Revista de Cultura
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Terras d’Água
Terras d’Água REVISTA DE CULTURA DO MUSEU MUNICIPAL DE BENAVENTE
Director Presidente da Câmara Municipal de Benavente Coordenação Editorial Cristina Gonçalves Concepção Gráfica Sandra Figueiras Cristina Gonçalves Execução Gráfica Charana - Artes Gráficas Lda. ISSN - 1645 - 1996 Depósito Legal - 168345/01
Benavente, Outubro 2001
Revista de Cultura
Terras d’Água B e n a v e n t e Nº1 - Outubro de 2001
Sumário Nota de Abertura Comemorações do VIII centenário da doação do Foral de Benavente Actas das 1ª.s Jornadas de História Local Sessão de abertura Percursos Romanos em Benavente, Clementino Amaro Os séculos XVI e XVII, Justino Mendes de Almeida Um passeio pela História de Benavente, Joaquim Veríssimo Serrão O inventário do Arquivo Histórico Municipal, Francisco Correia Área-escola recriou 800 anos do concelho - Escola EB 2, 3 de Duarte Lopes, Inês Gonçalves e Mário J. Silva
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Estudos e reflexões Olaria Romana da Garrocheira, Clementino Amaro A atalaia de Belmonte na fronteira do território da Ordem de Santiago, Cristina Gonçalves e Clementino Amaro Notas históricas sobre a ponte de Benavente, Sandra Ferreira Subsídios para a história da aldeia de Santo Estêvão, Alfredo Betâmio de Almeida Do paleolítico aos nossos dias - a nobreza da caça em Samora Correia, Mário Gonçalves Museus e educação, Leonardo Charréu Uma intervenção de Conservação e Restauro numa peça etnográfica, Carlos Henriques As palavras do Fado - A poética de Carlos Conde, Domingos Lobo Sítio RAMSAR 211 - Reserva Natural do Estuário do Tejo, Ricardo Espírito Santo
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Nota de abertura
Terras d'água constitui talvez a mais simples imagem que identifica esta região e apresenta-se agora, também, como um título que se pretende inspirador para uma publicação periódica, sob a forma de uma revista anual de cultura do município de Benavente. Assumindo, desde logo, uma vertente marcadamente regional, as orientações definidas para a estrutura editorial desta publicação contemplam e privilegiam a multidisciplinaridade, concorrendo para um entendimento, o mais abrangente possível, da realidade desta comunidade. Com efeito, é nosso objectivo criar um espaço onde se possam cruzar múltiplas leituras, no domínio da História, da Antropologia, da Economia, do Ambiente, entre tantas outras. A inovação e um permanente desafio à participação representam igualmente propósitos que orientam esta revista de cultura, no sentido de promover e contribuir para o conhecimento da nossa história local e para a percepção de uma dinâmica que evidencia uma clara identidade regional. Este primeiro número encontra-se formalmente dividido em duas partes, na primeira publicamos as actas das Jornadas de História Local, comemorativas do VIII Centenário da doação do Foral a Benavente, que tiveram lugar em Novembro de 2000 e na segunda parte apresentamos um elenco de oito artigos. As 1ª.s Jornadas de História Local, representaram um momento de reflexão sobre os oito séculos de história deste concelho, onde relevamos as participações do Professor Doutor Justino Mendes de Almeida, do Professor Doutor Veríssimo Serrão, do Dr. Clementino Amaro e do Dr. Francisco Correia. Perante uma assistência participativa que ultrapassou largamente a centena, constituída na sua maior parte por docentes, as comunicações proferidas foram um importante contributo para a divulgação da história de Benavente, desde a ocupação romana neste território até ao século XVIII. Neste dia foi ainda lançado o “Inventário do Arquivo Histórico de Benavente”, trabalho coordenado pelo Dr. Francisco Correia que coloca em destaque a documentação presente neste Arquivo Histórico, enquanto referência no quadro de qualquer investigação de âmbito regional que possa ser realizada. Ainda integrado nesta primeira parte, temos um trabalho que reflecte as actividades desenvolvidas pela comunidade educativa de Benavente no âmbito das comemorações do Foral, denominado “Área-escola recriou 800 anos de história”.
