Jaceguai, 27 - Parcial do livro

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LEILA AFFONSO E JORGE FERNANDO DOS SANTOS

Jaceguai, 27 Berço do MAU (Movimento Artístico Universitário)– que revelou talentos como Aldir Blanc, Cesar Costa Filho, Eduardo Lages, Gonzaguinha, Ivan Lins, Lucinha Lins e Marcio Proença – antigo endereço na Tijuca, Rio de Janeiro, foi cenário de um importante capítulo na história da MPB.


Ao longo de várias décadas, o Rio de Janeiro foi pródigo em endereços que muito contribuíram para a evolução da Música Popular Brasileira. No início do século XX, ficaram famosos os saraus realizados na casa da mãe de santo e cozinheira baiana Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata, a “matriarca do samba”. Localizado na Rua Visconde de Itaúna, 117, Praça Onze, o conhecido endereço da região, apelidada por Heitor dos Prazeres de “pequena África”, foi palco de animadas rodas musicais frequentadas por músicos como Donga, João da Baiana, Pixinguinha e Sinhô – autocognominado “o rei do samba”. Ali nasceu, por exemplo, Pelo telefone, primeiro samba oficialmente gravado no país, pelo cantor Baiano, em 1917, cuja autoria foi reivindicada por Donga e Mauro de Almeida. Décadas depois, no final dos anos 1950, o apartamento do advogado capixaba Jairo Leão e Dona Altina Lofego, no edifício ChampElysées, em frente ao posto 4 da Avenida Atlântica, em Copacabana, seria o berço da bossa nova. Danuza e Nara Leão, filhas do casal, costumavam receber amigos em animadas rodas de violão. Os mais presentes eram os jovens Carlos Lyra, Chico Feitosa, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, que logo se tornariam renomados compositores. Outro que costumava dar as caras era o cantor baiano João Gilberto, cujo disco Chega de saudade, lançado em 1959, seria o marco oficial do movimento que mudaria a música brasileira. Artistas do gênero teriam nos bares do Beco das Garrafas, em Copacabana, seu principal ponto de decolagem para o sucesso. Não demorou muito, a bossa nova conquistou corações e mentes em várias partes do mundo.


Ainda naquela época, o edifício da Rua Nascimento Silva, 107, no coração de Ipanema, tinha como ilustre morador o compositor e maestro soberano Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. O endereço, onde também residia a cantora Elizeth Cardoso, seria imortalizado por Toquinho e Vinicius de Moraes no samba Carta ao Tom 74. Ali foram ensaiadas as músicas do famoso LP Canção do amor demais, que Elizeth lançou em 1958, antecipando a bossa nova. Em setembro de 1963, inaugura-se o restaurante Zicartola, de Euzébia Silva do Nascimento (Dona Zica) e Angenor de Oliveira (Cartola). O primeiro endereço foi na Rua dos Andradas, 81, antiga sede da Associação das Escolas de Samba. Pouco depois, mudou-se para o segundo nível de um sobrado de três andares na Rua da Carioca, 51. Cartola e Dona Zica moravam no terceiro pavimento e isso facilitava as coisas. Em poucos meses, o Zicartola se transformou num dos principais redutos da cultura carioca, ponto de encontro de figuras exponenciais do samba, como Aracy de Almeida, Clementina de Jesus, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Sérgio Cabral, Zé Keti e muitos outros. As rodas musicais ali realizadas atraíam também jovens músicos, como os bossanovistas Carlos Lyra e Nara Leão, além de militantes do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). E foram nelas que se revelou definitivamente o talento de Paulo César Faria, rebatizado Paulinho da Viola. O pagode durou até meados de 1965, quando a casa fechou as portas devido a problemas financeiros. E não podemos esquecer o Solar da Fossa, um casarão colonial de dois andares, em Botafogo, onde funcionou uma pensão que hospedava artistas e gente do tipo bicho-grilo, entre 1964 e 1971. Alguns dos jovens inquilinos ficariam famosos, entre eles os atores Antônio Pitanga, Betty Faria e Ítala Nandi; a cantora Gal Costa; os compositores Caetano Veloso,


Nelson Angelo, Tim Maia e Zé Keti; o escritor e compositor Paulo Coelho; e até o policial Mariel Mariscot, que mais tarde se revelaria integrante do esquadrão da morte que atuava no Rio, naquela época. Um endereço igualmente importante, mas até agora pouco lembrado, é o da Rua Jaceguai, 27, próximo à Praça Varnhagen, no tradicional bairro da Tijuca. Ali existiu uma casa de dois andares, alugada ao psiquiatra Aluizio Augusto Porto Carreiro de Miranda, em 1961. Ex-violonista profissional, ele realizava rodas musicais com gente da velha guarda, como Bororó, Donga e Nássara, que era também um grande cartunista. Em 1966, suas filhas adolescentes passaram a convidar os amigos e colegas de colégio. Pouco a pouco, os saraus foram atraindo cada vez mais jovens e a casa acabou se tornando berço do MAU (Movimento Artístico Universitário), que daria projeção a nomes importantes da canção brasileira, como Aldir Blanc, Eduardo Lages, Gonzaguinha, Ivan Lins, Marcio Proença e muitos outros. Mesmo com a importância histórica reconhecida, a antiga construção seria demolida em 2014, para dar lugar a um edifício de apartamentos. Mas a memória dos frequentadores resiste no tempo. Bom que se diga que a turma da Tijuca integrante do grupo de rock Sputniks – formado por Tim Maia, Wellington Oliveira, Erasmo e Roberto Carlos – nunca cruzou com o pessoal que frequentava a velha casa. O gosto musical dos dois grupos era bem diferente. Uma personagem ativa nos saraus da Jaceguai foi Leila Affonso, que guardou um grande acervo daquela época e sempre sonhou publicar suas memórias. Depois de lançar a biografia Vandré – O homem que disse não, em 2015, eu estava à procura de outro tema ligado à MPB para o meu próximo livro. Quem nos aproximou foi o compositor e advogado Cesar Costa Filho, que viveu intensamente as emoções daquela época, sendo ele próprio um dos fundadores do MAU. Escrito a quatro mãos, Jaceguai, 27, revela os bastidores daqueles encontros, revisita seus personagens e resgata um importante capítulo na


