permitia que uma ampla classe pudesse escolher o pão que comia, não tendo de se limitar ao que era feito com o cereal de maior rentabilidade local.

Ao contrário do que acontecia no espaço rural em que a subsistência se fazia, sobretudo, pelo que se produzia, na cidade, quem detinha o poder económico escolhia. “Se o camponês podia prescindir do trigo colhido na sua seara, o mesmo não acontecia com o citadino de algumas possibilidades económicas.”107 De realçar a referência, em l628, ao preço do “pão alvo”108 no Porto e às padeiras que se obrigavam a vender «trigo» naquela cidade.

Neste contexto, compreende-se que, numa região onde o milho se disseminou de modo tão alargado e profundo levando à alteração da paisagem, o maior centro urbano tenha mantido a sua preferência pelo pão de trigo por comparação com o pão de milho

106 GONÇALVES, Iria – Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares. Lisboa –séculos XIV-XV. [consult. em 2 março de 2024]. Disponível na internet em: https://repositorio. uac.pt/bitstream/10400.3/501/1/IriaGoncalves_p29-48.pdf. p. 30.

107 GONÇALVES, Iria – Por Terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de D. Afonso III. Porto : Afrontamento : CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”, D.L. 2012, p. 91.

108 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 803 e 804.

que, no Porto, também teve grande destaque, nomeadamente, a Broa de Avintes. A resposta está menos no cereal que estaria disponível favorecido pela produção local, e muito mais na preferência que as cidades sempre manifestaram pelo pão branco, feito de farinha de trigo moído na mó alveira. As famílias citadinas mais abastadas não queriam prescindir do trigo, procurando o melhor fornecimento do mesmo. Já o milho, na cidade, era “um pão de serviçais”. 109

A reforçar a diferença entre a afirmação simbólica do pão branco e a ligação do pão de milho às famílias mais humildes está o testemunho de Hugh Owen (1856). Broa, or maize bread, is made at Avintes, about five miles up Douro, n the left bank, a locality rendered famous by the passage of General Murray’s division over the ford opposite; the first step toward the defeat of Soult’s army. This bread is coarse and has a peculiarly sweet flavour, not very pleasant to a stranger; it is, however, but rarely that the peasant tastes any other. I have a vivid recollection of the look of a grateful astonishment with which an old woman received a piece of fine white bread from me, when sitting with two friends, eating some luncheon by the road-side, in the neighbourhood of Matozinhos. She had stopped, as a matter of course, to beg, and one of my friends informed me that it was more than probable that previous to that moment she had never before tasted wheaten bread. I not learn the fact until she had passed some distance, or I would willingly have earned additional gratification, in giving her my share of what still remained unconsumed.”110

É claro que o trigo nunca terá sido abundante, nem no Porto, nem no restante território, contudo, a capacidade financeira de alguns grupos sociais estabelecidos nas cidades permitia-lhes garantir o fornecimento constante de trigo, sendo prova disso, as decisões municipais, já referidas, em que, nas épocas de maior carência cerealífera, obrigava-se a quem queria ir ao Porto buscar mercadorias tivesse de garantir a entrega de cereal. Ainda que no Douro Litoral o milho tivesse melhores condições de produção, o Porto nunca deixou de conseguir o trigo necessário para o abastecimento da urbe.

Para além disso, o Porto enquanto núcleo urbano de grande destaque a norte do território português terá sido sempre, à semelhança do que acontecia pelas cidades europeias, território de pão de trigo. Quando não havia, procurava-se a sua vinda para a urbe. As políticas de abastecimento de pão visavam a procura de todos os cereais, mas era sempre o trigo o cereal mais solicitado.

Por isso, para além de todas as carências, o fornecimento feito por terra ou rio, vindo de locais do interior, como São João da Pesqueira, Moncorvo, Bragança e Vila Flor ou por mar, quer vindo de portos estrangeiros e dominado por mercadores flamengos, alemães e franceses, como de portos portugueses situados a sul, era de grande importância.

Neste contexto, Valongo, enquanto núcleo habitacional situado na vizinhança do Porto, beneficiava da proximidade à cidade. Por isso, por um lado, terá sentido o apelo da administração da cidade para que a abastecesse de bens, nomeadamente, daquele que mais falta fazia e sem o qual a população não podia sobreviver. Por outro lado, o seu posicionamento mercantil e comercial permitia-lhe aceder às reservas de trigo que chegavam por terra, por mar e pelo rio. O Porto terá tido a necessidade e a capacidade de atrair até si os núcleos adjacentes ao espaço urbano. Valongo, sentindo esse apelo e compreendendo a oportunidade soube, através da sua comunidade responder positivamente, desenvolvendo-se, deste modo, a arte do pão de Valongo. Como realça de forma poética o Padre Joaquim Reis (1904) “(…) as grandes cidades

109 GONÇALVES, Iria – Por Terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de D. Afonso III. Porto : Afrontamento : CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”, D.L. 2012, p. 106.

110 OWEN, Hugh – Here and There in Portugal. London : Bell and Daldy, 1856, p. 140.

são como os grandes lagos que se sustentam de pequenos rios, mas também esses rios revestem tanto mais força e belleza quanto mais se approximam d’esses grandes lagos que lhe dão os seus peixes, as suas ondas, as suas marés e até as suas águas. Vallongo levava ao Porto os productos da sua industria, mas recebia do Porto a mesma força que animava ao trabalho e dava coragem para a lucta da vida, de onde resulta o progresso, o adiantamento, e a civilização.”111

Se na génese terá estado num conjunto de circunstancialismos geográficos e sociais, na busca da história da arte da panificação de Valongo estão as muitas mulheres e muitos homens que fizeram acontecer, pelo trabalho, criatividade e resiliência, a prática da panificação do concelho de Valongo. Orlando Ribeiro refere “não se vislumbra como a geografia humana possa abandonar os seus métodos qualitativos e sair da orientação clássica, tomando como base a observação e socorrendo-se de uma ou outra precisão estatística, fundando a descrição explicativa na aproximação e no encadeamento, procurando correlações entre o homem, o chão que pisa e o ar que respira, que, se algumas vezes o mostram independente e dominador, muitas vezes revelam sobretudo um grande engenho na maneira de utilizar os recursos, de tirar partido, de vencer pelo ajustamento, fazendo, ao fim e ao cabo, da conformidade uma das suas armas mais eficazes.”112

O povo de Valongo tirou partido dos circunstancialismos e, num golpe de asa, transformou a oportunidade em arte. Fez da necessidade de alimento de uma cidade como o Porto, a fervilhar de atividade comercial e constituída por uma classe mercantil possuidora de riqueza, o estímulo para uma história que teve na alimentação o seu ponto primeiro.

111 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 134 e 135.
112 RIBEIRO, Orlando – Ensaios de Uma Geografia Humana e Regional. Lisboa : Sá da Costa, 1970, p. 108 e 109.

EM VALONGO, O PÃO.

Em Valongo. Os almocreves.

Fazer o pão implicava ter o cereal e uma cidade como o Porto que, sucessivamente, foi alargando os seus limites por via de um amplo desenvolvimento comercial, precisava assegurar a vinda de produtos. Na verdade, a procura da identidade gastronómica das cidades quase sempre faz olhar para as caraterísticas da região que as envolve e é fruto de um imbrincado conjunto de relações entre protagonistas anónimos.

Na cidade do Porto, em virtude de o pão ser o alimento diário a partir do qual toda a alimentação se desenrolava, e de nem sempre as «terras de pão» do seu Termo conseguirem assegurar as quantidades necessárias de cereal para a subsistência das comunidades, promoviam-se e facilitavam-se as transações comerciais entre regiões produtoras e consumidoras.

Neste âmbito, desenvolveu-se uma rede de almocreves que palmilhavam o território deslocando os produtos excedentes das regiões produtoras para os locais onde daqueles havia procura. Para o Porto, tal manifestou-se como fundamental pois que “(…) os almocreves traziam de Trás-os-Montes, Beiras e outras partes o pão, o vinho, o azeite, as frutas para, em contrapartida, retornarem com mercadorias diversas, tais como sal, açúcar, miudezas e sobretudo pescado fresco e seco”113 (sardinha e bacalhau). Era um vaivém entre o que se levava das regiões do interior norte para os aglomerados situados junto à costa e o que se levava daqui para os lugares menos povoados do reino.

Neste contexto de um dinâmico tráfego terrestre, as fontes documentais deixam concluir que muitos desses almocreves seriam de Valongo. A oportunidade mercantil associada à transação terá contribuído para o estabelecimento daquela rede fomentado a participação de almocreves do concelho, contudo, uma das razões que mais concorreu para tal terá sido a centralidade geográfica de Valongo. “(…) A passagem por Valongo Susão da velha estrada romana, sucessivamente promovida a Via Pública ou Estrada Real em harmonia com o andar dos séculos (…), que unia o Porto a Amarante e que, segundo Carlos Alberto Ferreira de Almeida (1934-1996), era o «caminho mais utilizado para Roma». Também nas viagens para Castela, o «mais importante caminho saía do Porto indo a Valongo, Amarante, Lamas de Orelhão e daí a Bragança ou a Torre de Moncorvo e a Freixo»”. 114 Ou seja, por Valongo tinha lugar a estrada que ligava duas importantes cidades como Porto e Amarante, como por esta circulava uma das vias que permitia a deslocação entre os pontos Oeste e Este do norte de Portugal.

Joel da Mata acrescenta que “o território do atual concelho de Valongo era servido por dois grandes eixos viários que, partiam da cidade do Porto: um em direção ao Minho e outro a Trás-os-Montes. O primeiro atravessava Ermesinde em direção a Alfena progredindo para Carreira, Monte Córdova, Roriz, São Martinho do Campo, Santo Tirso, Begães e Negrelos; o segundo, evitando Ermesinde, passava por Rio Tinto, vindo a desembocar na Portela de Valongo, prosseguindo por São Martinho de Muazares (Penafiel), Cepeda, Santa Marta, Croca, Casais, Ataíde, Rial, Manhufe e Amarante; estes foram horizontes geográficos mais abrangentes, no Minho, a cidade de Guimarães e em Trás-os-Montes, a cidade de Vila Real. 115

113 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 826.

114 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999, p. 22.

115 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, pp. 333 e 334.

O Padre Joaquim Alves Lopes Reis acentua e reforça a importância da profissão para o desenvolvimento de Valongo. “Pobres porem os habitantes de Vallongo n’essa época em que não era bem conhecida a maior fonte de riqueza, o commercio, viviam em parte da cultura das terras e em parte do officio de almocreve que foi exercido em larga escala pelos nossos antepassados. Estes almocreves que viviam de transportar até ao interior da Hespanha as diversas mercadorias que iam procurar ao Porto e a outras terras do paiz, sustentaram por seculos a povoação de Vallongo que começou a desenvolver-se com o augmento das terras ao contacto das quaes estava; porque Vallongo devido à sua bella posição geográfica estava em vantajosas condições para descanço e repouso de todos os viandantes, pousada e refresco de todos os passageiros.”116

Tendo em conta que a região do Douro Superior, nomeadamente, toda a região sul de Trás-os-Montes apresentava excelente aptidão para a produção de trigo e centeio, entre os muitos produtos que carregavam, destaca-se o transporte do cereal vindo da terra quente transmontana e que era levado para o Porto. A necessidade do tráfego comercial de cereais, entre outros produtos, fez florescer o grupo de almocreves de Valongo. “Os almocreves que constituíam uma grande parte da população de Vallongo, pondo esta terra em comunicação com outras do paiz e até estrangeiras, começaram a arrastar de todas as partes para aqui as suas riquezas, a levar os produtos de Vallongo para as terras com que se relacionavam (…). Foi este mesmo facto que fez trazer aqui o trigo do Alemtejo e Traz-os-Montes, o qual era reduzido a farinha nos moinhos das margens do rio Ferreira e manipolado em Valongo para ser vendido pelas terras circumvizinhas.”117

Joel Mata elenca os muitos almocreves que viveram na Rua de Santo Antão, na Rua Velha, na Rua Nova, no Escoural e na Portela, contabilizando 52 almocreves entre 1590 e 1649. 118 O mesmo autor chama a atenção para a relação privilegiada que existia entre os mercadores de Valongo e alguns mercadores do Porto que gerava confiança nos serviços e fomentava a profissão.

O reduzido número ou inexistência de almocreves com residência noutras freguesias do concelho pode ser explicado pelo facto de que foi a centralidade do núcleo de Valongo, enquanto elo entre pontos de grande importância produtiva e mercantil, que deu azo a que tantos homens daquele lugar se entregassem a uma profissão deveras arriscada pelos riscos de assalto, roubo e ofensas físicas que sofriam.

O relato do Padre Joaquim Reis reforça a importância dos caminhos que passavam por Valongo. “A estrada que aqui passava começou no seculo XV e XVI a mudar para a Senhora das Chãos. Os viajantes, chegando ao alto do Escoural, para fugirem á subida da Açuda seguiam ao poente pelos Bacellos, indo da Cana para o sul na encosta do monte que atravessavam quasi no Montaltoe, depois, no logar onde está hoje a capella. Só mais tarde é que começou a fazer-se caminho pela Serra velha por onde foi aberta uma estrada que tinha o nome de real, mandada fazer e calçar em parte, a ultima vez pelo integérrimo corregedor do Porto D. Francisco Almada que mandou também fazer o tanque e fonte da Serra para conforto dos passageiros, e construir na villa à custa do Estado a Ponte Carvalha. Esta estrada descia da Serra pela Boa Vista, rua Marques da Rocha, Valle, Fontainhas, Ponte Carvalha, Sapal e Ferraria, por onde entrava na Portella. E pode dizer-se que até aos fins do século XVII não havia povoação alguma para baixo da Ferraria onde era propriamente a entrada de Vallongo, como indica o nome de Portella. Começando depois a desenvolver-se extraordinariamente a industria da panificação que n’essa época era exclusiva de Vallongo, a população entrou a crescer tambem e se formou a parte oriental da villa, primeiro até ao Padrão e depois até

116 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 126 e 127.

117 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 134 e 135.

118 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 12581835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, pp. 336, 337 e 338.

á Presa. Desde então, os viandantes não mais tornaram a dar pelo Susão a volta que costumavam, quando as águas dos ribeiros que cortam esta freguesia não permitiam a passagem. Porque, convém dizer aqui, que estes ribeiros que hoje pouca agua levam não foram sempre assim. Antigamente, durante todo o anno abundantes, tornavam-se torrenciais no Inverno, pelo que muitas vezes, os almocreves que passavam em Vallongo, quando se não podiam demorar por dias á espera que a agua diminuísse, seguiam outro caminho, embora mais longo e já deteorado, que ia na encosta do monte de Sobrado á Bouça Queimada, de onde, a deante, passavam para Valselhas e Ponte Ferreira.”119

Até ao declínio da profissão que se veio a verificar pelo fomento de outras formas de transporte, os almocreves ocuparam grande protagonismo na construção, por um lado, do que era o abastecimento ao núcleo urbano do Porto e, por outro lado, foram, igualmente, elemento gerador e ampliador da força de Valongo enquanto concelho que, durante séculos, abasteceu e alimentou aquela cidade com pão de trigo. Na verdade, possibilitavam o acesso ao trigo que faltava no concelho, quer o que vinha das terras quentes do Douro, como o que, vindo por mar era, depois, vendido no Porto.

No âmbito das ações de defesa da linha de costa junto à cidade do Porto contra as investidas de pirataria, um importante testemunho regista, simultaneamente, a importante função dos almocreves no âmbito do transporte de produtos e a afamada reputação do pão de Valongo. Em 1639, as tropas do Terço de Álvaro de Sousa preparam-se para uma musculada reação de defesa de Matosinhos, Leça e São João da Foz perante a possibilidade de um ataque francês. Neste contexto, é solicitada à Câmara Municipal a ajuda necessária para fazer face ao possível ataque. O testemunho assinala que “(…) além do dinheiro, o Mestre de Campo pediu o seguinte: diariamente 200 alqueires de pão cozido e 15 reses. Além disso, necessitava de 80 pipas de vinho, 100 arrobas de bacalhau, 30 moios de cevada. E ainda 20 quintais de pólvora, 30 quintais de murrão, 80 quintais de balas, 40 artilheiros, 7 ou 8 almocreves com 15 ou 16 bestas para serviço do Terço, 250 cartuchos, 15 ou 20 bota-fogos, 400 armas para os habitantes, «gente dos montes, dezarmada e tosca»; cirurgiões, medicamentos e 8 vergas de navio e 8 velas para proteger os soldados das doenças que a demasiada exposição ao sol poderia provocar. Na resposta a Câmara lamenta as suas dificuldades para ajudar com dinheiro, mas promete que não faltará com pão, carne e bacalhau. Quanto aos almocreves, sugere que aproveitem os que levassem o pão desde Valongo. Sobre munições e armas, o Senado denuncia que as “muitas e boas” de que a Câmara dispunha, haviam sido utilizadas por ordem de El-Rei noutras ocasiões a título de empréstimo, mas não haviam retornado. Quanto ao resto, enviariam tudo, exceto cevada «por não aver companhia de cavallos nesta cidade”. 120

O rico conteúdo deste testemunho reafirma a importância dos almocreves, não só como agentes na movimentação de produtos, como também realça o seu contributo no esforço de guerra dando conta, por isso, da valorização da profissão. Por outro lado, na história que o Pão de Valongo traça, depreende-se que havia já, neste lugar, em 1639, a prática sustentada da produção de pão que era, depois, levado para a cidade do Porto, pois que no abastecimento às tropas encarregues de fazer a defesa de linha de costa entre Matosinhos, Leça e São João da Foz, estava o pão de Valongo trazido pelos almocreves. Este registo permite garantir que a arte do pão teve no núcleo de Valongo uma evolução que levou ao aperfeiçoamento e à diversificação dos produtos feitos com trigo, como a Regueifa e os Biscoitos. António Carvalho da Costa (1650-1715) na obra Corografia Portugueza (1706) descreve Valongo como “(…) «Vigairaria do Mosteiro das Freiras de São Bento do Porto que rende ao todo cento e vinte mil reis, e pêra

119 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 138 e 139. 120 SILVA, Francisco Ribeiro – O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto. Dissertação de doutoramento em História Moderna e Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. II volume, 1985, p. 885 e 886.

as religiosas com sabidos trezentos mil reis: he povo grande e arruado habitado de muitas padeiras que sustentão o Porto de pão que elas lá levão a vender, e de muitos almocreves, que vivem de conduzir de muitas légoas o trigo para suas mulheres cozerem: tem duzentos e noventa vesinhos, e estas ermidas, Nossa Senhora das Chans, que foi de muita romagem, Santa Justa, S. Bertholameu e Santo Antão»”121

Nesta descrição, reafirma-se como a ligação entre os almocreves e as padeiras também contribui para a afirmação do Pão de Valongo no conjunto da panificação regional. Na verdade, a centralidade de Valongo na rota comercial litoral-interior, deu a oportunidade de poder contar com o trigo vindo de outras paragens. Estava garantida a acessibilidade ao trigo, principal ingrediente do pão branco que tanta procura gerava na cidade. O resto, foi o resultado de uma inexcedível busca da perfeição através da repetição diária da tarefa do pão. Seguir estes dois registos sobre os almocreves e as padeiras reafirmam que a reputação do Pão de Valongo foi sendo construída e seria já firmada e segura para vir referida de forma individualizada de outros fornecimentos de pão à cidade do Porto.

As fontes documentais dão nota do elevado número de almocreves que existiam em Valongo reforçando a atratividade da profissão até meados do século XVIII. A necessidade do transporte de carregos, entre o Porto e os núcleos envolventes, para isso contribuía. Companhia fiel dos almocreves eram os animais de carga, sobretudo, os muares que, evidenciando grande capacidade de transporte, permitiam o intercâmbio entre regiões. É de notar que uma das principais festividades de Valongo estava relacionada com a necessidade de proteção daqueles animais. Francisco José R. Seara no Bosquejo Histórico da Villa de Vallongo (1896) enuncia que “celebra esta villa algumas festas tradicionais, que os antepassados lhe legaram e ella conserva com a mais viva fé e uncção religiosa. A mais importante e significativa é sem dúvida a do Santo António. Teve princípio no meiado do século XVIII, em 1750, por occasião de uma terrível epidemia que então grassava com pasmosa intensidade entre as alimárias de carga d’este povo constituído na sua maior parte por almocreves, que vendo-se privados dos seus instrumentos semoventes de trabalho, por onde auferiam os meios de subsistência recorreram a protecção divina e invocaram o auxílio do Santo-thaumaturgo, fazendo-lhe os mais solennes votos.”122

Será, na segunda metade do século XVIII, que a profissão de almocreve sofre uma redução drástica de efetivos, não voltando a recuperar a vitalidade que teve durante séculos. Na origem de tal poderá estar a decisão régia na liberalização do comércio do trigo. Na verdade, se durante séculos, o receio da carência de pão (cereais) obrigou a vereação do Porto a tomar medidas quanto à saída de cereais da cidade, a publicação do Alvará Régio de 18 de Janeiro de 1773 e da Carta de Lei de 4 de Fevereiro de 1773 determinam a isenção sobre produtos como o grão e a farinha que ficam “(…) livres de todos os direitos de entrada, ou sahida, de sizas, de imposições, de contribuições, de portagens, de almotaçarias, de amostras, ou sejam conduzidos por Carretos de Terra, ou transportados por Mar (…) porque, sendo-o assim, passaráõ, e giraráõ livremente

121 COSTA, António Carvalho da – Corografia portugueza, e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal. Lisboa : na officina de Valentim da Costa Deslandes, Livro II da Província da Beyra 1706-1708, p. 231.

122 SEARA, Francisco J. Ribeiro – Bosquejo Historico da Villa de Vallongo, Santo Thyrso, 1896, pp. 19 e 20.

de humas para outras Províncias, e de huma para outras terras, sem o menor encargo, ou embaraço algum.”123 O propósito desta liberalização entronca no espírito da época e tem como base a crença de que o mercado seria capaz de regular sem a intervenção estatal ou municipal.

Esta medida poderá ter sido um dos motivos que contribuiu para a redução do número de almocreves, pois, se por imposição das Ordenações Filipinas, num clima de proteção na venda e revenda de cereais, era permitido àqueles que “(…) eram naturaes deste Reino, que quiserem comprar pão, para em suas bestas, com que costumão ganhar sua vida o levarem, poderão comprar o pão, que nellas poderem levar, e irem vendello a qualquer lugar destes Reinos sem serem obrigados a dar fiança, nem pedir licença, com liberalização da compra de cereais retirou àquela classe o privilégio da isenção na revenda.

Em 1764, são registados 41 almocreves, em 1765, reduz para 13 e, em 1793, somente são identificados 3. Na verdade, M. Adelaide Lima esclarece que a profissão passa por fortes dificuldades financeiras fruto da não utilidade da mesma, pois que a abertura do mercado tinha permitido aos padeiros uma maior proximidade com os comerciantes de trigo evitando, assim, o pagamento a intermediários. A menor utilização dos serviços dos almocreves fragilizou a posição económica dos mesmos, sendo tal visível nas “(…) atas notariais que se ligavam ao crédito hipotecário privado – obrigações e confissões de dívida, cessão e trespasse e paga e quitação. (…) Constata-se que o súbito atrofiamento do número de almocreves se deve à intromissão de outros agentes na compra de trigo, como sejam os padeiros, moleiros, atafoneiros e tulheiros.”124

Na verdade, o crescimento da atividade da panificação e o constante movimento de padeiros e padeiras entre Valongo e o Porto, aproximou quem ia vender o pão, a regueifa e os biscoitos à cidade aos mercadores de trigo. No sentido de oportunidade que esta proximidade permitiu, a comunidade de padeiros e padeiras valonguenses viu a possibilidade de negociar o tão bem desejado cereal evitando, não só os intermediários, como também fazendo de tal um negócio. M. Adelaide Lima, na análise que fez de escrituras notariais, identifica vários exemplos do comércio gerado com a venda de farinha de trigo. “Manuel Fernandes Póvoas e sua mulher Ana Francisca afirmam ter comprado «(…) várias fiadas por negociar nesse género, como he costume no seu lugar de Vallongo (…)». Josefa da Rocha diz que desde há sete anos compra trigo a António Sousa Lobo «(…) muito a sua satisfação tanto em preço como em abundancia, de que lhe tem feito varios pagamentos (porém ela) também vende o mesmo trigo para varias pessoas da mesma freguesia de Valongo». Comprava-se a crédito e vendia-se a crédito.”125 As idas semanais dos padeiros e padeiras ao Porto em conjugação com a evolução dos transportes e do sistema comercial levou a que os serviços dos almocreves fossem desajustados para uma sociedade em mudança. O sistema de transporte assente em animais de carga, demorado e com custos, acabou por se revelar ultrapassado levando à procura de soluções mais rápidas. Por outro lado, a proximidade dos padeiros e padeiras ao comércio do trigo, quiçá com outras condições, revelou-se decisivo para que assumissem aqueles uma função que outrora pertencera aos almocreves.

123 Carta de Lei, pela qual se manda cessar todos os abusos, e desordens, com que a malicia, e cubiça tinha arruinado huma grande parte da Lavoura, e faziam tratar nas Alfandegas, e Casas do despacho deste Reino, como estranhos os géneros, que se transportavam do Reino do Algarve, in Colleção das Leys e Decretos, e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del rey fidelíssimo D. Jozé o I, tomo III, Lisboa, 1775, pp. 156-159.

124 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, pp. 118 e 119.

125 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, pp. 118 e 122.

Em Valongo. Os Moleiros. Se o atual concelho de Valongo nunca teve a capacidade de produzir o trigo para a exigência de abastecimento da cidade do Porto e seu termo, àquele cereal teve acesso por via da centralidade geográfica que ocupava nas rotas que os almocreves percorriam entre o interior e o litoral. Tal, concorreu, sobremaneira para que homens e mulheres de Valongo se dedicassem a um dos produtos que mais procura tinha na cidade do Porto e seu termo, o pão. Perante a circunstância da necessidade de abastecimento e a oportunidade de acesso ao ingrediente principal, o trigo, criou-se a prática da panificação que, no decorrer do tempo, foi-se transformando, quer em arte, quer em elemento impulsionador de riqueza, quer ainda em símbolo cultural.

Contudo, nos traços que a história do Pão de Valongo desenha e marca surge de forma incontestável a moagem como uma das fundamentais circunstâncias que os rios Ferreira e Leça, e ainda, outros pequenos regatos, transformaram em oportunidade. No conjunto dos cursos fluviais que atravessam o concelho de Valongo, terá sido no rio Ferreira que se situou o maior número de engenhos de moagem, contudo, as fontes documentais esclarecem que havia moinhos por todo o concelho. No âmbito das Memórias Paroquiais (1758), na descrição do Abade de São Lourenço de Asmes (Ermesinde) destaca-se a referência ao rio Leça que atravessa a freguesia. “(…) Não nasce caudaloso e todo o ano corre, se bem que no verão com muito pouca água. Em huma das açudes que he da igreja há um moinho donde girão seis rodas; e em outra particular de um labrador; há outro com quatro rodas.”126

O reitor Joaquim de Sousa Dias identifica que Valongo “nam tem rio so sim hum regato que começa junto a dita aldeia de Suzam e paça no meio do lugar no sitio chamado a ponte Carvalha outro regato que começa no sitio chamado Vilar Moirisco e paça no fim do lugar no sitio chamado a ponte da preza cujas pontes se andam fazendo so corem com violência em tempo de inverno e se vam juntar com o rio da ponte ferreira no sitio que chamam o Salto com estas agoas dos ditos regatos moem alguns moinhos.”127

O abade de Sobrado, responsável pela descrição da respetiva freguesia, assinala que “pelo meio desta freguezia passa o rio Ferreira, chamado assim por nascer na freguesia de Ferreira, nasce pouco caudaloso e corre todo o ano. He de curso arrebatado em parte, em outras quieto como nesta freguesia. (…) Há nas margens deste rio, nesta freguezia 33 moinhos (…)”. 128 De todos os cursos fluviais do concelho de Valongo, o rio Ferreira seria o de maior importância no que respeita à concentração de unidades moageiras. Joaquim Reis relata que, no final do século XVII, uma grande inundação tida como calamidade causou grandes distúrbios. “No rio Ferreira a corrente tão impetuosa se tornou que grande parte dos moinhos, ali existentes, foram destruídos, o que augmentou ainda mais os grandes prejuízos de Vallongo.”129

A referência a mós alveiras e mós negreiras em alguma da documentação disponível acentua a certeza de que, no concelho de Valongo, se moía trigo para além do milho e do centeio. Ainda que fosse proveniente de outras geografias, o trigo trazido pelos almocreves era, depois, moído nos moinhos do concelho. Francisco José R. Seara no Bosquejo Histórico da Villa de Vallongo (1895) dá nota “(…) do considerável

126 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 33, nº 46, p. 317 a 322.

127 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 38, nº 34, p. 181 a 188.

128 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 35, nº 186, p. 1385 a 1388.

129 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 144.

trafego de trigo manipulado com abastece a maior parte dos concelhos limítrofes especialmente o Porto, alme da importante industria de moagens nas margens do rio Ferreira.”130 Na descrição de Joaquim Reis (1904) já citada, é referido o trigo que vinha do Alentejo e de Trás-os-Montes e que seria, depois, moído nos moinhos do rio Ferreira. Algumas das estruturas moageiras do concelho de Valongo são, ainda hoje, visíveis reiterando a importante presença que os mesmos tiveram na produção de farinha alveira e negreira, ou seja, de farinha de trigo e de farinha de centeio ou milho, respetivamente. Alimentar o fabrico do Pão de Valongo, entendido no início do século XX como indústria, obrigava à moagem de muito trigo como comprovam os valores apresentados nos mapas de produção. Em 1901, os valores de consumo do trigo situam-se nos 90 000he, em 1902 em 95 000he e, em 1903, 98 500he. Tais quantidades por comparação com o milho seriam, sobretudo, para o fabrico de pão, regueifa e biscoitos, atividade de muitas padarias de Valongo e sustento de muitas famílias. Não se sabe quais as quantidades moídas nos moinhos locais, contudo, é de supor que muito do trigo fosse moído localmente.

Isso mesmo encontra fundamento na missiva apresentada ao rei D. Carlos, em 1892, pela presidência da Câmara, no âmbito da falta de trigo e proibição da sua importação. “A Câmara Municipal de Vallongo julga interpretar os sentimentos dos seus munícipes em satisfação do pedido que lhe foi feita pela Commissão escolhida n’um concorridíssimo comício em que se achavam representadas todas as classes deste concelho, vindo pedir a Vossa Magestade urgentes providências para que não seja posta em execução e convertida em providência de carácter permanente, a deliberação tomada pela Commissão de Cereaes do Mercado Central de Lisboa e, pela qual ficará prohibida a esta villa a importação de trigo estrangeiro. Vallongo pelas condições especiaes em que se acha, e ferido profundamente nos seus justos interesses, tal deliberação, representa o aniquilamento por completo da importante indústria da manipulação do pão e d’outras industrias correlativas, taes como a moagem de trigo e casas denominadas de moinhos. A sustentação da quasi totalidade das famílias habitam esta villa é proveniente d’estas duas industrias e a riqueza d’este importante ramo de commercio está às mesmas perfeitamente ligado. Posto em execução o que foi resolvido pela Commissão de Cereaes do Mercado de Lisboa, terão de fechar-se pelo menos cinquenta e oito casas de moinho que existem no rio Ferreira, e assim ficarão sem pão, sem meios de subsistência os que desta industria se alimentão.

A renda anual d’estes moinhos é calculada em seis contos de réis. A farinha que estes moinhos produzem é calculada em 150 000 saccas ou 18 000 000 de quilogramas de trigo. O moleiro recebe 500 000 réis por sacca de cereaes, o que prefaz a quantia de 75 000$00 réis que somados aos seis contos de renda prefaz o quantitativo anual de 81 000 000 réis, auferidos pela propriedade, pela industria, pelo commercio de moagem d’esta villa, isto além da extraordinária importação de farinha para consumo que são fornecidas pelas máquinas a vapor.”131

A descrição imposta nesta missiva realça, não só a importância que a atividade moageira tinha no concelho, como a grandeza das quantidades de farinha produzida e utilizada pela atividade da panificação. Passado dois anos, em 1894, em virtude da limitada quota de trigo atribuída ao concelho, forma-se nova comissão com o intuito de fazer chegar ao rei a notícia de que “é insuficiente tal percentagem em vista da grande laboração dos moinhos existentes n’esta villa e conselho.”132

130 SEARA, Francisco J. Ribeiro – Bosquejo Historico da Villa de Vallongo, Santo Thyrso, 1896, p. 16.

131 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, pp. 315 e 316.

132 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, pp. 315 e 318.

Na publicação Minho Pitoresco (1887) é feita referência aos moleiros fazendo justiça à sua relevância no âmbito da estrutura local. “Em terra de padeiros não deve esquecer também o popularissimo typo do moleiro, com o seu indispensável e philosophico amigo, o macho, o carregador pacifico dos folies de cereal, que a azenha se encarregou de moer, e que elle e a família se encarregaram de maquiar, segundo diz a parlenda: Lá vem a minha mulher Tirará o que quizer. A minha filha Maria E tira a sua maquia. Vem o meu filho Manuel Também leva o seu farnel. E no fim diz o creado : —Este sacco ainda não foi maquiado.”133

O Trigo. Uma História do Cereal do Pão de Valongo. Do muito trigo vindo de fora, dá nota, o Padre António Carvalho da Costa que, na descrição de Valongo, 1706, faz menção às muitas “(…) padeiras, que sustentão o Porto de pão. Que ellas lá vão vender, e de muitos almocreves que vivem de conduzir de muitas legoas o trigo para suas mulheres cozerem.”134 Também o pároco memorialista de Valbom (1758), freguesia de Gondomar, dá informação valiosa quanto ao cereal alveiro vindo de fora de Valongo ao descrever que ali aportavam “(…) as barcas que do alto douro vem carregadas de trigo (que) costumam a bordar na paraje chamada Gramido, que fica na Aldea de Valbom de bayxo, adonde descarregaõ pela commodidade, que tem o reconduzirem por terra ao Lugar de Valongo distante desta freguezia duas legoas adonde se fornea o pão, que vai em cargas para a cidade do Porto.”135 Algum do trigo que era utilizado nas padarias de Valongo poderia ser de origem local, mas a maior parte vinha de outras geografias. Dada a quantidade exigida para o fabrico de pão necessário para abastecer o Porto, aos padeiros não restava alternativa que não a de comprar fora a grande parte do cereal que era utilizado. Isso mesmo, José Augusto Vieira, em 1887, acentua na publicação Minho Pitoresco ao descrever a agricultura e a indústria do concelho. “A agricultura, talvez pelo accidentado dos terrenos do concelho, muito áspero e montanhoso, não se pôde dizer prospera; em todo o caso não deixa de cultivar-se a terra, onde é possível faze-lo, servindo os cereaes produzidos para o consumo do concelho e ainda para misturar com os trigos americanos na fabricação do pão e ditferentes variedades de biscoito. (…) Quanto ás industrias de moagem e padaria, o Relatório da Sub-commissão de inquérito dá para Vallongo: 51 moinhos de agua, representando I02 mós e empregando 100 a 150 pessoas, o que é, como se vê, insufficiente para produzir as 3:ooo toneladas de farinha que ahi se consomem, tendo por isso de vir do Porto e de outros concelhos limitrophes a maior quantidade para o abastecimento da sua industria de padaria.”136

Também o relato de Joaquim Reis acerca dos movimentos ocorridos no âmbito da guerra da Patuleia (1847) revela informação sobre a origem do trigo usado em Valongo. Na disputa entre os revoltosos sitiados no Porto, os setembristas liberais radicais, e os cartistas que defendiam a monarquia constitucional, verifica-se, no Porto, um confronto que obriga a rainha D. Maria II a pedir ajuda militar a Espanha. “Entretanto o Porto tinha-se armado até aos dentes e as trincheiras da cidade eram tão fortes e insuperáveis que a rainha, conhecendo-se impotente para vencer os revoltados, pediu auxílio á Hespanha e Inglaterra. A Hespanha mandou 30:000 homens, comandados pelo general Concha, 15:000 homens dos quaes desceram da Gallisa por Braga atacar o Porto pelo norte e os outros 15:000 vieram de Salamanca e Amarante, Penafiel

133 VIEIRA, José A. – Minho Pittoresco. Lisboa : Livraria de António Maria Pereira. Tomo II, Lisboa, 1887, p. 593.

134 COSTA, António Carvalho da – Corografia portugueza, e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal. Lisboa : na officina de Valentim da Costa Deslandes, Livro II da Província da Beyra 1706-1708.

135 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 38, nº 15, p. 77 a 91.

136 VIEIRA, José A. – Minho Pittoresco. Lisboa : Livraria de António Maria Pereira. Tomo II, Lisboa, 1887, p. 598 e 597.

e Vallongo onde se demoraram por dias para atacar o Porto pela nascente. Estes 15 mil homens com talvez dobrados animaes, peças de artilharia e carros de munições sem numero fizeram tão grande enchente em Vallongo que por toda a parte era impossível o transito e tudo estava atulhado de hespanhoes. Traziam porem muito dinheiro com que pagavam quanto compravam, e muito trigo que aqui manipulado produzia abundancia para todos.”137

Na mesma publicação, Joaquim Reis, dá nota da utilização, nas padarias de Valongo, de trigo vindo da América. “Havia então (segunda metade do século XIX) cerca de cem padarias que manipulavam o pão que sustentava as terras circunvisinhas e principalmente a cidade do Porto, onde o pão de Vallongo tinha largo consumo e nome respeitado, e nas margens do rio Ferreira mais de 160 rodas que reduziam a farinha o trigo que aqui era manipulado. Este trigo era além do trigo nacional que tinha diversos nomes segundo a sua procedência, o trigo que vinha da América, e que, embora mais caro era procurado com empenho por todos os padeiros por ser a sua qualidade mais superior e de melhores resultados pela excelência do pão que produzia.”138

Ainda que não se tenha acesso a fontes documentais que quantifiquem de forma explícita o trigo vindo de fora, nomeadamente, do vindo de Trás-os-Montes, Espanha e da América, a autorização, a 30 de Outubro de 1796, pela rainha D. Maria I da imposição do imposto de 5 réis sobre o trigo que era adquirido em semente e que, em Valongo, era moído e utilizado no fabrico de pão posteriormente vendido na cidade do Porto, comprova a grandeza das quantidades envolvidas. No fio da história que acompanha a evolução deste imposto, ao longo dos séculos, é possível, de forma indireta, perceber o volume de trigo que, vindo do exterior do concelho, era ali manipulado.

A imposição do imposto de 5 reis sobre o alqueire de trigo, terá sido uma decisão tomada no âmbito das dificuldades de financiamento da reconstrução da igreja matriz de Valongo. No entanto, as receitas conseguidas acabaram por ser utilizadas, igualmente, na reedificação da Ponte Carvalha e na reparação da Estrada Real. Do aviso régio constava “Sendo prezente a Sua Magestade a Informação que Vossa Senhoria deu sobre a Reprezentação do Juiz, Procurador, Elleitos, e Moradores de Vallongo a respeito da edeficação da sua Igreja Matriz para a qual pertendem onerar-se não só com a Impozição sobre o azeite, vinho, e carne que já se lhe havia concedido; mas sobre o pão que levão para o consumo da cidade do Porto, e suas vezinhanças, e também para com a mesma Impozição se reedificar a Ponte da Carvalha, e se reparar a Estrada Real que vai do Porto até Ponte Ferreira, que por Avizo de 3 de Outubro de 1794, se mandou proceder a exame sobre a planta que se acha aprovada, a ver se podia com menor despeza, e sem opressão dos Moradores construir com decência; assim como o outro exame dos cinco reis impostos, como pertendem sobre cada alqueire de trigo ouvida a Camará da dita cidade: He a mesma sentença servida que vista a muita precizão, e beneficio publico que rezultava das obras mencionadas, ser conveniente a dita Impozição fazendo-se logo nella a declaração de que metade da mesma Impozição seja annoalmente empregada na reedeficação e reparo da Ponte e Estradas referidas, e que dure até as ditas obras se acabarem, aplicando-se para ellas toda a Impozição no cazo de se acabar a obra da Igreja antes de concluidas as outras; e do mesmo modo aplicando-se para a Igreja toda a Impozição no cazo de se acabarem primeiro as ditas obras, e extinguindo-se a Impozição logo que ellas se concluírem, julgando que deste modo seria muito maior a utelidade que tirarião os Moradores da dita cidade sobre quem principalmente recahia a mesma impozição do que o incomodo e pezo delia

137 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 211 e 212.

138 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 213 e 214.

que se fazia insencivel, vista a sua natureza, e o cómodo do melhoramento daquella Estrada que que era das mais frequentes. O que participo a Vossa Senhoria para que na sobredita forma proceda na referida Impozição, e se continue na mencionada obra da Igreja, e reedificaçõens.”139

A persistência na existência deste imposto indireto e a concretização das obras referidas, quer na igreja, quer na Ponte Carvalha e Estrada Real indiciam que as quantidades de trigo, vindas do exterior do concelho, seriam de razoável dimensão. No Auto de contas das obras de edificação da nova igreja matriz de Valongo constam os montantes conseguidos com a aplicação deste imposto. “Que sendo as Imposições applicadas para esta obra pelo Régio Avizo de trinta de Outubro de mil sete centos noventa e seis, hum rial no vinho, azeite e carne somente na freguezia de Vallongo, e bem assim mais sinco reis em alqueire de Trigo que vem para o consumo desta Cidade, tem andado sempre por arrematação os ditos Impostos, sendo os seus Reditos annuaes na forma seguinte: No anno de mil oito centos e seis segundo as verbas da Receita lançadas na sobre dita conta desde nomaro trinta e quatro, a trinta e sete a quantia de dous contos, e duzentos mil reis = no anno de mil oito centos e sete segundo as verbas desde nomaro trinta e oito, a quarenta, e nomaro quarenta e dois, a quantia de hum conto nove centos e hum mil reis = no anno de mil oito centos e oito segundo as verbas nomaro quarenta e quatro, sesenta e dous, sesenta e oito, sesenta e nove, setenta e três, e setenta e seis, setenta e oito, e oitenta e hum a quantia de hum conto oito centos noventa e oito mil reis = No anno de mil oito centos e nove segundo as verbas nomaro setenta e nove, e oitenta e dois a quantia de nove centos mil reis = No anno de mil oito centos e des, segundo as verbas nomaro oitenta e quatro, e oitenta e sinco a quantia de hum conto cento e sincoenta e hum mil reis = No anno de mil oito centos e honze, segundo as verbas numaro oitenta e seis, e oitenta e sete, a quantia de hum conto cento e sesenta e sete mil reis = no anno de mil oito centos e doze, segundo as verbas desde numaro oitenta e oito, a noventa, a quantia de hum conto cento quarenta e hum mil seis centos e quarenta reis = no anno de mil oito centos e treze, e segundo as verbas numaro noventa e hum, a noventa e dois, a quantia de hum conto trezentos e des mil reis = no anno de mil oito centos e quatorze segundo as verbas numaro noventa e três, e noventa e quatro a quantia de hum conto sete centos e sessenta mil reis = no anno de mil oito centos e quinze segundo as verbas numaro noventa e sinco, e noventa e seis, a quantia de hum conto nove centos noventa e oito mil reis = E no anno de mil oito centos e dezaseis por a metade do rendimento com que entrou adiantado o arrematante Joze Luis Ferreira em vinte e seis de Julho de mil oitocentos e quinze, conforme a condição de arrematação, que finda em vinte de Julho de mil oito centos e dezaseis a quantia de hum conto e sinco mil e quinhentos que foram carregados em receita neste livro segundo das entradas e sahidas geraes a folhas duas; no qual a folhas des, ficão mais lançadas em Receita três mil reis que entregou o arrematante do anno mil oito centos e oito para prefazer o composto da sua arrematação, e bem assim mais dezanove mil oito centos sesenta reis que pela mesma razão entregou ó arrematante do anno de mil oito centos e doze. Achão-se mais lançadas na importância total de hum conto cento e hum mil trezentos e setenta e hum reis”140

A importância das receitas conseguidas com a imposição deste imposto terá merecido a atenção de Francisco José Ribeiro Seara no seu Bosquejo Histórico da Villa de Valongo (1895) em que este autor refere que “esta obra monumental (a igreja matriz)

foi construída a expensas d’um tributo especial de cinco reis em cada antigo alqueire de trigo importado na villa para manipulação ou consumo. E ainda com metade do produto d’este imposto se construiu a Ponte Carvalha, no centro da vila por onde passa um affluente do rio Ferreira.”141

A aplicação deste imposto não surge explícita ao longo dos anos seguintes, contudo, surge informação acerca da tentativa de evasão, por parte dos envolvidos na atividade da panificação, à obrigação de o pagar através da aquisição de trigo já transformado em farinha, em vez de em grão. Tal, denuncia que o mesmo era ainda aplicado e que seria importante como receita. Será, exatamente, pelo que poderia significar de suporte financeiro nas despesas, que surge a proposta do presidente da edilidade valonguense, Francisco José Ribeiro, a 2 de Setembro de 1858, de “para em parte atenuar ou suprir este desfalque se fizesse extensivo à farinha triga o mesmo imposto de cinco réis por alqueire, dividindo-se este rendimento da mesma forma que a do trigo, metade para as obras da igreja e metade para as despezas do município.”142

Joel Mata 143 reforça que não é claro o caminho que este imposto percorre, contudo, na sua leitura, o imposto de 5 réis sobre 17,35 litros de trigo ou farinha (para ser moído ou manipulado) é de novo lançado em sessão de câmara de 19 de Abril de 1882, para fazer face aos custos da contração de um empréstimo pela câmara municipal. “O projeto de orçamento, para este ano, e, devido às dificuldades gerais do concelho, foi modificado, dando origem a um orçamento suplementar contendo unicamente os melhoramentos de «inadiável necessidade», reservando para incluir no orçamento ordinário os de somenos necessidade, porque ainda não se sabia bem qual a verba a que atingiria o rendimento do imposto de 5 réis em cada 17,35 [litros] de trigo em grão ou farinha. O orçamento suplementar foi devidamente aprovado pela instância distrital competente, mas com o esclarecimento de que o trigo que entrasse na vila, destinado ao consumo ou para ser moído, estaria isento, desde que o seu proprietário solicitasse uma guia ao encarregado da cobrança e «lhes pagasse a respectiva importância, a qual lhe seria distribuída logo que fosse verificada a sahida do mesmo trigo»”. 144

O referido imposto acabou por se transformar num peso que os industriais da panificação não estavam dispostos a suportar provocando uma reação de contestação. Queria-se a abolição do tributo que pesava sobre as contas dos que compravam trigo para posterior manipulação. Após recurso ao Supremo Tribunal Administrativo, a câmara é autorizada a manter o imposto. No ano seguinte, em 1883, aquele é de novo incluído no orçamento municipal para custear a iluminação pública, sendo tal intenção franqueada pela interposição de inúmeros recursos ao Supremo Tribunal Administrativo. Contudo, a decisão final não irá ao encontro das expetativas dos representantes da atividade da panificação já que da extensa redação resulta como prioritário evidenciar que “(…) considerando que o imposto indirecto sobre o trigo e farinha que for manipulado no concelho de Vallongo se colhe sobre géneros comprados para consumo, e que não pode objectar-se que o trigo e farinha manipulado no concelho de Vallongo não é ahi consumido porque o género exportado não é o trigo e farinha, mas o pão e o biscouto, sobre que a Câmara não lança imposto algum. Considerando que, somente no caso da Câmara de Vallongo tributar o pão e biscouto, é que seria procedente o argumento das indústrias daquele concelho, que recorreram para este tribunal com fundamento de que o género tributado não é alli consumido.

141 SEARA, Francisco J. Ribeiro – Bosquejo Historico da Villa de Vallongo, Santo Thyrso, 1896, p. 17.

142 AHVLG / CMVLG, B / A 7, fl. 79v.

143 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 179.

144 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 179.

Massa para os Cacos.

(…) Considerando finalmente que, a Câmara de Vallongo, no lançamento do imposto indirecto de 5 réis sobre 17,35 [litros] de trigo ou farinha que for manipulado no concelho, não ofendeu os preceitos legaes; Por taes fundamentos; Accordam em conferência, que negam provimento aos recursos.”145

Para além do princípio que motivou todo o debate entre a câmara Municipal e os representantes da atividade da panificação, ou seja, a aplicação do imposto de 5 réis sobre o trigo em grão ou farinha utilizado para transformação em pão a ser vendido na cidade do Porto, o conteúdo da decisão do Supremo Tribunal Administrativo, permite descrever o fim a que o trigo se destinava. Importa realçar a referência ao pão, que em 1883, seria de grande venda pelos mercados do Porto, e ao biscoito, produto que começa a ganhar destaque na diversificação de produtos resultantes da atividade da panificação.

Em suma, a aplicação de imposto sobre o trigo trazido do exterior do concelho, quer num momento em que as receitas se destinavam a um propósito que gerava consenso, como o financiamento das obras da igreja matriz, reedificação da Ponte Carvalha e reparação da Estrada Real, quer num momento em que, de forma unilateral, a câmara municipal se faz valer da imposição desse imposto para financiar as várias despesas do município, retrata a dimensão financeira que a importação de trigo para transformação tinha no concelho de Valongo. Na verdade, a persistência neste tributo sustenta a ideia de que o desenvolvimento daquele concelho teve na panificação um dos seus pilares.

Pela necessidade do trigo para a atividade da panificação desenvolvida no concelho de Valongo, a sua disponibilidade será sempre uma questão sensível. Tendo em conta as limitações da produção dentro dos limites do concelho, o recurso a trigo vindo de fora será uma realidade que terá acompanhado o desenvolvimento de Valongo enquanto centro produtor de produtos de panificação. Neste contexto, todos os fatores internos, como a aplicação de imposto sobre o trigo importado, ou externos, como a carência de trigo, seriam capazes de perturbar o acesso aquele cereal, tendo motivado o recurso a soluções capazes de assegurar a tranquilidade do fornecimento.

Portugal só ocasionalmente terá sido autossuficiente em reservas de trigo.

A história cerealífera do território nacional mostra como foram sendo encontradas soluções ao longo do tempo. Desde a expansão ultramarina em busca de portos trigueiros, ao impulso de produção cerealífera nos novos territórios recém-descobertos como a Madeira, à importação de cereal de outros mercados, sempre Portugal se fez valer do trigo vindo de “fora”.

Contudo, no início do século XIX, melhores anos agrícolas com resultados de produções maiores conduziram a uma baixa de preços. Entre 1811 e 1820, a redução dos preços do trigo motivou a publicação de medidas protecionistas que culminaram nas limitações à importação daquele cereal. O contexto nacional favorecia a interdição de comprar trigo de fora como traduz o discurso parlamentar de 14 de Abril de 1821, exclamando o autor que “se temos pão para comer este ano, para que havemos de estar a fazer preço para ocasiões que, não existem ainda? Está demonstrado a esta Assembleia que Portugal tem pão para este ano: feche-se a entrada a todo o trigo, a todo e qualquer pão. Para que havemos estar fazendo leis para circunstâncias que não sabemos quando hão de existir? Trata-se agora de ajudar a lavoura, o meio é proibir a entrada do pão; proíba-se, e não se trate senão disto.”146 Neste contexto de restrição, a importação do trigo espanhol foi proibida pelo Aviso de 18 de Março de 1820, mandado observar pelo decreto de 19 de Março de 1821 motivando o início um ciclo de contrabando que trazia aquele cereal até Valongo onde era crucial para a atividade da panificação. Nessa época, “(…) começarão

os introductores a acautelar-se no referido tráfico (…) sendo os introductores tão cautelozos que deixaõ o género oculto legoas distante dessa povoação, mandão por terceiras pessoas fazer os ajustes para amostras, e fazem a sua introducção nocturna, e clandestinamente em huma terra como Vallongo aberta em toda a sua circunferência que comprehende melhor d’huma legoa, como costumão praticar os malfeitores com todo o género de contrabando.”147

Em 1861, os valores da produção nacional de trigo não cumprem as necessidades de Portugal sendo que, num concelho como Valongo, a carência de trigo era sentida como uma limitação à atividade da panificação, pois que os produtos gerados dependiam em exclusivo daquele cereal. A falta de trigo motivada, simultaneamente, pela falta em Portugal e pela proibição de importação, impedia a laboração das padarias e desesperava, por isso, os seus proprietários que sentiam a escassez do cereal como motivo de estagnação económica.

Tal descontentamento terá motivado a deslocação de uma representação da câmara de Valongo ao governo de modo a comunicar as eventuais consequências da falta de trigo. A comissão foi emissora de uma mensagem que traduzia o desespero dos industriais de Valongo ao referir que “em annos de colheita regular de trigo, a sua produção n’este concelho, como nos limítrofes, suppria o consumo próprio e ainda fornecia uma grande porção para o imenso consumo diário da cidade do Porto. Este anno, porém, a colheita é limitadíssima, e como não há memória d’outra igual, e dando-se, como infelizmente parece dar-se, a mesma falta na província de Traz-os-Montes, especialmente, em relação ao trigo barbella; e sendo d’ahi que era suprida a maior parte do consumo da cidade do Porto, com os trigos que aos seus mercados concorriam, é por isso inevitável, ou pelo menos muito provável, a realização da crise que se antevê. (…) He portanto fora de dúvida que a não ser admitida a importação de trigo do estrangeiro, necessariamente o preço d’este cereal tem de subir excessivamente; e sendo, como é um objecto de consumo e da primeira necessidade, a sua carestia affecta sempre os interesses dos consumidores, forçando-os a um extraordinário aumento na despeza doméstica. Porém especialmente em relação aos habitantes d’esta villa há quem mais directamente vem ferir; porque vivem quasi exclusivamente da agência do fabrico de farinhas, e de manipulação do pão para consumo da cidade e povoações circumvizinhas; e sendo incontestável que a carestia de um género é sempre produzida pela escacez d’elle, e que o seu consumo por conseguinte se tornou limitadíssimo, já se vê que o número de pessoas empregadas na manipulação d’esse género, quando elle, como o de que se tractar, tem de passar por tão variados processos para ser reduzido a pão, há-de necessariamente diminuir na mesma proporção; e assim uma grande parte da povoação da villa, irremediavelmente tem de sofrer a cessação de suas habituaes ocupações, e conseguintemente a dos proventos que aufere d’essa sua exclusiva industria e agencia. A câmara portanto pondo de lado a questão da liberdade do commercio de cereaes, aponta só e unicamente a momentosa necessidade de lançar mão da Lei, ou providências existentes reguladoras da introdução temporária de cereaes estrangeiros, authorisando-se na conformidade d’ellas a sua livre importação (…). A bem dos interesses geraes dos povos, e para os poupar a penosos sacrifícios, com os quaes vem sempre de envolto graves transtornos à ordem social, e à boa administração pública. Com superabundantes fundamentos confia a Câmara Municipal do Concelho de Vallongo em que Vossa Magestade (…)

há-de prover de remédio sobre o transcendente assumpto que a motiva, permitindo a importação de trigo estrangeiro nos termos a conseguir a preciosa abundância para satisfazer as necessidades de consumo, sem de modo algum prejudicar os interesses legaes da agricultura nacional.”148

As medidas protecionistas que antecederam a lei dos Cereais de 1889 149 impuseram grandes restrições à importação de trigo, sendo esta efetuada sob controlo de modo a proteger a produção nacional. Assim, tendo em conta a necessidade de trigo para a atividade da panificação, verificou-se, por parte de entidades públicas e privadas, a constante preocupação com a quota de trigo a que o concelho tinha acesso. Em 1864, na sessão de câmara de 28 de Abril, a população de Valongo manifesta-se através de requerimento evidenciando as desastrosas consequências da falta de trigo e do acesso a este cereal através da importação. Em 1893, o presidente da câmara municipal resolve dirigir pedido ao Ministro das Obras Públicas referindo “constando pela impensa que a Commissão de Cereaes, resolveu excluir moageiros de moinhos dágua no rateio para importação de trigo estrangeiro no próximo anno cerealífero: a Câmara Municipal vem solicitar de V. Ex.a que a exemplos dos annos anteriores lhe fiquem garantidos seus direitos sob pena de gravíssimos prejuízos para aquella industria a principal d’esta villa. 150 A esta missiva, respondeu o responsável pelas Obras Públicas de que não iria faltar o trigo necessário para a manutenção da atividade da panificação em Valongo. Como já referido, entre 1892 e 1894, a preocupação em manter os muitos moinhos do concelho ativos e as padarias em laboração leva a povo de Valongo a fazer-se representar pela Câmara Municipal junto do rei D. Carlos com o intuito do monarca garantir que para este concelho seria canalizado trigo importado. Solicita-se que “(…) não seja posta em execução e convertida em providência de carácter permanente, a deliberação tomada pela Commissão de Cereaes do Mercado Central de Lisboa e, pela qual ficará prohibida a esta villa a importação de trigo estrangeiro. Vallongo pelas condições especiaes em que se acha, e ferido profundamente nos seus justos interesses, tal deliberação, representa o aniquilamento por completo da importante indústria da manipulação do pão e d’outras industrias correlativas, taes como a moagem de trigo e casas denominadas de moinhos.”151 Em 1895, nova solicitação é feita ao Ministro das Obras Públicas, realçando a edilidade que não contemplar Valongo com uma quota de trigo seria desastroso para o equilíbrio económico e social do concelho. No início do século XX, em consequência da aplicação da Lei dos Cereais de 1889-1899, acentuou-se a questão cerealífera e o impacto desta sobre o acesso ao pão, bem alimentar essencial à subsistência das famílias. A tentativa de proteção à produção nacional com a imposição de restrições à importação de trigo exótico, controlo do preço do trigo nacional e tabelamento do preço do pão, acarretou maiores dificuldades para os padeiros que, com um maior nível de custos, se viam impedidos de definir o preço dos produtos que vendiam. A eclosão da I Grande Guerra e a agitação económica, política e social que antecedeu a instalação da República agravaram as dificuldades referentes ao abastecimento alimentar. É um período em que, em todo o território nacional, se vivem crises de subsistência redundando, em alguns casos, em graves acontecimentos como aconteceu em Lisboa em 1917 com a falta de produtos alimentares, nomeadamente, cereais. Neste contexto, uma multiplicidade de medidas avulsas de âmbito local ou distrital irão dificultar o acesso ao trigo e ao pão. Em 1917, o Governo Civil do Distrito do Porto

148 AHVLG / CMVLG, C / A 73, fls. 127v-129.

149 REIS, Jaime – A Lei da Fome. “As origens do proteccionismo cerealífero (1889-1914)” In: Análise Social. vol. XV (60), 1979-4.º, 745-793.

150 AHVLG / CMVLG, B /A 20, fl. 101v.

151 MATA, Joel Silva Ferreira – História Económica, Social e Administrativa do Concelho de Valongo (1836-1926). Valongo : Câmara Municipal de Valongo, vol. II, 2023, p. 315 e 316.

toma a decisão de proibir a saída de farinha de trigo para Valongo. As diligências desenvolvidas pela Associação de Classe dos Industriais de Padaria do Porto junto das estruturas regionais, de modo a conseguir assegurar o fornecimento de trigo às padarias da cidade, expôs a fragilidade do distrito em garantir o acesso àquele cereal em todas as localidades. Poderão ter sido as necessidades sentidas em todo o distrito e a urgência em proteger as padarias da cidade, as razões para tal decisão. Terá sido, na opinião, José Pedro Reis, “uma atuação protecionista, assistindo-se ao individualismo que é tradicional em períodos de carência económica.”152

Neste contexto, o vereador da Câmara Municipal de Valongo, Manuel Martins Fernandes, interpela o Governador Civil das razões de uma medida que poderá representar “(…) a futura ruína da indústria da panificação que constitui o negócio mais importante aonde centenas de famílias vão auferir os meios de sustentação (…).”153 Chamando a atenção, o referido vereador, para o facto de que a ampla atividade desenvolvida em Valongo se destinava ao abastecimento da cidade do Porto, não deixa de se subentender que, à época, tal medida poderá ter representando uma medida de proteção à indústria da panificação que ia tomando pulso na cidade do Porto (em 1911, já existiam 115 padarias na cidade do Porto).

Para o distrito do Porto, Espanha afirma-se como um possível mercado abastecedor podendo fornecer o trigo que tanta falta se fazia sentir em Portugal. Neste contexto, o vice-presidente da Comissão Executiva e de Abastecimento de Valongo, José Carvalho Nogueira, solicita ao presidente da Comissão de Distribuição de Cereais e Farinhas, a 17 de Novembro de 1917, autorização para a importação de trigo vindo de Espanha com transporte efetuado pelo caminho de ferro através de Valença. No esforço de conseguir trigo suficiente para a laboração das padarias de Valongo, aquele mesmo responsável envia ao Ministro do Trabalho, documento de petição dos padeiros de Valongo onde é enfatizada o pedido urgente de matéria-prima. “Tendo comparecido hoje, nos Paços do Concelho, uma Comissão de Padeiros desta vila, expondo as circunstâncias críticas em que se encontram por falta de farinhas para panificação, cuja indústria ameaça paralisar se não for socorrida com as farinhas necessárias para a sua laboração, e resultando da paralisação das padarias um agravamento da crise de graves consequências para a industria local e para a vida do consumidor quer de Valongo, quer dos concelhos limítrofes e especialmente do Porto, venho rogar a V. Ex.a que se digne deferir com a urgência e pedido desta Comissão, feito por intermédio da Comissão de Distribuição de Cereaes e Farinhas para poder importar livres de direitos 34 700 quilos de farinha triga, adquirida em Espanha, e destinada ao abastecimento público deste e doutros concelhos, a qual já se acha nas estações de Valença e Caminha à espera da competente autorização para o seu livre trânsito.”154

Na verdade, para os industriais da panificação de Valongo a acessibilidade ao trigo torna-se numa questão prioritária sendo fundamental cumprir todo o caminho burocrático que as decisões centrais impunham. No início do século XX, no seguimento do controlo que era imposto à utilização de trigo, comprar este cereal em semente ou em farinha implicava deslizar entre instituições. Só após a autorização da Comissão de Subsistência do Porto poderia a farinha ser adquirida junto das principais moagens. Após os turbulentos anos que caraterizaram a mudança de um regime monárquico para a república, verifica-se a tomada de poder pelo governo liderado por António de Oliveira Salazar, em 1933. Focado na necessidade de garantir o equilíbrio financeiro e a estabilidade social, dá-se uma reorganização da estrutura política, económica

152 REIS, José Pedro – “A Associação de Classe dos Industriais de Padarias do Porto na Crise das Subsistências” In: População e Sociedade. CEPESE Porto, vol. 36 dez 2021, pp. 82-97 [consult. Em 8 abril de 2004] Disponível na internet em: DOI: https://doi.org/10.52224/21845263/rev36v1.

153 AHVLG / CMVLG, C / A 83, fl. 156v.

154 AHVLG / CMVLG, C / A 83, fl. 184v-185.

e financeira do país. Neste contexto, são criados os grémios que irão permitir a reorganização do patronato, acabando também por “orientar a produção, disciplinar a concorrência, reforçar os diversos sectores da economia nacional.”155 É neste contexto que surge a Federação Nacional dos Produtores de Trigo (FNPT) cujo principal objetivo era o de controlar toda a produção, venda e transformação de trigo de modo a conseguir, simultaneamente, proteger a produção nacional e garantir a subsistência do povo português. Era também pela FNPT que passava a importação de trigo. Os Grémios da Panificação, criados por Decreto-Lei, no ano de 1936, foram criados com o intuito de defender os interesses dos industriais da panificação. O Grémio da Panificação do Porto, era formado pelas “entidades que exerçam ou venham a exercer a indústria (da panificação) na cidade do Porto e concelhos de Vila Nova de Gaia, Matosinhos, Maia, Valongo e Gondomar.”156 Dada a importância de Valongo no fabrico de pão e a relevância que assumia no fornecimento aos concelhos limítrofes, mormente, ao Porto, é lá instituída uma delegação que pudesse responder, de forma mais direta, às necessidades dos industriais.

“O meu pai chamava-se José Gonçalves Pereira, nasceu em 1898, e foi membro do Grémio que foi fundado em 1936. Em 1937, é instituído a delegação de Valongo. O meu pai foi o primeiro secretário.”

ANTÓNIO DE SOUSA GONÇALVES PEREIRA, 74 ANOS, VALONGO.

Os grémios tinham o dever de controlar a farinha a que cada agremiado tinha acesso procurando um equilíbrio entre a produção, moagem e transformação. De acordo com o estipulado, cada agremiado deveria solicitar, ao Grémio, emissão de guia para, posteriormente, ser aprovada e facilitada a aquisição da farinha. Tal, exigia que o canal de distribuição de farinha, para cada padaria, fosse apenas o Grémio evitando, deste modo, a proliferação de mercados variados em que o controlo seria dificultado. Do mesmo modo, a compra por qualquer outro meio seria penalizado, já que, entre quem produzia, quem moía e quem vendia, existia uma linha de comunicação que procurava evitar prevaricação em mercados alternativos. Nos testemunhos orais, evidencia-se o controlo que era efetuado através do Grémio da Panificação e, ainda, sobrevivem algumas histórias de aquisições de farinha que escapavam ao controlo estatal.

“No tempo da guerra era tudo racionado e havia a Federação Nacional dos Industriais de Moagem, estes é que decidiam quantos sacos de farinha calhava a cada produtor. Era por requisição, só assim, é que se conseguia farinha legalizada. Depois, a farinha americana conseguia-se, mas já era fora deste circuito. E era pouca, era mais para Regueifa.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

“Havia a fábrica Ceres, a Harmonia, havia uma outra para o lado da Maia e outra para o Marco de Canavezes. Mas não se podia comprar farinha sem guia. Não se podia comprar farinha sempre que se queria. Tínhamos que ter uma guia, não se podia fugir a isso. Era o Grémio que definia quanta farinha se comprava e quanta. Era o Grémio da Panificação do Porto. Nós tínhamos um mapa para escrever a farinha que se gastava durante o dia, tinha de se apresentar aquilo à fiscalização caso aparecesse. Nós tínhamos que nos cingir à farinha que vinha. Em 1975, tomei conta disto e, nessa altura, já não havia isso, mas antes era assim. Ainda me lembro de ter a carta e de ir levar os sacos da farinha à fábrica Vitória, nós tínhamos de devolver os sacos de sarapilheira

155 Lucena, 1976, p. 266.

156 Decreto-Lei nº 26:89, 14 e Agosto de 1936, Art. 2º.

Cacos.

à fábrica. De outro modo, tinham de se pagar. Eu nasci no fim da guerra, em 44, mas eu lembro-me que para se ter açúcar para os biscoitos tinha que se requisitar. Nós tínhamos açúcar moído e tinha que se requisitar. Depois, é que mudou, depois de 75.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

A intervenção estatal no controlo da produção, venda e consumo de trigo trouxe limitações à atividade da panificação em Valongo. A política praticada obrigava a que se privilegiasse a utilização de trigo de origem nacional. Dado que a produção portuguesa não atingia os valores necessários para as exigências do mercado, em Valongo, as padarias eram obrigadas a cumprir os limites de utilização da farinha com maior procura. Sendo que a produção de regueifa obrigava à manipulação de farinha de extraordinária qualidade, durante os anos de maior escassez, verificou-se a proibição de fabrico de regueifa.

“Nem ao domingo havia Regueifa. Antes do 25 de Abril se se fizesse regueifa e se fosse vender, vinha a fiscalização e levava aquilo tudo.

Não me lembro de ao domingo haver regueifa, compravam o pão, punham numa saca da pano e guardavam aquele pão de sábado para o domingo.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

Para além disso, as unidades familiares de produção tiveram de obedecer à imposição da separação da produção de biscoitos e de pão. Ou seja, numa padaria, não era possível produzir pão e biscoitos. Tendo em conta que os biscoitos não eram considerados bens alimentares de primeira necessidade, é de crer que tal medida visasse uma maior facilidade de controlo na utilização da farinha, evitando a utilização de farinha de trigo noutros produtos que não o pão de uso comum.

“Nos fins dos anos 40, obrigaram a que a parte da biscoitaria ficasse independente da padaria. Há aqui quatro padarias que fizeram isso. Foi o meu padrinho, foi ali aquele senhor do lado, foi o Aguiar e foi o José Gonçalves Pereira.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

“Quem faz pão, não faz biscoito. Os biscoitos tiveram sempre desligados do pão.”

M. DA PURIFICAÇÃO MATOS FERREIRA SOARES RIBEIRO, 74 ANOS, VALONGO.

“A padaria era aqui, mas depois veio uma lei que obrigava a que não se fizesse o pão junto com o biscoito, tinha que ser separado. Então, o meu avó fez uma fábrica ao fundo do quintal. Mais tarde ficou para um tio meu. Mas, passado uns anos, já se podia cozer outra vez e juntámos tudo outra vez.”

MARIA EMÍLIA FERREIRA AGUIAR DA FONSECA, 82 ANOS, VALONGO.

Num meio onde a atividade da panificação era tão intensa, a procura por farinha de qualidade foi sempre uma prioridade. Na verdade, tal era também decisivo para a produção de produtos de qualidade. Por isso, era frequente a aquisição de farinha em mercados alternativos.

“A farinha vinha do Marco de Canavezes. Depois, veio o plano Marshal e a farinha vinha da América e vinha parar aqui, sabe como é. Essa farinha era muito boa.”

M. EUGÉNIA MATOS MOREIRA COELHO.

CÂNDIDA MATOS FELGUEIRAS MOREIRA MELRO. PAULO FELGUEIRAS MOREIRA, VALONGO.

“Quando a guerra acabou, em 45, e eu estava na padaria. Havia uma farinha americana que se comprava, mas que não era legal.

