Boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal
Museu, Comunicação, Educação
Índice
Nº
29
. 2003
3.4
7.8
13.14.15.16
Programa de Iniciativas do Serviço Educativo
Conhecer As Idades da Vida - colecção de azulejaria da Quinta da Trindade 9.10.11.12.. Memórias e Quotidianos A. Silva & Silva : 60 anos na indústria e na história local
Património Cultural do Concelho O forno de fundição da Quinta da Trindade
5.6
Tema de Reflexão A exposição, ou como os museus principalmente comunicam
17.
Notícias 18.19.
Agenda
OUT.
NOV.
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Com este número 29 do Ecomuseu Informação inicia-se o oitavo ano de publicação trimestral consecutiva do boletim informativo do Ecomuseu Municipal do Seixal. Um dos objectivos principais desta edição periódica da Câmara Municipal do Seixal é prestar uma informação regular à comunidade, aos amigos e doadores, aos públicos que visitam as exposições, aos utilizadores dos serviços prestados pelo museu e a todos os destinatários dos programas trimestrais de iniciativas do Serviço Educativo. À medida que foi possível fazer evoluir e procurar qualificar esta edição, acentuou-se a vertente de divulgação do património cultural concelhio, particularmente do acervo e colecções do Ecomuseu e de conteúdos científicos produzidos no âmbito da actividade regular ou de projectos especiais do museu. Atentos à pertinência e à necessidade de avaliações criteriosas de diferentes produtos de comunicação, como forma de progredirmos enquanto serviço público, é desde já reconhecida a importância deste instrumento de ligação, o Ecomuseu Informação, sabendo que, a par de muitos munícipes, contamos actualmente com numerosos leitores nas mais variadas localizações geográficas, tomando conhecimento, por este meio, das realidades, história, memória e património do concelho do Seixal. Desde há um ano, o Ecomuseu Informação também é difundido na Internet, através do subsite do Ecomuseu, havendo o propósito de incrementar esta forma de difusão, tendo em vista a melhor rentabilização de recursos e o aprofundamento da utilização
DEZ.
I S S N : 0 8 7 3 - 6 1 9 7 • Depósito Legal: 106175/96 • Tiragem: 6000 exemplares
Ecomuseu Informação
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das novas tecnologias de informação pelo museu. Neste último trimestre de 2003, quando já se planificam e preparam as principais acções e projectos do próximo ano, o Ecomuseu Informação chama a atenção para o Programa de Iniciativas do Serviço Educativo, onde predominam as ofertas à comunidade escolar, neste novo ano lectivo. Seguindo as rubricas habituais, sugere-se a reflexão sobre a importância das exposições, principal recurso de comunicação e base indispensável da educação O plano de exposições e, concomitantemente, do trabalho de patrimonial que o museu desenvolve. No comunicação e de educação do que concerne às colecções, chama-se a Ecomuseu reportar-se-á aos atenção – em Conhecer – para o património vários núcleos e extensões, à azulejar, particularmente o da Quinta da medida que se desenvolva e Trindade, que vem sendo objecto da invesaprofunde a programação musetigação promovida pela Câmara Municipal ológica iniciada em 2001 [...] e se concretizem sistematicado Seixal. O património arquitectónico e mente obras de preservação e arqueológico da Quinta da Trindade é ainda de qualificação arquitectónica e destacado na rubrica de Património Cultural museográfica [...] do Concelho. A indústria local e a indústria são tema das Memórias e Quotidianos, assinalando os 60 anos da fundação duma empresa que adquiriu projecção praticamente nacional. Dando ênfase ao Tema de Reflexão – e, considerada a importância da exposição no museu, sublinhando as nossas preocupações numa área a que procuraremos atribuir reforçados recursos municipais e em que nos esforçaremos por conseguir melhores resultados de possíveis parcerias – deixamos anunciado o retomar das questões ligadas à definição de uma política de exposição do Ecomuseu Municipal do Seixal. Nessa política de exposição dever-se-á atender quer aos espaços e à envolvente, às colecções e aos demais recursos museológicos e museográficos, quer aos públicos – incluindo, além dos públicos fiéis ou habitualmente previstos, a necessidade de um processo de avaliação neste campo, nomeadamente na perspectiva do turismo cultural – quer ainda aos profissionais com que a instituição pode contar, em condições de sustentabilidade, abrangendo as várias áreas funcionais do museu. O plano de exposições e, concomitantemente, do trabalho de comunicação e de educação do Ecomuseu reportar-se-á aos vários núcleos e extensões, à medida que se desenvolva e aprofunde a programação museológica iniciada em 2001 (com a aprovação, pela CMS, do Programa de Qualificação e de Desenvolvimento do EMS) e se concretizem sistematicamente obras de preservação e de qualificação arquitectónica e museográfica de cada um desses núcleos e extensões do museu. Ao definir uma política de exposições para o Ecomuseu, a tutela poderá estabelecer, a par dos seus objectivos, as prioridades a seguir, quanto às parcerias, locais, regionais e nacionais, consonantes com o projecto cultural global para o Município. A nossa missão, enquanto museu municipal, requer que se reforcem as exigências do processo de comunicação, particularizando o carácter e a identidade do museu para que este, a par de uma multiplicidade de meios e agentes de comunicação, possa desempenhar a sua função educativa e de interacção cultural na sociedade contemporânea, tendo em vista o desenvolvimento desta. [Graça Filipe]
Ficha Técnica Ecomuseu Informação nº29
Foto capa - Postal P&B da Colecção Eugénio Lapa Carneiro, representando mulheres vendendo a sua loiça olárica Refª de Inventário EMS.1999.330.224: S.d. - Guarda (?): Foto Hermínios (?)