história da MPB. Como integrante da turma, Leila escreve na primeira pessoa (em itálico), de forma coloquial, revivendo episódios que marcaram sua mocidade. Como escritor e jornalista, optei pela narrativa na terceira pessoa, de forma distanciada, entrevistando personagens e contextualizando os fatos. Contudo, sem a ajuda dela, teria sido quase impossível concluir a minha parte. Jorge Fernando dos Santos


Desde o ano de 2006, Rolando Faria e eu vínhamos planejando produzir um show intitulado Rolando canta a Jaceguai, que resgatasse e trouxesse ao conhecimento das novas gerações o que aconteceu naquela casa da Tijuca. Rolando é uma pessoa, um artista, um nome imprescindível na história da Jaceguai, 27, e nestas minhas memórias. Desde o primeiro dia em que pus os pés naquela casa, ele me chamou a atenção. Ali, ele era para mim apenas um garoto de dezesseis anos, que cantava e tocava bem. Hoje, cinquenta anos depois, é um amigo querido, que mesmo após tantos anos de afastamento, vivendo na Europa, fazendo sucesso, tornando-se famoso, jamais deixou de prestar homenagens a Aluizio e Maria Ruth, que o “adotaram” quando as trapaças da vida lhe tiraram a mãe. Em todos esses anos, vira e mexe, Rolando me procurava. Houve uma época em que trocávamos cartas. Eu lhe enviava fitas cassetes com músicas que ele tinha vontade de ouvir e ele me atualizava quanto ao que vinha realizando na Europa. Costumava me falar também da falta que sentia de todos nós, das alegrias e tristezas que o acompanhavam pelo mundo afora. Numa dessas cartas, de dezembro de 1974, ele me conta do desespero em que ficou ao perder o violão que ganhara do Aluizio. Dizia ele: “Aconteceu uma série de coisas que me deixaram muito triste, mas eu ainda tinha umas últimas forças guardadas no fundo do baú, sabe? Continuei, mas foi uma porrada um pouco forte. Sabe o que foi? Roubaram meu violão, aquele que Aluizio me deu. Fiquei um pouco desesperado, mas agora estou mais calmo, cada vez que me lembro, nem sei. Olha, não diz nada pro Aluizio, tá? Se quiser, conte pra Regina, mas pro Aluizio, não. É chato paca. Você sabe o que significava aquele violão pra mim. Companheiro velho.” Rolando era e é assim até hoje: sentimental, agradecido, justo, sério, misterioso, divertido, vaidoso, engraçado, aglutinador, presença sempre marcante. Quem o conheceu pode entender a tristeza que a perda do violão deve


ter sido para ele. Aquele violão parecia já fazer parte do seu corpo: estava o tempo todo abraçado com ele. Em 2014, Rolando esteve no Rio, depois de longos anos de ausência. Mais precisamente, desde a morte da Regina, em 2005, que era sua última “parenta”, porque eram como irmãos. Fez oito shows, produzidos pelo baterista José Boto, que também fez carreira na Europa. Naqueles poucos dias em que esteve no Rio, meu amigo reuniu num jantar na casa da Lucinha Lins, e em alguns dos shows, gente que não se via há mais de quarenta anos! Todos se reencontrando e se revendo, graças a ele. Esteve hospedado na casa de um monte de gente e na minha ficou por quinze dias. Não nos víamos há tanto tempo, mas era como se não nos tivéssemos separado por um dia sequer. Antes de dormir, sentados na cama que eu lhe reservara, conversávamos até cair de sono. Almoçávamos juntos e parecia que os assuntos nunca acabariam. Nessa sua última temporada por aqui, chegamos a fazer contato com o Vagner Fernandes (biógrafo da Clara Nunes e fundador do bloco Timoneiros da Viola) e com Paulo César Soares, da Funarte, com os quais estávamos contando para levar nosso projeto adiante. Quando ele voltou a Paris, começamos a definir o repertório, o roteiro e tudo o que seria necessário para realizarmos nosso sonho em comum. Comunicamo-nos por e-mail e por telefone até junho de 2015. Mas a vida, novamente, nos trapaceou. A partir daquela data, Rolando sumiu. Sem notícias, sem entender ou imaginar o que estaria acontecendo, pedi informações a um grande amigo dele, que também vive em Paris, o Dechi (Marcos Gonçalves, dançarino, ex-Dzi Croquetes), que depois de muita relutância me informou que nosso amigo estava doente, internado num hospital com problemas causados por diabetes, passando por uma situação dificílima, mas que exigia segredo absoluto. Não queria que ninguém soubesse. Fiquei desesperada, querendo ajudar, mas sem saber como. Então, resolvi falar apenas com o Roberto Abramson, que foi colega de colégio dele, era o amigo mais antigo e que poderia, talvez, ajudá-lo de alguma forma. Passamos a pedir e receber notícias por intermédio do Dechi, mandamos, cada um de nós, uma carta, porque Dechi dizia que Rolando recusava-se a ler e-


