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Palhete Medieval de Ourém
O último vinho cisterciense da Europa da cristandade TEXTO VIRGÍLIO LOUREIRO
Quem percorre velozmente a autoestrada A1 nas imediações de Leiria, se dirige em peregrinação a Fátima ou atravessa o concelho de Ourém, raramente se apercebe que existe nesta região uma das mais fascinantes paisagens vitícolas históricas do país, onde se produz um vinho palhete que durante mais de sete séculos foi um dos principais símbolos da Europa da cristandade. 20 | EPICUR ESPECIAL LISBOA: DE SINTRA A ALCOBAÇA
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uando se toma a estrada de Ourém para Gondemaria e se vai atento à paisagem, avistam-se inúmeras vinhas minúsculas de aspecto decrépito, com cepas grossas e retorcidas a denunciarem tempos passados. Para muitos, são vestígios de uma viticultura arcaica que urge reconverter, pois tratam-se de vinhas “velhas”, não alinhadas, impossíveis de mecanizar, de baixa produtividade e que dão uma imagem decadente da região e do país. Porém, para quem conhece a história do vinho português e europeu, a inluência dos monges brancos de Alcobaça na viticultura medieval, as técnicas ancestrais de cultivo da vinha e o signiicado do vinho na sociedade medieval, não pode deixar de se emocionar com o que vê, pois está perante um autêntico museu a céu aberto. Nos últimos trinta anos, muitas delas foram abandonadas e encheram-se de mato, alterando a paisagem e denunciando o ermamento das pitorescas aldeias locais. Por sorte, alguns vinhateiros sensíveis, ciosos das suas raízes e orgulhosos do património colectivo da sua região, teimam em cultivar as vinhas à moda dos seus antepassados, mesmo que isso pouco ou nada contribua para o sustento da família. As vinhas têm as castas todas misturadas, predominando largamente as castas brancas, pois foi essa a recomendação dos monges agricultores já no longínquo século XII. As vinhas estão, como se pode constatar, em terrenos pouco produtivos, por vezes em encostas muito íngremes, onde só as videiras e a loresta são capazes de resistir. São as chamadas “terras de vinho” medievais em contraponto às “terras de pão”, situadas no sopé das encostas ou nos vales húmidos. A densidade das videiras – muitas vezes dupla ou tripla da das vinhas atuais – é própria da viticultura medieval, e nas vinhas muito velhas ainda se pode ver o compasso de “pé de galo”, em que cada videira está equidistante das seis vizinhas. Nas castas brancas domina a
Fernão Pires e, nas tintas, a Trincadeira, embora haja outras, como era apanágio da Idade Média. A forma de condução das videiras é muito variável, embora domine a poda em “vara e talão” ou a poda em “taça”, só com talões. No inverno, com as vinhas sem folhas, é possível ver os mais variados tipos de empa, como a de “morcela”, “envidilha” ou “amouroada”. O mosaico paisagístico, onde predomina o minifúndio, com a horta e os cereais nas terras chãs, a vinha geralmente na encosta e o pinhal na cumeeira das pequenas colinas, sugere um ambiente medieval, que se torna deslumbrante quando se vê o
monumental castelo de Ourém em pano de fundo. Só por isso, já se justiicaria a visita, mas o precioso vinho que se faz com as uvas das pequenas vinhas tirará as dúvidas aos mais indecisos. Vinho vermelho, o “sangue de Cristo” O processo de fabrico do vinho dito vermelho, em pequenas adegas de estilo medievo, continua a seguir a técnica da mistura, ensinada pelos monges de Alcobaça no século XII. As uvas brancas são viniicadas de bica-aberta e o mosto fermenta em tonéis cheios até cerca de