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“A Olaria romana da Garrocheira”, da autoria de Clementino Amaro, integrava-se num projecto mais vasto denominado “A ocupação romana na margem esquerda do Tejo” e resultou de uma campanha arqueológica realizada em 1987. Publicado em 1990 pelo Museu Monográfico de Conímbriga, a importância deste sítio arqueológico do ponto de vista local, justifica a sua publicação nesta revista, embora neste momento este complexo de fornos se encontre coberto no sentido de garantir a sua preservação e conservação. “A atalaia de Belmonte na fronteira dos territórios da Ordem de Santiago”, integra-se num projecto de investigação da responsabilidade de Cristina Gonçalves e Clementino Amaro. A atalaia de Belmonte é uma estrutura militar, construída em taipa, cuja referência documental mais antiga data de 1207 e onde ocorre uma ocupação sistemática até final dos século XVI. Este artigo relativo à ponte de Benavente “Notas Históricas sobre a ponte de Benavente”, resulta duma investigação realizada por Sandra Ferreira no Arquivo Histórico de Benavente e salienta, muito oportunamente, a localização e características de cada uma das pontes que atravessaram o rio Sorraia, nesta vila. Entre a documentação existente num pequeno fundo local existente no Museu Municipal, existe um artigo inédito e manuscrito de Alfredo Betâmio de Almeida relativo à Aldeia de Santo Estêvão, datado de meados do século XX. Neste primeiro número da revista decidimos integrá-lo uma vez que constitui um dos poucos trabalhos existentes sobre Santo Estêvão. Mário Gonçalves, traz-nos como tema a caça, “Do paleolítico aos nossos dias a nobreza, da caça em Samora Correia”, apresentando uma abordagem breve que recorre a diversas fontes históricas, dando ainda um enfoque especial à caça à corrição. A reflexão apresentada por Leonardo Charréu, “Museus, educação e sociedade, uma complementaridade difícil para o tempo pós-moderno” propõe uma análise transversal em torno das múltiplas dependências estabelecidas pelo homem. “Uma intervenção de conservação e restauro numa peça etnográfica”, é o artigo apresentado por Carlos Henriques, onde são enunciados os princípios e a metodologia utilizada no decurso de uma intervenção realizada num carro de bois tradicional da lezíria, o carro lezírão. Domingos Lobo, "As palavras do fado - a poética de Carlos Conde", revela-nos um dos poetas que, formalmente, se propôs renovar o fado a partir do final dos anos 20 do século passado. Na perspectiva do património natural, Ricardo Espírito Santo caracteriza o "Sítio Ramsar 211 - Reserva Natural do Estuário do Tejo", enunciando os diversos critérios definidos internacionalmente para a classificação destas zonas húmidas de particular interesse no âmbito do desenvolvimento sustentável. Cristina Gonçalves
Actas das Jornadas de História Local Comemorações do VIII centenário da doação do Foral de Benavente
Jornadas de
História Local Benavente 17 de Novembro de 2000
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Comemorações dos VIII Centenário da doação do foral de Benavente
Integrados no processo da Reconquista surgiram por todo o território, os concelhos, como resultado das necessidades de povoamento, defesa e organização. Benavente, graças à sua localização privilegiada no contexto das terras do baixo Tejo, facilitando as comunicações entre Lisboa, Santarém e Évora, surge então como o segundo concelho instituído na margem esquerda e quase contemporâneo da fundação da nacionalidade (1143). Com efeito, em 25 de Março de 1200, Pelágio, Mestre da Ordem Militar de Évora, mais tarde designada de Avis, concede Carta de Foral aos "povoadores de Benavente, tanto presentes como futuros", cuja confirmação é feita pelo rei D. Sancho I, em 1200 No entanto, a urgência do povoamento destas terras baixas sujeitas a todos os momentos de transgressão fluvial e determinantes, do ponto de vista estratégico para a consolidação do reino ainda em construção, era já evidente numa directiva emanada pelo próprio rei, no ano de 1199, procurando incentivar a fixação de colonos francos nesta região. O Foral ou Carta de Foral enquanto instrumento jurídico que reconhece e legaliza a capacidade de autonomia dos orgãos colectivos e dos magistrados do concelho concorre, em definitivo, para a fixação de população nesta vila e para o inevitável desenvolvimento de ordem social, político e económico. O Foral de Benavente, à semelhança dos demais forais existentes, contém todas as normas que regulamentam a relação dos seus habitantes entre si e destes com a entidade outorgante, no caso a Ordem Militar de Avis. No conjunto, a partir da análise do documento podemos inferir aspectos relativos à administração da justiça, administração do território, defesa, relações entre grupos sociais, actividades económicas, privilégios e impostos.
Benavente, cumpriu no ano 2000, 800 anos de história. Para o efeito, foi definido um programa para as comemorações do VIII Centenário da Doação do Foral de Benavente, que se pretendeu abrangente no que respeita ao envolvimento de toda a população e ainda na programação apresentada
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Programa 10.00 horas Abertura das Jornadas 10.15 horas Percursos Romanos em Benavente Dr. Clementino Amaro Debate 11.15 horas Os séculos XVI e XVII Prof. Doutor Justino Mendes de Almeida Debate 15.00 horas Um passeio pela História de Benavente Prof. Doutor J. Veríssimo Serrão Debate 16.00 horas - Lançamento da publicação Inventário do Arquivo Histórico de Benavente Dr. Francisco Correia 17.00 horas - Sessão de encerramento 17.30 horas - Porto de honra
Jornadas de
História Local Benavente 17 de Novembro de 2000
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Actas das Jornadas
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Sessão de abertura Presidente da Câmara, António José Ganhão - Ex.mo Senhor Professor Veríssimo Serrão, Ex.mo Senhor Professor Justino Mendes de Almeida, um ilustre conterrâneo, Senhor Dr. Clementino Amaro, primeiro Director do Museu Municipal de Benavente, um homem que conhece bem a nossa terra, Ex.mos participantes nestas Jornadas de História. Cabe-me, enquanto anfitrião, saudar e agradecer a disponibilidade dos oradores que são, quanto a mim, pela sua qualidade e reconhecida competência, a garantia do sucesso destas Jornadas Comemorativas dos 800 anos da atribuição do Foral à Vila de Benavente. Enquanto anfitrião, quero também manifestar a minha alegria pelo facto de ver aqui uma plateia constituída, na sua maioria, por professores das nossas escolas, o que significa a importância que a escola dá à pesquisa e à analise da História local, como contributo para a formação e educação da identidade cultural dos nossos jovens alunos. Muito obrigado, pois, pela vossa participação. Não me vou alargar muito, mas gostaria de deixar uma palavra de felicitação pela ideia de realizar uma iniciativa deste cariz porque, creio, que a comemoração destes 800 anos não podia deixar de ter um momento que significasse realmente a sua importância, a importância de uma vida colectiva de mais de oito séculos e aqui temos, necessariamente, que nos referir à atribuição do foral. Esta nossa história de oito séculos já foi analisada por benaventenses ilustres, recordo a excelente monografia que temos do Professor Álvaro Rodrigues d'Azevedo, completada pelo
Doutor Ruy d'Azevedo, recordo também, neste momento, a importância que teve o grupo de jovens estudantes universitários de Benavente, do qual fizeram parte o Doutor Justino Mendes de Almeida e o Doutor Alfredo Betâmio d'Almeida, e que, com a sua pesquisa, com o seu trabalho enquanto Benaventenses, contribuíram com subsídios importantes para o melhor conhecimento da nossa história local. Eu julgo que na analise e pesquisa destes oitocentos anos de história, nós encontramos um porto seguro, não apenas para a preservação das nossas raízes e da nossa identidade cultural, mas para nos referenciarmos num país, num mundo que se transforma no dia-a-dia em que se vão perdendo valores. É importante ter-mos esta ligação, para que os possamos reconhecer e diferenciar, porque o mundo que se globaliza não pode ser melhor se não tiver, necessariamente, a dimensão cultural das regiões, direi mesmo, das próprias subregiões. E nós somos um povo da lezíria ribatejana, temos aí, nesta ligação à terra, nesta ligação ao sector primário, o fundamental das nossas raízes. Estou certo que não é possível pensar no futuro, aceitar os novos desafios do futuro, sem termos, seguramente, os pés muito bem assentes no passado, do qual nos orgulhamos. Antes de terminar gostaria de pedir a vossa compreensão, sobretudo à Ex.ma mesa, pelo facto de não me ser possível participar e assistir aos trabalhos destas Jornadas, mas tenho compromissos inadiáveis, que resultam da minha actividade enquanto Presidente da Câmara. No entanto, queria aproveitar esta oportunidade para entregar aos ilustres membros que constituem este painel, uma lembrança da Câmara Municipal de Benavente e das Comemorações do Foral.