Edição
Direcção
Grafismo e Revisão
Tiragem
Câmara Municipal do Seixal
Graça Filipe
Sector de Apoio Gráfico e Edições
6000 exemplares
Créditos Fotográficos
0873-6197 Depósito Legal
Informação/Agenda e Notícias
EMS/CDI; Ana Isabel Apolinário, Carla Costa, António Silva, Cézer Santos, Jorge Raposo, Luís Azevedo
Carla Costa, Graça Filipe
Impressão
Textos/Investigação
Graça Filipe, Ana Luísa Duarte, Carlos Carrasco, Fernanda Ferreira e Jorge Raposo www.cm-seixal.pt/ecomuseu
SIG - Sociedade Industrial Gráfica
ISSN
106175/96
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As exposições, nomeadamente as temporárias, são acontecimentos da maior importância na vida das instituições culturais que têm por vocação a sua apresentação ao público, sempre que realizadas com os meios necessários para que lhes seja reconhecida a qualidade que o público merece. Quando falamos de museus, a exposição é, pela natureza da instituição, o processo privilegia© EMS/CDI – Carla Costa 2003 do de comunicação pelo qual cada museu cumpre principalmente a sua função informativa e educativa, também de deleite e de entretenimento, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento. Sendo um suporte mediático importante dos museus, as exposições devem ser ocasiões de interpretar objectos e documentos específicos, em regra destacáveis pelo seu valor, raridade ou interesse cultural – histórico, científico, artístico, técnico ou de outro carácter inerente ao próprio museu – interligando-se em função do tema de comunicação escolhido e proposto a determinados públicos-alvo, por forma a constituírem meios de interacção cultural. Cada museu saberá planificar e programar as suas exposições tendo em consideração a sua missão e os recursos de que dispõe, nomeadamente uma equipa profissional à medida dos objectivos visados. Os objectos ou colecções de museu não constituem por si só “fontes” do processo de comunicação, ou seja, de transferência de informação e de ideias com uma intenção deliberada, por parte do “emissor”, de conseguir certas trocas consideradas importantes com o fim de enriquecer os conhecimentos e influenciar as atitudes e comportamentos dos receptores ou “destinatários”. Para que o museu ou concretamente o responsável ou a equipa de profissionais (“emissores”) que produzem a exposição (“canal”) transmitam as pretendidas “mensagens” ao visitante (“destinatário”) é necessário um complexo tratamento museológico daqueles objectos, documentando-os, conservando-os, investigando-os e interpretando-os. Só assim eles se tornam “fontes” do referido processo de comunicação, a que equiparamos a exposição no contexto dos museus, em que cada mensagem é quase sempre o resultado da organização complexa de muitos signos, transmitindo informações e indicando ao destinatário alguma coisa que conhecemos e queremos que ele conheça ou que partimos do princípio que o vão interessar e motivar. Queremos então dizer que só é possível compreender essa mensagem ou conjunto de signos se a exposição, como processo de comunicação, utilizar e aplicar um código partilhado entre o museu e o público. Portanto, a qualidade e o êxito de uma exposição que o museu realize tanto dependem do trabalho de investigação, conservação, documentação e interpretação, como de uma avaliação criteriosa do público-alvo com que se pretende comunicar e interagir. A exposição em contexto museal não deve limitar-se a dar a conhecer os bens que o museu incorpora, mas sim potenciar leituras e apropriações diversas, consoante os destinatários, tomando como referência os seus interesses e conhecimentos de partida, por forma a que o museu os possa estimular sensorialmente, motivando atitudes críticas, proporcionando a apreensão cognitiva e a construção de memórias. Assim, a exposição, caso se pretenda com carácter permanente, deverá contar com reforçados recursos e ser fruto de longa elaboração, tanto no plano da avaliação de públicos, como nos planos da investigação e selecção dos testemunhos e do estudo e da conservação do acervo de museu apresentado. Mas nem mesmo a exposição permanente deverá contornar as exigências de actualização, em função dos avanços da disciplina de base (ou disciplinas), do eventual enriquecimento das colecções ou mesmo da evolução museológica (e museográfica) a que a instituição não poderá ficar alheia, em função do grau de representatividade que a dita exposição – e o museu – assumirá junto da comunidade e face aos públicos, possivelmente ao longo de sucessivas gerações. Por isso deve ser providenciada alguma flexibilidade do espaço e dos
Tema de Reflexão
A exposição, ou como os museus principalmente comunicam
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próprios equipamentos, concebendo a exposição à partida como razoavelmente evolutiva. Mesmo os museus que reúnem condições e optam por uma exposição de carácter permanente devem organizar exposições temporárias com regularidade. Dessa forma, através de uma diversificada programação, nomeadamente no plano temático, também poderão contribuir para a inclusão social, diversificando e alargando o espectro de destinatários da comunicação museal com o público e procurando atingir novos públicos-alvo. Simultaneamente e entre diversos aspectos que esta abordagem, por ser breve, não pretende abordar, sublinha-se a importância das realizações temporárias numa política de exposição, contribuindo para acautelar melhor a conservação dos objectos apresentados. Cada museu, através da sua respectiva tutela, deverá definir e divulgar a sua política de exposição, num documento onde se explicite a filosofia e as principais linhas programáticas no que concerne às exposições e a apresentação pública do seu acervo, de acordo com a missão do museu. A política de exposição tem por base ou integra o programa do museu, articula-se