mails ou mensagens de celular. Só lia cartas. Mas nunca recebemos nenhuma resposta. As notícias eram sempre muito desencontradas: numa hora ele estava muito mal, noutra estava melhorando. Procuramos manter segredo, mas por maior cuidado que tivéssemos, no fim, outras pessoas acabaram por saber, mais ou menos, da história. Criamos um grupo privado no Facebook, chamado Amigos do Rolando, em que nos comunicávamos. Na verdade, apenas quatro pessoas, Roberto, sua irmã Beatriz, a cantora Leila Rocha e eu. Ficamos assim, até o dia em que o Dechi não quis nos dizer mais nada. Não sei ao certo o que aconteceu. Imagino que o Rolando tenha ficado muito zangado ao saber de nós e tenha pedido que o Dechi parasse de nos informar. Não sei. De vez em quando ainda insisto em saber notícias, mas sem tanta frequência, para não colocar o Dechi em má situação. Diante dessa fatalidade, comecei então a pensar em como levar adiante, sozinha, aquele nosso sonho. Pensei que só o que poderia fazer seria escrever um livro. Foi aí que, por mero acaso, o Cesinha me apresentou ao Jorge Fernando (meu parceiro neste livro). Conversamos e eu achei que, tendo vários livros publicados, inclusive uma biografia de Geraldo Vandré, ele seria de muita ajuda para mim, já que sou “caloura”. Ao mesmo tempo, para ele, eu também seria de grande ajuda, porque guardei com muito cuidado todos os documentos, fotos, recortes de jornal, discos, letras de músicas e tudo o que se relaciona com a Jaceguai, 27. Hoje, acho que, afinal, o nosso sonho, meu e do Rolando, torna-se em parte real. Mas me angustia muito, me entristece barbaramente, que ele não possa estar presente, atuante, e que nem mesmo saiba o que estamos fazendo. Foi muito agradável fazer este trabalho. Foi emocionante para mim. Fiquei muito feliz ao colocar o ponto final. Mas qualquer que seja o resultado do nosso esforço, meu e do Jorge, este livro pertence também ao ROLANDO FARIA, O AMIGO FIEL.

Leila Affonso


Jovens compositores que frequentam os saraus da Jaceguai, 27, monopolizam o festival da TV Tupi e chamam atenção para a importância daqueles encontros


RIO DE JANEIRO, domingo, 6 de setembro de 1969, quase meia-noite. A movimentada casa de dois andares da Rua Jaceguai, 27, no bairro da Tijuca, parece que vai explodir. O número de jovens que sempre se reúne no local para cantar e tocar violão é acrescido de quase vinte pessoas que chegam de repente, acompanhando a famosa cantora Claudette Soares. Os vizinhos talvez não saibam, mas a festa de arromba que promete romper a madrugada comemora as premiações do 2º Festival Universitário de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Tupi. O nome da rua presta homenagem ao almirante e historiador Arthur Silveira da Mota (1843-1914), mais conhecido como Barão de Jaceguai. Combatente da Guerra do Paraguai, ele foi maçom e membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira que tem como patrono o poeta Casimiro de Abreu. Jaceguai é uma palavra de origem tupi e refere-se a uma planta da família das Cucurbitáceas, de haste rastejante e flor amarela. Em 1961, o imóvel de número 27 foi alugado ao psiquiatra Aluizio Augusto Porto Carreiro de Miranda, um ex-músico do antigo Cassino da Urca e da Rádio Mayrink Veiga. Ele e a mulher, Maria Ruth, gostavam de receber os amigos para noitadas de música e boa prosa. Sem dúvida, a casa de sala ampla oferecia conforto e comodidade à família e seus convidados, pois estava sempre cheia. Os saraus atraíam nomes ilustres do meio musical, como Bororó (autor de Curare e Da cor do pecado), Cartola, Donga, Nássara e o delegado Mello Moraes, tio de Vinicius de Moraes e especialista nas emboladas de Manezinho Araújo. Em 1966, as filhas adolescentes do casal, Angela e Regina, passaram a convidar os amigos e colegas, que logo começaram a realizar suas rodas musicais sob o comando do próprio Aluizio. Muitos deles fariam história na MPB. ***