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Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão - Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Benavente, desta acolhedora vila de Benavente, Senhor Professor António José Ganhão, Ex.mo Senhor Vereador da Cultura, Ex.ma Senhora Directora do Museu Municipal, Dr. Clementino Amaro, meu querido confrade da Academia de História, Senhor Reitor Justino Mendes d'Almeida, Reitor da Universidade Autónoma de Lisboa e Vice-Presidente da Academia Portuguesa da História, o que significa meu companheiro e amigo de todas as horas. Habitantes de Benavente, amigos de Benavente, benaventenses, aqueles que estão nesta sala incluindo os que são professores e os que são alunos. Minhas Senhoras e meus Senhores, as minhas primeiras palavras são para agradecer a acolhida do Senhor Presidente da Câmara, eu já tive o gosto de o conhecer na Academia de História e pude, de facto, comprovar que é uma pessoa distinta na sua maneira de ser, amável no trato. Trás com ele toda a hospitalidade de Benavente, leva-a para Lisboa e para toda a parte, ao mesmo tempo, é aquilo a que nós chamamos uma pessoa de bem, de cultura, é sobretudo um filho da sua terra, um extremoso pela sua terra. Eu não lhes oculto que já não vinha a Benavente há cinco anos, tive que acompanhar três irmãos meus amigos num momento doloroso da sua vida familiar mas, hoje, fiquei maravilhado com o encanto urbanístico de Benavente. É que há muitas terras que crescem, mas crescem anárquicas, é um crescimento desumano que nós não sentimos na alma. Hoje toda esta parte nova, a abertura de ruas, a Domus Municipalis, os Bombeiros, o Centro Cultural, as ruas, tudo isto mostra um progresso que não é apenas oficializado pelo poder central, é um progresso querido, desejado e exigido pelos próprios filhos da terra, tendo à frente o Senhor Presidente da Câmara. De maneira que isto é uma verdade muito séria, Benavente está uma linda terra.
Já lá vai o tempo em que saíamos de Salvaterra passávamos ao lado de Benavente, ou vínhamos aqui ao Solar onde se comia muito bem e se cantava o fado e seguíamos. Hoje vale a pena! Nessa altura Benavente era uma terra pequena, sem toda essa irradiação urbanística que passou a ter. Hoje, Benavente está a valorizar-se consideravelmente no plano da arquitectura civil, jardins, locais de lazer, e até mesmo como local que deseja e estreita os laços de cultura entre os seus próprios habitantes e os que vêm de longe, de maneira que as minhas primeiras palavras são para saudar, também a pessoa do Senhor Presidente. Benavente está hoje a dar cartas, no sentido de uma terra que acompanha o progresso mas ao mesmo tempo que não esquece o seu passado e, outra lição a tirar do nosso encontro, foi o patrocínio que a Câmara da Presidência do Senhor Professor António José Ganhão deu a este colóquio, a esta Jornada cultural destinada a comemorar o VIII Centenário do Foral de Benavente e fazê-lo de uma maneira condigna, com uma larga participação de professores e de pessoas da terra. Foi a Câmara Municipal que idealizou esta Jornada Cultural e que ainda teve a gentileza de fazer com que nós voltemos para Lisboa, ou eu para Santarém, com as mão cheias de coisas lindas. Coisas feitas com muito gosto, foram feitas, de facto, do empenhamento de agradar quem vem até nós, essa é que é a verdadeira hospitalidade. Hoje à tarde na minha conferência vou falar de hospedeiros, cartas de hospedeiros que foram dadas por D. Manuel, aqui, quer dizer que isto já era um local onde se estava bem, onde valia a pena parar e comer e portanto havia hospedeiros régios. Os hospedeiros desse tempo são os hospedeiros de hoje, são aqueles que nos abrem os braços e nos dizem, venham até nós que serão bem recebidos. Isto é uma grande lição no Portugal de hoje, um Portugal que em termos nacionais, patrióticos, não admite fusões, admite distinções pessoais de ideologia, de crenças, de sentimento que são muito legítimas em quem as tem.