com a política de investigação e com os projectos para que a instituição canaliza os meios indispensáveis, incluindo, na medida do possível, relações de parceria com outras entidades com fins idênticos ou tendo objectivos convergentes com a missão do museu e a valorização dos bens e testemunhos patrimoniais que incorpora. Em termos de programação museológica, uma política de exposição deverá ainda ser definida consoante os espaços do museu e a sua envolvente e prever uma adequação evolutiva aos públicos-alvo, tendo em consideração as referências culturais de diferentes grupos de interesse e visitantes. A política de edição do museu, que cabe também à tutela definir e adoptar, deverá estar ligada à de exposição, quer complementando-a, quer compensando, do ponto de vista da divulgação e do acesso de conteúdos e de acervos, o que não é possível ao museu concretizar através da exposição, por variadas razões. Ambas – a política de exposição e a política de edição – devem reflectir a política de educação do museu, ainda que dialecticamente os objectivos desta sejam condicionados pela capacidade de programação e de realização de exposições e de outros produtos de difusão, incluídas portanto as edições do museu. Todas as informações que o museu comunica – sob qualquer forma de apresentação, exposição ou edição – devem ser exactas, cientificamente fundamentadas e objectivas. No que concerne a identificação dos objectos, os museus têm a obrigação não só de tornar acessível uma informação de qualidade sobre a proveniência dos mesmos, como, sempre que possível, de estreitar laços com as respectivas comunidades de origem. Exposição, edição e acção educativa, constituem vias de mediação através das quais o museu cumpre essencialmente o seu papel social, desenvolvendo com os públicos formas específicas de comunicação centrada nos testemunhos submetidos a tratamento museológico. A mediação, que proporciona tanto a satisfação como a criação de novas necessidades dos públicos-alvo a que o museu dirige as suas actividades, faz parte da interacção do museu com a(s) comunidade(s), desde que se reúnam as condições dinâmicas para um prolongado e duradouro encontro de motivações e de interesses. Estes podem não só relacionar-se com questões de preservação de património, natural e cultural, ou de transmissão de memórias, mas também reportar-se a processos criativos, por exemplo nos campos artísticos, da investigação, da inovação tecnológica ou reportados a qualquer outra manifestação cultural. Desde a fundação do ICOM (1948) que o conceito universal de museu se define, evolutivamente, com base na referência essencial da apresentação de colecções ao público. A mais recente actualização do conceito de museu pelo ICOM (adoptada em 2001, em Barcelona) remete para uma sequência relativamente longa de tipos de entidades que lhe são equiparadas, ainda que usando outras denominações e, de facto, revestindo modelos de organização bastante diversificados e proporcionando meios de comunicação também diferenciados, segundo os seus acervos e recursos museográficos. Continua porém a considerar-se essencial a finalidade que tais entidades permanentes ou museus têm em comum: o processo de comunicação com os públicos, baseado nos testemunhos ou acervos que incorporam, sem fins lucrativos e com uma função social e educativa.
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[Graça Filipe]
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As Idades da Vida
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A Quinta da Trindade remonta, pelo menos ao século XV, tendo sido legada em 1481 aos frades trinitários, na posse de quem se manteve até 1834, passando, após esta data, por vários proprietários. Ao longo dos séculos foi, certamente, objecto de várias campanhas de obras, o que não impediu a sua classificação como Imóvel de Interesse Público em 1971 (Dec. n.º 516, de 22 de Novembro). Depois de um período conturbado, entre 1975 e 1982, passou a propriedade municipal, integrando a Divisão de Património Histórico e Natural/Ecomuseu Municipal, acolhendo, a partir daí, progressiva e precariamente, na medida em que não sofreu quaisquer obras de adaptação às novas funções, as Reservas e os Serviços de Arqueologia e de Conservação. O património histórico e artístico do edifício, particularmente a sua colecção de azulejaria, com exemplares dos séculos XVI ao XX e um tecto de madeira policromada do séc. XVIII, não poderá deixar de ser a âncora de um projecto futuro para a sua valorização e reutilização, alicerçado no trabalho de conservação, documentação e investigação entretanto desenvolvido, e conforme ao Programa de A Infância c.1760 (detalhe) Requalificação do EMS, aprovado pela Autarquia em 2001, © EMS/CDI - António Silva, 2003 cujos eixos basilares são a adequada instalação dos serviços técnicos já referidos e a criação de condições de usufruto público do sítio/núcleo museológico, de acesso actualmente condicionado. De acordo com esta filosofia de trabalho, o EMS, por si ou com recurso a colaboradores exteriores, vem promovendo trabalhos parcelares de levantamento, conservação, estudo e difusão do imóvel e do respectivo património integrado, como os que resultaram nas obras mencionadas no nosso último paráA Adolescência c. 1760 © EMS/CDI - António Silva, 1999 grafo e aquele a que se reporta o presente texto de apresentação – O Desejo Original e o Estigma da Cópia. Nicolas Lancret e os Azulejos da Quinta da Trindade, no Seixal, da autoria de Celso Mangucci, cujo interesse extravasa largamente a particularidade da colecção que o despoletou, na medida em que demonstra, como o próprio afirma, a coerência e persistência do uso da L’Adolescence. Nicolas Larmessim, 1735 gravura no contexto da produção © Biblioteca Nacional de França (Paris) azulejar portuguesa.