Ouvi falar dos encontros da Jaceguai por volta de 1966. Regina Coeli Rondon Linhares, minha colega do antigo ginasial no Colégio Veiga de Almeida, tinha sido namorada de Carlos Aurélio, sobrinho do Aluizio. Ela vivia me convidando para conhecer o que chamava de “roda de samba” e dizia que, se eu fosse lá uma vez, voltaria muitas outras. Senti-me tentada e curiosa, mas fui adiando a oportunidade. Eu era conhecida no colégio pelo amor à música, que desenvolvi talvez por influência da minha família. Todos os meus tios e tias tocavam algum instrumento, minha mãe cantava o dia inteiro e meu avô Ubaldo, mesmo sendo funcionário público, foi um pianista bastante requisitado no Rio. Ele complementava a renda tocando na sala de espera do famoso Cinema Odeon e em saraus em casas de família. Conviveu de perto com Ernesto Nazareth, cuja filha tornou-se amiga de minhas tias. Nenhum deles, entretanto, sabia ler partitura. Todos tocavam de ouvido. Mas somente em setembro de 1967, já no primeiro ano do curso clássico (hoje ensino médio), é que eu e minha colega e amiga inseparável Iara Marçal resolvemos aparecer na famosa casa da Jaceguai, levadas por outros dois colegas de turma, o Jonas Coriolano e o Milton Cavalcante. Nesse dia estavam comemorando os dezenove anos da Regina, filha mais velha de Aluizio e Maria Ruth. O local estava entupido de gente. No meio da sala, um grupo de músicos sentados num sofá, duas poltronas e em pequenos banquinhos forrados de veludo de várias cores, tocava samba da melhor qualidade. O próprio Aluizio, ao violão; Edinho e Nélio do morro do Salgueiro no pandeiro e no bandolim, respectivamente. Às vezes participava seu Serra, pai do futuro sambista Almir Guineto. E também o Milton Cavalcante, na tumbadora. Aluizio comandava a roda, chamando alternadamente outras pessoas pra cantar ou tocar algum instrumento. Uma voz destacava-se bastante na roda. Era Rolando Faria, de apenas dezesseis anos. Acompanhando-se ao violão, ele cantava não só sambas, mas música popular em geral, com uma linda voz e ritmo perfeito. Ficamos por ali,


em pé, no meio daquela gente toda, só assistindo. Pouco a pouco, a casa foi se esvaziando, mas nós não arredávamos pé. Eram quase duas horas da manhã quando meu pai – Jorge Loureiro Affonso – apareceu pilotando o seu Citröen 1947, de saudosa memória, que tantos serviços nos prestou, preocupado com a nossa demora em voltar pra casa. A essa altura, já havíamos sido apresentadas a todos e convidei-o para entrar e ver com os próprios olhos que não estávamos fazendo nada de errado, que o ambiente era bom, familiar, coisa e tal. Pedi pra ficar por mais tempo e o conselho que recebi foi que esperasse amanhecer e só depois fosse pra casa. Descobri dessa forma aquele ambiente divertido, onde imperavam a música e a amizade. Como previu Regina Rondon, nunca mais me afastei daquela gente. Passei a frequentar as rodas semanalmente e, depois de estreitar os laços com Regina e Angela, filhas do Aluizio, minhas visitas passaram a ser diárias. Com o tempo, os amigos das meninas foram aumentando em número e levando outras pessoas. E não só o número de frequentadores cresceu. As rodas começaram a ser feitas também aos sábados. Logo após a minha chegada, Aluizio, que já havia trabalhado como arranjador, resolveu montar um grupo vocal com o Rolando, Regina, Jonas e Angela, que recebeu o nome de Contraponto. Com arranjos vocais feitos por ele, o grupo começou a ensaiar algumas músicas dos amigos que frequentavam a casa. Lembro-me de algumas delas, como Frevança e Coro da ladeira (de Roberto Abramson) e Carrossel (de Paulo Emilio da Costa Leite). Eu, como de hábito, ficava nos bastidores cuidando de tudo. Chegaram a fazer apresentações na antiga TV Continental – Canal 9, em escolas e até na Penitenciária Lemos Brito, onde Aluizio trabalhava. Infelizmente, nada ficou gravado. ***


A primeira imagem da residência da Jaceguai, 27, que emerge da memória de Ivan Lins, quando perguntado sobre ela, é a da entrada da casa: “Sempre me lembro, chegando de tarde, a turma espalhada pelo jardim, pela varanda, sentada nos degraus, alguém segurando um copo de batida de limão. A geladeira sempre tinha jarras cheias, preparadas por Dona Ruth. Uísque era mais raro. Lembro que o Paulo Emilio tomava uma dose, vez ou outra... O pessoal era muito bacana. Éramos jovens idealistas e acreditávamos que seria possível mudar as coisas através da música. Eram reuniões muito cordiais.”

Lugar mágico

Separada do passeio por um muro baixo de pedras com grades em cima, a casa rosa de dois andares com telhado de duas águas era uma típica residência de classe média carioca. As janelas brancas, com venezianas, ficavam quase sempre fechadas. A porta da frente era precedida por uma pequena varanda de teto arredondado, com três degraus e piso de mármore. No segundo andar, uma porta de duas abas combinada com as janelas saía num pequeno balcão com guarda-corpo gradeado. Entre a casa e o muro da frente havia um pequeno jardim. A garagem, à direita de quem olhava da rua, tinha um duplo portão e a entrada social, um portãozinho também de grades com uma coberta de telhas coloniais. Em cima da garagem ficava o quarto que muitas vezes servia de pouso para os convidados que perdessem a hora ou o ônibus noturno. A turma dormia em colchonetes espalhados pelo chão. Entre a casa e a garagem tinha um balanço de madeira de dois lugares, pintado de azul, no qual nasceram muitas parcerias.