E os padeiros aproveitavam essa farinha para misturar na farinha de 1a para fazer uma regueifa melhor. A farinha americana era melhor, até por comparação com a nossa. Esta farinha americana era comprada, no tempo do meu avó, no tempo da guerra, depois ainda se continuou a vender. Vinham nuns sacos de pano muito branquinhos, e também havia pacotes mais pequenos fechados com uma tirinha de chapa. Essa farinha era mais para a regueifa para misturar com a outra, não era muita. Até ao 25 de Abril ninguém podia comprar farinha sem ordens do Estado, nós tínhamos guias para comprar, quantidade, fábricas, tudo era escolhido pelo Estado. Eu ai buscar as guias ao Grémio, no Porto. Havia um representante do Grémio aqui em Valongo. E nós só tínhamos direito a uma certa quantidade de farinha, se quiséssemos mais não podíamos ir comprar diretamente, tínhamos que pedir um reforço. Já vinha pelo correio uma nova guia. Eu gastava sempre da mesma fábrica, porque não deixavam mudar. Gastava da fábrica do Marco, Fábrica Moagens do Marco. A farinha vinha de comboio do Marco para Valongo e depois era distribuída em carros de bois. Também havia Sociedade Industrial Vitória, no Porto. Tudo isso acabou. Tudo isto era do tempo do meu pai. Quando comecei a ir buscar farinha com a carrinha, já no meu tempo, convinha-me que fosse mais perto, havia em Águas Santas uma fábrica. As guias eram dadas de 10 em 10 dias. E sem as guias ninguém levantava farinha, ela aparecia, mas ninguém levantava. Chegava-se à fábrica, eram 3 guias e ninguém levantava farinha sem pagar. À saída da fábrica, estava um fiscal do Estado para verificar se estava tudo em ordem. E tínhamos um mapa diário daquilo que se gastava, tinha as entradas, as saídas e os empréstimos. Caso após os 10 dias se me acabasse a farinha eu podia ir a um padeiro pedir farinha emprestada. Mas tinha que ficar registada como empréstimo, no tal mapa. Quando viesse a farinha eu tinha de ir entregar ao padeiro que tinha emprestado e tinha que descontar no mapa das entradas. Era tudo controlado, tudo tinha que passar pelo grémio. Depois de acabar a guerra, já havia mais farinha, mas continuou-se a comprar dessa farinha americana para fazer a regueifa, era melhor essa farinha para a regueifa.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

“Era uma farinha diferente, muito branquinha e muito fininha, tinha mais glúten. Essa farinha usava-se na regueifa, era mais cara e era melhor de qualidade. Era difícil o acesso, mas conseguia-se, vinha da América.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

Importa referir que através da história do trigo (semente e farinha) e da sua produção e comercialização, também se conta uma parte da história do pão de Valongo. Enquanto matéria-prima imprescindível para a produção de pão, regueifa e biscoitos, acabou por ser elemento autónomo e protagonista de um percurso em que foi objeto de pagamento de rendas e tributo de emprazamentos, produto tão procurado que a

imposição de imposto permitiu concretizações importantes no concelho de Valongo e alimento sujeito a controlo pelas quantidades disponibilizadas. Em suma, o trigo é um dos principais elementos da história do pão de Valongo, capaz de permitir o rastreio do que foi a evolução da atividade da panificação naquele concelho.

Cozer o Pão.

“A minha mãe andava à «queiroa», era pequeninha, quase que nem se via debaixo daquele carrego. Ia levar aqueles carregos a Valongo. Também cheguei a andar, depois, ia na camioneta para Valongo para levar aos padeiros, para cozerem o pão. Saí daquela vida, era muito dura, e fui para uma fábrica de Santa Justa que era de cadeiras. Ia-se daqui a pé a Lordelo com as cadeiras à cabeça para ir vendê-las. Depois de lá, fui para uma de cartão. Foi uma vida difícil. Quando era nova, a minha mãe mandava-me ir pedir pão e os homens que andavam a trabalhar nas pedreiras davam-me pão de milho.”

FELISMINA DA CRUZ, 74 ANOS, CAMPO.

Na rotina diária da produção de pão, eram imprescindíveis os fornos e a lenha para os alimentar e manter quentes. Do mesmo modo que os padeiros tinham que assegurar o fornecimento de farinha, também a lenha não podia faltar. Esta exigência levava os padeiros a socorrerem-se do combustível lenhoso que existia nas serras que ladeavam as margens do concelho. A frequência com que o faziam seria de tal ordem que terão contribuído para o desbaste dos matos adjacentes a Valongo. Tal não terá passado despercebido ao pároco que, no âmbito das Memórias Paroquiais, em 1758, descreve São Martinho de Campo referindo que é “(…) de poucos matos porque he a terra muy falta deles, por os cortar assim que nascem os padeiros da freguezia de Valongo onde se cozem os trigos para a cidade do Porto, e por já os não acharem nessa freguezia que lhe fica vezinha os vão buscar huã e duas legoas.”157

O abastecimento de pão que Valongo proporcionava ao Porto, não deixando escassear aquele bem matricial, fazia com que as autoridades fossem benevolentes para com os padeiros, os quais, perante a exigência de abundantes quantidades de lenha, se viam forçados a angariar madeira para além dos limites da freguesia. “Em 1827, o ouvidor de Valongo referia que os montes que circundam o vale eram «(...) escarpados e improprios para cultivo (...)», mas davam «(...) lenhas para cozer o pão com que he fernecida esta cidade (Porto), e suas emediações, e por esta cauza he que os moradores desta freguezia tem direito, e posse, julgada por sentenças para tirarem lenhas dos montados alheios, continguos a esta mesma, de maneira que nem estes se tem tapado, visto o direito que esta freguesia tem sobre eles (...)»”. 158

De notar que, apesar da permissão para recolha de lenha para além das fronteiras concelhias, tal não terá impedido o desenvolvimento de altercações com freguesias vizinhas, como terá acontecido com S. Pedro da Cova, concelho de Gondomar, com a qual Valongo confronta pela serra de Santa Justa.

Em 1904, Joaquim Reis regista que “a lenha, que os padeiros e demais habitantes consomem na manipulação do pão e outros usos domésticos, é trazida para a villa

157 ANTT – Memórias paroquiais, vol. 35, nº 186, p. 1385 a 1388.

158 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 113.

Trabalho

por lavradores de Casconha e Albre, que a carretam em carros pelas manhãs de todas as segundas, quartas e sextas-feiras e outros dias da semana, assim como também por homens e mulheres a que chamam lenheiros, que a trazem vendida ou roubada dos montes em feixes ás costas ou á cabeça.”159

Pela memória oral, ainda ressoam histórias que expressam a dureza de quem andava à lenha para os fornos de Valongo.

“O forno era alimentado com lenha do monte, era carqueja e urze.

Vinham em carros de bois, de Santa Comba que era uma freguesia de Aguiar de Sousa, vinham aqueles senhores com aqueles molhos, todas as semanas, e vinham umas senhoras de Valongo, que moravam perto da Santa Justa que iam ao monte. Lá vinham eles com aqueles molhos, todas as semanas, e recebiam qualquer coisa, coitadinhos.

Essas senhoras vendiam essa lenha à minha sogra, iam todos os dias ao monte e traziam aqueles molhinhos para pagarem o pão. Havia pobreza. Vinha uma senhora que vinha ao fim da tarde, que me dizia se lhe dava qualquer coisinha, nem que seja pão recesso… eu se tivesse pão recesso não dava. Dava-lhe pão fresco. Às vezes, chegava lá e eu dizia-lhe, «mas eu hoje não tenho pão fresco» e ela dizia «não faz mal». Esta senhora não me sai da cabeça. O povo comprava pouco, comprava o que podia.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

“Antigamente, alinda tivemos um forno a lenha, era alimentado a queiró e a carqueja, era lenha que era vendida aos molhos. Mas o lenheiro tinha cada vez mais dificuldade em fornecer a lenha que precisávamos. Dizia ele que as mulheres tinham deixado esse trabalho e tinham conseguido ir para as fábricas. Quem é que queria andar no monte, sempre curvado a apanhar carqueja e queiró e depois receber tão mal?”

SERAFIM FERREIRA DAS NEVES, 83 ANOS, VALONGO.

O Pão de Valongo nos Mercados do Porto.

Do Termo do Porto, do Alfoz da cidade vinham os mantimentos para tão flutuante população, mais interessada na atividade comercial do que na atividade produtiva. Porta de entrada marítima, fluvial e terrestre, o Porto acarinhava e fomentava os mercados que acompanhavam o ritmo da população. Do quotidiano aos momentos de romaria, do trabalho aos dias de descanso, as feiras eram verdadeiros espaços de comércio onde o público do Porto, criteriosamente, ia selecionando o que de melhor chegava à cidade. Também nos mercados, a escrita documental deixou registo do afamado pão e da reputada regueifa.

Em 1789, pela escrita de Agostinho Rebelo da Costa, na Descripção Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, entende-se que o abastecimento de pão à cidade tomava forma de atividade organizada com dias fixos de venda nos mercados da cidade. “(…) O gasto de pão, vinho, carne, peixe, legumes, frutas e mais comestível, que diariamente serve de alimento a toda a população, é pouco mais do que o seguinte: de pão, trigo e broas, cinco mil e quinhentos alqueires cada dia. O pão trigo trabalha-se e coze-se em um lugar chamado Valongo, duas léguas ao nascente desta cidade, donde é conduzido todas as terças-feiras, quintas e sábados de cada semana, para as casas que têm determinadas padeiras do mesmo lugar que o vendem todos os dias nas praças de S. Bento, S. Domingos e na rua das Flores, além do que

distribuem pelas lojas dos regatãos. É este pão (principalmente o que se gasta nas casas particulares) de excelente gosto e para a sôpa muito superior ao de toda a provincia. Também há dentro da cidade alguns padeiros que cozem e vendem, mas a sua qualidade não é tão boa e por isso tem pouca saída.”160

A referência aos Mercados do Porto merece demorada descrição, pois é nestes que o pão e demais produtos de Valongo eram vendidos. E, importa realçar que, no conjunto dos muitos mercados e feiras que decorriam numa cidade cujo espírito mercantil era deveras acicatado, as referências aos padeiros e padeiras de Valongo, ao modo como se faziam transportar e como dispunham os produtos para venda, oferecem suporte documental de muito interesse para reforçar a relação entre o polo produtor e o polo consumidor do Pão de Valongo. Na verdade, a realização de feiras e mercados eram oportunidades de venda para os padeiros e padeiras de Valongo, sendo que, na descrição de várias, sobressai o destaque feito a Valongo, fosse pela forma cuidada como expunham, fosse pelo sabor e qualidade dos produtos vendidos. Tais referências concorrem, sobremaneira, para a realçar o percurso bem-sucedido de uma arte que começou como uma forma de responder a uma necessidade e, paulatinamente, se transforma num cuidado e estudado caso comercial bem-sucedido.

Instituída pelo rei D. João I, a feira franca de S. Domingos começou por se realizar na rua Formosa (depois rua dos Ingleses) e foi transferida para o Largo do Convento de S. Domingos em 1451. Era a esta feira que vinham muitos dos moradores do Termo do Porto vender pão e outros produtos, tendo tal sido determinado por sentença régia de 20 de Fevereiro de 1452. Terá sido extinta pelo ano de 1552.

A outra feira franca que, durante dois séculos e meio, foi de grande importância, terá sido estabelecida em 1587, por acordo entre a Câmara e a Casa dos Mesteirais. Realizava-se todas as terças feiras, no Largo de S. Bento, nas escadarias do Mosteiro de São Bento da Avé Maria. Dizem as fontes que, pela importância que alcançou, este mercado terá sido diário, tendo essa decisão causado algum mal-estar com os lojistas locais que nele viam forte concorrência. Terá sido suprimida em 24 de Julho de 1838. No contexto da realização deste mercado, sobressai o episódio que as freiras do referido Mosteiro protagonizaram ao defender as padeiras de Valongo do possível despejo. Por determinação da sessão de câmara de 13 de Agosto de 1803, aquelas seriam obrigadas a ir vender os seus produtos para a Praça Nova. Contudo, “o monacato feminino pediu o regresso das vendedeiras para o Largo da Feira, argumentando que a sua presença animava o comércio de bens de primeira necessidade e, ao mesmo tempo, socializavam um espaço com particular interesse para as religiosas, pela visibilidade que davam ao cenóbio, concluído em 1537, e portanto, era já de «tempo antiquíssimo [que] vendiam o pão no largo do terreiro da feira difronte do seu mosteiro»”. 161

Arnaldo Gama, na publicação Um Motim há Cem Anos (1861) descreve a azáfama que era caraterística das terças-feiras, dia de mercados no Porto. “A terça feira foi sempre, desde tempos imemoriais, dia de multidão incommoda nas ruas do Porto, sobretudo nas ruas commerciais. É o dia em que os aldeãos dos arredoras costumam vir feiras á cidade. Logo de madrugada, invadem-na em turba por todas as avenidas conhecidas, atroando-a com o borborinho do palavriado vasconço e com o estrépito infernal de cincoenta mil tamancos e sócos. Depois a multidão espraia-se pelas ruas, e agita-se aqui e alli; vai e vem em mil direcçoens opostas, e redemoinha aos encontroens entre o zumbido atroador e confuso de homens e mulheres e creanças, uns descalços, outros calçados, uns a pé, outros a cavallo, e uns caminhando e outros

160 Costa, Agostinho Rebelo da. Descripção Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, Officina de António Alvarez Ribeiro, 1789, p. 55.

161 MATA, Joel S. F. – Contributos para a História Económica e Social do Concelho de Valongo entre 1258-1835. Perspectivas. Valongo : Câmara Municipal de Valongo, 2017, p. 357.

parados a admirar com espanto parvôo o painel de cavallinhos ou a carapuça vermelha que o adélo pendurou por chibanteria na porta. (…) E tudo isto a agitar-se, a caminhar e a redemoinhar aos encontroens nas ruas do Porto. E alli uma padeira de Avintes ou Crestuma, abrindo caminho aos cotovelloens por entre o povo, carregando com o cesto das borôas á cabeça; e acolá uma mula de Vallongo com as alterosas canastras bifurcadas no dorso, e a padeira sentada sobre a sua bifurcação, a romper irresistivelmente por entre o gentio, com quem arremete denodada, como os malaios de Calecut arremetiam, nos elephantes encastelados, contra os portuguezes de Cochim. Estas cenas repetem-se irrevogavelmente todas as terças feiras. E o que já é hoje, era já em 1757. N’esses dias fataes as aldeias circumvizinhas vasam-se litteralmente no Porto. Vem todos, vem até aquelles que nada pretendem comprar, mas que vem unicamente porque é costume vir nas terças feiras á cidade.”162

Instituída no ano de 1682, a feira de S. Miguel que se realizava, anualmente, na Cordoaria, era oportunidade de compra e venda de inúmeros produtos “(…) em matéria comestível, contudo, as regueifas de Valongo, as nozes, os doces de Paranhos e da Teixeira, bem como as espetadas (carne assada em espetos) sobrelevaram-se, mas de longe, aos restantes produtos culinários.”163 Em 1876, por decisão do município, esta feira terá sido extinta, tendo sido inaugurada, em 1902, a sua realização na rotunda da Boavista. Mais tarde, em 1906, foi decidida a mudança para o Largo da Arca de Água. Os feirantes, descontentes com a decisão, ter-se-ão mantido na rotunda da Boavista, onde por ação da Câmara Municipal fechou a feira naquele local. Já na Arca de Água, esta feira funcionou sem grande ímpeto durante mais alguns anos.

Instituída desde 1720, realizava-se, desde o domingo de Lázaros até ao de Ramos, a Feira de São Lázaro no Campo do Largo com o mesmo nome. Centro aparatoso da cidade pela fruição da paisagem criada pelos castanheiros, choupos e austrálias, era local apetecido para a realização de uma feira que antecedia a Páscoa. “Nesta feira, (…) havia o hábito de fazer-se a dádiva de um anel de prata ou de estanho mesmo, se a bolsa não dava para mais, entre namorados. Do mesmo modo, no dia de S. Lázaro, era de uso e costume comer queijo e regueifa de Valongo, para o que na feira não escasseavam as padeiras em carreira com grandes gigas de roscas tostadas desse delicioso pão alvo. No ano de 1876, como o espaço começasse a mostrar-se insuficiente, levaram esta feira para o campo de Mijavelhas (Campo 24 de Agosto), onde perdurou, supomos, até 1899.”164

Os rituais da feira de São Lázaro seriam também registados por Hugh Owen (1856). “The celebrated Sunday fair of San Lazaro took place during my visit at Porto; and I went with a gentleman to the public gardens, in the immediate neighbourhood of which it is held; one of the principal avenues facing the church dedicated to that saint. it was on this occasion profusely decorated with flowers; their heavy perfume, superadded to the smoke of lamps and wax-lights, rendered it, amid such a crowd, an exceedingly undesirable atmosphere. Being a famous Sunday fair, the number of peasants from the neighbouring and even distant villages was very great; and the women of Villa Nova, Avintes e Valongo were pointed out to me, distinguished by the shape and trimming of their hats, wich are differently fashioned in each district. The first visit of the peasant on his reaching the fair is to the altar of the church, where, on making his offering, he receives a wood-cut picture of the saint; this he wears during the day in front of his

162 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 12.

163 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 17.

164 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 22.

hat as evidence of the performance of the pious duty. A few of the females were dressed in light and gay clothing, but by far the greater number wore the usual dark woollen cloth dress, with a bright coloured kerchief over the neck, and the unvarying wooden shoe or soco, open at the heel. Those in common use are of black chamois leather with a broad stripe of coloured and varnished leather across the front of the foot. The wooden sole, pointed at the toe, and with high heels, is formed of willow or poplar; and a pair of ordinary size weigh more wealthy peasants than twenty ounces. I observed a few, worn by the more wealthy peasants, of velvet, trimmed with gold lace. The immense quantity of gold chains and ornaments worn by the female peasantry surprised me greatly. An exceedingly handsome woman from Valongo had so many chains round her neck that the lockets and ornaments of filigree, of which each chain has one depending from it, being fastened on the bosom of her dark cloth dress, formed a complete breastplate, and covered the entire front.”165 A referência às mulheres de Vila Nova, Avintes e Valongo deixam transparecer que a sua presença na feira de São Lázaro se ficava a dever à venda de bens alimentares como a broa de Avintes ou o pão de Valongo.

Na mesma publicação, o autor dá conta de que o pão de trigo consumido na cidade do Porto seria de Valongo, transportado em animais muares conduzidos estes pelas mulheres de Valongo. “The white bread with which Oporto is supplied is made at Valongo, and is brought in daily by the females who make it, several leagues, on horseback, or with mules, in time for breakfast. Fuel is very dear in the country, and its conveyance almost as expensive, so the bakers live near to where it is procured, for the sake of economy.”166

William H. G. Kingstom, descendente de uma família inglesa ligada ao comércio do vinho do Porto, na sua obra Sketches of the Pen and Pencil (1845) acentua a presença das mulheres que, de Valongo, trazem o pão que é vendido nos mercados do Porto. Na sua descrição, não deixa de incluir um elogio à beleza das valonguenses. “A rapid descend took us into most unpicturesque town of Valongo, a somewhat dirty-looking place; although the bread which supplies the greater part of Oporto is made there, and the female portion of its inhabitants, who bring the bread to market are celebrated for their beauty (…).”167

Horário Marçal (1906-1988) descreve que, “(…) na Praça Nova, junto do Passeio da Cardosa, havia na primeira vintena do século passado (século XIX), uma Feira de Pão devidamente autorizada. Mais tarde, foi proibida nesta área e permitida na Praça de Santa Teresa. Algumas padeiras de Valongo, no entanto, as mais contumazes, entre 1851 e 1854, embora ilegalmente, ainda apreciam por lá, unicamente de tarde, a venderem pão de trigo, que por vezes lhe era apreendido.”168

A Feira do Pão, que decorria na Praça de Santa Teresa, que terá sido extinta a 26 de Maio de 1909, permite situar a presença das padeiras e padeiros de Valongo na venda de molete, regueifa e biscoito. “A disposição dos lugares tomados pelas padeiras na aludida feira, era a seguinte: a todo o comprimento do lado poente da praça, em duas carreiras, as de Valongo. Contudo, às terças, quintas e sábados, em que a azáfama era incomparavelmente mais intensa, essas mesmas padeiras (e padeiros) de Valongo, desdobravam-se, igualmente, para o lado norte. As de Avintes, essas, então, ocupavam toda a parte restante, de igual forma em duas fileiras, uma de cada

165 OWEN, Hugh – Here and There in Portugal. London : Bell and Daldy, 1856, pp. 118 e 119.

166 OWEN, Hugh – Here and There in Portugal. London : Bell and Daldy, 1856, p. 140.

167 Kingston, William H. G. Sketches of the Pen and Pencil, Vol. II, Jonh W. Parker, West Stand, 1845, pp. 329 e 330.

168 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 20.

lado da rua. Resguardavam-nas do sol, 32 frondosas árvores que o nosso Município muito louvavelmente, lá mandar plantar. As padeiras de Avintes faziam o seu negócio com as canastras pousadas no chão; e as de Valongo, com elas presas às ilhargas dos jumentos, isto é, faziam de prateleiras ou mesas e sobre elas, além da cobertura privativa, estendiam ainda uma toalha impecavelmente lavada, onde expunham, acastelada, parte da sua saborosa mercadoria. Os padeiros e padeiras de Valongo, para trazer o pão à cidade, serviam-se de jericos, sobre o dorso dos quais, às ilhargas firmavam dois canastrões de verga cobertos por alvinitentes panos de linho. Esta tradicional e movimentada feira, com o tempo, foi diminuindo de interesse; e, ultimamente, a venda de pão já só era feita em barracas de madeira colocadas na parte central da praça, cujas barracas juntamente com as padeiras, foram removidas no ano de 1909, para o interior do Mercado do Anjo. A permanência das padeiras neste local deu origem, na voz sentenciosa do povo, à alteração toponímica, porquanto o antigo topónimo «Santa Teresa», foi substituído, aliás com mais propriedade, pelo de Praça do Pão ou Praça da Feira do Pão.”169 Na memória oral, ainda subsiste a lembrança da venda na Praça de Santa Teresa.

“Antigamente, cozia-se o pão três vezes por semana, à segunda, à quarta e à sexta e ia-se vender à terça, à quinta e ao sábado. A minha avó ainda vendeu na Praça de Santa Teresa.”

Por ocasião de épocas festivas, era hábito as padeiras de Valongo irem ao Porto levar o pão e a regueifa para abastecimento da mesa portuense. Henrique Coimbra, citado por Emanuel Ribeiro (1928), dá conta que apareciam aquelas mulheres “(…) todas ajoujadas de ouro nos seus trajes domingueiros, alegres, vivas, palradoras, (…) puxando à arriata os machos carregados de pão.”170

Por último, há que atender às referências que, na memória oral, efluem acerca do Mercado do Bolhão. De notar que a construção deste espaço traduziu a necessidade de organizar a cidade dando-lhe a arrumação que a evolução do conceito de urbe exigia na modernidade do século XIX. Entre as ruas Formosa e Fernando Tomás, no sítio do Bolhão, a Câmara Municipal edificou um quadrado comercial de modo a agrupar os inúmeros vendedores e vendedeiras que, à cidade, iam vender os seus produtos. Na cronologia do mercado do Bolhão, ressalta a compra, a José António Sequeira, de dois grandes lameiros, em 15 de Novembro de 1837, para a instalação do mercado. Consta que, em 18 de Setembro de 1839, já ali estariam os muitos mercados espalhados pela cidade. Em 1851, promoveu-se a construção de barracas, devidamente alinhadas, e protegidas pela Guarda Municipal. A presença do pão, da regueifa e do Biscoito de Valongo é atestado pelo testemunho ainda vivo de alguns padeiros e padeiras de Valongo.

A constante ida e vinda dos padeiros e padeiras de Valongo ao Porto encontra robusto suporte documental encontrando-se, igualmente, bem firmado na memória oral que recupera as idas semanais à cidade levar os produtos resultantes da atividade da panificação. Todas as terças-feiras, quintas-feiras e sábados, as mulheres e homens de Valongo deslocavam-se pelo Porto e arredores levando os produtos para as encomendas. Tal, foi ainda praticado no século XIX e inícios do século XX como deixa perceber os testemunhos recolhidos.

Interessa, ainda, reportar que o vaivém entre Valongo e o Porto terá sido decisivo, não só pelo acesso à farinha de trigo, que ali era comercializada, como também para

169 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 11.

170 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 135.

uma disponibilidade dos valonguenses para receberem a novidade e, numa cidade a fervilhar de atividade comercial, se abastecerem do que poderia ser acrescento para a sua atividade. A abertura às inovações, novas tendências, ingredientes e serviços estimularam a criatividade da força de trabalho valonguense sendo motor para constantes inovações na produção, embalamento e venda. Este eixo privilegiado entre Valongo e Porto afigurou-se como de extraordinária importância para o desenvolvimento da arte da panificação tão presente em Valongo.

Os caminhos do Pão de Valongo. No conjunto de localidades incluídas no Termo do Porto, a afirmação de Valongo terá muito a dever a proximidade em relação à grande cidade, por um lado, mas também à existência de traçados viários que faziam daquele lugar ponto de suporte nas viagens entre o litoral e o interior. Já referido anteriormente, por Valongo fazia-se o caminho, quer para o Minho, quer para Trás-os-Montes. Tal terá sido determinante para que Valongo sobressaísse, quer na intensa atividade dos almocreves, quer na prolifica atividade da panificação. Também, o protagonismo que teve nos episódios da segunda campanha das Invasões Francesas e das Guerras Liberais em muito teve relacionada com a centralidade e oportunidade da estrada de Valongo. Terá sido durante a ocupação romana que se verificou a necessidade da construção de uma rede viária que permitisse o transporte seguro e eficaz dos minérios extraídos na região. “A governação romana assumiu a necessidade de ter boas comunicações para controlar o imenso império, para garantir a circulação de pessoas e mercadorias, fundamentais na administração e na economia da época. (…) Reconhecemos que depois da sua chegada ao território de Valongo foram promovidas obras para criarem condições indispensáveis à exploração de minas e das terras agrícolas da região. (…) A «estrada romana 5», que ligava o território de Valongo (eventualmente a partir do sítio de Contensas) a Tongobriga, garantia a travessia do vale do Sousa e do Vale do Tâmega. Não só ligava àquela urbe, capital de civitas construída no final do século I, mas daí ligava até à margem direita do rio Douro. Esta estrada, com as suas variantes, também permitia o acesso até Aboadela, na encosta da serra, iniciando a travessia do Marão até à Campeã. Esta via poderá ter sido fundamental na estratégia dos romanos, manifesto resultado da política dos imperadores da dinastia flávia, nas últimas décadas do século I e no início do século II. A «estrada romana 6» ligava o sítio de “Contensas”, na atual sede do concelho de Valongo, a Cale, urbe e porto fluvial perto da foz do rio Douro. Esta via poderá ter feito, a partir do século III, a ligação à estrada mais antiga, construída no século I, que já então ligava Bracara Augusta aos castros que existiam na Santa Justa e em Couce.”171

A estratégia romana de domínio do território criou o embrião para o desenvolvimento de caminhos que vieram a tornar-se fundamentais na comunicação entre o interior e o litoral. A centralidade de Valongo e a oportunidade trazida pelas redes viárias tornaram-se centrais ao longo de toda a história de Valongo. De notar que D. Manuel atribui foral, em 1519, a Valongo de Susão e a Valongo da Estrada. Decerto que tal distinção estará relacionada com a passagem de importante estrada por aquela localidade. No âmbito da planificação de uma rede nacional de estradas, nos finais do século XVIII, onde se destacam a lei para as Estradas e Caminhos do Alto Douro (13 de Dezembro de 1788) e a Lei para as Obras Públicas (28 de Março de 1791), é promovido

171

Dias, Lino; Machado, Cristina; Aguiar, Pedro; Lima, Alexandre. Os Romanos em Valongo, Vol. I, 2022, p. 245, 246 e 248.

o eixo transversal Porto-Valongo-Ponte Ferreira como via de acesso ao Alto Douro e Trás-os-Montes, com passagem por Penafiel e Amarante. Obra tida a cargo ao corregedor e provedor da comarca do Porto, Francisco de Almada e Mendonça, destinava-se a melhorar uma via já existente.

Para a população de Valongo, a reparação da via já existente e que de forma secular permitia o tráfego de pessoas e produtos entre a cidade do Porto, situada no litoral, e as populações do interior, nomeadamente, de Trás-os-Montes, era uma questão fulcral dada a atividade de almocrevaria e de produção e venda de pão.

Terá sido dentro da importância desta via que foi considerado como urgente e necessário a imposição do imposto de 5 réis sobre o alqueire do trigo importado para transformação em pão a ser vendido na cidade do Porto, autorizado pelo aviso régio de 30 de Outubro de 1796. 172 Esta taxa destinava-se, não só a suportar as obras na igreja matriz de Valongo, como também permitir a reedificação da Ponte Carvalha e a reparação da Estrada Real do Porto até Ponte Ferreira. A câmara do Porto terá sido ouvida a este propósito por se considerar que tal imposto iria recair, sobretudo, sobre os moradores daquela cidade. “Francisco de Almada presidiu à vereação da câmara do Porto, de 30 de Dezembro de 1795, sessão onde apresentou o aviso de José de Seabra da Silva e ouviu os seus representantes sobre o aumento do custo do pão. Estiveram presentes, Vicente José Ferreira Cardoso da Costa (1765-1834), juiz de Fora da cidade, e os vereadores, com assistência do procurador. Depois de ponderarem sobre a matéria, assentaram de comum acordo na conveniência desta imposição, pelo moderado aumento e pelo benefício público que resultava da melhoria da estrada para Penafiel, uma das mais movimentadas do País depois da estrada Lisboa-Porto. Ficou decidido que metade da imposição sobre o pão seria de imediato empregue na reedificação da ponte da Carvalha e na reparação da estrada e que a imposição se extinguiria assim que as obras da igreja e da estrada se concluíssem.”173

As obras iniciadas sob o suporte deste imposto destinavam-se a regularizar o traçado, melhorar do pavimento e a delimitar as margens com fossos para as águas correntes. A melhoria da estrada entre o Porto e Penafiel permitiu que a rede viária até Trás-os-Montes fosse qualificada de modo a permitir uma circulação eficaz.

Exatamente porque a força da panificação valonguense vivia do muito pão que era comercializado no Porto, em feiras, mercados, lojas e a particulares, afigurava-se como de extrema importância assegurar que os caminhos que levavam e traziam as mulheres e homens estavam em boas condições de forma a não atrasar no percurso, nem a criar dificuldades. A propósito das obras de beneficiação do troço da Estrada Real, situado em Godim, próximo de Campanhã, que se encontravam a desenvolver no ano de 1808, é referido que se destinavam “(…) a acautellar terríveis atulleiros que no tempo d’inverno se formavão, padecendo por motivos dos mesmos, não só os passageiros, mas muito principalmente as padeiras, graves e perigozos incómodos (…)”. 174

Partindo da Portela de Valongo, as padeiras seguiam com os seus jumentos por Vale de Ferreiro, Rio Tinto, Campanhã, Bonfim, Campo 24 de Agosto, Santo Ildefonso, chegando a Cimo de Vila por onde iriam distribuir os seus produtos pelos diferentes locais.

No entanto, a requalificação da estrada real que ligava a cidade do Porto à província de Trás-os-Montes não beneficiou apenas o tráfego que as mulheres de Valongo faziam

172 ADP – Provedoria da Comarca do Porto, livro n°96, fls. 1v.2f.

173 MARTINS, Carlos – "O Programa de Obras Públicas para o Território de Portugal Continental, 1789-1809. Intenção Política e Razão Técnica – o Porto do Douro e a Cidade do Porto". Coimbra : Universidade de Coimbra. Tese de Doutoramento em Arquitectura, na especialidade de Teoria e História de Arquitectura, vol. I. Maio de 2014, p. 225.

174 ADP – Requerimento apresentado pelo Juiz do couto de Campanhã e pelos lavradores de Godim pedindo a continuação das obras da estrada Porto-Valongo, Provedoria da Comarca do Porto, L. nº 76, fl. 104v.

em direção ao Porto, mas permitiu que também conseguissem expandir a sua vinda na direção Este. Na verdade, não era só no Porto que as padeiras e padeiros de Valongo iam vender o pão, a regueifa e o biscoito. Há nota de que o comércio do pão iria até Penafiel. Ou seja, aproveitando a Estrada Real, o movimento tanto se fazia para Oeste, em direção ao Porto, como se caminhava para Este. Saindo de Valongo, passavam em Ponte Ferreira, Baltar, Mouriz, Arrifana de Sousa, chegando a Penafiel. Aqui chegadas, vendiam os seus produtos, nas feiras, mercados e a padeiros locais que, depois, os revendiam. Era hábito estas padeiras cruzarem-se com as de Marco de Canavezes que, por ali também mercavam o seu pão.175 A memória oral regista que o circuito comercial da venda do pão de Valongo ia, em ambos os sentidos, quer para Oeste (Porto), quer para Este (Penafiel).

“Nós só íamos para o Porto. Mas havia quem fosse para Rio Tinto, Paredes, Penafiel.”

LINA CASTRO NEVES, 80 ANOS, VALONGO.

Nas viagens, quer para o Porto, quer para Penafiel, os animais muares constituíam companhia imprescindível. Não só aguentavam com diligência o transporte dos carregos de pão, regueifa e biscoito, como serviam de apoio às canastras no momento da venda. Em 1894, Alberto Pimentel, escreve “(…) Cada padeira tem à sua disposição para ir ao Porto vender o pão e o biscoito uma burra (…) que conduz as canastras (…). É assim que a padeira de Vallongo viaja até ao Porto, tres vezes na semana, terças, quintas e sabbados, «encastellada sobre as canastras, que se escastellam sobre a burra.”176 Hélder Pacheco relembra que “(…) ali (em Valongo) o meio de transporte utilizado pelas padeiras (…) tinha tração às quatro patas: os jericos. Iam neles pela serra – com bom ou mãu tempo, chuva ou sol – mal despontava a madrugada passavam na Rua do Bonfim. Ao fim da tarde, ainda com a luz do dia, regressavam em grupo, para se protegerem da ladroagem que andava pelos caminhos então escuros da serra de Valongo.”177

Pacientes, muito intuitivos e de grande resistência, estes animais quase faziam parte da família. E, em cada negócio de padaria, havia o cuidado do melhor tratamento ao animal, quer na alimentação, quer no trato.

“Os padeiros tinham campos, ou alugados ou deles mesmos. Tinham que os cultivar para alimentar os animais, as mulas, que são os animais mais resistentes para cargas, era com eles que levávamos as cargas para o Porto. Recordo-me de duas mulas, uma era castanha e outra a andorinha. Quando a gente as chamava, elas respondiam. Na rua Santos Pousada havia uma casa rica que tinha muitas criadas, era hábito darem à mula um cesto com verdura. Abria-se a porta e lá estava o cesto com verdura para a mula. Engraçado, a mula se mexia enquanto não abrissem a porta! Se não fosse isso, a mula só voltava a comer ao final da viagem. Quando chegava a casa, tinha sempre à sua espera uma gamela com água, farelo e palha grossa.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

“Não fazíamos agricultura, o meu avó tinha o quintal para plantar coives e como tinha o burro tinha um campo só para tirar alimento para ele.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

De notar que, em 1868, na Colecção dos relatórios das visitas feitas aos districtos pelos respectivos governadores civis em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866

175 SOEIRO, Teresa – O Progresso Também Chegou a Penafiel, Resistência e Mudança na Cultura Material, 1741-1910. Porto : Faculdade de Letras do Porto, vol. III, 1993, p.320.

176 PIMENTEL, Alberto – O Porto na Berlinda. Porto : Casa Editora, 1894, p. 177.

177 PACHECO, Hélder – O Grande Porto. Porto : Editorial Presença, 1986, p. 22.

é realçado, quer o posicionamento de Valongo na circulação entre Porto e Amarante, quer a presença de grande atividade ligada à panificação, quer ainda a confirmação de que o trigo utilizado viria de Trás-os-Montes, Espanha e América do Norte. Na verdade, o trigo americano terá tido uma importância grande no consumo português, não só pela qualidade das farinhas que permitiam a produção de bom pão, como a acessibilidade àquele produto.

“O concelho de Vallongo é um dos mais pequenos d ’este districto em extensão, e o mais pequeno em população. Tem apenas cinco freguerias com 8:482 habitantes. Este concelho é todavia bastante productivo, e os seus habitantes muito industriosos.

A cabeça do concelho é a villa de Vallongo, povoação de 3:000 almas, situada sobre a estrada que do Porto segue a Amarante. Uma grande parte da população d’esta villa emprega-se na industria da padaria, que ali se exerce em grande escala, principalmente para fornecimento da cidade do Porto, e pode fazer-se idéa da importancia que ali assume a mesma industria, sabendo que n ‘aquella localidade se fabricam cerca de 3:000 moios de cereaes, que importam de Hespanha, America e Traz os Montes, havendo para a moagem numerosas azenhas. (…) O concelho de Vallongo é atravessado em grande extensão por a estrada real que do Porto segue a Amarante. Deve ter como estradas districtaes: 1.º’, a que de Guimarães vae a Paços de Ferreira e segue para Vallongo a entroncar na já citada estrada real; 2.º , a que vindo de Villa do Conde se dirige sobre o Douro, passando em Vallongo e Gondomar. Cinco estradas municipaes já classificadas devem completar o systema de viação n’este concelho.”178

O posicionamento geográfico de Valongo foi determinante para o seu crescimento. Estratégico no vaivém de mercadorias e pessoas, permitiu que da matéria e das ideias fermentasse, pelas mãos das pessoas, a criatividade e a ousadia que levou o Pão de Valongo, nas suas múltiplas versões, para todo o círculo geográfico em redor. As estradas, enquanto vias comunicantes, lugares de passagem e de corrupio humano facilitaram o acesso, mobilizaram as vontades e deram fama ao Pão de Valongo. Joaquim Reis enfatiza essa centralidade ao destacar que “até então (1875) era em Vallongo que passavam todas as mercadorias e passageiros que do Alto Douro e terras de Traz-os-Montes desciam para o Porto, seguindo a estrada real nº 33, que dessa cidade ia a Penafiel, Amarante, Regoa, Chaves e Bragança até á Hespanha, e todos os dias n’esta terra atravessava uma multidão imensa de povo de todas as condições e estados, almocreves com suas alimárias, estafetas, carroças, liteiras e malas postaes que descansavam, comiam, compravam e vendiam, constituindo assim aqui um centro comercial que muitas vezes fez a felicidade de bastantes famílias. (…) A primeira estancia para refresco dos viandantes, depois da sahida do Porto, era Vallongo, onde tambem os transeuntes se muniam do afamado pão, quando iam para aquella cidade.”179

A inauguração da linha férrea do Douro, em 29 de Julho de 1875, no troço entre Ermesinde e Penafiel, onde se insere o cais de Valongo, provocou abalo no tráfego terrestre que a Estrada Real proporcionava em Valongo, pois, sendo facilitador da comunicação retirou algum protagonismo ao caminho que até aí se fazia pela disponibilidade e rapidez de alternativa. Num primeiro momento, terá tido impacto negativo, pois que terá contribuído para que uma das profissões mais presentes no concelho, a almocrevaria, sofresse forte abalo. Para além disso, a corrente humana de passagem entre Porto e Amarante terá baixado. No entanto, convém reforçar que, dentro da multidão que, no quotidiano, circulava entre Porto e Penafiel, nem todos tinham a capacidade financeira de usar o comboio. Por isso, a Estrada Real

178 Colecção dos relatórios das visitas feitas aos districtos pelos respectivos governadores civis em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866, Imprensa Nacional, Lisboa, 1868, p. 265 e 266.

179 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 222 e 223.

não perdeu uso, nem Valongo terá sido sacrificado por isso. Os testemunhos orais referentes ao final do século XIX e início do século XX dão conta de que o trajeto entre Valongo e Porto continuava a ser feito por estrada. Os padeiros e padeiras iam ao Porto, a pé, com as suas mulas, evitando o gasto em transporte.

Por outro lado, o crescente tráfego de pessoas na utilização da Linha do Douro representou uma oportunidade para a venda da regueifa e dos biscoitos produzidos nas padarias e biscoitarias de Valongo. À semelhança do que aconteceu com muitos outros produtos regionais, o caminho de ferro amplificou a reputação daqueles produtos de Valongo e deu oportunidade de venda, sobretudo, a muitas mulheres que, comprando aos padeiros e biscoiteiros, iam depois revender aos utilizadores do comboio. Ainda hoje, são lembradas as mulheres que, em Ermesinde e Valongo, apregoavam a regueifa e os biscoitos e os vendiam a quem viajava pela Linha do Douro.

“Pela estação de Valongo, no comboio que ia para o Douro, ouvia-se o pregão «Olha a regueifa! Quem quer regueifa de Valongo! Olha a regueifa de Valongo! Olha a requeifa!» Era assim! E andavam assim de janela em janela a vender as regueifas a ganhar algum, coitadas. Lá andavam elas com uma cesta na mão a vender a regueifa às pessoas.”

TERESA DUQUE, VALONGO.

O episódio relatado no jornal Comércio do Porto, acerca da visita do rei D. Carlos I ao Porto em Setembro de 1893 dá conta da interação entre uma mulher valonguense e o monarca. Tendo saído do Porto, em carruagem disponibilizada pelos Caminhos de Ferro do Minho e Douro, em direção a Valongo para assistir aos exercícios militares que decorreram no lugar da Balsa, freguesia de Sobrado, o rei D. Carlos terá sido interpelado por uma das mulheres que por ali andavam a vender regueifa. Alberto Pimentel relata o sucedido descrevendo “«uma padeira de Vallongo entrou na carruagem-salão, com permissão de S. M., e alli um oficial comprou-lhe uma das saborosas regueifas, especialidade d’aquella villa. A pobre mulher, a tremer, cumprimentou el-rei, que, sorrindo, lhe dirigiu palavras affectuosas».”180

O Pão de Valongo no Porto, Hospital D. Lopo de Almeida. Foram várias as contingências que fizeram frutificar a relação entre o Porto e o pão de Valongo. Por um lado, a geografia e a cultura da cidade não favoreceram o desabrochar da panificação no miolo urbano. Por outro lado, a excelência da arte da panificação de Valongo falou mais alto e arrastou fama desmobilizando outros núcleos de produção. No diálogo do tempo, ao longo dos séculos, Valongo foi-se afirmando como um centro centrifugando para o seu âmago todas as oportunidades de aperfeiçoamento e sucesso. Ou seja, garantida a singularidade da arte, a comunidade valonguense soube aproveitar todas as oportunidades geográficas, sociais, económicas, políticas para criar produtos de culto anulando todas as possíveis situações de desvio, da moagem à venda. Foi assim que se criou a reputação do pão de Valongo.

Na dialética profícua entre os dois polos, o produtor e o consumidor, o pão de Valongo foi entrando em casa das famílias. Transportado até aos mercados, era ali adquirido afirmando-se como fundamental no quotidiano e nas situações festivas. A cultura gastronómica do Porto passou a incluir os produtos de Valongo.

Terá sido, certamente, por essa presença tão assídua e tão fiel, que na história do Hospital D. Lopo de Almeida, da Santa Casa da Misericórdia do Porto, se perspetivou a possibilidade de fornecimento do pão valonguense para o consumo dos doentes. É que, se no desenrolar da história deste hospital, surge a oportunidade

de fornecimento de pão pelos padeiros e padeiras de Valongo, tal não acontece despojado de sentido ou contexto, mas ocorre porque era notório a excelência da atividade da panificação valonguense. Ou seja, na cidade do Porto era reconhecida a sua qualidade sendo, por isso, parte integrante da história daquela instituição da cidade. É que no aclarar do momento de origem de produtos simbólicos dos territórios, o destaque em referências escritas é sempre sinal de um trabalho anterior que leva à sua enunciação pela singularidade que traduzem. Por isso, a presença em fontes documentais são de realçar, contudo, a força das mesmas conta muito mais do que a data a que se referem. São o fruto de uma força, uma presença, uma marca que se institui de tal ordem que merece o lugar cativo nas fontes escritas. Por isso se, no início do século XVII, se fazia sentir a particularidade da qualidade do abastecimento que Valongo fazia à cidade do Porto, o histórico de relacionamento entre os padeiros valonguenses e a Santa Casa da Misericórdia do Porto faz prever a boa fama e a reputação do pão produzido naquele aglomerado do Termo da cidade, em tempo anterior.

O Hospital de D. Lopo de Almeida, deixado por testamento à Santa Casa da Misericórdia do Porto, tinha como missão receber doentes que fossem de situação económica desfavorecida e cuja condição enferma fosse curável. Iniciada a construção em 1605, foi em 1610 que recebeu os primeiros doentes. Neste contexto, providenciavam-se todos os esforços para que a sua hospitalização fosse rodeada dos melhores cuidados, vigiando-se a qualidade dos alimentos incluídos na dieta de modo serem conformes ao disposto no regimento da instituição. Cada doente recebia, diariamente, dois pães que, no início do século XVII eram da responsabilidade das padeiras do Porto. Em 1700, daquele é dito que, por ser “mal amaçado e emburchado o não comião, sendo tão preto (…) trazendo-o muitas vezes quente assim como sahia do forno pera logo se gastar, e servião ver de frio a roindade delle.”181

Foi no seguimento da constatação da fraca qualidade do pão fornecido pelas padeiras do Porto, que o provedor D. Sebastião da Costa e os conselheiros de 1ª e de 2ª decidem consultar as padeiras e padeiros de Valongo de modo a verificar a qualidade do seu pão. Com a aprovação dos médicos da instituição hospitalar, é determinado que “(…) se desse aos doentes pam das padeyras de Valongo.” O preço estabelecido pelos dois pães obrigatórios na dieta diária dos doentes foi de 25 réis, tendo ficado estabelecido que o valor seguiria as oscilações do custo do trigo.

É em 27 de Junho de 1708 que é firmado o primeiro contrato entre a Santa Casa da Misericórdia e o padeiro Manuel da Cruz, de Valongo, que fica obrigado a fornecer pães iguais à amostra enviada, cujo tamanho seria aferido por “hua marca de pau que estará no hospital, para por ella se conferir o pão que trouxer e ver se he sempre do mesmo tamanho”. 182 Em Julho de 1711, em virtude de o pão produzido pela padeira do hospital causar dano aos doentes, novo contrato de fornecimento vai ligar Valongo e a Santa Casa da Misericórdia do Porto através de compromisso firmado entre o padeiro Luís Lopes e sua mulher Margarida António.183 A 23 de Agosto de 1716, será Maria Antónia, viúva de Manuel de Sousa Fernando, que irá assumir o fornecimento àquela instituição.184 Em todos os contratos referidos, constava o compromisso de usar trigo produzido nas imediações de Valongo. Apesar desta obrigação estabelecida por ordem de letra no contrato, não será de aceitar que, num fornecimento tão abrangente, fosse somente utilizado trigo produzido no concelho. Para além de não ser território de condições

181 AHSCMP – Livro de Lembranças, série D. B., nº 6, fl. 228.

182 AHSCMP – Livro de Lembranças, série D. B., nº 6, fl. 282.

183 AHSCMP – Livro de Lembranças, série D. B., nº 6, fl. 303.

184 AHSCMP – Livro de Lembranças, série D. B., nº 6, fl. 348-349.

favoráveis para a produção daquele cereal, à época em causa, o pagamento de foros em trigo deixava muito pouco disponível para utilização diária. Daí que as rendas dos emprazamentos fossem pagas em «pão meado», o que faria supor a junção de trigo e centeio ou de trigo e cevada.

Contudo, será de supor que para a qualidade do pão concorresse, a espécie de trigo, sendo que os padeiros podiam escolher entre o trigo que os almocreves traziam ou que de algum modo tinham acesso, a moagem do mesmo e a separação entre a farinha e o farelo pelo uso de peneira de malha fina. Provavelmente, esse terá sido um dos principais trunfos do pão feito em Valongo, a vontade dos padeiros e padeiras fazerem, da seleção do cereal e da qualidade da moagem, elemento fundamental para um pão saboroso, nutritivo e muito apetecido. A exigência da qualidade e a vontade da excelência explicam o sucesso da atividade da panificação de Valongo.

A procura e escolha dos padeiros e padeiras de Valongo para o fornecimento de pão no Hospital D. Lopo de Almeida garante que, no dealbar do século XVIII, a sua reputação era garantia de excelência e confirmava a confiança do público consumidor do Porto. Mais do que prova documental que exprime a antiguidade da fama do pão de Valongo, é prova de como a sua qualidade o tornava tão importante, não só no quotidiano do cidadão comum, como no dos que, debilitados, aguardavam reabilitação física. Seria tal reconhecimento máximo e prova superior de fidelidade.

Padeiras e Padeiros. Do feminino ao masculino, uma história do Pão no seu todo.

É de 1636, a referência mais antiga às mulheres valonguenses que iam até ao Porto levar o pão molete e a regueifa. Consta de uma ata de vereação da cidade do Porto e atesta a antiguidade da relação umbilical entre aquela cidade e Valongo no que respeita ao fornecimento do pão. Por outro lado, em 1639, na já citada referência ao pedido de pão, efetuado pelo mestre de campo das tropas que defendiam a linha de costa de possíveis ataques, sabemos que o abastecimento de pão seria feito por almocreves. A razão para transporte ser assegurado pelo serviço de almocreves poderá ser justificado, quer pelas quantidades de pão que tal situação exigia, quer pela dificuldade em chegar ao local onde as tropas estavam estacionadas. A distância e o risco poderiam ser fatores a exigir uma solução diferenciada.

Na descrição do fornecimento de pão ao hospital D. Lopo de Almeida, pertencente à Santa Casa da Misericórdia do Porto, ressalta a referência, nas datas de 1708, 1711 e 1716, aos contratos estabelecidos com padeiros de Valongo. Como já indicado, no primeiro, é referenciado Manuel da Cruz, no segundo Luís Lopes e sua mulher, Margarida António. No terceiro, regista-se Maria Antónia, viúva de Manuel de Sousa Fernando. De realçar, por isso, que os contratos se efetuam entre o referido hospital e padeiros e padeiras. Nas várias descrições sobre a venda do pão e da regueifa nos mercados do Porto, sobressai a presença feminina. Em 1789, Agostinho R. da Costa refere as “padeiras”185 que vêm vender o pão, às terças, quintas e sábados nos mercados de S. Bento, S. Domingos e na rua das Flores. De novo, serão as mulheres de Valongo que as monjas do Mosteiro de São Bento de Avé Maria, em 13 de Agosto de 1803, vão defender da ordem de despejo do mercado que se desenvolvia em frente à escadaria do edifício. A escrita de Arnaldo Gama (Um Motim há Cem Anos) também permite deduzir que seriam as mulheres que viriam ao Porto vender o pão. “(…) e acolá uma mula de Vallongo com as alterosas canastras bifurcadas no dorso, e a padeira sentada sobre a sua bifurcação, a romper irresistivelmente por entre o gentio. (…) Estas cenas repetem-se irrevogavelmente

185 Costa, Agostinho Rebelo da. Descripção Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, Officina de António Alvarez Ribeiro, 1789, p. 55.

todas as terças feiras. E o que já é hoje, era já em 1757.”186 O mesmo acontece com a descrição da feira de S. Lázaro, em que (…) era de uso e costume comer queijo e regueifa de Valongo, para o que na feira não escasseavam as padeiras em carreira com grandes gigas de roscas tostadas desse delicioso pão alvo.”187 Os relatos sobre a Feira do Pão, que inicialmente se situou na Praça Nova e depois na praça de Santa Teresa, referem, de forma explicita e demorada, as padeiras de Valongo. 188

Tal repetida evocação das mulheres que iam até ao Porto levar os produtos para venda levou a que, frequentemente, se referissem as «padeiras» de Valongo. Contudo, uma análise mais demorada das fontes permite situar que a história do pão de Valongo não se faz somente no feminino, mas assume uma feição familiar onde marido e mulher teriam importante papel.

Na verdade, a afirmação do pão de Valongo como elemento fundamental na história da alimentação na cidade do Porto, quer pelas necessidades de abastecimento da cidade, quer pela oferta de um pão de qualidade, justifica o aparecimento de muitas unidades de produção já identificáveis no século XVIII. Em 1764, no conjunto da população ativa do concelho são já identificados 51 lavradores, 41 almocreves, 22 moleiros e 59 padeiros, dos quais 5 seriam mulheres. Em 1785, destacam-se 44 lavradores, 13 almocreves, 27 moleiros e 119 padeiros, dos quais 12 seriam mulheres. Em 1793, contabilizam-se 54 lavradores, 19 moleiros e 123 padeiros, dos quais 1 mulher. 189

Na opinião de M. Adelaide Lima, os dados sobre a presença feminina no conjunto dos padeiros estará sub-representada. Os números apresentados dizem respeito a recenseamentos dirigidos à população masculina para efeitos de recrutamento militar e, na maioria das vezes, têm em conta o representante do agregado familiar que, à época, seguia a lógica do patriarcado. Ou seja, mesmo que estivessem mulheres envolvidas e fossem elas a dirigir os trabalhos do pão, seria contabilizado o marido. Contudo, importa já notar que, pelas referências indicadas nas fontes escritas e orais, o trabalho da padaria envolveria homens e mulheres, não sendo um trabalho feminino ou masculino, em exclusivo. “Enquanto unidades de produção e de rendas, sabemos que algumas destas famílias de padeiros e padeiras controlavam todas as fases do negócio de pão. (…) A venda do pão estava reservada às mulheres, embora os padeiros as acompanhassem nas viagens de deslocação. Na manipulação do produto empregavam-se tanto homens como mulheres.”190

A unidade de produção, a padaria, seria, simultaneamente, o espaço doméstico da família onde, marido, esposa, filhos e demais família (tios ou avós) ocupavam as respetivas funções. As diferentes fases da produção e venda eram asseguradas de forma diferenciada, tendo em conta a dinâmica familiar. Nos números apresentados por M. Adelaide Lima, em 1764, “dos 59 padeiros apurados 57 são cabeças de casal, entre os quais estão 3 viúvas, e em 1785, este número ascende para 119 (12 mulheres, 107 homens). 191 Aliás, na opinião desta investigadora, as funções iam sendo adaptadas às necessidades e, em cada padaria/família, o papel desempenhado por cada um

186 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 12.

187 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 22.

188 Marçal, Horácio. Feiras e Mercados na Cidade do Porto, desde o século XIV até aos nossos Dias, Separata da Revista de Etnografia nº 30, Museu de Etnografia e História, Junta Distrital do Porto, p. 11.

189 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 81, 82 e 83.

190 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 167.

191 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 154.

dos elementos estava dependente de fatores internos e externos. Ou seja, poderia ser a necessidade de realizar uma determinada função versus a disponibilidade para a realizar. “Tudo nos leva a crer que estamos numa economia de tipo familiar, onde a reprodução dos saberes se processa em família.”192

Em 1808, na elaboração da listagem de pessoas que têm lojas abertas, vendagens nas praças públicas e fora delas em Valongo para cálculo da contribuição necessária para o esforço de guerra na relação, estão registados 102 padeiros e 17 padeiras. 193 Sobressai, por isso, a referência ao elevado número de padeiros por comparação com a presença feminina nessa lista. Em 1895, são identificados 37 padeiros em Valongo não constando dessa lista qualquer referência a mulheres. Em 1912, no rol de industriais de padaria que aferiram pesos, 10 são mulheres. 194 Como já foi referido, a agregação da padaria ao representante da família (usualmente, o marido) era somente consequência da maior relevância social do marido tendo em conta o padrão sociocultural.

A destrinça entre o papel do homem e da mulher na arte da panificação de Valongo nunca terá sido evidente, pois que no âmbito da unidade familiar padaria/família, os papéis eram desempenhados de acordo com as necessidades e oportunidades. Tal entende-se da escrita de José Augusto Vieira que, na publicação Minho Pitoresco, 1887, refere que Valongo é “terra de padeiros”, mas de seguida, ao referir o moleiro, evoca a “companheira, a boa e laboriosa vallonguense, que tanto o ajuda, tem á sua conta o governar o pão, isto é, encarregar-se de todo o trabalho de panificação e da venda no Porto, onde a parte mercantil foi d’antes importantíssima.”195 Mais, à frente, descreve a intensa atividade ligada à panificação que “(…) é, como o leitor sabe, a mais considerável. Contam-se em Vallongo 77 fornos, sendo 73 na villa e 4 nas freguezias ruraes. Duas terças partes do pessoal compõe-se de mulheres, cujo salário é de 100 a 120 réis, e comida dada pelos patrões. A exportação annual, que tem crescido para os concelhos limitrophes, embora haja diminuído para o Porto, ascende á cifra de 331:452 $000 réis.”196 Nesta descrição de finais do século XIX, se surge evidente a presença mulheres na atividade da panificação, não deixa de ser possível, igualmente, subsumir que os homens assumem importante papel, ainda que sem certeza acerca da divisão das tarefas.

Horácio Marçal relata o modo de vestir das padeiras e padeiros que, ao Porto, acorriam para vender os seus produtos. “(…) As padeiras de Valongo envergavam consoante as estações, saias de pano de lã (…), chapéu pequeno e redondo na cabeça, chinelos nos pés e, no pescoço, invariavelmente, ostentavam grossos cordões de ouro, com medalhas, corações ou cruzes pendentes. Nas orelhas, era essa a moda, seguravam volumosas arrecadas. (…) Os padeiros da mesma região vestiam calças, colete e jaqueta. No Verão faziam usa da calça branca de sarjão ou de linho (…) na cabeça usavam chapéu preto de abas largas, redondo e baixo e, nos pés chinelos de couro grosso.”197

Nos testemunhos orais, é explicito a preponderância da família na continuidade da unidade de produção sem uma distinção precisa e notória do papel de cada um. Das tarefas mais árduas, às mais ligeiras, os papéis iam sendo assumidos pelos diferentes membros da família de acordo com circunstâncias várias.

192 LIMA, Maria Adelaide Gonçalves Almeida – A Padeira de Valongo – Entre o mito e a realidade. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de Mestrado. 2020, p. 169.

193 CMP-AM/PUB/CMPRT/FANT/0112-A.PUB.4767.167. Relação das pessoas que tem lojas abertas de ofícios e vendagem nas Praças Públicas e fora delas no lugar de Valongo em 1808. Contribuições de Guerra sobre as Corporações de Ofícios.

194 MATA, Joel Silva Ferreira – História Económica, Social e Administrativa do Concelho de Valongo (1836-1926). Valongo : Câmara Municipal de Valongo, vol. II, 2023, p. 335 e 336.

195 VIEIRA, José A. – Minho Pittoresco. Lisboa : Livraria de António Maria Pereira. Tomo II, Lisboa, 1887, p. 593.

196 VIEIRA, José A. – Minho Pittoresco. Lisboa : Livraria de António Maria Pereira. Tomo II, Lisboa, 1887, p. 597.

197 MARÇAL, Horácio – “A típica feira do pão, no Porto, em meados do séc. XIX” In: O Tripeiro, ano VII, 1967, p. 2.

“Todos lá em casa faziam o pão, o meu pai era mais ligado ao forno, mas todos aprendemos a fazer pão. Começávamos a trabalhar por volta da meia noite, tinha de se aquecer o forno. Fazia-se a primeira massa que ficava a levedar cerca de uma hora. Depois, fazia-se novamente outra massa e, nos intervalos, dormíamos em cima dos sacos da farinha.”

M. DA PURIFICAÇÃO MATOS FERREIRA SOARES RIBEIRO, 74 ANOS, VALONGO.

“Quem fazia o pão era a família e os criados internos.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

“O meu pai e a minha mãe faziam o pão durante a noite, depois durante o dia a minha mãe fazia o balcão aqui em Suzão, a minha tia fazia a volta e o meu pai ia para Alfena vender. Mas a minha mãe era uma mulher cheia de coragem e muito reta. Durante anos, achei que o meu pai é que era o pilar, mas não, era a minha mãe.”

CECÍLIA COELHO ABREU COSTA, 56 ANOS, SUZÃO.

“A minha mãe era biscoiteira, trabalhava nos biscoitos. O meu pai era forneiro, mas fazia de tudo. Tanto amassava, como cozia. Na nossa padaria era tudo amassado à mão. Tanto era o meu pai, como os meus tios e até nós amassávamos o pão!”

“No tempo do meu avô, éramos todos que fazíamos o pão. Era amassado à mão, era a minha avó e, depois, era eu. O meu avô pesava os pães, cada molete tinha de ter 70g de massa. Tudo era tabelado, o peso e o preço do pão. Havia fiscais que iam ver se tínhamos o peso certo. A minha avó amassava e o meu avô é que pesava, punha num tabuleiro em cima de um pano. No tempo dos meus avós, antes de ir para o forno, cortava-se com uma faca. No meu tempo, já só se batia com a mão e virava-se ao contrário. Depois, ao entrar no forno, voltava-se a virar. Não ficava igual como se fosse corte, ficava mais macio, o corte ficava mais suave. Tanto a minha avó como o meu avô punham ao forno, cada um punha uma parte na pá, mas era o meu avô quem tratava do forno, aquecia, varria, punha e tirava. A minha avó só ajudava a pôr na pá.

Eu só comecei a trabalhar ao forno, certinho, já por minha conta. Mas quando comecei já sabia trabalhar ao forno, aquilo que não se aprende num dia ou dois. A minha avó amassava, o meu avô tendia e tratava do forno.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

Mais do que a divisão de tarefas ter uma expressão masculina ou feminina, da análise das fontes escritas e orais, realça a importância da família, quer no envolvimento de todos os elementos na atividade, quer na salvaguarda do negócio para o bem do núcleo familiar. Protegia-se o agregado, sendo que, algumas situações, este podia incluir três gerações numa dinâmica de família alargada. Ou seja, o núcleo poderia ser constituído pelo casal e pelos filhos, mas também pelos avós e tios.

De notar que, de uma unidade de produção/família surgiam novas unidades de produção com o casamento dos filhos. Era hábito que, com o casamento, fosse atribuída uma volta de venda de pão ao novo casal dando origem a uma nova padaria. Ou seja, cada padaria/família tinha as localidades habituais de venda (voltas), na formação de uma nova padaria esta passava a dispor de uma das voltas da família. Era uma forma de estimular o novo negócio, garantir a subsistência da nova família e não deixar que o negócio fugisse do controlo da família.

“Havia muitas padarias em Valongo. Por isso, sempre que um filho de um padeiro casava, nascia outra padaria.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

“Tanto em Suzão, como em Valongo, havia uma tradição que era casar entre padeiros. Faziam isso, para não perderem as voltas e aumentar ainda mais a volta. Quando um filho casava, dava-se uma volta da venda de pão para eles começarem.”

CECÍLIA COELHO ABREU COSTA, 56 ANOS, SUZÃO.

Em Valongo, a riqueza que a atividade da panificação proporcionava conduziu à prática da endogamia sendo muito frequente a realização de casamentos entre famílias próximas. Consideravam que, deste modo, estavam a proteger o negócio de família e a abundância que o mesmo gerava.

“O meu sogro era irmão do meu tio e padrinho. Havia muitos casamentos de primos direitos com primos direitos, era para os negócios se manterem. Havia muita padaria. Um irmão da minha avó casou com uma prima direita.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

“Em Valongo, quase todas as casas eram padarias e todas as famílias estavam ligadas à panificação. E os casamentos ocorriam sempre entre pessoas que eram da terra, entre pessoas que estavam ligadas a famílias de padeiros. Era habitual que os casamentos acontecessem entre pessoas de Valongo, não iam casar fora.

E era, também habitual, que quando duas pessoas casavam, os pais lhe dessem uma venda. Era o dote para o filho ou para a filha, depois, o novo casal que se governasse. E, por isso, de uma padaria surgiram muitas novas padarias.”

ANTÓNIO DE SOUSA GONÇALVES PEREIRA, 74 ANOS, VALONGO.

Apesar da reputação das «padeiras de Valongo» não será lícito concluir que, em Valongo somente as mulheres estariam ligadas à arte da panificação. Joel da Mata reforça afirmando que “a indústria da manipulação de cereais, na vila de Valongo, atraiu inúmeros industriais que se confundiram, na maior parte das vezes, com o núcleo familiar que trabalhavam a farinha até à distribuição do pão por diferentes concelhos, tanto por membros masculinos como por femininos que faziam caminhadas de ida e volta diárias.”198

No aprofundar da análise desta temática, será importante, perceber que, nem sempre quem fazia o pão, era quem o vendia. Em algumas situações, mulheres não ligadas à panificação iam às padarias buscar o pão, os biscoitos, a tosta e outros produtos, e iam vendê-los em mercados ou lugares dos concelhos limítrofes a Valongo. Porque vendiam o pão, essas mulheres eram chamadas de padeiras, ou seja, para o público, as vendedeiras eram padeiras porque vendiam o pão. Contudo, é de assumir que muitas delas não o fariam. Mas, como eram elas que levavam o pão para muitos lugares de venda, ficava cristalizada a ideia de que seriam elas as padeiras assumindo-se que o pão seria um trabalho de mulheres.

Os testemunhos orais são perentórios na afirmação do envolvimento de toda a família na produção, sendo que a transmissão do saber-fazer se fazia entre gerações e que a distribuição de tarefas era feita de acordo com condicionantes familiares.

198 MATA, Joel Silva Ferreira – História Económica, Social e Administrativa do Concelho de Valongo (1836-1926). Valongo : Câmara Municipal de Valongo, vol. II, 2023, 2023, p. 334.

Ou seja, será de equacionar, na história do Pão de Valongo, um lugar, nunca efémero, mas sim muito definido para as mulheres que vendiam e que, mesmo não estando ligadas à produção, tiveram um importante papel na divulgação dos produtos da panificação de Valongo. Na definição dos papéis assumidos por homens e mulheres, a força dos testemunhos não deixa esquecer a importância das vendedeiras de pão, chamadas de padeiras, na reputação da panificação de Valongo.

“Pelo que sabemos, a biscoitaria não vendia diretamente para as lojas, mas sim para as mulheres biscoiteiras que vinham aqui comprar os biscoitos e os iam revender. Só muito mais tarde é que passam a ir direto para as lojas. Foram elas as grandes divulgadoras dos nossos biscoitos, elas iam para todo o lado, fossem a pé, de burro ou de comboio.”

MARIA CONCEIÇÃO MOREIRA GUIMARÃES, 52 ANOS, VALONGO.

“Vinham aqui muitas mulheres comprar biscoito para depois irem vender no Porto e em Ermesinde, vinham com uma cesta com um saco de pano e levavam cheio de biscoitos. Eram as biscoiteiras, não porque confecionassem, mas porque iam vender.”

SERAFIM FERREIRA DAS NEVES, 83 ANOS, VALONGO.

“Havia muitas mulheres que compravam biscoito e iam revender para outros lados. Era a Ana do Xico, a Maria Leoa, a Júlia, a Amélia, a Adosinda, a Isaura, a Maria José, a Ana Faina.”

ANTÓNIO DE SOUSA GONÇALVES PEREIRA, 74 ANOS, VALONGO.

Por toda a análise que as fontes escritas e orais nos permitem, a história do pão de Valongo faz-se, tanto no feminino, como no masculino. Uma família correspondia a uma padaria, uma casa de família era a unidade de produção onde todos ajudavam e onde as funções eram assumidas de acordo com as limitações e oportunidades de cada um. Na expressão «as padeiras de Valongo» incluem-se, as mulheres que faziam, os homens que faziam e coziam, as mulheres que compravam para revender, a família direta e a alargada. Um todo, por isso, que o tempo cristalizou, mas que envolve o espírito familiar que fez do pão de Valongo um ícone no concelho.

CIRCUNSTÂNCIAS DE UMA COMUNIDADE QUE CRIOU O PÃO DE VALONGO.

O Contributo do Pão na Construção da Igreja Matriz de Valongo.

A efervescência e grande incremento comercial conseguido à volta da arte do pão de Valongo, foi acompanhado do aumento da população e da necessidade de progresso. O aglomerado, inicialmente circunscrito a um núcleo habitacional reduzido onde se situavam a maioria das padarias, alarga-se e espraia-se pelos terrenos em volta.

A estrutura habitacional de Valongo, onde por baixo do reboco é possível perceber a construção com os pedaços de lousa, aqui e ali, seguras pelas traves graníticas, e os muros ordenadamente feitos de pequenas lajes da ardósia, permitem perceber a ocupação do espaço terá acontecido no início da encosta de Santa Justa, porventura a salvo das inundações que aconteciam junto da Ponte da Carvalha.

A pujança comercial vai permitir o engrandecimento do local sendo que os valonguenses intimaram vários desideratos de melhoramento de estruturas locais.

A construção de uma nova igreja foi, desde logo, tido como um objetivo a perseguir pois que se queria um local de culto de maior sumptuosidade que estivesse de acordo com «grandeza e população desta freguezia que he huma das mayores e mais povoadas»199 do Termo do Porto.

Neste desiderato, é visível o antagonismo entre os valonguenses e as monjas do mosteiro de S. Bento de Avé Maria do Porto, pois que esta intenção nasce, igualmente, do descontentamento da população em relação ao que era a ação do mosteiro no que respeita à preservação da igreja. “(…) os moradores consideram unamente que, além de ser «muito velha», encontrava-se «in deplorável estado», apresentando «as paredes abertas, desaprumadas, e ameaçando ruina», e, portanto, reafirmam, «incapás de nella se fazerem as funções sagradas do Sanctuario».”200

Neste contexto, terá sido longa a disputa entre os moradores de Valongo e as monjas, pois que a ambos cabiam obrigações diferentes. Aos valonguenses cabia a responsabilidade de construir o corpo do edifício, enquanto ao mosteiro era atribuída a obrigação de edificar a cabeceira e sacristia do lado nascente. O lado poente deveria ser suportado pelas confrarias presentes na igreja. Ora, no conflito entre as partes, argumentavam as freiras beneditinas a escusa de assumir qualquer encargo por de tal não verem necessidade.

Terá sido no seguimento de duas vistorias, a primeira, em 27 de Junho de 1782 e, a segunda, a 12 de Maio de 1785, que foi tomada decisão de erguer nova igreja face ao mau estado de conservação da velha matriz. Ficando reservada aos moradores de Valongo a obrigação de conseguir os fundos necessários para a construção do corpo principal da igreja, foi pedida provisão à Rainha D. Maria I “«em que lhes fassa a graça» de lançar o tributo de um real em cada quartilho de vinho e de azeite, e em cada arrátel de carne pelo tempo necessário a «tam pia, e necessária obra».”201 Será em 1786, que é aceite

199 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999. Cf. Vol. II, documento n°51, p.11.

200 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999, p. 71.

201 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999, p. 76.

pela monarca o pedido feito pelo povo de Valongo, executando-se o imposto solicitado, durante dez anos, não podendo o mesmo ir além dos limites de Valongo. Para as despesas da capela-mor, obrigação do mosteiro de S. Bento de Avé Maria, a rainha manda notificar as residentes no mosteiro da necessidade de custear as devidas despesas.