Conhecer
Colecção de azulejaria da Quinta da Trindade
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Da colecção de azulejos da Quinta da Trindade, faz parte uma série de oito painéis figurativos, executados a azul e branco, em meados do século XVIII (quatro estando aplicados no suporte arquitectónico e os restantes em reserva, sendo a sua proveniência incerta), aparentando ter sido “concebidos para um espaço arquitectónico único, decorado através da utilização de uma mesma moldura com concheados Rococó”, integrável no género “fêtes galantes” (“festas galantes”). As pesquisas de Celso Mangucci permitiram identificar como fonte/modelo iconográfico destas representações uma série de quatro gravuras de Nicolas de Larmessin (1684-1753), reprodução fiel da obra (pintura a óleo) Les Quatre Âges de la Vie, de Nicolas Lancret (1690-1743) – actualmente na National A Velhice c. 1760 (detalhe) Gallery, em Londres – figurando a “Infância”, a © EMS/CDI - António Silva, 1999 “Adolescência”, a “Maturidade” e a “Velhice”. O estudo de Mangucci conclui ainda que As Quatro Idades da Vida, caracterizadas, em descrição coeva pelos respectivos divertimentos – “[…] os jogos da infância, a coquetterie nascente da adolescência, a galanteria da Juventude, e a conversa dos velhos… […]” –, foram aqui reproduzidas com rigor pelo pintor de azulejos, provavelmente um discípulo do mestre Nicolau de Freitas. Para os leitores interessados, informamos que o trabalho aqui brevemente noticiado – O Desejo Original e o Estigma da Cópia. Nicolas Lancret e os Azulejos da Quinta da Trindade, no Seixal, da autoria de Celso Mangucci – pode ser consultado, policopiado, no Centro de Documentação do EMS. Aproveitamos também para referenciar A Juventude c. 1760 (detalhe) duas obras já editadas pela © EMS/CDI - António Silva, 1999 Câmara Municipal do Seixal/Ecomuseu, reportadas ao património e à história da Quinta da Trindade: de Edite Martins Alberto (1999) – A Quinta da Trindade. História da Ordem da Santíssima Trindade no Seixal e de António Celso Mangucci (2003) – Metamorfoses, Ordem e Erudição. A iconografia das pinturas Mitológicas no tecto da Quinta da Trindade. [Ana Luísa Duarte]
O Ecomuseu Municipal do Seixal é museu aderente das Rotas de Cerâmica, participando no Projecto EQUAL – Indústria Cerâmica – Turismo Industrial, Científico e Cultural. Este projecto visa enriquecer e promover a cerâmica em Portugal em todas as suas vertentes e através da acção diversificada de vários actores-chave neste domínio – para além de museus, empresas, autarquias e artesãos enquadrados, ateliês e artesãos individuais, galerias, escolas, centros de formação e outras entidades. A coordenação deste projecto cabe ao CENCAL – Centro de Formação Profissional para a Indústria de Cerâmica, nas Caldas da Rainha – e-mail: jla.silva@cencal.pt.
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A.Silva & Silva 60 anos na indústria e na história local A firma A. Silva & Silva, Lda., hoje denominada A. Silva & Silva – SGPS, S.A., uma das maiores empresas nacionais, nasceu no concelho do Seixal há 60 anos, ligada, fundamentalmente, à indústria das madeiras e da construção civil. Fundada em 8 de Fevereiro de 1943 por iniciativa de José Tavares da Silva, que sonhava tirar um curso ligado à construção civil, juntava ainda, numa sociedade com 30 mil escudos de capital divididos em partes iguais, um irmão daquele, Augusto Tavares da Silva, e um primo, António Augusto de Almeida, antigo operário da Mundet. As raízes da empresa encontram-se numa sociedade existente desde 1932, constituída pelo pai de José Silva e por este, oriundos de Oliveira de Frades, já há uns anos radicados no Seixal e aqui dedicados à construção civil, e que sucederam, ainda na década de 30 do século XX, à empresa J. A. Pereira, de Rio de Moinhos, como proprietários de uma estância de madeiras e de uma drogaria vocacionada para a construção civil, vendendo cimentos, colas, tintas e vernizes, no rés-do-chão de um edifício no Seixal, que viria a ser da Sociedade Timbre Seixalense.
José Tavares da Silva (sócio-fundador) © EMS/CDI - António Silva, 2003
Com o seu desenvolvimento, a empresa necessitou de ampliar as instalações do Outeiro com a compra de mais lotes da Quinta – em 1947, com a compra do segundo lote, já é apresentado um projecto de ampliação das oficinas de serração – tendo modernizado os equipamentos e aumentado a sua capacidade produtiva. Isso é visível pela quantidade de projectos apresentados à Câmara Municipal do Seixal, em finais dos anos 50 e ao longo da década seguinte. E mesmo no ano de 1974, um ano difícil na óptica empresarial, registaram-se vários projectos de expansão industrial. O cresci-
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Manteve-se, no entanto, a estância e a loja do Seixal, aumentando mesmo a sua área com a compra de um armazém anexo em 1944. Este espaço onde nasceu a empresa só viria a ser alienado na década de 70 do século XX. Mas as instalações da Quinta do Outeiro, fronteiras ao rio, e onde ao longo do tempo se foram concentrando, a par das madeiras, os escritórios e a área comercial, é que se foram tornando a face visível da empresa. Ainda hoje, quase três anos volvidos sobre a desactivação da sua componente industrial (que transitou para o Parque Industrial do Seixal) e transferido o departamento comercial para novas instalações, a empresa mantém ali uma loja. «É tradição, as pessoas estão habituadas a vir aqui comprar madeiras e achou-se por bem manter ali aquele ponto de venda.» (Nelson Bordonhos, Director de Recursos Humanos, 46 anos).