Ao entrar na sala, o visitante dava de cara com uma parede verde-musgo, repleta de cenas de candomblé pintadas pelo jovem artista Pedro Albarran, que praticamente morava na casa. Outra parede, mais ao fundo, colecionava autógrafos de gente famosa. Teoricamente, só participava dos saraus quem era convidado e a senha de acesso era justamente o nome de quem fez o convite. As reuniões aconteciam no primeiro andar. No segundo, ficavam os três quartos aos quais somente a família tinha acesso. O musicoterapeuta e arte-educador Sidney Mattos frequentou assiduamente os saraus da Jaceguai, 27, entre os dezesseis e dezessete anos. Por coincidência, décadas depois, acabou indo morar no número 35 da mesma rua. Ele afirma que aqueles encontros mudaram sua vida para sempre: “A casa era super bem frequentada, um ponto importante de resistência política e cultural. Os saraus corriam sob a batuta do Aluizio. Eu era dos mais jovens da turma, e entrar em contato com tanta gente boa acrescentava poder ao que eu tinha de talento. Logo aprendi a tocar as músicas de todo mundo e ganhei o apelido de Xerox. Nessa época, eu já era profissional e tocava guitarra no grupo Som Maior, junto com Darcy de Paulo nos teclados; Wagner Dias, o Wagão, no baixo; e seu irmão Saparuga na bateria. Levei todos eles pra lá. As noitadas seguiam em ritmo de samba, choro, toada, canções de João do Vale, Nelson Cavaquinho e de uma galera que chegava com muita força.” O que muita gente não sabia é que, brevemente, muitos daqueles jovens se tornariam nomes importantes da canção nacional. Estudantes universitários e ainda desconhecidos na cena artística, Aldir Blanc cursava medicina; Cesar Costa Filho, direito; Luiz Gonzaga Júnior, economia; Ivan Lins, engenharia química; Sílvio da Silva Júnior, engenharia civil, e por aí vai. Numa reportagem publicada tempos depois, o jornalista Sérgio Cabral diria que a música brasileira deve


muito à casa da Jaceguai, 27, “só comparável à de Tia Ciata, para o samba, e à de Nara Leão, para a bossa nova”. Além dos já citados, seriam revelados naqueles encontros os talentos de Claudio Cartier, Célia Vaz, ClaudioTolomei, Edson Frederico, Eduardo Lages, Flavinho Faria, Leila Rocha, Lucinha Werner (que ainda não era Lins), Luna Messina, Marcio Proença, Marco Aurélio Braga Nery, Octavio Burnier Bonfá, Paulo Emilio, Roberto Abramson, Ruy Maurity, Ruy Quaresma e alguns outros. Sem deixar de fora Rolando Faria, que tempos depois formaria a dupla LesÉtoiles, com Luiz Antonio, em Barcelona e Paris, aonde foram morar. O grupo também atraía futuros jornalistas, como Léa Penteado, e gente de outras artes, como a jovem Angela Leal, que mais tarde se tornaria uma atriz de sucesso. Outra frequentadora das famosas rodas musicais foi a produtora de tevê e autora de telenovelas Maria Carmem Barbosa. Segundo ela, “a Jaceguai era o nosso berço, lugar de bom humor, cantoria e muitas amizades”. E acrescenta: “Morei lá por uns tempos, quando saí da casa dos meus pais. Antes, eu já passava os fins de semana com o Aluizio, Maria Ruth e suas filhas, que eram como irmãs para mim. Tinha muita música, gente tocando violão o dia todo. À noite, então, reunia-se uma galera que cantava maravilhosamente bem. Eu era muito tímida, mas podia ter me tornado cantora, se não fosse isso.” Para Cesar Costa Filho, que se tornaria um campeão dos festivais de MPB e, mais tarde, especialista em direitos autorais, “a casa da Jaceguai, 27, era um lugar mágico”, uma festa em constante movimento: “Ao entrar naquele ambiente, todos sentiam uma energia de paz, harmonia e muita fraternidade. O casal Porto Carreiro de Miranda e suas filhas recebiam a todos de forma igual. Enquanto o Dr. Aluizio e as filhas participavam do que rolava na sala, dona Maria Ruth se encarregava das comidinhas. Lembro que tarde da noite havia sempre uma sopa e, de manhã cedinho, para os retardatários, um cafezinho com pão. Junto com


a música, tinham recitais de poesia e até conversa sobre artes plásticas, já que o saudoso amigo Pedro Albarran era um artista de primeira.”