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80% do seu volume; por sua vez, as uvas tintas desengaçadas são viniicadas com curtimenta, em selhas de madeira, durante um período que varia entre seis e dez dias. Logo que este vinho tem a cor desejada – dependente do ano de colheita – é vertido, juntamente com as películas e grainhas, dentro do tonel do vinho branco, que ica atestado. A este vinho (tinto) toda a gente em Ourém conhece por “tinta”, à boa maneira medieva, pois não é para
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beber mas para “tingir” o branco de forma a que o vinho inal ique exatamente com a cor do “sangue de Cristo”. Embora se produzisse este vinho clarete em toda a Europa da cristandade e na imensa área de inluência do Mosteiro de Alcobaça, só perdurou na zona de Ourém, muito provavelmente pela autoestima de alguns vinhateiros e pela continentalidade do clima local, responsável pelos catorze ou mais graus de álcool que os
vinhos normalmente atingem, evitando a azedia, e pela sua aclamada qualidade. Uma visita às vinhas e adegas medievais de Ourém é uma aventura fascinante e uma lição de História, com regresso à Idade Média, que se recomenda a todos os enóilos. E caso tenha a sorte de provar o palhete do Senhor Adriano Marques – verdadeiro guardião de toda a sabedoria antiga do cultivo da vinha e fabrico do vinho – na Aldeia Nova do Olival, perceberá o que é um vinho com alma, cujas virtudes já eram exaltadas por Vicêncio Alarte em 1712: O vinho vermelho muito cuberto, he de fortissima natureza, e ofende muito a cabeça, e faz a bebedice muito vehemente quando se toma com intemperança; porém tomado como convem, he muito louvado porque desfaz os humores grossos, mundiica as vias das vêas da podridão, e puriica o sangue; e por isso convem aos velhos, porque conforta o seu calor, e desfaz a abundancia dos humores frios: he necessário que tenha o sabor suave, chegado ao doce, e o cheiro aromático; e o que tem estas qualidades, he mais temperado para nutrir, e converter-se facilmente em sangue por amor da semelhança que tem com elle no sabor, e côr; ajuda a mundiicar os vicios do peito, e dos bofes, porque he muito solutivo do humor viscoso, e muito lenitivo, e singular remédio a todas as cousas que vem de evacuação escessiva, ou de cousas que atormentão o orifício superior do estomago. Mais palavras para quê? Basta rumar a Ourém e descobrir o seu aplaudido palhete medieval.
rota do vinho novo
A junta de freguesia de Gondemaria e Olival organiza todos os anos uma visita às pequenas adegas do vinho medieval de Ourém. Dividida em duas etapas, dada a extensão do percurso e número de adegas a visitar, costuma ocorrer em fevereiro e março, e é uma verdadeira festa popular de homenagem ao palhete medieval. Todos os vinhateiros capricham em receber bem os visitantes, que se deslocam num pequeno comboio elétrico com um grupo de concertinas na primeira carruagem a marcar o ritmo e a animar a festa. Além da prova do palhete cheio de espírito, há petiscos variados, muitos dos quais de estilo medieval, como a friginada, a morcela de arroz tostada, chouriço assado, queijo de cabra, pataniscas de bacalhau, postas de peixe frito ou bacalhau lascado. Com o decorrer da festa, a alegria vai crescendo e a conversa efusiva e ruidosa também, num genuíno evento de veneração ao vinho medieval. É uma experiência inesquecível para retemperar o corpo e alimentar a alma.
Contactos: Junta de Freguesia de Gondemaria e Olival freguesiadegondemariaeolival@gmail.com 249 581 251 | 916 600 462
Lista de produtores do vinho medieval de Ourém: Adriano Marques Aldeia Nova do Olival Tel.: 913 541 962 António Simões Tel.: 919 780 089 Faustino Oliveira Tel.: 917 053 085 Feliciano das Neves Courela Tel.: 917 883 779 Jorge Grenate Tel.: 967 452 864 E-mail: jorge@wine-atitude.pt Luís Sousa Tel.: 917 532 236 E-mail: lmg.sousa@gmail.com Quinta do Montalto Montalto 2435-439 Olival Tel.: +351 249 581 224 / 932 705 052 E-mail: info@quintadomontalto.com
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