Memórias e Quotidianos
As instalações do Seixal não dispunham de espaço e das condições necessárias ao desenvolvimento da empresa e, assim, ainda no ano da sua constituição, a 30 de Setembro, a A. Silva & Silva, Lda. adquiriu a Joaquim Francisco e esposa um lote da Quinta do Outeiro, junto à estrada marginal e contíguo à Quinta da Fidalga, onde iniciou a construção de oficinas de serração e carpintarias mecânicas, inauguradas em Julho de 1945. A carpintaria era, em boa medida, de apoio às obras, com a produção de cofragens, moldes de armações para as ditas obras e para enchimentos em betão (carpintaria de toscos), embora também existisse a carpintaria de limpos (móveis e peças mais especializadas).
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mento é também perceptível, ao longo do tempo, através da ampliação do posto de transformação, para fazer face às crescentes exigências de potência instalada, e da criação de novos espaços para as áreas administrativa e comercial. A firma tinha entretanto expandido a sua actividade industrial a outros sectores relacionados com a construção, como a cerâmica. O sector de construção civil era o verdadeiro motor da empresa, que a levaria a desenvolver-se, com o incremento das construções em que se envolveu, e a ganhar capacidade para concorrer e ganhar concursos para um conjunto vasto de obras públicas. Entre as principais construções da firma contam-se, no Concelho, alguns edifícios na fábrica Mundet do Seixal (nomeadamente o posto da Caixa de Previdência, actual Centro de Saúde do Seixal, com projecto do Arquitecto Conceição e Silva), as secas de bacalhau na Ponta dos Corvos e os depósitos de água de Arrentela e do Seixal, e, no país, o bairro de Alvalade, as fábricas da Ford na Azambuja e da Fisipe no Barreiro, entre outras, a sede do BNU (o conhecido “edifício das guitarras”, em Lisboa), o hospital Garcia de Orta (Almada), hotéis, viadutos, barragens, centrais eléctricas, etc. Cerca de três anos depois da sua fundação, a A. Silva & Silva, Lda. teria entre 150 e 200 trabalhadores só no sector da construção civil. Em 1974, com o desenvolvimento do secAugusto Tavares da Silva (sócio-fundador) tor, a empresa teria entre 4600 e 4700 traba© EMS/CDI - António Silva, 2003 lhadores. «Com carpinteiros... com operários (...) quando estava a construir no Barreiro, estava com quatro mil e seiscentos ou setecentos operários.Aqui [na Quinta do Outeiro e na Quinta das Cavaquinhas], anda à volta dos duzentos ou trezentos, nas secções todas: na secção comercial, na secção de obras, na secção de cerâmica, na secção de ferro...» (José Silva, sócio-fundador da A. Silva & Silva, Lda. , 90 anos). Quanto à produção cerâmica, em 1955 a firma instalou uma fábrica nos terrenos que possuía na Quinta das Cavaquinhas, até então aproveitados para produção agrícola e de cortiça e para criação de vacas. Inicialmente a fábrica dispunha de um forno de cozer “a mato” onde eram fabricados os diferentes produtos, desde tijolo, tijolo burro, tijoleira, telhas, acessórios para as telhas, etc. O processo de fabrico, desde a chegada do barro ao cozimento em forno alimentado a casca de pinheiro, serradura, pó de cortiça e outros combustíveis semelhantes, era quase todo manual, chegando a levar dias para que estivesse concluído. «Chegámos a cozer com dinheiro (...) O dinheiro do Banco de Portugal [notas já fora de circulação] vinha todo (...) dar aqui. (...) chegavam aí camiões com o dinheiro todo cortado às tiras, e [depois de moído] misturava aquilo com o pó e com a caroca e punha a arder.» (Domingos Pio, serralheiro, 67 anos). Ainda em 1955, a firma apresentou um projecto onde se previa a construção de “um edifício principal, destinado à fábrica, onde se situam a zona de máquinas de fabrico, a estufa de secagem artificial, o forno contínuo e os pisos de secagem natural dos produtos cerâmicos”. Este “forno n.º1”, que foi ampliado durante a década de 70 do século XX, substituía o antigo forno existente. Este projecto já contemplava refeitório do pessoal e escritório da fábrica e a ele foram acrescentados, no decorrer do ano de 1956, «uma cabina de transformação de corrente eléctrica, um telheiro para recolha de viaturas, um telheiro para abrigar barro, um anexo com instalações sociais.» Em 1960, a firma solicitou à Câmara Municipal do Seixal, através de requerimento, a
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autorização para a construção de um edifício para ampliação da fábrica de cerâmica. Este edifício, mais a norte e ligado ao primeiro, destinava-se a albergar um novo forno, designado como “forno n.º2”, e uma nova estufa, equipamentos oriundos do estrangeiro. «Aqui em princípio fabricávamos tudo, até telha. Fazíamos toda a qualidade de telha. Acessórios para a telha (...) tijolo para chaminés (...) tijolo burro, vários tamanhos de tijolo, abobadilha, fugas, (...) cheguei a ter aqui cento e tal moldes de tijolo». Quem o lembra é o Sr. Domingos Pio, serralheiro reformado, 67 anos de idade, muitos deles vividos no interior da própria fábrica, onde ainda hoje habita. Filho do homem que José Silva foi buscar à fábrica do Montijo, onde a A. Silva & Silva, Lda. inicialmente ia comprar tijolo, para vir montar e ficar à frente da nova unidade industrial nas Cavaquinhas, trabalhou aqui desde o início – tinha então 18 anos – conhecendo-lhe todos os espaços e a sua história. «A cerâmica deu um grande impulso na firma A. Silva & Silva, Lda. (...) Já não era preciso estar a comprar materiais às outras fábricas, já tinham um produto deles e acho que isso foi uma das coisas principais. (...) já não tiveram medo de meter-se em lado nenhum (...) Fez-se