“Dona Maria por Graça de Déos. Rainha de Portugal e dos Algarves d’Aquem e d’Alem Mar em Africa Senhora da Guine. Saúde. Faço saber a vos Corregedor e Provedor da Comarca da cidade do Porto, que os Moradores do Lugar de Vallongo do termo dessa cidade Me reprezentarão por sua Petição, que a Igreja da sua Freguezia alem de ser muito pequena, e se não poderem acomodar dentro delia os Parrochianos, ouvindo Missa muito Povo de fora delia sem atenção devida a tão Alto Sacramento, também se achava em deplorável estado, arruinada, e antiga; não só nas paredes, madeiras, Tribuna, e sepulturas; mas geralmente não tinha couza nenhua em termos de se fazer nella os Officios Divinos; e fazendo os Suplicantes Cabbido, assentarão uniformemente fazer se hum Templo novo com capacidade para nelle caberem todos os Freguezes nas funçoens do Sanctuario; porem como se achava o dito Povo alcançado e muito pobre, pelo que não podião concorrer com a despeza entre si, e só por meio da Impozição de hum rial em cada quartilho de vinho, e de azeite, e em cada arrátel de carne pelo espaço conveniente a tão pia e necessária obra: Me pedião lhe fizesse Mercê mandar passar Provizão para a dita Impozição: E visto seu Requerimento, e o que constou da vossa Informação, ouvindo os officiaes da Camará, Nobreza, e Povo, que não tiverão duvida, como também a não teve o Procurador da minha Real Coroa a quem se deu vista; e sendo indubitável a grande necessidade, que ha de se fazer a nova Igreja, e ser sem questão pertencer a Madre Abbadeça, e mais Religiozas do Mosteiro de São Bento da Ave Maria dessa cidade do Porto a factura da Capella maior da dita Igreja de Vallongo, de que erão Padroeiras, e precebião os avultados dizimos, para o que sendo ouvidas impugnarão a Suplica, e constar pela vistoria, e mais deligencias a que se procedeo a precizão da nova Igreja, que sendo esta obra posta a lansos fora o menor de dezeseis contos de reis, como consta do termo que se vos remete por copia com os apontamentos e planta, e risco a que se procedeo: E tendo a tudo concideração: Hei por bem conceder aos Suplicantes a Imposição de hum rial em cada quartilho de vinho, e azeite, e em cada arrátel de carne, que se vender na dita Freguezia por tempo de dez annos, sendo paga a obra da dita Igreja pela mesma Impozição sem poder estender se do destrito da Freguezia (…).”202

Iniciadas as obras a 5 de Março de 1794, sendo que as mesmas começaram pelo corpo da igreja, desenvolveram-se a bom ritmo até 1795, altura em que se pressente a falta de recursos financeiros para fazer face às despesas. É neste contexto que, é solicitada nova provisão à rainha D. Maria I, sendo que a 30 de Outubro de 1796, é publicado o Aviso Régio decretando os impostos sobre trigo (grão) aos moradores de Valongo referindo “Sendo prezente a Sua Magestade a Informação que Vossa Senhoria deu sobre a Reprezentação do Juiz, Procurador, Elleitos, e Moradores de Vallongo a respeito da edeficação da sua Igreja Matriz para a qual pertendem onerar-se não só com a Impozição sobre o azeite, vinho, e carne que já se lhe havia concedido; mas sobre o pão que levão para o consumo da cidade do Porto, e suas vezinhanças, e também para com a mesma Impozição se reedificar a Ponte da Carvalha, e se reparar a Estrada Real que vai do Porto até Ponte Ferreira, que por Avizo de 3 de Outubro de 1794, se mandou

proceder a exame sobre a planta que se acha aprovada, a ver se podia com menor despeza, e sem opressão dos Moradores construir com decência; assim como o outro exame dos cinco reis impostos, como pertendem sobre cada alqueire de trigo ouvida a Camará da dita cidade.”203

O novo imposto, que se aplicava no pagamento de cinco réis sobre cada alqueire de trigo que fosse transformado em pão para consumo na cidade do Porto, traduz, de forma indireta, o peso que a panificação tinha na economia local. De tal ordem seriam elevadas as quantidades de pão envolvidas nas vendas nos mercados do Porto, que a aplicação de uma taxa poderia resolver as questões financeiras associadas às despesas com a construção da nova igreja matriz e, ainda, suportar a reedificação da Ponte da Carvalha e a Estrada Real, desde o Porto até Ponte Ferreira. De notar que estas últimas seriam de extrema importância para as deslocações dos padeiros e padeiras ao Porto. A história da construção da igreja matriz de Valongo acompanha várias vicissitudes onde se destacam os episódios de destabilização que as Invasões Francesas promovem naquela parte do país. Assim, entre várias momentos de avanço e alguns de recuo, é em 20 de Setembro de 1823 que se realiza a primeira missa na nova igreja. De realçar que, no segundo triénio doa abadessa D. Genoveva Vitória de Faria, o mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto garantiu as despesas tidas com a capela-mor. “Num documento datado de 31 de Maio de 1825, encontramos uma alusão ao altar-mor da nova igreja que tinha sido «tresladado para o Arco principal com a toda a sua prespectiva» sob o «gostozo aplauzo, e regozijo de todos os honrados Moradores», com excepção de «hum punhado de Indeviduos dezacordados» que procuravam «calumniozamente interceptar a brilhante marcha do famozo Edifficio da nova Igreja»”. 204 Após o pagamento das despesas referentes às obras aprovadas, a 27 de Outubro de 1803, as freiras beneditinas deixam de estar obrigadas a cumprir qualquer encargo com a capela-mor, passando essa responsabilidade para a Junta das Obras Públicas do Porto.

As obras de conclusão da nova Igreja Matriz de Valongo, tendo em conta o corpo da igreja, a capela-mor, a sacristia e o adro terminam na década de 30 da centúria de oitocentos, sendo terminadas à medida que os trabalhos vão sendo finalizados em cada um dos espaços. A capela-mor e o corpo da igreja são terminados em 1832, o adro em em 1835 e a sacristia em 1836. “A 20 de Março do ano seguinte (1832) as atenções dirigem-se para os telhados, com a compra de «6 braças de louza pêra aljarozes», tendo sido contratados para o efeito os pedreiros de lousa João Ferreira e António Martins. Dois meses volvidos, em Maio, compram-se «2 dobradiças para as bandeiras da Porta principal da Igreja», dando-se assim por concluídas as obras do corpo da nova matriz de Valongo.”205

203 ADP – Provedoria da Comarca do Porto, livro n°96, fls. 1v-2f.

204 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999, p. 118.

205 AZEVEDO, M. José Coelho de – A Igreja Matriz de Valongo, Arquitectura (1794-1836). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol I, 1999, p. 122.

O Pão de Valongo e as Invasões Francesas. Primeira Invasão. Inseridas no contexto que medeia o final do Antigo Regime e a introdução de ideias liberais um pouco por toda a Europa, as Invasões Francesas representam, para Portugal, um momento de destabilização política, económica e social por via da presença e ação militar do exército francês. Se ao momento da entrada da força militar francesa, em 1807, Portugal é um país economicamente enfraquecido, com uma posição financeira bem longe de quando se afirmava dono de um império, e politicamente fragilizado pela manifestação de incapacidade do monarca regente, no final das várias incursões militares francesas, Portugal abeira-se da desmoralização identitária. Contudo, cumpre situar o contexto que favoreceu uma ação militar tão penalizante para Portugal. Após o governo do rei D. José e da mão de ferro do seu ministro mais influente, Sebastião José de Carvalho e Melo, também conhecido por Marquês de Pombal, sobe ao trono, em 1777, D. Maria I, filha primogénita. O seu reinado terá ficado marcado pela tentativa de pacificar o exaltado estado social que a política determinada de Marquês de Pombal tinha criado, ainda que tenha procurado desenvolver uma ação de continuidade em prol do desenvolvimento do país. A visível incapacidade da rainha D. Maria I para assumir os destinos da nação e a morte do seu primogénito conduzem à necessidade de o infante D. João assumir a governação, em 1792. Contudo, seria em 1799, que seria empossado como Príncipe Regente, posição que irá assumir até 1816, data da morte da rainha D. Maria I. De caráter muito peculiar, D. João VI terá tido o grande desafio de gerir o conjunto de circunstâncias que culminaram com a entrada do exército francês em Portugal.

O contexto internacional que favoreceu as Invasões Francesas envolve uma intrincada teia de relações onde, simultaneamente, se destaca o confronto de poder entre a França e a Inglaterra e a fragilidade negocial de Portugal.

A participação portuguesa na Campanha do Rossilhão (1793-1795) afirma-se na necessidade de Portugal contribuir no esforço europeu de contenção das ideias revolucionárias francesas. A ameaça que os ideias saídos da Revolução Francesa poderiam constituir para o conjunto de monarquias ainda muito ligadas aos privilégios do Antigo Regime convenceu Portugal da necessidade de se envolver numa campanha que limitasse a progressão do novo modelo político. Inserido numa abrangente força de combate, sai de Portugal um corpo militar com destino à praça e porto catalão de Rosas para o que se acreditava ser uma ação de combate rápida e eficaz tendo em conta o estado económico e político de França. Para os mentores desta ação de contenção dos novos ideais, a capacidade e disciplina dos países do Antigo Regime iriam permitir destabilizar a organização militar francesa.

Contudo, tal não se veio a verificar e o desaire no confronto entre as duas forças conduz à necessidade de gerir um acordo de paz. Neste, a Espanha assegura o melhor compromisso deixando de fora Portugal que se vê a braços com a imposição de condições em nada favoráveis. Este acordo não chegou a ser assinado, mas a posição de Portugal assume-se como muito frágil num contexto de medição de forças entre França e Inglaterra.

Por um lado, no saldo da ação do Rossilhão, Portugal fica numa posição delicada e subalterna perante a França, procurando agradar às exigências que lhe eram solicitadas. Nestas, num contexto de expansão francesa sob a direção de Napoleão Bonaparte, torna-se evidente a imposição de Portugal obedecer ao bloqueio às relações comerciais com a Grã-Bretanha. Por outro lado, Portugal tem o compromisso secular de aliança com a Grã-Bretanha. Por fim, a Espanha, no sempre presente apetite pelo domínio do território português, indicia a tendência de estabelecer acordos secretos com o país vizinho, a França.

Entre a necessidade de agradar às solicitações de França, respeitar o compromisso com os ingleses e estar atento às movimentações espanholas, Portugal percebe a necessidade de uma ação flutuante, capaz de permitir o melhor enquadramento no xadrez político e militar da época.

Os acontecimentos irão precipitar-se com o agudizar das relações entre França e Inglaterra. Napoleão Bonaparte põe em marcha o seu plano imperialista de expansão procurando anular todos os limites e contenção a esse propósito. Neste contexto, a Grã-Bretanha e todos os países que apoiavam a força britânica são postos em causa. Perante a imposição do bloqueio continental, Portugal desfaz-se em manobras de suposta neutralidade que lhe permitissem uma saída da encruzilhada em que se encontrava. Napoleão acreditava que o bloqueio continental, pelo fechamento dos portos aos navios ingleses, iria levar ao estrangulamento económico inglês e, por consequência, à aceitação de um acordo.

Em Portugal, as opções eram alvo de discussões árduas e prolongadas sendo colocadas as hipóteses. Por um lado, a fuga da família real para o Brasil, a sua mais importante colónia que não se podia perder, sob a proteção do exército inglês. Esta era a solução defendida por D. Luís Pinto de Sousa, secretário de Estado do Negócios Estrangeiros de Portugal, e D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ex-embaixador em Turim. Por outro, a aceitação das exigências de Napoleão de modo a reforçar a neutralidade era afirmada por D. António de Araújo Azevedo e apoiado pelo duque de Lafões e por D. Diogo de Noronha, conde de Vila Verde. Perante um cenário em que Portugal não tem verdadeiramente autonomia política, económica e militar, torna-se cada vez mais evidente a invasão de Portugal.

Em 1807, a 27 de Outubro, em Fontainebleau, ocorrem, em segredo, negociações entre franceses, espanhóis e o rei da Etrúria, que visam a partilha do território português na consequência da recusa de Portugal em aderir ao bloqueio continental. Nesse tratado, fica estabelecido que o grosso do exército seria composto por militares franceses e a Espanha acederia à passagem do exército no território espanhol. De Espanha, viriam três corpos militares, um para acompanhar o exército francês, outro com destino a tomar a cidade do Porto e outro capaz de ocupar o Alentejo e o reino dos Algarves. Após a ocupação, as províncias de Trás-os-Montes, Beiras e Estremadura ficariam em estado de sequestro até à paz geral, a província do Entre-Douro-e-Minho seria entregue ao rei da Etrúria, enquanto Manuel Godoy, ministro de Carlos IV de Espanha, o célebre Príncipe da Paz, ganharia o Alentejo e o Algarve.

Perante a iminência da guerra, Portugal inicia os preparativos de fuga da família real e a organização possível das forças militares de modo a receber o embate da invasão. Dia 1 de Setembro de 1807 era a data limite para cumprir o bloqueio continental e, perante a renitência portuguesa em pôr em marcha a imposição de Napoleão, iniciam-se as ações militares, sendo que, em Novembro, já o exército francês se encontra em Portugal. É a 29 de Novembro de 1807 que parte para o Brasil a corte portuguesa deixando para trás um povo desamparado e entregue ao desnorte de várias forças que procuram tomar conta dos destinos de Portugal. Junot e as suas tropas, numa penosa e difícil travessia por Portugal até Lisboa, não conseguem chegar a tempo de aprisionar a família real e evitar a sua fuga para o Brasil.

A capital portuguesa terá sido ocupada pelas forças francesas comandadas pelo General Junot, enquanto o norte do país, na consequência do tratado de Fontainebleau, é ocupado por tropas espanholas comandadas por D. Francisco de Taranco y Llano. Afirmando ao povo portuense que a presença militar se destinava a proteger os locais da ausência do soberano e que não tinha qualquer intenção de se imiscuir nos usos e costumes da cidade, aquele chefe militar procurou serenar os ânimos agitados da cidade. Após a morte repentina de D. Francisco de Taranco y Llano, é o general Juan Garrafa de la Bocella que irá suceder no comando militar.

Se, num primeiro momento, a relação entre o comando de Junot e as forças espanholas é pautada por harmonia, não o será por muito tempo levando a que Taranço y Llano queira abandonar Portugal, pretensão que faz chegar a Junot. Percebendo este o bom entendimento entre as forças militares espanholas e os elementos do Porto, Junot nomeia o general Quesnel para chefiar as tropas no norte do país.

A agitação vivida em Madrid, a 2 de Maio de 1808, teve repercussões em Portugal sendo que o brigadeiro Balesta prende o general Quesnel libertando a cidade do Porto do domínio francês. Será no seguimento deste acontecimento que, em reunião com a câmara do Porto, são questionadas as autoridades da cidade o que pretendiam para o seu futuro, ora a fidelidade à Casa de Bragança, ora aceitação do domínio francês. A escolha pela independência não chegou a acontecer, contudo o Porto manteve a sua resolução de não aceitar a presença francesa.

Após a junção das tropas portuguesas com a força militar comandada por Sir Arthur Wellesley (futuro duque de Wellington), as forças de Junot são derrotadas levando à assinatura, a 30 de Agosto de 1808, da Convenção de Sintra que libertava o país da ocupação das tropas de Napoleão. Somente, em 15 de Setembro de 1808, partem de Lisboa a força militar. Do Porto, sairão somente em Outubro. Ainda que terminado o ciclo da primeira invasão, não terá sido a mesma contrariedade que tenha desencorajado Napoleão de insistir numa segunda vaga de ocupação.

A segunda Invasão. Valongo e o seu Pão na Ocupação Francesa. Em 1809, comandada pelo marechal Soult (Duque da Dalmácia), de novo entra em Portugal uma força de ocupação francesa. A porta de entrada fez-se por Chaves dado as dificuldades junto à foz do rio Minho, tendo chegando, a 29 de Março, à cidade do Porto. É no contexto desta ocupação que se dá o desastre da Ponte das Barca com a população que, em pânico de fuga, morre no rio Douro.

A cronologia desta segunda investida francesa aponta que a 27 de Março, o marechal Soult propõe à cidade a rendição. Perante uma resposta em formato de contra-ataque, os franceses, no dia seguinte, investem em toda a linha de defesa desde Campanhã até ao Forte da Foz. Durante este episódio, vão-se abrindo brechas na defesa portuguesa intensificando-se o receio de tomada da cidade. A 29, às 10h da manhã, perante a queda do corpo que defendia a zona de Campanhã, a população foge em grande sobressalto e medo em direção à Ponte das Barcas. Esta era constituída por duas centenas de barcas ligadas entre si que permitiam a comunicação entre as margens direita e esquerda do Douro. O desastre da Ponte das Barcas desenvolve-se no seguimento de um episódio onde o pânico da população em fuga com o desnorte das decisões militares levaram a que muitos caíssem ao rio.

Após a tomada da cidade do Porto, há que fazer a retirada de modo que as forças militares portuguesas pudessem ser reorganizadas. As fontes ilustram que o recuo das tropas portuguesas se fazem pela estrada de Valongo. “Seeing that all was lost, Parreiras fled over the bridge with his staff to report the bishop, while General Vittoria retreated east along the Valongo road into the interior. Vittoria’s men had suffered losses in the assault, but Franceschi’s cavalry declined to pursue them much beyond the edge of the city, allowing them to withdraw in good order.”206

A centralidade da estrada de Valongo na confluência entre a parte urbana, situada no litoral, e a região interior, situada a este, fez com que, na fuga, aquela via fosse determinante. Tal é registado por vários descrições desse momento de desespero pela independência nacional. “The centre being thus driven in, the Portuguese wings saw

206 BUTTERY, D. – Wellington Against Soult: The Second Invasion of Portugal 1809. Burnsley : Pen and Sword Military, 2016, p. 106.

that all was lost, and gave away in disorder, looking only for a line of retreat, Vittoria, with the right wing abandoned his section of the city and retreated east along the Vallongo road, towards the interior: he got away without much loss, and even and even turned to bay and skirmished with the pursuing battalions of delaborde (…)”. 207

No Estudo Histórico sobre a Campanha do Marechal Soult em Portugal (1898), A. Taveira descreve que “o nosso brigadeiro Victoria destacou para o exterior da linha a pouca tropa regular de que dispunha, a qual tomou a posição sobre a estrada de Vallongo, fazendo frente à cidade: elle próprio ficou com alguns officiaes nas baterias do Bonfim a animar os populares que as defendiam. O General Delaborde vendo-se assim metido entre dois fogos, faz atacar pela brigada Arnaud, apoiada pela cavalaria de Franceschi, as tropas exteriores e fica esperando o resultado d’esse ataque secundário para atacar Victoria pela retaguarda, e entrar no Porto.”208

Sendo a estrada de Valongo fundamental no trajeto para Trás-os-Montes, aquela via tornou-se prioritária no recuo das tropas portuguesas face ao desaire da ocupação. Também algumas fontes francesas a isso fazem referência. “Les portugais qui la composent, font un movement, et prennet position sur la route de Vallongo de Porto à Vallong, faisant face à Porto, et mettant ainsi les français entre eux et cette ville; mais le général Arnaud avec le 86º régiment et un bataillon du 70 régiment, soutenus par de la cavalerie du général Franceschi, et il attend le succés de cette ataque pour entrer dans O-Porto.”209

Tendo em conta a centralidade da estrada de Valongo como o eixo viário de comunicação entre o litoral e Trás-os-Montes, aquela terá sido opção segura para as tropas portuguesas que, após a tomada do Porto, recuaram para o interior numa tentativa de reorganização sob o comando do General Silveira.

O marechal Soult ciente da certeza da reorganização da força militar portuguesa, na tentativa de controlar todos os focos de agitação, envia uma brigada da divisão de Lahoussaye no encalço das forças portuguesas estacionadas em Trás-os-Montes. Nesta investida de vigilância, o general Caulaincourt, em viagem para Nordeste, passa em Valongo. No registo desse episódio não deixa de ser realçado a importância e dimensão da atividade do pão. “Notre brigade eut ordre de se porter sur Amarante, pour tâcher d’ouvir la communication avec maréchal Victor, qui devoit concourir avec nous à l’expediction de Portugal, en occupand le pays entre le Douero et le Tage. Nous allâmes bivouaquer prés de Vallongo, petit ville remplie de boulangers, que fornissent du pain à Porto. Les hauters que la dominent avoint été fortifiés et garnies d’artillerie, mais l’ennemi les avoit abandonées. L’on sut, à Vallongo, qu’une partie de l’aile droite de l’armée portuguaise s’étoit retirée sur Tamega.”210 Na permanência das tropas francesas na cidade e nos arredores o abastecimento era questão fulcral. Um dos elementos que mais fragilizou as investidas francesas foi a dificuldade de alimentar as tropas de forma conveniente. Por isso, na gestão da presença militar não escapou a necessidade de garantir o fornecimento de bens essenciais como o pão. Neste contexto, o período de ocupação francesa da cidade do Porto vem acentuar o quão importante era o abastecimento feito por Valongo, pois que na cidade escasseava a capacidade de o produzir em quantidade suficiente. Em 1809,

207 OMAN, C. – A History of Peninsular War. Oxford : Clarendon Press, vol. II, 1903, p. 124.

208 TAVEIRA, A. – Estudo Histórico sobre a Campanha do Marechal Soult em Portugal. Lisboa : Typographia da Cooperativa Militar, 1898, p. 91.

209 LE NOBLE, P. – Mémoirs sur les Opérations des Française n Galice, en Portugal, et dans la ville du Tage, em 1809, sous le commandement du Maréchal Soult, Duc de Dalmatie. Paris : Chez Barrois L’Ainé, p. 170.

210 NAYLES, M. – Mémoirs sur la Guerre d’Espage, pendant les années 1808, 1809, 1810, et 1811. Paris: Chez Magimel, Anselin et Pochard, 1817, p. 101.

“no Porto havia só uma padaria de três fornos, e outra semelhante em Gaya, nas quaes se poderiam coser ao todo 18 a 20:000 rações dia. O mercado era ordinariamente abastecido de pão pela gente dos arredores da cidade, especialmente das freguesias de Vallongo e Avintes (…)”. 211

No decorrer da ocupação, Soult percebe a dificuldade em contrariar as ações de guerrilha que explodem por toda a cidade e entende que é necessário dar confiança ao povo portuense de que não será, nem uma colónia francesa, nem uma província espanhola. Dentro deste desiderato de restituir a confiança na força militar francesa, o marechal Soult procurar tomar um conjunto de resoluções que restabeleçam o quotidiano habitual. “No dia 3 de Abril (1809), Soult, desejando que a cidade retomasse a sua fisionomia normal mandou convidar, por intermédio da Câmara, os negociantes a reabrirem as suas lojas, e ordenou as necessárias providências para que os mercados do costume se realizassem. Foram intimados os padeiros e padeiras de Avintes e Valongo a virem «imediatamente com o pão cozido às praças públicas desta cidade».”212

À semelhança do que acontecia no decorrer habitual do quotidiano portuense, desde longa data como informam as fontes já referidas, durante a ocupação francesa manteve-se a venda de pão de trigo produzido e cozido em Valongo realçando a importância deste abastecimento à população urbana. “Que le commerce n’avait point de magasins de blé à Porto; quíl n’y avait en ville que six petits fours particuliers construits par quatre boulangers français établis dans cette ville depois huit à dix ans; qu’ordinairement le marche est approvisionné en pain par les gents de la campagne; que les villages de la droite, principalement Valongo apportent le pain blanc, tandis que le pain comum y est vendu par Arnelas et d’autres villages de la rive gauche (…)”. 213

A resistência à presença francesa e a sua possível expulsão da cidade terá sido um desiderato dos portugueses. Neste contexto, nos meandros de um conjunto de episódios em que Soult procura a melhor administração da situação tendo em conta os seus interesses particulares e os de França, dá-se o confronto com o exército anglo-luso, comandado por Sir Arthur Wellesley, sendo que este acaba por tomar a cidade a 12 de Maio de 1809. Perante este revés para a ocupação francesa, as tropas acabam por ter que retirar apressadamente.

A antecipar esta retirada, tendo em conta a centralidade e a proximidade de Valongo, este ponto é requisitado como lugar de suporte à estratégia de fuga. É para lá que é despachado o material de artilharia retirado da cidade e, ainda, todo o produto resultante do saque efetuado. Naturalmente, a estrada de Valongo fica sob vigilância tendo em conta as necessárias movimentações de retirada tão importantes para os franceses. É neste contexto que, perante a constatação de que o volume do material de saque poderia atrapalhar a fuga, é decidido distribuir pelas populações alguns produtos.

A Valongo vai calhar 100 pipas de vinho.

A preparação do abandono do Porto pelos franceses torna-se cada vez mais premente. Tal é relatado por Buttery (2016) “when Wellesley arrived south of the city, he immediately climbed the serra Hill to view the area, wich rose 150 ft above the river. From this vantage point, he observed clouds of dust from the northeast raised by a large

211 TAVEIRA, A. – Estudo Histórico sobre a Campanha do Marechal Soult em Portugal. Lisboa : Typographia da Cooperativa Militar, 1898, p. 101.

212 BASTO, A. M. – 1809: o Pôrto sob a Segunda Invasão Francesa. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1926, p. 94.

213 LE NOBLE, P. – Mémoirs sur les Opérations des Française n Galice, en Portugal, et dans la ville du Tage, em 1809, sous le commandement du Maréchal Soult, Duc de Dalmatie. Paris : Chez Barrois L’Ainé, pp. 181 e 182.

Massa tirada do sovador para fazer Cacos.

body of men and horses moving along the Vallongo road. Upon closer examination, he judges this force comprised at least two large infantry columns escorting a long wagon train. These were troops of Mermet’s division accompanying wagons (laden with sick and wounded soldiers) and reserve artillery moving towards Amarante.”214

A antecipar a derrota, o marechal Soult resolve abandonar a cidade sendo que a retirada é feita pela estrada de Valongo. “Ele próprio (Soult) corre a colocar-se à testa do 17º Ligeiro e o conduz ao ataque do Seminário e do Jardim do Prado, onde o inimigo se encontra já em força. Incapaz de o desalojar e obrigado a ceder ante o número sempre crescente de adversários, reúne os batalhões que ocorrem para reforçar e dispõe-nos de modo a cobrir a estrada de Valongo escolhida como linha de retirada pelo marechal. Durante três horas sustenta essa luta desigual; por fim, ameaçado pelos dois flancos que desembocam da cidade e pelas que desembarcam a montante da aldeia de Campanhã, retrocede e alcança o corpo do exército, que sob a sua proteção pôde efectuar a retirada.”215

Será em Valongo que as tropas irão parar para retempero das forças. O Padre Joaquim Alves Lopes Reis (1904) descreve o desconsolo de ver o tempo máximo de Valongo transformado em asilo para os militares. “Foi então que Vallongo sentiu verdadeiramente os efeitos horrorosos d’esta guerra invasora e iniqua feita por soldados desmoralizados e de fé perdida pelas ideias revolucionarias em que viviam há muitos annos. Senhores de um paiz que julgavam conquistado, levavam por toda a parte a tyrania, a miséria e a morte, e era tal o medo que d’aquella gente estava o povo possuído que á sua chegada aqui, grande parte dos habitantes, escondendo os seus tesouros e haveres, fugiram para logares escondidos e distantes. O magestoso templo de Vallongo, que então estava só em paredes e coberto, foi convertido em cavallariça e arsenal e os soldados, aboletados por geito ou á força nas casas particulares, praticavam ahi com uma petulância e atrevimento inaudito toda a sorte de patifarias e desordens.”216

No tempo que permaneceram em Valongo e sendo uma retirada sem nada a perder, é de aceitar que tenham sido várias as tropelias de saque efetuado pelos soldados. Disso da conta o Padre Joaquim A. L. Reis ao referir que “dias de paz não tiveram os invasores durante o tempo que estiveram n’esta terra, mas também foram imensas as desgraças por elles causadas em mortes, violências e rapinas. Não somente levaram tudo quanto encontraram de riqueza nas casas particulares, mas da egreja parochial de onde roubaram grande quantidade de objectos de prata e ouro.”217

As perdas ocorridas com os vários episódios das Invasões Francesas terão sido diversas, não só pelo que se desinvestiu no desenvolvimento do país, como pelos saques cometidos. Ainda, é de notar, perante a constante ameaça de roubo, a necessidade que os portugueses sentiram em esconder e ocultar o valor do que tinham, nomeadamente, no que era considerado investimento e riqueza, o ouro. Algumas décadas após as Invasões Francesas ainda eram visíveis as suas consequências na capacidade financeira das famílias. Em 1856, Hugh Owen escrevia “An immense amount of valuable property must have been lost during the advance of the French into this country, by having been buried and concealed by the frightened possessors without the presence of witnesses, the death of the concealer leaving his hitherto wealthy family to the

214 BUTTERY, D. – Wellington Against Soult: The Second Invasion of Portugal 1809. Burnsley : Pen and Sword Military, 2016, pp. 193-194.

215 VITORINO, P. – Invasões Francesas – 1807-1810. Porto : Livraria Figueirinhas, 1945, p. 149.

216 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 150.

217 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 152.

dreadful consciousness of hopelesse poverty: such is the effect of want of confidence. A gentleman, few years ago, purchased, for a few vintems, what was to all appearance a clumsy iron chain, but which his better judgment had detected as gold, painted over for the purpose of concealing its value, which was little short of fifty pounds.”218

A propósito da prática portuguesa de investir em ouro, este mesmo autor relata que “In this country, devoid alike of public faith or private credit, the industrious and wealthy peasant has no mode of investing his savings but by the purchase or articles of the precious metals, which in case of public commotion, are either easily concealed, or carried with questionable safety on the person. This profitless mode of investment having become custom, accounts in some measure for the continuous unsettled and unimproved state of the country; since with no opportunity for the profitable employment of capital, the increased wealth and prosperity of families is only to be understood by the increased number of chains and trinkets worn by the females, which being purchased only with a view to the security of capital, in some way by which the value can be realised easily, and without loss, are generally massive, and with little regard to fashion or workmanship.”219

A cronologia que encerra a segunda campanha militar francesa em Portugal é feita, ainda, de mais movimentações, contudo, a mesma desenrola-se já noutras geografias com a fuga das tropas de Soult em Ourense, na Galiza.

Em 1810, Napoleão faz nova investida sobre o território português. Sob o comando de general Massena, entram as tropas pela praça de Almeida. Num país já imensamente martirizado pela guerra, esta nova campanha irá ser contida pela força anglo-lusa que, após o desaire para as forças francesas na batalha do Buçaco, estancam definitivamente as intenções do exército invasor com as fortificações das linhas de Torres Vedras. Perante o desgaste dos confrontos, a força francesa retrocede para a fronteira.

Liberais e Miguelistas no contexto de Valongo.

No rescaldo das Invasões Francesas, Portugal encontra-se numa situação de grave crise política, económica e social. A fuga da família real para o Brasil, na necessidade de escapar ao arresto pelo exército francês aquando da primeira invasão, permitiu que no vazio do poder se instalasse a inconsistência no governo do país e a subserviência à Grã-Bretanha. D. João VI, proclamado rei a partir de 1816, afasta continuadamente a hipótese de regresso a Portugal ficando o país entregue ao oportunismo do poder. Com o crescente descontentamento perante a influência britânica no governo de Portugal, dá-se, em 1817, a conspiração liderada pelo general Gomes Freire de Andrade. A mesma é desmantelada e todos os envolvidos são executados.

O contexto económico e financeiro que Portugal vive, à época, é também revelador das consequências da guerra e do desinvestimento agrícola, comercial e industrial. A abertura dos portos brasileiros ao comércio e o tratado comercial com a Inglaterra irão afetar o impulso comercial. Para além disso, a desorganização no setor primário e secundário afetou o acesso a bens de primeira necessidade.

Perante um clima de insatisfação generalizada, ganha espaço o ideário liberal que arrasta consigo a possibilidade de mudança para uma cultura política progressista. É neste contexto que se dá a Revolução Liberal de 1820, a 24 de Agosto, no campo de Santo Ovídio, no Porto, com o objetivo último de formar uma Constituição que respeitasse os preceitos religiosos, os bons usos e as leis. Ainda que o Conselho

218 OWEN, Hugh – Here and There in Portugal. London : Bell and Daldy, 1856, p. 120.

219 OWEN, Hugh – Here and There in Portugal. London : Bell and Daldy, 1856, p. 119.

de Regência, em Lisboa, tenha tentado anular os efeitos deste ato ocorrido no Porto, rapidamente, a vontade de mudança se espraia a norte do rio Mondego alargando-se, depois, a sul. Desta movimentação a favor da causa liberal nasce a primeira Constituição que irá ser aprovada em Setembro de 1822.

No entanto, divisões surgidas entre as várias frentes da causa liberal conduzem ao confronto entre os apoiantes da Constituição de 1822, os vintistas, e os defensores da Carta Constitucional de 1826, os cartistas. A Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa de 1826 representava um texto mais moderado que a primeira Constituição e visava um equilíbrio entre os interesses liberais e absolutistas. É neste contexto que D. Pedro IV propõe ao irmão, D. Miguel, o casamento com a sua filha, Maria da Glória, a favor de quem tinha abdicado do trono. Em troca, D. Miguel seria o regente até à maioridade da princesa e aceitaria a Carta Constitucional.

Ainda que tenha aceitado os termos do acordo, após o seu regresso a Portugal, D. Miguel renega o acordado e proclama-se rei absoluto. Em reação, os liberais provocam um golpe militar no Porto que ficou conhecido como Belfastada. No entanto, o mesmo foi controlado sendo que os seus promotores foram obrigados a fugir. Dispersos por França e Inglaterra, procuraram reunir o maior número de apoio ainda que, as divergências internas, não contribuíssem para uma estratégia eficaz.

A mudança ocorrida em França que levou ao poder Luís Filipe de Orleãs trouxe novidades para a causa liberal portuguesa. Aquele monarca francês, adepto do liberalismo, deu o conforto do apoio ao movimento português que, por seu lado, entendeu a necessidade de fortalecer a unidade interna. Assim, concentram os esforços na derrota dos apoiantes de D. Miguel e, simultaneamente, solicitam a D. Pedro a vinda do Brasil. Desenha-se, deste modo, a personificação que as guerras liberais irão conhecer. Por um lado, D. Pedro, símbolo da causa liberal, por outro lado, D. Miguel, representante do absolutismo.

Em Julho de 1832, D. Pedro desembarca na costa, a norte da cidade do Porto, na expetativa da tomada rápida e fácil da cidade. Contudo, tal não veio a acontecer tendo ocorrido um desfiar de episódios bélicos em que a oposição fratricida trouxe desgaste para ambas as partes.

Valongo, pela sua centralidade no âmbito do corredor viário que a atravessa entre Oeste e Este e pela proximidade à cidade do Porto, mais uma vez, conhece protagonismo. Na verdade, não só terá sido central nos movimentos entre as tropas de uma e outra parte nos vários episódios que marcaram o cerco do Porto, como assume posição cimeira pela ocorrência da batalha em Ponte Ferreira. Este, terá sido um importante momento da guerra civil entre liberais e absolutistas, constituindo pilar fundamental na configuração da afirmação da identidade de Valongo.

Com a saída dos miguelistas da cidade do Porto e a entrada dos liberais, os movimentos em redor da cidade vão dar azo a confrontos entre as duas partes. Como bem resume Paulo Fernando Moreira 220 , com base em testemunhos diversificados, são vários os episódios que têm Valongo por cenário, pois que, quer a estrada, quer o lugar e suas redondezas, são palco para encontros entre as duas facões. “As notícias recebidas no Porto, dos movimentos de Santa Marta eram muitos vagas e «dizia-se que tinha passado novamente o Douro para o norte». Efetivamente a concentração das tropas miguelistas a sul do Douro duraria poucos dias. No dia 17, numa segunda-feira, pela uma da manhã, o Coronel Hodges comandando «o 1.º Batalhão de Infantaria N.º 18, uma parte do [seu] batalhão […], e um Destacamento de Cavallaria», marchou em coluna de «reconhecimento para os lados do Carvoeiro, seguindo a estrada de

220 MOREIRA, Paulo F. P. Caetano – Construção de Memórias A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2012.

Vallongo». Hodges, que havia recebido ordens na noite do dia anterior, partiu da praça de S.to António, comandando uma infantaria que ascendia a um total de 600 homens, acompanhados de 30 guias a cavalo. Passado o dia 17, e não havendo chegado, ao quartel-general dos liberais, notícias da coluna de Hodges, o Marquês de Fronteira e d’Alorna foi mandado ao seu encontro. «Só, sem ordenança nem guia», seguiu a estrada de Valongo, onde encontrando-se com o seu cunhado, o conde da Taipa, este o preveniu que tivesse «toda a cautela, em consequência do mau espirito dos povos e das numerosas guerrilhas que, com alguma força regular, ocupavam Baltar, e que encontraria o Coronel Hodges no Carvoeiro». Depois de atravessar Valongo, seguiu «a estrada que vae paralela á da Ponte Ferreira». Em seguida avistou, «em direcção de Baltar e sobre umas collinas», vedetas e um grupo que lhe pareceu ser um piquete. Viu uns lavradores, dirigiu-se-lhes, e um deles «indiferente a tudo quanto dizia respeito á politica», confirmou-lhe que as tropas que tinha observado eram miguelistas. Continuando e depois de se ter cruzado com «varios soldados inglezes que […] estavam mortos» devido à «muita aguardente que tinham bebido e pelo excessivo calor que tinham sofrido durante a marcha», encontrou Hodges em Carvoeiro, onde este havia permanecido «sem poder observar força alguma inimiga». Aqui, um popular informou ambos que Santa Marta e toda a sua divisão tinham passado ali havia dias (algumas tropas efetivamente já haviam passado o Douro, contudo parece não ser verdadeira esta informação, pois não tinha passado toda a divisão nem o próprio Santa Marta, conforme adiante vamos ver), acompanhada de «uma grande quantidade de guerrilhas, occupando a Divisão, Penafiel e terras imediatas e as guerrilhas as serras de Baltar». O coronel Hodges, de imediato, colocou as suas tropas em marcha, sendo acompanhado pelo marquês de Fronteira e d’Alorna até entrar na estrada de Valongo, seguindo este em direção ao Porto. O marquês, depois de Valongo, cruzou-se com «o batalhão de Voluntários de D. Maria II commandado pelo bravo Tenente-Coronel Luiz Pinto de Mendonça Arraes». Este batalhão com «duas peças d’artilheria» viria a reunir-se em Valongo, com as tropas do coronel Hodges, que, justificando-se com ordens recebidas, se dirigiu em direção a Penafiel, ao encontro do inimigo. Segundo o marquês de Fronteira e d’Alorna «Hodges, só com o fim de ganhar reputação», foi dar luta ao inimigo em Penafiel, onde «o combate foi muito renhido» com mortos e feridos e onde participou o referido batalhão de Voluntários da Rainha143 que tinha vindo do Porto, num total de quatro centenas de homens. Os miguelistas retiraram-se e os liberais «por algumas horas» ocuparam a cidade, mas sendo as suas forças muitos inferiores, o coronel Hodges «retirou-se sobre Vallongo, onde recebeu ordens para regressar ao Porto». 221

Terá sido neste vaivém de deslocação de tropas entre o Porto e alguns lugares do seu Termo, próximos da estrada de Valongo, que poderá ter ocorrido o episódio descrito por um soldado anónimo inglês que integrava o corpo militar liberal. “On the 14th (1832) at one o’clock in the norning, learning that the Miguelites were near Valongo, about three leagues off, we marched there, reaching it about half-past four, but the enemy had retreated towards Penafiel. After refreshing ourselves, we ate bread taken from the baskets of fifty mules we met on the road to Oporto, we marched a league further, where we learned that they were as far to our right, but, in following them, we went a league round. (…) Arriving at a village where we rested awhile, we were allowed an hour’s foraging, and our company caught a big porker, in a farm-yard, and picked up lots of cabbages, & c. We singed and roasted the pig all in one, and, as it was getting ready, cut off slices to our hearts content. I went foraging for poultry and got three, so we bad a famous feast. We then went in search of wine, and saw an old Portuguese

221 MOREIRA, Paulo F. P. Caetano – Construção de Memórias A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2012. pp. 50, 51 e 52.

about eighty, the only person left in the village. I asked him to get us some, and he managed to fill my canteen out of somebody’s cellar. I here saw three Portuguese cavalry in a yard; they said to me, «Englishman?» «Englishmans love wine.» I said, «Wilt have any? » «No, get from old man.» We then returned to Valongo, where we rested, taking possession of the houses, and at two next morning returned to Oporto, carrying with us from Valongo everything we could lay our hands on.”222 Neste oportuno relato, de notar a referência ao encontro, na estrada do Porto, das 50 mulas carregadas com cestos com pão que os soldados gulosamente comeram. Tal descrição leva a pensar que as padeiras deixaram as mulas e se esconderam perante o encontro com os militares.

No desenrolar do cerco do Porto, a 22 de Julho, pelas 8h da manhã, ficou para o futuro o episódio conhecido como o Reconhecimento de Valongo. “O batalhão sob as ordens de Hodges, bem como o primeiro do regimento n.º 18, ficaram de reserva, tentando evitar que o inimigo os surpreendesse pela esquerda. Quando as avançadas liberais encontraram as «vedetas inimigas, e carregando intrepidamente a grande guarda de Cavallaria, que se adiantava para protegellas, apesar da desigualdade do numero, forçou-a a retirar-se a todo galope, deixando morto no campo o seu Commandante e alguns Soldados». Este comandante era «o Tenente de Cavallaria de Chaves, Paranhos», ao serviço das forças miguelistas. Luz Soriano descreve de um modo diferente este início de combate, de uma forma que dá ao acontecimento um aspeto algo insólito «Tinha-se já passado Rio Tinto, seriam oito horas da manhã, quando se divisaram, no alto de uma encosta que está próxima de Vallongo, as vedetas do inimigo, que promptamente se retiraram, abandonando o terreno. Vencida que foi esta encosta e já na descida sobre Vallongo, apareceu então, no fim da rua principal d’este povo, toda a cavallaria realista, que, impassivel, com clavinas sobre a perna, olhava para os recem-chegados. Tinham ido na frente da columna constitucional e um pouco adiantados d’ella o major commandante de caçadores n.º 5, Francisco Xavier da Sila Pereira, o capitão Baltazar de Almeida Pimentel e os dois ajudantes de campo em que acima se fallou, seguindo-se pela rectaguarda d’elles e a pequena distancia os quarenta guias a cavallo. Toda a gente ficou surprehendida pela immobilidade com que o inimigo se lhe apresentava na frente: o momento era realmente critico, a retirada vergonhosa e o perigo imminente. N’esta reciproca irresolução se achavam, de parte a parte, uns e outros, quando a chegada do bravo commandante do corpo de guias, o major de cavalaria Joaquim Paulo Arrobas, resolveu felizmente a questão, levantando elle, com todo o sangue-frio e em tom alto e sonoro, a voz de: — Esquadrões, frente formar; carregar! Esta voz, acompanhada da vista de umas poucas de fardas encarnadas que se deram por uniforme á companhia de guias, e proferida pela bocca de um homem corpolento e affouto como era o major Arrobas, intimidou promptamente o inimigo, a quem talvez se antolhou ter sobre si as espadas e o peso de uns poucos de esquadrões de cavallaria. Como quer que seja, é certo que elle se retirou por tres meia volta, havendo apenas alguns soldados que dispararam as clavinas, que até alli tinham sobre a perna».”223 Este incidente conhecido como o Reconhecimento de Valongo que, inicialmente tinha como objetivo perceber a força do inimigo, acabou por se tornar num desaire para a fação liberal com a evidência de muitas perdas humanas. Desmoralizados os ânimos liberais, D. Pedro intenta estimular as tropas com a certeza de que, no dia seguinte, seria favorável o encontro entre as duas forças. Está, assim, definido o contexto que deu origem à Batalha de Ponte Ferreira no dia 23 de Julho de 1832.

222 Corporal Knight – The british battalion at Oport : with adventures, anedoctes and exploits in Holland at Waterloo and in the expedition to Portugal. London : Effingham Wilson, 1834, p. 65.

223 MOREIRA, Paulo F. P. Caetano – Construção de Memórias A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2012. pp. 55 e 56.

Os relatos sobre os principais momentos da batalha de Ponte Ferreira são minuciosos e albergam informações que demonstram, quer a realidade dura da guerra, quer a obrigação de estratégia a que estavam obrigadas ambas as partes. “Até às cinco horas da tarde o combate encontrava-se muito duvidoso. De seguida os miguelistas atacam fortemente sobre a coluna do centro liberal, sendo os vários batalhões de caçadores obrigados a retrocederem. São auxiliados por dois batalhões de reserva permitindo luta durante algum tempo, mas sem avanço nem recuos. Entretanto os atiradores miguelistas debandam e são atacadas as suas reservas que se retiram. O coronel Hodges havia avançado com a esquerda e uma companhia de atiradores da coluna da direita movimenta-se e perseguem o inimigo. De acordo com o marquês de Fronteira, a falta de cavalaria não permitiu dar uma completa derrota aos miguelistas, que se retirou sobre Penafiel. Os constitucionais recuperaram uma peça de artilharia que haviam perdido no dia anterior e conseguiram apoderar-se de uma dos miguelistas. De facto, de acordo com a Gazeta de Lisboa, os miguelistas dirigiram-se durante a noite para Baltar e na manhã seguinte para Penafiel. Pinho Leal que perfilou do lado absolutista também confirma esta notícia dizendo que «os realistas fugiram (é o termo próprio) para Baltar, e d’alli para Penafiel, chegando muitos a fugir a unhas de cavallo, até Amarante». Mais diz que para ele é um «mysterio impenetrável» o facto de esta fuga acontecer tendo-se verificado a retirada dos «liberais – alguns em bastante desordem – para o Porto».”224

Para o Porto é ventilado de que a batalha de Ponte Ferreira teria sido de desvantagem para os liberais, o que motivou a fuga apressada de algumas figuras liberais presentes na cidade e o pânico da população. No campo de batalha, o termo das hostilidades trouxe a necessidade de enterrar os mortos e de dar descanso às tropas com o devido retemperar das forças. Pinho Leal resume da batalha afirmando que teria sido uma ação «ainda mais encarniçada do que a da vespera, e durou dez horas (até ás 8 da tarde), sem outra vantagem, de parte a parte, senão fazerem aos contrários muitos mortos e feridos, e alguns – poucos – prisioneiros.”225

Para Paulo Moreira “a batalha de Ponte Ferreira não é a primeira batalha, mas sim a primeira grande batalha do cerco do Porto e da guerra civil que ocupou as tropas e a sociedade portuguesa, entre 1832 e 1834. É primeira porque antes não houve outra com dimensão igual ou superior, e porque as proporções que teve, de envolvimento de meios humanos e outros, assim como a área territorial do teatro das operações (desde o rio Douro a Sobrado e desde o Porto a Baltar) é significativa (grosso modo grande parte da atual área do grande Porto).”226 Neste encontro fratricida, no cômputo geral, a derrota ou a vitória de qualquer uma das partes quase dependeu mais do modo como foram apresentadas e comunicadas as baixas face aos recursos do que a uma expressão clara de quem venceu ou perdeu.

Importa notar que, na memória oral, atualmente, ainda é visível a referência a este encontro entre irmãos que defenderam fações diferentes o que reforça a proximidade ao episódio de Ponte Ferreira e a todo o contexto que se desenrolou em Valongo, no âmbito das Guerras Liberais.

224 MOREIRA, Paulo F. P. Caetano – Construção de Memórias A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2012, pp. 61 e 62.

225 LEAL, Pinho – Portugal Antigo e Moderno: Diccionario Geographico, Estatistico, Chorografico, Heraldico, Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades, villas e freguesias de Portugal. Facsimile da ed., Lisboa : Livraria Editora de Mattos Moreira, 18731890, p. 184.

226 MOREIRA, Paulo F. P. Caetano – Construção de Memórias A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2012, p. 64.

“A padaria era dos meus bisavós. O meu bisavó chamava-se António Castro Neves, era o pai da minha avó, que era Ana da Rocha Felgueiras que casou com o António Castro Neves. O meu bisavó era do tempo dos miguelistas, por isso não queria que a minha avó cassasse com o meu avó, porque era do lado dos liberais, do D. Pedro. Nesta família, era tudo muito ligado à política, o meu pai chegou a ser preso.”

LINA CASTRO, 91 ANOS, VALONGO.

“Na guerra entre o D. Pedro e D. Miguel, veio uma senhora lavar para o rio, vão lá os militares perguntar por quem era ela, se estava pelo lado de D. Miguel ou de D. Pedro, e ela respondeu «Viva D. Pedro, viva D. Miguel, nasceram ambos do mesmo tonel, viva a Casa de Bragança, que não entende semelhante dança!”

FLORINDA MARTINS FERREIRA, 66 ANOS.

JOSÉ MARIA SOARES MOREIRA PINTO, 66 ANOS. CAMPO.

Um dos protagonistas dos acontecimentos decorridos em Ponte Ferreira e no cerco do Porto, o coronel Hodges, quando, mais tarde, descreve a sua passagem por Portugal refere Valongo como centro principal da produção do pão que é consumido no Porto. “Valongo, separated form Oporto at tem miles distance, by a high range of mountains, is a town of some trade. The bread consumd in the city ir principally made and baked there (…).”227

No rescaldo da batalha de Ponte Ferreira, Valongo volta a ser tomado pelos apoiantes de D. Miguel sendo que os liberais se enclausuram no Porto. Neste contexto, numa estratégia de cerco, por ordem do absolutista general Santa Marta faz-se a proibição do fornecimentos à cidade, nomeadamente, de carvão e de pão. “«De Vallongo as padeiras não vão ao Porto vender pão» e acrescenta que «tem-se feito mais apreensão de farinhas, e inutilizado fornos, e moinhos que possão ser uteis aos rebeldes».”228

Do momento do desembarque das tropas a norte do Porto, a 8 de Julho de 1832, até à convenção de Évora Monte que registou a paz entre constitucionais e absolutistas, em 26 de Maio de 1834, muitos foram as vicissitudes que uma guerra entre irmãos favoreceu. Contudo, para Valongo ficou a memória, quer de um momento em que todo o concelho foi palco e com o qual as famílias tomaram partido, quer de um episódio fundacional para a identidade do concelho.

Na verdade, terá sido no âmbito do contributo de Valongo para a causa de D. Pedro que, na primeira sessão de câmara do recém-formado concelho de Valongo, ocorrida em Março de 1837, é solicitado à rainha D. Maria II a elevação de Valongo a vila. No dia 20 de Abril, é publicado o decreto que anui a vontade do povo de Valongo. De notar que é fruto das conquistas constitucionais a divisão administrativa do país em distritos administrativos, concelhos e freguesias.

227 HODGES, G. Lloyd – Narrative of the Expediction to Portugal in 1832. London : James Frase, vol. II, 1833, p. 2.

228 MOREIRA, Paulo F. P. Caetano – Construção de Memórias A Batalha de Ponte Ferreira (Campo, Valongo, 1832): um processo memorialista e de valorização patrimonial. Porto : Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2012, p. 67.

O PÃO, A REGUEIFA E O BISCOITO.

O Pão. Moletes e Sêmeas.

Terá sido o pão o fio que deu início à história da panificação de Valongo. Alimento fundamental, gerado e criado na necessidade de subsistir, desenvolveu-se na triagem entre o pão alvo e o pão negro. O mesmo é dizer, entre o pão das casas ricas e o pão dos que menos tinham. Pela procura que a abastança sempre permitiu, fomentou-se a excelência capaz de saciar o gosto mais requintado. Da procura do melhor trigo à moagem feita pelas mós alveiras, ao cuidado do uso das peneiras capazes de deixar a flor da farinha, às mãos que, laboriosamente, amassavam a farinha, a água, o sal e o fermento. Por aqui se teceu o fio que deu origem a tantos e bons produtos, todos feitos de trigo.

No final do século XIX, apesar de, no Porto, já se pressentir o florescimento de uma intensa atividade de panificação, consequência do investimento no abastecimento de um dos produtos mais apetecidos, Valongo apresenta uma admirável grandeza de produção de pão. Os dados relatados no Inquérito Industrial de 1881 revelam que “a padaria de Vallongo prospera. Se a exportação para o Porto não tem augmentado, cresce para os concelhos rurais limítrofes. Até 1861 havia um imposto municipal de 5 réis por alqueire de trigo importado para o fabrico de pão. Esse imposto produzia annualmente cerca de 1:000$000 réis, isto é, o equivalente a 200.000 alqueires; e dando cada alqueire 12 kilogrammas de pão ou biscoito, que se podem computar ao peso médio de 100 reis, o fabrico atingia a cifra de 240.000$000. Hoje, a média da exportação semanal é de 93 carros, entrando n’este numero o biscoito por 10 e o biscoito por 93. O peso normal de um carro é de 600 kilogrammas, o preço do biscoito de 200 réis, o do pão 100 réis: o preço médio do carro é pois de 110 réis e o seu valor de 665.000 réis. A exportação semanal ascende, portanto, a 6:1383000 réis e a anual a 331:4525000 réis. O numero das padarias localizadas em Vallongo é de 73, o total do concelho 77: vê-se que sobram apenas 4 para o serviço das outras freguezias”.229 Em 1904, Joaquim Alves Lopes Reis, regista que, “em tempos passados a industria da panificação desenvolveu-se n’esta terra de tal maneira que quasi não havia n’ella casa que não tivesse forno para coser trigo, e podia dizer-se que era Vallongo que sustentava o Porto de pão; hoje porém que aquella cidade tem mais de trezentas padarias (…) este ramo de industria diminui muitíssimo. Contudo o valor de trigo manipulado em Vallongo para consumo e exportação ainda deve ascender a quantia de 300:000$000 réis e, apezar de tudo, o pão de Valloongo ainda hoje se vende no Porto, onde pela sua qualidade é preferido a todo o fabricado lá, em Vila nova de Gaya e outras freguezias do concelho, em Rio Tinto, S. Cosme, Fânzeres, S. Pedro, Jovim, Asmes, Águas Santas, Maia, Alfena, S. Julião, Agrella, Sobrado, S. Martinho, Lordello, Rebordosa, Gandra, Vandoma, Baltar, Penafiel, Paredes, Frazão. Arreigada a muitas outras terras que não nos é fácil poder numerar e cujos povos veem a esta terra por causa do seu bom trigo e clássica rigueifa.”230

À volta de Porto muitos eram os locais onde chegava o pão de Valongo. Ainda que o pão de milho fosse o pão de casa, aquele que era mais disponível pois que o milho era produzido em maior quantidade, o pão de trigo era alimento de dias diferenciados, sentido como uma bênção. Por isso, cada padeiro tinha as suas «voltas» e os locais onde vendia o seu pão. Alguns iam ao Porto e deixavam nas mercearias, outros

229 Inquérito Industrial de 1881. Inquérito Directo. Segunda Parte; Visita às Fábricas, Livro segundo, Comissão Central Directora do Inquérito Industrial; Lisboa, Imprensa Nacional, 1881.

230 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 323 e 324.

deslocavam-se às localidades do antigo Termo do Porto. Sousa Viterbo regista, em 1912, “as padeiras de Vallongo fazem um negócio excepcional. Antigamente, um dos mimos mais regalados que a mulher do campo podia levar a seus filhos era o molete ou a regueifa. Hoje o pão de trigo está muito mais vulgarisado e deixou de ser uma novidade.”231

O pão branco de trigo seria, assim, de venda nas padarias de Valongo, nos mercados no Porto e por todo o seu Termo. Fala-se do pão de Valongo. As várias fontes já referidas a ele se referem na simplicidade que aquele alimento pressupõe, sempre enfatizando a sua qualidade seja por comparação, seja pela exibição da preferência de quem o escolhia. Joaquim Alves Lopes Reis, na explicação da excelência, refere a qualidade da farinha e o modo de preparação. “Este pão é fabricado de trigo que vem da America, misturado com trigo do reino ou que vem de Hespanha com o nome de Barbella, e que é mais barato, mas para poder usar-se é primeiramente lavado em crivos n’uma pia d’agua, depois de secco em grandes eiras de louza e por fim corrido n’uma saranda, onde lhe tiram o pó, as pedras e o trigo podre que, se fosse junto, podia pôr mau gosto ao pão. Esta última operação a que chamam alimpadella faz-se ordinariamente a todo o trigo, qualquer que seja a qualidade ou procedência, antes de o mandar moer.”232 A prática de lavar o trigo antes de ele ser moído, encontra-se noutros locais do país onde a produção de pães de trigo é também de afamada reputação.

Contudo, ainda que a escolha e preparação do trigo tenha sido determinante para a afirmação do pão de Valongo, também o modo de preparação, a arte culinária associada à padaria, permitiu a diferenciação. “Em casa dos padeiros são as farinhas passadas em grandes peneiros, onde se faz artificiosamente a destrinça das diferentes espécies de farinha que teem diverso uso segundo a sua qualidade. Antes de se usarem os peneiros, o que aconteceu pelo meiado do seculo passado (século XIX), era cruel o modo por que se fazia esta destrinça não somente pela grande dificuldade e custo que havia n’este trabalho, mas principalmente pelo tempo que elle levava. Agarradas a duas peneiras que batiam ás vezes desde as duas e tres horas da madrugada até á noute, jaziam muitas creaturas, cobertas de pó, que passavam os dias da vida entregues a tão infandonho múnus. Na véspera da cosedura, á noute, prepara-se o fermento a que chamam crescente, fazendo-se no dia, em grandes gamellas, a massa que é mais dura ou mais molle, segundo a qualidade do pão que se hade fazer d’ella. Posto em seguida a levedar sobre panos em gavetões ou tendaes quando parece estar na tempera desejada, é deitado ao forno em grandes pás, que depois também servem para o tirar de lá.”233

Na memória oral, ainda se vislumbram relatos das práticas convencionais de produção do pão, nomeadamente, do crescente que era feito para alimentar a massa do pão, tornando-o mais saboroso e mais fofo.

“Era tudo amassado à mão. Ficava sempre um bocadinho de massa na gamela e, à tarde, fazíamos os crescentes com aquele bocado.

Fazíamos as massas do pão com aquele crescente, à noite, a gamela estava cheia. Tinha-se por hábito, depois de fazer os crescentes, de polvilhar, fazer uma cruz e dizer «São Vicente te acrescente, São Mamede te levede».”

MARIA EMÍLIA FERREIRA AGUIAR DA FONSECA, 82 ANOS, VALONGO.

No domínio do pão de Valongo, justifica-se enumerar o molete, pão de trigo pequeno com miolo macio e crosta crocante, este muito disseminado pela região Norte de Portugal. Os testemunhos orais referem, amiúde, o molete, designação que

231 VITERBO, Sousa – Cem Artigos de Jornal. Lisboa : Tipografia Universal, 1912, p. 164.

232 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, pp. 324.

233 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 325 e 326.

Mouette Barboff enquadra como “(…) o nome de um pão de trigo que se encontra sobretudo no Minho ou Baixo Douro.”234 Na opinião desta investigadora, a origem do molete poderá estar em França onde o pão mollet exprimia um pão de miolo suave e delicado, “«amarelo por fora como o ouro, branco por dentro como a neve».”235

Na cultura popular de Valongo, é usual a replicação da ideia de que a designação molete se enquadra no contexto das Invasões Francesas e na presença de um oficial de nome Moullet. Refere-se que, mais habituados a produzir um pão de tamanho maior, foram exortados a fabricar um pão de menores dimensões que permitisse a individualização da ração para cada soldado. Corre, assim, a ideia de que seria o oficial Moullet quem faria as encomendas do pão necessário para o quotidiano das tropas, ficando o pão pequeno com o nome dele. Contudo, é de notar que esta designação surge em fontes documentais relativas a outras regiões no contexto do século XVI. 236 Ainda, é de salientar que no Supplemento ao Vocabulario Portuguez e Latino (1748) surge a indicação da palavra «Molete» como oriunda do Minho e descrevendo um “pão alvo”. 237 No Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1806), aquela designação é descrita como “diz-se do pão fresco, molle”. 238 Pelo conteúdo das fontes bibliográficas, conclui-se que a interpretação da palavra «Molete» deve ficar no imaginário das comunidades, não devendo tal impedir uma leitura isenta e crítica à luz das informações recolhidas.

Mais do que a origem da designação, vale a pena realçar a diferenciação do molete em relação à profusão de outros pães pequenos no Norte do país. Não será um pão de miolo denso, mas também não será tão aguado como o papo-seco ou a carcaça. A memória oral destaca a importância deste pão na cultura da panificação de Valongo e o modo como ele se relaciona com os hábitos alimentares do Porto.

Tendo em conta a evolução do pão adstrito ao consumo urbano, onde o gosto mais requintado e a disponibilidade económica permitiam que fosse o trigo o cereal utilizado, pode ser considerado que um pão pequeno como o molete integrasse os hábitos alimentares. Já a regueifa, um pão mais denso e com sujeito a uma técnica de produção mais intensa, ficaria reservado para dias especiais e para estratos populacionais de maior estatuto social. Talvez o molete, à semelhança de outros pães pequenos, tenha sido o resultado de um compromisso entre a vulgarização do consumo urbano de pão de trigo e a sempre difícil tarefa de conseguir o abastecimento deste cereal. Por isso, seria pequeno e não tão denso como a regueifa.

Ainda que menos presente nas fontes escritas e quase desaparecido das padarias, a sêmea deixa boas recordações pelo sabor. Resguardada a farinha de primeira para a produção de regueifa e de molete, da que não era tão branca por não ser tão peneirada fazia-se a sêmea. Pão grande, de maior densidade pela presença do farelo, era alimento de muitas famílias humildes pela acessibilidade que permitia.

234 BARBOFF, Mouette – A Tradição do Pão em Portugal. [Lisboa] : Clube do Colecionador dos Correios, 2011, p. 114.

235 BARBOFF, Mouette – A Tradição do Pão em Portugal. [Lisboa] : Clube do Colecionador dos Correios, 2011, p. 114.

236 CARVALHO, José Branquinho de – Livro 2o da Correia : cartas, provisões e alvarás régios registados na Câmara de Coimbra : 1273-1754.

237 BLUTEAU, Rafael – Vocabulario portuguez e latino … autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos. – Coimbra : no Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. – 10 vol.

238 Novo diccionario da lingua portugueza: composto sobre os que até o presente se tem dader ao prelo, e accrescentadode varios vocabulos extrahidos dos classicos antigos, e dos modernos de melhor nota, que se achaõ universalmente recebidos. Lisboa : Typografia Rollandiana, 1806.

“O molete é um pão de trigo pequeno. A sêmea já tinha cerca de meio quilo, o equivalente a 4 pães. A sêmea não era uma farinha tão fina como a do molete, levava um bocadinho de farelo, chamávamos a farinha amarela porque ela ficava amarelinha. Era um pão oval com uma risquinha no meio. Era muito boa, mas deixou de se fazer. Depois, começou a aparecer a carcaça.”

M. DA PURIFICAÇÃO MATOS FERREIRA SOARES RIBEIRO, 74 ANOS, VALONGO.

“Fazíamos as sêmeas e o molete, era a quatro tostões. E fazíamos carcaças de quatro pães e carcaça de dois pães. Era como o molete antigo, era como uma boneca. As carcaças eram todas lisinhas, mas rasgavam antes de entrar para o forno. A sêmea era redonda, era de quilo ou meio quilo.

As operárias que trabalhavam numa fábrica de tecidos por detrás da capela das Almas no Porto, iam lá comprar as sêmeas. Vinham à hora de almoço comprar meias ou quartos de sêmeas.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

A sêmea seria o pão que, ainda que feito com farinha de trigo, não tinha a qualidade do molete. Mais denso, mais escuro pela presença do farelo, apresentava-se como uma opção mais humilde do tão bem-amado trigo. Por ser feito com farinha não tão peneirada, havia quem lhe chamasse sêmea negra.

“Havia um tempo em que havia a sêmea negra. Antigamente, tínhamos farinha de 1ª e de 2ª. A primeira era para moletes e a segunda era para sêmeas, era um bocadinho mais escura. Chamava-se sêmea negra porque a farinha era mais escura.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

O Pão. A Regueifa.

Contudo, nunca a criatividade humana na busca do extraordinário se fina na sua concretização. O que é perfeito, uma vez atingido, dá seguimento a novos patamares de excelência. Terá sido que aconteceu também em Valongo. Tendo o molete como o pão de todos os dias na mesa de um círculo populacional associado ao território urbano da cidade do Porto, outros pães se gizaram para que, no calendário, se percebesse a distinção entre o alimento do quotidiano e aquele que marcava os dias especiais. Quis-se, deste modo, provocar a quebra entre a rotina dedicada ao trabalho e às questões mundanas e os dias de celebração pelas graças recebidas, nomeadamente, pelo alimento.

À semelhança do que aconteceu noutros lugares do território nacional, para uma época festiva como a Páscoa, apropriação católica de um importante momento do ciclo agrícola, fez-se do pão oferta votiva à divindade. Na verdade, sendo o trigo o cereal que, desde o início da prática agrícola, se transformou no alimento preferencial das sociedades de influência mediterrânica, todo o calendário agrícola e prática cultural a ele se submeteram. Do nutritivo, saboroso e versátil trigo era necessário cuidar de modo que nunca faltasse. À terra, ao sol e à lua era preciso agradecer pela dádiva do pão.

Por isso, nas sociedades pré-cristãs era hábito deificar o trigo, como fizeram as civilizações da Antiguidade Clássica, e jurar-lhe voto de agradecimento fazendo cortejo das primícias e ofertas votivas de pão. Na Primavera, momento crucial no calendário agrícola pela esperança que se enuncia com a partida do tempo frio e o nascimento dos primeiros frutos, era necessário mostrar a confiança na abundância do próximo ciclo de produção. Era por isso, hábito oferecer pães, alimento básico e

matricial, feitos do melhor trigo ainda sobrante do ciclo passado, demonstrando esse voto a certeza de que a produção de cereal iria ser suficiente para saciar a família e a comunidade. Estes pães votivos nasceram da esperança da abundância, do voto de confiança na capacidade da terra, do sol e da lua em garantir a subsistência humana. Por isso, sempre radicados na ideia de fertilidade capaz de gerar abundância, foram-se disseminando formatos representativos da fecundidade. Pelo território português, descobrem-se exemplos dos pães que, pela altura da Primavera, eram exibidos como promessas de abundância. As roscas, a par de pães em forma redonda, de meia-lua, fálica ou de sardão, são representativas dessa crença.

A igreja católica na disseminação da fé cristã tomou a Primavera como o momento adequado a amplificar a crença na ressurreição de Cristo, figura humana, mas sobretudo divina de afirmação da renovação, do renascer para além da finitude e imperfeição humanas. Herdeiro de uma prática ancestral, mais recuada do que a prática católica, a regueifa, em forma de rosca, representa pela Páscoa a atribuição de um significado simbólico capaz de perpetuar a ideia de esperança no alimento, simultaneamente, do corpo e da alma. O trigo é o cereal dos pães votivos, a farinha alva, isenta de mácula do pecado, impoluta, capaz de resgatar a humanidade às suas crenças mais antigas nunca se desligando da necessidade alimentar.

A rosca, formato associado à fertilidade feminina, tem um forte presença pelo Norte de Portugal, não só nas roscas de pão, as regueifas, como nas roscas de pão de ló, sendo que nestas últimas, ao significado do formato se junta a importância dos ovos como símbolos de vida. Em Valongo, a regueifa é uma rosca de pão, contudo, tendo em conta a importância cultural do símbolo e do momento, nunca poderia ser uma rosca da massa de pão quotidiano, teria sim de mostrar perfeição. Por isso, a arte humana foi no sentido de criar um pão branco, tão branco quanto a hóstia sacralizada pelo ritual eucarístico, tão fofa capaz de exceder os limites da perfeição revelando, desse modo, a aproximação à grandeza divina. Numa tentativa de criar o pão imaculado, alvo, sem imperfeições, capaz de relacionar a humanidade com Deus, de fazer um pão denso, ainda que fofo, capaz de dar prazer e nutrição, nasce a regueifa, pão quase divino.

Do melhor trigo, da melhor farinha, da melhor arte, surge a regueifa. Tendo em conta a profusão de pães que, durante o período romano, se disseminaram pelo império, a regueifa pode ter uma ancestralidade que remonta à arte da panificação que se desenvolveu durante o período das civilizações clássicas. Hipótese provável tendo em conta a ligação com o período que antecedeu a oficialização da fé cristã pelo mundo ocidental e que permite entender o vínculo com as crenças politeístas decorrentes da prática agrícola. Tendo a Península Ibérica sido território da vulgarização das práticas alimentares vindas da Grécia e de Roma, é de aceitar que o embrião da regueifa possa estar no período da romanização.

Por outro lado, há que atender que a cultura do pão, que os povos mediterrânicos espalharam pelo império, foi assimilada por várias culturas tornando-se, em alguns casos, o princípio e o fim da cultura gastronómica. Na cultura árabe tal verificou-se com a determinante função do trigo em várias receitas de pão, de receituário doce e salgado, de introdução do pão nas receitas (como as açordas, migas, sopas e ensopados), de introdução da farinha em receituário como os cuscuz. Ou seja, da prática grega e romana espalha-se, a ocidente e a oriente, o pão como suporte da alimentação exibindo contexto físico e cultural.

Neste contexto, à semelhança de outros produtos feitos com farinha, a regueifa terá sido assimilada pela cultura árabe que dela deixou nota no vocábulo utilizado. Mouette Barboff, estudiosa do pão português, refere “a regueifa, do árabe (ar)rgaifa, é uma rosca feita de massa de pão alvo. Este pão torcido, tradicional do norte do país, é uma variedade do pão espanhol, ou seja, um pão cuja massa é sujeita a uma compressão, manual ou mecânica, passando várias vezes na máquina de rolos

metálicos, inicialmente de madeira. Este processo permite obter uma massa mais fina, mais branca e menos aguada. Dantes, as regueifas fabricavam-se com a flor da farinha de trigo. Era vulgar ver-se as pessoas com uma regueifa enfiada no braço depois de irem à missa dominical, o que lhe valeu o nome de «pão de Domingo». Na Páscoa, os padrinhos ofereciam uma regueifa aos seus afilhados. Estes pães aparecem à venda em todas as festas e romarias. As de Valongo são as mais conhecidas e reconhecem-se por apresentarem enfeites de massa: laços, pinhas, folhas, nozes e espigas entre outros.”239 Será todo este enquadramento simbólico que dá o lastro de pão quase divino à regueifa que faz dela o pão da Páscoa, oferta dos padrinhos aos afilhados. Da Antiguidade Clássica em que o voto seria para as deusas do trigo, Deméter (Grécia) e Ceres (Roma), transfere-se o significado para a figura de Cristo. Símbolo de vida, pela morte que através da ressurreição deu a vida eterna, na regueifa simboliza-se a semente de trigo que morre na terra para dar vida através do nascimento de uma nova espiga. Esta, nascida de uma só semente, transmuta-se em fecundidade e fertilidade, pois que do uno se faz o múltiplo. De uma semente, nascem muitas outras. Também por Cristo e através da sua morte, o povo cristão ganhou o privilégio da ressurreição e da vida eterna.