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Agora quando se trata de trabalhar para o bem comum, para aquilo que se chama a felicidade colectiva dos habitantes as pessoas, independentemente das suas crenças, dão as suas mãos para honrar as terras, para as enobrecer e para que o governo colectivo seja, de facto, mais feliz. Senhor Presidente, a Academia Portuguesa da História que o Senhor Reitor Justino Mendes de Almeida e eu próprio aqui representamos, está muito feliz de colaborar com este evento comemorativo do VIII Centenário do Foral de Benavente e tudo aquilo que vossa excelência deseje de colaboração com a Academia, envio de livros, também no que diz respeito ao Museu Municipal, temos às vezes livros raros, creio que temos uma 1ª edição de Duarte Lopes e Filippo Pigaffeta, um dia a Academia poderá escolher entre os nossos livros antigos duas ou três dezenas para poderem estar expostos numa Exposição de Livros Antigos da Academia de História, o que é uma maneira de colaborar-mos com Benavente. Estamos muito gratos com a maneira como fomos recebidos pelo Senhor Presidente, uma maneira amável e aberta com que inaugurou o nosso colóquio o que significa começar bem. No fundo, a História de Benavente merece ser conhecida e ser amada e quem melhor a pode conhecer que os Benaventenses e, quem melhor pode expandir o amor que tem pela sua terra que os próprios Benaventenses. Senhor Presidente, o Conselho Académico pediu-me para entregar a V. Ex., para ficar na sua posse, a medalha alusiva à nossa restauração. A Academia foi fundada em 1720 por D. João V, com o nome de Academia Real da História Portuguesa e a Academia no tempo de D. João V teve uma grande auréola,
depois veio D. José I, o Marquês de Pombal era académico mas pouco ajudou a Academia deixando-a extenuar. Mais tarde, a Academia da Ciências, fundada por D. Maria, vibrou o golpe de morte da Academia de História sem esta nunca se extinguir e a Academia de História morreu para muita gente, sem sofrimento. Deixou de existir porque até os seus últimos membros entraram na Academia de Ciências de Lisboa, passou a aglutinar tudo, incluindo a História, mesmo a Academia de História. Até que, em 1936, um Ministro devotado ao sentimento nacional, que foi o Dr. Caio Pacheco, restaurou a Academia e em vez de Academia Real da História Portuguesa passou a ser a Academia Portuguesa de História. Nós somos, portanto, os discípulos herdeiros da Academia Joanina, só fomos restaurados há 63 anos. Quando alguém no país ou no estrangeiro me pergunta: Então a Academia é muito antiga?, eu repondo, 1720, já tem 260 anos, só tivemos um tempo em que adormeceu mas acordou ao fim de 100 anos de adormecida e foi restaurada em 1936. Temos esta medalha que é uma lembrança muito modesta, em relação às bondades que colocou nas nossas mãos, mas entrego-a com muito amor da relação futura que nós queremos estabelecer com Benavente. E não temos melhor embaixador na Academia de História, que um benaventense ilustre que é o Senhor Professor Justino Mendes de Almeida, Reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, um benaventense que ama a sua terra com alma e coração. Presidente da Câmara, António José Ganhão Obrigado.
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Percursos Romanos em Benavente Dr. Clementino Amaro A comunicação oral apresentada no decurso das Jornadas de História Local, em Novembro de 2000, teve como propósito fazer uma abordagem à presença romana no território onde hoje se insere o concelho de Benavente. Do que na altura foi referido, ficaram algumas observações que talvez justifique serem agora registadas. Falar da ocupação romana em Benavente não é tarefa fácil já que até ao momento foram identificados poucos vestígios na região. Fazendo um levantamento sobre o que já foi identificado no terreno e escrito sobre o mesmo, podemos verificar que existem dois importantes pontos de erradiação de vias, a partir de Olisipo (Lisboa), e de Scallabis (Santarém), com percursos que convergem até à capital da Lusitânia, Emerita Augusta (Mérida), (Fig.1). No estudo desenvolvido por Vasco Gil Mantas sobre o "Comércio Marítimo e Sociedade nos Portos Romanos do Tejo e do Sado", apresentado no Seixal em 1991, na planta referente às vias romanas, (Fig.2), ressalta a ausencia de vias na região em análise. Uma das razões poderá estar associada à boa navegabilidade dos rios e ribeiras que atravessam o território (Rio Sorraia e Ribeira de Santo Estevão) na margem esquerda do Tejo, nomeadamente no período romano, o que permitia escoar matérias-primas e produtos por estas vias naturais, como deveria ser o caso com a produção de ânforas na Garrocheira e na Herdade do Rio Frio (Alcochete). Até meados do século XX ainda se transportava parte da produção da região por via fluvial, como o arroz. Vasco Gil Mantas defende que navios de grande calado poderiam subir o Tejo até Ierabriga, na região
hoje de Alenquer. Assim, o aparente vazio de estradas secundárias não é mais do que uma rede viária concebida em perfeita articulação com a rede fluvial oferecida pela região e capaz de proceder à ligação entre as gentes e os produtos. No estudo elaborado pelo professor Jorge de Alarcão sobre a "Identificação das Cidades da Lusitânia", (na obra Les Villes de Lusitanie Romaine, editions du CNRS, 1990), onde se procura identificar 34 civitates, na região em causa, é feita referência a Bardili e a Concordia ambas de localização incerta, (Fig.3). Quanto a Concordia esta poderá situar-se no vale do Sorraia ou ainda na região de Mora ou Lavre. Quanto à primeira, Plínio cita os Turduli qui Bardili ou seja os Túrdulos chamados Bardilos. Atendendo que o Tejo foi uma das vias de penetração destes povos, avança o professor Jorge de Alarcão com a proposta de a localização mais provável dos Bardilos ser junto ao curso inferior do Tejo, hipoteticamente no vale do Sorraia. Ao longo dos tempos têm sido identificados vestígios romanos neste território, recolhidos por pessoas ligadas à vila, outros em resultado de trabalhos pontuais de prospecção de campo. Enquadram-se, na sua maioria, em achados identificáveis com villae, (Monte da Parreira), necrópoles, (Courela das Caveiras), fornos, (Garrocheira) e achados avulsos, mas ainda em número pouco expressivo. Algumas razões que podem levar à escassa identificação de sítios romanos, para além de uma prospecção de campo sistemática, uma delas poderá estar associada a algumas rectificações dos percursos dos rios para controlo das cheias. No período romano o "rio velho" passava muito perto da olaria romana da Garrocheira, agora encontra-se a cerca de quilómetro e meio.