uma grande empresa.» (Domingos Pio). O operariado era constituído essencialmente por trabalhadores do sexo masculino. As operárias existentes na fase inicial de produção de cerâmica tinham como tarefa, por exemplo, o corte da argila em excesso no tijolo burro e nas telhas fabricadas manualmente. Todo o restante trabalho na fábrica – a mistura do barro, as tarefas a realizar nos fornos e nas estufas, onde as condições de trabalho eram árduas – era realizado por operários do sexo masculino. «[O] calor dava cabo do corpo (...) até derretia os ossos (...) o que sofria mais era andar a tirar o tijolo em brasa com luvas (...) mas ao fim de uma hora já não tinha luvas (...) E depois vinham desenfornar cá fora a chover (...) Era trabalhos!... Nem sei se hoje havia homens para isso!» (Domingos Pio). A fábrica foi recebendo sucessivas adaptações dos edifícios já existentes bem como novas construções até à data da sua desactivação. É disso exemplo a construção de novos balneários e refeitórios na década de 60 ou a ampliação dos “armazéns de argila” (armazéns de matéria-prima) na década de 70 do século XX, quando também foi instalado um distribuidor aéreo de barro. Nessa mesma década, a firma decidiu transferir a Serralharia instalada na Quinta do Outeiro para a das Cavaquinhas.As oficinas foram reinstaladas num edifício construído de raiz, denominado “Novas Serralharias”, destinado às oficinas de Serralharia Civil e Mecânica, Decapagem e Metalização e ainda a um armazém de material, uma garagem e estação de serviço. Nele funcionavam também os escritórios, os vestiários, os balneários «que servem o pessoal das Novas Serralharias, e os operários da Cerâmica (masculino e feminino) e Estaleiro de Ferro, cujas actividades se desenrolam perto» e António Augusto de Almeida (sócio-fundador) © EMS/CDI - António Silva, 2003 ainda os refeitórios. No final da década de 80 do século XX, os dois fornos existentes na fábrica de cerâmica foram substituídos por um forno rotativo que permaneceu em funcionamento até à transferência da unidade para o Montijo. A diversidade de produtos fabricados nos primeiros anos de funcionamento da fábrica foi abandonada, permanecendo apenas a produção de tijolo e tijoleira (também denominada abobadilha) em várias medidas. «...a produção andava à volta aí de trinta e tal mil, quarenta mil tijo-
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los por dia. (...) tijolo e abobadilha.» (João Manuel Casaleiro Matos, maquinista-empilhador, 46 anos). A Serralharia Mecânica foi encerrada permanecendo em funcionamento a Serralharia Civil e uma oficina de produtos de alumínio recentemente instalada. Igualmente a fábrica de cerâmica foi desactivada e transferida para o Alto do Estanqueiro – Montijo, onde funciona actualmente, restando na Quinta das Cavaquinhas apenas um escritório para venda e um entreposto. Fruto desta política de deslocalização local ou regional das indústrias para a periferia dos principais centros urbanos, também o sector de madeiras com a serração e as carpintarias foi transferido para o Parque Industrial do Seixal, no limite Sul do Concelho. No Outeiro restam os escritórios centrais, um posto comercial de venda de madeiras e ainda os edifícios das antigas oficinas, com vestígios dos seus equipamentos e das instalações sociais que foram sendo encerradas – os balneários, os refeitórios (que serviam essencialmente para aquecer a comida dos operários), a comissão de trabalhadores e o posto médico (ainda em funcionamento). Na Quinta do Outeiro existia também uma corporação de bombeiros: «...tínhamos um núcleo de trabalhadores com formação e que estavam identificados, quando havia problemas para trabalharem (...) Era uma equipa com alguma preparação e, como havia aí umas mangueiras, uns extintores, eram as pessoas que deviam tratar daquilo.» (Nelson Bordonhos). Também na Quinta das Cavaquinhas a empresa construiu instalações sociais de apoio à actividade fabril. Existem refeitórios, balneários, vestiários e sanitários e posto médico, este último só recentemente instalado, pois os operários das Serralharias e da fábrica de cerâmica usufruíam anteriormente do posto médico existente na Quinta do Outeiro. Foi também preocupação da firma construir casas para os seus empregados. Nos terrenos da fábrica de cerâmica foram construídas habitações, nomeadamente para «pessoal da cerâmica, encarregados, trabalhadores do Norte que às vezes vinham para cá, no início. Depois tornou-se habitação de trabalhadores que andavam nas obras, de obra em obra e que vinham aqui ao fim-de-semana (...) a habitação foi encerrada e já não é utilizada por mais ninguém.» (Nelson Bordonhos). Para os operários, em 1959, é noticiada a iniciativa da firma A. Silva & Silva, Lda. de construir, na Quinta das Cavaquinhas, um bairro de moradias de renda barata.As casas destinavam-se principalmente aos operários da firma mas foram, posteriormente, cedidas para arrendamento e venda a pessoas externas à firma. A estas seguiu-se a construção de novas moradias na década de 60 do século XX. Recentemente, o desenvolvimento da firma e o alargamento das suas áreas de negócios levaram à definição de uma nova orgânica, com a autonomização de sectores e a criação de empresas integradas no Grupo constituído no início da década de 1990, o qual conta actualmente com cerca de 1800 trabalhadores. Mas a actividade-base continua a ser aquela que lhe permitiu crescer e tornar-se uma referência no panorama industrial nacional, cumprindo agora 60 anos de vida. [Carlos Carrasco e Fernanda Ferreira]
Nota: As fotografias reproduzidas foram gentilmente cedidas pela A. Silva & Silva - SGPS, S.A.