Na Páscoa, período festivo que a igreja católica associou ao equinócio da Primavera e à mudança para a estação agrícola dos primeiros frutos, do renascer da natureza, tornou-se prática comum comer o pão quase divino, fez-se ritual a oferta da regueifa. É assim que, em Valongo, os afilhados eram presenteados com o melhor pão e o mais bonito. Para além do formato redondo, a simbolizar fecundidade e fertilidade, a rosca era enfeitada de modo a parecer bela.

“Na Páscoa, era a prenda para os afilhados, eram aquelas regueifas enormes que os miúdos enfiavam pelo braço, iam todos contentes.

Faziam-se os feitios para a regueifa. A regueifinha toda enfeitada era sinal de que havia festa, era o pão que acompanhava a refeição nesses dias, era um pãozinho melhor. De resto, sem feitios, vendia-se ao sábado para acompanhar a refeição de domingo. Nos dias de festa, como Natal, Páscoa, S. João em Sobrado ou Senhora das Necessidades.

Na festa de São João de Sobrado, havia a tradição de fazer uma regueifinha pequeninha de Cornos, era toda recortada. Era tradição em Sobrado.”

M. DA PURIFICAÇÃO MATOS FERREIRA SOARES RIBEIRO, 74 ANOS, VALONGO.

Prática desaparecida no concelho de Valongo, a Regueifa de Corno aprofunda o significado da fecundidade associada aos cornos da lua, ou seja, as pontas do quarto crescente, símbolo ancestral de fertilidade.

“A regueifa azeda era feita na Páscoa e ao sábado.

Na Páscoa eram as regueifas grandes, o máximo era de 5kgs, estas levavam feitios. Até 2kgs, eu não punha feitios. Os feitios eram por exemplo, tranças, que se faziam com 3 bocados de massa que se entrelaçavam, pinhas, palmas, era uma folha com cortes. Havia outros que faziam mais coisas, em vez da pinha, na orelha, que é onde se fecha a regueifa, havia quem pusesse uma regueifa pequeninha.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

239 BARBOFF, Mouette – A Tradição do Pão em Portugal. [Lisboa] : Clube do Colecionador dos Correios, 2011, p. 148.

“Na Páscoa, os padrinhos ofereciam regueifa aos afilhados, eram daquelas grandes de enfiar pelo braço, lá iam eles todos contentes. Os padeiros tinham bastantes afilhados. Havia muita fome naquela altura, e os afilhados ficavam todos contentes de ter uma regueifa daquele tamanho naquele dia. As pessoas mais pobres comiam pão de milho, por isso, ficavam felizes por poder comer pão de trigo no domingo de Páscoa.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

Da Páscoa, época festiva de renascimento da natureza transmutada na crença religiosa da ressurreição de Cristo, em que se comia o pão quase divino, de feição, cor e textura quase similar à hóstia, alarga-se a outros períodos festivos como o Natal pelo privilégio de consumo de pão alvo e fofo. Começa a ser prática alimentar, quer em Valongo, quer no maior centro urbano abastecido pelos padeiros valonguenses, ter à mesa de domingo a rosca de regueifa.

A excelência da regueifa, da alvura do miolo à beleza do todo, fez deste pão alimento de dias dedicados a Deus, o domingo. Já num contexto de maior abundância, a diferenciação entre o pão de todos os dias, nunca menor, somente fruto de um equilíbrio necessário entre a matéria-prima e o produto final, e o pão dos dias de domingo, simbólico na importância de ser consumido no dia do Senhor, propagou a importância da regueifa.

Torna-se, assim, no pão dos domingos e dias sagrados, dias de festa familiar e comunitária. Aos domingos, pelo Natal, Páscoa e outros dias de celebração, seria a Regueifa a enfeitar a mesa, a distribuir sabor em refeições mais demoradas. A par do pão, cuja antiguidade da venda no Porto é atestada pelas várias fontes já referidas, a regueifa expõe-se como um produto, igualmente, de secular produção e venda.

De notar a referência feita na ata de vereação de 1636, assim como a menção a propósito da Feira de São Lázaro (1720), em que era hábito comer regueifa com queijo, e da Feira de São Miguel (1682). Diz Joaquim Alves Lopes Reis (1904) “fabrica-se com perfeição inexcedível a famosa rigueifa que faz crescer a agua na bocca a muita gente, o enfarinhado moléte de cabeça de agradabilíssimo paladar e muitas outras qualidades de pão, como biscoutos, bolachas.”240

Se o pão de todos os dias seguia a rotina da peneira, da amassadura, do tender e da cozedura, a Regueifa, porque se queria a excelência, exigia a manipulação repetida, condigna de um pão que devia ser ainda mais branco que o de todos os dias, mais consistente a enfatizar o miolo sagrado, mais suave a lembrar a leveza de um alimento de festa. Depois de amassada, e antes de ser tendida, tinha a massa que ser sovada, passar no sovador para que fosse apertada de modo a fazer a liga. Depois, era feita em rosca e cozida.

De notar a importância simbólica e alimentar deste produto, pão quase divino, que fez com que, até nas circunstâncias mais adversas, se tentasse a todo o custo a sua produção. Alguns testemunhos orais são contemporâneos da proibição de produzir regueifa em face da falta de trigo sentida durante a Segunda Grande Guerra. A necessidade de preservar a farinha de trigo para a produção de pão, levou a que, em Valongo, fosse proibida a venda da regueifa, libertando a farinha para a produção de um alimento tão importante como o pão pequeno. Quase uma lei sumptuária na alimentação, esta proibição visava resguardar a farinha de trigo de gastos e consumos privilegiados. No entanto, tal regulamentação nunca teve efeitos práticos em Valongo, pois que na mesma se continuou a fazer e a vender aquele pão.

240 REIS, Joaquim Alves Lopes – Villa de Vallongo. Porto : Tipografia Coelho. 1904, p. 326.

“Esta farinha americana era comprada, no tempo do meu avó, no tempo da guerra, depois ainda se continuou a vender. Sabe que durante a guerra foi proibida a regueifa! O meu avó cozia e qualquer padeiro cozia, mas escondido. A farinha era para o pão, e era com senhas.”

De pão simbólico religioso dedicado à divindade, politeísta na Antiguidade Clássica e monoteísta na era cristã, a regueifa transformou-se em símbolo cultural a demarcar o consumo diferenciado de pão entre os dias comuns e os dias de celebração. Pela qualidade extraordinária da farinha, pelo intrincado e demorado processo de fabrico, pelo resultado extraordinário de um pão saboroso, macio e crocante, a regueifa fez-se, igualmente, marcador social capaz de distinguir os mais abastados dos mais humildes, os que estavam ligados a hábitos de consumo urbanos e os que viviam com os limites da rotina da ruralidade. A regueifa, de símbolo religioso e cultural, transformou-se em marcador no calendário e sinal de pertença social. Do alimento à cultura, a transformação possível pela alimentação.

Os Biscoitos.

Valongo, enquanto centro produtor de pão, encontrou na diversificação a necessária estratégia para, por um lado, sobressair no mercado com novos produtos, e por outro lado, vencer a concorrência que, entretanto, foi aparecendo um pouco por todo o lado. Na verdade, se, inicialmente, o Porto recebia o pão de Valongo, com o desenvolvimento da cidade surgem padarias que, de algum modo, acabam por entrar em concorrência com as padeiras e padeiros de Valongo. Assim, surge a referência à tosta, na verdade, seriam fatias de pão, feito com a massa da regueifa, tostadas de forma a aguentar mais tempo de conservação. Ainda hoje, faz parte da cultura gastronómica valonguense o consumo deste produto. Em 1894, Alberto Pimentel relata que as padeiras de Valongo “ganham a sua vida fornecendo pão trigo e pão doce, em grandes roscas, que lá chamam regueifas; tambem fabricam biscoitos azedos (de tosta) e biscoitos doces. Eis o commercio vital da povoação.”241

Os biscoitos, produto que a par do pão e da regueifa, vieram dar grande fama a Valongo terão sido um importante elemento na diversificação de produtos sendo que, nos finais do século XIX e princípio do século XX, algumas famílias viviam da riqueza gerada com a sua venda. Em 1866, Sousa Reis, enuncia “Valongo onde se fabrica o pão e o biscoito de trigo (…) he costume, a proverem os mercados (…) em cavalgaduras pela estrada que às vezes se inunda com chuvas (…) as viagens far-se-iam às terças, quintas e sábados. Regueifas e biscoitos eram transportados em canastras aos pares e dos lados dos muares. Os biscoitos vinham acondicionados em sacos compridos e brancos, em porções de 250g, separados por uma corda fina que apertava – como as morcelas – em certos pontos. Com a – famosa e popular – tosta azeda era a mesma coisa, entremeando-se, às vezes, com os biscoitos. Nas ruas da cidade, as padeiras descarregavam encomendas às portas dos fregueses certos ou estacionavam junto de mercearias onde entregavam a tosta, o biscoito e o pão. Além da tosta, os produtos popularizados eram os biscoitos.”242 Em 1887, na publicação Minho Pitoresco 243 , o autor José Augusto Vieira, identifica um alargado conjunto de produtos produzidos em Valongo como Tosta Azeda Superior,

241 PIMENTEL, Alberto – O Porto na Berlinda. Porto : Casa Editora, 1894, p. 176.

242 REIS, Henrique Duarte e Sousa – Apontamentos para a verdadeira história antiga e moderna da cidade do Porto. Porto : Biblioteca Pública Municipal, 1984. p. 191.

243 VIEIRA, José A. – Minho Pittoresco. Lisboa : Livraria de António Maria Pereira. Tomo II, Lisboa, 1887, p. 597.

Tosta Doce Superior, Tosta da Rainha, Rosca ou Regueifa Inglesa e ainda, vários tipos de Biscoito Doce como, de Vinho, Argolinha, Macarrão, Rosquilhos, Requife, Brasileiro, de Milho, Ripert. Refere, igualmente, a Bolacha Comum, de Água e Sal, e Americana. Em 1904, Joaquim Alves Lopes Reis repete esta listagem.

Do pão de trigo, a multiplicidade. O molete, a sêmea, a regueifa, representação da estratificação social e cultural de um mesmo alimento, apenas coberto de caraterísticas químicas, organoléticas e culturais diferenciadas, de acordo com a classe social e o momento do calendário. Do pão, a tosta azeda ou biscoito na aceção de pão que se coze várias vezes de modo a preservar-se no tempo. Tendo em conta que nem sempre era possível ter pão fresco, a desidratação da massa pela cozedura repetida prevenia o aparecimento de bolores e aumentava a esperança de vida do alimento matricial, o pão. Da tosta azeda à doce, um caminho que se fez também da regueifa azeda à regueifa doce pela introdução de elementos que, não só amaciavam a massa, como a adoçavam. Mas, porque o espírito humano é dotado de criatividade e o trigo venceu, também, pela versatilidade de utilização, à massa de farinha e água, juntou-se o açúcar e ou a manteiga, e fez-se biscoito. No universo de cada padaria/biscoitaria surgiu um rol de biscoitos em que, do formato aos ingredientes, tudo foi motivo para a diferenciação. Da repetição de receitas de casa para casa, à receita de uma ou outra biscoitaria, é o gosto comum que definiu quais passaram das gerações antigas e, ainda hoje, se mantêm como presenças fiéis na mesa dos valonguenses e dos portugueses.

Pela escrita de Emanuel Ribeiro, publicado no Tripeiro, em 1930, recorda-se “às terças, quintas e sábados passa-me à porta um padeiro de Valongo. Faz-se acompanhar de um burro sobre o dorso do qual assentam dois enormes canastrões, onde o pão, as regueifas e os biscoitos vêm convenientemente arrumados entre panos muito alvos. Os biscoitos já se acham acondicionados e pesados aos quartos e meios quilos, e são embalados dentro de sacos longos (taleigas) que comportam vulgarmente um quilo ou quilo e meio convenientemente separados por barbantes.”244

Emanuel Ribeiro enumera os biscoitos azedos, os biscoitos de argola, as tostas doces, os biscoitos de milho, etc., contudo a sua atenção centra-se no formato dos biscoitos doces. Da sua análise ressalta o conteúdo cultural de cada um dos formatos, pois que “representam para nós mais um motivo interessante para o estudo de um povo, o que lhes dá verdadeiro valor etnográfico.”245 Refere o recorte em forma de mulher que dá um perfil dum vaso cerâmico, o de coração como uma alusão ao amor, o de viola à juventude. Serão estes três símbolos a felicidade de um jovem. No domínio dos símbolos relacionados com a fertilidade, aquele autor enumera a estrela (o sol) numa alusão ao poder fecundador do sol, a rosca e a argola. Deste trio, o primeiro relaciona-se com a capacidade fecundadora masculina e os restantes representam a função procriadora da mulher. Ainda, refere a serrilha e a tira.

As fontes escritas e orais esclarecem a antiguidade da venda do pão e da regueifa de Valongo na cidade do Porto e seu termo. É de crer que a facilidade da tosta tenha sido mais tardia e que se tenha afirmado como preponderante num contexto de maior dinamização social, económica e cultural. A imperiosa necessidade de abastecimento da cidade obrigou a que a atenção estivesse centrada no pão de todos os dias e no pão dos dias de festa, ou seja, no molete e na regueifa. O aumento do número de padarias, quer no Porto, quer em Valongo, obrigou a uma diversificação de produtos. Poderá ter sido neste contexto que a tosta azeda e doce se vulgarizam no consumo dos portuenses, pois não será de acreditar que os habitantes das zonas rurais tivessem acesso àqueles produtos como confirmam os testemunhos orais.

244 Ribeiro, Emanuel. “Biscoitos de Valongo” in O Tripeiro, Porto, 1930, p. 3.

245 Ribeiro, Emanuel. “Biscoitos de Valongo” in O Tripeiro, Porto, 1930, p. 3.

Convém relembrar que, na história da alimentação, o biscoito dizia respeito a um pão que seria cozido e recozido até à desidratação. Tal era prática conhecida, pelo menos, desde o período da presença romana sendo um dos alimentos que os soldados romanos levavam nas campanhas militares. Assim como, nas viagens da expansão marítima portuguesa, os biscoitos faziam parte dos mantimentos dos marinheiros. Mouette Barboff esclarece que “(…) o fabrico de biscoito era controlado com rigor. No seu fabrico participava toda uma cadeia de intervenientes: o «mestre dos moinhos», os «officiaes dos fornos», os «mestres dos biscoutos», os «biscouteiros» (…). As formas de biscoito serviam apenas para moldar a massa. Polvilhava-se a forma com farinha, antes de se colocar o pedaço de massa, previamente pesada. A seguir, acamava-se até se obter um disco de espessura uniforme. A massa chegava até à orla. Em seguida, era desenformada e metida no forno. A espessura do biscoito não ultrapassava os dois centímetros. O biscoito era cozido duas vezes para as pequenas viagens e quatro para as grandes, para que ficasse rijo, sem qualquer humidade impenetrável ao gorgulho e, assim, se conservasse longo tempo guardado.”246 Contudo, não será de crer que o biscoito de Valongo tal como o conhecemos hoje se aproximasse daquela versão que dizia respeito ao pão desidratado cozido e recozido de modo a uma conservação no tempo. Na verdade, é possível, que da tosta ao biscoito tal como o conhecemos hoje, poderá ter sido mais um acrescento no golpe de asa que caraterizou a evolução da panificação de Valongo.

“Não havia Biscoitos! Chamavam-lhes eles, não sei se aquilo era doce ou azedo, eram os tirones. Era uma coisa grossa, redonda, como os biscoitos de milho, era uma espécie de massa enrolada que ia ao forno e ficava rijo. No tempo do meus bisavós, eram os tirones.

Só depois é que começaram a fazer os biscoitos, começaram a fazer fidalgos. Ainda sou do tempo em que não fazíamos assim muitas qualidades.”

M. LINA CASTRO NEVES, 91 ANOS, VALONGO.

“Inicialmente, havia padarias. O que acontecia era que os padeiros faziam pão e alguns biscoitos, quando veio a lei que obrigava a separar é que se começou a falar em biscoitarias. No início, não havia muita diversidade, depois cada biscoitaria começou a ter a sua própria lista as suas receitas de biscoitos.”

ANTÓNIO DE SOUSA GONÇALVES PEREIRA, 74 ANOS, VALONGO.

“O biscoito nasceu do padeiro. O padeiro fabricava o pão e ia vendê-lo durante a manhã e princípio da tarde, ora de tarde ocupava-se o pessoal com o biscoito. Foi uma forma de ocupar o pessoal.”

SERAFIM FERREIRA DAS NEVES, 83 ANOS, VALONGO.

Na história da premiada marca Paupério ressaltam dois factos importantes para complementar a informação referida. Por um lado, antes da aposta frontal que os dois sócios fundacionais, Joaquim Carlos Figueira e António de Sousa Malta Paupério, fizeram na produção de biscoito, existia a Padaria Paupério, propriedade da família de um dos sócios. Ou seja, da padaria passa-se à biscoitaria, e não o inverso. Por outro lado, a larga procura de biscoitos e o incremento de produção que a fábrica conseguiu em poucos anos de atividade 247, demonstram que o biscoito se tornou num nicho de mercado que os padeiros de Valongo, rapidamente e sabiamente, souberam aproveitar.

246 BARBOFF, Mouette – A Tradição do Pão em Portugal. [Lisboa] : Clube do Colecionador dos Correios, 2011, p. 29.

247 MOTA, Dora e MOREIRA, Paulo Caetano – O nome do biscoito é Paupério. Valongo : Paupério Distribuição Lda.

No final do século XIX, a Paupério não era uma unidade familiar dedicada à produção e venda de biscoitos, mas apresentava-se, antes, como uma unidade industrial com uma gestão marcadamente comercial. O investimento na qualidade e na apresentação comercial promoveu a conquista de algumas distinções. Em 1876, pouco depois de ter sido fundada, já os produtos Paupério são distinguidos na I Exposição Universal Comemorativa do Centenário da Independência dos Estados Unidos. Em 1878, nova distinção é atribuída à fábrica Paupério na Exposição Portuguesa realizada no Brasil. 248 Tal desenvolvimento nas vendas e na produção explica como o biscoito, após tímida presença nos mercados dos concelhos limítrofes, se transforma num produto de excelência. Tal, poderá ter incentivado outros padeiros a seguir o ramo da biscoitaria em vez do da padaria, por ser este bastante mais penoso pelas horas de trabalho e rendimento limitado.

“Havia vários tipos de biscoito. O meu avó fazia o Biscoito de Milho, feito com farinha de milho e de trigo. Se fosse só milho, desfazia-se todo. Julgo que ele também levava pão e regueifa para vender no Porto, era a parte mais importante, os biscoitos deviam ser uma parte pequena. O meu pai é que já só levava biscoitos, porque o meu pai não quis padeiro, quis ser biscoiteiro, porque não queria ter de trabalhar de noite. O meu pai já quis escolher uma vida melhor.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

Da aproximação ao biscoito, capaz de ser reproduzido nas padarias sem trabalho excessivo e perdas de tempo, deu origem a formatos simples como os que são enumerados por Emanuel Ribeiro e pelos testemunhos orais. Somente o tempo, a arte e o acesso a novos ingredientes, trouxeram novos formatos, novas receitas que permitiram a diversificação e a glória do biscoito de Valongo. De realçar que, do conjunto de receitas todas tinham a farinha de trigo como ingrediente principal, contudo, é em Valongo que vamos encontrar um biscoito de farinha de milho, provavelmente, uma estratégia dos biscoiteiros para ultrapassar as dificuldades sentidas no acesso à farinha de trigo. Tendo em conta que, em Valongo, o acesso ao trigo exigiu em certos momentos intervenção dos organismos públicos camarários, é de crer que os biscoiteiros tenham encontrado na farinha de milho, esta muito mais disponível no concelho pela produção agrícola local, a oportunidade de fazerem um bom biscoito sem o constrangimento de falta de matéria-prima. Certo é que, ainda hoje, o biscoito de milho é de farta e larga reputação pela preferência e dedicação que merece dos consumidores.

Na dificuldade em enumerar todas as receitas e formatos que cada uma das padarias/ biscoitarias teve no passado, remete-se para os testemunhos orais a diversidade pronunciada refletindo, esta, a capacidade criativa dos biscoiteiros e padeiros de Valongo.

248 MOTA, Dora e MOREIRA, Paulo Caetano – O nome do biscoito é Paupério. Valongo : Paupério Distribuição Lda, pp. 119 e 121.

A NOSSA CASA É O PÃO. O PÃO DE VALONGO.

Capítulo III, Fotografia: A Regueifa. Uma Narrativa.

MEMÓRIAS DE QUEM FEZ A HISTÓRIA. AS PADARIAS DE VALONGO.

“Os padeiros trabalhavam de noite para comer de dia.”
MARIA LINA CASTRO NEVES, VALONGO.

São múltiplas as vozes, mas é una a memória. Pelas lembranças nas conversas, recordam-se os antepassados como se eles ainda estivessem ali. Chega-se ao bisavô e à bisavó, depois disso, perde-se o rasto à vocação da padaria na família. Fala-se com um orgulho desmedido da alma humana que soube construir a reputação de cada padaria. Evocam-se os apelidos numa mistura confusa entre famílias que nenhuma relação familiar visível têm entre si. Soltam-se recordações que evocam as aventuras na busca de melhor farinha, do pão que se amassava, tendia e cozia, das idas e vindas para a venda do pão, do cansaço extremo e desgastante. Uma epopeia que relata que sim, os padeiros e padeiras de Valongo trabalhavam de noite para comer de dia.

No emaranhado das lembranças, quase se perde o fio à meada e se pensa que, na história do Pão de Valongo, há uma base comum, um grande Pai e uma grande Mãe, tronco robusto de uma história que se desdobra em múltiplos ramos, pequenos troncos que fazem nascer novos ramos. Como nas grandes civilizações em que o mito fundador suporta as incertezas do quotidiano e as dúvidas do futuro, em Valongo, o memorial da padaria encontrou suporte na ideia de um tronco comum mitificado há muito nascido e criado. Por isso, se repetem e se cruzam apelidos que nada têm a ver uns com os outros, são famílias diferentes, contudo, talvez, vindas de um mesmo berço.

Difícil será construir a árvore genealógica da padaria de Valongo. Sim, da padaria e não dos padeiros, pois que, na ânsia de proteger a maior riqueza que tinham, as famílias fecharam-se em pequenas comunidades familiares onde o núcleo nunca foi só o casal e os descendentes, mas uma roda grande onde a família alargada se fez a mais chegada. O pai e a mãe, mas também a avó e o avô, ainda os tios e as tias. Prática ritualizada de ter a família como suporte, onde todos trabalhavam e se ajudavam, e por isso, de Natais grandes, quentes e barulhentos à boca do forno, montadas as mesas em cavaletes numa divisão que nunca ficava fria pelo trabalhar contínuo do cozer do pão.

Cada família, uma padaria, nem importava o nome, mas antes as alcunhas pelas quais eram conhecidas as famílias. De cada família, uma nova família, um braço que se autonomizava com a oferta de uma volta pelo casamento. Da família mãe à linha que voava para longe, uma ligação sempre forte, apertada, incapaz de deixar fugir o sangue e o nome ou a alcunha. Assim se foi gerando, criando, sustendo o caminhar do Pão de Valongo.

Não é a memória exposta nas ruas, mas a que vagueia pelos caminhos que, ainda hoje, se deixam notar entre os moinhos e as padarias, entre as padarias e o Porto, entre Valongo e todo os arredores. Enunciar todos os ramos do tronco parece ser tarefa difícil, pois que alguns, frágeis, foram tentativas que se perderam entre gerações. Na falta de fôlego para abraçar a descrição de todas as famílias, vira-se a atenção para o tronco, arca sagrada, de onde divergiram inúmeras linhas familiares que deram corpo ao mito.

A memória comum abraça. Ao invés, a lembrança individual pode subtrair, pela voz que se perdeu e não soube integrar.

Por isso, na memória de quem fez a história do pão de Valongo, fixa-se na escrita os testemunhos conseguidos, nunca querendo que tal possa extinguir a importância de quem não se refere. Não há traços visíveis pelo sucesso comercial ou pela descrição repetida da história de uma ou outra família e as linhas invisíveis pelo silêncio que a vida ditou, há o Pão de Valongo que teve muitas vozes, mas que é uno na memória.

A memória é de todos, num grande memorial aos que, no tempo, ficaram apagados. Pelos padeiros e padeiras, mães, pães, avós, avôs, irmãos, irmãs, tias, tios, irmãos e irmãs, todos os que, no silêncio da noite, trabalhavam e na agitação do dia, descansavam num pequeno momento entre turnos.

A todos eles, aos visíveis pela marca que deixaram e aos invisíveis e silenciados pelas circunstâncias do tempo, honra e glória pelo que souberam construir e verter para os que ainda hoje vivem o Pão de Valongo.

António Romeiro Vale.
Fotografia cedida por Maria José Ribeiro Sousa Vale.
Abril c.1957.
Fotografia cedida por Laura Aguiar.
Fotografia cedida por Lina Castro Neves.
Fotografia
Fotografia cedida por Ana Luísa Paupério.
Fotografia
Padeira a descansar.
Irmãos Moreira.
Fotografia cedida por Maria Lina de Castro Neves.

Joaquim Moreira Camilo 85 anos VALONGO

“A minha vida foi o pão. Era padaria porta sim, porta não. No tempo do meu avó, onde eu morava havia quatro. Era a do Ricardo e da Celeste, os Irmãos Moreira, havia outra lá ao lado, e a nossa. Para baixo, havia, à beira da igreja, uma de biscoito, fechou há muito ano. Mais para baixo, era a Fábrica Paupério. Havia lá outra, mas não me lembro do nome. Ao chegar ao jardim, ao virar para cima, havia uma de biscoito e outra de pão. Era a Aninhas Jeremias. E, depois, a seguir à ponte, havia uma de broa e, logo a seguir, havia a padaria Ribeiro. Depois, havia o Aguiar que tinha padaria e biscoitaria. A seguir, do lado direito, havia uma outra padaria. Do outro lado, era a padaria de biscoito. E havia a do Zeca Padeiro, em frente havia uma que eu ouvia o meu avó contar. E, depois, a seguir havia a do Barrelo. Mais abaixo, havia uma que trabalhou muito no meu tempo, que fazia pão e biscoito. Era a Serafim do Libes. Daí para baixo havia uma, mas era clandestina, cozia broa, era perto da estação e ia vender broa para o Porto. Ia na camioneta com uma giga cheia de broa. Havia a de Suzão. Depois temos a começar na outra rua, a de Fonte da Senhora, o Diogo, também cozia pão. Havia também a padaria do Capador. Naquele mesmo sítio, tinha a Padaria Montês, em frente tinha uma que ainda existe, mas noutro sítio. Havia outra ali, pela mesma estrada abaixo, que era do Tomás Pombo, havia a Moira, e havia o António Aguiar que

só cozia broa e o Lino Cera que, também, só cozia broa. E a chegar à estrada nacional, havia uma de cada lado, uma de pão e outra de biscoito.”

M. Lina Castro Neves 91 anos VALONGO

“Isto era dos meus bisavós. Era a Padaria dos Tunas. O meu bisavó chamava-se António Castro Neves, era o pai da minha avó, que era Ana da Rocha Felgueiras que casou com o António Castro Neves. O meu bisavó e o meu avó tinham o mesmo nome, eram todos daqui de Valongo. O meu bisavó era do tempo dos miguelistas, por isso não queria que a minha avó cassasse com o meu avó, porque era do lado dos liberais, do D. Pedro. O meu bisavó não queria deixar casar por o noivo ser do lado contrário aos miguelistas, mas a minha avó casou na mesma! Nesta família, era tudo muito ligado à política, o meu pai, que nasceu a 1 de Dezembro de 1901, chegou a ser preso. O meu pai nunca teve nada a ver com a padaria. Os meus avós tiveram 6 filhos, mas só um dos filhos é que chegou a ficar com a padaria, que foi a minha madrinha. Era Maria Felgueiras de Castro Neves que casou com Lino de Alves Moreira, que era o meu padrinho. Nesta altura, era conhecida como a Padaria dos Ferreiras. Lembro-me que o meu padrinho era uma pessoa muito inovadora, era uma pessoa muito dentro da moda. Nós fomos quase os primeiros a ter uma amassadeira elétrica. Foi comprá-la a Gaia, à rua da Rasa. Depois,

comprou uma divisora para cortar o pão, era 50 a 60g por molete. Também comprou um sovador elétrico.

Depois, a minha tia e madrinha não teve filhos. Ela e o meu padrinho é que me criaram. Ia dormir à minha mãe, mas vinha sempre para aqui. Acabei por tomar conta da padaria. O meu marido nasceu na padaria dos Irmãos Moreira, porque eu casei com um sobrinho do meu padrinho. O meu sogro era irmão do meu tio e padrinho. Havia muitos casamentos de primos direitos com primos direitos, era para os negócios se manterem. Um irmão da minha avó casou com uma prima direita.

A Padaria Irmãos Moreira também está ligada à minha família. José Marques Moreira, o meu sogro, nasceu lá. Quem tratava do pão eram os meus sogros e as minhas cunhadas. As minhas cunhadas amassavam o pão e o meu sogro começava, de manhã cedo, a cozer. Só o meu marido é que nunca participou porque trabalhava aqui. Assim, lá para a 1 hora ou 2 horas, carregavam a burra e lá ia ele, a pé, vender para Rio Tinto. Depois, passava aqui à meia noite e já vinha a dormir em cima da burra. O meu padrinho, que era dono desta casa, era irmão dele, lá o via e dizia «lá vai o nosso Zé». Vinha de vender o pão, cansado. A burra já sabia o caminho, trazia-o para casa sem ele dar por isso. Essa minha cunhada Laura trabalhou muito na padaria, depois, os sobrinhos vieram e continuaram o trabalho da padaria.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos

Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“Este sempre foi um negócio de família. Nós vimos do nosso avó José Sousa Moreira Diogo.

A nossa padaria dele foi sempre aqui, a dos pais dele é que eram noutro lado. O nosso avó fazia tostas, bebé, azeda e doce, biscoitos, aqueles formatos mais antigos como bonecos e tiras, era biscoiteiro. Os pais dele só faziam só pão, eram padeiros.

O meu bisavó era António Ribeiro Moreira. Valongo tinha imensas padarias, talvez por isso o meu avó se tenha lançado mais nas tostas e tenha deixado o pão.

O meu pai, António Felgueiras

Sousa Moreira, e a minha tia, Silvina Felgueiras, seguiram o meu avó. Depois, ficou para nós. Nós fazemos biscoitos e tostas. Nós nascemos aqui e sempre vivemos disto.”

M. da Purificação Matos

Ferreira Soares Ribeiro 74 anos VALONGO

“Os meus pais tinham uma padaria que se chamava Padaria do Calvário. Era dos meus pais, Ricardo Ferreira Vicente e Celeste de Oliveira Matos.

O meu pai era de Sobrado, naquela altura os miúdos não iam para a escola e o meu pai veio trabalhar para aqui, para casa de um padeiro. Veio com 10 ou 11 anos trabalhar para Valongo para uma padaria. Nasceu a 25 de Abril de 1918. E a minha mãe nasceu a 2 de Outubro de 1924.

A minha mãe também começou a trabalhar novita numa padaria no centro de Valongo, era a Padaria Vitória. Ela também foi novinha trabalhar para lá. Entretanto,

conheceram-se e quando resolveram casar quiseram ter a sua própria padaria. Começaram na Rua Dias Oliveira que era uma rua com 4 padarias e 2 biscoitarias.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“Sou filho, neto e bisneto de padeiros e biscoiteiros. O meu pai era filho de padeiros, mas o meu pai já era biscoiteiro. A minha mãe era filha de padeiros. O meu bisavô, por parte do meu pai, chamava-se Valentim de Castro Neves e foi casado com Maria de Souza Aguiar, ele era padeiro e biscoiteiro, já fazia biscoitos. O meu avó, António Castro Neves Aguiar (1859), foi o único que teve nome diferente, ele foi buscar o Aguiar à mãe. Todos os filhos do meu bisavó eram só Castro Neves, só dois filhos foram buscar o Aguiar. Um foi a filha que ficou com o nome da mãe, Maria Souza Aguiar. O outro foi o meu avó António Castro Neves Aguiar, não sei a razão de tal. O Aguiar no meu apelido vem daí, porque Castro Neves há muitos aqui em Valongo. O meu avó não foi padeiro, só quis ser biscoiteiro. A minha avó Ana Alves Marques (1860), nunca se dedicou aos biscoitos, era doméstica. Era filha de Ricardo Alves Fontes, este meu outro bisavó era moleiro, tinha cerca de 20 moinhos no rio Ferreira, alguns eram mesmo dele e outros eram alugados. Este bisavó foi casado com Maria de Sousa Paupério. Um irmão da minha avó, filho do Ricardo Alves Fontes, namorava uma senhora dos Figueiras que eram da parte do Paupério, eu conheci essa senhora. Mas como havia rivalidades entre as famílias, não os

deixaram namorar. Então, ele mandava uma alcoviteira para lhe mandar recados, como não conseguiu casar com a senhora dos Figueiras, casou com a alcoviteira! O meu pai chamava-se Cosme de Castro Neves Aguiar e eu tenho o mesmo nome do meu avó, António de Castro Neves Aguiar. O meu bisavó era padeiro e biscoiteiro, fazia o pão molete e a sêmea, que era um pão grande feito com a farinha mais escura. O molete já era feito com farinha mais branca. Iam vender para o Porto. Quem fazia o pão era a família e os criados internos.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“Quando os meus pais faleceram e a padaria ficou para os filhos, decidimos fazer uma sociedade entre 4 dos 5 irmãos, pois um dos meus irmãos estava noutra atividade. Eu estou ligada à padaria desde que nasci. O meu pai era padeiro e os meus bisavós eram padeiros, tinham uma padaria no Porto. O meu pai era António Abreu Costa e nasceu em 1935. O pai dele, o meu avó, era contabilista e trabalhou para o Correio do Douro e para o Jornal de Notícias, era jornalista.

A mãe do meu pai, a minha avo, chamava-se Alice Costa, é que estava ligada ao fabrico do pão. Embora nunca tenha trabalhado na padaria, nasceu numa, pois os pais dela tinham uma das maiores padarias do Porto, a Pá de Ouro. Era uma padaria muito grande. A minha avó, entretanto, casou com o meu avó, o tal que era jornalista, e vem viver para Valongo. Tiveram 16 filhos, entretanto, o meu avô morreu muito cedo e a minha avó teve de arranjar maneira de sustentar

os filhos. Fazia pudins, costurava, fazia biscates e lá ia criando os filhos. Como era de uma família muito rica, a minha avó nunca foi preparada para trabalhar. O seu sonho era trabalhar no teatro como costureira, só que naquela altura o teatro era um tabu e ainda mais para mulheres. Por isso, os meus bisavós nunca permitiram. Por isso, quando ela ficou pobre teve de arranjar coisas para se desenrascar. O meu pai costumava dizer que soube o que era fome e que não queria que nenhum dos filhos passasse por isso. Nem netos e bisnetos passassem o que ele passou.

O meu pai, desde pequeno, sempre trabalhou em padaria. Primeiro, foi empregado numa padaria em Entre-os-Rios, no Porto e, depois, esteve em Valongo. A minha mãe, Maria Nunes Coelho, trabalhava na Moagem do Senhor António Aguiar, era ela que fazia a conversão do milho para a farinha. As pessoas entregavam o milho para moer e, quando iam buscar a farinha, tinha de se dar a quantidade certa já sem a maquia. Esta moagem que também era padaria, só fazia broa de milho. Quando os meus pais começaram a namorar havia uma padaria no Suzão que estava disponível para alugar. Eles alugaram essa padaria por 500 escudos em 1963.

O meu pai era descendente de padeiros, mas do Porto, só em 1963, é que iniciam o trabalho na padaria de Suzão. Os antigos donos da padaria de Suzão pertenciam a uma família de cá que só fazia broa. Nessa altura, havia umas senhoras que vinham de Valongo com a cesta à cabeça vender pão. Uma delas era a minha tia, Maria Cândida Ferreira Coelho, ela trabalhou até muito tarde. O único pão que as pessoas

de Suzão tinham, tirando a broa, era esse que as senhoras traziam. Não vinham todos os dias, era só nos dias estipulados. O meu pai, quando alugou a padaria, começou também a fazer pão de trigo, fazia moletes e sêmeas. E, ao sábado e feriados, fazia regueifa. Passado aí um meio ano do meu pai ter começado a trabalhar, a minha tia veio trabalhar connosco. A minha tia teve uma história de vida muito peculiar. Começou a trabalhar aos 9 anos em Rio Tinto e um dia a patroa bateu-lhe e ela regressou a casa sozinha, a pé. Fez o caminho todo a pé até Valongo e quando chegou a Valongo, percebeu que a família já não estava a viver lá, estava em Campo. E lá foi ela até Campo perguntando aqui e ali pela família. Era mulher que tudo fazia. Casou tarde e teve um filho já tarde. Trabalhou sempre muito, não sabia ler nem escrever, mas nunca se enganava nas contas. A minha tia viu Suzão crescer, é das poucas pessoas que viu isto crescer. Como os clientes gostavam muito dela, os clientes da volta que ela fazia vieram com ela. A tia Cândida foi visitar os clientes a pedir para gastarem pão do meu sogro. Tinham muita amizade por ela. Entretanto, a padaria cresce porque o meu pai começa a vender em Alfena.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“Sempre vivi nesta casa, quando eu nasci a minha mãe ficou doente e eu vim ficar aqui com as minhas tias e com o meu avó. Os meus pais vinham trabalhar aqui todos os dias, mas depois à noite, eles iam embora. Eu é que ficava sempre aqui. O meu pai era o forneiro da padaria, era a

Padaria Aguiar. O meu pai era o José Moreira da Fonseca Aguiar, nasceu em 1912 e a minha mãe nasceu em 1916, era a Maria da Conceição Gomes Ferreira, era de Santo Tirso. O meu pai é que era filho e neto de padeiros, isto é já era do meu avó, depois ficou para o meu pai e de pois ficou para mim. A minha mãe era biscoiteira, trabalhava nos biscoitos. O meu pai era forneiro, mas fazia de tudo. Tanto amassava, como cozia. O meu avó era Serafim Martins de Sousa Aguiar, nasceu em 1886. A minha avó morreu nova, nunca a conheci. Mas era padeira, filha de padeiros, Maria Moreira da Fonseca. Tinha umas tias que cuidavam muito bem de mim, eram a Ana Amélia Moreira Aguiar e Maria Emília Moreira Aguiar.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos VALONGO

“Trabalhei na panificação desde o momento em que saí da escola. E vi como se trabalhava até essa idade, fui para a padaria com 9 meses. O meu avó, Joaquim Nunes Grandão, é que tinha a padaria em Valongo, ficava na rua Dias Oliveira, nº 47. Naquele tempo não se punha nome às padarias. Trabalhava lá o meu avó, a minha avó e uma mulher que era empregada. Até aos 14 anos foi assim. A minha avó era Maria Moreira Barbosa. A minha mãe teve sempre ligada à padaria, até ao casamento. Depois, foi trabalhar com o meu pai no negócio dele de lousa, faziam quadros para as escolas, pedras para as campas, lousas para os miúdos que andavam na escola. Mais tarde, acabou por tomar conta da padaria. A minha mãe era Maria Moreira Nunes, e o meu pai era

José de Sousa Camilo. O meu avó nasceu em 1862. Saí da escola aos 11 anos e fui logo trabalhar para a padaria. Nesse tempo cozia-se pão dia sim dia não. O meu avó saía de manhã, às 6:30, com a carroça e com um burro, e eu ia com ele. Comecei por me levantar às 4h, depois às 3h. Quando o meu avó ficou velho, acabou por passar o negócio ao meu pai e à minha mãe, embora o meu pai nunca tenha estado ligado ao negócio da padaria, ele tinha o dele. Mas a padaria ficou no nome dele, e ele ajudava na distribuição. Comprou uma furgonete e aí já começou a ir vender todos os dias pela Rebordosa. Depois o meu pai saiu e eu continuei, e aí já comecei a trabalhar mais, já começava à meia noite. Quando eu tirei carta, o meu pai abandonou a padaria e seguiu o trabalho dele. Comecei eu a ir fazer a distribuição até ir para a tropa. Quando fui para a tropa, ele meteu um empregado para fazer o meu serviço na padaria e ele voltou a conduzir na distribuição. Quando acabava a distribuição, voltava para o negócio dele. Acabou por demorar mais tempo do que o que se contava, porque eu fui para Angola, estive lá 26 meses. Quando vim, o meu pai voltou para o trabalho dele, embora sempre nos ajudasse em algumas situações, mas o serviço certo deixou de o fazer. Eu vim de Angola e, como eu era o único que não tinha estudado e era o único que estava na padaria, já o meu avó dizia que a padaria era para mim e foi. Saíram umas leis que obrigavam a umas certas exigências nas padarias, então o meu pai tinha aqui um terreno e fez aqui a padaria. Tinha eu 28 anos quando tomei conta da padaria. Mantive tudo como

era. Mantive sempre o forno. Foi o António Padilha que fez o forno, uma pessoa muito conhecida. Era um grande construtor de fornos, aqui de Valongo. Aprendeu com o pai dele, como eu aprendi com o meu avó. Ficou ele e um tio dele que costumava trabalhar com o pai dele.”

António de Sousa Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“Em relação à ascendência das padarias em Valongo, há três ramos: os Romeiros, os Tunas e os Diogos. Nos Romeiros, temos o casamento entre Manuel Gonçalves Pereira, que nasceu em 1830, e Ana Marques da Nova, que nasceu em 1838. Nos Tunas, temos o casamento entre o Lino Alves Marques Moreira, que nasceu em 1826, e Maria Cândida de Brito, que nasceu em 1836. Nos Diogos, era o Manuel Diogo Leite da Silva, este nunca foi padeiro, era negociante.

Começando pelos meus bisavós Manuel Gonçalves Pereira e Ana Marques da Nova, eram Romeiros, tiveram uma série de filhos. Uma das filhas, chamada Ana Marques da Nova (1863) casou com António Ferreira Pinto Pombo (1866) tinham uma padaria na Rua Marques da Rocha, era conhecida como a Padaria Pombo. Os filhos Maria Marques da Nova (1864), Laura Marques Pereira (1873) e Manuel Gonçalves Pereira Júnior (1871), ficaram todos solteiros e o pai deixou-lhes, ainda em vida, a padaria que era dele. Era conhecida como a Padaria do Romeiro. Este Manuel Gonçalves Pereira Júnior chegou a estar ligado à Cooperativa de Moagem do rio Ferreira, foi constituída em 1894. Foi uma cooperativa constituída

por pessoas que tinham moinhos, outros que estavam ligados à panificação.

O casamento entre a filha Margaria Marques Pereira (1866) e José Alves Marques Moreira (1867) mostra que um Romeiro, a Margarida, casou com um Tuna, o José. Deram origem à Padaria dos Irmãos Moreira.

Depois, outro dos filhos foi padre, era o padre Tomás Gonçalves Pereira. Outro filho, o meu avó paterno José Gonçalves Pereira Romeiro (1869), é o único que tem Romeiro no nome. Acontecia que as pessoas eram batizadas e, na altura do batismo, ficavam com o nome que os pais lhes atribuíam. Depois, quando casavam é que punham o nome que quisessem. E o meu avó foi um desses casos, no batismo ele não tem o Romeiro, mas quando casa adiciona o Romeiro. O meu avó casou com Ana Marques Moreira (1869) que era Tuna e que tinha herdado a padaria do pai Lino Alves Marques Moreira. Como o meu avó morreu muito cedo, faleceu com 33 anos, a minha avó Ana Marques da Nova fica ela com a padaria. É daqui que surge a Biscoitaria Valonguense. Outro filho foi João Gonçalves Pereira (1876) que casa com Maria Alves da Cruz (1881). Quando casaram foram viver para a rua de Santa Justa e tiveram lá uma padaria, mais tarde, foram para a beira do Padrão.

Agora, vamos passar para a família dos Tunas. Lino Alves Marques Moreira (1826) casou com Maria Gonçalves de Brito (1835/1836) e teve vários filhos. A Maria Marques Moreira (1863) casou com João Marques Nogueira Dias (1862) e foram para Espinho onde tiveram uma padaria. Outro filho, Lino Alves

Marques Moreira (1864) casou com Teresa Moreira do Vale (1862) tiveram uma padaria na Senhora da Hora.

José Alves Moreira (1869) casou com Margarida Marques Pereira, que já falei há pouco, ela era dos Romeiros, ele era dos Tunas, deram origem à padaria dos Irmãos Moreira. Também já falei do casamento de Ana Marques Moreira e de José Gonçalves Romeiro, ela Tuna e ele Romeiro. Foram os antecessores da Biscoitaria Valonguense. Nesta situação, temos que eram irmãos e cunhados, porque a José e a Ana eram irmãos e a Margarida e o José Romeiro, também, eram irmãos.

Da união entre António Alves Marques Moreira (Tuna) e Cândida de Sousa Ribeiro (Diogo), saíram a Biscoitaria Diogo com José de Sousa Moreira Diogo, que nasceu em 1901. Este meu tio acrescentou o Diogo ao longo da vida, não lhe foi dado no batismo.

O filho Ricardo Alves Marques Moreira (1903) casou com Rosa Ferreira Ribeiro (1908) tiveram uma padaria no lugar de Calvário, Rio Tinto.

A Laurentina de Sousa Ribeiro

Gonçalves Pereira (1914) casou com José Gonçalves Pereira (1898), eram primos. Estes eram os meus pais.

O Lino Alves Marques Moreira e a Maria Gonçalves de Brito tem a filha Ana Marques Moreira que vai casar com José Gonçalves Pereira Romeiro. A Biscoitaria Valonguense começa aqui. Depois, passa para José Gonçalves Pereira, um filho, que é casado, em primeiras núpcias, com Anunciação e, em segundas núpcias, com Laurentina. A seguir, passa para a filha Ana Gonçalves Pinto Pereira Barbosa, filha do primeiro casamento.

Inicialmente, quem ficou a trabalhar na padaria é a Laurentina, que era a minha mãe. O meu pai, quis sempre trabalhar no Grémio, no Porto. Há que explicar que na década de 40, teve de se separar o fabrico do pão do fabrico dos biscoitos. Então dividiu-se a biscoitaria da padaria, a biscoitaria ficou explorada pela minha mãe e pela minha irmã. A padaria ficou para o José Pinto Gonçalves Pereira, meu irmão. Em 1988, já tinha deixado a padaria, passou-a a um sobrinho. Na biscoitaria, com a idade e com a doença a minha irmã deixou de querer explorar e passou à Maria Guimarães, quem explora agora o negócio.”

Maria Conceição Moreira Guimarães 52 anos VALONGO

“A minha família nunca esteve ligada aos biscoitos, nem à panificação. Tudo aconteceu a propósito do levantamento que a Câmara Municipal andou a fazer das padarias e das biscoitarias que existiram em Valongo. O meu marido teve conhecimento de que havia este espaço e eu aproveitei esta oportunidade que ele me deu a conhecer. Aprendi a fazer os biscoitos, andei a fazer distribuição e lancei-me nesta vida. Os proprietários ainda estavam a laborar.

Eu gostei de como as coisas eram feitas, tudo feito à mão, o forno a lenha. Mas fomos bastante loucos, porque esta não era a nossa vida. Nós estamos cá desde 2012. Os biscoitos, quando feitos à mão como nós fazemos, são únicos. Cada um é diferente do outro, cada um tem a marca da pessoa que o fez. Conseguimos notar a diferença da pessoa de quem o fez.

A história da Biscoitaria começa com Ana Marques Moreira. Era

casada com José Gonçalves Pereira Romeiro, o mais engraçado é que o apelido Romeiro foi adicionado na altura do casamento, porque todos os irmãos eram Gonçalves Pereira. Mais ninguém tinha Romeiro no nome, o nome Romeiro era tão importante que até as pessoas conheciam este espaço como os Biscoitos do Romeiro, provavelmente, por vir do nome dele. Pelo que sabemos, já existia a padaria, estamos a falar de quando se casaram, em 1893, e que já fariam pão e que alguns biscoitos. Quando casaram foram morar mais abaixo, não tenho a certeza de qual as casas. E, na altura foi-lhes dado uma venda, um local onde o casal pudesse vender o pão que produzia. Porque ele também era padeiro. Entretanto, o José Gonçalves Pereira Romeiro, marido da Ana, faleceu. E ela, ficando sozinha e viúva com os filhos, voltou para casa dos pais. E o que temos como registo físico é de um alvará de funcionamento em nome dela, isto na década de 30. Tal não era muito habitual na altura, terá acontecido pelo estado de viuvez.

O filho, que também era José Pereira Gonçalves, esteve emigrado no Brasil numa altura em que muitos valonguenses estiverem emigrados no Brasil, e quando regressou tomou conta do negócio. Depois, ele estava mais inclinado para os biscoitos e foi ele que começou a produzir mais biscoitos e menos pão, estava mais inclinado para os biscoitos. Quando os filhos cresceram, o filho mais velho, foi ele que tomou conta da padaria e o pai só se dedicou a fazer biscoitos juntamente com a filha dele, a D. Aninhas, proprietária do edifício, neta da Ana Marques

Moreira. Entretanto, o pai da D. Aninhas ficou viúvo, a mãe da D. Aninhas faleceu e o pai voltou a casar com uma prima direita. Por imposições legais, tiveram de separar as produções, os biscoitos num lado e a padaria noutro. Entretanto, na década de 80 com o falecimento de quem estava à frente na padaria, foram outros familiares que ficaram com os locais onde eles iam vender o pão e a D. Aninhas continuou com os biscoitos e passaram para esta zona, isto na década de 80. Mais tarde, a D. Aninhas resolveu deixar de estar ligada à Biscoitaria e passou o negócio a outrem para exploração. É aqui que entra a minha história na Biscoitaria Valonguense.”

Eduardo Ferreira de Sousa 69 anos VALONGO

“A Paupério é uma sociedade que foi fundada em 20 de Abril de 1874 entre dois sócios, dois amigos, um portuense, Joaquim Carlos Figueira, e um outro amigo de Valongo, António de Sousa Malta Paupério que herdou a padaria do pai e, juntamente, com o meu trisavó decidiram evoluir da panificação para a biscoitaria dado que o negócio do pão com a cidade do Porto estava em declínio. Foi isso que motivou o negócio entre os dois amigos que eram chamados de brasileiros porque tinham feito fortuna no Brasil. Eram amigos, casaram na mesma altura e vieram viver para aqui, na proximidade da fábrica. A partir daqui a fábrica foi evoluindo, foi ganhando posição no mercado, fama, e em 1907, quando o sócio António de Sousa Malta Paupério faleceu, os herdeiros não quiseram continuar na sociedade e, então, o meu

trisavó propôs-lhes a compra da quota e o direito de continuar a usar o nome Paupério, já que o meu trisavó não era Paupério, mas Figueira. A partir de 1907, a fábrica Paupério passou para a família Figueira e que se mantém até hoje, somos uma empresa familiar que completa este ano 150 anos.

O meu avó Eduardo Joaquim Reis Figueira era uma homem extraordinário, muito benemérito. Quando morreu o meu bisavó, Eduardo Carlos, com tuberculose, deixou 8 filhos, o mais velho era o meu avó com 13 anos, andava a estudar num colégio em Ermesinde e o mais novo era o meu tio Mamede, tinha 1 ano. Quem tomou conta disto, depois de morrer o meu bisavó, foi o irmão Álvaro.

Naquela altura, só o filho varão é que herdava tudo e o Álvaro herdou tudo, mas disse ao mais novo, «vais tu gerir a fábrica porque eu estou aqui pelo Porto com as minhas coisas e não quero saber dos negócios». Ele veio e acabou por morrer com tuberculose. Então, teve de vir o Álvaro tomar conta. Veio o Álvaro, mas percebeu que não ia conseguir resolver nada da fábrica porque não estava dentro dos assuntos. Quando morreu, passado 4 ou 5 anos, ficou a irmã, Elvira. Não tendo experiência na governança dos negócios, foi buscar o sobrinho mais velho, o meu avó, à escola e pediu-lhe para ele a vir ajudar. E ele veio para aqui e esteve aqui dos 13 aos 87 anos. E tratou de todos os irmãos, é que uma caraterística desta família é que não fica ninguém para trás. A família passa no ADN esta mensagem, de entre todos, o que estiver melhor posicionado tem a obrigação de cuidar dos seus familiares, dos

que estão para vir e dos mais necessitados. Tem de os ajudar. A fábrica cresceu muito durante a administração do meu avó, fez um percurso de sucesso, mas, depois do 25 de Abril, o meu avó quase que se desinteressou pelo investimento. O meu pai, Eduardo António, trabalhava com o meu avó e tinha por hábito concordar com o pai, contudo foi sempre tentando algumas conquistas. Lembro-me que o meu pai queria uma máquina de Sugar Wafers nova e o meu avó não concordou com a ideia porque achava que seria um investimento muito grande para a empresa. Então, o meu pai lá conseguiu encontrar, em segunda mão, uma máquina austríaca de fazer hóstias. Estava em Inglaterra, o meu pai teve de ir a Inglaterra e tratar de tudo para ela vir para Portugal. Depois, teve de a adaptar. Foi uma aventura, mas foram poucos os investimentos, o meu avó estava desmotivado. Logo a seguir ao 25 de Abril, chegou a grande distribuição que causou grande ruína nos armazenistas da província. Ora, eram esses a base dos clientes da Paupério. As vendas caíram. Quando o meu avó faleceu, em 1987, o meu pai e o meu tio iam vender a empresa. Era um peso muito grande, não se vislumbrava uma solução. Vender, não? Fui eu que disse que não seria bom vender. Quando se colocou a hipótese de vender eu pensei, o meu trisavó foi um dos fundadores, o meu bisavó morreu sem poder dar destino, o meu avó passou aqui a vida, sacrificou a formação académica por causa disto. Então, fiz uma avaliação e achei que não era boa ideia vender. Vim para aqui para tentar levantar o negócio e fui ficando, ganhei-lhe o gosto. Depois, aconteceu que o meu pai morreu

precocemente, as minhas irmãs, à data de falecimento do meu pai, não tinham idade para tomar conta disto, a viúva também não, o meu tio não queria, era juiz desembargador, e eu fiquei a tomar conta. Em partilhas, acabou por ficar para mim. Podemos dizer que, olhando a história da empresa, antes da Paupério, era a padaria da família Paupério, e depois passou a ser a empresa Paupério que foi crescendo até ao que é hoje.”

Serafim Ferreira das Neves 83 anos

VALONGO

“Comecei a trabalhar na biscoitaria do meu tio Diogo com 12 anos, o meu pai morreu muito novo e tivemos de começar a trabalhar. Eu era neto de padeiros, os meus avós tiveram uma padaria, mas não cheguei a conhecê-los. O meu pai era para ficar com a padaria dos meus avós, acontece que o meu pai, ainda novo, sofreu da tuberculose, na altura, era uma doença fatal. Durou pouco tempo entre o diagnóstico e o falecimento. Como ele morreu, a padaria foi para uma tia minha, a Aninhas que era casada com o Agostinho.

Fui para a tropa e, lá, tirei um curso de datilografia, era escriturário. Quando vim da tropa, empreguei-me num armazém de vinhos, em Campanhã. Andei lá a trabalhar durante nove anos. Entretanto, um cunhado meu, que também tinha trabalhado no Diogo, foi para França, emigrou. Acabou por sentir saudades, regressou e foi tomar conta de uma padaria que estava vaga aqui em Valongo, era a padaria dos pais do José e do Joaquim Aguiar.

O meu cunhado começou a tomar conta daquilo e alargou o negócio.

Eu, como tinha alguma prática, comecei a fazer a escrita da biscoitaria e aproveitava para ajudar de vez em quando. Foi de tal modo que o meu cunhado acabou por me oferecer sociedade. Andei a pensar no assunto e acabei por aceitar. Quando entrei, desenvolvi muito aquilo porque começamos a vender biscoitos através do armazéns de vinhos onde eu tinha trabalhado, levavam vinho e biscoitos. Teve um sucesso muito grande. Convidei um outro irmão meu, o José, para vir trabalhar connosco. Ficámos os três. Depois, com algumas alterações, eu e o meu irmão fomos estabelecermo-nos por nossa conta, em 1978. Fomos para uma padaria chamada Marques. Era uma padaria que fazia pão, mas nós é que fomos utilizá-la como biscoitaria. Começamos a fazer só biscoitos. Tirámos um alvará como biscoitaria.

Em função das exigências da fiscalização, era necessário fazer obras. Como o imóvel não era nosso, propusemos a compra ao senhorio. Mas como o valor era muito alto, acabámos por desistir da ideia. Foi aí que comprámos este terreno e fizemos aqui a biscoitaria em 1991. E aqui ficámos, a nossa biscoitaria é a Joneves.”

M. Lina Castro Neves 91 anos VALONGO

“Dizem que a farinha vinha de Campo, de Couce, havia lá muitos moinhos. Mas também se comprava farinha às fábricas que existiam na região. Havia a fábrica Vitória, também se comprava farinha à fábrica Ceres, à Harmonia, a uma que ficava para os lados da Maia e a outra que ficava no Marco de Canavezes. Mas não se podia comprar farinha sempre que se queria, tinha de ser autorizada com uma guia, não se podia fugir a isso. Era o Grémio que definia quanta farinha se comprava e quanta. Era o Grémio da Panificação do Porto. Nós tínhamos um mapa para escrever a farinha que se gastava durante o dia, tinha de se apresentar aquilo à fiscalização, caso aparecesse. Em 1975, tomei conta disto e, nessa altura, já não havia isso, mas antes era assim. Ainda me lembro de ter a carta e de ir levar os sacos da farinha à fábrica Vitória, nós tínhamos de devolver os sacos de sarapilheira à fábrica. De outro modo, os sacos tinham de ser pagos. Nós tínhamos que nos cingir à farinha que vinha. Eu nasci no fim da guerra, em 44, mas eu lembro-me que para se ter açúcar para os biscoitos tinha que se requisitar. Nós tínhamos açúcar moído e tinha que se requisitar. Depois, é que mudou depois de 75.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“A farinha de trigo vinha das moagens grandes. Mesmo no tempo do meu pai já era mecânica. A farinha americana era muito boa, mas era proibido usá-la. Era uma farinha diferente, muito branquinha e muito fininha, tinha mais glúten. Essa farinha usava-se na regueifa, era mais cara e era melhor de qualidade. Era difícil o acesso, mas conseguia-se.

Foi sempre assim, havia pessoas que tinham o controlo da venda da farinha. Não era o Grémio, eram pessoas particulares. Havia dois, chamavam-lhes os Depositários de farinha. Havia pessoas que só compravam 3 sacos ou 5 sacos, e não havia necessidade de irem ao Porto comprar só 3 ou 5 sacos de farinha. Então, iam buscar um carro de bois cheios de sacos de farinha e as pessoas faziam-lhe encomendas. E com as guias que a tal Federação Nacional dos Industriais da Moagem lhe dava eles iam buscar e, depois, entregavam a quem tinha feito as encomendas. Salvo erro, levavam um escudo por cada saco para o lucro e para o transporte. Primeiro era em carro de bois, mas depois passou a ser em camionete. Iam carregar à moagem Vitória que era no Vale Formoso, havia a Ceres, havia a Harmonia e havia uma outra no Palácio do Freixo. No tempo da guerra, precisava-se de muito mais farinha e havia a candonga. E numa ocasião, o meu pai conseguiu comprar

12 sacos de farinha, cada um de 75 quilos. Eles carregavam aquilo às costas para a camionete. Eram 900 quilos. Passado uns dias, aparece lá a fiscalização. Quando viram a farinha perguntaram pela fatura, o meu pai não teve como apresentar porque não tinha. Então, eles selaram toda a farinha com um fio à volta dos sacos e avisaram «cuidado com isto, ninguém pode mexer nesta farinha» e autuaram. E a farinha ia para o lixo. Estiveram lá dois senhores, dois dias a escrever, a escrever papéis, papéis. E, depois, o meu pai conseguiu que a farinha fosse libertada. Quando foi para libertar a farinha, foram lá os mesmos e disseram com um ar zangado «o senhor conseguiu, foi tratado como um menino, uma criança!» E lá tiraram o lacre. Foi através de um parente de Valongo que trabalhava no Grémio dos Padeiros. Foi um favor naquela altura.

A farinha de milho que usávamos aqui para os biscoitos de Milho era farinha moída por aqui. Havia muitos moinhos para moer o milho. Não seria todo o milho produzido por aqui, algum era, mas outro vinha de fora. O meu avó teve campos para produzir milho, mas o meu pai, não. Era uma quintinha.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“O pão que fazíamos na padaria era de trigo, eram moletes, sêmeas, regueifas, tosta doce e a tosta azeda. Faziam-se aqueles vergões para depois fazer a tosta.

A farinha vinha das fábricas, ora da Granja, ora do Marco, tudo dependia do que mandavam nas guias. O Sr. Castro é que nos dava as guias, era no Grémio que nós íamos levantar as tais guias.

A farinha vinha em carros de bois, eram fretados aos lavradores para ir buscar a farinha. Eram amarelos com uns cornos bem elevados. Andavam a fazer carretos, também eram eles que vinham buscar a lousa.”

“No meu tempo fazia molete, sêmea, regueifa, tosta e cheguei a fazer carcaça. Ia buscar a farinha ao grémio, só a partir do 25 de Abril é que já se podia comprar a farinha onde se quisesse. Há muitas histórias do tempo em que não se comprava farinha onde se queria, era onde era determinado pelo Estado. E, durante o tempo da guerra, houve tanta falta de farinha que até foi proibido fazer regueifa. Apesar de tudo, nunca faltou a farinha, houve um tempo em que se arranjava uma farinha que vinha da América. Muito fininha, muito branquinha, era muito boa. Mas não era legal, mas sempre se arranjava.

No meu tempo, a fábrica que eu mais gostava era a Moagem Panificação do Norte, tinha a cisma de que era melhor. Esta farinha ainda era chamada de 1ª e de 2ª, mais tarde veio a extra, depois a especial que era para as carcaças. Ultimamente, já era segundo o Tipo, eu usava a tipo 65. Acabaram as outras designações. A partir de certa altura, os fregueses começaram a não querer sêmeas, e eu deixei de cozer. Só gostava de uma qualidade, era para o molete e para a regueifa, era o tipo 65.”

António de Sousa Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“Quando os industriais precisavam de farinha, tinham de ir buscar as guias. Tinham de ir ao José castro Neves, era funcionário do Grémio, vivia na rua Sousa Pinto. Depois, com essas guias é que podiam levantar a farinha. O meu pai era chefe do setor da Distribuição de Farinhas. Mensalmente, eles distribuíam pelas fábricas a farinha. Naquela altura, as mais importantes, era a do Fomento, da Panificação, Ceres, Águas Santas, Amorim Lage (Milanesa), Senhora da Hora, Vitória.

O trigo era sobretudo importado. Havia algum do Alentejo, mas sobretudo era da América. Havia quotas de importação. Os industriais da panificação procuravam muito o trigo da América, diziam que era muito boa. Depois da guerra, vinha da América, para as escolas e para outras instituições, leite em pó, farinhas. E quem recebia a farinha dava a farinha aos padeiros e recebia em pão. Havia uma permuta, os industriais recebiam a farinha e davam o pão. E, por vezes, aproveitavam esta farinha para outras coisas já que tinha uma qualidade extraordinária.

Cada padaria pedia a quantidade que necessitava. Só em determinadas alturas é que houve racionamentos, e aí existiu mercado paralelo. Numa situação normal, não havia limite.”

“Os meus avós paternos e os meus avós maternos eram padeiros. Eu sou neta e filha de um lado e do outro. Quando o meu pai casou com a minha mãe foram trabalhar por conta deles.

O moleiro só trazia a farinha de milho. Os moleiros só moíam o milho, a farinha de trigo vinha de fora. O negócio do meu bisavô era o trigo que vinha da América. Ele, coitadinho, era boa pessoa e vivia muito bem e comprava o trigo da América, depois não ficou bem da cabeça porque fizeram uma trafulhice. Ele não devia nada, mas depois dessa trafulhice até vendeu uns terrenos para saldar a dívida.”

“OS MEUS AVÓS PATERNOS E OS MEUS AVÓS MATERNOS ERAM PADEIROS. EU SOU NETA E FILHA DE UM LADO E DO

OUTRO.”

Teresa Duque

“Para o pão, a farinha vinha das fábricas, fazíamos as sêmeas e o molete, era a quatro tostões. E fazíamos carcaças de quatro pães e carcaça de dois pães. Era como o molete antigo, era como uma boneca. As carcaças eram todas lisinhas, mas rasgavam antes de entrar para o forno.

A sêmea era redonda, era de quilo ou meio quilo. Havia a farinha de trigo fina branca, que era para o molete e para a regueifa, e a farinha de trigo para a sêmea, que era o pão dos pobres. Eu vendia sêmeas na barraca que tinha no Bolhão, as operárias que trabalhavam numa fábrica de tecidos por detrás da capela das Almas no Porto, iam lá comprar as sêmeas. Vinham à hora de almoço comprar meias ou quartos de sêmeas. Antes, era o pão dos pobres, hoje é o pão dos ricos.

As Arrufadas existem há coisa de 70 anos. Primeiro eram os Bicos de Pato, a minha sogra e a minha cunhada, Margarida Moreira das Neves, é que começaram a fazer. Eram pintados com manteiga. Depois, começaram a evoluir para as Arrufadas, com açúcar e sem açúcar. A minha mãe oferecia um bico de pato aos miúdos, eles estavam sempre à espera de um bico de pato. Tudo o que se fazia na padaria era só com trigo. Que eu me lembre, era só trigo. Não comíamos broa, comíamos só pão, eram as sêmeas. O milho que o meu avó produzia era para os animais.”

M. da Purificação Matos

Ferreira Soares Ribeiro 74 anos

VALONGO

“Quem fazia pão, não fazia biscoito. Os meus pais faziam o Molete, a Sêmea, a Regueifa e a Tosta. Era o que havia na altura. O molete é um pão de trigo pequeno. A sêmea já tinha cerca de meio quilo, o equivalente a 4 pães. A sêmea não era uma farinha tão fina como a do molete, levava um bocadinho de farelo, chamávamos a farinha amarela porque ela ficava amarelinha. Era um pão oval com uma risquinha no meio. Era muito boa, mas deixou de se fazer. Depois, começou a aparecer a carcaça. No início, fazia-se o tal crescente e aí sim, abençoavam a massa, diziam «Deus te levede e Deus te acrescente». Era uma gamela grande onde se amassava a massa. Mas, lembro-me de deixarmos de usar o crescente e passarmos a usar fermento de padeiro. Assim como também começámos a usar as amassadeiras e as divisoras. O que se vendia mais eram os moletes. Todos compravam moletes. Havia muito gente pobre e alguns ricos. Havia muitas famílias que iam no dia seguinte comprar o pão seco, porque era mais barato. No tempo da minha meninice havia gente muito pobre que trabalhava nas minas e nas fábricas. Esses tinham muita dificuldade e compravam as sêmeas. Havia famílias bem ricas que eram proprietários, tinham propriedades. Havia um fosso entre os muito que eram pobres e os poucos que eram ricos.

A regueifa sem os feitios era vendida aos domingos, mas nos dias de festa, como Natal, Páscoa, S. João em Sobrado ou Senhora das Necessidades, faziam – se os feitios para a regueifa. Havia um puxo como o das senhoras, a palma, o esse. Eram os «feitiços». Era um trabalho miudinho, de muita minúcia. A regueifinha toda enfeitada era sinal de que havia festa, era o pão que acompanhava a refeição nesses dias, era um pãozinho melhor. Na Páscoa, era a prenda para os afilhados, eram aquelas regueifas enormes que os miúdos enfiavam pelo braço, iam todos contentes. De resto, sem feitios, vendia-se ao sábado, ao domingo estavam as padarias fechadas. Na festa de São João de Sobrado, havia a tradição de fazer uma regueifinha pequeninha de Cornos, era toda recortada. Era tradição em Sobrado. Deixei de ver.

As famílias ligadas à panificação viviam um bocadinho melhor. Em minha casa, nunca faltou o pão. Comíamos broa de milho que o meu pai fazia só para nós, não vendia. Ele tinha um amigo que só fazia broa e eles tinham um pacto, um só fazia trigo e o outro só milho. Esta broa de milho era branco e fazia-se com mistura de trigo. A nossa broa durava quase 15 dias.”

SUZÃO

“As regueifas só se comiam pelas festas, no dia-a-dia era o pão de milho, era um pão mais barato e o trigo era mais difícil de conseguir. Tinha que se ter as senhas para levantar a farinha. Por isso, a maioria das pessoas, por aqui, comia broa, poucas eram as vezes que comiam pão de trigo. Aliás, até os meus pais virem tomar conta da padaria, só se vendia broa de milho, depois, é que o meu pai começou a fazer pão de trigo e as pessoas habituaram-se a ter pão de trigo para além do de milho. As pessoas queriam mais as sêmeas. Também aconteceu que, antes, as pessoas estavam habituadas a ter pão só duas ou três vezes por semana e, de repente, começaram a ter todos os dias. Havia muita gente que tinha forno em casa e que fazia pão de milho em casa, havia gente que usava o forno umas das outras para cozer a broa. Por isso, antes, as pessoas comiam mais pão de milho e menos de trigo. Só comiam quando vinham cá vender. Com a chegada dos meus pais, as pessoas começam a habituar-se ao pão de trigo, aos moletes e às sêmeas. Os meus pais tinham de ir ao Porto pedir as senhas e com as senhas ia-se à fábrica junto a Águas Santas. Sem as guias não se conseguia levantar a farinha. Uma outra coisa importante é que a farinha não saía da fábrica sem ficar um tempo à espera, em repouso. Não podia vir quente, tinha de descansar.