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Será importante fazer-se um trabalho de levantamento dos percursos antigos dos rios, bem como proceder a um estudo atento da cartografia antiga. Outra realidade que caracteriza o Ribatejo é que cerca de 90% do seu território está abaixo da cota de 200 metros, região sujeita assim a cheias constantes, proporcionando grandes depósitos aluviais, situação que contribui para camuflar vestígios arqueológicos, mesmo que seja uma povoação. Uma das estradas que a sul estabeleceria, de alguma forma, ligação com esta região é a que vinha de Montemor-o-Novo até ao Montijo (antiga Aldeia Galega). Subsiste como estrada real a partir do período Medieval. Ainda se encontra transitável dentro da Herdade do Rio Frio, local aliás utilizado por José Saramago no romance Memorial do Convento. Esta estrada passa relativamente perto da olaria romana do Porto dos Cacos. O acesso fluvial aos fornos hoje encontra-se seco, em parte devido a assoreamento. A produção anfórica no vale do Tejo foi até ao momento identificada só na margem esquerda do rio, desde Muge até ao Seixal. No Barreiro, na Quinta da Machada, Cláudio Torres localizou um forno do século XV. Esta situação tem a ver com a presença de barreiros e de floresta na região e de uma rede fluvial acessível, na qual se incluem os vários esteiros que existiam. A vasta produção de ânforas está directamente associada à grande riqueza de peixe da costa e do estuário e à fácil obtenção de sal. Até finais dos anos setenta Troia e o vale do Sado era o limite conhecido de grande produção de preparados de peixe e de molhos. A partir de inícios da década de oitenta dão-se os primeiros achados de núcleos fabris em Cacilhas e Casa dos Bicos (Lisboa). Entretanto nas obras que têm decorrido na Baixa Pombalina permitiram identificar vários centros fabris, um deles musealizado (Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros).
O vale do Tejo, a par do Sado, passa a ser a segunda região conhecida de produção de conservas de peixe em grande escala, tanto a nível do comércio regional como exportando para vastos domínios do império romano. A importância económica do baixo Tejo, para além da exploração das matas e dos barreiros, tem o gado cavalar e alguns olivais. O cavalo Lusitano é várias vezes referido na literatura clássica e está representado em alguns mosaicos, dadas as suas qualidades excepcionais. A caça deveria ser igualmente uma importante actividade que se prolongou por toda a Idade Média e Moderna, com a vinda da corte para os palácios de Salvaterra de Magos e Almeirim. A chamada "Outra Banda" nunca foi vista no sentido de divórcio, mas sim de complementaridade entre as duas margens. De um lado os solos basálticos proporcinam a produção de cereais, vinha, o olival e árvores de fruto. A terra "áspera" por sua vez, proporcina a charneca e tudo o que dela se explora. Um dos recursos da região que começa a ser insuficiente, a partir do século XVII, para as necessidades de Lisboa, é a lenha e o carvão. Daí a iniciativa do Marquês de Pombal em instalar a fábrica de vidros na Marinha Grande, substituindo a de Coina. Neste momento assistimos à destruição de grandes áreas de mata, nomeadamente na região de Palmela. Num país com áreas urbanizáveis para cerca de 28 milhões de habitantes, quando estamos à beira dos 10 milhões, a dispersão de construção, - quando se deveria redimensionar as áreas a urbanizar -, destruindo irremediavelmente importantes áreas rurais, é algo de, pelo menos, preocupante. Uma das tarefas que competiam às autarquias era zelar pela limpeza dos rios e das valas, para minimizar o efeito das cheias. Assim, a Câmara de Benavente precisou de realizar dinheiro para esta tarefa, como consta em documento que se passa a transcrever:
Terras d’Água “Manda El-Rei, pela Secretaria de Estado dos Negócios do Ministério do Reino, 3ª Repartição, que a Câmara de Benavente faça entregar no cofre das Fábricas em Vila Franca de Xira, e pôr à disposição do Provedor das Lezírias a quantia de três contos e quarenta mil reis que se acham no cofre da referida Câmara proveniente do desbaste da Mata da Garrocheira, cujos fundos devem ser aplicados em benefício da agricultura de Coruche e Benavente livrando os campos, pela abertura do Vau de Gravulho, das inundações a que estão sujeitos, tudo na conformidade das ordens do Soberano Congresso, e parecer da Comissão de Agricultura datado de 29 de Março do ano próximo passado; devendo a mesma Câmara dar parte por esta Secretaria de Estado, de assim o haver cumprido. Palácio de Queluz em 23 de Setembro de 1822. (Segue assinatura)". Passando-se à fase do debate, foi posta a questão, pelo Professor Veríssimo Serrão, por onde passaria a estrada entre Évora e Santarém. Dado o deserto epigráfico que caracteriza a margem sul do Tejo até Alcácer do Sal (expressão do colega José Cardim Ribeiro) e a falta de marcos miliários e outros vestígios, parece-nos que a referida via passasse a norte da região aqui abordada. O Professor Veríssimo Serrão referíu ainda as variações de percurso do Tejo e a sua descrição feita por Damião de Gois, no século XVI, com zonas hoje agrícolas ou de pecuária e que na altura eram zonas de rio, com maior caudal portanto, e que chegou a "beijar" os degraus do Paço de Almeirim. A intervenção do Professor José d'Encarnação refere igualmente o papel de complementaridade entre a margem esquerda e direita do Tejo. Daqui sai o sal, madeira, barreiros e do outro lado o olival e as vinhas. Referíu a preocupação actual do presidente da autarquia de Oeiras, do ponto de vista urbanístico, em plantar oliveiras, recuperadas no Alqueva, nas rotundas
e noutros espaços verdes, uma das antigas riquezas do concelho. Quanto às estradas, adianta que enquanto na margem direita facilmente se rasgam vias, aqui na margem esquerda, andar-se-ia de barco. A falta de inscrições passa também pela falta de matéria-prima para as fazer. Os fornos da Garrocheira laboram até ao século III. As olarias mais perto da foz do rio desenvolvem-se a partir daquela data. Os cavalos têm grande importância durante todo o império. Por sua vez o circo de Lisboa, onde terão corrido cavalos desta região, é construído por finais do século III. E o Professor José d'Encarnação conclui, dizendo: "Nos séculos I-II as pessoas que aqui estavam não viviam para aqui, viviam para exportar, para mandar produtos para Itália, para o sul da Gália, eventualmente até ao norte de África. A partir do século III, com aquilo que se costuma dizer "a crise do século III", que é crise sim mas na Península Itálica, não há crise nenhuma no actual território português. No território da Península Ibérica nós vemos um ritmo de crescimento…de tal maneira que há, de facto, cidades que querem os seus símbolos (como o circo de Lisboa). No século III já não havia o hábito de fazer inscrições, infelizmente para nós porque acabamos por não saber quem eram as pessoas que aqui habitavam. Estamos convictos, por uma ou duas inscrições encontradas nos arredores do local a que o Doutor Justino Mendes de Almeida se referiu, que se referem a Olisiponenses. Portanto esta zona está muito dependente de Lisboa. Vive do comércio com Lisboa. No entanto, é um desafio final que faço. Nesses fornos (Garrocheira) cada vez mais vamos encontrar, não digo marcas de oleiros, mas provavelmente grafismos. Esses sim, podem-nos dar alguma informação sobre quem era efectivamente a população deste local.”