Música e boa prosa

Nas reuniões enfumaçadas por dezenas de cigarros e quase sempre regadas a cuba-libre, batidas de limão ou de maracujá –feitas num panelão de alumínio e servidas com uma concha daquelas de sopa–, a rapaziada conversava e apresentava canções inéditas, algumas das quais ainda seriam gravadas por gente famosa. E havia também os que preferiam simplesmente opinar sobre as músicas apresentadas ou apenas prosear com os amigos, falando de política, poesia, cinema ou assuntos triviais. Meio século depois, Roberto Abramson ainda se lembra de como foi parar lá: “Fui levado à Jaceguai pela Léa Penteado, colega, junto com a Angela, no Curso Hélio Alonso, em 1967. Sendo amigo do Rolando Faria, desde antes daquele ano, eu o chamei para um encontro que se seguiu e o resto todos já sabem. Na Jaceguai, conheci minha primeira esposa, Sylvia Regina Frapolli, jornalista do Correio da Manhã que me entrevistou na primeira noite do Festival Universitário.” Por sua vez, Sílvio da Silva Júnior afirma ter conhecido a casa de Aluizio bem antes daqueles encontros. Ainda garoto, ele acompanhava o tio Ary da Silva, que tocava violão, era amigo de um cunhado de Maria Ruth e acabou fazendo amizade com o anfitrião. Silvio ressalta que os saraus da Jaceguai podiam se estender de sexta a domingo e davam sequência às atividades desenvolvidas no Teatro Carioca de Arte, na Rua Senador Vergueiro, em Botafogo, e no Teatro Azul, que funcionava no Instituto Isabel, na Tijuca. Nos dois locais “aconteciam shows, exposições, rodas de samba, espetáculos de teatro e música numa


iniciativa de Pedro-Jorge, sobrinho de Negrão de Lima, governador do Estado da Guanabara”. Em suas memórias, o músico escreve: “Nós íamos lá para mostrar uns aos outros as músicas novas e descolar as moças que frequentavam o pedaço. Era a maior disputa. Cada um querendo ser melhor do que o outro. Não era qualquer um que podia pegar o violão. Quando a gente não descolava ninguém, ficávamos tomando umas cervas e jogando conversas fora até altas horas... Claro que nessas conversas era natural que discutíssemos o necessário posicionamento do nosso grupo de novos artistas, face às pouquíssimas chances que o mercado de música popular brasileira – totalmente controlado pelas multinacionais do disco – oferecia a quem compunha a música brasileira de qualidade, que fazia sucesso nos festivais.” Ivan Lins descreve os saraus e reforça a importância do dono da casa como líder e mestre de cerimônias: “Aluizio se posicionava entre dois outros violonistas, tendo os compositores à sua volta. Os três acompanhavam quem tinha dificuldades para tocar. Esse era o único momento em que tínhamos uma regra estabelecida naqueles encontros. Na primeira rodada, os compositores mostravam músicas inéditas. Na segunda, os demais presentes faziam comentários ou pediam para escutar alguma composição que tivesse sido apresentada no encontro anterior. Isso nos motivava muito e a nossa produção era uma coisa absurda. Fazíamos uma música atrás da outra. Os compositores se ajudavam e ali nasceram muitas parcerias.” As noitadas da Jaceguai eram tão faladas no meio artístico que acabaram despertando a atenção da imprensa. Até mesmo a Intervalo, revista de bolso muito popular naquela época por noticiar os bastidores da televisão e do rádio, deu destaque à turma em suas páginas, abrindo foto com os donos da casa, Gonzaguinha, Aldir, Lucinha Lins e alguns outros. Os saraus foram notícia inclusive fora do Rio. Numa reportagem


publicada no Correio Braziliense, edição de 1º de novembro de 1970, o próprio Aluizio declarou: “Isso já vem de família, sempre fomos acostumados com o ambiente musical. Desde que éramos jovens, nos reuníamos para tocar violão e cantar... Depois que me casei, continuei a reunir em casa alguns amigos, dentre os quais o João do Vale, Clementina de Jesus e Cartola. Minhas filhas cresceram e, com elas, a tendência pela música popular brasileira. Começaram a trazer os amigos, que iniciavam suas primeiras composições. O Aldir, eu conheci menino ainda. E, através dele, foram chegando outros. Sabiam que aqui tinha gente para ouvi-los... Temos em nossa casa uma verdadeira plêiade artística. Aqui se encontra de tudo. Compositores, autores, instrumentistas, cantores e intérpretes... E a coisa vai cada vez mais se ampliando.”

A era dos festivais Iniciada em 1965, a fase áurea dos festivais da canção impulsionou a carreira de jovens compositores, músicos e intérpretes que entraram definitivamente para a história da MPB. Entre eles, Caetano Veloso, Chico Buarque, Dori Caymmi, Edu Lobo, Elis Regina, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Guarabyra, Milton Nascimento, Rita Lee e Tom Zé. O primeiro clássico dessa era foi Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Na voz da “pimentinha” Elis – ganhadora do prêmio de melhor intérprete –, a linda canção praieira venceu o 1º Festival da TV Excelsior. Segundo Zuza Homem de Mello, ela definiria o estilo da chamada “música de festival”, tendo na jovem cantora gaúcha um dos seus trunfos para se sagrar campeã. Promovidos pelas emissoras de televisão da época – além da Excelsior, também as TVs Rio, Record e Globo –, os festivais funcionavam como prospecção e plataforma de lançamento de futuros