As regueifas eram só para dias de festas. Era no Natal, na Páscoa e aos domingos. A regueifa dos feitios era só na Páscoa e no Natal. Anda fazemos muita regueifa, agora. A massa é sovada,

é passada entre rolos para tirar o ar todo. A massa é mais seca do que para o pão, retira-se a humidade ao sovar a massa. Também fazemos a Regueifa Doce, isso já é uma coisa mais moderna. O nosso fabrico é todo de noite. Depois, mais tarde, os meus pais começaram a fazer Tosta. Contudo, aqui não havia tanta procura como em Valongo. As pessoas queriam era o pão. À segunda-feira, vinham buscar a Regueifa porque era mais barata. Vendia-se a que tinha sobrado. E a Regueifa aguenta muito bem. Nessa altura o pão era a base da alimentação. As pessoas quando levavam pão, levavam 15, 20, chegavam a levar aos 40 pães, porque o pão era um elemento essencial.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da

VALONGO

“Era tudo amassado à mão. Era o meu pai, os meus tios e até nós amassávamos o pão! As gamelas tinham aí 3 metros cada uma, eram duas gamelas. Ficava sempre um bocadinho de massa na gamela e, à tarde, fazíamos os crescentes com aquele bocado. Fazíamos as massas do pão com aquele crescente, à noite, a gamela estava cheia. Tinha-se por hábito, depois de fazer os crescentes, de polvilhar, fazer uma cruz e dizer «São Vicente te acrescente, São Mamede te levede». O pão era tendido à mão. Dava tudo muito trabalho. Mais tarde, já o meu pai comprou uma máquina mecânica para amassar e também já tínhamos uma divisora. Nas sêmeas usava-se farinha de segunda, era de trigo, mas não era tão fina. Havia sêmeas de meio quilo e de quilo. Eram redondas,

antes de ir para o forno dava-se um corte para ficarem arreganhadas. Eram mais baratos que os moletes, por isso, vendiam-se bem.

A regueifa já requeria farinha especial, era mais fina e mais branca. Para a regueifa tinha de se fazer uma massa mais dura, e depois metia-se no cilindro e era sovada muitas vezes, até que se enrolava e ficava um rolo. Depois, era cortado, e faziam-se as regueifas. Enrolava-se e fazia-se a rosca da regueifa. Na Páscoa, decoravam-se as regueifas. Na tromba da regueifa, em cada peso punha-se um feitio diferente. Na de 5 quilos era uma pinha feita em massa, na de 3 quilos era uma regueifa, na de 4 quilos era um sardão, noutras era uma pomba. Depois, de lado, todas levavam tranças. Mas era só na Páscoa, era o que se dava aos afilhados, lá iam eles com as regueifas ao ombro. De resto, também se fazia regueifa ao sábado, era para o fim de semana. Vendiam-se aqui à porta.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos VALONGO

“Havia um tempo em que se fazia muita Sêmea Negra, eram pães de meio quilo, mas também se chegou a fazer de quilo. Tínhamos farinha de 1ª e de 2ª. A primeira era para moletes e a segunda era para sêmeas, era um bocadinho mais escura. Chamava-se sêmea negra porque a farinha era mais escura. Eu só fiz moletes, regueifas, sêmeas e tosta. No tempo dos meus avós faziam-se os moletes, cada um tinha 70g de massa. O meu avó também cozia Regueifa. No tempo dele a massa era sovada num sovador que era puxado à mão, só mais tarde teve motor. A massa da regueifa é dura e

tem de ser passada pelo sovador. O meu avó só fazia a regueifa redonda, não havia o hábito de fazer a roca. Mas eram fornadas pequenas, as que ele cozia, o forno tinha só 15 palmos.

Houve uma época em que vinha uma outra qualidade de farinha, e então fazia-se a carcaça que era entre a farinha de molete, que também dava para fazer regueifa, e a farinha da sêmea. Era uma farinha um pouco mais escura com a qual se fazia a carcaça, mas não tão escura como a sêmea. Era um pão mais comprido, a sêmea era redonda e a carcaça era um pouco mais comprido um bocadinho, tinha os biquinhos na ponta. Mas, isso já veio mais tarde, o meu avó nunca fez carcaças.

A regueifa azeda era feita no fim de semana e na Páscoa, na Páscoa eram as regueifas grandes, o máximo era de 5kgs, estas levavam feitios. Até 2kgs não punha feitios. Os feitios eram tranças, eram 3 bocados de massa que se entrelaçava, a pinha, a palma. Havia outros que faziam mais coisas. Havia quem fizesse uma regueifa pequeninha. Em vez da pinha, na orelha que é onde se fecha a regueifa, havia quem pusesse uma regueifa pequeninha.

O meu avó contava do tempo em que não havia fermento, daquele que vinha em pacotes. Tinha-se um bocado de massa que se tinha tirado do dia anterior, juntava-se um bocado de farinha, fazia-se uma barroca, punha-se um bocado de água sem sal e aquilo estava ali, horas e horas, até crescer. Era o crescente. O meu avó contava, isso já não é do meu tempo. Tirava-se sempre um bocado de massa para, no dia seguinte, fazer o crescente. Demorava umas 5 a 6 horas a ficar levedo. Quando estivesse pronto amassava-se o pão com farinha,

água, sal e o dito crescente. Punha-se a massa a levedar, fazia-se uma cruz, botava-se um cobertor ou dois. O meu avó tinha lá um lote de cobertores para ajudar a massa a levedar, o pão era feito com tempo até levedar. Depois fazia-se o pão, tendia-se e tinha de se esperar mais um bocado até ele crescesse. Quando era no Inverno, o pão demorava mais e tinham de ser cobertos com aqueles cobertores. Isto era o que contava o meu avó. Quando era no tempo em que eu já estava com o meu avó, na mesma ele fazia o crescente, mas já deitava um bocado de fermento, pouquinho. Foi indo, foi indo, até que deixámos de fazer o crescente. Eu, quando tomei conta, ainda fiz muitos anos crescente, mas depois deixei de fazer. Botava direto o fermento. Depois, vieram as máquinas para dividir o pão e também se deixou de fazer à mão.”

António de Sousa

Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“As padarias tinham de trabalhar de noite, não podiam trabalhar de dia, era proibido. O preço do pão também era tabelado. A margem era diminuta, por isso, muitas vezes, os padeiros tentavam tirar mais rendimento. Uma das maneiras era roubar ao peso, outra era o pão ser malcozido para ficar mais pesado porque tinha mais humidade. Então, a fiscalização vinha, pegava em 10 pães e deitava à balança, se não desse o peso certo levavam o pão para análise para ver o teor de humidade.”

António de Sousa

Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“Os afilhados, pela Páscoa, recebiam uma regueifa azeda ou doce. O meu irmão tinha todos os anos duas encomendas de uma regueifa de 7kgs, e não era maior, porque depois não passava na boca do forno. Faziam-se inicialmente nas padarias a regueifa azeda e nas biscoitarias faziam a regueifa doce. Os feitios eram a pinha, a palma, a regueifa, o sardão.”

Serafim Ferreira das Neves 83 anos VALONGO

“De uma massa ficava um restinho, era o isco, depois, com o isco fazia-se uma massa maior a que se chamava crescente. Era o crescente que ia fermentar a massa do pão, era o que ia dar levedura à massa. Depois, dessa massa nova, ficava novo isco para fazer novo crescente. Ainda sou desse tempo. O trabalho do pão era um trabalho sequencial, nunca acabava. O pão era muito saboroso que agora. No Diogo, fazíamos uma massa muito boa, eram as sêmeas, estavam oito dias e não ganhavam bolor. Eu gostava muito da sêmea, era o pão de segunda, a peneira era mais larga, deixava passar mais farelo. Na Páscoa faziam-se Regueifas muito grandes, era até caberem na porta do forno. Às vezes, entravam tortas para caberem. Os feitios da Regueifa eram as trancinhas, a palma, a regueifinha, o boneco. Também se vendia regueifa na estação de Valongo.”

“No tempo da guerra não havia pão! Nós tínhamos pão, não faltava pão na nossa casa até tínhamos demais. E eu ia à sêmea, eram aquelas sêmeas grandes branquinhas e eu cortava um pedaço de sêmea. E a minha mãe perguntava «tu vais comer esse pão todo?» Eu respondia, «como, como!» E eu nem o provava. Metia o pão no saco e, quando chegava à escola, pareciam formigas a agarrar. «Dá-me uma bucha! Dá-me uma bucha!»

Chamava-se uma bucha… e eu dava a quem pedia. Quando ia para a mestra pegava numa mão cheia de raleiro e, em vez de ser para eu comer, eu dava à mestra, coitadinha, que era uma velhinha que dava mestra e dava, também, às da doutrina.” A TOSTA

M. Lina Castro Neves 91 anos VALONGO

“A Tosta Azeda leva farinha, sal, água e fermento. Quando era para o pão, a massa tinha de ficar mais mole. Para a tosta, tinha que se deitar mais farinha. E tinha que se sovar para a massa ficar completamente lisinha. Depois, era enrolada, esticada e cortada para ir ao forno. A Tosta Doce leva os mesmos ingredientes, mas também se junta açúcar e manteiga. Sempre se fez esta tosta.”

M. da Purificação

Matos Ferreira Soares Ribeiro 74 anos

VALONGO

“A regueifa era uma rosca, era redonda e entrançada. Levava a farinha mais branquinha, era mais refinada. A tosta era feita com a farinha da regueifa. Era só farinha de trigo, água, sal e um bocadinho de fermento. Fazia-se o cacete em massa, o vergão, que era todo partidinho. Ia ao forno e voltava ao forno, era recozido, para ficar duro. Quando saía do forno, tinha de ser descascado, tiravam-se as fatias e voltávamos a mandar ao forno. Depois, tinha uns tabuleiros grandes onde se punham as fatias para irem novamente ao forno. A tosta era toda descascada, até dizíamos «vamos descascar a tosta». Depois, punha-se uma a uma para ela ir tostar. E fazíamos a mesma coisa na tosta bebé. Fiz muita. Fazia-se um vergão mais pequeninha. Esta seria a tosta azeda. A Tosta Doce era mais dos biscoiteiros. Às vezes, fazíamos só para nós. Assim como a broa, fazíamos só

para nós. Comíamos a tosta azeda com chá ou com café, era uma delícia. Púnhamos um bocadinho de manteiga e, depois, levávamos ao forno. Ficava tipo torrada. Não havia muita facilidade no acesso à manteiga. O meu pai vendia pão ao balcão, aqui em Valongo e, depois, ia a Fânzeres, Gondomar, e a Sobrado, onde vendia a mercearias. Recordo-me de a manteiga começar a aparecer já eu era crescidita. Recordo-me de que a senhora ao lado, da biscoitaria, fazer uns pãezinhos, chamava-lhe umas Bicas. Eram um pão oval feito com farinha, sal, água, canela e açúcar. Antes de irem para o forno eram pinceladas com um sebo que se comprava nos talhos. Era muito fofinha por dentro e tostadinho por fora.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“A tosta azeda fazia-se com a massa da regueifa, só que em vez de ser feita em regueifa, era feita em vergões, cortados em cru e que iam ao forno. Depois dessa primeira cozedura, a tosta tinha que ser debulhada e posta em tabuleiros para ir outra vez ao forno para tostar de um lado e do outro. A tosta azeda é bom para tomar com café, vendia-se muito. A Tosta Doce, é uma massa mais mole, é da regueifa doce. Fazíamos regueifas doces pela Páscoa, fazíamos regueifa doce e regueifa azeda. A massa da regueifa doce também levava farinha, açúcar, manteiga, canela, fermento e água doce. Era água com açúcar. Esta regueifa era

uma massa mole, não ia ao sovador. A tosta doce era feita de massa da regueifa doce, feita em vergões, mas já não se partia antes de ir para o forno. Só depois de ser cozida e arrefecida.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos Maria Olinda Barbosa da Rocha 78 anos VALONGO

“Os meus avós faziam Tosta Azeda. Era com a massa da regueifa. Do tempo do meu avó, fazia-se o vergão, era a massa da regueifa, depois, pegava-se na faca e cortava-se às tirinhas, e ia ao forno. Depois de estar cozido, tirava-se do forno, deixava-se arrefecer e descascava-se a tosta. Punha-se em tabuleiros e voltava ao forno para tostar aí 1h ou 1,30h. A tosta mais moderna, era o mesmo vergão, mas mais fino e era cortada à máquina já depois de cozida. Enquanto a outra era cortada em crua e partida à mão. Uma coisa é certa e eu lhe garanto, a mesma massa, o mesmo forno, a mesma hora, a tosta cortada em crua e a tosta cortada à máquina, se a comer, ela é totalmente diferente, a cortada à mão é bem melhor.

As minhas máquinas eram todas da mesma empresa, Artur Henrique Coelho. Eram todas de V. N. de Gaia. Foi aí que o meu avó comprou as primeiras máquinas. Aqui não havia nada.

O Bico de Pato não é do tempo dos meus avós, não se fazia nada disso. Das arrufadas já se ouvia falar, mas o meu avó não fazia.”

Eduardo Ferreira de Sousa 69 anos VALONGO

“A Tosta Rainha foi dedicada à Rainha D. Amélia”. “É uma certeza para a Paupério que a tosta rainha se chama assim em homenagem à rainha D. Amélia, que inspirou a fábrica a produzir um tosta doce especialmente para ela, por ocasião de um banquete no Porto. Nessa visita à cidade Invicta, em 22 de Maio de 1886, D. Amélia de Orleães, duquesa de Bragança, e casada com o príncipe herdeiro D. Carlos, era ainda uma princesa. A tosta mudou o nome para “rainha” assim que D. Amélia subiu ao trono, em 1889. Todavia é também possível que a tosta rainha tenha sido produzida para uma anterior rainha. D. Maria Pia de Sabóia, uma vez que a Paupério já existia durante o reinado dela. D. Maria Pia visitou várias vezes o Porto, podendo a produção da tosta ter sido feito para ela também.”1

Teresa Duque VALONGO

“A gente fazia um vergão grosso a feição do que queria para as tostas. Depois, pegava-se nele e punha-se no tendal para levedar. Pegava-se e punha-se na pá para meter ao forno para cozer e, só depois de sair de cozer, depois de estar frio, é que a gente desbulhava e punha nas folhas uma a uma para ir ao forno para tostar. Para a tosta bebé, faziam-se os vergões em ponto estreito, que era a feição de como

ficava as tostinhas. E cortava-se na mesma tudo com a faca em bocados pequeninos que era para depois quando se desbulhava ela já estava no tamanho. Era pequenino, não podia ser grande tinha de ser pequenino. E a que era para ser cortada com a faca, os vergões eram cozidos lisos e depois com a faca é que nos cortávamos e ficava diferente. As desbulhadas ficavam de uma maneira e as cortadas com a faca ficam de outra. Coziam-se, tiravam-se do forno e despejavam-se para a gente vender. Vendíamos aos quilos, tínhamos pessoas que iam comprar para tornar a vender. E nos pesávamos até numa balança grande logo aos quilos.”

1 MOTA, Dora e MOREIRA, Paulo Caetano – O nome do biscoito é Paupério. Valongo : Paupério Distribuição Lda. p.243.

91 anos VALONGO

“Não havia Biscoitos!

Chamavam-lhes eles, não sei se aquilo era doce ou azedo, eram os tirones. Era uma coisa grossa, redonda, como os biscoitos de milho, era uma espécie de massa enrolada que ia ao forno e ficava rijo. No tempo do meus bisavó, eram os tirones. Só depois é que começaram a fazer os biscoitos, começaram a fazer fidalgos. Ainda sou do tempo em que não fazíamos assim muitas qualidades. Nunca fiz a francesa, nem biscoitos de milho. Fazia bonecos, fidalgos, biscoitos de limão, cerveja, estes faziam-se com a mesma massa dos bonecos, mas eram só uma tirinha, digestivos, barcos, queques, mas nunca fiz milhos ou cacos.

A massa do biscoito é farinha de trigo, manteiga, fermento de padeiro, amoníaco, açúcar. Os biscoitos, os fidalgos, os de cerveja, era tudo a mesma massa. Ficava uma massa muito dura, depois tinha que ir ao sovador para ir alisar. Quando estivesse lisinha, tinha de se estender muito fininha e, com umas formas, cortavam-se. Para os Fidalgos tinha de se estender a massa, cortar aos rolinhos e, cada rolinho, era estendido e dobrado. Mais tarde, vieram os biscoitos de limão. Fazem-se com 6 ovos inteiros, açúcar a gosto, farinha de trigo, limão, amoníaco, fermento e sal. Bate-se tudo muito bem batido com a mão. Não tem peso a farinha, vai-se metendo conforme é necessário. Tem de ficar um bocadinho mais duro que um bolo. Leva meia

colher de sopa de fermento e outra de amoníaco. Depois, põe-se em cima de papel vegetal e vai ao forno. Usávamos banha do porco para untar as folhas dos biscoitos. Ainda me lembro de derreter aquele redenho e meter na sêmea quentinha, era cá um gosto! Os fidalguinhos eram tão bons. E os biscoitos de limão! Tão bons que eram.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“As receitas que usamos são as mesmas do meu avó. Fazemos os Torcidos e os Malfeitos que levam manteiga, ovos, raspa de limão, farinha de trigo, açúcar. Também fazemos os Digestivos, neste pomos farinha, manteiga, fermento, sal e água. É a mesma massa da Tosta Azeda. A Tosta Doce é igual mas leva canela, açúcar, farinha, fermento e ovos. A Bolacha Francesa leva pouco açúcar, farinha e manteiga. Nesta, não se juntam ovos, nem fermento. Os Fofinhos levam açúcar, coco, farinha, manteiga, ovos e fermento. As Roscas fazem de maneira igual só juntamos mel.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“Havia vários tipos de biscoito. Morgadinhas, Napolitanos, Castelá, Tolentina, Açoriana, Champanhe, Crespos, Patusquinhos (de Côco), Biscoitos de Cerveja, Tosta Rainha que foi uma tosta diferente que a Biscoitaria

Paupério fez para oferecer à Rainha D. Amélia quando ela veio a Valongo, Amendoados, Limão, CorreNina, Sortido, Palermos, Biscoito de Milho, Biscoito de Vinho, Vianinhas, Rosquinha Inglesa, Bolo Branco, Malfeitos, Línguas de Gato, Paciências, Fidalguinho, Bolacha Francesa ou Cacos, Torcidos, Baunilhados, Baunilha, Familiares, Palito de Amêndoa, Sonhos, Biscoito de Mel, Digestivos, Araruta. O meu avó fazia o Biscoito de Milho, feito com farinha de milho e de trigo. Se fosse só milho, desfazia-se todo. A receita pode levar ovos ou não levar, não sei se o meu avó punha ovos. Da massa do Fidalguinho, o meu avó fazia o Valonguense, Biscoito Miúdo, Biscoito Miudinho e o Missanga. Era a mesma massa, mas com formato e tamanhos diferentes.

O Missanga era mais caro porque era muito mais pequeninho. Ele também fazia os Cacos, o Biscoito de Limão e os Torcidos. Julgo que ele também levava pão e regueifa para vender no Porto, era a parte mais importante, os biscoitos devia ser uma parte pequena. O meu pai é que já só levava biscoitos, porque o meu pai não quis padeiro, quis ser biscoiteiro, porque não queria ter de trabalhar de noite. O meu pai já quis escolher uma vida melhor.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“Trabalhávamos de noite no pão e, de dia, cada um ia fazer as suas entregas. Depois, vínhamos, tomávamos o pequeno almoço e começávamos com o biscoito.

O biscoito já vendíamos para as barracas do Bolhão. Mas era uma mulher que levava, já ia tudo aos pacotes. A minha mãe à segunda-feira e à quarta já ia saber das encomendas ao Bolhão. Quando não ia a minha mãe, ia o meu pai. Depois, ia a mulher naquelas camionetas valongueiras que levavam aqueles carregos, já tudo separado nas gigas. Punha-se e encomenda da freguesa e o papel por cima, já ia por ordem de entrega. No Bolhão, só vendia o biscoito, o pão só se vendia aqui à porta.

Os biscoitos Familiares tinham muitos feitios, a massa levava farinha, manteiga, ovos, açúcar, raspa e sumo de limão, fermento em pó. Era tudo por pesos e ficava uma massa mole, fácil de trabalhar. Os Torcidos amanteigados, fazia-se em dois fios de massa, cruzavam-se e fazia-se uma trancinha. Tínhamos um prato com açúcar, molhava-se assim de lado e ficavam areados. Os Patuscos eram umas bolinhas redondas de côco, elas no forno alastravam um bocadinho. Também levavam farinha, manteiga, ovos, açúcar, côco. Tínhamos as Cavacas, era a mesma massa dos patuscos, só que calcada e molhada no açúcar.

Tínhamos os Esses de canela, a massa como levava canela ficava mais escurinha. Tínhamos os Biscoitos de Milho, era farinha de broa misturada com farinha de trigo, ovos e açúcar. Desde que me conheço, aqui sempre se fez biscoitos de milho. A Rosca Inglesa levava farinha, ovos, açúcar, manteiga, mas não levava canela. Levava raspa de limão. Era uma massa mais mole.

Tínhamos os Areados, eram umas bolinhas calcadas molhadas em açúcar. A Rosca de Manteiga levava farinha, manteiga e açúcar, mas pouco. Era uma coisa que

levedava, ficava muito leve. Os Viseus, era tipo fidalgo, mas de apertar ao lado. Os Abaunilhados eram compridos, areados e com baunilha. Era mesmo baunilha. Os Frisados pareciam uma minhoca. As Canelinhas, eram umas bolinhas numa massa mais mole e passadas em canela, no forno abriam e ficavam como se fosse umas broinhas. Os Sonhos eram com uma massa como a dos rissóis. Os Brancos eram os de limão, eram batidos num alguidar, eram feitos à colher, eram ovos com açúcar e farinha. Parecia massa de pão de ló, eram tirados à colher. Uns eram só assim, outros eram cobertos com aquela massa branca feita com clara de ovo e açúcar moído. Cobriam-se por cima. Vendiam-se muito. Os Fidalgos levavam só água, açúcar, farinha e canela, é uma massa passada no sovador e feito à mão. Os Digestivos eram feitos de uma massa que levava farinha, manteiga, fermento e sal. Não levavam açúcar. As Princesas, eram um biscoito que só nós é que fazíamos, eram muito amanteigadas, eram umas argolas, era farinha, açúcar e manteiga. Tínhamos as Joaninhas, eram também muito amanteigadas. Os Caracóis era outra massa e que levava canela. Eram em formato de caracol. Tínhamos os Caramujos, eram enrolados como se fossem caramujos. Os de Cerveja eram amassados como as tiras, só que amassados com cerveja. Fazíamos Madalenas numas forminhas e uns coquinhos. No nosso balcão, tínhamos, de um lado, o depósito do biscoito e, do outro lado, o depósito do pão. Havia muitas mulheres a venderem biscoito por aí, andavam por conta delas. No tempo da praia vendia-se

menos biscoito, mas havia mulheres que iam vender para a praia. No tempo do meu avó já se fazia biscoito, mas era menos diversidade. Nessa altura, faziam-se os Familiares, os Digestivos, as Tiras, os Bonecos e os Patuscos.

O meu pai era uma pessoa carinhosa, todos os cachopos gostavam dele, vinham aqui os cachopos à porta e lá ia o meu pai dar dois biscoitos a cada um. Todos gostavam dele. Mas o meu avó também era uma boa pessoa. No nosso tempo, tínhamos sempre aqui rapariguitas a trabalhar, as mães vinham por aí no tempo das férias da escola e pediam ao meu pai para as deixar trabalhar. Nem era pelo dinheiro, era para aprenderem e não andarem por aí. Lá vinham elas e o meu pai punha-as a fazerem os trabalhos mais simples. Nos primeiros dias, elas traziam a comida para aquecer, mas a minha mãe quando via que elas o que tinham para comer era massa com massa dizia ao meu pai e ele, então, dizia às raparigas, «não trazeis de comer, comeis todas por aqui». No ano seguinte, lá vinham elas a querer trabalhar, o meu pai até dizia «isto parece a casa do Gaiato», umas diziam às outras, queria tudo vir para aqui trabalhar. Comiam todas à nossa mesa. Aqui em casa nunca se passou fome, bastava ter pão e ter biscoitos, já era um luxo. Eu ia para a escola, e tínhamos manteiga que vinha de Sobrado, vinha numas caixas em madeira, vinha embrulhada em papel. Eu ia para a escola e levava sempre dois pães quentinhos barrados com manteiga. A maior parte das vezes, era para trocar na escola, davam-me as penas da lousa e eu dava-lhes o pão. Eu sabia que quando chegasse a casa podia comer pão com manteiga.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos Maria Olinda Barbosa da Rocha 78 anos VALONGO

“Havia muitos padeiros que tinham pão e biscoito, mas, no tempo do Salazar, veio uma lei que ditava que, ou se fazia outra padaria para o biscoito, ou se fazia só pão. Houve quem tivesse feito outra padaria para cozer as duas coisas, mas o meu avó optou por ficar só com o pão. Mas, ainda me lembro de andarem lá pelas gavetas umas formas dos biscoitos. Era tudo feito à mão. Tenho uma ideia vaga de uma massa fininha que era cortada com uma régua, chamavam-se as Tiras. O meu avó fazia as Tiras, os Bonecos e a Regueifa Doce. Para a regueifa doce eram 4 kgs de farinha, 800g de açúcar, 200g de manteiga, 200g de fermento, 50g de sal, 5g de canela. Esta é a Regueifa Doce, mas eu nunca fiz.”

António de Sousa Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“Na Biscoitaria Valonguense, outrora, havia uma longa lista de biscoitos. Fazia-se as Tiras, eram uns Biscoitos que ficaram conhecidos como de Cerveja, os de Viseu, as Vianas, os Caramujos, os Bolos de Limão, os Biscoitos de Milho, a Rosca Inglesa, os Bonecos, os Torcidos, as Regueifinhas, as Missangas, as Canelinhas, os Fidalguinhos, os Digestivos, os Malfeitos, os Familiares, os Bolos Brancos, a Bolacha Francesa, os Baunilhados, os Florentinos, os Torcidos Areados, os Torcidos de Leite, os Torcidos de Manteiga, a Rosca de Leite, as Línguas de Gato, os Patuscos, os Queques, os Bolos de Côco, os Barcos e os Sonhos.”

Ana Gonçalves Pinto Pereira Barbosa 87 anos VALONGO

“Os meus pais eram José Gonçalves Pereira e Anunciação Pinto Gonçalves Pereira. Depois, a minha mãe faleceu e o meu pai casou com Laurentina de Sousa Ribeiro Gonçalves Pereira. Mais tarde, o meu irmão mais velho ficou com a padaria e o meu pai continuou com a biscoitaria. Fazia-se o molete, a sêmea, a carcaça, a regueifa, era o que faziam os padeiros. Os empregados é que faziam o pão, vinham fazer de noite. Durante o dia, faziam-se os biscoitos e tostas. Os formatos mais antigos eram os Bonecos, os Fidalguinhos, os Biscoitos de Milho, as Tiras. Antes, o que se punha era mesmo manteiga, não era margarina. Os biscoitos de milho levavam metade farinha de milho e metade de farinha de trigo, ovos, açúcar e manteiga.”

Eduardo Ferreira de Sousa 69 anos

VALONGO

“No início, Valongo tinha meia dúzia de biscoitos, eram os Fidalguinhos que eram conhecidos no Porto como Paupérios, os Biscoitos de Milho, até porque Valongo era uma zona de muita produção de milho. O Biscoito de Milho é muito antigo, nós fabricamos, na Paupério, desde o início e eu até acho que, algumas padarias, quando iam para o Porto vender o pão, já levavam Biscoitos de Milho para vender. Antes de ser biscoitaria, a Paupério enquanto padaria também fabricava, mas eram em pouca quantidade. Também sei que se faziam os Bonequinhos. A Paupério viu na qualidade e na inovação um meio de

desenvolver a empresa e, por isso, no início do século XX, tínhamos várias referências. Fazíamos Biscoitos Água e Sal, Maria, Fidalguinhos, Biscoitos de Milho, Rosca Inglesa, Torcidos, Ararutas. Estes biscoitos eram feitos com farinha de araruta, proveniente do Brasil, havia um importador no Porto que era onde íamos buscar essa farinha. Segundo os médicos da altura, esta farinha fazia muito bem aos problemas gástricos e, por isso, tinha muita procura. Não tinha manteiga, não tinha açúcar, era uma liga dura, tão dura, que por vezes partia o braço da masseira. Depois, deixámos de fabricar quando fizemos a modernização da fábrica. Tínhamos as Sugar Wafers ou Baunilha, a Tosta Rainha que é do tempo da Rainha D. Amélia, a Tricana, a Oriental, os Lusangos e o Limão. Fazíamos a Francesa, era uma bolacha que, inicialmente, chamavam Cacos. Parte do fabrico era manual e a Francesa era uma das bolachas mais procurada. Hoje, é uma das bolachas que adquirimos aos nossos parceiros. Quando deixámos de ter fabrico manual e as Francesas passaram a ser feitas à máquina foi um desastre, pois as pessoas queriam aquele biscoito tosco, com o serrilhado da régua, queriam notar que era manufaturado! Era a mesma massa, a mesma textura, o mesmo sabor… mas os olhos comem tanto! Diziam que já não era a mesma coisa, e então nós continuámos com a Francesa, mas quando nos pedem Cacos vendemos os que são feitos pelos nossos parceiros. Tínhamos os sortidos feitos com estas qualidades e tínhamos o mesmo sortido com cobertura de chocolate. Aos biscoitos sem chocolate, chamávamos Biscoitos

Finos e, aos com chocolate, chamávamos Sortido Fino. Os Biscoitos Finos eram um bocadinho mais pobres que o Sortido Fino. Tínhamos também as Letras. Cada biscoitaria tinha os seus formatos para além dos biscoitos que todos faziam. E nós fomos inovando com formatos e receitas diferentes sendo que, algumas acabaram por ser descontinuadas por via da mudança dos tempos e dos gostos. Foi o caso de um Biscoito que tivemos chamado «Mocidade» feito para homenagear a instituição Mocidade Portuguesa. Outro exemplo, foram os «Legionários» que surgiram para homenagear a Legião Portuguesa. Ao longo da história da empresa há biscoitos que tiveram de mudar de nome, pois que eram épocas em que determinadas designações eram mais toleradas que outras. Em 1954, o catálogo da empresa apresentava a Bolacha de Chocolate, a Sugar Waffers, os Suíços, a Araruta, a Araruta Triângulos, os Florentinos, os Bolos de Coco, a Princesa, os Parisienses, a Petit Beurre, as de Leite, Rosquinhas de Manteiga, as de Canela, a Bolacha Húngara, os Baunilhados, as Delícias, a Oriental, a Maizene, as Champanhe, as Água e Sal com Leite, os Palermos Cobertos, a Tricana, os Biscoitos de Milho, a Imperial, a Mocidade, os Torcidos, as Morgadinhas, a Tosta rainha, os Provincianos, os Lusitanos, a Francesa, os Mignones, os Caramujos, os Biscoitos de Cerveja, a Tosta Doce, os Coloniais, os Príncipes, Biscoitos de Viseu, os Amendoados, os Biscoitos de Vinho, os Fidalguinhos, os Amanteigados, a Rosca Inglesa, os Palitos de Amêndoa, Maria, Água e Sal, as Línguas de Gato, Brilhante, o Valonguense, a Bolacha Popular e a Torrada.

A imagem sempre foi muito cuidada. As latas eram em chapa que nós forrávamos com papel a indicar qual a referência que ia no interior. O camião levava as latas novas e trazia as velhas para, depois, serem esterilizadas. Tirava-se o papel que tinham e voltava-se a colar o papel da referência indicada. As latas eram feitas em Vale de Cambra, ainda hoje trabalham para nós.

Sempre tivemos a ideia de que para promover a nossa marca precisávamos ter embalagens apelativas, até porque o nosso produto era um produto com valor acrescentado. Ficava acima da média, por isso, precisava de boa qualidade e de boa aparência. E nós continuamos com essa linha.”

Serafim Ferreira das Neves 83 anos

VALONGO

“Nós tínhamos as receitas que eram comuns a outras padarias, mas eu comecei também a experimentar receitas novas. A minha profissão sempre foi biscoiteiro, é o que tenho nos meus documentos de identificação.

No início, os biscoitos que existiam eram os Fidalguinhos, as Regueifinhas, os Torcidos, as Argolas ou Biscoitos

Valonguenses, embora hoje já não se use este formato. Tínhamos as Missanguinhas, que substituíam os confeitos nos casamentos, e os Mignones. A massa dos biscoitos levava farinha de trigo, manteiga, que era muito cara, a minha tia até costumava dizer «vós botais pouca manteiga!», açúcar, canela ou outro sabor. A manteiga vinha de Sobrado, eram umas senhoras que vinham cá vendê-la.

Nos Biscoitos de Milho, as mãos, para os fazer, têm de estar côncavas. Também fazíamos

os Biscoitos de Vinho, levavam mesmo vinho. Faziam-se as Tiras, mais tarde começaram a ser chamados de Biscoitos de Cerveja. Era uma massa que ia ao sovador e que era cortadas às tiras. Este biscoito, no início, levava banha, compravam-se as gorduras nos talhos e, depois, derretiam-se para fazer o pingue. Era o que se punha na massa das Tiras. Também havia os Cacos que era a Bolacha Francesa. Os de Limão, já eram feitos com uma massa mole que levava ovos e que tinha que ser bem batida. Ninguém os queria fazer, demoravam muito tempo a bater. O Doce Branco, que também se chama Cavaca, era muito famoso em Sobrado. Os Digestivos não eram como agora se fazem, eram maiores. Eram feitos com uma massa de pão à qual se juntava com manteiga. A Rosca Inglesa, ficava muito achatada. As massas não eram todas iguais. Não nos podemos esquecer dos Feitios, eram bonecos feitos a partir de uma massa espalmada. A massa para os fidalguinhos tinha de ficar mais dura, ia ao sovador. Houve muitos padeiros e biscoiteiros que meteram lá as mãos e ficaram sem dedos. Houve um miúdo que com 12 ou 13 anos acabou por ficar sem uma mão.

Quando comecei a trabalhar, os biscoitos eram vendidos em latas. Mandávamos fazer nuns picheleiros. Depois, forravam-se essas latas com papel branco e, finalmente, com um papel que fazia reclame à biscoitaria. Depois, passou-se para a embalagem de plástico. As latas levavam muito biscoito, eram mais para as mercearias, depois era vendido em cartuchos. Uma lata inteira ficava muito cara.”

Feitio

“O Bolo-Rei da Paupério nasce na fundação da empresa, ainda na monarquia. É uma receita que já vinha desde a fundação com o meu trisavó. E, depois, do virar do século começou a ter uma venda muito forte. Chegámos a produzir mais de 20 toneladas nos quinze dias do Natal. O estratega era o meu avó. Os padeiros só podiam cozer pão, os biscoiteiros é que tinham alvará para cozer bolo-rei. Os padeiros não podiam, estavam interditos. Quando um biscoiteiro fechava portas, o meu avó ia e comprava o alvará. Por isso, a Paupério tinha o monopólio da

produção de bolo-rei. Também há que ver que a Paupério tinha a receita e os outros biscoiteiros não. O saber-fazer é uma componente importante das receitas e a Paupério tinha isso.

No início, o Natal era para o fabrico do bolo-rei. Nós vendíamos para o Porto, para o Norte e para o Douro. Mandávamos para Mirandela com oito dias de antecedência, tinha que lá estar ao dia 18 porque era a feira mensal de Mirandela. E as pessoas das aldeias vinham à feira e compravam o bolo-rei da Paupério e guardavam-no religiosamente nas arcas para servirem na noite da consoada. Era um bolo velho, mas não ficava duro porque nós

cobríamo-lo com muito açúcar e o açúcar ia-se entranhando no bolo e não o deixava enrijecer. Ai se as pessoas não tivessem o bolo rei da Paupério na noite da consoada!

Quando em 1910 se deu a implantação da República, o gerente da altura que era o meu bisavó, Eduardo Carlos, assustou-se e achou que tinha de mudar o nome ao bolo. Passou a chamar, nesse ano, Bolo-Presidente. Não lhe chamou bolo-rei com medo das represálias, mas chamou-lhe Bolo-Presidente. Mas, depois descobriu que os republicanos eram como os monárquicos, queriam era comer o bolo. Continuou, por isso, a chamar-se Bolo-Rei.”

“O pão precisa do forno.”

O forno do pão é uma instituição milenar das civilizações herdeiras da cultura gastronómica do Mediterrâneo. A construção de uma estrutura fechada em abóboda com material adequado para a conservação do calor, terá revolucionado o modo de consumo do pão pela superior melhoria das suas caraterísticas organoléticas. Mais fofo, mais crocante, capaz de duplicar ou triplicar de tamanho. A atuação do calor, permitido pelo fogo, mas conservado no lastro e nas paredes, sobre a massa terá sido uma das importantes etapas na evolução do pão. Ainda, que na história da alimentação tenha servido para outras preparações culinárias, foi tão fundamental para a melhoria do pão que para sempre ficou conhecido como «Forno de Pão».

Em Valongo, os fornos do Pão terão tido um papel fundamental na afirmação da qualidade dos produtos ali produzidos, como o molete, a regueifa ou os biscoitos.

Se o saber-fazer associado à arte da panificação e da biscoitaria terá sido imprescindível, não menos terá sido o papel dos fornos do pão. Importa reter como o forneiro, habitualmente o elemento masculino da família, tinha de saber como lidar com o forno.

“Trabalhei na panificação desde o momento em que saí da escola. Era muito duro trabalhar com forno a lenha, aquecia-se com aquela queiró do monte e com carqueja. O meu forno levava 1100 pães. Tinha 5m de comprido. Agora metem-se os pães de uma vez no forno com aqueles tabuleiros, mas antes, eu metia tudo à pá. Conseguia meter 16 a 18 pães em cada pá. Como o forno era redondo, a primeira pá levava menos. Começava por 6 pães, depois 12, para fazer o redondo. Quando era mesmo em frente à porta do forno, já se conseguia pôr os 18 pães. Depois, tinha de se voltar a fazer o redondo do forno. Eles iam cozendo, tinham de se ir tirando à medida que estavam cozidos. Eu cheguei a cozer 5000 pães por dia. Quem fazia as pás era um carpinteiro aqui de Valongo, quando ele morreu passou para o filho. Quando o filho morreu, acabou isso tudo. Era o Américo Filipe, o filho. Com o calor do forno, a boca da pá ia ficando estalada, tinha de ser reparada. Havia a pá para tirar os pães, era a Salva-Vidas. Era uma pá para apanhar os pães. Mas o cabo tinha quase 5m. Quando as pás iam rompendo, a gente cortava-lhes um bocadinho. Quando começava a parecer pequena, arrumavase e, para a aproveitar, tiravam-se-lhe as beiras e cortava-se um bocado, servia para enfornar regueifas.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

Discretas, quase invisíveis, as pás de levar o pão ao forno e de o tirar, também contam uma história. Não seria inocente a sua função, pois para cada pão, para cada tarefa, a sua pá. E a seu tempo, também as pás eram arrumadas, pois que o gasto do pôr e tirar a isso levava.

“O

meu pai arranjava as pás aos padeiros. Não as fazia, mas arranjava aquelas pontas. Quem as fazia era o Sr. Américo Filipe. Com o tempo, as pás, nas pontas, iam estalando, iam rachando, e o meu pai ia arranjando aqueles bocados. Havia uma pá para meter o pão e outra para tirar, havia outra pá que era para tirar a regueifa. As pás tinham que ser aguçadinhas, o meu pai reparava a beirinha nova.”

MARIA ALEXANDRINA

CARNEIRO DE MATOS

ALMEIDA, 84 ANOS, VALONGO.

“PELAS

FESTAS, VINHAM PEDIR PARA ASSAR O CABRITO. PELO S. JOÃO, ERA

O FORNO CHEIO!

MARCAVA-SE UMA HORA PARA VIREM

VIRAR O ASSADO.”

Ana Gonçalves Pinto Pereira Barbosa 87 anos VALONGO

“O PADILHA FEZ UM FORNO PARA A PAUPÉRIO E ERA

ELE QUE FAZIA A MANUTENÇÃO DOS NOSSOS FORNOS.”

Ainda, a memória oral deixa claro como os fornos eram vínculo entre família e amigos. Não só era à sua frente que se faziam as ceias e os almoços das datas festivas, como era hábito pedir aos padeiros e padeiras para deixarem ir lá pôr o assado.

Técnica culinária que necessita de forno fechado, em muitos outros lugares, não estaria disponível pois era preciso ter forno de pão.

Em Valongo, os vínculos vicinais também se reforçam pelo uso partilhado do forno.

“Todos os domingos ia aos padeiros meter o assado, mas no dia de Natal assava em casa para não incomodar os padeiros.”

MARIA ALEXANDRINA

CARNEIRO DE MATOS ALMEIDA, 84 ANOS, VALONGO.

Importantes no comer e no sentir, os fornos do pão terão contribuído para o sucesso do Pão de Valongo. Uma palavra, também para os construiu.

Maria Rita Marques Padilha 68 anos VALONGO

“O meu pai chamava-se António Bento Padilha, o nome era igual do meu avô, durante muito tempo, o meu pai usou Júnior para distinguir o nome dele do meu avô. O meu pai construía os fornos do pão, ia para todo o lado, Trás-os-Montes, Alto Douro, Bragança, Miranda do Douro, Mirandela, Valpaços, Freixo de Espada à Cinta, Santa Comba da Vilariça, Vila Flor, Santo Olhão, Escalhão, Figueira de Castelo

Rodrigo, Santa Valha, Izeda. Ele conhecia tudo. Ia aos 15 dias, às vezes um mês, consoante a dimensão do forno. Ia de comboio, entrava em Valongo ou Ermesinde e ia até Barca d’Alva. E por aí andou com muita construção de fornos. Ele sabia todas as estações e apeadeiros até Barca d’Alva. O meu pai fez o forno dos Doces do Freixo. Ele conhecia o Douro com as suas mãos, adorava o Douro. Foi uma vida muito dura. Era contatado por telefone pelos padeiros, na rua dos meus avós, só havia um telefone, eu fiquei com esse número, era o 18, é o mais antigo de Valongo. O meu pai, primeiro, ia ao local ver. Depois, tinha de encomendar os tijolos, era de uma fábrica de tijolos nas Devesas, em Gaia. Também encomendava algum tijolo das Caldas da Rainha e o lastro, o lar do forno vinha de Mouriscas de Abrantes, era o Sr. Ildo Correia Valente que fornecia.

Por norma, ia um ajudante com ele, por vezes, era o padeiro que arranjava um ajudante por lá.

Por norma, o Sr. padeiro ia buscá-lo à estação. Outras vezes, o meu pai ia a pé da estação até à aldeia onde ia fazer o forno, às vezes em sítios bem longe, por lá entre montanhas. Foi uma vida dura.

O meu pai quando fazia um forno, na ferragem, no canto inferior punha A. Padilha. O meu pai estava fora aos 15 dias a 3 semanas. Ele fazia um desenho para fazer a construção do forno. Em Valongo fez na Padaria Valonguense. Nos Diogo, reparou o forno. Abaixo da Valonguense, havia uma biscoitaria, do Sr. José Romeiro, o meu pai ia lá. O lastro, às vezes, rachava e era preciso ir substituir. E os padeiros não queriam parar as cozeduras, e então paravam à sexta-feira e o meu pai ia no fim de semana. E o meu pai tinha de entrar no

forno para o reparar, então ele dizia mesmo «eu para entrar no forno, tenho de me cobrir com um saco de sarapilheira molhado» e foi assim que ele ficou bronquite asmática. O meu pai tinha outra vocação, era também pintor. O meu pai pintava e pedia ao Sr. Aguiar para pôr o quadro por cima do forno para secar e voltar a pintar. A minha avó, mãe do meu pai, fabricava o biscoito. Foi biscoiteira. Era Rita Gonçalves dos Reis, era a sua avó, nasceu em 1901. E lembro-me da minha tia, irmã do meu pai, vender biscoito, mas não fazia. Ia só vender. Teresa Gonçalves dos Reis, também vendeu biscoito. A minha avó Rita fez biscoito naquele forno, fazia biscoitos de limão. Mas eu já não tenho recordação disso. Lembro-me de ver a minha tia a fazer os cartuchinhos.”

Lina Castro Neves 80 anos VALONGO

“O pai e avó do Sr. António Padilha já faziam fornos.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos VALONGO

“Foi o António Padilha que fez o forno, uma pessoa muito conhecida. Era um grande construtor de fornos, aqui de Valongo. Aprendeu com o pai dele, como eu aprendi com o meu avó. Ficou ele e um tio dele que costumava trabalhar com o pai dele.”

António de Sousa Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“Quem fazia os fornos era o Padilha. Havia a pá de enfornar e a de tirar, quem as fazia era o Filipe.”

M. Lina Castro Neves 91 anos VALONGO

“Antigamente, cozia-se o pão três vezes por semana, à segunda, à quarta e à sexta e ia-se vender, ao Porto, à terça, à quinta e ao sábado. A minha avó ainda vendeu na Praça de Santa Teresa. A minha madrinha é que tomou conta da padaria que era dos meus avós. A minha madrinha também ia vender ao Porto. Ia vender em mercearias na rua de São João e na rua Mouzinho da Silveira. Arranjou barraca na Cordoaria, depois, passou para o Anjo e, por fim, é que foi para o Bolhão. Ainda chegou a ir vender no mercado do Bom Sucesso, mas não gostou. Diz ela que não gostou e que veio a pé até ao Bolhão, entrou no Bolhão e viu aquela loja. Quem entra pela rua Fernandes Tomás, encontra logo aquela loja. É na rua contrária à Manteigaria do Bolhão. O senhor queria vender aquilo e a minha madrinha foi para lá, foi um sucesso! Eu também estive lá cinquenta e tal anos. Levávamos pão molete, carcaças, sêmeas. Esta sêmea era tão boa! Regueifa, só levávamos ao sábado. Também vendíamos muito no concelho de Vila Nova de Gaia, nas mercearias, íamos lá uma vez por semana. Levávamos biscoitos, moletes, carcaças, sêmeas e tostas, muita tosta. Era para comer com café. Eu sou a quarta geração. Vendíamos no Porto, somente. Aqui, não tínhamos porta aberta. Antigamente, iam de burro com o pão para o Porto, mas nós, cá em casa, era em bois. Em São Bento está lá pintura a mostrar os bois que iam para o Porto.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“O meu pai ia a pé para o Porto. Às 6 horas da manhã saía de casa para estar no Bonfim às 8 horas. Percorria todo o caminho a pé. Eu, um dia, quis ir e ele disse-me, «não aguentas, não aguentas!» E eu teimei e fui, cansei-me muito, mas fui! Tinha para aí uns 15 anos. Quando cheguei ao Bonfim, apetecia-me sentar e esperar por algum transporte, mas aguentei-me e fui. Para cá, já se vinha de transporte. Mas, para lá, ia-se a pé. Só levava biscoitos para vender. Chegámos a fabricar pão, mas era só para casa. O meu pai levava os biscoitos dentro de umas taleigas, uns sacos compridos de pano. Levava aos 250g e aos meios quilos. Era tudo metido em sacos grandes e entre cada medida amarrava-se um fio. Ia-se enchendo o saco com divisões entre eles. Havia umas canastras próprias para levar as taleigas. Parecia uma bola achatada. Quem ia a conduzir a mula, voltava a vir a pé para casa. Aí por volta de 1932, o meu pai estava no Porto com a empregada e com a mula e como a empregada foi à casa de banho, o meu pai ficou a segurar a mula. E nesse momento, parou um carro e tira uma fotografia. O meu pai percorria o Porto tudo, quem comprava eram casas particulares, clientes marcados. Já sabia o que queriam. Isso já vinha do tempo do meu avó. Também vendia para mercearias, era por um preço diferente, mas as quantidades também eram maiores. Eram mercearias que ficavam na rua Augusto Rosa.

Ao pé da Ponte D. Luís, havia em Gaia várias mercearias, na rua de Camões, para lá ao pé da Câmara. Havia casas chiques que compravam os biscoitos, na avenida de Gaia havia uma série de casas que eram proprietários de fábricas de tecidos de Vizela, Vila das Aves, Guimarães, era gente que tinha aquelas casas grandes. Vendíamos em casa do Abade de Mafamude, era o pároco de lá. Vendíamos na rua Júlio Dinis, num palacete que lá havia. Havia uma casa em Gaia que era uma espécie de uma quinta, e a senhora punha uma travessa numa mesa e nós ao pormos os biscoitos que estavam na taleiga, se caísse algum era para o cão. Só o que caía na travessa era para eles comerem. As pessoas recebiam os biscoitos em pratos ou em travessas, as taleigas eram para voltar para casa. O que caísse fora da travessa, o cão consolava-se!

Tive a Biscoitaria por minha conta, entre1961 até 2022, a Fábrica de Biscoitos Aguiar, Lda. Todos os anos ia a feiras a Paris. Eu fui forçado a ficar nesta vida, porque eu queria estudar. Isto era uma vida pesada. Houve uma altura na Páscoa, em que se fez tanta regueifa que me lembro de ver o meu pai a tomar conta do forno a noite toda e, de manhã, sair debaixo de uma chuva fortíssima para ir vender ao Porto. Eu pensei, não quero esta vida de maneira nenhuma! A minha vida era para ter passado por coisas diferentes. Mas, já que tinha de ficar tentei mudar. O primeiro a empacotar em celofane os biscoitos fui eu. Naquela altura, os biscoitos

vendiam-se em latas, era o que se usava, era folha de Flandres. E na minha carrinha cabiam 100 latas, primeiro comecei a gastar em Gaia, depois fui a uma outra fábrica também em Gaia. Cada lata custava 8 escudos, 100 eram 800 escudos. A lata não era vendida, era tara recuperada. Algumas vinham estragadas, amolgadas, com ferrugem e eu tinha de as deitar fora. Então o dinheiro que eu fazia era quase todo para as latas. E nas latas usadas ainda tinha de limpar o rótulo. Então, lembrei-me, havia uma casa de plásticos em Passos de Manuel e foi lá que comprei os primeiros plásticos. Comecei a levar para os clientes assim empacotados e aquilo deu sucesso. Acabei com as latas, mas alguns queriam umas latas em cartão. Era mais económico. Mudei para celofane, uma fábrica de Lisboa, depois mudei para outra de Gaia e outra em Sobrado.

A minha mãe, Ana Alves Moreira, ajudava sempre o marido, de uma forma tremenda. A minha mãe começou a vender biscoitos em Matosinhos. Ia até à Venda Nova a pé carregada com um cesto de biscoitos, metia-se no elétrico, era 8 tostões o bilhete até ao Porto. Saía na Praça Nova e, depois, ia para Matosinhos. Ia sozinha.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“O meu pai ia de carrinha fazer a volta de Alfena. A linha de comboio é que separava Valongo de Suzão. O meu pai vinha por Alfena e a rua era em terra batida e havia por lá muitos assaltos, então o meu pai para não vir por ali, vinha pela Maia. Houve um dia que ele chegou

muito tarde. A minha mãe, ao perceber a demora, quando ele chegou resmungou com ele e com o atraso nas horas. Ele não acreditou e achou que era a minha mãe que estava confusa com as horas. No dia seguinte, ao passar na linha de comboio, a guarda virou-se para o meu pai e disse-lhe «então, você ontem adormeceu? Chegou perto do comboio das 10 horas e só se foi embora depois do comboio da meia noite ter passado». Então, ele percebeu o que tinha acontecido. É que aquela vida era de um cansaço muito grande. Fazia-se o pão de noite e vendia-se durante o dia. No entanto, apesar do muito trabalho, o meu pai teve sempre tempo para brincar com os filhos, ainda me lembro de quando chegávamos de manhã e tínhamos travessas de rabanadas em cima do frigorífico.”

VALONGO

“Todos os dias se faziam cozeduras, vendíamos para Venda Nova, Rio Tinto, Campo... Todos os padeiros tinham burras, e o meu pai também herdou a burra com que, habitualmente, se fazia a venda do pão. Ia uma mulher com a burra vender para Venda Nova, iam outras com as canastras compridas que iam para São Martinho de Campo. Iam fazer a distribuição. Mais tarde, passámos nós a fazer essa distribuição. Tínhamos a giga, ia uma para um lado, outra para o outro, lá íamos nós com aquilo à cabeça. Esta rua era um local de passagem de quem ia e vinha do Porto. Temos a Capela da Senhora das Neves, mas chamam-lhe Nossa Senhora da Luz porque, antigamente, esta gente que vinha

de trabalhar, os carreteiros, que vinham do Marco e do outro lado, como tinham medo de passar a serra porque faziam-se muitos assaltos na serra, combinavam esperarem uns pelos outros à beira da Capela da Nossa Senhora da Luz. A capela tinha sempre uma luz acesa. Os padeiros que iam vender para o Porto juntavam-se todos lá com as burras. É que todos tinham burros para transportar o pão. Até havia um médico que um dia me perguntou «porque é que todos os padeiros têm uma argola à porta?» «Doutor, é de carregar os burros, amarravam-se ali e depois carregavam-se com as canastras.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos VALONGO

“Eu ainda me lembro do tempo em que o meu avó ia distribuir o pão para a Rebordosa e levava as canastras em cima do animal. Eu era pequeno, não sei com quantos anos, e ia sentado no meio das duas canastras. O meu avó ia, dia sim dia não, não ia todos os dias. Depois, começou a ir com uma carroça e com um burro, ia pela Estrada Nacional. Aqui vendia-se pouco, os lavradores coziam pão de milho para comer toda a semana. Durante a guerra o meu avó deixou de fazer a distribuição, não tinha pão. Mas os clientes da Rebordosa vinham aqui buscar. Quando acabou a guerra, começou a fazer a distribuição na carroça, mas mandou-lhe fazer um caixão em chapa que, na frente, fazia um quadrado, era o assento. Era uma chapa de zinco com uma armação em madeira. Até aos 14 anos, fui sempre com essa carroça. Depois é que veio a furgonete. Ainda me lembro, o meu avó tinha, à entrada da

padaria, um gancho no teto e tinha uns ferros com argola, uns ganchos que engatavam nas canastras, puxava-se com uma corda, punha-se o burro debaixo e deixava-se descair até assentar no burro. Botava-se a silha para segurar as canastras. Eu ainda me lembro de se fazer isso.”

António de Sousa Gonçalves Pereira 74 anos VALONGO

“A minha mãe saía com duas mulas carregadas de pão e de biscoitos e iam pela Venda Nova, Baguim e terminava no Bonfim. No regresso, a princípio, vinha em cima da mula e a empregada acompanhava a pé, mas, mais tarde, já vinha de camioneta. Sei que terá ido fazer distribuição até à Ribeira. Na década de 30, pagava-se para entrar no Porto.”

Ana Gonçalves Pinto Pereira Barbosa 87 anos VALONGO

“Vendia para tanta gente! Vinham as vendedeiras buscar os biscoitos para depois irem revender, iam vender por conta delas. Eram muitas.

Era Ana Faina, a Cândida Faina, a Ana, a Margarida, a Amélia, a Adosinda, a Teresa. Vinham também algumas de S. Martinho, outras de Penafiel. Elas iam e vinham a pé. Iam biscoitos para todo lado. Também vendíamos para o Bolhão e para várias casas do Porto e de Avintes.”

Eduardo Ferreira de Sousa 69 anos VALONGO

“No tempo do meu trisavó, a distribuição era feita pelo caminho de ferro que tinha nascido nessa altura. Era encaixotado e distribuído por comboio até ao Douro, Minho, Trás-os-Montes.”

Teresa Duque VALONGO

“De manhã, o meu pai e a criada levantavam-se cedo e carregavam o burro com as canastras. Saíam pelas 6 da manhã, a criada ia a puxar o burro e ele ia ao lado. Já à porta dos clientes, batiam à porta e perguntavam se queriam comprar alguma coisa. Se quisessem, desamarravam-se os saquinhos, que eram uns saquinhos de pano, desamarravam-se e despejava-se ou um quarto ou meio quilo conforme a pessoa quisesse. E daquela porta ia-se para outro sítio e andava-se de uma rua para outra. Corria-se o Porto todo, corriam as ruas todas. Não era só numa rua, desta passava para aquela e desta passava para a outra, e era assim. O último cliente dele era em Gaia, quase a chegar aos Carvalhos, a chegar ao fim de Gaia, era o Abade de Mafamude. Vinha com o burro na mesma até ao Porto e, depois do Porto, a criada vinha com o burro para casa e o meu pai vinha de camioneta. Chamava-se a Valongueira uma camionete que saia do Porto as sete horas da.

Uma taleiga é um saquinho estreito comprido, dava para 3 divisões. Eu estava a encher da giga para a balança e o meu pai estava com a taleiga na mão, pegava-se na balança e virava-se para a taleiga. Dava-se uma sacudidelazinha, juntava o pano e amarrava com um fiozinho de vela. Pesava-se outro quarto, por cima daquele ia outro, fazia-se a mesma coisa, amarrava-se e depois fazia-se outra vez, três vezes. Dava para 3 coisas e depois, em cima, amarrava-se e fazia-se um sarrabichinho, aquele sarrabichinho do fecho do saco e dava para três coisos. Depois ao vender, vendia-se e guardavam-se os fios para se usarem da próxima vez. Eu ia com a minha mãe levar o biscoito para vender. A minha mãe levava uma enorme giga de biscoito. Íamos a pé, saíamos até à Venda Nova e, às 7 da manhã, já estávamos lá que era o carro operário, era o primeiro carro que saia naquele tempo, chamavam-lhe o carro operário. Depois no Porto, saíamos e íamos num carro até, não sei se era na Fonte da Moura, se era no Pinheiro Manso que nós saíamos, e íamos a vender até Matosinhos e até Leixões. E de lá íamos, sempre a pé, todo o dia a vender de porta em porta, o nosso último cliente eram duas pessoas que vendiam no mercado de Matosinhos. Se tivéssemos vendido tudo, dali vínhamos embora, se crescesse alguma coisa atravessávamos Leixões virávamos para Leça e, na entrada de Leça, tínhamos umas pessoas que nos compravam e nós lá íamos ver se vendíamos o resto. Depois, vínhamos de autocarro ou elétrico para o Porto e do Porto vínhamos de camioneta.”

“Era mais difícil encontrar farinha de milho do que farinha de trigo, nós tivemos de nos desenrascar. Ele tinha esta preocupação, a de ter milho. Ele só não produzia milho, o resto ele fazia tudo.”
JAIME ANTÓNIO VIEIRA DE SOUSA AGUIAR, 63 ANOS, VALONGO.

Na voz comum, soa o trigo e a importância da farinha de trigo na atividade da panificação em Valongo. Aquele cereal de tanto ser desejado, torna-se protagonista de quase uma epopeia. Das viagens de lugares longínquos como a América, às que que seriam atribuladas pelos caminhos da almocrevaria, às proibições que o faziam caminhar pelo silêncio de mercados escondidos.

Mas para além do trigo, conta-se também a história do pão de milho, cereal que se tornou suporte de toda a alimentação minhota pela facilidade na produção e adequação da geografia ao cereal. Ao contrário do trigo e do arroz, cuja disponibilidade dependia de mercados exteriores e de políticas nacionais de importação e de produção, o milho estava ao alcance da população. Num trabalho esforçado, a abundância de água e a fertilidade das terras fazia-o acessível, tornou-se na base do pão doméstico e de um conjunto alargado de receituário.

Numa comunidade como Valongo, em casa de padeiros, nunca o pão de trigo faltou. Por entre o que se produzia e o que se vendia, havia sempre molete, regueifa, sêmea, e mais tarde, carcaças para alimentar a família. Sobrava sempre a ponto de, em algumas situações, a Sopa Seca ser sobremesa regular para além da sua presença em festas. Mas, nas famílias que não viviam da padaria, o pão de milho, a broa, era o sustento diário. E de Valongo, saíam enormes broas de milho que eram, depois, vendidas aos quartos e às metades, pelas mercearias dos arredores. Há, por isso, uma história das padarias de Valongo que, não fabricando trigo, faziam do milho a valentia do seu negócio.

Essa é uma história que vale a pena ser contada, até porque todo o pão é sagrado quando alimenta e mata a fome.

Feitio

A PADARIA DE MILHO QUE ERA TAMBÉM UMA MOAGEM.

“A fase da moagem e das mós aqui em casa foi na altura em que deixámos de ter tantos moleiros e ele teve de se adaptar. Antes íamos aos moinhos, mas eles foram desaparecendo e o meu pai instalou as mós elétricas aqui em casa.”

JAIME ANTÓNIO VIEIRA DE SOUSA AGUIAR, 63 ANOS, VALONGO.

“O meu pai chamava-se António de Sousa Aguiar, nasceu em 1926. Ele já trabalhava em padaria com os tios, eles é que eram padeiros. O meu avó não era padeiro. Quando o meu pai veio da tropa começou a interessar-se pelo negócio da padaria. Ele recordava-se de ir com os bois aos moinhos levar o milho e trazer a farinha. Os moinhos ficavam no Rio Ferreira no lugar da Carvoeira. Isto na altura em que ele trabalhava para os tios. Entretanto, os tios ficaram com idade e o meu pai é que começou a tomar conta do negócio. A padaria do meu pai era a única que tinha fabrico de pão de milho.

A vida de padeiro, antigamente, era muito dura, muito difícil. Lembro-me de ser pequeno e de

termos moleiros que vinham entregar a farinha em carroças, mas o volume de vendas evoluiu de tal maneira que o meu pai teve de começar a ir aos moinhos levar milho para moer. Um dos moleiros era de Couce, outro era de Chã e outro da Carvoeira (Azenha), são duas localidades pegadas ao Rio Ferreira. Paralelamente, ele ia levar milho e trazer farinha a um moinho que existia mesmo no centro de Campo, era mesmo no centro de Campo. Eu ainda me lembro de ir com ele buscar a farinha. Mas os moinhos foram desaparecendo, a vida evoluiu e o meu pai teve necessidade de pôr aqui três mós elétricas e começou a moer a farinha aqui, em Valongo. Também fez um peneiro mecânico, também foi uma inovação. Tinha de ter uma rede normalizada que era para separar devidamente a farinha do farelo. Ele também traçava o milho que as pessoas precisavam para as galinhas. Então, o meu pai quando ia entregar aos clientes levava o pão à frente e o milho traçado na parte de trás.

Ele precisava de muito milho para todas as necessidades que as pessoas tinham. Por isso, teve que começar a comprar milho e mandar moer. Ele aproveitava o hobby que ele tinha, a caça e as viagens que fazia para ir caçar, para perceber onde podia ir buscar milho. Ele ia buscar milho a Barcelos, Braga, Aveiro. Ele com estas viagens da caça aproveitava para fazer o reconhecimento de onde havia milho e quando é que estava pronto para ser comprado.

Na época do defeso, ele ia fazer o reconhecimento dos lugares de caça e aproveitava para ver o estado do milho. Ele tinha uma rede de fornecedores pelo país!

A mó de cima era diferente da mó de baixo. Nós é que picávamos as mós e, normalmente, eu picava a mó de cima e ele picava a mó de baixo. O meu pai tinha um estilo de picar e eu tinha o meu. A junção das duas mós é que resultava. Tínhamos uma mó só para traçar milho, mas quando era necessário usá-la para fazer farinha, alterávamos a picagem. A picagem funcionava assim, se fosse preciso fazer uma farinha com um grão muito fino a picagem tinha de ser muito próxima, a superfície tinha de ficar o mais lisa possível. Uma coisa era a distância entre os sítios onde o picão caía, e a outra era a intensidade que era aplicada. Se fosse para fazer milho traçado nós aplicávamos mais força, ficava a superfície mais irregular e mais pontiaguda. O milho assim era traçado. Quando a mó rodava, o peso da mó era sempre igual e a rotação também, o que diferia era o grão de picagem ser mais fino ou ser mais grosso. Tinha muita técnica. Para o milho traçado, mais tarde, o meu pai comprou um moinho de martelos. Era um moinho que nós metíamos o milho em cima e eles, em baixo, tinham umas peças metálicas que andavam, rodavam e era isso que traçava o milho. O meu pai vendia farinha às pessoas, para além do milho traçado.”

“ANTIGAMENTE,

AS PESSOAS RARAMENTE COMIAM PÃO DE TRIGO, NÃO HAVIA DINHEIRO PARA ISSO,

ERA MAIS A BROA QUE AS PESSOAS

FAZIAM EM CASA

“O meu pai tinha dois tipos de broa, tinha uma broa maior e uma broa pequena. A pequena ia até aos 7 quilos e a maior era a partir dos 10, 12 quilos. Antigamente, as pessoas raramente comiam pão de trigo, não havia dinheiro para isso, era mais a broa que as pessoas faziam em casa ou compravam nas mercearias.”

Jaime António Vieira de Sousa Aguiar 63 anos VALONGO

“O meu pai vendia duas broas grandes por mercearia e, depois, a mercearia fracionava, vendia aos bocados. Naquele tempo, comia-se muito mais pão de milho do que de trigo e o meu pai rapidamente conseguiu encontrar uma boa clientela, porque a broa dele era diferente. E eu acho que a minha mãe tinha ali um cunhozinho porque o meu avó tinha um forno na cozinha e fazia broa e, possivelmente, a minha mãe deve ter aprendido a fazer a broa de maneira diferente. As pessoas diziam «eu só quero pão de milho do padeiro de Valongo!». Havia outras padarias que faziam pão de milho em Alfena e Ermesinde, mas o do meu pai era muito procurado. Aqui em Valongo era o meu pai o grande produtor de pão de milho, era o maior padeiro

de pão de milho no concelho. Diziam as pessoas «os meninos ainda estão na barriga da mãe e já estão a pedir pão do padeiro de Valongo!» O meu pai era conhecido como o padeiro de Valongo. Era um pão que se fazia com tempo, a minha mãe preparava o isco com tempo. Eles tinham uma masseira com quase 5 metros de comprimento, era de madeira. A farinha era peneirada antes de ser utilizada. Depois, era colocada na masseira com o sal, também levava água morna. Eles tinham um ponto de água quente ao lado da entrada para o forno que era aquecida por uma caldeira que ficava ao lado do forno. Punham o isco que era preparado pela minha mãe, só depois começou a ser daquele de padeiro. A massa era amassada por dois padeiros e, no final, eles faziam uma cruz. Faziam uma cruz ao longo da massa e diziam uma oração, mas não sei qual era. Depois, ficava a levedar, levava muito tempo. Depois da broa ser amassada, a broa era apolitada. Eles traziam a massa nas apolitadeiras e vinham a virar a massa até ao forno, pelo caminho vinham a virar a massa. Eles tinham duas pás, era uma para ir aos fundos e outra para ir ao meio do forno. Eles pousavam a base da pá no forno, entretanto, vinha o outro que tinha ido buscar a massa na apolitadeira e pousava a broa na pá para entrar no forno. O forneiro tirava a pá, punha farinha para receber nova broa e sempre assim por diante. A lenha que utilizávamos vinha do monte, vinha com carqueja e urze. Depois, usávamos uns cavaletes com umas tábuas enormes e era aí que a broa era posta para descansar, não se podia mexer, senão partiam todas. Uma broa grande era enorme! Ficavam em cima das tábuas a repousar.

A primeira fornada saía aí por volta da 1 ou 2h da manhã e ainda ficava umas três a quatro horas a repousar na tal mesa, só depois é que ia para a carrinha. A mesma coisa acontecia com a segunda fornada. As broas tinham 10 a 15cm de altura e, as maiores, tinham 60 cm de diâmetro. Aqui em casa, às vezes, faziam-se os Bolos para os Augados. Acho que lhe punham azeite.

Juntávamos farinha de centeio à de milho para fazer o pão de milho, tinha de ser na sua medida. O meu pai comprava o centeio aos moleiros. Tínhamos, no peneiro, um crivo para a farinha de milho e outro para o centeio, era diferente. Mais tarde, o meu pai passou a comprar a farinha de centeio às moagens como a Harmonia.

Às vezes, íamos fazer as voltas e, como as pessoas tinham pedido a medo, a broa não chegava. Então, o meu pai telefonava para casa e a minha mãe lá preparava tudo para se fazer mais broa. Nós íamos entregar pão fresquinho já à hora de jantar. Depois desta azáfama toda é que a minha mãe ia fazer o jantar.”

“Uma vez, ele teve de ser operado e quem fez a venda nessa altura fui eu, então ele disseme logo, «olha tu não vais entregar pão, tu vais vender pão! Vais conversar com

as

pessoas, porque para entregar, entregavas em duas horas.»”
Jaime

António Vieira de Sousa Aguiar 63 anos VALONGO

“Era a única padaria de pão de milho. Começou a vender para Vale Ferreiros para cinco clientes, continuou a expandir e foi para Ermesinde e Alfena. Esta rua Marques da Rocha, onde era a nossa padaria, era conhecida, antigamente, como a rua dos padeiros, era a Estrada Velha porque servia de corte para quem ia para o Porto. Por exemplo, era por aqui que passavam as cadeireiras que traziam as cadeiras às costas, iam por aqui e cortavam caminho quando tinham de ir para o Porto, iam passar pela dita capelinha da Senhora dos Chãos e, depois, desciam para ir em direção ao Porto. Para além do meu pai que só vendia pão de milho, todos os outros padeiros que existiam por aqui, eram todos padeiros de pão de trigo. Esses padeiros levavam os pães, os moletes, em canastras em cima de burros até ao Porto. O meu pai, que tinha um espírito

empreendedor, foi buscar uma carrinha à sucata e, com a ajuda de um amigo, conseguiu pô-la a trabalhar. Depois, comprou uma outra face à necessidade que ele tinha com o aumento do negócio. O meu pai, por noite, fazia duas fornadas com cerca de 400 quilos de pão de milho em cada fornada. O meu pai com as duas carrinhas conseguia distribuir as duas fornadas. A mais velha dava-lhe para ele ir fazer a volta de Suzão, Vale Ferreiros e Formiga. Enquanto ele ia fazer as entregas com essa carrinha, os empregados carregavam a outra carrinha e, logo que ele chegava da volta, ia fazer Alfena e Ermesinde. O meu pai para além de ser padeiro, tinha uma relação com os clientes como se fossem da família. Ele fomentava isso e, na altura, era muito difícil vir à sede de concelho resolver questões e o meu pai ajudava a resolver essas questões. Ele pagava os vales das pensões e, depois, vinha receber aqui em Valongo.”

“QUANDO COMEÇÁMOS ERAMOS SÓ NÓS, COZÍAMOS MUITA QUANTIDADE, DEPOIS COMEÇARAM

A ABRIR OUTRAS

PADARIAS E DIMINUI-SE NAS QUANTIDADES.”