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Fig.1 - Localização e principais vias de comunicação das cidades marítimas lusitanas, segundo Vasco Gil Mantas
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Fig.2 - As principais vias romanas dos estuários do Tejo e Sado, segundo Vasco Gil Mantas
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Fig.3 - Carta das civitates da Lusit창nia, segundo Jorge de Alarc찾o
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Os séculos XVI e XVII Professor Doutor Justino Mendes de Almeida Não se trata propriamente de fazer uma história da vida durante esse período, porque falta a documentação, mas sim de apresentar alguns tópicos históricos que possibilitem a sua caracterização. Quando digo que falta a documentação, não quero significar que não exista, mas que não está ainda à minha disposição. A documentação que tem vindo a ser publicada, ou pelo menos referenciada, com o patrocínio da Câmara Municipal, permitirá que alguém se abalance a redigir uma história desta vila, já que, como é natural, o estudo histórico-descritivo de Álvaro Rodrigues de Azevedo, continuado por Ruy de Azevedo, sendo excelente para a época em que foi redigido os especialistas consideram-no um dos três melhores trabalhos monográficos publicados (os outros dois são as monografias de Sintra e Monte Real, por João Martins da Silva Marques e Manuel Heleno) o estudo histórico-descritivo por Álvaro Rodrigues de Azevedo, dizia, carece de actualização, não obstante as anotações que lhe aditou na reedição feita em 1981 o Dr. Alfredo Betâmio de Almeida. Apresentaremos assim uma série de quadros ilustradores de Benavente quinhentista e seiscentista, e logo depois algumas conclusões. 1. A grande figura histórica de Benavente no século XVI é sem dúvida Duarte Lopes. É certo que a sua actuação foi longe daqui, situa-se no Congo; mas daqui partiu e foi com ele que o nome da sua terra chegou mais longe.
Duarte Lopes mereceu a atenção de alguns dos melhores historiadores portugueses: foi primeiro Manuel Lopes de Almeida, da Faculdade de Letras de Coimbra, e depois Manuel Heleno, da Faculdade de Letras de Lisboa. Recentemente, um ilustre geógrafo, Ilídio do Amaral, dedicou-lhe um profundo estudo, na reedição da Relação do Reino de Congo, em boa hora promovida pela Câmara Municipal de Benavente, nas comemorações, que decorrem, dos 800 anos da concessão do foral à Vila. O Município tem perfeita noção dos valores históricos de Benavente e não quis por isso deixar passar este aniversário sem recordar uma das suas figuras mais representativas. Na falta de documentação local que refira directamente o nome de Duarte Lopes, fê-lo da forma mais significativa, através da publicação de um texto que, tendo corrido em versão italiana, e sob autoria de escritor italiano, deve ser atribuído ao seu verdadeiro autor ou relator, que foi o benaventense Duarte Lopes. Ocupei-me já deste assunto, mas nunca é de mais repeti-lo, quando se trata de restituir uma obra ao seu verdadeiro autor e de o colocar no devido lugar, que por direito próprio lhe pertence, na historiografia dos descobrimentos e da colonização portuguesa quinhentista. Quem foi Duarte Lopes ? O que é a Relatione del Reame di Congo et delle Circonvicine Contrade ou Relação do Reino de Congo e das Terras Circunvizinhas ?