profissionais da canção brasileira. Bom que se diga que o público que lotava teatros e estádios para ver e ouvir as acirradas disputas musicais era quase todo formado por jovens estudantes de classe média. O momento político não era dos melhores. No auge da guerra fria, a ditadura militar se consolidava e o Ato Institucional nº 5, que seria decretado em 13 de dezembro de 1968, não demoraria a cortar cabeças em vários setores da vida nacional. Os opositores do regime, principalmente artistas e intelectuais de esquerda, seriam perseguidos e muitos deixariam o país rumo ao exílio. Devido à sua natureza de comunicação imediata com o público, a canção popular era a arte mais vigiada pelos repressores. Apesar dos pesares, ainda que sob o forte cerco da censura, os militares permitiam a realização dos grandes festivais, cujo ápice ocorreria justamente em 1968, com a aclamação de Pra não dizer que não falei das flores– Caminhando no 3º FIC (Festival Internacional da Canção). A partir dali, as canções permitidas teriam maior teor romântico, pois os temas políticos seriam controlados cada vez com mais rigor. Realizado pela TV Globo em parceria com o governo do Estado da Guanabara, o histórico festival reuniu quase 30 mil pessoas no Maracanãzinho, num dos momentos de maior tensão política desde o golpe que derrubou o presidente João Goulart, em 1964. O assassinato do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto pela polícia, em 28 de março, durante a ocupação do restaurante Calabouço, no centro do Rio, havia resultado em violentos protestos, que culminaram na Passeata dos 100 Mil. O 3º FIC acabou se tornando uma espécie de arena do confronto ideológico e, com certeza, o mais polêmico dos festivais. Classificada em segundo lugar na finalíssima da fase nacional, em 29 de setembro, sendo derrotada por Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque, a canção de dois acordes de Geraldo Vandré foi inspirada na grande passeata e acabaria se tornando uma espécie de hino da luta contra a ditadura e a repressão. Cinquenta anos depois, ela ainda seria


cantada em protestos e manifestações públicas de várias naturezas em todo o país. Nas palavras de Millôr Fernandes, Caminhando seria “o hino nacional perfeito; nasceu no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada vez mais espontânea e emocionalmente, por maior número de pessoas. É a nossa Marselhesa”. A decisão dos jurados provocou a maior vaia da história da televisão brasileira, mas isso não impediu que Sabiá – nas vozes de Cynara e Cybele – vencesse também a fase internacional do evento, uma semana depois, dessa vez sob calorosos aplausos. Para enfrentar a acirrada concorrência, a TV Tupi – Canal 6, emissora dos Diários Associados – lançou o Festival Universitário de Música Popular Brasileira (também chamado de Festival Universitário da Canção). A ideia surgiu da constatação de que, assim como o público, a maioria dos artistas de festivais era constituída por estudantes universitários. Exclusivamente destinado a compositores que ainda cursavam faculdade, o evento seria realizado simultaneamente no Rio e em São Paulo, entre 1968 e 1971. Embora os Associado tivessem apoiado o governo militar, o novo festival foi uma ideia dos jovens dramaturgos Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. Não haveria surpresa, se não fosse o fato de ambos serem ligados ao Partido Comunista e ao movimento estudantil, que atuava na clandestinidade desde 1º de abril de 1964, quando a sede da UNE (União Nacional dos Estudantes) fora incendiada por apoiadores do golpe. O evento tinha direção de Maurício Sherman e produção musical do cantor Lúcio Alves. A primeira edição paulista do festival da Tupi teve como primeiro colocado o compositor Richard Carasso, com a canção Que bacana, defendida por Suely e Os Kantikus. Vale destacar que o hoje consagrado José Miguel Wisnik ficou em quarto lugar, com Outra viagem, na voz de Alaíde Costa. Outra curiosidade é que Geraldo Vandré


defendeu Não se queima um sonho, homenagem do estudante de arte dramática Walter Franco à memória do guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara – não se classificando para a fase final. No Rio de Janeiro, o vencedor foi Alberto Land, com Helena, Helena, Helena, na voz do iniciante Taiguara, jovem uruguaio que se tornaria um dos grandes nomes da MPB. Enquanto isso, Ronaldo Monteiro de Souza e Cesar Costa Filho, carinhosamente chamado de Cesinha pelos amigos, ficaram em terceiro lugar com Meu tamborim, defendida por Beth Carvalho. Também da turma da Jaceguai, 27, Ivan Lins e Valdemar Correia dos Santos conquistaram o quinto lugar, com a canção Até o amanhecer, interpretada por Cyro Monteiro, indicado pelos organizadores: Hoje, num bar, minha amiga Tento encontrar a saída Tudo o que fiz nessa vida Me doeu tanto porque Eu quis entender as manchetes Cada pessoa e seu atos Os funerais e os confetes E o que esconde por trás das fotos...

A união fez a força

Na segunda edição do Festival Universitário, em 1969, o campeão paulista seria o cantor e compositor Abílio Manoel, com a música Pena verde. No Rio, o evento foi realizado no Teatro João Caetano, de 4 a 6 de setembro. Quase todos os primeiros colocados foram compositores que se reuniam na Jaceguai, 27.