M. da Conceição Gomes Cunha 69 anos

Terá sido Valongo um centro produtor e abastecedor de pão de trigo. Foi lá que se gerou o embrião de uma arte única, sempre no encalço da perfeição de fazer do trigo alimento extraordinário. Mas a importância do pão como alimento matricial e a evolução do lugar fizeram caminhar a arte do pão para outros lugares, como o Porto e seus arredores. Pelo concelho de Valongo, também nasceram padarias das quais ainda sobram memórias pelo que absorveram da prática da panificação valonguense. Entre o trigo e o milho. Entre o pão dos dias sagrados e devotos ao descanso e à festa e o pão dos dias de trabalho, repetiase o ritual do pão de trigo e do pão de milho. Por entre os dois, fica a lembrança de padeiros do concelho de Valongo.

M. da Conceição Gomes Cunha 68 anos CAMPO

“Os meus pais eram de Fermelã e depois vieram para aqui. O meu pai ficou sem pai e foi trabalhar como padeiro em Santarém, aos 12 anos. Depois, veio assentar praça no Porto e, quando casou, resolveu estabelecer-se como padeiro, aqui em Campo. Resolveu pegar numa padaria que aqui havia, depois construiu uma nova de raiz. Manuel Máximo da Cunha era o nome do meu pai, nasceu a 14 de Fevereiro de 1927. Maria Alves Gomes, era a minha mãe, nasceu em 1926. Os meus pais faziam pão de trigo e pão de milho. Faziam bijus, também chamados de moletes, faziam com farinha de trigo. Iam buscar a guia ao grémio e, depois, iam à fábrica buscar a farinha. O meu pai trabalhava sozinho

com a minha mãe. Trabalhava de noite e fazia a distribuição de manhã. Ele percorria a freguesia de Campo e ainda se estendia para Bustelo. Chegámos a cozer 2500 a 3000 pães por dia. Era qualquer coisa que se vendia muito bem. Já tinham amassadeira mecânica, divisora para dividir o empelo em 30 pães e cilindro para fazer a regueifa. O meu pai tinha muito gosto no que fazia. A massa era cortada em blocos de 4 quilos e eram postos nestes cilindros. Parecia que a massa era passada a ferro. A regueifa só se fazia ao sábado. Era a regueifa azeda que as pessoas compravam ao sábado. Só mais tarde é que começou a fazer a regueifa doce.

A regueifa era só farinha, água, sal e fermento. As de meio quilo e de quilo não tinham enfeites, mas as de 1,5kg, 2kg, 2,5k, 3kg e 4kg levavam enfeites. Eram trancinhas, palmas, ficavam uns enfeites bonitos.

A lenha era chamiça, carqueja e queiró. Ele ia buscar a umas senhoras que faziam os feixes. O meu pai já tinha uma carrinha. Quando estava em Santarém é que andava de burro. O pão ia em cestas, a tosta era em cartuchos. Os meus pais também vendiam broa de milho. Era branca. Levava milho, centeio e, ultimamente, também se juntava um bocadinho de trigo. Escaldava-se a farinha de milho com água quente com sal, depois, amassava-se e juntava-se o fermento da broa, fazia-se o crescente que levedava de um dia para o outro. Depois era juntar a farinha de centeio e trigo. Quando a massa estava lêveda parecia uma broa. Havia pessoas que diziam «Deus te acrescente como o milho da semente». Depois, era padejada numa escudela de madeira para

ir para o forno. Nesse tempo faziam-se broas de 4 a 5kg. Eram broas grandes e altas que eram vendidas em mercearias, eram depois cortadas ao modo da quantidade que a pessoa queria. A farinha de milho vinha da moagem Suzano.

O meu pai, com a massa do trigo, fazia uma bola, mas era para nós para casa. Era com sardinha e de carnes. Estendia e colocava as carnes e punha outra camada de massa e depois, os lados, eram virados para prender.

O meu pai fazia sêmeas, estas eram feitas com uma farinha mais escura. Eram sêmeas de meio quilo. Também se fazia a tosta azeda. É com a mesma massa da regueifa, tem de ser bem sovada na máquina, depois era cortada às tiras nos vergões. Eram largos para a tosta grande e pequeno para a tosta bebé. Na tosta bebé punha-se leite e manteiga. Primeiro o vergão era cozido, depois, de cozido é que era cortada. Depois, ia novamente a tostar. A nossa tosta tinha muita venda porque era bem sequinha. Gosto de ter sempre tosta porque às vezes não tenho pão. Fica muito bem com manteiga ou com doce.”

O PÃO, UMA IMENSA CASA.

Capítulo IV, Fotografia: O Pão. Outras Narrativas.

O Pão, a Regueifa, o Biscoito. Serão estes a face mais visível do Pão de Valongo, uma história que parece emoldurada nos inúmeros testemunhos escritos que, ao longo do tempo, foram sendo colecionados como memória histórica pilar da reputação de um pão que nunca foi só pão. Os escritos de autores, alguns célebres, outros anónimos, ajudaram a firmar no tempo e no espaço a fama da prática da panificação que se desenvolveu no lugar de Valongo e que, durante séculos, foi o centro abastecedor do Porto. Fixadas no etéreo do pensamento humano, fez-se do pão de Valongo uma certeza na história da alimentação local e regional.

Contudo, a aproximação às pessoas, as entrelinhas dos escritos, a viagem pela história visível e invisível, ajudaram na viagem pelos caminhos do pão de Valongo, levaram a descobrir a imensa casa que ele é. Do trigo que se fez protagonista de uma história local e nacional, quase ganhando vida, decidindo pelos outros o que seriam os destinos da população urbana e rural. Não obstante as proibições, sempre viajou, sempre ultrapassou as barreiras da interdição, sempre escapou aos limites permitidos, sempre foi desejado e procurado pela sua qualidade. O trigo, quase figura humana, capaz de derrotar imposições estatais, mecanismo gerador de rendimento, símbolo social e religioso. O trigo que se fez o Pão de Valongo, pelo molete, pela regueifa azeda e regueifa doce, pela sêmea, pela tosta azeda e tosta doce, pelos biscoitos.

Mas, se o Pão de Valongo fosse só isso ficaria o fio da história cortado, seria a narrativa imperfeita, seria subtraída uma enorme riqueza que o âmago humano não iria perdoar. Para além do pão de trigo, daquele que fez a fama e a reputação de Valongo, há um todo que não admite a subtração de qualquer uma das partes. As padarias e a sua memória serão sempre porta estandarte da força, criatividade e golpe de asa do povo valonguense, mas porque a história não deve ter faces invisíveis que se somem escondidas nas linhas fluidas do tempo, outros «pães» surgem nesta História do Pão de Valongo.

Do trigo, muitos outros «pães» dão vida à história de Valongo. Do pão que servia nas romarias como o pão da festa, o Doce Branco. Do pão sagrado que, nas igrejas, fazia renascer a relação entre Deus e o povo, as hóstias. Do pão que, transformado pela arte culinária, marcava o receituário de festa e assinalava os dias de celebração, a Sopa Seca, as Rabanadas, o Rolo, a Aletria.

O trigo sempre foi pão e o pão sempre foi trigo. Os trigos de Valongo criaram fama. Mas, nem só de trigo era feito o pão de Valongo. E nem só no centro do concelho se fazia pão de trigo, também nas outras freguesias aquele era pão querido e bem feito. E há também uma história do milho que se fez pão. O alimento dos que menos tinham, o pão dos lavradores que, em terras de renda, caminhavam com o arado, sachavam, arrendavam, regavam, ceifavam e desfolhavam. O milho que se tornou no pão doméstico, no alimento de todos os dias. O pão dos dias comuns. O milho que na farinha se fez pão pela Broa, pelo Bolo, pelos Bolos de Ougado, pelas Papas, pelo Peixe Frito depois de envolvido na farinha.

Em casa de padeiros, nunca o pão de trigo faltou. Todos os dias eram dias de pão de trigo, na abundância do trabalho morava também a abundância do pão alvo e fofo. Contudo, em Valongo, nem todas as casas viviam a fartura do molete ou da regueifa. Por Valongo e restante concelho, entre os dias do pão de trigo e os dias do pão de milho, desenha-se um calendário que descreve o quotidiano dos dias de trabalho, em que o milho era o sustento, e o quotidiano dos dias de celebração, em que o trigo ajudava a festejar. É um vaivém entre o que se tinha e o que se queria ter na certeza de que somente se aprecia o que não se tem como adquirido. Na passagem pelos dias de trabalho árduo, lentas as horas de esforço no campo, desejava-se sofregamente os dias do pão de trigo, o Natal, a Páscoa, as festas.

Pão na terra, terras de pão. Os campos que davam cereal, fruto do trabalho dos homens e da fertilidade de terras fundas junto aos rios Ferreiras, Simão e

Leça. Pão nos moinhos, moinhos de pão. O esforçado labor entre mós que giram, desgastando a semente até se fazer em farinha. Pão no forno, fornos do pão. De quem construía os fornos, a quem fazia e reparava as pás que levavam o pão à boca do forno. Histórias de lavradores, de moleiros, de construtores de fornos e de pás. Tudo é fio forte, seguro e imprescindível na história do Pão de Valongo. Uma história do pão de Valongo não deixa nenhuma das suas franjas para trás, ninguém fica invisível. Como num forno de pão em que o calor, atiçado por uma pequena fogueira, alastra por toda a abóboda forjada em tijolo e se mantém duradouro, o pão deu a Valongo a sorte da abundância e do conforto. No pão múltiplo e versátil. No receituário rico e saboroso. Na cozinha sempre quente. No forno disponível para os assados dos vizinhos. Há uma geografia, há um calendário, entre o trigo e o milho. Contudo, em Valongo, há muito tempo, deu-se um milagre. O milagre de um povo que fez do pão o seu coração, a sua alma e a sua vida.

“O MILHO ERA SEMEADO ANTES DO MÊS DO S. JOÃO. «O MILHO PELO S. JOÃO TINHA QUE TER PENDÃO».”

Carolina Dias Moreira 84 anos

M. Madalena Martins dos Santos 78 anos

Ermelinda Sousa Dias 92 anos

SOBRADO

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“Antes isto era só agricultores, depois mais tarde é que vieram para aqui as indústrias. Há 50 anos, produzia-se muito milho, havia uns 40 agricultores, sobretudo em Ferreira, lá é que estavam os maiores agricultores e eles tinham aqui as suas terras. Produzia-se o milho, o trigo, o centeio e o linho. Existiam muitos moinhos no rio Ferreira. Junto ao rio, era só milho, de um lado e do outro. Era sobretudo milho branco. O centeio e o trigo eram produzidos nas terras mais secas. Dos montes, vinha a queiró, a carqueja e o tojo que iam para os padeiros do Porto e de Valongo.

Os meus pais faziam um campo, semeavam lá o milho por meados de Abril, nas terras secas. Depois, nas terras fundas, era em Maio e Junho. Tinham de ser lavradas as terras, eram aqueles bois amarelos que lavravam as terras. Deitava-se estrume das cortes do touro. Semeava o milho e, pelo meio, semeavam feijões e abóboras nas bordas. Era quase sempre feijão Moleiro e Branco. Era feijão rasteiro. As abóboras eram das compridas e amarelas.

Lavrava-se a terra, punha-se o estrume do touro, semeava-se o milho, os feijões e as abóboras. O milho era sachado quando era pequeno, mais tarde era arrendado. Faziam-se os torrões para, depois, alisar a terra, e faziam-se os vieiros para regar o milho, para a água correr por aqueles vieiros porque a água era muito pouquinha. Nesse campo, os meus pais só tinham 13 minutos de água de quinze em quinze dias. Andava um senhor com um

relógio a contar o tempo em que tínhamos a água. Havia pessoas que tinham mais tempo de água, eram as pessoas ricas.

Cortava-se o pendão ao milho que era para o touro, era no princípio de Junho. E quando o milho estivesse maduro, em Setembro, apanhavam-se as espigas, desfolhavam-se e secavam-se. O feijão era apanhado mais cedo. Os meus pais pagavam dez alqueires de renda ao senhorio daquele campo. O lanche para estes trabalhos era azeitonas, cebola com sal, carne gorda e pão de milho. Quando era a desfolhada era pão de milho com aguardente. Nunca se fez trigo ou centeio cá em casa. Mas ainda cheguei a andar a apanhar centeio para a minha vizinha, quase sempre no dia 10 de Junho era a sega do centeio. Depois, faziam-se os molhos para ir para bater na eira. Faziam-se os rolheiros, eram montes de palha, mas postos ao alto, punha-se uma carapuça para pôr por cima para a água não entrar. Com a palha do centeio enchiam-se os colchões. Nesse dia, lavavam-se os colchões, fazia-se uma barrela e, depois, de secos, enchiam-se com aquela palha. Esses rolheiros de palha que se faziam aproveitavam-se para os colchões e para queimar os porcos, depois na matança. Mas também se faziam as medas de palha do milho. Era para guardar e durante o ano dar aos animais. Eram feitas com um pau, ao alto. O milho era limpo com um limpador, saía a moinha que se aproveitava para as almofadas. Quando casei, ainda, as almofadas eram assim. O milho era levado ao moinho e o moleiro ficava sempre com uma maquia, penso que era uma quarta da farinha moída.”

Maria da Silva Moreira

79 anos SOBRADO

“Antigamente, havia muita agricultura por aqui porque era o único trabalho que havia por aqui. Vivíamos do que dava na terra, hoje, já não é bem assim. Eu trabalhei muito na agricultura. Em Sobrado, cultivava-se muito milho porque toda a gente cozia o pão em casa. Tínhamos muitos moinhos, o meu pai tinha um moinho e havia muitos moinhos por aqui onde se moía o milho. Era milho de regadio, do branco. As sementeiras começavam em Abril. Antes do milho ser posto à terra, preparava-se a terra. Tirava-se o estrume das cortes onde a gente tinha o gado, era carregado em carro de bois e deitava-se à terra, era espalhado pela terra. E aí os bois começavam a lavrar com um arado. Passava-se a grade. Semeava-se, a lanço, o milho e o feijão. Nascia o milho, era sachado a primeira vez. Na segunda vez, dizia-se arrendar o milho, era aplanar a terra e semear a semente da erva, o azevém. E ia-se novamente picar a terra toda. Na sacha juntava-se a terra aos montinhos ao lado do milho, quando fosse arrendar espalhava-se aqueles montinhos de terra em redor do pé do milho. E ficava a semente do azevém coberta. Quando viesse a água da rega já ficava aquela semente a nascer. Esta erva era, depois, apanhada para os animais. Cortava-se o pendão quando ele estivesse espigado. Em Agosto e Setembro cortava-se o milho e levava-se para casa. Em casa, tiravam-se as espigas e deitavam-se para uma rima, ao fim de um dois dias, fazia-se a desfolhada. Depois, é que se levava para a eira para

secar. Nesses dias da desfolhada dava-se pão e aguardente. Depois, ficavam as espigas a secar. Quando estivessem bem secas, punha-se o malhador na eira e deitavam-se as espigas lá para dentro. O milho era passado no limpador e ia para secar, para sair as impurezas. Essa moinha era para as travesseiras, para as almofadas. O folhelho era a capa das espigas, fazia-se colchões para bebés com este folhelho todo desfiadinho.

Depois, as espigas tinham de ir ao moinho, era do meu pai. Nesse moinho também se moía centeio e trigo, também era produzido por nós, também era no campo. Para o cultivo do trigo e do centeio faziam-se umas valeiras de 3 metros, ficava um rego aqui, um rego ali. Os bois é que abriam o rego, o trigo e o centeio eram semeados na parte alto do rego. Era para não encharcar a terra porque o trigo e o centeio não podiam ser muito encharcados. Eram semeados em Novembro, antes do Natal. Era só semear. Não era preciso mondar, nem sachar. Depois, apanhava-se em Abril. Era ceifar o trigo e o centeio. Era tudo para consumo, para fazer a Broa.”

Florinda Martins Ferreira 66 anos José Maria Soares

Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“Por aqui, nestes campos, cultivava-se o milho para o pão, o centeio, e, no tempo dos meus pais e avós, também se semeava trigo. Em Campo, quase todos os terrenos ficavam à beira rio, era aí que se semeava o milho. Primeiro, lavrava-se a terra, tirava-se o estrume dos turinos e dos maranhões e punha-se

à terra. Lavrava-se e gradava-se. Semeava-se, antes, à mão. O milho tinha de ser sachado para tirar o milho, arrendava-se, era juntar a terra para fazer os guieiros para a rega. Tínhamos a água dos regos do consorte. Significava que vinham os regos nas beiras dos campos, um vinha de Vilarinho e outro de Sobrado, os dois traziam água do rio Ferreira. Os lavradores, no início do Verão, iam todos limpar aquele rego, para terem água no tempo da rega. E reuniam para decidir os horários das águas. Depois, vinha o pendão do milho e cortava-se para o gado. Vinha a espiga, começava o milho a amadurecer. Estando o milho já maduro, cortava-se à foicinho, era aí pelo mês de Agosto. Cortava-se o milho por baixo, depois ia tudo de carro de bois para casa. Os fogueiros é que seguravam o milho no carro. Guardava-se o milho no palheiro. Tirava-se a espiga ao milho, deitava-se a espiga para uma rima. O canão que já estivesse seco ia para um lado, era para fazer estrume ou rolheiros. Os verdes, os bois iam logo comendo. Depois fazia-se a desfolhada. Era milho branco, quando aparecia um milho rei, um milho vermelho, era uma festa. Nas desfolhadas, dava-se broa, tostas que se compravam ao padeiro, castanhas cozidas e café. Tocava-se concertina com violas. Desfolhava-se o milho e lá ia para o palheiro. O folhelho ia para secar para, mais tarde, alimentar o gado. Quando estivesse seco e fizesse aquele barulho como o papel, ia para a barra, era um palheiro que ficava numa parte superior. Depois, o milho era malhado no malhador. Saía o milho para um lado e o carolo para o outro.

O carolo era aproveitado para fazer fumeiro. O milho ia secar para a eira e, depois de seco, ia para a caixa, era uma espécie de salgadeira maior. Ficava ali até ir para o moinho para fazer pão. Nem sempre se misturava o feijão por entre o milho, havia campos que eram só para o milho. Na mesma sementeira do milho e do feijão, também se punham abóboras. Usava-se a abóbora para a sopa e para o gado. O feijão era apanhado antes do milho e era malhado com um mangual. A casca do feijão ia para o gado, mas quando se deitasse casca de feijão, não se deitava água, fazia mal aos animais. O feijão fradinho era cultivado em campos de sequeiro, que não tinham tanta água. Nos terrenos mais altos ficavam as hortas. Toda a agricultura ficava junto à água. O centeio era nos campos lá em baixo. Era cortado em Junho, nos dias quentes com calor. «Em Junho, foicinho no punho.» A palha do centeio era para os colchões e para o gado.”

Carolina Dias Moreira 84 anos M. Madalena Martins dos Santos 78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos SOBRADO

“Nós tínhamos o milho, o centeio, o trigo. O campo tinha de ser mais bem preparado para o trigo e para o centeio, do que para o milho. Tinha que ser um estrume melhor e os campos eram lavrados por bois, íamos comprá-los à feira a Paredes. Em Junho, foicinho no punho. Era quando se ceifava o trigo. Semeava-se o milho antes do S. João, pois «o milho pelo S. João tinha que ter pendão». O milho era mais do branco,

quando se semeava amarelo era porque não se tinha semente branca. Ficavam estes terrenos cheios de milho. Juntava-se o milho, o feijão, as abóboras, melões e melancias. Era o feijão moleiro, branco, rajado, vermelho. Havia o feijão branco manteigueiro e o feijão branco pequeno. Fazia-se muitas vezes arroz com o feijão moleiro. A minha mãe nunca quis muito abóbora na comida, era mais para os porcos. Só usava abóbora para a sopa. Fazia-se sopa com feijão branca, batata, abóbora, cebola, azeite para adubar, e couve.”

O Pão nos Moinhos.

“Era uma vida dura, só quem passou por ela é que sabe. Nós eramos conhecidos como os «Cucos» eram os «Moinhos dos Cucos».”

José Coelho Sousa Suzano 67 anos CAMPO

“Sou de uma família de moleiros. Os moinhos eram dos meus avós, depois foi dos meus pais e, depois, veio para nós. O meu pai, Carlos Souza Suzano, começou com a moagem no rio Ferreira. É um rio que nasce acima de Paços Ferreira. Eram moinhos de água. Depois, foi crescendo lentamente e começou uma moagem elétrica aqui em cima, também pequena. Depois, foi subindo, até chegar ao que temos hoje. O rio Simão, que se encontra com o rio Ferreira aqui bem próximo, tem pouca água, só no rio Ferreira é

que se conseguia ter moinhos grandes. No rio Simão eram só moinhos das marés cheias, só trabalhavam quando tinham marés cheias. Era quando a água subia muito. No rio Ferreira, os moinhos trabalhavam dia e noite, nunca paravam. Punha-se milho que ficava a moer desde as 7h da noite até às 8h da manhã. O meu pai tinha 6 moinhos no rio Ferreira, em Salto. Eram 6 moinhos com 5 a 6 mós cada um. Eram 32 casais de pedras a moer, noite e dia sempre a moer, semana, domingos e feriados. Eram 7500 kgs que se moíam por dia. O que mais moíamos mais era milho e centeio, mas também chegámos a moer algum trigo. Eram os 3 cereais mais importantes para o pão. Era o trigo para o molete, o milho para a broa e o centeio para misturar na broa.

As mós do trigo eram diferentes, era um granito mais leve e mais oco. As do centeio e do milho eram iguais, eram mais duras. Íamos comprar as pedras a Coimbra e a Poiares e vinham em camionetas. Quando a farinha começava a sair diferente, não tão boa e em menos quantidade, tinha que se picar a mó. Picavam-se as mós com uns picões de bico. O trigo vinha do Alentejo. De Trás-os-Montes, de Murça e de Mirandela, vinha milho e centeio. De Vila do Conde, vinha muito milho. O meu pai comprava aos lavradores.

Deixámos os moinhos no rio porque coisas que ficam à beira do monte é sempre complicado para cuidar, ou é o fogo ou é a água. E isto por aqui é só montes. É a Serra da Pia, o monte de Santa da Justa, o Monte do Castelo. À volta são só serras!

Quem vinha comprar a farinha eram as padarias. Vinham de

todo o lado aqui à volta. Cereja e Máximo da Cunha, aqui em Campo. Em Valongo, vendíamos farinha para a padaria Aguiar, para o Cafezeiro, para Suzão. Vendia-se também a pessoas que vinham comprar uma arroba para, depois, fazerem broa. Também havia quem fizesse troca de milho por farinha. No tempo dos meus pais, havia a maquia, era uma parte que ficava para pagamento da moagem.

O moinho tinha a moega, era onde se punha o cereal. Vinha pela quelha até cair no buraco da mó. A de cima é a que anda e a debaixo estava parada, se andassem as duas, andavam às turras. A de cima era a capa e a debaixo é o pé. A farinha saia na beira. Por baixo, o que fazia andar o moinho era o rodízio, a palavra mais antiga é penado. O chamador era o pau que estava por cima da mó e que pousava na quela, era o que regulava a queda do grão. Aquilo é que chamava o milho, era o chamador.

Em nossa casa, comíamos mais broa, mas também comíamos moletes. Comprava-se a broa e o pão às padarias. A minha mãe não tinha tempo para cozinhar. Chamava-se Rita Alves Coelho, nasceu em 1933 e o meu pai em 1929.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“A minha família pertence à Moagem Suzano. O Carlos de Sousa Suzano, era o dono da moagem, e ele era irmão da minha mãe, por isso, meu tio. A minha mãe chamava-se maria Ferreira Suzano. O meu pai Faustino Dias Rodrigues. O meu pai era moleiro, trabalhava nos moinhos aqui no Salto, fica a mais ou menos um quilómetro daqui. Fica no rio

Simão, um riozinho pequeninho que passa por aqui ao lado e vai desaguar no rio Ferreira, que depois, vai desaguar no Sousa que, por sua vez, vai para o Douro.

O meu pai moía milho, centeio, trigo, era os três cereais. E, às vezes, também moía cevada.

A cevada era para os lavradores, talvez para os animais. Mas, o que o meu pai mais moía, era o milho. Algum era comprado cá, outro vinha de fora, de Moçambique e de Angola. Fazia-se muito pão de milho. Não me lembro de o centeio ser comprado fora, era comprado mais a lavradores daqui. Mas, não era muito. Havia alguns lavradores que tinham trigo, mas também não era muito.

O trigo que se moía por aqui era, sobretudo, de Trás-os-Montes.

O que se produzia por aqui era muito pouquinho, era praticamente só para eles fazerem as sêmeas.

O meu pai moía e, depois, era o meu tio e a minha mãe que iam levar as farinhas. Iam para o Suzão, para a Venda Nova, iam de carro de bois para Baguim, Fânzeres, já tinham clientes antigos e lá iam levar as carradas que eram precisas. Eram bois amarelos com os cornos como os de Montalegre. Também tinham éguas.

Nunca nos faltava a farinha em casa. O meu pai moía, o meu tio e a minha mãe vendiam e a minha tia vendia o pão na mercearia. Por isso, nunca nos faltou o pão.

Há 50 anos, o pão era comprado nas mercearias que vendiam um pouco de tudo. Lá havia moletes, sêmeas e broa de milho.”

O Pão Sagrado.

“Os restinhos das hóstias punham-se no leite e eram comidas assim. Era bom! Havia pessoas que nos vinham pedir aqueles restinhos.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos

VALONGO

“Fazíamos as hóstias, ainda temos os ferros. A nossa tia, que era irmã do pai da minha mãe, foi quem criou a minha mãe. Tinham o mesmo nome, Judite. Essa tia ajudava no Porto a fazer os paramentos e, se calhar, foi aí que aprendeu a fazer as hóstias. Depois, ensinou a minha mãe a fazer. Os nossos pais chegaram a cultivar trigo no quintal para ter trigo para fazer as hóstias. A minha mãe fazia hóstias no fogareiro. Fazia-se na base e depois cortava à medida que queria. Se quisesse grandes, cortava grandes, se quisesse pequenas, cortava pequenas. Mais tarde, a mãe começou a fazer num ferro adaptado, baixinho que tinha dois braços, abria metade para cima, e outra metade para baixo. Dissolvia a farinha em água com a consistência que ela sabia, depois com uma colher punha um bocado desse líquido no ferro e fechava. Ao fechar, vinha sempre uns restos por fora que ela com uma faquinha dobrava. Era só um minuto que demorava a massa a secar. O ferro tinha de estar quente para cozer aquela massa líquida. Um dia, estava a minha mãe a fazer hóstias e teve de

ir atender o telefone, então eu resolvi fazer uma. Quando a minha mãe veio e viu que que estava bem feita disse-me para eu fazer outra. E como fiz bem, passei eu a fazer as hóstias. Depois, estava eu trabalhar fora, a minha mãe adoeceu, então, resolveu doar os ferros. Deu uns ferros para Ermesinde e os outros foram para uma senhora de Sobrado. Fazíamos muitas hóstias para Águas Santas, Sobrado e Campo. Pelos Fiéis, iam às 3000 hóstias.”

Maria Lina Castro Neves

80 anos

VALONGO

“Umas senhoras, aqui ao lado, cultivavam o trigo, mas era para fazer as hóstias.”

O Pão das Romarias. O Doce Branco de Sobrado.

“Eu costumava dizer à minha mãe «antes

quero ir à queiró ao monte, que ser doceira!» Quando vinha uma festa eu ficava negra só de pensar que tinha de ir para os doces.”

Deolinda Filomena Almeida Martins Ferreira Roque 75 anos

SOBRADO

“A minha mãe chamava-se Margarida de Almeida, nasceu em 1923, era conhecida como a Ti Guida Presunta, teve 5 filhos, foi sempre negociante. Ia a Famalicão e Vizela buscar

tecidos e atoalhados. Somos todos «Presuntos». A minha mãe, quando casou, começou a fazer doces, aprendeu com a minha avó, mãe do meu pai. A minha avó era a Ana Ribeiro Fernandes, nasceu em 1900, dizia ela que era “da era do ano”. Aprendeu a fazer doces com as «Regelas».

A minha mãe fazia doces pelas festas e pelas romarias, na festa da Livração na Rebordosa, no S. Roque em Lordelo, na Santa Águeda em Recarei, em Valongo no Senhor dos Passos, no S. Pedro da Agrela, no S. João de Sobrado. Era o Doce Branco, há quem diga Cavacas, mas a nossa avó dizia Doce Branco. Fazia-se com ovos e farinha trigo. Batíamos os ovos com o açúcar. De início, era uma batedeira manual, de madeira. Tínhamos de bater até a massa fazer aqueles olhinhos, depois juntava-se a farinha, mas tinha que se ir misturando e batendo a massa. Polvilhávamos as folhetas, eram os tabuleiros onde se cozia, com a cabecinha, era a farinha mais grossa, não era tão fina como a que se misturava. A massa tirava-se com uma colher e aconchegava-se com a mão. Ficava uma bolinha. Ia ao forno que era aquecido com queiró ou carqueja. Íamos ao monte buscar, ou então a minha mãe comprava esse mato. Quando se começava a fazer os doces, não se podia parar, era sempre a fazer e a ir logo para o forno, se deixássemos ficar muito tempo à espera, já não era igual. Era sempre a fazer e a cozer, senão ficava como uma malha, não crescia. Tinham de ir logo para o forno, para ficarem puladinhos. E os primeiros ficavam mais altos porque o forno estava quente. E, como os doces eram cozidos com o forno aberto, depois tinha que se pôr uma cora à porta, era para o forno não perder o calor, punha-se lá

num cantinho uma fogueirinha. Se não se fizesse isso, ficavam umas malhas.

Depois dos doces já estarem cozidos, levávamos para um açafate para serem cobertos com açúcar em ponto. Era só açúcar e água, devia ferver até sair a água toda. Isso é que fazia o branco. Nós com os dedos já sabíamos quando o açúcar estava pronto. O Doce de Sobrado fazia em cima uma espécie de flor com o açúcar em calda. Era tudo feito com a mão. Era o Doce Branco de Sobrado. Nas romarias, era vendido em cartucho ao peso. Levávamos pesos e balanças para pesar os doces. Também fazíamos pão de ló pelas comunhões. A farinha de trigo vinha do Porto. Os ovos vinham do Bolhão. Às vezes, tínhamos de cozer 400 kgs de pão de ló pela comunhão de Sobral. O pão de ló levava ovos, gemas, açúcar e farinha de trigo. A minha mãe, como referência, tinha o Pão de Ló de Margaride. A nossa avó já fazia o pão de ló, dizia Regueifa de Pão de Ló, havia de quarto, de 0,5kg, de ¾, de quilo e de 2 quilos. Faziam-se em formas de barro, chamávamos alguidares. Depois, usava-se uma tigela para se pôr no meio. Com a tigela enchia-se a forma, já se sabia que uma tigela era ¼. Marcava-se assim a quantidade. Forrávamos os alguidares a papel que era todo lavrado, com uns murinhos à volta, o meu pai picava com um ferro com desenho. A gente comprava as resmas de papel e o meu pai, com um ferro, fazia uns desenhos no papel. Ultimamente, já não se fazia porque dava muito trabalho, mas antes era todo recortado. Ficavam depois aqueles murinhos a toda a volta no alguidar. Depois de se pôr a massa, rolhava-se, a gente dizia rolhar, era tapar com outro alguidar para não queimar. Quando

vendíamos estas regueifas, as pessoas levavam em tabuleiros à cabeça. Naquela altura, dava-se uma regueifa de pão de ló a quem tinha um filho que fazia a comunhão. Eram tabuleiros e tabuleiros! Vendíamos muito para aqui para Sobrado e para Campo também.

Não se utilizavam as claras todas, das que ficavam, dávamos aos pobres. A minha mãe nunca vendeu uma clara, eles vinham lá com as infusas e lá levavam as claras. Havia muita miséria. Faziam com cebola num tacho, faziam um pastelão.

Fazíamos as Pombas. No resto da massa do pão de ló, juntávamos mais um bocadinho de farinha, e moldávamos com o feitio de uma pomba. Fazia-se a crista com o dedo. Era tudo coberto com açúcar. As pessoas vinham, de propósito, encomendar as pombas, era para dar às crianças. Compravam nas romarias, mas não se faziam muitas, era só o que o resto da massa dava.

Os Rosquilhos eram feitos com uma massa de farinha e água, depois, o que dava o doce e o paladar era a calda que se fazia no tacho em cobre. Se fosse num tacho de ferro, o açúcar era todo comido. Também era um doce vendido nas romarias. As Arrufadas eram uns pães compridos, com um bocadinho de calda por cima. São parecidas com as Galhofas. A minha mãe chegou a fazer à maneira dela. Vendíamos ao fim da missa. Também fazíamos Cavacas com a massa do pão de ló, era como se fosse uma fatia e coberto com calda. Parecido com as Cavacas de Resende. O nosso doce tinha muita fama. Havia muitas pessoas que vinham comprar por ser muito bom.”

Pão de Milho, Broa.

O Pão Sagrado. Ferro para fazer Hóstias.

NO CALENDÁRIO, OS DIAS DO TRIGO E DO MILHO.

O Dia e a Noite. O Sol e a Lua. O Inverno e o Verão. Os dias de trabalho e os dias de celebração. Os dias de abundância e os dias de frugalidade. Um calendário que se soube construir na dialética entre o que a natureza oferecia e a oportunidade humana conseguia.

Não terá sido o calendário uma invenção avulsa e predita por uma entidade divina, mas construída segundo as necessidades humanas. A exigência de dar uma razão ao esforço dos dias de trabalho, a necessidade de dar esperança aos dias de arrecadar, guardar para o esperançado dia de amanhã. Sobretudo, numa sociedade que derivou de uma cultura agrícola, a diferença nos dias do calendário era, na maioria das vezes, a divergência, o voltear entre os dias de fartura e os dias de frugalidade. Necessitadas dessa alternância, as comunidades souberam ver nas mudanças que os dias apresentavam o princípio para regras alimentares. Numa espécie de harmonia com o soar do quotidiano, ajeitaram-se ao que recebiam e proclamavam as suas intenções para o futuro, fazendo votos ao amanhã.

Conscientes de que o Inverno e o Verão significavam, tanto de limitação como de esperança, pelo caminho que indicavam entre os dias pequenos e dias grandes, entre os dias de oportunidade e os dias de esperança, entre os dias de trabalho e os dias de descanso, fizeram do sol o seu ponto fiel. Habituadas a pressentir o ciclo solar pelo que ele lhes permitia na produção agrícola, as comunidades mimetizaram essa linha circular feita pelo astro solar e preencheram-na com as suas intenções, dúvidas, esperanças e votos. Nasce o calendário, não aquele que hoje se distribui em anos, meses, dias e horas, mas aquele que regulava à volta do sol. Aquele que ia da esperança, no solstício de Inverno e que iniciava o período de maior fragilidade agrícola, ao da concretização, no solstício de Verão que dava mostra da abundância agrícola. Pelo meio, os Equinócios, de Primavera e de Outono, passos intermédios numa caminhada em que era preciso afastar o tempo velho e mostrar o tempo novo, em que a contenção do jejum poderia ser voto para a abundância.

No concreto da vida, marcou-se, no calendário, o que se podia e devia comer de acordo com o espírito dos dias. Nem todos iguais, aqueles foram sempre passado, presente e futuro de uma estação, de uma época, de um marcador, num ciclo mais lato, capaz de dar sentido à passagem do tempo na vida das pessoas.

Nesta linha interminável do eterno retorno do fim ao princípio, o calendário ficou visível e tornou-se real, vestiu-se de transformação cultural com a clara participação dos humanos. Percorrer esse calendário, deu também sentido de vida às comunidades. Entre o sol, que se ocultou sob os preceitos religiosos da fé católica, e os humanos criou-se um vínculo alimentar que fez dos alimentos expressão dos sentimentos. Desenha-se, deste modo, o Natal, o Entrudo, a Quaresma, a Páscoa, como principais marcadores de mudança e definem-se os dias que, os antecedem e os seguem, como momentos de reflexão necessária para preparar a mudança.

É por este calendário, que se pretende viajar na certeza de que o pão esteve e está em todos eles. Marcador simbólico da celebração ou da contenção, expressão cultural forte e determinada do que se queria no presente e no amanhã, o pão sempre o pão na vida de todos nós.

O Pão Nosso de Todos os Dias. Dias de Trigo. Dias de Pão de Milho.

“Os padeiros nunca passaram fome.”

Em casa de padeiros, nunca o pão faltou. Cumprindo o ritual de fazer moletes, sêmeas e regueifa para vender pelo Porto e arredores, sempre ficava para alimentar a família. Por isso, em casa de padeiros, à mesa, a acompanhar o conduto, nunca faltava o pão de trigo, nem o pão de milho entrou.

“Comíamos pão, regueifa e sêmea, tínhamos em casa, não se usava pão de milho. No tempo da guerra, o desconsolo era muito. Não boto a coisa para a fome, boto para o desconsolo.”

JOAQUIM MOREIRA CAMILO, 85 ANOS, VALONGO.

A fartura e a abundância levavam a que a Sopa Seca e as Rabanadas não fossem apenas um manjar das festas. Em casa dos padeiros, o trigo entrava pelo quotidiano e assumia-se como pão corrente. Fosse pelo Molete, Sêmea e Regueifa, fosse pelas Rabanadas e Sopa Sopa Seca, fosse pelo Rolo e Bolo de Serão para os quais a imprescindível farinha de trigo fazia a diferença.

“Era um cansaço muito grande, fazia o pão de noite e vendia durante o dia. No entanto, apesar do muito trabalho o meu pai teve sempre tempo para brincar com os filhos, ainda me lembro de quando chegávamos de manhã e tínhamos travessas e travessas de rabanadas em cima do frigorífico. Era a minha mãe que cozinhava, mas o meu pai, volta e meia fazia rabanadas para nós e também fazia côcos. Uma das últimas recordações que eu tenho é de estar ao balcão a vender e chegar à cozinha e ter a cozinha cheia de côcos. Eram côcos por todo lado, até nas gavetas havia côcos.”

CECÍLIA COELHO ABREU COSTA, 56 ANOS, SUZÃO.

“Aqui em casa nunca se passou fome, bastava ter pão e ter biscoitos, já era um luxo. Eu ia para a escola, e tínhamos manteiga que vinha de Sobrado, vinha numas caixas em madeira, vinha embrulhada em papel. Eu ia para a escola e levava sempre dois pães quentinhos barrados com manteiga. A maior parte das vezes, era para trocar na escola, davam-me as penas da lousa e eu dava-lhes o pão. Eu sabia que quando chegasse a casa podia comer pão com manteiga.”

MARIA EMÍLIA FERREIRA AGUIAR DA FONSECA, 82 ANOS, VALONGO.

“Nós não tivemos muitas dificuldades, mas havia muita gente que passava mal. Quando andava na escola levava pão a mais para dar aos que não tinham, ficavam todos contentes. Às vezes levava biscoitos, todos queriam um biscoito. Iam muitos meninos para a escola descalços, no Inverno. A bucha era pão simples, não havia muito para lhe pôr dentro.”

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES AGUIAR, 85 ANOS, VALONGO.

Se em casa de padeiros, o pão foi sempre de trigo, em Valongo, nas restantes, não se vivia esse privilégio. O pão de milho, feito em casa, era o hábito alimentar de muitas famílias, sendo que o trigo que era cozido era vendido fora.

“A broa comia-se às refeições. No nosso lanche era uma cebola ou um tomate temperado com sal e um bocado de broa. O pão, para nós, veio muito mais tarde. A nossa mãe dava-nos um bocadinho de pão de trigo, só para provarmos. Foi mais ou menos há 70 anos que começámos a comer pão de trigo, antes era só broa.

A minha mãe ia comprar pão aqui a uma padaria que era vizinha, comprávamos moletes e sêmeas. Gostávamos mais das sêmeas.”

MARIA FILOMENA

GALAGHAR SILVA DIAS, 74 ANOS. MARIA DA CONCEIÇÃO GALAGHAR, 68 ANOS. VALONGO.

Mas, se em Valongo, as famílias que não estavam ligadas à panificação tinham o hábito de comer pão de milho, pelo anel rural do concelho, as restantes freguesias, era este o pão comum, o pão nosso de todos os dias. Feito com milho produzido em terras próprias ou arrendadas e moído em moinhos do rio Ferreira, o pão de milho, a broa, dava o sustento do quotidiano e preenchia o estômago nos esforçados dias de trabalho.

Cereal mais nutritivo e mais denso, o milho fazia um pão de vigor suficiente para sustentar o corpo que, pelas diversas atividades como a extração da lousa, exigia poderoso alimento.

Da farinha de milho, fazia-se o pão de milho e os Bolos, em especial os Ougados. Tempos de escassez alimentar, sobretudo durante o período entre guerras, a população precisava expulsar dos mais novos o ougado que se desenvolvia pelo que se não tinha. Repetidamente encurralados num quotidiano de caldo e broa, faziam sentir no corpo o ougado por uma gulodice.

Para além dos pequenos Bolos de Ougado que tinham de ser comidos atrás de uma porta e dada uma ponta a um animal, de forma a passar para ele o ougado, em dia de fornada faziam-se os Bolos de Sardinha e de Carne Gorda. Mimos para a família, ainda hoje, são recordados como os saborosos bolos, prova de que a necessidade aguça o engenho.

“Comia-se Broa , mas era comprada. Era de milho branco. Comia-se broa com azeitonas, salpicão, chouriça, presunto ou com peixe frito. Nós não fazíamos broa, só trabalhávamos com farinha de trigo. Mas também não se cultivava trigo, vinha das fábricas e era moído nos moinhos em Couce.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“Era Broa que se comia em nossa casa. Fazia-se com milho branco ou amarelo, era conforme. Misturava um bocadinho de farinha de molete para ficar mais macia. Amassava numa gamela, punha a farinha e fazia um buraco para pôr o sal, a água e o fermento. E depois amassava-se até ficar boa. Dizia sempre uma oração «São Vicente te acrescente». Depois de levedar, tinha que se apolitar numa gamela até ficar redondinha. O resto da massa era o crescente para a próxima fornada. Quando se cozia a broa fazia-se uma Bola com Sardinha .”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos

VALONGO

“Fazíamos as Broinhas de milho A minha mãe tinha aqui uma gamela onde amassava a broa e levava lá acima ao meu padrinho para cozer no forno que ele lá tinha. Também se fazia o isco de um dia para o outro. Juntava-se água morna e sal, só depois o isco. Era com farinha de milho branca.

«São Vicente te acrescente, São Mamede te levede», era o que se dizia para levedar. Era o forno cheio de broas para nós. Esta broa comia-se às refeições. O nosso lanche era uma cebola ou um tomate temperado com sal e um bocado de broa. O pão de trigo, para nós, veio muito mais tarde. A nossa mãe dava-nos um bocadinho de pão de trigo, só para provarmos. Foi mais ou menos há 70 anos que começámos a comer pão de trigo, antes era só broa.”

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“Deitava-se uma mistura de centeio nesta farinha de milho, era para fazer a Broa . Já tinha a farinha misturada com a de centeio, aí para uma arroba de farinha deitava um quilo de centeio, mais ou menos. Era para ficar mais escura, mais saborosa. Depois, aqueciam a água e deitavam logo o sal na água, não deixavam a água ficar muito quente e amassavam. Era hábito quando se fazia pão, deixar uma bolinha que se punha numa tigela e deitar uma manchinha de sal que era para na semana seguinte ter o crescente dessa massa para a outra levedar. Na semana seguinte, era este crescente que ia servir de fermento para a fornada que estávamos a fazer. Juntava-se este crescente à massa que se estava a amassar e, logo que estivesse bem amassada, fazia-se uma cruz e dizia-se «São Vicente te acrescente, S. João te faça pão, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo». Mas há mais ladainhas, há quem saiba outras. Cobria-se com um paninho quente para

“«O CALDO E A BROA, DEUS ABENÇOE O NOSSO LAR, É UMA

ALEGRIA, EM CADA DIA NÃO FALTAR, É UMA ORAÇÃO, É UMA CANÇÃO

QUE

O

POVO ENTOA,

E MATA A FOME À

POBREZA, TER À MESA

O CALDO E A BROA.»

ISTO É DO TEMPO

DA MINHA MÃE.”

Deolinda Filomena Almeida Martins Ferreira Roque 75 anos SOBRADO

a massa ficar mais quentinha e levedar mais depressa. Levedar mais rápido ou não dependia do sague da pessoa. A minha cunhada fazia sempre pão azedo, quando acabasse de amassar tinha de o cozer logo, senão ficava azedo. A minha mãe fazia o pão, ia ao monte buscar a lenha, vinha, aquecia o forno e, ainda, tinha de esperar. A lenha era queiró e urze, ia-se ao monte e trazia-se uma caixinha de lenha. Tirava-se um bocadinho de massa e punha-se numa bacia ou numa gamela de madeira, deitava-se um bocadinho de farinha para não agarrar e apolitava-se para ficar uma bolinha redonda. Tinha de se limpar o forno com uns farrapos molhados agarrados a um pau. Depois, punham a pá à beira do forno e uma pessoa apolitava a massa, punha-a na pá para ir para o forno. Para pôr no forno, era uma pá redonda feita em madeira. Para tirar era uma pá de ferro. Faziam-se os Bolos, ora com sardinha ou carne gorda. Fazia-se o Bolinho, punha-se nessa tal pá e punham-se as sardinhas por cima. Quando era carne gorda, aquela gordura derretia por cima da massa, ficava tão saborosa! O Bolo Ougado, comia-se atrás da porta que era para ninguém ver, era Bolo de Ougado! Eram aquelas pessoas que tinham inveja. Este Bolo era feito antes de deitar a broa ao forno. A Broa era o pão que se comia por casa, os moletes eram só para os ricos. A minha falecida mãe comprava um molete por um cruzado, eram quatro tostões.

A minha falecida mãe era Rosa de Sousa, nasceu em 1915.”

Florinda Martins Fernandes 92 anos

SOBRADO

“O milho era moído num moinho que o meu pai tinha. Depois, a farinha era peneirada, o farelo era para o gado e a farinha era para fazer a Broa . A minha mãe punha a farinha numa gamela, juntava água quente, sal e um bocadinho de massa que ficava de uma fornada para a outra, era o crescente. Era para a massa levedar. Às vezes, punha-se um bocadinho de centeio, quando queríamos a broa mais escura. Trigo não se punha, para aqui não se cultivava trigo, era só milho e centeio. Cozia-se a broa no forno. Fazia-se o Bolo de Sardinhas, temperava-se a sardinha só com sal.”

Maria da Silva Moreira 79 anos

SOBRADO

“A minha mãe cozia o pão para casa e misturava um bocadinho de trigo e de centeio no milho. Fazia um pão muito bom, a minha mãe. Nunca eu fiz! A maior quantidade era de milho, mas juntava-lhe sempre um bocadinho de centeio e de trigo. De trigo, era um bocadinho só, de centeio é que era mais, era para dar cor ao pão e fazer o pão mais macio.

Deitava a farinha de milho na gamela, pegava na trigo e na de centeio e deitava junto. Ia misturando tudo com as mãos. Abria um buraco no meio da farinha e começava a deitar a água quente já com sal. Depois, começava a juntar o crescente, era o que sobrava da última fornada que ela guardava dentro da salgadeira dentro de uma malga. Não me lembro das palavras que ela dizia, mas fazia-lhe uma cruz e punha-lhe um pano de estopa em cima da massa até ela levedar. Acendia

o forno com lenha de vide e de pinheiro. Quando a massa estava lêveda, ela tinha uma gamelazinha de madeira, mais pequena, punha a massa dentro dessa gamela, abanava a massa para o pão ficar redondo, deitava em cima de uma pá de pau comprida para levar a Broa dentro do forno, às traseiras do forno. Depois, deixava estar ali uma hora para o pão cozer.

Antes de cozer a broa, a minha mãe fazia o Bolo com Chouriça Partia a chouricinha, juntava por cima do bolo e punha ao forno, passado dez minutos estava pronto. Era baixinho, tinha dois dedos de altura. Ficava muito bom!”

Carolina Dias Moreira

84 anos M. Madalena Martins dos Santos 78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos SOBRADO

“Fizemos muitas vezes a fornada. A gente peneirava a farinha, depois, tinha de ter um crescente da fornada anterior para depois ela levedar, era guardado numa malguinha. Deitava-se um bocadinho de água morna com um bocadinho de sal, juntava o crescente e amassava aquilo, na gamela do pão. Deixávamos estar a levedar. A minha falecida mãe fazia uma cruz na massa e dizia «Deus nos acrescente que fique». Começava a levedar, e depois tinha que se apolitar para pôr no forno. Era uma broinha redonda. O trigo era mais para as festas.

Quando a nossa mãe fazia a fornada de broa e via que estávamos cheias de fome, deitava um Bolinho ou dois no forno com um bocadinho de carne gorda.”

Florinda Martins Ferreira

66 anos José Maria Soares

Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“As pessoas entregavam o milho para ir moer ao moinho. O moleiro ficava com a maquia, era a paga da moagem do milho. Tínhamos um forno que levava 15 kgs de pão, era o que dava cada fornada. Fazia-se Broa de 8 em 8 dias. Punha a panela ao lume a aquecer a água com sal. Tínhamos a gamela, havia quem pusesse farinha de milho e de centeio, nós quase sempre fazíamos pão só com farinha de milho. A farinha tinha de ser peneirada antes de ser posta na gamela. Fazia-se o crescente com um bocadinho do que sobrasse da fornada anterior. Tínhamos a farinha, púnhamos a água já com o sal, juntávamos o crescente e amassávamos muito bem. Já o forno estava a arder. Fazia-se uma cruz “Nosso Senhor te levede”. Cobria-se com uma toalha que era aquecida antes de pôr por cima da massa. Quando a «parinheira» do forno ficava branca, o forno estava quente. Toca a tirar o borralho para a lareira, aí ia aquecendo água. O borralho miudinho encostava-se à porta do forno, e com o varredouro limpava-se o fundo do forno. Depois, íamos apolitando o pão numa gamela pequena. Fazia-se uma broa com a massa que depois ia para o forno numa pá. Ficava lá hora e meia. A lenha vinha dos montes. Quando não havia pão para comer, fazia-se, primeiro, o Bolo Era mais achatadinho para cozer num instante. Tapava-se a porta ao forno com bosta de boi. Não se punha bolo com nada.”

Deolinda Filomena

Almeida Martins Ferreira Roque 75 anos

SOBRADO

“O pão que comíamos em nossa casa era o pão de milho que a minha mãe fazia. Era broa, mas chamávamos Pão de Milho. A minha mãe comprava milho e, depois, mandava moer, trocava por farinha. A mãe da minha mãe explorava um moinho, à beira do rio Ferreira. Maria Moreira, a nossa avó era moleira, era a mulher do «Presunto». O moinho não era dela, ela só o explorava. No tempo da guerra, a minha avó guardava o pão já moído para as grávidas, para elas não ougarem. Nesse tempo não havia pão para todos.

A minha mãe fazia broa uma vez por semana, também fazia aqueles Bolos. Era com a massa da broa, eram um bolos assapados, era com chouriço ou com sardinha, fazia uns bolitos para cada um de nós. A broa era boa, mas tinha de levar centeio. Numa arroba de milho, ¼ era de centeio. Punha-se a farinha de milho com centeio numa gamela, tinha uma tampa que servia de mesa, deitava uma panela de água a aquecer. Mas tinha de levar um isco que ficava da semana anterior, era o crescente que ficava numa malga. Pegava na farinha, fazia um buraquinho no meio, punha-lhe a água e ia mexendo, misturava a água com a farinha e amassava. Deixava ficar a massa ali a levedar. Depois a massa tinha era apolitada num alguidar de barro. A porta era fechada com bosta de boi. Era o que havia naquele tempo.

De vez em quando, comíamos pão de trigo, era uma senhora que vinha vender aqui pelas portas. Eram umas carcaças. E a minha mãe, por vezes, também cozia uma fornada de trigo. Era

muito raro, mas de vez em quando, lá cozia. E quando ela cozia uma fornada de trigo, enquanto a fornada de milho durava uma semana, a de trigo desaparecia em meia semana. Havia lá trigo em casa, pouco, mas havia.”

José Coelho Sousa Suzano 67 anos CAMPO

“Nós em nossa casa, comíamos mais Broa , também comíamos moletes. Comprava-se a broa e o pão às padarias. A minha mãe não tinha tempo para cozinhar. Era Rita Alves Coelho, nasceu em 1933 e o meu pai em 1929.”

Maria Alexandrina Carneiro de Matos Almeida 84 anos VALONGO

“O meu pai ia a pé para a Venda Nova, e eu ia todos os dias buscar o pão ao Sr. António da Tuna. Era o pão para o meu pai e para nós comermos. Mas a minha mãe cozia Broa todas as semanas. A minha mãe partia aquelas broas grandes e dizia «olha vai levar este bocado a fulana e outro a beltrana» a minha mãe aprendeu a dar aos outros com uma senhora que era muito bondosa. Dava sobretudo às mulheres viúvas. Era Rosa de Sousa Carneiro Serrado, a minha mãe. Era milho com centeio, fazia para dar aos outros. «Não digas nada a ninguém.» A minha mãe cortava todos os dias um cesto grande de couves e punha à entrada da porta, era para quem queria levar. No tempo dos figos, era um pratinho para cada uma. Eram figos pingo de mel, eram outros do S. João, era uns figos pretos. Era broa para nós e para dar. Eu gostava mais do Pão de

Milho, também fazia uns Bolos pequeninos para cada um de nós. Tapava-se a porta do forno com bosta de boi. A minha mãe misturava sempre um bocadinho de trigo ou de centeio, porque tínhamos. O trigo e o centeio eram cultivados no quintal. Era na rua Sousa Viterbo, era aqui em Valongo. O milho era produzido no campo, com o feijão moleiro, naqueles terrenos que ficam aqui à beira de Valongo. Vinha um moleiro de Campo, eram da família dos Cucos. Vinha a cavalo, deixava o cavalo amarrado lá a casa e levava a farinha. A minha mãe peneirava a farinha tudo, fazia 15kg de cada vez, era a quantidade da rasa. Peneirava e deixava o farelo para as galinhas, misturava com centeio ou trigo. O fermento era guardado de uma semana para a outra, era o crescente. A gamela era um armário, tinha uma tampa e por baixo é que se amassava a broa. Punha a farinha, fazia uma barroca e juntava-lhe a água morna, punha o crescente e desfazia o crescente naquela barroquinha. Ela deixava ficar coberto um bocado e, depois, é que amassava. «Senhor faz com que este pão cresça para saciar a nossa fome». A minha mãe queria dizer a fome de todos, nem tanto a nossa. Depois, cobria uma toalha de linho por cima, uma manta no Inverno por cima da toalha, punha a tampa e deixava ali a crescer. Ia aquecendo o forno com lenha que mandava cortar na cavada. O eucalipto dá um cheirinho tão bom! A minha mãe fazia logo um bolo, era diferente! Era tão gostoso! A gente não tinha fome de pão, mas sabia tão bem. Às vezes, punha-lhe uns bocados de carne, outras vezes eram uma sardinhas, era um mimo! Era com uma gamela de madeira para apolitar. Na minha avó, punham

umas folhas de couve por baixo. A minha mãe limpava muito bem o forno e já não era preciso pôr a couve por baixo. A broa acompanhava o caldo de couve com feijão, e eu adorava comer o peixe frito com broa.”

Maria Armandina de Sousa

Dias Paiva 62 anos ALFENA

“Alfena tinha lavradores de milho. Quando veio a guerra, Portugal sofreu com muito sacrifício. Os lavradores tentavam produzir o máximo e depois tinham que entregar muito do que produziam, o resto escondiam para escapar à fiscalização que vinham fazer. Faziam pilhas de estrume e escondiam debaixo dessas pilhas os sacos com o pão, o milho.

A minha mãe andou a servir em casa de lavoura, era comum que os filhos mais velhos fossem servir e a minha mãe, como era das mais velhas, foi servir. Trabalhava a troco de prato de comida, não era à jorna. Na altura, era considerado normal. Vinham pessoas de longe para trabalhar para os lavradores. Há muita gente aqui do Marco, de Baião que vieram nessa altura e que ficaram, mas que não são naturais daqui. Eram tempos muito difíceis.

O pão que comíamos era de milho, Era de mistura de milho com centeio, era o pão áspero.

A mãe do meu pai, a minha avó cozia Broa . Chamava-se Laurinda, de alcunha Palheiro. A minha avó tinha um fogão de serrim. Tinha a masseira, era uma mesa grande que quando se levantava a tampa dava para amassar o pão. Punha-se aqui a farinha, água quente e o fermento, naquela altura dizia-se o crescente, que ficava de umas fornadas para as outras. Este fermento ficava

numa malguinha de barro que depois levedava, ficava azedo e abria. Esse crescente ficava para a próxima fornada. Em casa com muitos filhos, era preciso uma fornada a cada semana. Faziam-se as broas de milho e faziam-se uns Bolos de Ougados A miséria era tanta, as crianças iam com a mãe à venda, naquela altura havia uma parte que era só para homens e outra para mulheres. Eu lembro-me de ir com a minha mãe, e eu lembro-me de ficar com os olhos vidrados nuns tabuleiros de marmelada, ou numa bola de queijo, ou nuns molhinhos de chocolatinhos atados com uma fitinha de cor, ou nuns guardas chuvas de chocolate. Uma mãe ia às compras, com os tostões contados e com um ou dois filhos pequenos que não podia deixar em casa. É claro que ficávamos com os olhos vidrados no que estávamos a ver. É claro que salivávamos! Vínhamos para casa e o que é que ela tinha para nos dar? O caldo. Agora é mais fino chamar sopa. Criava-se um porco para dar para o ano e tínhamos umas galinhas à solta pelo quintal. Mas as galinhas eram só para a Páscoa, para o Natal e para quando alguém ficava doente, para umas canjinhas. Do porco, no caldo punham-se os ossos para dar o gosto. E punha-se a couve galega, o feijão de casa, era vermelho e, como não havia azeite, com a gordura do porco fazia-se o pingue que era a carne gorda derretida que se punha nuns potes vermelho vidrado por dentro, o pingue coalhava e era com esse pingue que se adubava o caldo. A gente vinha da mercearia, víamos aquelas coisas tão boas que nunca tínhamos comido, mas que imaginávamos o gosto, apresentavam-nos uma malga de caldo, a gente ficava a

olhar e não comia. Ficávamos ougados, então a minha avó todas as fornadas de broa que fazia, fazia sempre uns Bolos de Ougado para mandar para os netos, porque nós éramos continuadamente ougados. Eramos esqueléticos, nariz e orelhas. Agora as minhas orelhas são pequenas, mas naquele tempo tornavam-se grandes. Esses bolos de ougado eram mais ou menos da palma da mão, era um para cada um e depois levavam assim uns buraquinhos feitos com o dedo e nesses buraquinhos punha-se uma pintinha de azeite. E tínhamos que comer esse bolo de ougado atrás da porta. Não podíamos comer todo, tínhamos que deixar um bocadinho para depois darmos ao cão ou ao gato e ficava o ougado para o cão ou para o gato. Ou seja, o ougado das crianças passavam para o animal.

Também se fazia um outro Bolo, aí com 3cm de altura, mas era depois posto ou sardinhas, era o Bolo de Sardinhas ou Bolo da Carne Gorda . Punha-se da barriga do porco, em cru, por cima do bolo, E com o calor do forno ficava tipo rojão porque era fininha, a banha derretia, ficava crocante.”

Maria da Conceição

Martins Martinho Silva 70 anos ALFENA

“Comia-se Pão de Milho, hoje diz-se broa, mas naquela altura dizia-se Pão de Milho. Tínhamos que levar o milho ao moinho que havia no rio Leça para ser moído, era uma arroba ou meia arroba, tudo dependia do que se tinha. Na masseira, punha-se farinha de milho e farinha de trigo, a água já com o sal e o fermento. Era aquele que tinha ficado da fornada anterior, ficava numa taça de madeira a fermentar. Quando era para deixar a levedar, fazia-se uma cruz na massa e dizia-se «Em louvor de S. Vicente, te abençoe e te acrescente. Em louvor de S. Silvestre, tudo o quanto eu peça, me preste» Coziam-se estas broas em cima de uma folha de couve. Também se faziam uns Bolos de Sardinha ou de Carne Gorda . Era sardinha da pequena temperada com sal ou, então, um bocadinho de carne gorda frita.

Quando as crianças ficavam ougadas, as mães tinham que ir pedir sete rabos de bacalhau a sete Marias diferentes. Depois, coziam-se esses rabos e a criança tinha que lamber um bocado de cada um. Fazia-se uma cova no quintal e enterrava-se o que não tinha sido comido. O certo é que valia a pena, passava o ougado. Eu era muito ougada pelo queijo, a gente em casa quase nunca tinha queijo. Eu ia à mercearia, olhava para o queijo e pronto! Ficava ougada, Não queria comer nada. O meu pai fazia brincadeiras comigo para ver se eu comia alguma coisa, mas eu estava ougada. Tinha de se cortar o ougado.”

Preparar o Inverno. A Matança do Porco, Dias de Milho.

AS PAPAS DE SARRABULHO. “As Papas de Sarrabulho faziam-se quando se matava o porco, era pelo Santo André. «Pelo Santo André, qui, qué!»

Era no tempo do frio que se faziam as matanças.”

LUCINDA DE SOUSA COELHO DA ROCHA, 81 ANOS. MANUEL DA SILVA ANDRADE, 80 ANOS. SOBRADO.

Depois das colheitas de Verão, a entrada no tempo frio trazia a necessidade da preparação do Inverno. Salvava-se tudo o que tinha sido colhido pela conservação de modo que o ciclo agrícola pudesse ser encerrado com proveitos. Depois dos últimos dias quentes de Outono, adivinhavam-se os dias gelados de Inverno que iriam durar para lá do Natal. Era tempo de, em Novembro, matar o porco que, cuidadosamente, tinha sido cevado durante um ano. De algum modo, a matança, feita antes da chegada do Inverno, anunciava um novo ciclo, o do porco novo que iria encher a salgadeira e que daria a oportunidade de comer uma das mais saborosas refeições, as Papas de Sarrabulho sempre acompanhadas do Sarrabulho, também chamado de Picado, e dos Rojões.

Se o sangue do porco, noutras geografias era utilizado para fazer morcelas, pelo concelho de Valongo e toda a região minhota, ele é o Sarrabulho, o sangue cozido. Depois de aparado, deixava-se coalhar, cozia-se e punha-se a escorrer em cima de louro para assim lhe tomar o gosto. Com ele, as Papas engrossadas com farinha de milho, «pão» que alimentava em dias frios.

As miudezas do porco como os boches (pulmões), os rins, a traqueia, o fígado e o coração, noutros lugares aproveitados para fazer enchidos, em Valongo, serviam para fazer o Sarrabulho que acompanhava as Papas. Nas casas mais humildes, os proveitos do porco não serviam para fazer chouriços, eram muitas vezes para vender e, assim, dar conforto financeiro à casa. No entanto, são lembrados os chouriços, os salpicões e o salpicão da língua.

A prática da matança há muito abandonou o centro do concelho. Pela oportunidade de aproximação ao conforto urbano, deixaram-se os rituais da ruralidade ficando essa prática distribuída pelas freguesias ainda de cultura rural. Contudo, mesmo sem matança, em Valongo, centro urbano, não foram esquecidas as Papas de Sarrabulho, feitas com o nutritivo milho, pão minhoto, na forma de pão e de receita.

“Faziam-se Papas de Sarrabulho Aquilo era muito bom, faziam-se à semana. Hoje, ainda faço. Cozo frango, unha de porco, toucinho, coisas que façam gordura, costela. Depois, tiro isto para fora da panela. Nesta água, também cozo o sangue. Ralo o sangue bem raladinho e deito dentro. Deixo a água ferver, peneiro a farinha de milho e tiro um bocadinho de água para desfazer a farinha. Junto tudo e mexo, mexo, mexo, até ficar com a consistência que gosto. Ponho cominhos e pimenta. Às vezes, faço Rojões. Frita-se a carne com banha e um bocadinho de azeite, a banha que sai do redenho. Depois, misturo nas batatas fritas e ponho tripa enfarinhada.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira

VALONGO

“Quando tínhamos sangue de porco, faziam-se as Papas de Sarrabulho. Cozia-se o sangue, depois punham-se as carnes de porco a cozer. Usávamos aqueles ossos e cozíamos com uma malguinha de arroz e uma malguinha de bocadinhos de alho para dar o sabor. Tirava estas carnes para fora para depois se guisarem. Ralávamos o sarrabulho, o sangue, para dentro da água da cozedura. Depois, desfazia farinha, metade de milho e metade de trigo, e juntava àquela água. Fazíamos um refogadinho de azeite, cebola, alho e refogávamos aquelas carnes, era para comer à parte. O sangue era sempre para as Papas.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“Tivemos porcos e matávamos. Fazíamos Papas de Sarrabulho Há quem faça com a água de lavar o porco, mas nós não. A minha mãe usava os ossos e o que sobrava, as aparas, para dar sabor. Depois, coávamos a água, temperávamos com sal e pimenta, juntávamos o sangue e a farinha aos poucos. No final, punha cominhos.

Também se faziam os Mexidos Os melhores bocados de carne era para Rojões. Os bocadinhos de fígado, o coração, os pulmões, aquilo que se chamam os boches, coziam-se, e fazia-se um refogado. Deitava um bocado de azeite, ou então, o redenho. Depois, deitava o fígado, um bocadinho de pimenta, um bocadinho de alho e juntava o sangue, o sarrabulho. Nós ao sangue, chamamos o sarrabulho. Era muito bom. Fazia tudo parte dos Mexidos.

Fazíamos as Chouriças e os Salpicões. Punha a carne em vinha d’alhos, alho, sal e vinho e loureiro. Estavam uns dias bons naquele molho. Com o intestino delgado faziam-se as chouriças e com as mais largas faziam-se os salpicões. Também se fazia o Salpicão da Língua , temperada como as outras carnes. Depois, as chouriças iam para defumar. Faziam-se os Presuntos que se punham numa arca de madeira com muito sal, às camadas. Eram depois pintados com colorau e azeite. Não se faziam morcelas, o sangue ia todo para as Papas e para os Mexidos.”

Maria Emília Ferreira

Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“De vez em quando, comíamos o nispe da perna, comprávamos, pois não criávamos porcos em nossa casa. Também se iam buscar febras para fazer panadas com arroz. Quando algum familiar matava o porco, mandava cá a casa um bocadinho de sangue já cozido e a minha mãe fazia as Papas de Sarrabulho. Cozia a carne naquela água, depois tinha o sangue já cozido e esfarelado e engrossava com farinha de milho.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos VALONGO

“Fazíamos Papas de Sarrabulho com farinha milha.”

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“As Papas de Sarrabulho eram feitas com a água de lavar o porco. Matava-se o porco, aparava-se o sangue com um bocadinho de sal. Abria-se o porco, tiravam-se as tripas o fígado, o coração, depois, o porco era lavado e as pessoas aproveitavam essa água. Aparavam a água e aproveitavam aquele sangue, aquelas gorduras que ficavam. Esta água ia para o lume, deitava-se um osso do Suão, que era da espinha, juntavam-se os boches e o fígado e, quando estivessem cozidos, tiravam-se para fora que era para depois fazer o sarrabulho. Na água, quando se coziam aquelas coisas, deitavam-se cominhos, uma folha de louro e havia quem deitasse uma macheiazinha de arroz. Ficava

bem cozidinho. Depois, nesta água é que se deitava a farinha para fazer as papas e juntava-se o sangue ralado, mas já cozido. Quando se cozia o sangue, juntava-se uma folha de louro e sal e, logo que o sangue estivesse cozido, punham-se canas de loureiro numa bacia para pôr o sangue a escorrer. Para o Sarrabulho, fazia-se um estrugido com cebola e azeite, a cebola tinha de ficar estaladiça. Depois, partia-se tudo aos bocadinhos, os boches, o fígado, o baço, o coração e deitava-se um bocadinho de água das Papas, deixava-se tudo a refogar um bocadinho. A minha falecida mãe ainda deitava um bocadinho de vinho para deixar um bocadinho daquele sabor do azedo. Deixava-se apurar, metia-se o sangue ralado e temperava-se com cominhos. Acompanhava com Arroz Seco, branco. Este arroz era feito com cebola e azeite, devia ficar a cebola estaladiça e, depois, punha-se a água e, por fim, o arroz. Fazia-se no tacho. Na Matança, faziam-se as Papas, o Sarrabulho e os Rojões, eram as febras do porco que se deitavam num tacho com pingue, era o unto do redanho. Deitavam-me as febras e faziam-se os Rojões até ficarem louros. Nesse pingue, havia umas pessoas que deitavam umas batatas. No dia Matança era a Sarrabulhada. A gordura que era a parte branca da barriga guardava-se para temperar a sopa. Tirávamos os lombos e fazíamos Salpicões. Punha-se o lombo em vinha d’alhos, com vinho tinto, sal e alho. Deixavam-se estar ali durante quinze dias. Eram feitos nas tripas grossas que eram lavadas com água corrente do rio. Depois, em casa, eram lavadas

todos os dias. Faziam-se os salpicões que iam para o fumeiro. Também se sobrassem algumas febras, faziam-se umas chouriças. O estômago do porco era para fazer um salpicão que era a Maria Também se fazia o Bucho com Feijão e o resto das tripas. Tiravam-se da água e punham-se em vinha d’alhos e faziam-se as tripas com feijão. Primeiro eram cozidas à parte, depois fazia-se o estrugido com azeite e cebola, e depois é que se juntavam as tripas ao estrugido. Por fim, é que se juntava o feijão.”

Florinda Martins Fernandes 92 anos SOBRADO

“Pelo Santo André, matava-se o porco e faziam-se as Papas de Sarrabulho, a minha mãe cozia bastantes ossos de porco na água de lavar o porco. Esta água já levava algum sangue, alguma gordura e a minha mãe também lhe juntava os bofes, o fígado e o baço. Mas estes miúdos serviam para fazer o sarrabulho. Depois de tudo bem fervido, tiravam-se os ossos e os miúdos, e faziam-se as papas com aquela gordura toda e com o sangue já cozido. Era só juntar a farinha de milho. Com o sangue cozido, o fígado, os bofes, o baço, esses miúdos todos, fazíamos o Sarrabulho Púnhamos cebola e azeite para o estrugido, era tudo cortado miudinho. O sangue cozido cortado aos bocados era a última coisa a ir. Também se faziam os Rojões. O meu pai partia os presuntos e as pás e púnhamos a defumar. Os lombos iam para os salpicões, levavam vinho sal e alho, ficavam 3 semanas. Ficavam escurinhos e sequinhos. Os rojões eram os bocados

que se apanhavam e coziam na panela. Tinham de ter gordura. Os presuntos ficavam 3 semanas debaixo do sal. Comprava-se muito sal para os presuntos. O bucho enchia-se de carne, ficava um salpicão muito grande.”