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O forno de fundição da Quinta da Trindade Situada nas margens do Tejo, junto à Azinheira, a Quinta da Trindade perdeu gradualmente função agrícola e o uso industrial, aguardando agora o desenvolvimento de um loteamento urbano e a instalação de alguns equipamentos ligados ao desporto e ao lazer. A sua história, contudo, remonta ao século XV, tendo sido explorada pelos frades da Ordem da Santíssima Trindade desde 1488 até à extinção deste tipo de instituições, em 1834, após o que conheceu vários proprietários privados. Em 1908 estava na posse de Manuel Martins Gomes Júnior, que promoveu a instalação na Quinta da Companhia de Agricultura de Portugal (CAP), iniciando em 1920 a edificação de uma primeira fase de armazéns e oficinas destinados à indústria corticeira.
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No final da década seguinte, a CAP integrava já uma fábrica de preparação e transformação de cortiça, com várias oficinas de apoio – forja e fundição manuais, serralharia e oficina de reparação mecânica. No início dos anos 40, assiste-se ao encerramento da CAP, sendo os armazéns, maquinaria e equipamento arrendados a uma unidade corticeira de muito maior dimensão, a Mundet & C.ª, Ldª., que transferiu algumas máquinas para outras instalações, destinando os edifícios da Trindade sobretudo ao depósito de cortiça para as fábricas que detinha em Amora e no Seixal, bem como o armazém de produtos acabados para embarque no cais da Quinta ou através da vizinha estação de caminhos-de-ferro. No final da década de 1950, a Mundet prescindiu do arrendamento do depósito da Trindade, abandonando-se definitivamente os interesses ligados a esta indústria na Quinta. Em 1971, o edifício residencial foi classificado como Imóvel de Interesse Público, e, após um período conturbado de ocupação, o processo de urbanização da zona conduziu a que a área classificada e a sua envolvente imediata fossem cedidas à Câmara Municipal do Seixal, em 1982, para instalação de um núcleo museológico. Consequentemente, a Quinta da Trindade integra hoje a estrutura polinucleada do Ecomuseu Municipal do Seixal, albergando provisoriamente as reservas e os serviços de Arqueologia e de Conservação e Inventário Geral. Estando ainda em fase de planeamento a futura utilização do espaço, no âmbito do Programa de Qualificação e Desenvolvimento do Ecomuseu Municipal do Seixal, a autarquia procedeu a obras pontu-
Património Cultural do Concelho
Forno de Fundição, antes dos trabalhos e após a limpeza da vegetação © EMS/CDI - Cézer Santos, 2002
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ais de reabilitação, principalmente ao nível da cobertura, promovendo também o levantamento arquitectónico do conjunto e a investigação histórica sobre a Quinta, em geral, e os elementos patrimoniais que esta conserva. O referido levantamento iniciou-se pela principal área construída (a antiga zona residencial e as dependências anexas), mas foi posteriormente alargado ao jardim e às construções envolventes, onde se incluem a antiga residência do caseiro, alguns armazéns e as estruturas arruinadas de um pombal e do antigo forno de fundição. Esta última construção encontrava-se em grande parte coberta de vegetação espontânea que dificultava a sua compreensão estrutural e funcional, impedindo também o registo do conjunto (planta, alçados e pormenores construtivos) e a correcta avaliação do seu valor patrimonial e estado de conservação. Justificavam-se, portanto, alguns trabalhos de carácter arqueológico, embora de âmbito limitado, os quais viriam a ser realizados pelo Serviço de Arqueologia do Ecomuseu em Março-Abril de 2002. Perspectivava-se uma intervenção minimalista no espaço, confinada às tarefas de desobstrução e limpeza estritamente necessárias ao registo arquitectónico do forno e, se possível, à sua interpretação construtiva e funcional. Naturalmente, a observação, ainda que limitada, da estratigrafia envolvente poderia complementar os dados documentais e os registos orais de que dispúnhamos para compreender e enquadrar cronologicamente as transformações registadas durante o período de uso. O corte controlado da vegetação revelou uma estrutura praticamente quadrangular (3,5 m x 3,75 m), com cerca de 2,8 m de altura, coberta por abóbada semiesférica de 2,3 m de diâmetro, sobre a qual assentam dois pilares e uma fina parede em tijolo compacto. Ficou evidente o avançado estado de degradação da construção, fragilizada por uma abertura no canto Este, sendo visíveis várias fendas e ameaças de deslocamento.Verificou-se ainda a presença de grande quantidade de entulhos, resultantes de depósito de materiais de desmantelamento de um poço e um tanque localizados a pouca distância e do abatimento parcial do forno. Removidos esses materiais, realizou-se a decapagem cuidada da camada superficial até ao nível de uso do solo, no exterior, ou até ao afloramento de contextos de abandono, no interior, embora as anomalias estruturais e os graves problemas de instabilidade rapidamente obrigassem a suspender os trabalhos arqueológicos, devido à falta de condições mínimas de segurança. Apesar disso, a escavação revelou a presença de dois carris paralelos, em ferro, assentes em chulipas de madeira, que penetravam no interior da construção pela porta já referida. Destinar-se-iam, eventualmente, à deslocação pendular de ou para um forno eléctrico, de modo a facilitar o seu funcionamento, nomeadamente nas operações de vazamento e, posteriormente, de arrefecimento e desmoldagem. No pilar que sobrepõe a abóbada é ainda visível o tubo que recebia os cabos de alimentação de energia eléctrica a partir da central a carvão e do gerador que se sabe ter existido nas instalações corticeiras da Quinta (O