O principal deles, Luiz Gonzaga Júnior – Gonzaga para os amigos e, mais tarde, Gonzaguinha – conquistou o primeiro e o quarto lugares. No ano anterior, já havia classificado Pobreza por pobreza para a fase final. Filho de Luiz Gonzaga, o rapaz alto e magro de semblante carregado se tornaria um ícone da canção nacional e também um dos mais perseguidos pela censura. Levado à casa de Aluizio pelo parceiro e amigo de infância Ronaldo Monteiro de Souza, Ivan Lins afirma ter aprendido com Gonzaga as primeiras escalas e cifras e acabou tendo nele seu primeiro professor de teoria musical. Numa entrevista, anos depois, ele diria: “Na Jaceguai, comecei a descobrir um compositor talentosíssimo, completo, não só na música, mas também no texto. Ele (Gonzaguinha) tinha uma maneira muito incisiva de colocar seus pontos de vista poeticamente, e sempre por trás uma música boa, muito boa. Tinha uma forma maravilhosa de tocar violão. Para dizer a verdade, de todos ali, foi o que mais me fascinou.” Aos vinte e quatro anos, o próprio Gonzaga interpretou a canção classificada em primeiro lugar, com o curioso nome de O trem (Você se lembra daquela nega maluca que desfilou nua pelas ruas de Madureira?). O público que lotava o teatro não gostou da escolha dos jurados e vaiou a vencedora, mas isso não intimidou o compositor, que seguiu firme e confiante no próprio talento: Uma prece a quem passa, rosto ereto Olhar reto, passo certo pela vida, amém Uma prece, uma graça, ao dinheiro recebido Companheiro, velho amigo, amém Uma prece, um louvor ao esperto enganador Pela espreita e a colheita, amém...


O jurado Ricardo Cravo Albin, fundador do MIS (Museu da Imagem e do Som) e do instituto que leva seu nome, lembra de ter falado muito sobre O trem em várias palestras e entrevistas. Segundo ele, “Gonzaguinha começou a carreira com uma música inexpressiva, que não atingiria o grande público”, o que só aconteceria depois, com outras composições. A vitória no festival da Tupi se deveu a dois fatores: “Em primeiro lugar, Luiz Gonzaga Júnior tinha no nome a descendência do ‘rei do baião’, e isso naturalmente pesou muito a seu favor. Em segundo, o júri avaliou O trem como sendo uma música sofisticada. Era discreta, lenta, em tom menor e sem apelações. Fugia, portanto, da fórmula típica dos festivais, que geralmente apresentavam composições explosivas, tonitruantes, com letras fortes e mudanças bruscas de tom que muito entusiasmavam o público.” Além de faturar o troféu Bandolim de Ouro, ofertado pela TV Tupi, o jovem compositor foi contemplado com uma viagem à Europa e um contrato para lançar um disco autoral pela gravadora Philips. A experiente Claudette Soares defendeu sua outra música, Mundo novo, vida nova, classificada em quarto lugar. Coincidentemente, a cantora fora cognominada “a princesinha do baião”, pelo pai de Gonzaguinha. A vice-campeã foi Nada sei de eterno, de Sílvio da Silva Júnior e Aldir Blanc, com Taiguara e Quarteto Forma (Ana Manhães, Eduardo Lages, Flávio Faria e Marcio Proença). Em parceria com Cesar Costa Filho, Aldir também conquistou o terceiro e o quinto lugares, com Mirante, na voz de Maria Creuza, e De esquina em esquina, com Clara Nunes e o Quarteto 004. Cesinha afirma que “essas músicas surgiram na casa do Aldir, onde nos reuníamos para compor. Na maioria das vezes, eu mostrava a melodia e ele escrevia os versos. Por sinal, sempre brilhantes”. Para coroar a alegria da turma, Ruy Maurity e José Jorge Miquiniotti – também frequentes na Jaceguai – conquistaram o sexto lugar com


Passarinhada, defendida pelo próprio Ruy acompanhado do Conjunto Vox Populi. Entre as canções finalistas figuraram Alice (de Homero Moutinho Filho); A menina e a fonte (Arthur Verocai, Paulinho Tapajós e Arnaldo Mederios), com os Golden Boys; De lá pra cá (Ruy Maurity e José Jorge); Dois minutos de um novo dia (Ruy Maurity e José Jorge), com Antonio Adolfo & A Brazuca; Em qual estrada (Fred Falcão e Paulinho Tapajós), na voz de Maysa; Mônica, Mônica (Ivan Botticelli e Luís Carlos Sá); O cosmonauta que virou luar (Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), com os Golden Boys e The Younsters; e ainda Vivendo a vida (de Sonia Prazeres). As nove primeiras colocadas do festival seriam reunidas num LP gravado ao vivo pela Philips. As premiações no Festival Universitário da TV Tupi comprovaram que a rapaziada não estava brincando. Outro fator a ser observado é que os intérpretes eram, na sua maioria, artistas consagrados. Ainda que impostos pelos organizadores do evento, isso de certa forma elevou o nível da disputa. Portanto, não tinha meu pé me dói. Os jovens amigos das filhas de Aluizio e Maria Ruth estavam lado a lado com profissionais da canção e isso facilitaria o entrosamento no meio musical. Por essas e outras, naquela noite de 6 de setembro de 1969, os incomodados que se retirassem. A casa da Jaceguai, 27, tinha mais era que explodir de alegria e contentamento.


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