Maria da Silva Moreira 79 anos

“No dia da matança era um Arroz de Cabidela de galinha de casa. A minha mãe matava a galinha, aparava o sangue, punha-lhe um bocadinho de vinagre e, depois, fazia um estrugido com cebola e azeite. Deixava corar um bocadinho a cebola, deitava água, sal e metia o frango a cozer. Quando o frango estivesse quase cozido e a matança quase arrumada, metia o arroz e, depois, o sangue com o vinagre. Era para o arroz ficar caldoso. Era esta a comida da matança.

Matava-se o porco e chamuscava-se para lhe tirar o pelo. Era bem lavado com sabão, usavam-se uns raminhos de carqueija para raspar o couro. Depois de estar bem lavado, o porco era pendurado e eram tiradas das tripas para uma bacia, uma giga. A minha mãe punha um bocado de palha no fundo e um lençol de estopa que era para as tripas caírem ali em cima direitinhas. Eram levadas para a cozinha bem tapadas para não arrefecerem. Tinha a tripa delgada e tinha os regelos do redanho, é aquela parte que fica toda frisadinha que é tirada da tripa delgada. A tripa grossa tem unto, tira-se o unto. Depois de saírem as tripas, do lado das bandas do porco tem as partes que se chamam as bandas de unto. Isso é tirado, deitam-se num alguidar e a minha mãe usava pôr

umas areinhas de sal para depois ser derretido e guardar. Servia para temperar o caldo durante o ano. Deitava-se numas talhas de barro tapadas com uma tampinha, a minha mãe ia lá buscar umas colherinhas daquele pingue para temperar o caldo. Diz-se unto quando sai do porco, diz-se pingue quando já foi derretido e é guardado. Os regelos do redanho eram feitos e comidos, o pingue que ficava era também guardado.

Quando o porco era morto tinha de se ir aparar o sangue. Aparava-se o sangue só com umas areinhas de sal no fundo do alguidar. Quando o sangue estivesse bem coalhado, punha-se na panela que já estava ao lume com água a ferver. A minha mãe tinha um alguidar de barro com furos e, no fundo do alguidar, punha um raminho de loureiro para depois pôr o sangue a escorrer e tomar um bocadinho do gosto do loureiro. Este sangue era para fazer as Papas de Sarrabulho

A minha mãe punha os ossos do suão, aquela parte do canal da língua ao estômago, os boches, o fígado, o coração, e punha tudo a cozer na água que era para as papas. Era a água de lavar o porco por dentro, que ficava sempre com alguma gordura. Com estas coisas que tinham sido cozidas na água do porco, a minha mãe fazia o Sarrabulho. Fazia um estrugido, cortava tudo aos bocadinhos e deixava refogar. Pegava em sangue cozido e misturava naquilo. Não se punha vinho no sarrabulho. Naquela água, juntava-se a farinha de milho e um bocadinho de sangue. Eram as Papas de Sarrabulho. A minha mãe punha os cominhos na mesa, quem quisesse servia-se. Os Rojões é só febra, saem da parte dos presuntos e das costelas.

Partem-se à feição dos rojões, deitava-se uma areinha de sal e iam assim para o tacho, mexia, para não torrarem. O pingue era aproveitado para a sopa. Os ossos eram guardados na salgadeira, eram enterrados no sal. Quando fosse para se usar, eram postos de molho para perderem o sal. Tudo o que fosse para defumar, tinha que ser enterrada um mês, os presuntos, os meios, a cabeça. Tinha de ser tudo bem calcado para não se estragar. O resto da carne, que era para os salpicões, para as chouriças e para os rojões, era posto por cima da carne que estava a salgar, ficava a tomar um bocadinho do sal. Ficavam 3 dias no sal. Ao fim de três dias, a minha mãe, para as Chouriças, cortava tudo pequeninho, era na tripa delgada. O salpicão cortava à medida do salpicão, era para as tripas mais grossas. Ficavam em vinho tinto e alhos. Depois, eram cheias com um funil. Ia-se puxando na tripa e fechava-se com fio de norte. Iam para o fumeiro 12 ou 15 dias. Com a língua fazia-se o Salpicão da Língua . Era o melhor salpicão, temperava-se da mesma forma.

O Bucho era feito com feijão. Cozia-se com água e sal depois de bem lavado com água corredia. Lavávamos no rego do moinho, era água que vinha corredia. Mas o bucho tinha que ser muito limpo, muito bem rapado. Era como as tripas, e nós tínhamos um pau para virar as tripas, para tirar aqueles lismos todos. Tinha que ser um pau fino. O bucho era cozido em água e sal. Fazia-se um estrugido, juntava-se o bucho já cozido e partidinho. Juntava-se o feijão, a minha mãe punha os cominhos e a folhinha de loureiro. Os Miolos eram feitos com ovinhos. Fazia-se um refogadinho, cortava-se um

bocadinho de carne de lombo, muito partidinha aos bocadinhos, deitava-se naquele refogado, deitavam-se os miolos e 3 ou 4 ovinhos, mexia-se. Era de comer e chorar por mais!”

Carolina Dias Moreira

84 anos M. Madalena Martins dos Santos

78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos

SOBRADO

“Chegava-se ao fim do ano e, às vezes, não chegava para pagar a renda das terras. Era muito duro, o que se produzia não dava para pagar as rendas. Quando se matava o porco faziam-se Papas de Sarrabulho para dar a quem nos tinha ajudado nas terras. Do porco, só ficávamos com a carne gorda, de resto vendia-se tudo, os presuntos, os salpicões, tudo.

Para as Papas de Sarrabulho, deitavam-se os ossos do suão, o fígado, os boches, a língua e usava-se a água de lavar o porco por dentro. Depois de ferver, tirava-se tudo e deitava-se a farinha de milho. Havia quem deitasse uma colher de pingue para ficar mais gostoso. Mas as papas tinham que ser mexidas com calma. A nossa mãe gostava das Papas mais ao branco, sem muito sangue, só com aquele que vinha com a água de lavar o porco.

À parte fazia-se o Sarrabulho, agora diz-se Picado, mas antes era Sarrabulho. Fazia-se um estrugidinho com azeite, alho, vinho branco e deitavam-se os boches, o fígado, a língua e outras miudezas do porco que tinham sido cozidos. Ficavam a apurar no vinho tinto. Naquele molho, punha-se a apurar o sangue já cozido e esfarelado. Havia quem comesse isto a acompanhar com as Papas.

Já a minha mãe (M. Madalena dos Santos), nas Papas, punha o sangue, cozia-o e deitava-o a secar numa cesta por cima de carqueja. Nunca fazia as Papas sem o sangue. O sangue era cozido à parte, esta água de cozer o sangue não servia para nada, deitava-se fora.

Faziam-se os Presuntos, tinham de ser muito bem cobertinhos de sal, não estarem quentes, tinham que ser bem esfregadinhos de sal, muito bem. Os Salpicões eram feitos com a febra, a Chouriças eram com as carnes mais pequeninhas e com gordura. Levavam alho, pimenta, sal e vinho. Era para as moscas não pousarem. Também se fazia o Salpicão da Língua . O Bucho era bem limpo e depois refogado com feijão branco.”

Florinda Martins Ferreira 66 anos José Maria Soares Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“As Papas de Sarrabulho faziam-se na matança do porco. Apanhava-se, para um alguidar com sal, o sangue que ia logo cozer em água. Abria-se o porco para tirar as miudezas e, depois, lavava-se o porco com água. Aproveitava-se esta água para fazer as papas. Púnhamos a água ao lume com os ossos da suão, bocadinhos de costela, o fígado, boches e outras miudezas. Depois de tudo cozido, tirava-se e só ficava a água com uma folha de louro. Metia-se a farinha de milho já peneirada. Podia pôr o sangue cozido, mas como a água já tinha uma cor, já não era preciso pôr sangue. O sangue ficava para o Picado. Fazia um estrugido com cebola, alho azeite ou com pingue, águas das papas e um bocadinho de vinho, uma folhinha de louro. Depois, cortava-se tudo aos bocadinhos e punha-se naquele

refogado. Ficava ali no fogão a apurar. Depois, é que se juntava o sangue esfarelado. Faziam-se os Rojões, que era a carne da pá do porco, cortados aos bocados e cozinhavam-se no pingue no alho e no louro. Misturavam-se umas batatinhas, era outra refeição. As papas faziam o lugar da sopa. Também havia os Rojões do Redenho, eram feitos como os Rojões do Pingue.

Era a Sarrabulhada.

O resto das carnes , era tudo salgado na salgadeira para não apanhar a mosca. Os Presuntos ficavam no sal durante 3 a 4 semanas, eram depois sacudidos com um rameiro verde e iam para o fumeiro. Púnhamos o lombo em vinha d’alhos, com vinho tinto, alho e sal. Ficava a marinar uma semana. As tripas eram lavadas no rio Ferreira, com uma cana de louro para lavar bem a tripa. Depois, esta tripa também ia para a vinha d’alhos Não se faziam Chouriças, ficava esta carne para alimentar a família, éramos muitos.

Os Miolos punha na sopa ou numa açorda. A minha mãe tirava a água da sopa, punha-lhe um bocadinho de pão de milho e aqueles miolos. Comia assim, o meu avó. O Bucho fazia-se uma feijoada, cortado aos bocadinhos e com um bocado de carne, se houvesse. A bexiga enchia-se e secava-se. Fazia-se uma bola. Os ossos da suã, salgavam-se e depois coziam-se para fazer a sopa e, depois, para fazer arroz com os ossos da suã. O rabo também se comia.”

Deolinda Filomena

Almeida Martins Ferreira Roque 75 anos SOBRADO

“Com a farinha de milho faziam-se as Papas de Sarrabulho. Abria-se o porco e lavava-se. Essa água escorria-se para um alguidar, tinha restos de sangue e de gorduras, era usada para fazer as papas. Punha-se numa panela ao lume, com alguns ossos, os boches, o fígado, o rim. Estas coisas, depois, eram para fazer o Picado. Era nessa água que se punha a farinha e o sangue esfarrapadinho. Temperava-se com cominhos. Esses boches e as outras miudezas eram refogados com cebola, alho, no pingue que ficava dos Rojões do Redanho Tinha os Rojões com as batatas que eram «rojidas» junto com os rojões. Tudo isto era o Sarrabulho. Fazia-se um bocadinho de arroz para acompanhar. Os Presuntos eram guardados na caixa do milho, era lá que eram curados os presuntos, era para conservar. O Bucho era para fazer feijoada.”

Joaquim Moreira Camilo 85 anos Maria Olinda Barbosa da Rocha 78 anos VALONGO

“Fazíamos Chouriças, Salpicões e Presuntos. O resto da carne era para a salgadeira. Nas Papas de Sarrabulho, põe-se a água de lavar o porco, que sai misturada com sangue, a ferver com os ossos do suão, as costelas, os boches, fígado, a banha dos rojões, aquilo coze muito tempo. Depois tiram-se os ossos, desfaz-se a farinha num bocado de água, desfaz-se o sangue e junta-se a farinha. Tem de se mexer para não agarrar. Leva cominhos e uma folha de louro que se tira antes de ir para a mesa.”

Maria Armandina de Sousa

Dias Paiva 62 anos ALFENA

“As Papas de Sarrabulho faziam-se só pela matança. Os miúdos do porco aproveitavam-se todos, desde o terrinque, os pulmões, faziam-se estufadinhos com batatas, cominhos e loureiro. Era uma refeição. O fígado era fatiado e faziam-se Iscas para comer com batata cozida e cebolada. Era uma comida das tascas.

As Papas de Sarrabulho eram feitas com a água que saía de lavar o porco. Esta água ia para a panela para ferver. O bicho era morto e aproveitava-se o sangue, coalhava logo, era cozido em água, loureiro e sal. Esse sangue era esfarelado e posto na água que ia ferver para as papas. Depois, na hora de servir, juntava-se a farinha de milho e um bocadinho da gordura do rojão. Punha-se um bocadinho de pimenta, cominhos para as papas ficarem apetitosas. Havia quem fizesse os rojões para dar ao matador como merenda.

Faziam-se os Chouriços e os Salpicões. Os chouriços eram os bocados mais pequenos, com carne e gordura, levavam vinho tinto, cebola, loureiro, sal. Só precisavam ficar 3 dias neste tempero. Os salpicões levavam o mesmo tempero e mais pimenta e, em vez de 3 dias, ficavam 5 dias. Eram metidos nas tripas com o auxílio dos funis de encher chouriças. Eu comprei um na feira de S. Martinho em Penafiel. A minha mãe vinha com a giga à cabeça com um pano branquinho com as tripas para vir lavar aqui nos regatos. Trazia-se um pau de loureiro para virar as tripas. O interior da tripa ficava sempre no exterior do chouriço, esfregava-se com sal e eram lavadas

em água corrediça. A língua era estufada. Da cabeça do porco, o melhor que tem o focinho.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abre 82 anos CAMPO

“Ainda hoje faço Papas de Sarrabulho. Cozem-se os ossos do porco, o sangue é cozido à parte. Depois, desfia-se a carne dos ossos, põe-se a farinha e o sangue cozido desfeito. Juntam-se cominhos, ficam muito boas. Isto era uma coisa que se fazia quando se matava o porco ou quando havia sangue no talho. As matanças eram mais no Inverno ou em Março.

Na matança também se faziam os Rojões, eram as febras tiradas acima dos presuntos que se cozinhavam naquela gordura, na banha. Aos Rojões juntávamos o fígado, os rins, os bofes, ficava tudo muito bom. Havia quem pusesse sangue cozido por cima. Os lombos eram para os Salpicões, mas a minha mãe como era muito boa pessoa, quando matávamos o porco dávamos carne à vizinhança e, depois, quando queríamos fazer os salpicões já não tínhamos carne. A minha mãe dizia «coitadinhos, eles não têm nada, não tem nada» e nós como tínhamos muito, então, a minha mãe lá dava um bocadinho a este, um bocadinho aquele, quando dávamos por ela, lá tinha ido o porco todo.

A carne pouco chegava, mas se restava algum lombo lá fazíamos um Salpicão. O tempero era vinagre de vinho tinto, alho picadinho, muito picadinho, sal, estava lá uns dias naquela marinada. Depois, enchiam-nas tripas grossas, faziam-se os salpicões. Ficavam 3 ou 4 semanas no fumo.

As Chouriças eram feitas com a carne lombeira, era a carne mais gorda. Ficavam no mesmo tempero como os salpicões. Os presuntos ficavam no sal 3 a 4 semanas e, depois, com azeite e colorau untavam-se e iam para o fumo. O sangue era todo usado nas Papas e para dar aos vizinhos.”

M. da Conceição Martins

Martinho Silva 70 anos ALFENA

“Nas Papas de Sarrabulho, usava-se a água de lavar o porco que era recolhida num alguidar de barro. Depois, esta água ia a ferver numa panela com sal, folhas de louro, os bolfios, a língua, os pulmões, o coração, alguns ossos da suã. Depois de tudo estar cozido, tirava-se e deitava-se farinha de milho com muitos cominhos, sempre a mexer. Também juntava um bocado de sangue cozido, mas esfarelado.

Na matança, faziam-se as Chouriças e os Salpicões. Para as Chouriças, usavam-se as tripas finas e no salpicão era a tripa grossa. A carne era posta a marinar em vinho tinto, alho, cebola, sal, duas folhas de louro, ficava assim durante 5 dias. Depois, tinham de se encher e pôr no fumeiro.

O Bucho do porco, depois de bem limpo, cozia-se e servia-se com molho verde. Era com azeite, vinagre, salsa e cebola partida aos bocados.”

Solstício de Inverno. Celebrar o Natal. Dias de Pão de Trigo.

“Nós vimos em coro regar as pançadas, comer sopa seca e também rabanadas.”

CAROLINA DIAS MOREIRA, 84 ANOS. M. MADALENA

MARTINS DOS SANTOS, 78 ANOS. ERMELINDA SOUSA DIAS, 92 ANOS. SOBRADO.

No período pré-cristão, a passagem para o tempo de Inverno era acompanhado por um conjunto de rituais que indiciavam a mudança de ciclo. Por um lado, a certeza da entrada no tempo do adormecimento da natureza que trazia a angústia dos dias frios e a total ausência de produção agrícola, por outro lado, a certeza de que, após uma caminhada para o declínio da força solar iniciava-se a aproximação ao tempo quente. No dia 21 de Dezembro, a luz do sol morria para renascer. Crentes de que seria necessário usar os proveitos do ciclo agrícola passado, os povos agrícolas sentiam na segurança do solstício de Inverno o anúncio de um novo ciclo. Por isso, na crença do renascer da luz, o período anterior e posterior ao solstício sempre foi acompanhado com rituais alimentares de abundância.

Terá sido essa força cultural derivada da ligação ao ciclo agrícola que condicionou a religião cristã a associar o nascimento de Jesus Cristo, a Luz do mundo, a um período de tanto simbolismo para os povos agrícolas. Por isso, o calendário cristão situa o Natal num momento determinante do calendário solar.

Enquadrado num contexto cultural de usufruto da abundância conseguida no período agrícola anterior, a época natalícia perseguiu essa mesma tendência. Assim, o Natal terá sido sempre momento de fuga à rotina alimentar dos dias de trabalho, trazendo consigo os rituais de celebração. Por isso, a utilização dos produtos tão valorizados como o trigo, o azeite, a carne, produtos que, quase eram interditos nos restantes dias do ano, não só pela escassez, mas também pelo valor simbólico. Fazia-se a festa do nascimento da Luz do mundo, Jesus Cristo, um sol que a todos ilumina, com a fartura. Neste contexto, pelo concelho de Valongo, o Natal trazia consigo os dias de pão de trigo, mesmo para as famílias que menos condições tinham de acesso a este pão. Na verdade, se durante o resto do ano, o quotidiano era preenchido pela fornada semanal de pão de milho, a chegada do Natal permitia uma alimentação diferenciada. A acompanhar a refeição, lá estava a regueifa, pão mais requintado, ou o pão de trigo pequeno como o molete. Na festa, todas as casas viviam a obrigação de fazer as Rabanadas, a Aletria e a Sopa Seca. Era tempo de esquecer a frugalidade e sentir o doce, habitualmente proibido pela inacessibilidade. Ainda que humildes, todas as famílias usufruíam de um receituário diferenciado.

No entanto, a proximidade ao pão que as famílias de padeiros e padeiras tinham, permitia que não fosse esperar pelo Natal para comer Rabanadas ou Sopa Seca. Fazendo uso do pão velho sempre disponível nas padarias, naquelas famílias, aquelas receitas eram de uso comum e faziam-se amiúde.

Entre as receitas das Rabanadas, Aletria e Sopa Seca, no centro do concelho, em Valongo, há um fio que as liga e que ajudava na economia dos ingredientes. Na verdade, os testemunhos revelam que, no princípio de tudo, estaria o pão e a calda de açúcar feita com água, açúcar, limão, canela e umas areiazinhas de sal. Ou seja, a mesma calda seria usada, nas Rabanadas, para molhar o pão antes de o passar pelo ovo, na Aletria, para cozer a massa, e na Sopa Seca para humedecer o pão antes de o colocar em camadas no alguidar. Esta seria a arte culinária mais utilizada.

Destas três receitas referidas, no período natalício, as Rabanadas oferecem-se como o doce mais frequente e de maior estima simbólica para as famílias. Sendo a Sopa Seca uma receita muito associada ao Carnaval, as Rabanadas eram, por excelência, o doce de Natal. Neste contexto, ainda que a prática culinária passasse, usualmente, pela utilização da calda de açúcar, em algumas situações, àquela água açucarada era adicionado um bocadinho de vinho fino que enriquecia o sabor. Já a utilização de leite, na receita das Rabanadas, aparece como ocasional e poderá indiciar uma prática mais recente, pois o leite não abundava, nem era muito acessível. Interessante notar que, nos arredores de Valongo, a memória oral regista o hábito de molhar o pão em vinho com açúcar.

As recordações de Natal que os testemunhos orais expressam, dizem bem quanto aquela era uma época especial na vida familiar, quer para as famílias dos padeiros e padeiras, para quem significava um importante momento de pausa

num quotidiano de extremo cansaço, quer para as restantes famílias que viviam, naqueles dias, uma abundância alimentar que não tinham no resto do ano. Eram quentes e bem saborosos, os dias de trigo que o Natal permitia.

Maria Lina Castro Neves 80 anos

VALONGO

“Era uma família grande, mas na noite de Natal era a família toda, alguns empregados e algum pobre que vivesse aqui ao lado. Nesta casa sempre foi assim. Comiam-se as batatas com o bacalhau, penca e grelos e, depois, a Aletria e as Rabanadas. O meu avó fazia o Pudim de Pão. Fazia com o miolo de 5 pães. Punha meio litro de leite a ferver e deitava por cima do pão até desfazer. Depois, batia 6 gemas com 250g de açúcar, tudo muito bem batidinho, deitava um cálice de Vinho de Porto e uma colher de sobremesa de manteiga. Quando estivesse o leite frio deito dentro daquilo, ia-se mexendo. Forrava uma forma de Pudim Francês com açúcar caramelo e deixava ferver em banho maria. Tanto podia ser no fogão como no forno. O meu avó gostava de fazer no forno.”

No Natal, também se fazia a Aletria . Cozia-se em água para a farinha ficar toda na água. Depois, coava-se e cozia-se em leite com casca de limão, manteiga e açúcar. Deixava-se ferver até ficar como nós gostávamos. No fim, deitava 6 gemas bem batidas, mas tinha de deixar arrefecer um bocado. Depois de deitar os ovos, deixava cozer mais um bocado. Terminava com canela.

Para fazer as Rabanadas fazia-se uma calda com água como para

a Sopa Seca. Fervia-se água com açúcar, pau de canela, manteiga e casca de limão. Depois, as fatias dos moletes eram molhadas nesta calda e no ovo batido e iam a fritar. No fim, deitava-se açúcar e canela por cima. Ao domingo, era hábito fazer Rabanadas para sobremesa, os padeiros faziam muita vez, isso e Sopa Seca. Também se fazia o Bolo de Serão Quem me deu esta receita foi uma cunhada minha que, por sua vez, a recebeu da sogra. A minha cunhada era a Laura Moreira das Neves e a sogra dela era a Ana Marques da Cruz, conhecida como D. Aninhas Gansa, pertencente à família dos Gansos de Valongo. Este Bolo de Serão era um bolo que se fazia pelas festas. Ainda hoje, se faz este bolo cá em casa. É um queque que leva 9 ovos, 400g de açúcar e 200g de farinha bem peneirada, mas sem fermento. Na farinha, envolvem-se nozes e uvas passas. Primeiro, deito as gemas dos ovos com o açúcar e misturo. À parte, bato as claras em castelo e envolvo nos ovos. Peneira-se a farinha e envolve-se a fruta nesta farinha. Depois de tudo misturado, vai ao forno numa forma de queque com um buraco no meio. Demora cerca de 40m no forno. Era um Bolo que se fazia nas festas, mas também se fazia fora das festas.

O Rolo começou-se a fazer há poucos anos, há 50 anos. Era só nas festas, num batizado ou num casamento. O Rolo leva 6 ovos, 250g de açúcar, 125g de farinha e uma colher de chá de fermento em pó. Batem-se as gemas com o açúcar e, à parte, batem-se as claras em castelo. Junta-se tudo e deita-se a farinha com fermento já peneirada. Coze num tabuleiro quadrado. Depois de sair do forno, barra-se com

geleia ou marmelada e enrola-se. Agora há quem ponha chocolate. Com compota é muito melhor.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“No Natal, tínhamos de fazer Rabanadas. Faziam-se com pão cacete de padeiro. Hoje, ainda se fazem cá em casa para essa noite. Faz-se a calda com água, sal, açúcar, manteiga, canela e casca de limão e põe-se ao lume. Partem-se os ovos. Passa-se o pão na calda e deixa-se escorrer. Depois, passa-se no ovo e metem-se a fritar em azeite. No fim de fritas, passam-se no açúcar e na canela. Também se fazia Aletria cá em casa. Fazia-se a mesma calda e cozia-se a aletria nela. Depois de arrefecer é que se punham os ovos. Púnhamos em pratinhos e deitava-se canela por cima.”

M. da Purificação Matos

Ferreira Soares Ribeiro 74 anos

VALONGO

“No Natal, em nossa casa, a noite era uma festa. Não éramos só nós, éramos muitos, convidavam-se pessoas de família e até vizinhos. A nossa casa era uma padaria e, com aqueles gavetões de pôr o pão, em cima dos cavaletes, fazíamos as mesas. Aquilo até parecia a ceia de Cristo. Juntava-se aquela gente toda. Começávamos a comer tarde, porque também se acabava de trabalhar tarde e nós só ceávamos a partir das 10h da noite. Eram as batatas com as couves e o bacalhau, que é o tradicional, e fazíamos as Rabanadas, a Aletria,

o Rolo, o Pudim. Acabávamos de comer e até às tantas da noite andávamos a jogar o Raspa, as cartas, era quase até de manhã. As Rabanadas eram feitos quase como a Sopa Seca. Fazíamos o mesmo estilo de calda, o cacete é partido em fatias, é passado na calda, escorre-se um bocadinho e põe-se a fritar. Depois de fritas, em nossa casa, põe-se uma calda feita com água, açúcar, mel e canela. Mantinha-se esta calda sempre quente e punha-se sobre as Rabanadas. Mesmo no outro dia em que as Rabanadas já estavam frias, punha-se a calda quente sobre elas para as aquecer.

A Aletria em minha casa não era feita com leite, era só mesmo com a água doce com bastante sumo de laranja ou de limão, pau de canela. Cozia-se a Aletria nesta calda e, quando a Aletria já estava cozida, batíamos gemas e de ovos e misturávamos devagarinho com muita calma até ela ficar pronta. E, depois, cobria-se com canela. Era uma Aletria de cortar à fatia. No Rolo, para 6 ovos era o mesmo peso de açúcar, metade do peso em farinha e sumo de laranja. Separavam-se as claras das gemas e eram batidas em castelo. Batiam-se as gemas com o açúcar, muito bem batidos, juntava-se o sumo de laranja, as claras batidas e envolvia-se a farinha. Ia ao forno e, depois, enrolava-se num pano branquinho que se usava só para este efeito. No pano, punha-se açúcar para ajudar a enrolar. Fazia-se um recheio com chocolate em pó, água e algum açúcar até ele ficar pastoso. O Pudim levava muitos ovos, açúcar, sumo e a polpa da laranja toda ralada. Era toda desfeita e toda misturada na massa. E ia a cozer em banho maria.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“Na noite de Natal, era mais trabalho pelo pão, mas não tanto pelos biscoitos. Era mais calmo. A criada ia para casa, dizia-se, «vai escaldar o piolho». Depois, era a ceia de Natal. Nós tínhamos a cozinha ao lado do forno, era para ser mais fácil a ligação ao forno, por exemplo, a água que era aquecida pelo forno. A mesa da cozinha vinha para a beira do forno, porque estava quente. Já tínhamos rádio, o rádio estava a funcionar. A ceia de Natal era ali. A minha mãe fazia sempre bacalhau. Esse meu tio ferroviário andou muito tempo a fazer Porto Vigo e quando ia a Vigo trazia aquelas pescadas grandes. Houve duas ou três vezes que foi pescada dessa grande de Vigo, com couves, batatas e ovos. Depois, ele deixou de fazer essa viagem, foi para o Douro. E comíamos bacalhau temperado com bom azeite que era vendido pelos azeiteiros, vendiam umas vasilhas de azeite. De doces, havia sempre Bolo-Rei, Pudim Francês, o Rolo, queijo, passas, amêndoas, avelãs, pinhões. Jogava-se o Rapa, Tira, Deixa e Põe. Jogávamos a feijões. Nessa noite, comíamos Regueifa . Aliás, todos os domingos comíamos regueifa. Também se faziam as Rabanadas e a Aletria . Para as rabanadas cortava-se o cacete, demolhavam-se as fatias em calda de açúcar, depois, passavam-se por ovo batido e punham-se a fritar. No fim, misturava-se açúcar e canela ao gosto de cada um. A Aletria era cozida na calda e, depois, era misturada com gema batida. Por cima, punha-se canela por cima. O Bolo Rei era do Paupério, era a única casa que fabricava Bolo-Rei.

Mas a véspera de Todos os Santos era considerada a primeira

Consoada do ano. Nessa noite, fazia-se o bacalhau com as batatas e as couves, as rabanadas, a aletria, punham-se os frutos secos. Depois, a segunda era a véspera de Natal, a terceira era o Ano Novo e a quarta era nos Reis. Embora na véspera de Todos os Santos, não fosse a primeira do ano, era a primeira no conjunto das Consoadas que iríamos ter. Nos Reis já era tudo mais simples. A diferença entre as Consoadas todas e a primeira, a que acontecia na véspera de Todos os Santos, é que esta tinha Sopa Seca , isto em casa dos padeiros. Não sei se nas outras casas era assim. Talvez fosse.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“No Natal, jantávamos depois da meia noite porque o trabalho era tanto que só depois da meia noite é que ceávamos. Jantávamos, uns já dormiam em cima dos sacos, outros jantavam, mas estava tudo cansado. Mas havia sempre bacalhau com batatas e couves. A minha mãe, na antevéspera, já depois das 11h fazia os Bolos. Fazia o bolo de Chocolate, bolo Mármore Nunca nos faltou nada. Na noite de Natal, comia-se broa de milho com as batatas, o bacalhau e as couves, acompanhava muito bem. Depois, havia Rabanadas e Aletria . A minha sogra fazia Sonhos de Abóbora . O Menino Jesus é que trazia as prendas, mas o meu pai trazia prendas para nós quase todos os dias, trazia de Alfena. Ou trazia um chocolatinho, ou um rebuçado, ou um brinquedo daqueles de madeira. No Natal, a minha mãe vestia-nos

dos pés à cabeça com roupa nova. Depois do Natal, ainda havia a Consoada do Ano Novo e dos Reis. Fazia-se como se fosse Natal. Comia-se o bacalhau, as batatas e as couves nessas noites. Em algumas casas, aqui em Suzão, também se fazia polvo nas Consoadas, a minha sogra fazia polvo à parte. E, depois, quem queria comia bacalhau, quem queria comia polvo. Tínhamos 3 consoadas. Era a véspera de Reis, o Natal e o Ano Novo. Em todas elas se faziam as Rabanadas e a Aletria. Também era hábito fazer o Farrapo Velho. Fazia-se um refogado com azeite, alho e cebola, depois, metiam-se os “restos” do bacalhau, as batatas e as Pencas. Depois, regava-se com um bocadinho de vinagre e pimenta. Ainda hoje faço, é muito bom. Eu faço as Rabanadas tal e qual como o meu pai fazia. É água, açúcar, canela, limão, um bocadinho de vinho do Porto e uma nozinha de manteiga. Depois, é deixar ferver. Ele passava as rabanadas nessa calda, depois passava por ovo e fritava. Por fora, punha açúcar e canela. Eu também faço assim a Aletria, não deito leite, nem ovos. É só assim. Aqui não fazíamos Sopa Seca, em Suzão não havia o hábito de fazer Sopa seca.”

Jaime António Vieira de Sousa Aguiar 63 anos VALONGO

“A Consoada aqui em casa era variada, havia o bacalhau cozido com as batatas e as couves. Agora, como o meu pai era caçador, muitas vezes, vínhamos da dita venda e lá íamos passar o Natal a um lugar qualquer como Murça. Lá íamos três loucos, com os cães, e íamos para Murça para a Pensão Guedes que era uma segunda família para nós.

Então, lá, comíamos coisas de lá, polvo que era uma coisa que não tínhamos hábito por aqui, e Filhoses. Lá, eles tinham outras tradições. Por aqui, era mais Rabanadas e Aletria . A minha mãe não fazia Rabanadas com leite, era com uma calda que levava vinho do Porto. Lembro-me de estar ao lado da minha mãe e era eu que punha o açúcar e a canela. Quando a minha mãe não tinha tempo para fazer a comida, lá ia ela com os tarecos todos! O meu pai tinha um fogão a gás e, enquanto o meu pai ia caçar, lá ficava a minha mãe no meio do monte a fazer as Rabanadas, a Aletria. No dia Natal, a minha mãe fazia o Farrapo Velho. E ao almoço, comíamos Galinha Assada que a minha mãe já levava feito.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“O Natal sempre foi muito importante para mim. Houve um Natal, no início de casada, que passei fora de Valongo e naquela noite, ao falar ao telefone com a minha mãe, senti o cheiro do bacalhau com aquele azeite. A minha mãe punha sempre o azeite na mesa, mas também fazíamos um tacho com azeite, cebola e alho picado, punha aquele tachinho na mesa e cada um escolhia o que queria. Havia quem queria aquele azeite estrugido, outros queriam o azeite em cru. Eu ainda hoje faço isso, ponho azeite num tacho, pico cebola e alho bem picadinhos, deixo ferver e, depois, boto vinagre. E tiro logo, fica só a cebola estaladinha, todos querem azeite desse estrugido. Comíamos sempre bacalhau nessa noite. A minha mãe cozia o bacalhau, batatas, pencas, e grelos, quem

queria comia grelos, quem queria comia penca. Nessa noite, era o bacalhau e, depois, vinham as sobremesas. As Rabanadas, a Aletria, o Bolo Rei que íamos comprar ao Paupério.

Na Consoada, era uma trabalheira a fazer os cacetes para as Rabanadas. Era com massa do pão, mas um bocadinho mais dura. Ainda hoje as faço como a minha mãe. Ponho água a aquecer com açúcar, boto-lhe uma casca de limão e uma pedrinha de sal. Depois quando tiro do lume, boto-lhe um cálice de vinho do Porto. Corto o pão às rodelas, passo naquele molho e ponho numa travessinha para escorrerem. Tenho uma bacia com ovos batidos e um bocadinho de açúcar, passo por aqueles ovos e frito. Tenho um papel, daqueles mata borrão, e ponho a escorrer. Depois, numa travessa, ponho às camadas com açúcar e canela. Antes fritavam-se as rabanadas em azeite. Tinha-se por hábito comprar um Bolo Rei de quilo, dantes trazia um brinde.

Fazíamos Aletria . A minha mãe cozia a aletria em água, açúcar, uma casca de limão, e uma pedrinha de sal. Quando estava a Aletria cozida, batia a gema de ovo com açúcar e juntava, ficava a Aletria toda amarelinha. Depois, botava para a travessa e punha canela.

Havia missa das Almas que era às 7h da manhã. Depois, tinha, às 8h, na capela da Senhora da Luz e, na igreja, às 10h. Nós quase sempre íamos à da Capela da Senhora da Luz.

No Ano Novo, era a mesma coisa do Natal. Fazia-se e ainda se faz, hoje. Este ano, juntou-se a família nova. Nos Reis, já não se ligava tanto. Comia-se bacalhau, mas já

não havia doces. Aliás, no tempo do meu avó, todos os dias à noite se comia bacalhau cozido. Havia por aqui muitas mercearias onde se podia comprar bacalhau.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos VALONGO

“A Consoada tinha sempre o bacalhau. Houve um Natal que a minha mãe fez bolos de bacalhau e polvo cozido para comer com batatas e couves. Mas, quase sempre era o bacalhau. E fazia um Sarrabulho com Nozes, era adocicado, era uma maravilha. Quando era possível, faziam-se Bolinhos de Bacalhau . Levavam batata, bacalhau, pimenta, cebola, salsa, sal. No Natal, também se fazia o Bacalhau Desfiado O bacalhauzinho era mais do que a batata, era tudo cozido, tiravam-se as espinhas ao bacalhau, migava-se a batata, misturava-se tudo. Fazia-se um refogado com bastante cebolinha picada com azeite, depois quando a cebolinha estivesse bem refogada, mas sem queimar, colocava-se a massa de batata com o bacalhau. Envolvia-se tudo e juntava-se leite a ferver, por cima. Punha uns temperos e podia levar salsa. Se quiser levar à fornalha, pode levar. Toda a família gostava muito deste bacalhau. De doces, não faltavam as Rabanadas. Ainda hoje, faço. Ponho o leite a ferver com açúcar, um pouquinho de manteiga, um pau de canela. Deixa-se ferver e logo que ferva, passa-se o cacete cortado às fatias. Depois, é passado por ovo e frito. Tenho ideia de que se chegou a fazer Rabanadas com a calda, ou seja, em vez do leite, punha-se água. Mas, depois começou-se a fazer

com o leite. Depois de fritas, as Rabanadas eram secas em papel mata borrão e passava-se por açúcar e canela.

Também fazia Arroz Doce. Eu faço conforme a minha mãe fazia, há muita maneira de fazer, mas cá em casa era assim. Ponho num tacho um pouquinho de água com um pau de canela, uma casca de limão, um pouco de manteiga. Depois, ponho o leite que já está quentinho ao lado, junto o açúcar e deixo dissolver. Há quem diga que depois o arroz não coze, que se deve pôr o açúcar só no final, mas eu ponho logo no início. Logo que o leite ferva, meto o arroz. E, mais para o fim, ponho amêndoa partidinha. A minha mãe já punha a amêndoa. O arroz não pode ficar sem leite, se eu ver que está a ficar sem leite, eu acrescento mais um bocadinho de leite a ferver que tenho quentinho ali ao lado. Depois, quando estiver prontinho, tiro para fora do fogão e, à parte, tenho gemas de ovos batidas bem batidas com vinho de Porto. Quando está já mais frio, ponho esta mistura dos ovos com o vinho do Porto em fio no arroz e vou mexendo no tacho todo. Logo que esteja, ponho outra vez no fogão só para cozinhar os ovos e tiro para as travessas. A minha mãe tinha jeito para a doçaria, era a Maria Judite Galaghar, nasceu em 1915. Viveu 83 anos. A Aletria faço do mesmo género, só que coze mais depressa.

Também fazia e faço Bolinhos de Bolina . Cozo a abóbora com uma pitadinha de sal. Depois de a cozer, ponho a escorrer dentro de um pano que se torce até sair a água o mais que puder. E, depois, ponho, numa tigela grande, bastante canela, açúcar a gosto e gemas de ovos até

Trabalho

ficar consistente. Ponho um bocadinho de farinha de trigo, muito pouco. Também pode levar vinho do Porto ou raspa de laranja, ou uma coisa ou outra. E, à parte, bato as claras em castelo e envolvo na massa dos bolinhos de bolina. Mas só envolvo. Ficam muito cremosos. Depois, frito. São passados por açúcar e canela.

Também fazia os Figos com a Noz. Comprava os figos e punha-lhe uma noz no meio ou uma amêndoa. Depois, os figos iam um bocadinho ao forno para tostar um bocadinho.

Também tínhamos Bolo Rei, era comprado na Paupério. Nessa noite, íamos à missa do galo. A minha mãe cantava ao Menino Jesus. Lembro-me de receber umas prendinhas, lembro-me de receber umas galochas e de outra vez foi um fogão. Era na noitinha de Natal que se recebiam as prendas. Noutros natais deram um quilo de sortido da Paupério. Lembro-me de ter comido os enfeites da árvore de Natal que eram de chocolate e de ter ficado com a barriga a doer.”

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“Na noite de Natal, o jantar era bacalhau com batatas e couves. Depois, eram as Rabanadas, Sopa Seca e Aletria . Partia-se o pão cacete, punha-se água a ferver com açúcar, molhava-se o pão nessa água, passava-se por ovo e fritava-se em azeite. Depois, passava-se por açúcar e canela. Não havia muito azeite por aqui. Também se faziam Rabanadas de Vinho, em vez de serem molhadas em água e açúcar eram molhadas em vinho quente com açúcar. Neste caso, não eram passadas em ovo.

Fazia-se sempre Sopa Seca no Natal, ainda hoje se faz. Punha-se água a ferver com açúcar, canela e sal. Molhava-se o pão e passava-se para o alguidar, era daqueles redondos, punham-se às camadas com açúcar e canela sempre entre as camadas. Depois, ia ao forno. A Aletria era água a ferver com sal e açúcar, juntava-se a aletria e deixava-se cozer. Punha-se canela por cima. No dia de Natal era o Farrapo Velho, era o resto das couves, batatas e o do bacalhau. Deitava-se tudo num tacho, juntava-se cebola, azeite, vinho tinto e água de cozer as batatas. Deixava a refogar durante uma meia hora. Não havia mais nada. Era ao meio dia e à noite, já se fazia a mais na véspera para depois ter no dia de Natal. No dia 31 e 6 de Janeiro fazia-se como se fosse Natal. Era no Ano Novo e pelos Reis, fazia-se igual.”

Florinda Martins Fernandes 92 anos SOBRADO

“Pelo Natal, eram as batatas com o bacalhau, Rabanadas e Sopa Seca . Comprava-se aquele cacetes grandes, cortavam-se as fatiazinhas, punha-se leite e açúcar num tacho morninho e punham-se a demolhar. Era muito raro passar por ovo. Fritavam-se em azeite. Por fora, punha açúcar e canela. A Sopa Seca era o pão molete que a gente ia guardando, punha-se a demolhar em água. No fundo de um alguidar, punha-se um bocadinho de açúcar e canela. Depois, era pôr o pão sempre às camadas com o açúcar e a canela pelo meio. Depois, ia ao forno até ficar tostadinho, mas sem se queimar. Punha-se um papel mata borrão para não deixar queimar.

No dia seguinte, era um Cozido, era o que todos gostavam. Levava orelheira fumada, chouriça, presunto, batatas e couves. Pelo fim de ano, fazia-se uma ceia mais ou menos como no Natal, era o bacalhau com batatas e os doces, as rabanadas e a sopa seca. No dia de Reis, é que se fazia a Aletria. Era água, açúcar e um bocadinho de leite, deixava-se ferver e metia-se a Aletria a cozer. Depois, deitava-se em pratos e punha-se canela.”

Maria da Silva Moreira 79 anos SOBRADO

“No Natal eram as batatas, o bacalhau, couves galegas e grelos. Nessa noite comia-se pão de milho. Depois, tínhamos as Rabanadas. A minha mãe fazia com pão cacete tinha duas receitas. Uma era com vinho tinto, eram gostosas, mas eu nunca tentei fazer. Ela devia adoçar o vinho, decerto. Mas a outra maneira que ela fazia, ainda é a que eu faço hoje, é com chá preto. Ponho uma cafeteira com água a ferver e pego em três ou quatro pacotes de chá preto e deixo ferver até a água ficar bem escura. Ponho umas areinhas de sal e uma casquinha de limão. Depois, adoço com açúcar amarelo e canela. Quando a água está morna, não pode ser muito quente, molha-se o pão e põe-se numa travessa para não irem a escorrer para o ovo. Bato os ovos bem batidinhos, passo o pão no ovo e ponho a fritar. A minha mãe fritava em azeite. Depois de estarem fritas, ponho numa travessa comprida e polvilho com açúcar e canela.

Também fazíamos Sopa Seca pelo Natal. A minha mãe cortava pão de cacete, fervia água com açúcar e canela e deixava arrefecer

esta água num alguidarzinho. Molhava o pão e punha dentro do alguidar. Quando punha a primeira camada, pegava num bocadinho de açúcar e de canela e polvilhava por cima, ia pondo às camadas. Quando chegasse acima, punha a última camada e, então, para não queimar punha papel de mata borrão. Quando estava boa tirava do forno, tirava o papel e deixava secar um bocadinho por cima.

Para os Formigos deita-se água como para a Sopa Seca, com um bocadinho de açúcar e um bocadinho de canela. Parte-se o pão todos aos bocadinhos, todo muito migado. Deita-se na panela, mexe-se tudo e deita-se um bocadinho de mel. Há quem deite outras coisas, mas eu nunca deitei. Era pelo Natal que se faziam. No dia 31 de Dezembro fazia-se como no Natal, era o bacalhau, batatas, couves e grelos. Faziam-se as Rabanadas e a Sopa Seca. Era tudo igual. No dia 1 de Janeiro, já era mais a Roupa Velha . Do que sobrasse, o bacalhau era todo desfiado, as batatas e as couves eram todas partidinhas, e deitava-se tudo dentro de um tacho. Picavam-se dois ou três dentes de alho, deitava-se azeite e um bocadinho de vinagre. Ficava assim para o dia seguinte. Nós fazíamos a roupa velha à noite e deixávamos para o dia seguinte, era para ficar com aquele gostinho. Nos Reis, já não se fazia nada.”

Carolina Dias Moreira

84 anos M. Madalena Martins dos Santos

78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos

SOBRADO

“O nosso Natal era pobrezinho, mas era lindo! A nossa mãe começava a fazer durante a tarde umas Rabanadinhas muito gostosas! Fazia uma panela de Aletria , fazia Sopa Seca . Para a Aletria, botava a água a ferver com sal e açúcar louro, não lhe punha canela. Eu agora já ponho pau de canela e uma casquinha de limão ou laranja. Deixava ficar a ferver até ganhar ponto. Juntava a aletria e deixava cozer, tem de se deixar cozer bem a aletria, senão não é aletria, é massa. Ficava aquele ponto amarelinho por causa do açúcar louro. Não se punha leite, nem ovos. A canela só se punha por cima. As Rabanadas faziam-se com a água como para a Aletria. Partiam-se os moletes às rodinhas, passavam-se naquela água e em ovo batido misturado com açúcar louro. Iam a fritar em azeite. Ao fim de nós fazermos as rabanadas, se o azeite estivesse queimado, deitava-se fora e botava-se um bocadinho de azeite novo. Deixava-se ferver um bocadinho e botava-se o vinho fino e o açúcar loiro. Mexia-se, mexia-se até conseguir o ponto. Depois, é só pôr por cima das rabanadas. A Sopa Seca era igual, mas não levava ovo. Era o pão às camadas com açúcar louro e canela pelo meio. Podia haver pobreza, mas nunca faltavam as rabanadas, a aletria e a sopa seca. Também não faltava o bacalhau, as batatas e a penca. Fazia-se a mais para fazer a Roupa velha. O que sobrasse, era usado para fazer a Roupa Velha. Fazia-se um molho com azeite, vinho tinto,

sal, muito alho e muita cebola. Isto deixava-se ferver, era para acompanhar as batatas e o bacalhau na noite de Natal. Do que sobrava, fazia-se Roupa Velha. «Oh, meu menino Jesus, que tens e porque chorais, minha mãe me deu um beijo, ai choro para que me dê mais. Eu hei-de ir ao presépio, sentar-me num cantinho, quero ver o Deus menino que nasceu lá, tão pobrezinho»

«Santos reis, santos coroados, vem te ver quem nos coroou, foi um anjinho do céu, que ainda agora aqui chegou».”

M. da Conceição Gomes Cunha 68 anos CAMPO

“No Natal, a minha mãe fazia as batatas com bacalhau, Rabanadas, que eram muito boas, e a Aletria. O meu avó trazia um bolo rei da confeitaria Cunha do Porto. Para as Rabanadas, a minha mãe fazia água bem doce com canela, açúcar, limão e deixava ferver. Molhava o cacete, cortado fininho, e escorria. Passava por ovo bem batido e punha a fritar. Depois, ia para um tabuleiro e cobria com açúcar e canela. À água doce que sobrava, acrescentava o vinho fino e fervia para libertar o álcool e regava. A Aletria era simples, era a água com açúcar, limão e canela, deixava cozer a aletria e quase no fim acrescentava a gema de ovo. A minha mãe não punha leite. Por cima punha canela. No dia seguinte, havia Farrapo Velho. Eram as sobras do bacalhau, da couve galega e da batata. Estalava-se a cebola com azeite, escorriam-se as sobras, cortavam-se aos bocadinhos, acrescentava-se pimenta e um bocadinho de vinagre.

Mas o fundamental era o arroz de frango, sem o sangue. A minha mãe fazia o estrugido, miudinho, feito com calma, com a cebola a amaciar no azeite com uma folhinha de louro. Ficava loirinho, punha água, deixava ferver, acrescentava-se a carne para ficar a cozer lentamente, a minha mãe ia virando para o frango ficar loirinho. Tirava o frango, e depois é que colocava o arroz. No dia 1 de Janeiro era um naco de vaca assado com arroz seco. Fritava o arroz em azeite, ficava o arroz soltinho. Punha água quente e deixava cozer, não ia ao forno. Nos Reis, voltava a fazer-se bacalhau, couve galega e batatas, rabanadas e aletria. No dia de Reis, já eram só as sobras.”

Florinda Martins

Ferreira 66 anos José Maria Soares Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“No Natal, eram 3h da tarde, e já o meu pai estava a arranjar as couves para a noite e já o bacalhau estava de molho, na dorna. Na véspera, toca a fazer Rabanadas, Aletria, Sopa Seca, Filhoses

Punha-se água a ferver com um bocadinho de vinho fino, canela, açúcar amarelo, para molhar naquela água uns moletes maiores já partidinhos. Molhava-se na água, escorria-se, molhava-se no ovo e fritava-se. Punha-se açúcar e canela. Fervia-se vinho fino com açúcar amarelo, uma casca de limão e regavam-se as rabanadas. A aletria era também água, açúcar e sal. Cozia-se a Aletria, estando cozidinha, punha-se em pratos e faziam-se uns feitios com canela. O leite que vinha das vacas era para vender, não se usava.

A Sopa seca era também com água a ferver, com canela, açúcar amarelo, sal e limão. Molhava-se

o tal pão e punha-se num alguidar, às camadas. Punha-se entre as camadas açúcar amarelo e canela. No fim, punha-se o papel mata borrão por cima para não queimar. Este papel era onde vinha o arroz e o açúcar em cartuchos. Os ovos eram para vender e com esse dinheiro ia-se buscar um quartilho de azeite, um bacalhau, açúcar. Na ceia de Natal eram as batatas, couve galega e bacalhau. No dia de Natal fazia-se uma canja, um cozido e lá se metia um bocadinho de galinha cozida.

As Filhoses faziam-se com a farinha centeia amassada com água, sal e um fiozinho de azeite. Tinham de ser muito bem batidas para ficarem fininhas. O meu cunhado que era moleiro é que as fazia, preparava bem a farinha para fazer estas filhoses. Depois, para as fritar, untava a sertã com um bocado de carne gorda. Em vez de deitar manteiga ou óleo, punha este pingue. Agarrava na massa com uma concha e deitava para o tacho, abanava e ficava aquela filhós fininha com uma pele. Ficavam como se fosse uma hóstia, fininha.

Na nossa casa, a gente acabava de comer e íamos tocar as boas festas. «Nós estamos a chegar ao Ano Novo, vimos cumprimentar nossos amigos, recordar os nossos antepassados, que acordaram estremunhados, naqueles tempos antigos! Senhores, senhores que aqui morais, vinde ver, vinde ver a noite bela, vinde ver os pastorinhos, vinde ver os pastorinhos guiados por uma estrela. São José, São José, pai adotivo, com o seu, com o seu coração em brasa, pediu, pediu à Virgem Maria, pediu à Virgem Maria para abençoar esta casa.»

No dia de Natal, era a canja e o assado da galinha e carne

de porco, ou o galo. E comia-se assim, ou então um cozido. Se fosse cozido, levava o que era do porco, púnhamos a barriga, a carne fumada, o chispe, os ossos. Se houvesse dinheiro, lá se comprava carne de vaca. Era com batatas e couves. Se fosse assado, era tudo temperado com alho, sal e vinho branco. Era comido com batata assada junto à carne e o arroz no forno. Era o estrugido com cebola e pingue, metia aquele arroz, misturava o arroz e depois a água a ferver, até podia ser água de ferver com um osso. Depois, ia para o forno. Fazíamos as 3 consoadas. Natal, Ano Novo e os reis. Repetia-se a mesma coisa. Respeitava-se como se fosse Natal.”

Deolinda Filomena Almeida Martins Ferreira Roque

75 anos SOBRADO

“No Natal, a minha mãe fazia Rabanadas e Aletria . A minha mãe molhava o pão em vinho, não gostava de leite, era vinho tinto com açúcar amarelo. Molhava as rabanadas no vinho com açúcar e depois no ovo. Depois, fritava. Por fora, punha açúcar louro e canela. A Aletria era a água doce, era água com açúcar, cozia e punha em pratos decorado com canela. A Sopa Seca, era uma água doce com açúcar e canela, molhava o pão naquela água, punha no alguidar e ia ao forno. Por cima, polvilhava com açúcar e canela. Na noite de Natal era o bacalhau, as batatas e a couve galega. No dia e Natal, lá se fazia um cozido à pobre. Chamava-se à pobre porque só levava o que havia em casa, chouriça, presunto, entremeada. Fazia um arroz para comer com o cozido.”

José

“O nosso Natal era muito triste, ainda hoje não gosto do Natal, a gente deve dizer aquilo que sente. O cansaço era tanto! E não tínhamos a festa como os outros tinham. A minha mãe fazia as Rabanadas, Sopa Seca e a Aletria, mas fazia isso durante a noite. Comia-se bacalhau na ceia de Natal. Ao almoço de Natal fazia um cabrito assado.”

Maria Alexandrina Carneiro de Matos Almeida 84 anos VALONGO

“O padeiro dos Moreiras iam vender o pão a cavalo. Ele passava à nossa porta à noite, e no Natal, via a nossa mesa. Ele dizia que gostava muito de passar e ver a nossa mesa de Natal porque tinha o maior prato de Rabanadas de Valongo. A minha mãe cozinhava muito bem. O Natal era uma alegria tão grande, tão grande!

A minha mãe punha o pão de cacete partidinho e fazia a água para as Rabanadas com água, açúcar, canela em pau, casca de limão, vinho do Porto. Depois de tudo bem fervido, juntava manteiga e deixava desfazer sem ferver. Partia o pão às fatias, a minha mãe tinha umas terrinas grandes e punha-as a demolhar numa bacia, e à medida que molhava ia pondo em travessas.

Depois, ela batia os ovos e passava o pão demolhado numa travessa para escorrer. Fritava em azeite, e punha açúcar e canela por cima.

No Natal, a minha mãe fazia Pão de farinha de trigo e de centeio. Era um pão especial que fazia para nós e para dar. Era um pão especial, macio. Era um pão escurinho, era para dar às pessoas.

Fazia um Queque, Aletria , Formigos, Pudim. Na Aletria misturava leite e água, metade de cada, casca de limão, manteiga, pau de canela, açúcar e cozia a aletria. A minha mãe não punha ovos na Aletria, só punha nas Rabanadas. Naquela noite, era uma alegria. Quando a minha mãe punha o bacalhau de molho, já era Natal. Nós queríamos uma prenda para levar ao Menino Jesus, não pedíamos nada para nós. Era depois leiloado para dar aos pobres. Comprava sempre um bocadinho de queijo, daquele de casca vermelha.”

Maria Rita Marques Padilha 68 anos

VALONGO

“Na noite de Natal, nunca passámos mal, os meus avós tinham a mercearia. A confeitaria Costa Moreira mandava um bolo rei, um pão de ló, porque era o meu pai que fazia a manutenção do forno. De lá de cima de Trás-os-Montes, vinha muita coisa, pão, amêndoa, fumeiro. A minha mãe fazia Aletria , as Rabanadas. O meu pai trazia as avelãs, as uvas passas, os pinhões, a fruta cristalizada, as amêndoas. As Rabanadas da minha mãe eram escangalhadas, mas eram maravilhosas. Fazia uma calda de água com açúcar, manteiga, casca de limão e pau de canela. Passava o pão de cacete, já partidinho, na calda, deixava escorrer e passava por ovo. Depois de fritas, polvilhava por açúcar e canela.

A Aletria era a mesma calda, mas depois cozia a aletria. Tirava para fora, deixava arrefecer e juntava os ovos. A minha mãe cozinhava muito bem e foi aquilo que de melhor eu tive na minha vida, chamava-se Maria Marques da Nova.”

Joaquim Moreira Camilo

85 anos Maria Olinda Barbosa da Rocha 78 anos VALONGO

“Quando era a noite Natal, era comer e dormir, estávamos cheios de sono. Eu lembro-me de haver sempre batatas cozidas e Sopa seca, mas para haver Sopa seca não era preciso ser Natal, fazia-se em qualquer altura, tinha o forno quente e por isso fazia-se amiúde.

Como ainda hoje, não se espera pelo Natal para se fazer Sopa Seca . Ponho água ao lume com açúcar, um bocadinho de manteiga e uma casquinha de limão, se tiver mel, também ponho mel. Depois, amoleço o pão, tiro para uma travessa. Bato ovos com um bocadinho de açúcar, molho o pão como se fosse para as rabanadas. Ponho numa assadeira de barro açúcar e canela no fundo ponho lá a camada do pão molhada na água e no ovo, deito canela e açúcar, e volto a pôr pão, repito sempre às camadas. Vai ao forno e quando estiver loirinho, tostadinho, está pronto. No dia de Natal era Aletria, Sopa Seca e Rabanadas. Era carne assada. A Consoada era sempre em casa dos meus avós, era carneiro assado.”

Maria Armandina de Sousa Dias Paiva 62 anos ALFENA

“No tempo da minha avó numa noite de Natal fazia-se Sopa Seca . Era com pão velho de trigo, molete. Tinha uns alguidares vermelhos, vidrados por dentro, punha lá o pão seco e, depois, levava o tempero, era água com açúcar e canela. Virava, envolvia, e ia ao forno. O calor era tanto que parecia a água evaporava. Por cima, ficava crocante.

No Natal, o meu avó a quem nós chamávamos paizinho, dava-nos uma cestinha de figos secos cobertos com celofane, com dois ou três figos, aquilo para nós era a melhor prenda. E cada um recebia um daqueles molhinhos de chocolate com papéis de cor atado com um lacinho. Eu, para aquilo durar, eu não comia o chocolate. Eu desembrulhava, lambia e voltava a embrulhar.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“Na noite de Natal, lembro-me que paravam o trabalho e que se fazia uma ceia de Natal. Era muito bom. Nessa noite, comia-se o bacalhau, batatas cozidas e pencas. Uma entrada com bolinhos de bacalhau, uma travessa cheia. Depois, era o bacalhau com as batatas, as pencas e ovos cozidos. Nesta noite, era Regueifa que nós comprávamos à minha tia. No final, eram as Rabanadas, eram tão boas! A minha mãe comprava o cacete, partia o cacete, punha água morna com açúcar e canela, deixava estar um bocadinho e punha a escorrer. Depois, batia os ovos, passava o pão pelos ovos e fritava. No fim, polvilhava com açúcar e umas gotas de vinho de Porto. Eram muito boas estas

Rabanadas que a minha mãe fazia! Eram fritas em azeite. Havia por aqui algumas oliveiras e sempre se arranjava azeite. Para os lados de Ponte Ferreira, ficava aí um lagar. Vinham pessoas de Trás-os-Montes vender por aqui o azeite, traziam maçãs, castanhas, uvas, vinham de Amarante. Passavam por cá e vendiam essas coisas, iam até ao Porto. Quando chegavam a São Roque da Lameira, os carros já vinham cansados e

chiavam muito, então, puseram lá uma placa «é proibido chiar carros!» Já estavam à entrada do Porto e era proibido chiar carros, se estivessem a chiar, já não podiam passar. Vinha muita gente de Amarante e ainda mais de lá do Marão.

A Aletria da minha mãe era água com açúcar, duas pedrinhas de sal, um pau de canela, deixava-se ferver, depois usávamos a aletria fininha e deixávamos cozer. Logo que estivesse cozida, tirávamos para taças e polvilhávamos com canela, aos quadradinhos.

A minha mãe também fazia o Queque, era uma espécie de Pão de Ló. Era feito numa forma redonda com um buraco no meio.

Também fazia o Rolo, este era no tabuleiro. A massa era igual, só que este levava chocolate. Levava Farinha de trigo, açúcar, ovos, sendo que as claras tinham de ser batidas em castelo. Primeiro misturava farinha, o açúcar, o leite, e depois as gemas e as claras. Antigamente, era muito ruim de encontrar chocolate. Mas como a minha mãe ia levar a farinha às mercearias, depois trazia também estas coisas ruins de encontrar como o chocolate. Também se comia Bolo Rei que se comprava no Paupério.”

M. da Conceição Martins

Martinho Silva 70 anos ALFENA

“Não havia muita fartura, mas no Natal tínhamos a Sopa Seca, as Rabanadas, a Aletria. A Sopa Seca tinha de ser feita com um cacete muito duro, com mais de oito dias, era cortado às rodelas, fazia-se uma calda com água, açúcar, canela, azeite ou pingue e passava-se o pão nesta calda. Depois, passava-se em ovo e punha-se às camadas num alguidar de barro. Ia ao forno a tostar. Nas Rabanadas, era igual, passavam-se as rodelas de cacete em calda e ovo e fritavam-se. Por fora, polvilhavam-se com açúcar e canela. A Aletria tinha como base a mesma calda, a água, o sal, o açúcar, o azeite ou o pingue, e a canela. Cozia-se a massa nesta calda e, no final, depois de passada para os pratos, decorava-se com canela. Não levava leite, nem ovos.”

Ana Gonçalves Pinto Pereira Barbosa 87 anos VALONGO

“Pelo Natal, faziam-se as Rabanadas, a Aletria , o Pudim. Para as Rabanadas, usávamos os cacetes, partiam-se às rodinhas. Tinha de se fazer a calda com água, canela, açúcar e limão. Deixava-se ferver, molhava-se o pão nessa calda, depois, no ovo e fritava-se. Nunca se fez com leite, nem com vinho, era assim. Deitavam-se açúcar e canela, depois de fritas. A Aletria era com a mesma calda, mas punha-se um bocadinho de manteiga. Depois de ferver, punha-se a aletria a cozer.”

O Fim do Tempo Velho e a Introdução ao Tempo Novo. Celebrar o Entrudo.

“Ao domingo, em minha casa, sempre que havia pão recesso, faziam-se Rabanadas ou Sopa Seca para sobremesa.
Os padeiros faziam muita vez. Mas no Carnaval, tinha mesmo de se fazer Sopa Seca.”
MARIA LINA CASTRO NEVES, VALONGO.

Representação de um tempo de transição, momento de oportunidade para encerrar o período do Inverno, nos calendários agrícolas, o Entrudo simbolizou a preparação para o novo ciclo de fecundidade da terra. Por isso, como tempo de passagem, incluía a possibilidade da transgressão da rotina, a alteração dos valores. Muito costume, neste contexto, as brincadeiras do Entrudo com os mascarados e os episódios carnavalescos em que se simulava o enterro do Entrudo, sinal de que se queria o Inverno passado e o renascer da Primavera com a aproximação ao Equinócio da Primavera. Na prática alimentar, os excessos eram, igualmente, um modo de evidenciar a transição para um tempo novo que, por oferta votiva, iria exigir o jejum. Ou seja, o iniciar de um novo ciclo, sugeria alguma contenção alimentar de modo a preparar o corpo e o espírito para a nova

fase que se aproximava. Por isso, entre o Entrudo e a Quaresma, comia-se o porco e tudo o que dele estivesse disponível. Eram dias de abundância, de usufruto da multiplicação do animal através do fumeiro e da salgadeira.

A acompanhar o Cozido com as carnes porcinas e seus proveitos, estava a Sopa Seca, sobremesa que, no concelho de Valongo, está muito ligada ao Entrudo. Contudo, se por esta época era receita imperdível em qualquer casa, nas famílias de padeiros, não seria necessário esperar pelo Carnaval para comer Sopa Seca. A abundância de pão permitia que, aquela, fosse a sobremesa em várias alturas do ano, sobretudo, no dia de descanso, o domingo.

O Entrudo, momento de transição entre os dias frios e curtos de Inverno e os dias solarengos e sempre crescentes da Primavera, marcava o calendário e trazia o pão de trigo para a mesa, celebrava-se com a Sopa Seca. Do pão, o sólido que alimentava. Da calda, o líquido que adoçava. De notar, a recordação, ainda que vaga, de usar a água de cozer a galinha para fazer a Sopa Seca. Na verdade, a calda onde cozia a galinha que, pela fervura das gorduras, ficava com a enxúndia, surge como hábito em outros referências geográficas.

Pela capacidade desta receita em se manter na ementa das famílias, indicia a sua importância simbólica e alimentar.

Maria Lina Castro Neves 91 anos VALONGO

“A Sopa Seca fazia-se no Carnaval. No domingo gordo, fazia-se o cozido e havia a Sopa Seca. O Cozido levava o salpicão, a chouriça, a orelheira, carne de vaca, toucinho, perna de porco, batata, penca. A Sopa Seca de Valongo é com moletes. Partem-se às fatias, cada pão dá quatro fatias. Eu ponho água, açúcar a gosto, manteiga, pau de canela e casca de limão, e deixo a água ferver. A água ferve e eu começo a meter o pão aos bocados, molho o pão e ponho a escorrer. Bato ovos bem batidos e passo o pão pelo ovo. Mas, no fundo da caçarola torta, daqueles alguidares de barro em que se faz o arroz, ponho uma camada de açúcar e canela, só depois ponho o pão já passado por ovo. Entre cada camada, ponho açúcar e canela, até acabar o pão e o ovo. Se crescer ovo, eu deito por cima. Por cima do ovo, deito uma boa camada de açúcar e canela. Depois, vai ao forno, fica quase uma hora e meia no forno. Se não estiver este tempo todo no forno, não coze no meio. Temos de partir e ver-se as risquinhas. Era este o bolo tradicional de Valongo, como o Pudim de Pão.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho . Cândida Matos Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“No Carnaval era a Sopa Seca Usava a mesma calda que era feita com água, sal, açúcar, manteiga, canela e casca de limão. Depois, partia o pão molete e punha às camadas. Entre cada camada, deitava açúcar e canela e calda. Punha numa caçarola para ir ao forno.”

M. da Purificação Matos Ferreira Soares Ribeiro 74 anos VALONGO

“O Entrudo era uma festa com os homens a fazerem de mulher e vice-versa. No domingo gordo comia-se cozido, mas aí já levava a orelheira, a beiça, os enchidos.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“A Sopa Seca fazia-se no dia de Carnaval e na véspera do Dia de Todos os Santos, a que era considerada a primeira Consoada do ano. A sopa seca é como as rabanadas. Em vez de fritar o pão, põe numa caçarola e vai colocando açúcar e canela por entre as fatias de que foram molhadas na calda e passadas pelo ovo. Não pode encher porque o pão cresce quando vai a cozer, quando é tirado do forno é que abate. No domingo gordo era uma refeição de porco. Havia Sarrabulho e Papas como se se matasse o porco.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“O Carnaval era com Cozido.”

Maria Emília Ferreira

Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“A Sopa Seca era a mesma coisa das Rabanadas, só que em vez de ir a fritar, ia em camadas num alguidar, ao forno. Entre as camadas, botávamos a canela e o açúcar e, por cima, o ovo que restava. Aquilo crescia e ficava como um bolo. Fazia-se no Carnaval.

Na terça-feira de Carnaval, comia-se um Cozido com carnes de porco. Punha-se o chispe, a costeletinha, a orelha, um bocadinho de presunto, um salpicão, uma penca, batata cozida. Comia-se, depois, Sopa Seca.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos VALONGO

“O Entrudo era sempre festejado, era nessa altura que se fazia a Sopa Seca . A minha mãe cozia um frango e com a água do frango é que fazia a calda para fazer a Sopa Seca. Passava as fatias do pão nessa calda, depois, passava pelo ovo e punha na caçoila. Entre cada camada de pão, punha açúcar, canela e vinho do Porto. Por fim, punha o resto do ovo e ia ao forno. No domingo gordo, era o Cozido que levava penca, cenoura, batata, orelheira, toucinho, toucinho fumado, frango, chouriça, salpicão e o nispo. Na terça-feira de Carnaval fazia-se a Feijoada com o resto das carnes que sobravam. Era com feijão branco e fazia-se sempre um bocadinho de arroz branco para acompanhar. Para fazer este arroz, a minha mãe sempre fez um estrugido com azeite e cebola, alourava, punha a água e depois o arroz. Era um arroz feito em tacho.”

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“Em Fevereiro, havia o Carnaval, havia por aí umas entrajadas. No Domingo Gordo comia-se um Cozido, levava o presunto, o salpicão, a carne de vaca e as couves galegas. Não havia outras couves que não fossem as galegas.”

Maria da Silva Moreira 79 anos SOBRADO

“No Domingo Gordo era sempre um cozido com as carnes. Punha-se o salpicão, o presunto, a carne de meios, os ossos que estiveram de molho para não estarem tão salgadas, punha-se galinha, batatas, couves e arroz. Na terça-feira de Carnaval, fazia-se assado de carne de vaca que se ia comprar ao talho. Era com tempero igual ao que se fazia no anho.”

Carolina Dias Moreira 84 anos M. Madalena Martins dos Santos 78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos SOBRADO

“No dia de Carnaval era dia de andar com as almieiras à noite. Faziam-se uns molhitos de palha amarrada que se acendiam, depois íamos a correr com aquilo aceso pelas ruas. «Entrudo fora, venha a Páscoa embora, muito milho para a nossa eira e muita merda para os de Ferreira!» Era uma brincadeira! O que nós queríamos era ter muito milho.”

Florinda Martins Ferreira 66 anos José Maria Soares Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“No Entruido, era o cozido com a orelheira e tudo o que pertence do porco, era o que houvesse. «Barriga que lá o tem, lá o governa!» Quando se matava o porco já se destinava o que era para cada altura. No Entruido fazia-se Sopa Seca, mas a minha mãe fazia muitas vezes sem ser nas festas. Vinha aqui uma padeira, e Campo, vender trigo, vinha na bicicleta com a canastra à cabeça.”

“A minha receita de Sopa Seca é já muito antiga. Os pais da minha sogra tinham um restaurante, eram valongueiros. Aprendi a receita com a minha sogra, chamava-se Ana da Conceição Nogueira Reis. Era água com sal, açúcar, casca de limão, pau de canela, ferve tudo. Quando tivesse fervido, um cálice de vinho fino e manteiga. A manteiga nunca fervia. O pão molete era partido às fatias, mas só algum do pão é que partíamos em fatias, o resto partíamos às luchas, às sopas. Mergulhava as fatias na calda e punha à parte, o resto punha dentro da panela da água doce, deixava estar até ficar bem amolecido e mexia. Deitava, numa tigela, os ovos que entendia e juntava uma colher de sopa média por ovo. Batia os ovos bem batidos. O pão, entretanto, está pronto. O calor já passou. Pegava nos ovos e misturava no pão. Metia tudo num alguidar, daqueles de barro, e cobria com as fatias que tinham sido amolecidas na água e passadas no ovo, polvilhava-se com açúcar, canela e nozes de manteiga. Ainda hoje faço para a família, fica muito boa esta Sopa Seca! Tem que estar no forno o tempo necessário para criar crosta, tem que ficar cozida por cima. Se for necessário, tem de ser tapada. A Sopa Seca era pelo Carnaval, era isso e a orelheira, a beiça e as carnes de porco no cozido. No domingo gordo era o cozido, na terça-feira era a feijoada. Utilizavam-se as carnes que sobravam e um bocadinho de água do cozido.”