Seixalense, de 25 de Maio de 1930, noticia a inauguração de uma central eléctrica privada). Ao nível dos carris, detectaram-se vestígios de um piso em terra batida. O alargamento da zona intervencionada permitiu delimitar um pátio e observar o que resta do monocarril sobre o qual deslizava o portão que lhe dava acesso. No interior desse pátio, de que se desconhece a área total devido a ocorrer um prolongamento para fora da propriedade municipal, situam-se duas plataformas de suporte de equipamentos de apoio à laboração do forno, sabendo-se, por exemplo, que a presença de pequenos guindastes ou outros mecanismos elevatórios era indispensável ao manuseamento de cargas neste tipo de instalações metalúrgicas. A limpeza colocou também a descoberto uma pequena câmara de combustão, cuja planta quadrangular é visível no interior do forno, tendo na sua vertical uma pequena chaminé em tijolo compacto. Estes elementos permitem-nos entrever a presença de dois processos tecnológicos diferentes – um que utiliza como fonte de aquecimento a queima de combustíveis
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sólidos (carvão ou coque) ou líquidos (óleos), outro a circulação de energia eléctrica em resistências. Este último procedimento corresponderá a um segundo momento de utilização da estrutura, uma vez que é evidente ter sido alargada e rematada com materiais construtivos mais modernos (tijolo furado e cimento) a porta de acesso, para permitir a passagem do equipamento que circulava sobre os carris. Uma incursão rápida no interior, limitada à remoção do que restava de lixo e sedimentos soltos, para além do perímetro da câmara de combustão quadrangular, formada com tijolos compactos e bastante pulverulentos, colocou totalmente à vista os carris e as chulipas de madeira em que estes assentavam. Foi possível observar tamDurante os trabalhos arqueológicos bém algumas calhas que poderão ter © EMS/CDI - Jorge Raposo, 2002 integrado o sistema de recepção do metal fundido junto à soleira do forno. De facto, apesar de, no actual estado dos trabalhos, não ser de afastar a hipótese do forno ter utilizado originalmente a técnica do cadinho, a estrutura parece configurar um forno do tipo de revérbero, onde a matéria-prima atinge o ponto de fusão junto à soleira do forno, sem contacto directo com o combustível queimado na fornalha. O aquecimento é obtido por reverberação das chamas que incidem na abóbada de cobertura, antes de se escaparem pela chaminé, depositando-se o metal fundido em pequenas bacias de recolha, de onde era retirado em colheres de ferro revestidas de barro refractário e vazado nos moldes, muito provavelmente de areia. Com as necessárias adaptações tecnológicas, os fornos eléctricos são também do tipo de revérbero, pelo que essa terá sido certamente a técnica utilizada na segunda fase de funcionamento da estrutura. Embora com resultados limitados face aos objectivos inicialmente traçados, devido à existência de riscos evidentes para a integridade física da equipa de campo, pode concluir-se, portanto, que os trabalhos arqueológicos realizados permitiram avançar bastante no reconhecimento da estrutura e na delimitação funcional da sua envolvência. Para além da criação de condições de registo arquitectónico dos elementos preservados e de avaliação cuidada do estado de conservação do conjunto, reconheceram-se claramente dois momentos distintos de funcionamento. Assim, a um forno de cadinho ou revérbero alimentado a combustível sólido ou líquido, construído pela Companhia de Agricultura de Portugal, a partir de 1920, ou já existente para apoio à manutenção de ferramentas ou alfaias agrícolas, sucede a instalação de um forno eléctrico que aproveita a presença da central eléctrica privativa da Quinta. Encerrada a CAP e arrendadas as instalações à Mundet, que aqui se mantém nas décadas de 1940 e 1950, alguns espaços perderam funcionalidade e outros adaptaram-se a usos mais adequados à actividade de transformação e depósito de cortiça. O pequeno forno de fundição, por não ser necessário ou por não estar dimensionado para as novas necessidades (as fontes consultadas permitem constatar que a
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Mundet instalou oficinas de manutenção geral num outro espaço da Quinta), foi abandonado e gradualmente coberto de vegetação e entulhos. Liberto dos elementos que o escondiam, mas também amparavam e protegiam dos agentes naturais, o forno encontra-se agora mais exposto e carente de uma intervenção preventiva urgente, mas acessível ao estudo de materiais e técnicas construtivas, que, a par de fontes documentais e outras, poderão precisar questões cronológicas e de transformação funcional. O futuro desenvolvimento da investigação arqueológica e o estudo dos processos tecnológicos envolvidos serão também fundamentais para a compreensão deste aspecto particular da ocupação recente da Quinta da Trindade. Entretanto, urge definir medidas correctivas que permitam a reabilitação estrutural do forno sem perdas significativas de autenticidade. A Câmara Municipal do Seixal tem assim em andamento a adjudicação a empresa especializada de uma inspecção exaustiva, com levantamento construtivo geral e caracterização da origem, sintomas e natureza das anomalias visíveis, que culminará na apresentação das soluções apropriadas, base indispensável do projecto de execução da reabilitação estrutural a executar posteriormente. Provisoriamente, está prevista a montagem de uma cobertura de protecção para minimizar de imediato a acção dos agentes naturais. [Jorge Raposo]
Edição - Novidade
Cortiça, Património Industrial e Museologia Actas da Conferência Internacional 13-17 Abril 2000 Edição Câmara Municipal do Seixal/Ecomuseu Municipal do Seixal 2003 CD- ROM ISBN: 972-8740-10-7