68 anos VALONGO

“Pelo Carnaval, era a Sopa Seca , era com a mesma calda das Rabanadas. Mas havia uma receita muito antiga, era de uma senhora que me contou que deitava na calda a gordura das galinhas. Mas a minha mãe nunca fez assim, só punha, de gordura, a manteiga. O pão de cacete era partido e posto às camadas num alguidar. Molhava o pão na água doce, passava por ovo e fazia a primeira camada. Depois, punha açúcar e canela. Fazia outra camada e ia repetindo. Ia regando sempre com açúcar e canela entre as camadas. Por cima, se crescer um bocadinho de ovo, rega-se com esse resto, põe-se açúcar e canela e vai ao forno a tostar.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“No Carnaval era o Cozido que levava presunto, salpicão, penca, costela de porco, bicos, orelha fumada, orelha não fumada e chispe, era a mão ou o pé do porco. Comia-se na terça feira de Carnaval, no domingo anterior, no domingo gordo era a Feijoada . Era o feijão vermelho que era cozido, fazia-se um refogado, depois juntavam-se as carnes, deixavam-se refogar e, por fim, o feijão. Era comido com arroz branco seco. Fazia-se Sopa Seca pelo Natal e pelo Carnaval. Era com pão de cacete que era partido às rodinhas, punham em água morna com açúcar e canela, deixava-se estar um bocadinho e, depois, punha-se num alguidar às camadas com canela e açúcar, um bocadinho de cada coisa. Ia ao forno, ficava muito bom, assim tostadinha. A Sopa Seca, assim simples, fica ainda melhor.”

Depois da fartura, o Jejum. A Quaresma.

“São Mamede, é o padroeiro de Valongo, mas nunca se fez grande coisa, só começou há 60 anos. Os Passos é que eram a grande festa de Valongo. É no quarto domingo de Quaresma. Se por acaso, chover, passa para o quinto. Faz-se procissão e sermão. A Nossa Senhora da Soledade sai para a capela da Nossa Senhora da Luz, que para nós é a Nossa Senhora das Neves, mas sempre lhe chamámos Luz, e, no domingo, o Senhor dos Passos vai para baixo e depois a Nossa Senhora sai da capela e vai ao encontro. A Verónica canta. É a festividade mais importante de Valongo.”

MARIA LINA CASTRO NEVES, VALONGO.

Entre o Entrudo e a Páscoa, todas as famílias respeitavam a obrigação do jejum e abstinência. Nos 40 dias que antecediam o sábado da Aleluia e o domingo de Páscoa, cumpria-se a regra da ausência de carne a todas as quartas-feiras e sextasfeiras. Temerosos a Deus e à necessidade de observar aquela regra católica, os habitantes do concelho de Valongo faziam dos dias de jejum momento para ementas de peixe.

Limitadas, por um lado, pelos parcos recursos económicos e, por outro lado, pela dificuldade de acesso a peixes de posta, as famílias reduziam as suas escolhas a espécies como a sardinha e o chicharro. Era o que havia e o que orçamento permitia, pois o bacalhau, não chegava a todas as casas.

Quase sempre fritos, os peixes eram, antes de irem frigir na sertã, passados em farinha de milho. Para além de ser a farinha do pão (de milho), a que tinham disponível, também favorecia o sabor do peixe. Ainda, em muitas situações, a broa frita no azeite de frigir o peixe acompanhava a refeição.

Por isso, a Quaresma trazia os dias de peixe e os dias em que o milho, pelo pão, bolo ou papas, alimentava e aconchegava até chegarem a Páscoa e a celebrada regueifa.

De realçar a Regueifazinha de Cornos que se comprava pela festa de S. Lázaro, 15 dias antes da Páscoa, em Alfena. Com uns feitios a lembrar uns cornos, era muito apreciada.

Maria Lina Castro Neves VALONGO

“O jejum era uma coisa que se respeitava. No Advento, o jejum começava no primeiro domingo de Dezembro e era até à véspera de Natal. Durante a Quaresma, também se guardava o jejum. Era abstinência. Era peixe cozido ou frito em Farinha de Milho. Era o carapau, sardinha, a faneca. A minha madrinha que vendia no Bolhão, às vezes, trazia peixe de lá.”

M. da Purificação Matos

Ferreira Soares Ribeiro 74 anos

VALONGO

“Nesta altura, a Quaresma era uma coisa importante, era mais peixe o que se comia. Era a sardinha, a pescadinha era para quem tinha mais dinheiro. Era o chicharro que era assado no forno com uma boa camada de cebola, pimento, colorau, azeite e vinho. A sardinha comia-se frita. Fazíamos filetes de sardinha, feitos com a sardinha grande e gordinha, cortava-se a meio, tirava-se a espinha, temperava-se com sal, alho, pimenta, e depois fritava-se envolta em ovo e pão ralado ou só farinha de trigo ou de milho. Com farinha de milho, até ficava com um gosto diferente. Havia até quem não lhe tirasse a espinha. Era acompanhada com arroz branco. Em minha casa já utilizávamos muito o tomate, em saladinha.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“Na Quaresma era sagrado, na Quarta-Feira de Cinzas e nas sextas-feiras, em minha casa, não entrava carne. Fazia-se peixe, vinha o peixeiro que ia buscar a Matosinhos. Chegava pescada, fanecas, polvo, chicharro, sardinhas. As sardinhas eram sempre assadas. Também se fazia sardinha pequena e a faneca frita passada em farinha de milho. Comíamos com arroz de tomate.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“Não se comia carne em dias certos da Quaresma. Tínhamos uma peixeira que ia buscar peixe a Matosinhos. Era pescada, fanecas, sardinhas, pescadinhas. Comia-se o peixe frito com batata cozida ou arroz.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“Na Quaresma, todas as sextas-feiras, não se comia carne, ainda hoje se faz isso. Era mais o peixe que se comprava aos peixeiros que vinham pelas portas a vender. Era a sardinha , chicharrinho O forno estava sempre quente, a minha mãe punha uma assadeira com um chicharro e batatas no forno. Punha de tempero cebola, pimenta, colorau, uma pedrinha de sal e um bocadinho de vinho branco. Punha no forno, fazia um bocadinho de arroz e era a comida que servia para todos. As sardinhas, fritavam-se. Só pelo São João é que eram sardinhas assadas. Tinha o grelhador, e lá se assavam as sardinhas.

No resto, eram fritas. Na Quaresma, também se comia muito Bacalhau . Fazia-se cozido e à Espanhola. Cortavam-se batatas às rodelas e era feito no lume, no tacho, com pimento, alho, cebola, e depois fazia às camadas de batatas e bacalhau. Ia temperando, depois botava-lhe azeite por cima e aquilo fervia. Tirava-se quando estivesse quase tudo cozido, e as batatas e o bacalhau acabavam de cozer no forno. Também se fazia Empadão de Bacalhau . Ainda tenho por hábito fazer. Ponho o bacalhau a refogar, depois faço o puré e boto limão na batata, ponho uma camadinha de batata no fundo que é para não agarrar, espalho o bacalhau por cima com aquele refogado, torno a cobrir com puré, depois bato um ovo e boto-lhe por cima, boto um bocadinho de pão ralado, azeitonas, um bocadinho de salsa, vai ao forno e até parece um bolo. Fica todo bonito e é muito bom.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos

Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“Na Quaresma, cumpria-se o jejum à Quarta-Feira de Cinzas e às sextas. Nestes dias comia-se mais peixe. Ninguém tinha dinheiro para a pescada, era mais sardinha e carapau. Passavam-se em farinha de milho e fritavam-se. Depois, fazia-se o molho de escabeche com o azeite da fritura, cebola, pimento, tomate e vinagre. Faziam-se Papas de Nabiças. Primeiro, fazia-se o caldo com nabiças e batatas e, depois, engrossava-se com farinha da broa e azeite. Ficavam muito boas.”

Maria da Silva Moreira 79 anos SOBRADO

“Na Quarta-feira de Cinzas cumpria-se o jejum. Comia-se bacalhau. Ou faziam Ensopado à Espanhola , que era feito às camadas com uma camada de bacalhau, outra de batatas, outra de rodelas de cebola, uns alhos, e voltava-se a repetir. Quando se fazia Sopa, nesta situação de Quaresma, já não levava pingue, nem carne, era temperada com azeite.

Comia-se muita sardinha. Quando era à entrada do Inverno, nós comprávamos uma caixa de sardinha, salgava-se que era para se comer durante o Inverno. Depois, pegavam-se naquelas sardinhas, punham-se de molho para tirar o sal e assavam-se nas brasas. Depois de estarem assadas, desfiávamos aquelas sardinhas, deitávamos alho e azeite e esfarelava-se o miolo Pão de Milho para misturar nas sardinhas. Depois, ainda se misturava mais azeite por cima daquilo tudo.

A minha mãe comprava o Chicharro grande, tirava a cabeça, o rabo e a espinha que tem, cortava às postinhas fininhas, e depois de estar cortado era bem lavado e era posto numa bacia com vinagre e envolvia, depois o sal e voltava a envolver. Por fim o alho e aí é que já não precisa de misturar mais. Depois, frita-se já passado por farinha de milho. Era comido com batata cozida.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galahgar 68 anos VALONGO

“A Quaresma era vivida com respeito. Na Quarta-Feira de Cinzas e Sexta-Feira Santa praticava-se jejum e abstinência. Nestes dias, comia-se só uma refeição ao almoço, era peixe. Nessa altura, era a sardinha, o carapau, chicharro, era o que chegava cá. Era quase sempre frito passado em farinha de trigo. E acompanhava com arroz de tomate ou arroz branco. Também se fazia Arroz de Polvo. A nossa mãe cortava o polvo aos bocados, fazia um refogado com muita cebolinha e azeite, e deixava o polvo a refogar. Logo que estivesse cozido, punha a aguinha e o arroz. Às vezes, até se punha na fornalha quando já estava semifeito. Deixava-se um bocadinho e mexia-se com um garfo, ficava um arroz solto. Não era seco, nem muito caldoso, ficava humidozinho.”

Florinda Martins Fernandes 92 anos SOBRADO

“No Domingo Gordo era sempre um Cozido. Os netos do Sr. Visconde eram muito daqui de casa. Na Quarta-Feira de Cinzas fazia-se jejum. Sardinhas assadas na brasa, fritas depois de passadas em farinha de milho, ou então chicharro frito. Comia-se com batatas cozidas. O Bacalhau era comido com batatas com couves.”

Carolina Dias Moreira

84 anos M. Madalena

Martins dos Santos

78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos

SOBRADO

“Fazíamos jejum durante a Quaresma, a não ser que se pagasse a bula. Era mais a sardinha havia, comprava-se e punha-se no erguiço (caruma ou moliço) e tapava-se com esse erguiço. Tanto se fritava com farinha de milho, como se assava.”

M. da Conceição Gomes

Cunha 68 anos CAMPO

“Na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa respeitava-se o não comer carne. Era a sardinha, o chicharro, a faneca. Comia-se tudo frito, passado em farinha de milho. Fazia escabeche só para os peixes de rio, bogas e barbos, que o meu pai apanhava no rio Ferreira. Para o escabeche era o azeite da fritura, azeite, cebola e vinagre.”

Florinda Martins Ferreira 66 anos José Maria Soares

Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“Na Quarta-Feira de Cinzas era jejum e abstinência. Guardavam-se os restos da carne e, depois, fazia-se uma feijoada ou um arroz com feijão com a carne toda a misturada. Fazíamos um arroz molezinho a nadar, com feijão e com carne. Nunca se comia arroz solteiro, era quase sempre com feijão. Todo o peixe que se quisesse fritar era frito na farinha do pão. O peixe era comido com arroz de feijão e com broa.”

José Coelho Sousa Suzano 67 anos CAMPO

“Fazia o cozido no Carnaval. Guardava 7 semanas de jejum, à quarta feira e à sexta feira, do Carnaval à Páscoa. Comia-se sardinhas, fanecas, verdinhos, passado por farinha de milho e frito. Era com arroz malandro a nadar no prato.”

Maria Alexandrina Carneiro de Matos Almeida 84 anos VALONGO

“Fazíamos jejum na Quaresma. Era sardinha frita passada em farinha de milho e uma fatia de broa na fritura do peixe.”

Maria da Conceição

Martins Martinho Silva 70 anos ALFENA

“«Passos, Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos!» Iam umas vendedoras ambulantes à capelinha de São Lázaro vender as Regueifazinhas de Cornos de São Lázaro, era 15 dias antes da Páscoa. Eram umas regueifas muito bonitas”

Os Rituais da Fertilidade. A Páscoa.

“Tínhamos a procissão do Senhor Morto, era levado no esquife, acontecia na Sexta-Feira Santa. Era uma procissão feita em silêncio. Na Quinta-feira Santa, eram as Tramelas. Uma Tramela é um pau e, no meio, tem um batente a girar e a gente pegava naquilo e fazia um barulho. No fim da missa de Páscoa, saía a Procissão da Aleluia que corria Valongo. No domingo seguinte, na Pascoela, era a Procissão dos Entrevados. Era uma procissão muito bonita, saíam as campainhas das capelas. O padre ia debaixo do palio e saía sempre que passava em casa de uma pessoa doente, saía e ia dar a comunhão ao doente.

O dinheiro angariado na procissão revertia a favor dos pobres.”

Terminado o Inverno, a Primavera preparava o caminho para a abundância que iria acontecer com o solstício de Verão. O trigo e o centeio, já visíveis nos campos, iriam ser colhidos lá para Junho. “Junho, foice em punho”. O alimento primordial das comunidades rurais, o milho, iria ser semeado entre Abril e Maio para dar os frutos em Agosto e Setembro. A promessa da abundância que o tempo morno e calmo de Primavera permitia pensar dava alento para uma das celebrações mais importantes das comunidades agrícolas, o renascer da natureza.

Habitualmente celebrada em Março ou Abril, a Páscoa é um marcador no calendário católico que reproduz a crença na abundância alimentar, reflexo da vida que se renova em cada semente deitada à terra, no contexto religioso entendido como a passagem de Cristo da morte à vida eterna. Por ele e com a sua morte física, os crentes conseguiram a esperança da vida eterna, a ressurreição e o perdão das faltas cometidas. Cristo, enquanto fonte de vida, torna-se a esperança para todos os católicos, simbolizando a semente que morre para dar vida, tal como o pão. Na hóstia, pela Eucaristia, é essa promessa que se renova, personificando o pedaço de pão alvo a força cristã. Sendo a Páscoa uma promessa de vida, através da Primavera que traz os novos

frutos agrícolas, através do pão que se personifica em Cristo, era aquele momento, no calendário agrícola absorvido pelo calendário cristão, uma oportunidade de demonstrar a convicção e a esperança no futuro. Por isso, pela Páscoa, se em todo o país criou raízes a prática da oferta de bolos de trigo, em Valongo, tal transmutou-se na necessidade de oferecer o pão quase divino, a Regueifa. Este pão, alvo, fofo, feito com a melhor farinha, peneirada até à ausência completa de farelo, simbolizava essa ode, esse elogio, ao trigo, ao pão e a Cristo, todos fonte de vida. O pão, alimento da vida física. Cristo, suporte essencial da vida espiritual.

Por isso, num lugar como Valongo, onde o pão era alimento matricial, base financeira das famílias e traço cultural de uma comunidade, pela Páscoa, fazia-se o melhor pão com uma dupla intenção de agradecimento. Agradecer o já recebido e que tinha permitido a abundância alimentar e financeira ao longo de um ano, e por outro lado, dar graças antecipadamente pelo que se esperava receber no futuro. Oferta votiva caraterística das sociedades agrícolas, em Valongo, transmutou-se na oferta dos padrinhos aos afilhados da afamada Regueifa.

Pão de crosta estaladiça e interior fofo, macio e muito branco, a Regueifa, enquanto símbolo de abundância e promessa de alimento e de vida, era feito em formato de rosca a simbolizar a fecundidade e fertilidade feminina. Nas padarias, pela Páscoa, engalanava-se essa Rosca de Regueifa com símbolos que os padeiros faziam e fazem com arte.

A «tromba» ou «orelha», ponto onde se fechava a trança de

massa, era decorada com feitios, bocados de massa que ocultavam a ligação entre as duas pontas da regueifa. O fechar do círculo perfeito, era feito com beleza. Tranças, pinhas, palmas, esses, sardões, fechavam e decoravam as regueifas, sobretudo as maiores que chegavam aos 4 kgs. Ainda hoje, é memória dos valonguenses, a regueifa que se enfiava pelo braço e se levava para casa, depois de ofertada pelo padrinho ou madrinha.

Símbolo maior da Páscoa em Valongo, a Regueifa, enquanto sinal de um pão quase perfeito, tornou-se no pão dos dias de festa, de celebração. Por isso, no Natal e outras ocasiões de celebração, e até no domingo, enquanto dia dedicado ao descanso, a regueifa ocupava a mesa e trazia o trigo para as refeições das famílias.

De relembrar a Regueifinha de Cornos que se vendia em Sobrado, pelo S. João, festa envolta em grande misticismo e história local e que coincide, à semelhança do Natal, com uma das fases do calendário solar, nomeadamente, com o solstício de Verão. Esta regueifa, pela descrição que os testemunhos permitiram, era, ao longo da rosca, enfeitada com uns pequenos cornos, quiçá, reproduções dos cornos da lua em fase de quarto crescente, símbolos de fertilidade tão propiciadores de fecundidade e que tanto contexto encontram em período de solstício de Verão.

O início da produção de Regueifa Doce, em que à massa de pão se adicionaram ingredientes como a manteiga, o açúcar e a canela, criou a necessidade de distinção e a da Páscoa ficou conhecida como Regueifa Azeda. Contudo,

é de notar que esta versão adocicada será de produção mais recente. Terá sido, porventura, a acessibilidade de ingredientes como o açúcar e a manteiga que proporcionaram o aparecimento daquela versão.

A Páscoa seria época abençoada pela presença do trigo, momento por excelência deste cereal que, em todo o seu esplendor, brilhava em regueifas decoradas com arte e exatidão. Contudo, também a Páscoa sentia a felicidade e a benesse do trigo, através da Rosca de Pão de Ló que se comprava em algumas padarias de Valongo. O Pão de Ló, bolo que pelo Minho se associa à abundância e à vida pela forte utilização de ovos, sendo estes símbolo de vida que renasce, disseminou-se pelo concelho de Valongo à medida que as condições económicas e políticas permitiram o acesso aos ingredientes. A evolução económica, política e social trouxeram a Rosca de Pão de Ló para o quotidiano dos valonguenses reafirmando a importância do trigo na época pascal.

Será, por isso, pela Páscoa, depois do jejum da Quaresma, que o trigo tinha a sua maior ovação, o seu maior elogio, a Regueifa, pão quase perfeito. Pão quase divino a simbolizar a promessa de vida que se queria ter, material e espiritual.

“O Pão de Ló não era uma tradição, foi a Fábrica Paupério que trouxe a tradição. Nós recebíamos a Regueifa Doce, mas eu lembro-me que a minha madrinha me começou a dar, era

eu novita, regueifa de Pão de Ló, mas não havia muita gente que o fizesse. Foi a Paupério que trouxe essa novidade. O que era mais habitual era os padrinhos e as madrinhas darem a Regueifa Azeda aos afilhados. Era cá cada Regueifa! Às vezes, até tínhamos medo e a partir ao tirar do forno. Havia Regueifas de 5 quilos. Era a Regueifa Azeda, mas havia quem pedisse a Doce.

A Regueifa Azeda leva farinha de trigo, água, fermento e sal. A Regueifa Doce é igual, mas leva também manteiga e açúcar, a massa tem de ficar mais mole, não vai ao sovador. Por cima da Regueifa, punham-se os biscoitos de bonecos. Nós, antigamente, fazíamos biscoitos com uma chapa com o desenho de um coração, uma estrela, um porco, um boneco. Estendia-se a massa de biscoito no sovador, cortavam-se os feitios e punham-se na Regueifa. Quem quisesse fazia uma trancinha. Era só na Páscoa que se fazia isto.”

M. da Purificação Matos

Ferreira Soares Ribeiro 74 anos

VALONGO

“Na Páscoa, era a Regueifa , o pão de ló veio mais tarde. Lembro-me de fazerem pão de ló em Sobrado, mas não era muito frequente. Em minha casa, já foi mais tarde. Era a regueifa. Na visita do padre, tínhamos o rolo, as amêndoas, o vinho do Porto.”

António de Castro Alves Aguia 85 anos

VALONGO

“Na Páscoa, os padrinhos ofereciam Regueifa aos afilhados, eram daquelas grandes de enfiar pelo braço, lá iam eles todos

contentes. Os padeiros tinham bastantes afilhados. Havia muita fome naquela altura e a maioria das famílias comiam pão de milho todos os dias, por isso os afilhados ficavam todos contentes de ter uma regueifa daquele tamanho naquele dia. Sempre era diferente, era pão de trigo. O Pão de Ló era só pela Páscoa. Não havia confeitarias, era a Paupério que fazia. A comida de Páscoa era Cabrito com Arroz de Forno ou Galo Assado.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“Na Páscoa, os padrinhos davam a Regueifa Azeda ou Doce. Nesta altura, comia-se o Pão de Ló que era comprado no Paupério. Havia a visita pascal, era o Compasso. Punham-se, à porta, uns verdes como alecrim, umas flores do monte, que era para saber que se podia entrar, havia casas em que não se entrava. Punha-se uma mesa com pão de ló, vinho de Porto, e um pratinho com amêndoas. Eles levavam as amêndoas para depois dar aos rapazes que estavam à porta à espera.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos VALONGO

“Na Páscoa, era uma Regueifa que os padrinhos ofereciam ao afilhado. Mais tarde, depois é que começou a ser um pão de ló. Eram regueifas enormes que davam para pôr no braço, e tinham uns enfeites, aquelas tranças lindíssimas. O pão de ló apareceu mais tarde. No dia de Páscoa, era novamente o assado de vitela ou porco. Também se comia galinha, mas nesse dia era mais vitela ou porco.”

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“Quando chegava à Páscoa, os padrinhos davam uma prenda qualquer. A Regueifa só se começou a dar já mais tarde. Eu tinha 20 anos, quando começou essa coisa de dar a Regueifa. O almoço era arroz com um bocadinho de carne de vaca assada. Com os boches de boi faziam-se um arroz muito bom, fazia-se um estrugido, estrugiam-se os boches e depois fazia-se a calda para cozer o arroz. Na Páscoa, pintavam-se os ovos com uma tinta que havia nas drogarias. Coziam-se os ovos e, enquanto o ovo estava quente, punha-se um raminho de salsa sobre a casca. Passavam-se os ovos pela tinta e, depois de estar seco, a gente tirava o raminho e ficavam os ovos pintados com o feitio do raminho. Punham-se em cima da mesa para o Compasso.”

Florinda Martins Fernandes 92 anos SOBRADO

“Na Páscoa, a minha madrinha dava-me uma Regueifa de Cornos. Dava para todos, era grande. Na mesa de Páscoa punham-se biscoitos, doces, regueifa de pão de ló que comprava aos padeiros, ovos cozidos e pintados. De comida, era uma galinha cozida, fazia-se canja e Cabidela. A canja fazia come estrelinha e com os miúdos. Para a Cabidela, fazia-se um estrugido com cebola e azeite, depois, punha as carnes, fazia a calda e juntava o arroz. No fim, é que ia o sangue com o vinagre.”

Maria da Silva Moreira 79 anos SOBRADO

“Na Páscoa, a minha madrinha dava-me 10 escudos. No almoço de Páscoa comia-se como se fosse um domingo, era uma galinha assada. A minha mãe temperado com alho, sal e vinho branco e punha numa assadeira com batatas à volta. Havia sempre uma Regueifa de Pão de Ló na mesa na Páscoa. Comprava-se essa regueifa de Pão de Ló. Às vezes, fazia-se um doce de Rolo, era recheado com marmelada. Deitava o peso dos ovos em açúcar e metade do peso dos ovos em farinha. Deitava uma colher de chá de fermento em pó. Untava a forma com manteiga. Separava as gemas das claras e batia as claras em castelo.”

Carolina Dias Moreira 84 anos M. Madalena Martins dos Santos 78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos

SOBRADO

“Na Páscoa, dava-me uma Regueifazita com cornos e uns ovos cozidos pintados. Usava-se fazer uns ovos pintados com tinta. Fazia-se um cozido bom no dia de Páscoa e fazia uma assado daquela carne de porco entremeada, o tempero era mais à força de alho e de cebola, pimenta, colorau, cebola, vinhos muito azedos. Acompanhava-se esta carne com batata e arroz. O pão de ló comprava-se em Sobrado. Havia umas Pombinhas que se faziam pela Páscoa.”

M. da Conceição Gomes Cunha 68 anos CAMPO

“A minha madrinha era a minha avó e ela morreu cedo. As madrinhas davam uma Regueifa aos afilhados. Era cada regueifa assim grande! Essas eram todas enfeitadas. A Regueifa Azeda era o que se dava aos afilhados. O meu pai também fazia Regueifa Doce, fazia-se com farinha de trigo mais fina, manteiga, açúcar, um cheiro de canela, ovos. Ficava mais fofinha. Mas estas não eram tão doces.”

Florinda Martins Ferreira 66 anos José Maria Soares Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“Na Páscoa, o padrinho e a madrinha davam a Regueifa de Trigo aos afilhados com aquela trancinha por cima. Íamos à padaria a Valongo, ao Paupério ou ao Aguiar. Quando se dava a regueifa de pão de ló era na comunhão solene. Comia-se assado de carneiro. Matava-se e ficava a escorrer. Quando era cortado, metia-se em água, sal e limão e ficava ali umas horas. Depois, temperava-se com sal, limão, vinho branco, alhos e um bocadinho de cor e pimenta, azeite, pingue, e lá se misturava tudo. No outro dia, cebola no fundo da assadeira e depois ia o carneiro com os temperos. Lá se fazia com batatas e com o arroz. Fazia-se Aletria e Sopa Seca pela Páscoa. Na visita pascal, na mesa, punham-se uns ovos tingidos com tinta vermelha ou com casca de cebola e comia-se Pão de Ló, Doce Branco, vinho fino e vinho verde.”

José Coelho Sousa Suzano 67 anos CAMPO

“Na Páscoa, havia sempre a Regueifa de Pão de Ló e as Regueifas de Trigo

A consoada dos afilhados era a regueifa de trigo.”

Maria Alexandrina Carneiro de Matos Almeida 84 anos VALONGO

“Na Páscoa era carne assada ou galo assado. De doces, a minha mãe fazia o Pudim e o Rolo.

Ainda hoje, o Rolo é uma receita que faço muitas vezes. Leva 250g de açúcar, 125g de farinha, 6 ovos com as claras batidas em castelo. As gemas batem-se com o açúcar, se quiser deitar uma casquinha de limão, não fica mal. Se quiser que o bolo fique grande, junte um nadinha de fermento. Junto a farinha logo a seguir e, só depois, as claras batidas em castelo, mas tem de ser com cuidado para as claras não perderem aquele olhinho. Quando estiver a bater as claras, ponha-lhe uma areia de sal. Com uma areia de sal, não há bolo que saia mal. Ponho num tabuleiro, mas agora já ponho uma folha de papel vegetal, é muito mais fácil. Nem agarra, nem queima. Ponho um pano húmido para depois enrolar. Como recheio, pode pôr marmelada, aqui em casa gosto de pôr creme de limão. É um bocadinho de leite, uma colher de chá de farinha maisena, desfaço no leite, bato um ovo ou dois, e junto casca de limão, se não tiver limão, ponha uma folha de limoeiro, faz o mesmo efeito. Meto tudo ao lume e mexo até ficar grosso. Convém fazer enquanto coze o bolo. Também pode pôr chocolate. Vira o paninho e vai enrolando, se o pano não estiver

molhado, ele rasga. A minha mãe fazia Rolo pelas festas, até fazia para pessoas que lhe pediam. A minha mãe punha recheio de chocolate, a minha sogra é que fazia creme de limão.”

Maria Rita Marques Padilha 68 anos VALONGO

“O que se dava era uma Regueifa Doce. Só que, em minha casa, fazia-se de modo que eu e o meu irmão não recebêssemos, os dois, pela Páscoa. Então, os meus avós maternos, que eram os padrinhos do meu irmão, davam pela Páscoa. Eu, recebia na pascoela, os meus avós paternos, que eram os meus padrinhos, davam-me nessa altura. Em Valongo, pela pascoela, fazia-se uma procissão das campainhas. Era de manhã, as pessoas das confrarias iam, pela rua fora, com as campainhas a tocar e levavam o Santíssimo aos doentes.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“Na Páscoa, a minha madrinha oferecia-me uma Regueifa grande, aí com 4 quilos, com umas trancinhas por cima. Era tão bonito. Estava ansiosa que chegasse a Páscoa para ir buscar a Regueifa. Era uma Regueifa Azeda , mas também havia a Regueifa Doce. Mas eu também levava uma prenda à madrinha, levava-lhe biscoitos ou açúcar e arroz. Era assim que se fazia. Na Páscoa, comia-se Cabrito Assado no forno ou Cordeiro de Leite. Ainda hoje, é assim. Ponho com água, limão, salsa e sal umas 6 ou 7 horas. Depois, fica a escorrer. Depois de escorrido, ponho o tempero de um dia

para o outro. Ponho alho, azeite, tomilho, manjericão, coentros. A minha mãe não punha estas ervas, mas punha salsa e pimenta. No dia seguinte, numa assadeira, ponho cebola com azeite, junto o cabrito, rego com mais um bocadinho de azeite e ponho um cálice de vinho do Porto. Na mesma assadeira, põe-se batata a assar. E fazia-se Arroz Seco. Na Páscoa, também se comprava o Pão de Ló, ou na Paupério ou no Máximo da Cunha aqui em Campo, para ter na mesa.”

No Calendário, Todos os Dias, o Pão.

“A minha

mãe

fazia Papas de Sarrabulho e

Papas de Nabiça. Também usava a farinha de milho para fritar as sardinhas e os chicharros. Íamos cozer o cabrito ao forno da padaria. Tudo ia dar ao pão.”

MARIA RITA MARQUES PADILHA, 68 ANOS, VALONGO.

“Em Valongo, as meninas comiam as Papas quentes para ficarem coradinhas.”

LUCINDA DE SOUSA COELHO DA ROCHA, 81 ANOS. MANUEL DA SILVA ANDRADE, 80 ANOS. SOBRADO.

O Pão, uno e múltiplo como só um alimento matricial pode ser, soube estar em todos os dias do calendário. No cereal, na farinha, na receita, no aproveitamento, na ideia. Sim, porque o pão é muito

mais do que o alimento que as comunidades se habituaram a designar. É uma ideia de alimento sempre disponível para saciar, nutrir e dar prazer.

Porque a fome sempre espreitou, porque sempre esteve alerta, o pão foi-se multiplicando em produtos variados, substitutos nem sempre esperados, mas sempre presentes quando escolhidos. Por isso, se o predileto foi sempre o pão de trigo, outros se afirmaram como pão. Do eleito trigo para os dias sagrados, de devoção e agradecimento à divindade pelo alimento recebido, ao milho, cereal que, a partir do século XVI, veio preencher a ideia de pão para muitas das comunidades portuguesas. Cereal de Verão, capaz de ocupar somente quatro meses enquanto ciclo de produção, era acessível pelo trabalho agrícola feito em terras próprias ou arrendadas. Cereal doméstico, fruto do trabalho das famílias e da vontade humana.

Ao invés, o trigo afirmou-se como um cereal anónimo, vindo de outras paragens, de geografias avulsas de acordo com os ciclos de importação. Ora de Trás-osMontes, ora do Alentejo, ora de Espanha, ora da América, era apenas acessível pela capacidade de o transacionar, fosse no mercado oficial ou em circuito mais discreto.

No correr da história, em Valongo, foi o trigo que sobressaiu. Criou reputação e fama por todo o circuito de produção, da transação de trigo à moagem, a produção de pão, aos padeiros, aos produtos como o Molete, a Regueifa, o Biscoito, a Tosta, ao receituário como as Rabanadas e a Sopa Seca, rainhas da cultura gastronómica valonguense.

Tornou-se, o trigo, uma figura viva, um protagonista vistoso, engalanado, festivo e exuberante, capaz de mover paixões, fazer crescer o concelho e dar projeção a Valongo. Impossível, pensar o Natal, o Entrudo, a Páscoa, os momentos festivos, sem a alegria da versatilidade do trigo, do pão ao receituário. Contudo, se o trigo trouxe a riqueza, a fama e a singularidade ao concelho de Valongo, fazendo dos dias de trigo dias de festa, era o milho que fazia os dias do calendário. Versátil, nutritivo, saboroso, o milho, através da farinha conseguida pela moagem, transmutava-se no Pão de Milho, a Broa, nos Bolos, nos Bolos de Ougados, expressão máxima do que seria o atordoar e afastar a fome e a ideia dela, as Papas de Sarrabulho, as Papas de Nabiças ou simplesmente as Papas feitas com qualquer resto de sopa.

O milho também era pão, em Valongo, como em muito lugar da geografia minhota. Seria, o trigo o grande protagonista da vida comercial e empresarial e, por consequência, alimentar, mas o milho esteve sempre lá, mesmo em casa de padeiros. Foi, por isso, um cereal que conquistou todos, sem exceção.

O ajuntamento familiar e comunitário da matança tinha no milho o grande companheiro, pois que o sangue, nesta cultura, não era guardado para as morcelas, mas sim para as Papas de Sarrabulho, aquelas que, ainda hoje, são recordadas e feitas como um dos tesouros gastronómicos locais. Feitas de acordo com o gosto e receita de cada família, oferecia-se como o momento alegre e de confraternização da fartura da matança.

As Papas de Nabiças ou de Grelos, ainda que menos glorificadas, socorriam nos dias da rotina do trabalho, dias de alimentação comedida. Desenrascavam o momento, alimentavam na pobreza dos dias frugais. Mas, ainda que discretas e pouco valorizadas, estavam lá, no quotidiano dos dias, tanto quanto as Rabanadas estavam pelo Natal ou a Sopa Seca pela Páscoa. Nutritivas, suculentas quando comidas com o rojãozinho, davam alento a um calendário que esperava os dias da abundância.

No calendário da comunidade do concelho de Valongo, preencheram-se os dias, ora com trigo, ora com milho. Os dias de mudança, sempre valorizados por marcarem a diferença entre a possibilidade e oportunidade de abundância, eram sinalizados com a excelência do trigo. Mas, o milho esteve sempre presente, no pão e no receituário.

De realçar o que sobressai na memória do que se fazia com o milho. A Broa com Caldo, em que as fatias do pão de milho era amolecido com o caldo quente e saboroso. Ou as Sopas de Café com Broa, em que esta amaciada pelo café com leite era aromatizada pela canela e pelo açúcar. Ou o Miolo de Broa com Amoras e açúcar. Ou a Broa Frita. Memórias de um receituário que nem sempre se percebe que é pão. Mas o trigo também cabia nos dias repetidos do calendário, no quotidiano de todos os dias. Na Bola de Carnes, mimo de casa de padeiros. Ou nas Sopas de Pão feitos com o guisado de Coelho. Ou na Água de Unto, preenchida com o pão de trigo. Ou nas Rabanadas e na Sopa Seca, pois não se esperava pelo Natal ou pelo Entrudo para se

fazer estas receitas, podiam ser receituário dos dias anónimos de semana. Ou nas Iscas de Bacalhau, daquelas grandes que ocupavam o fundo do tacho e que são criação da necessidade de regrar o uso do azeite pela falta que se sentia.

E o pão que o era sem se sentir, como a Farinha de Pau que, pelo Norte, foi substituto discreto em ocasiões de falta de cereal. Chamada de Pau por a farinha ser feita a partir da raiz da mandioca e esta se assemelhar a um pau, foi introduzida em consequência da proximidade entre Portugal e Brasil na época da epopeia marítima portuguesa. Entra como produto vindo do Brasil pelo atividade comercial no Porto e expande-se por toda a linha adjacente às margens esquerda e direita do Douro. Em Valongo, a farinha de pau foi pão pelo que permitia engrossar os caldos de peixe, de carne ou de bacalhau. Discreta, mas muito oportuna, a farinha de pau alimentou e sobressai na memória. É a memória de todos os dias, daqueles que fazia o trigo, o milho e tudo o que servia de pão, mesmo sem o ser.

“Dantes, os padeiros com a massa de uma sêmea branca faziam uma coisa que era muito boa. Estendiam a massa bem esticada, deitavam presunto e salpicão, depois, tentavam enrolar como se fosse uma sêmea. Deitavam as carnes cortadinhas aos bocadinhos. Chamava-se a Bola de Carnes. Depois, é que vieram as outras retangulares. Antes, os padeiros faziam estas bolas, usavam a massa da sêmea. A massa absorve a gordura,

ficavam que era uma maravilha. Aqui em casa, à mesa, não se diferençava o patrão dos empregados, a comida era igual para todos. Tínhamos uma empregada só para cozinhar. Ao pequeno-almoço era uma tigela grande de café com leite e o pão que se quisesse. Ao almoço, era Massa com Carne ou Arroz com Carapau ou Sardinha frita. Todos os dias havia carne, sobretudo de vaca. Era uma panela grande no fogão com carne de vaca e chouriça. Às vezes, era Arroz de Baço do Boi. Partia-se o baço aos bocadinhos e estufava-se com cebola, azeite e sal. Depois, juntava-se o arroz. Também se juntava rabo de boi cozido na sopa. À tarde, lanchavam café e pão, tostas ou biscoitos. À noite, era sopa com carne cozida. Aqui em casa até se criavam coelhos para depois se fazerem Sopas de Pão com Coelho Guisado. Fazia o coelho guisado em azeite, cebola, pimenta, colorau, louro, sal, vinho branco. Depois, usava-se o pão recesso, se ele estivesse um bocadinho mole até se punha a torrar, e faziam-se aquelas sopas com o coelho. Em vez de batatas, punha-se pão.

O milho que se cultivava era para os animais. Mas, também se cultivava muito feijão branco, servia para fazer o Feijão com Tripas. Aprendi a fazer esta receita com a minha madrinha. Ela era mais velha que o meu pai, nasceu no século XIX, por volta de 1899. Cozia-se o feijão com mão de vaca, chouriça, toucinho, salpicão e frango. Tirava para fora e cortava tudo aos bocados. Fazia um refogado com cebola, azeite, tomate, cenoura, deixava refogar e juntava todas as carnes até ganhar gosto do refogado. Deitava um bocadinho da água

onde cozeram as carnes e o feijão já cozido. Havia quem deitasse pimenta e cominhos, mas eu não gostava. A água de cozer as carnes também servia para fazer o arroz de forno.

Aqui não se faziam açordas, mas havia a Água de Unto. Era uma água que ia a ferver com um bocadinho de banha, chamávamos nós o pingue, e azeite, ia tudo a ferver. Depois, entrava o pão já descascado. Deitava-se uma folha de hortelã.”

M. da Purificação Matos Ferreira Soares Ribeiro 74 anos VALONGO

“A Bola que o meu pai fazia era um pão grande com as carnes por dentro. Era feita com massa à volta de um quilo, abria-se ao meio, punham-se as carnes e ia ao forno. Era redonda, aberta em massa ao meio, punham-se as carnes salgadas ou sardinha salgada e depois ia ao forno. Fazia. Ao fim de semana fazíamos esta Bola para vender e consumir.

A broa rija usava-se para comer como Sopas de Café com Leite, ou só Café ou até Sopas de Vinho. Na malga, punha-se a broa esfarelada, café, açúcar e canela. Também se fazia igual, mas só com vinho. Havia um senhor que gostava de fazer estas sopas com metade de vinho e metade de cerveja preta. Diziam que dava muita força para trabalhar. O meu pai trazia o vinho de Sobrado, era muito mais agrícola do que aqui. Estas sopas eram uma bomba de energia.

Com a broa rija também se fazia uma outra receita de Broa com Caldo. Punham-se fatias finas de broa recessa no prato e, depois, por cima, um caldo grosso. Era um caldo feito com feijão, batata,

couve, arroz. Estava quase toda a manhã a cozer. Mais tarde, a minha mãe, de vez em quando, punha abóbora em substituição da batata. Era um caldo que se temperava com azeite. E punha-se um bocadinho de hortelã, dava muito gosto. Também podia ser feito com o pão de trigo partido em fatiazinhas.

Com o pão de trigo, fazia-se a Sopa Seca . Comia-se Sopa Seca em qualquer altura do ano. Quando sobrava pão, fazia-se em rabanadas ou sopa seca, não era só no Natal ou em ocasiões festivas. Pegávamos no pão, qualquer que tivéssemos, e partia-se aos bocadinhos. Normalmente, batíamos os ovos, misturávamos o açúcar, o sumo de laranja, e depois, disto tudo bem batidinho, misturávamos na água quentinha com a canela e, em minha casa, punha-se sempre meio cálice de vinho do Porto. Púnhamos o pão a demolhar até ficar bem embebido. Quando estivesse quase a desfazer-se retirávamos para uma vasilha para escorrer. Depois, púnhamos às camadas e, pelo meio, púnhamos uma mistura de açúcar e canela. Ia ao forno numa caçarola, que tanto eram redondas ou em oval. Esta é que era a nossa caçarola e não era em barro vidrado, lá em casa ninguém gostava de barro vidrado. Deixávamos ficar no forno até ficar tostadinha. Há muitas maneiras de fazer Sopa Seca, cada casa tem a sua.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“Quando a minha mãe tinha uma galinha choca punha um cesto com palha para ela chocar os ovos. E ela lá ficava até nascerem os pintainhos. Primeiro,

davam-se sopas de vinho com pão de trigo aos pintainhos, sem açúcar. Eles começavam a bebericar e a mãe ensinava-os. Quando começavam a andar, começavam a comer arroz. Iam crescendo, e comiam milho traçado, depois era milho inteiro e hortaliças. A nossa capoeira era dividida em duas, tínhamos uma maior e outra mais pequena. Uma era para os mais pequenos e a outra para os maiores. Dos frangos, escolhia-se um que era para galo, o que fosse mais esperto e os outros franguinhos iam sendo comidos. A minha mãe fazia Cabidela, levava aquele vinagre no sangue. Fazia Canja várias vezes, guardava a carne e um bocadinho da gordura. Também fazia Frango Guisado, era quase sempre o jantar de sábado.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“Para a Farinha de Pau , fazia-se um estrugido e, depois, punha-se peixe, carne ou bacalhau. Fazia-se muito Farinha de Pau com Bacalhau . Era o estrugido com azeite, cebola, alho, tomate, louro, bacalhau e, depois, fazia-se a calda para pôr a farinha de pau. Miolo de broa, açúcar e amoras. Era um paparote!”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“De vez em quando, a minha mãe fazia Bolos de Bacalhau ou Iscas de Bacalhau com arroz. Para as Iscas de Bacalhau , a minha mãe esfarripava o bacalhau, picava cebola, salsa, botava-lhe sal, há quem faça com ovos, mas a minha mãe botava-lhe só a farinha e, depois,

fritava-as. Fazia uma travessa de Iscas e um tacho de arroz de forno.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos VALONGO

“Para a Farinha de Pau fazia-se um estrugido com cebola e azeite, punha-se um bocadinho de água e, numa tigela, tentava-se dissolver a farinha com água fria. Depois de dissolvida, juntava-se na calda que estava no estrugido. Às vezes, punha-se peixe ou carne, também me lembro de fazer com mioleira ou com boches guisados. A minha mãe guisava os boches em azeite, cebola, louro e salsa, fazia uma caldazinha, juntava-lhe batata e, quando as batatas já estavam cozidas, juntava-lhe farinha de pau. Ficava mais macio. A minha mãe fazia Açorda Punha num tacho os pães que queria, partia-os aos bocadinhos, cobria com água fria, mas sem ser muita quantidade, punha alho picadinho, um fio azeite, sal e deixava refogar ou ferver. E ficava a açordinha pronta, depois escalfava um ovinho. Também fazia muitos Flocos de Aveia e Tapioca . Tinha de se pôr de molho e fazia-se do género do Arroz Doce, mas com leite. A tapioca vinha em grânulos, e depois tinha de ser posta de molho. Fazia-se com leite, mas na mesma com a casquinha de limão e com o açúcar. Ia-se juntando leite para não ficar tão duro. Também levava canela por cima. Os flocos de aveia eram comprados. Depois, fazia-se com leite e com casca de limão. Mas aqui já podia pôr uma bocadinho de água.”

Lucinda de Sousa Coelho da Rocha 81 anos Manuel da Silva Andrade 80 anos SOBRADO

“Faziam-se Papas com Nabiças Deitavam batatas, nabiças, farinha de milho e azeite. Ficavam umas papas grossinhas. À noite, era sempre batatas ou cozidas com peixe, sardinhas ou chicharro e, depois, a sopa. Às vezes, eram papas.”

Florinda Martins Fernandes 92 anos SOBRADO

“Quando tínhamos muito pão, fazíamos Formigos. A receita era a mesma como a Sopa Seca, só que a Sopa Seca vai ao forno e os Formigos são feitos mexidos. Põe-se o pão de molho em água, junta-se açúcar e canela e vai a cozer no tacho ao lume.

As Papas de Nabiça levavam água, sal, pingue, nabiças e farinha de milho.”

Maria da Silva Moreira 79 anos SOBRADO

“Quando nós fazíamos anos, a minha mãe fazia-nos Papas de Farinha de Milho, era o nosso presente. A sopa que sobrava do meio-dia, à noite, a minha mãe mexia-lhe um bocadinho de farinha de milho e fazia-nos as Papas. Era quase sempre sopa de feijão e couve galega.”

Carolina Dias Moreira 84 anos M. Madalena Martins dos Santos 78 anos Ermelinda Sousa Dias 92 anos

SOBRADO

“Às vezes, fazia-se um caldo de couves com feijão. Depois de feito o caldo, a nossa mãe, com uma mão, juntava a farinha e, com

a outra mão, mexia a caninha para não deixar embolar. Não deixava ficar nem muito grossas, nem muitas aguadas estas Papas Depois de feitas, tirava para uma tigela e deitava-lhe um bocadinho de vinho tinto por cima, aí é que elas eram boas! Quando estava a fazer o caldo, a minha mãe cozia um bocadinho de carne gorda junto com o feijão. No final, tirava aquele rojãozinho com uma colher e deixava-o por cima do borralho, ele «rogia», ficava tão gostoso, aquele rojãozinho era tudo a roubar! Quase não era preciso lavar a panela!

Fazia-se água fervida com azeite e alho e um pãozinho de milho partido aos bocadinhos, era muitas vezes o que se comia.”

Florinda Martins Ferreira 66 anos José Maria Soares Moreira Pinto 66 anos CAMPO

“Faziam-se Papas de Nabiça ou de Grelos, era o caldo de nabiças com feijão e batata que era temperado com pingue. Do que sobrava faziam-se as papas, juntava-se a farinha de milho.”

Deolinda Filomena Almeida Martins Ferreira Roque 75 anos

SOBRADO

“As Papas de Nabiça eram feitas com o caldo da nabiça e com farinha de milho, temperavam-se com azeite.”

Maria Alexandrina Carneiro de Matos Almeida 84 anos VALONGO

“Com a farinha de milho faziam-se as Papas de Grelos. A minha mãe, primeiro, fazia o caldo. Punha um bocado de carne ou um osso a cozer em

água, depois, juntava batatas, uma mãozinha de arroz, os grelos e temperava com azeite. A minha mãe, por vezes, também fazia uma sopa mais ligeira e, depois, juntava farinha de milho. A minha mãe também fazia manteiga para barrarmos o pão. Punha o leite ao lume e ficava com aquela capa, a minha mãe ia tirando a capa e pondo numa tigela. À medida que ia arrefecendo, ia sempre ganhando capa. A minha mãe ia tirando aquela capa. Depois, deitava-lhe sal e passava por água. Era para tirar a gordura que tinha a mais. E, depois, voltava a mexer. Barrava-se o pão com aquela manteiga. A minha mãe era muito amiga da Leitaria da Quinta do Paço, por isso, sabia muito bem fazer a manteiga.

A minha mãe fazia umas Iscas de Bacalhau que eram muito boas, não consigo fazer igual. Fazia com salsa, cebola picada, o bacalhau desfiado, farinha de trigo, água, sal se o bacalhau não estiver muito salgado e uns ovinhos. Misturava aquilo tudo, a minha mãe fazia aquilo muito bem. A minha mãe, como o azeite era pouco, untava o tacho até antes de o pôr a aquecer. Uma vez, vendeu uma imagem da Nossa Senhora das Graças por um garrafão de azeite. A minha mãe não queria, mas um dia que precisou de azeite acabou por aceitar. A minha mãe untava o tacho com azeite e, depois, despejava até o tacho ficar coberto na base, começava a ficar a massa a secar e a minha mãe começava a enrolar. Ficava comprido do tamanho do tacho. Eu nunca consegui fazer assim. Eram as Iscas, enchia-nos o prato com aquilo. A nossa fome era diferente de hoje. Hoje não consigo fazer como a minha mãe, tenho fartura de azeite.”

Balança.

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“Também se faziam Papas de Farinha Milha . Era com água e ossos da suã para dar um gostinho, quem não tivesse os ossos, punha um bocadinho de azeite. Depois, juntava a farinha de milho. Rapava-se a carne que estava agarrada aos ossos e comia-se com as Papas, ficavam muito saborosas. Também se podiam fazer Papas de Nabiças, mas já não eram tão boas. Também se comia Carapau pequeno frito envolvido em farinha de milho, acompanhava com arroz com penca. A minha mãe fazia Açorda de Bacalhau Primeiro, fazia o estrugido com cebola e azeite e, depois, acrescentava a água, deixava ferver e acrescentava o pão. Por fim, era o bacalhau. Também fazia esta açorda com peixe.”

Maria da Conceição

Martins Martinho Silva 70 anos

ALFENA

“O meu pai, ao pequeno-almoço, ou era Sopa Branca ou Migas Doces. A Sopa Branca fazia-se com água, azeite, sal e, quando começava a ferver, juntava-se o arroz e deixava-se cozer. As Migas Doces era água a ferver com açúcar, azeite ou pingue, sal, pão de trigo ou das sêmeas que era desfiado. Deixava-se ferver e ia-se batendo com uma colher até ficar meio desfeito. Ficava como o leite creme. Era uma coisa que se comia à colher. Nas Papas de Nabiças a água era fervida com sal, pingue e nabiças cortadinhas. Para ser mais fácil, desfazia-se a farinha na água fria e, depois, é que se juntava ao caldo. Também

acontecia que, às vezes, se tinha um resto de sopa e faziam-se Papas. Era só acrescentar água e farinha. O peixe fritava-se depois de passado em farinha de milho. Estava em tudo, o pão.”

As Receitas do Forno do Pão.

“A minha mãe ia todos os domingos aos padeiros fazer o assado, mas no Natal evitava ir lá.”
MARIA

Viver em Valongo trazia muitas benesses. Do acesso ao pão comum, o molete, ao pão quase divino, a regueifa, ao pão que era mimo, o biscoito. Havia, ainda, a maior facilidade em ter ingredientes de qualidade para fazer os doces de festa, como as Rabanadas, a Sopa Seca, o Rolo ou o Bolo de Serão. A esta disponibilidade pão, juntavase a oportunidade de usar os fornos dos padeiros para fazer os assados de domingo ou das festas.

Se, noutros lugares, os assados eram receituário inacessível pela ausência de um forno de pão em cada lar, em Valongo, os fornos dos padeiros, eram requisitados pelos familiares e vizinhos para assar o cabrito, o anho, o galo ou o peru.

Os testemunhos dos padeiros não deixam esquecer como se enchiam os fornos quando era dia de fazer assado. Seria uma forma de fortalecer os laços vicinais, testemunhando a reciprocidade entre vizinhos.

Os fornos que quase nunca deixavam de estar quentes, pois que só de sábado para domingo é que não se cozia pão, nunca deixavam de trabalhar. Ao sábado ou pelas festas, como o Natal e a Páscoa, eram usados para cozinhar a refeição de festa.

“Os vizinhos pediam, no Inverno, para ir secar a roupa junto ao forno porque era mais rápido. Acontecia o mesmo com os assados, às vezes eram 32 tabuleiros dentro do forno, até tínhamos de fazer duas fornadas. Para não haver confusão, fazíamos uma lista para numerar as assadeiras.”

ANTÓNIO DE SOUSA GONÇALVES PEREIRA, 74 ANOS, VALONGO.

A acompanhar o cabrito, borrego, galo ou peru, nunca faltava o arroz de forno aromatizado e colorido pelo açafrão, outro ingrediente a que se tinha acesso pela disponibilidade económica que a arte da padaria permitia. Muitos compravam quando iam ao Porto, ora vender o pão, ora comprar ingredientes e apetrechos para o fabrico de pão e biscoitos. O Arroz de Forno com Açafrão é pérola gastronómica que a disponibilidade financeira, por um lado, e a proximidade à cidade do Porto, por outro, permitiram desenvolver.

Maria Lina Castro Neves 80 anos VALONGO

“Para nós, era fácil fazer os assados pelas alturas mais importantes, tínhamos o forno do pão. No Natal, fazia-se Carne Assada , de vaca ou de porco, mas era mais de vaca. Temperava-se a carne com sal, pimenta, um

ALEXANDRINA CARNEIRO DE MATOS ALMEIDA, 84 ANOS, VALONGO.

bocadinho de vinho do Porto e alho. Deixava naquela vinha d’alhos. Depois, numa assadeira punha azeite, colorau, alho, cebola e a carne com um bocado do vinho. Era comido com batatas e arroz de forno. Para o Arroz de Forno usava-se ou a água do cozido ou a água da canja. Naqueles alguidares de barro, púnhamos salpicão cortado aos bocadinhos, juntava-se o arroz, deitava-se a calda e ia ao forno. Neste arroz também se podia pôr um bocadinho de açafrão. É que o açafrão não põe gosto, só dá cor. Comprava-se o açafrão nas mercearias, vinha em envelopes, eram aquelas pétalas de flor. Tinham de se pôr a aquecer em cima de um testo para se poderem ralar com o garfo, aquilo desfazia-se e misturava-se na água. Agora já há aquele em pó. O arroz é amarelo, mas não fica com gosto por ser amarelo, é só a cor.

Na Páscoa, comia-se Anho Assado com Arroz de Forno, o tal de açafrão. Era assado na assadeira como se assa carne. Quando já não tinha padaria, ia à padaria dos Irmãos Moreira assar o anho. Tinha de ser assado muito lentamente. Eu gostava de o pôr em água, sal, limão e loureiro de um dia para o outro. Depois, tirava-o e fazia um molho com vinho branco, sal, pimenta, alho, bastante, azeite, colorau e pimenta e misturava e envolvia no anho. Na assadeira, à volta do anho, punha umas batatinhas.”

M. Eugénia Matos Moreira Coelho. Cândida Matos

Felgueiras Moreira Melro. Paulo Felgueiras Moreira VALONGO

“No dia de Natal, fazia Cozido à Portuguesa e Cabrito ou Anho Assado no Forno com Arroz Amarelo, era com açafrão.

O cozido levava carne de porco, orelheira, pernil, carne de vaca, salpicão, chouriça, couve penca e cenoura. Como tínhamos o forno, fazíamos o assado. O anho ficava uns dias em água e limão com um bocadinho de sal. Depois, no dia, era temperado com alho, cebola, vinho, azeite, colorau, louro. Era assado numa assadeira de barro vermelho. Para o arroz amarelo fazia-se um refogado com cebola e azeite, depois, acrescentava-se água e juntava-se o açafrão. Tinham de se pôr aqueles filamentos da flor a secar em cima de um testo. Por isso é que o arroz ficava amarelo. Por fim, juntava-se o arroz e ia ao forno.”

M. da Purificação

Matos Ferreira Soares Ribeiro 74 anos VALONGO

“No dia de Natal, comia-se Assado ou Cozido à Portuguesa Quando eu era miúda, era frango. Criavam-se frangos, galinhas e galos que eram para assar em dias de festa. O cozido levava carne de vaca, mas era sobretudo carne de porco, as costelinhas, carne de frango, batatas e couves. Para o assado, punha-se um limão por dentro do frango e, por fora, punha-se manteiga, alho, pimenta e colorau. Comíamos este frango assado com batata e arroz amarelo que se fazia com açafrão. Faço o estrugido com a cebola, azeite e pimento, mas tiro o pimento, é só para dar a cor. Ponho umas rodelinhas de salpicão só para «dar o gosto», como a gente diz. Gosto muito de lhe pôr cenourinha. Deito-lhe a água, desfaço o açafrão na água, ponho o sal e junto o arroz. Às vezes faço no tacho, outras vezes faço no forno.”

António de Castro Alves Aguiar 85 anos VALONGO

“O dia de Natal, tínhamos à mesa Cabrito Assado que se comia com batata e Arroz de Forno Era o arroz com açafrão. Fazia-se o refogado com azeite, cebola e alho, depois, punha-se a calda para cozer o arroz. O açafrão era posto a secar num testo de uma panela e, quando estivesse seco, esfarelava-se para se juntar na calda, era para dar cor. O açafrão era comprado pelo meu pai numa casa no Porto. Era açafrão puro. Na mercearia do meu sogro vendíamos vendia açafrão, era caríssimo. O senhor onde eu ia comprar o açafrão tinha a lata no cofre. Para me vender o açafrão, ele tirava a lata do cofre. Era um senhor que tinha 90 anos que ainda ia a Ceilão tratar desses negócios. Ele ia ao Oriente tratar desses negócios. Uma coisa é o açafrão e outra coisa era a açafroa, este não é a mesma coisa.”

Cecília Coelho Abreu Costa 56 anos SUZÃO

“No Natal, comíamos Cabrito Assado, criado por nós. Primeiro, ficava em água, sal e limão na antevéspera. Depois, na véspera, era temperado com vinho branco, pimenta, colorau, alho, loureiro. A minha mãe não punha mais do que isso. No dia ia para o forno. Sabe que nós assávamos, no nosso forno, para muita gente. As pessoas pediam-nos e, durante muitos anos, até o meu pai falecer, eram muitas as assadeiras de cabrito no nosso forno, pelo Natal. O cabrito era acompanhado de batata e de arroz. Também se fazia o lombo do porco assado. Fazia-se naquelas assadeiras de barro vermelho. Acompanhava com Arroz de Forno. Era o

arroz normal bem puxadinho e, depois, metia-se num alguidar com chouriço por cima. Também havia quem pusesse o cabrito por cima. Chegámos a fazer Arroz de Açafrão, mas não muito. E havia sempre salada de fruta. A maior satisfação da minha mãe era levar os filhos todos às 19h, à missa de Natal em Valongo, todos bem vestidinhos. É que a minha mãe era de Valongo, não era de Suzão.”

Maria da Silva Moreira 79 anos SOBRADO

“No dia de Natal havia assado, era um Anho que se matava. Fazia vinha d’alhos, descascava os alhos, amassava-os todos com um pau redondo dentro de um pano, juntava vinho branco, loureiro, pimenta, colorau, salsa e mexia aquilo tudo e mergulhava ali o anho. Depois, ia ao forno no dia com batatas ao lado. Também se fazia arroz, começava com o estrugido e, depois, juntava a calda e o arroz. Quando o arroz estivesse quase cozido, metia o molho do anho em cima do arroz. Nunca se usou açafrão. Assávamos no forno do pão de milho.”

Maria Filomena Galaghar

Silva Dias 74 anos Maria da Conceição Galaghar 68 anos VALONGO

“No dia de Natal, a minha mãe fazia o Farrapo Velho comas coisas que cresciam do dia anterior. Punha alho picadinho num tacho, azeite e juntava a mistura de bacalhau, batatas e a couvinha. Misturava tudo e, no fim, punha ovos batidos e misturava. Ajustava o sal e a pimenta. Esse era o almoço. Posteriormente, começou a ser diferente, fazia-se um Assado de Vitela , sobretudo a partir de 1974.

Para o assado, punha, numa tigelinha, vinho, alhos esmagados, pimenta, sal, colorau, louro, mexia muito bem e envolvia na carne. Às vezes, ficava de um dia para o outro. No dia seguinte, na assadeira punha a cebolinha, a salsa, a carne e as batatinhas ao lado, regava tudo com azeite. As batatas eram postas já depois da carne já estar um pouco assada. Cá em casa, eram as Consoadas do Natal e da passagem de Ano.”

Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca 82 anos VALONGO

“Na Páscoa, é que a minha mãe comprava um bocadinho de borrego, ia ao talho comprá-lo. Era Borrego Assado no Forno e fazia um bocadinho de Arroz Amarelo, daquele de açafrão, feito no forno. Quando o borrego vinha do talho, a minha mãe tinha o cuidado de o limpar em água, limão e sal. Depois, no dia, é que punha pimenta, colorau, alho, esfregava-o todo e punha-o assim na assadeira. Depois, botava, como era costume, alho e cebola e, à volta, botava-lhe as batatas, juntava-lhe pimenta e colorau, e regava com azeite e vinho branco. Depois, ia ao forno. Depois, fazia o Arroz Amarelo. A minha mãe cortava a cebola às rodelas, botava com azeite e deixava alourar a cebola. Depois, tirava-lhe a cebola, foi uma cozinheira que fazia casamentos que lhe ensinou que não devia picar a cebola, dizia ela que ficava o arroz mais malanqueiro. Essa cozinheira ensinou-lhe que botava a cebola às rodelas e que a retirava antes de deitar o arroz. E a minha mãe começou a fazer assim. O açafrão, a minha mãe comprava em folhinhas, a minha mãe punha o papel em cima do testo de uma panela e ele secava,

depois esfregava e ele desfazia-se e botava aquilo na calda. Temperava com sal, metia o arroz e vinha meter ao forno. Ele ficava assim soltinho e amarelo. Fazia-se o arroz na caçarola de barro.”

M. da Conceição Gomes

Cunha 68 anos CAMPO

“No dia de Páscoa, era Assado de Cabrito, assava-se no forno da padaria. A minha mãe tinha o cuidado de o pôr em água, limão e sal. Depois, escorria e temperava com azeite, colorau, sal, pimenta, alho. Depois, era barrado ficava para o outro dia e, no dia seguinte, ia para o forno com o mesmo molho. Acompanhava com batatas à volta. A grande sobremesa da Páscoa era o folar. O meu pai fazia esses folares com um ovo, dois, três e quatros ovos. A minha avó de Fermelã, dava-nos esse folar. Punha depois umas tiras para os ovos não caírem. Era uma tradição que trouxe de Fermelã.”

Maria Alexandrina Carneiro de Matos Almeida 84 anos VALONGO

“Em nossa casa, no dia de Natal, havia Carne Assada como havia aos outros domingos, mas havia também Perua . A minha mãe dizia que a perua era melhor que o peru. Embebedava a perua com aguardente ou com vinho do porto para a carne ficar mais macia. Pendurava para deixar escorrer. Não aproveitava o sangue da perua, dos frangos sim, mas da perua não. Ficava em água, limão e sal de um dia para o outro para tirar o gosto do animal. Nem sempre, mas habitualmente, recheava. Aproveitava os miúdos, punha salpicão, juntava pão de trigo,

cebola, alho, azeite, descascava azeitonas para juntar a esta massa que era refogada. Temperava um bocadinho de vinho. Assava muito lento, a minha mãe acendia o forno para não ir incomodar os padeiros. A minha mãe ia todos os domingos aos padeiros fazer o assado, mas no Natal evitava ir lá. Lembro-me que, no tempero da perua, punha um bocado de pingue ou fatias de toucinho.”

“O almoço de Natal era Cabrito com Arroz de Açafrão. Ia a assar à padaria dos Moreiras. O açafrão, antigamente, os meus avós vendiam isso, eram umas perninhas de açafrão, era muito caro, eram umas gramas. O meu avó contava as perninhas, era o verdadeiro açafrão. Até se punha a estalar na beirinha do fogão, lembro-me de que a minha avó pegava numa tigelinha e punha uma ou duas gotinhas de água, não era mais e depois, pegava nas perninhas do açafrão e esmigalhava e ficava aquela água muito amarelinha e depois deitava na calda do arroz. Por isso, é que ficava amarelo e muito saboroso. Era uma coisa muito cara, o meu avó ia comprar à rua de S. João, no Porto. A minha mãe fazia um estrugido com cebola picada, alho e azeite, punha a calda para o arroz com este açafrão. Às vezes, punha uma rodelinha de salpicão para dar um gostinho. Fazia este arroz em cima do forno.

O cabrito era temperado no dia anterior. Primeiro, deixava estar em água com limão e sal para sair o gosto do cabrito. Depois, punha alho, sal, pimenta, colorau e vinho branco. Deixava a marinar de um dia para o outro. Mexia de

vez em quando. No dia seguinte, fazia uma base com muita cebola, regava com um bocadinho de azeite, punha a carne com os temperos, rodeava com batatas e, por cima, deitava de novo o azeite.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“Na Páscoa, comia-se Cabrito Assado no forno ou Cordeiro de Leite. Ainda hoje, é assim. Ponho com água, limão, salsa e sal umas 6 ou 7 horas. Depois, fica a escorrer. Depois de escorrido, ponho o tempero de um dia para o outro. Ponho alho, azeite, tomilho, manjericão, coentros. A minha mãe não punha estas ervas, mas punha salsa e pimenta. No dia seguinte, numa assadeira, ponho cebola com azeite, junto o cabrito, rego com mais um bocadinho de azeite e ponho um cálice de vinho do Porto. Na mesma assadeira, põe-se batata a assar. E fazia-se Arroz Seco.”

M. da Purificação Matos

Ferreira Soares Ribeiro 74 anos

VALONGO

“A festa de Valongo é o São Mamede que é festejado a 17 de Agosto. Neste dia, comia-se comida de festa, assado ou cozido. No dia da festa, fazia-se o Rolo e o Pudim.”

Cecília Coelho Abreu

Costa 56 anos SUZÃO

“No Suzão, as festas eram à Nossa Senhora da Saúde (último domingo de Julho), à Santa Eufémia (era em Setembro) e ao S. Bartolomeu (24 de Agosto). Nestas festas, as famílias juntavam-se, fazia-se Cabrito, Lombo assado e bolos.”

Ilda Ferreira Rodrigues Ferreira de Abreu 82 anos CAMPO

“No dia de Natal, comia-se Peru que criávamos lá em casa. O peru era regado com aguardente e tinha de ficar de um dia para o outro embrulhado num pano embebido nessa aguardente. Dava-lhe um gosto muito bom e ajudava a que assasse mais depressa. Fazia-se o picado com carne de vaca, presunto, um bocadinho de salpicão, um bocadinho de frango, vinho do Porto, pão ralado, ovos, um bocadinho de aguardente velha. Primeiro, coze-se a carne, depois rapa-se muito miudinho, pode deitar-se o picado da moela, do fígado, deita-se o pão ralado, os ovos e as bebidas. Mexe-se, mexe-se, fica muito bom. Recheava-se o peru, também se podia fazer com capão. Normalmente, mete-se o recheio pela traseira ou pelo papo, não se abria o peru. Por fora, era untado com azeite, alho e sal. A minha mãe costumava pôr castanhas na mesa para comermos com o peru, mas também se fazia Arroz Seco. Antigamente, punham a cebola a estalar em azeite, ficava até escurinha a cebola, juntavam a água e, depois, o arroz. Em minha casa não se punha açafrão, a minha mãe não gostava. Em Janeiro, aqui em Campo, havia a festa do Menino Jesus. Era uma missa cantada, à tarde, saía a procissão da Igreja Matriz e dava a volta pela vila. O Menino Jesus ia num andor. Era no dia 1 de Janeiro, no dia de Ano Novo. De 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, fazíamos como se fosse no Natal. Fazíamos igual, na véspera do Ano Novo fazia-se como se fosse a Consoada e, no dia seguinte, lá se fazia um frango, um capão, ou um peru com castanhas.”

282 O PÃO: PROTAGONISTAS DE UMA HISTÓRIA.

MARIA LINA CASTRO NEVES

BISCOITARIA DIOG O

VALONGO

MARIA EUGÉNIA MATOS MOREIRA COELHO. CÂNDIDA MATOS FELGUEIRAS MOREIRA MELRO. PAULO FELGUEIRAS MOREIRA.

MARIA EUGÉNIA DE MATOS

ANA GONÇALVES

PINTO PEREIRA BARBOSA

ANTÓNIO DE CASTRO ALVES

AGUIAR

TERESA DUQUE

ANTÓNIO DE SOUSA GONÇALVES PEREIRA

JOAQUIM MOREIRA CAMILO

EDUARDO FERREIRA DE SOUSA

SERAFIM FERREIRA DAS NEVES

MARIA DA PURIFICAÇÃO MATOS FERREIRA SOARES RIBEIRO

CECÍLIA COELHO ABREU COSTA

JOSÉ COELHO DE ABREU

anos

MARIA MOREIRACONCEIÇÃOGUIMARÃES

JAIME ANTÓNIO VIEIRA DE SOUSA AGUIAR

MARIA RITA MARQUES PADILHA
MARIA DA CONCEIÇÃO GOMES CUNHA

74 e 68 anos

MARIA FILOMENA GALAGHAR SILVA DIAS
MARIA DA CONCEIÇÃO GALAGHAR
VALONGO
MARIA ALEXANDRINA CARNEIRO DE MATOS ALMEIDA

ILDA FERREIRA RODRIGUES FERREIRA DE ABREU

FLORINDA MARTINS FERREIRA

JOSÉ COELHO SOUSA SUZANO

MARIA ARMANDINA DE SOUSA DIAS PAIVA
MARIA DA CONCEIÇÃO MARTINS MARTINHO SILVA
70 anos
ALFENA

CAROLINA DIAS MOREIRA

MARIA MADALENA MARTINS DOS SANTOS

ERMELINDA SOUSA DIAS

84, 78 e 92 anos SOBRADO

FLORINDA MARTINS FERNANDES

92 anos SOBRADO

LUCINDA DE SOUSA COELHO DA ROCHA

81 anos SOBRADO

FELISMINA DA CRUZ

MARIA DA SILVA MOREIRA

O MEU PÃO.

Molete.
Malfeitos.
Broa.
Regueifa.
Biscoitos de milho. Feitios.
Fidalgos.
Fidalgos.
Cacos, Malfeitos, Feitios, Fidalgos.
Barquinhos.
Tostas.
Biscoito de Champanhe.
Fidalgos.

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