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Os estudos sobre Duarte Lopes foram iniciados por dois professores de História: o Doutor Manuel Heleno, da Universidade de Lisboa, e o Doutor Manuel Lopes de Almeida, da Universidade de Coimbra. Com isto não esqueço as contribuições de outros estudiosos portugueses como António de Saldanha da Gama, D. José de Lacerda, Fr. Francisco de S. Luís, Serpa Pinto, o Visconde de Santarém, Luciano Cordeiro, Manuel de Oliveira Ramos, Ernesto de Vasconcelos, Fortunato de Almeida e, recentemente, Fr. Francisco Leite de Faria no seu trabalho Ecos Literários e Impacto Cultural dos Descobrimentos Portugueses no Atlântico. Mais recentemente ainda, como geógrafo, o estudo introdutório do Prof. Ilídio do Amaral na reimpressão da Relação do Reino de Congo. Mas é ao Doutor Lopes de Almeida, também, como Duarte Lopes, benaventense, que se devem os mais profundos e extensos trabalhos, apresentados no vol. III, nºs. 8-10, 1927, da revista Biblos, na dissertação de licenciatura em Ciências Histórico-Geográficas apresentada em Setembro de 1929 à Faculdade de Letras de Coimbra (trabalho dedicado a Dom Manuel Gonçalves Cerejeira e que está inédito) e em artigo publicado em 1936 no opúsculo BENAVENTE: Exposição-Feira do Distrito de Santarém. Sobretudo no que respeita a Duarte Lopes, cidadão benaventense. As palavras do Prof. Manuel de Oliveira Ramos: "Duarte Lopes o nome mais representativo do nosso trabalho de exploração no século XVI em África”, seria estímulo bastante para que um benaventense de brios, e para mais com assinalada vocação para os estudos históricos, procurasse averiguar mais algumas informações que completassem os dados escassos
oferecidos por Barbosa Machado na Biblioteca Lusitana, e natural seria que o fizesse percorrendo os arquivos, oficiais e particulares de Benavente, em busca de novos elementos relativos a Duarte Lopes e à sua família, alargando a investigação à história de Benavente no século XVI. Assim procedeu o Prof. Lopes de Almeida. Percorreu o Tombo do Concelho desta Villa de Benavente (1574); o Tombo da Igreja Matriz de Benavente (15441876); o Livro dos acordos e Regim.tº do Sñor Santo Espritu desta villa de benavte ho qual mandou fazer Fr.cº Gllz caval.rº e provedor dos espritaes e capellas do almoxarifado de Setuvaal (1527-1564); e o Tombo do Hospital do Espírito Santo (1499), documentação a que recorreram igualmente Álvaro Rodrigues d'Azevedo e Ruy d'Azevedo para elaboração da sua monografia Benavente Estudo Histórico-Descritivo. As conclusões a que chegou foram as seguintes: Entre as famílias gradas que durante os sécs. XV, XVI e XVII tiveram assento e representação em Benavente, sobre as quais os documentos dos arquivos locais informam largamente, não é das menos ilustres a que usou o apelido Lopes. Alguns dos seus membros, clérigos e seculares, exerceram naquele tempo as magistraturas que maior honra e lustre podiam comportar. Gente de posses, senhores de bens de raiz, lavradores como a maior parte dos principais da terra, o seu nome anda ligado àquelas instituições que, para servir o comum, requeriam dos mandatários honra, devoção e inteligência.
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À história da terra anda intimamente ligada a história dos seus institutos de benemerência pública, contando-se entre os mais antigos, que se sabe terem existido na vila, a Confraria do Espírito Santo, com a sua origem no século XIII, e a que veio suceder a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia em 1560, fundada pelos confrades da primeira e com igual finalidade: assistência social, sobretudo hospitalização de enfermos pobres. É nestas instituições, principalmente na Misericórdia, que a família Lopes tem uma acção relevante. Assim, Ruy Lopes, lavrador, almoxarife do mestre de Avis, Dom Jorge de Lencastre, em 1536, e mordormo do Hospital em 1537, é quem põe em linguagem o compromisso latino da velha Confraria do Espírito Santo, no ano de 1544, "por ordem do visitador eclesiástico, mestre Gaspar". Em 21 de Dezembro de 1560 instituiu-se a Confraria e Irmandade da Misericórdia, tendo-se inscrito logo, como seus irmãos fundadores, quarenta e três pessoas de todas as classes sociais. Em seguida, a nova Irmandade tratou de eleger provedor e seus eleitores que organizaram uma lista de doze nomes, seis nobres ou de maior condição, e seis de mecânicos, para manter igualdade no serviço. Como mordomo de fora, saiu eleito Gonçalo Lopes, entre os restantes vogais da Mesa Administrativa, Amrique Lopes, Cosme Lopes e Simão Lopes, todos de maior condição. Em Fevereiro de 1561, era prior da matriz e irmão da Misericórdia o Dr. Dom Braz Lopes. Esta família Lopes não deixa mais de estar ligada à vida da Misericórdia de Benavente, quase sempre na gestão dos seus negócios, algumas vezes legando-lhe os seus bens. No ano de
1615, é eleito provedor da Santa Casa Frei Fernão Lopes, o qual, por seus grandes merecimentos e virtudes, foi digno de ser reeleito no ano de 1639; e em 1668, Francisca Lopes, a "Pespeneca", lega à Misericórdia todos os seus bens, constituídos por grandes valores em dinheiro e ainda "as estalagens e casas de sobrado e terreas com seus quintaes no beco dos asucres e forno da prassa". A esta família pertenceu Duarte Lopes, homem que tanto a ilustraria. Documento que dig a particularmente respeito ao explorador quinhentista, em arquivos de Benavente, ainda se não encontrou, o que facilmente se explica, se considerarmos que a maior parte da sua vida decorreu fora da sua terra natal. Se já havia registos paroquiais locais ao tempo, o que a investigação ainda não revelou, poderia ao menos conhecer-se a data do nascimento e o nome dos seus mais próximos parentes, e avaliar que educação lhe poderiam ter dado. Era ele homem muito culto certamente, como se deduz da Relação ditada ao italiano Filippo Pigafetta: põem-se aí problemas que só um homem servido por uma boa cultura e esclarecida inteligência podia abordar. A sua família, constituída embora na maior parte por lavradores, contou muitos letrados entre os seus membros, e foram talvez estes que prepararam a atmosfera familiar em que se desenvolveu a inteligência e a agudeza crítica de Duarte Lopes. 2. Filippo Pigafetta, ao iniciar a versão italiana da Relação do Reino de Congo (se, antes desta, terá havido uma primeira redacção portuguesa, devida ao próprio Duarte Lopes, é um problema bibliográfico já levantado, mas ainda não dilucidado), apresenta-nos dados biográficos muito importantes de Duarte Lopes:
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"No ano de 1578, em que se embarcou Dom Sebastião, Rei de Portugal, para conquista do Reino de Marrocos, Duarte Lopes, natural de Benavente, terra de 24 milhas distante de Lisboa, na margem austral do rio Tejo, navegou também, no mês de Abril, para o porto de Luanda, sito no reino de Congo, em uma nau, chamada Santo António, pertencente a um seu tio, carregada de mercadorias diversas para aquele Reino; e foi seguida de um patacho (que é um navio pequeno), ao qual deu de contínuo boa conserva, prestando-lhe auxílio e guiando-o com os lumes de noite, a fim que não se apartasse do rumo que ela levava.” Na dedicatória da obra ao "muito ilustre e reverendíssimo Monsenhor António Migliore, bispo de São Marcos e comendador do Santo Espírito", já Pigafetta nos informara que Duarte Lopes (que o Prof. Luís de Albuquerque diz ser de ascendência judaica) vivera no Reino do Congo cerca de doze anos e lhe transmitira a Relação em português, que ele, Pigafetta, de imediato trasladava para italiano. Acrescenta que "a notícia das cousas neste livro contidas é peregrina e conveniente a homens de estado e de grande engenho, e a filósofos e geógrafos". Após a estada em África, Duarte Lopes vem à Europa enviado pelo rei do Congo, D. Álvaro I, para o representar junto do rei de Portugal e do papa Sixto V, e é por esta embaixada que conhece em Roma Pigafetta, a quem transmite a sua relação; se não fora este facto, talvez desconhecêssemos hoje tudo quanto Duarte Lopes viu em África, e não o contaríamos como primeiro grande explorador daquele continente. Assentes definitivamente os Portugueses no Congo, e movido o soberano daquele reino do piedoso propósito de não deixar perder ali o Cristianismo, desejando ainda que os seus povos atingissem um grau
de maior civilização, deliberou enviar um novo embaixador à Europa. Concorrendo alguns Senhores àquela honra, o rei, a fim de não desagradar a nenhum, elegeu Duarte Lopes molto prattico delle cose que se encontrava então naquela corte. Expedido com o favor e benevolência régia, com amplas informações por escrito do que havia a tratar junto do rei de Portugal e de Sua Santidade, trazia cartas de credencial e autoridade, salvo-conduto e isenções, e todos os privilégios como convinha a um embaixador. Assim, deveria apresentar as cartas ao rei D. Filipe, narrando-lhe o estado religioso em que se encontrava o reino do Congo, em virtude de dissenções internas e, sobretudo, pela falta de religiosos evangelizadores; que lhe pedisse confessores e pregadores bastantes para que o Evangelho se mantivesse naquelas remotíssimas regiões. Além disso, devia apresentar-lhe diversas amostras dos metais existentes no país, e oferecer-lhe, em seu nome, o tráfico livre do minério por todos os seus antecessores até então denegado. Semelhantemente, ao Papa beijasse os pés de sua parte, e lhe apresentasse também as cartas que relatavam os miseráveis trabalhos e grande detrimento que havia sofrido o seu povo na fé cristã, recomendando a Sua Santidade que, como Pai universal de todos os cristãos, tivesse compaixão de tantos fiéis, os quais, pela falta de sacerdotes que os ilustrassem na santa Fé e lhes administrassem os Sacramentos da Igreja, pouco a pouco se iam perdendo. Despachado com esta missão, partiu da corte, e andou em vários serviços do Rei, entretendo-se ainda naquelas regiões cerca de oito meses, ao fim do que, em Janeiro, se embarcou numa nau de 100 toneladas que se dirigia com a sua carga para Lisboa.
Terras d’Água Começam aqui as desventuras da viagem, que o tempo de que disponho não permite descrever, até que enfim Duarte Lopes é acolhido benignamente por Filipe II, em Sevilha, mas, dificuldades surgidas em consequência da morte do rei do Congo, que o enviara, e porque Filipe II se ocupava exclusivamente da guerra com a Inglaterra, goraram-se as conversações. É então que se encaminha para Roma, a fim de expor ao papa Sixto V a súmula da sua embaixada, para não postergar a intenção daquele rei que o havia enviado. Acolhido com satisfação pelo Papa, a quem narrou o estado miserável em que se encontravam os povos cristãos do reino do Congo, a decadência sofrida no culto e serviço de Deus pelo diminuto número de sacerdotes que ministrassem os Sacramentos da Igreja, pedia insistentemente missionários que baptizassem e confessassem, tendo em vista que aquelas inumeráveis gentes estavam dispostas a receber a semente de vida, e respeitosamente os acolheriam. O rei do Congo animosamente se propunha também edificar uma casa, na qual houvesse mestres para o serviço divino e conjuntamente ensinassem aos jovens do país as línguas cultas e as artes liberais, a doutrina e os mistérios da religião, preparando assim homens doutos e ânimos vigilantes que espalhassem e fortalecessem a Fé. E ainda um hospital, que fosse o recurso e albergue dos pobres e também dos estrangeiros e navegantes, para aí encontrarem toda a classe de medicamentos, hospedagem e restauro de suas necessidades. Com tais propósitos, chegou a Roma Duarte Lopes, e só esperava de Sua Santidade a licença para formar aquele seminário e hospital, suplicando-lhe ainda concedesse jubileus e indulgências, que tais obras salutíferas convêm em todos os países cristãos, em especial naqueles tão remotos. Escutado com interesse, foi-lhe certificado, porém, que, pertencendo o reino do Congo ao rei de Espanha,
a este devia dirigir-se. É por esta ocasião que Duarte Lopes dita a Pigafetta, por ordem de António Migliore, a sua Relação do Reino de Congo, em Maio do ano de 1589. Duarte Lopes promete voltar o mais cedo possível, e então informará mais detidamente. E parte para o Congo. Desde então, não mais se ouviu falar dele, e só a Relação de Reino Congo ficou para nos dizer que o homem que tão claramente soube informar sobre as coisas africanas não era um aventureiro, mas um explorador capacíssimo, daqueles que sentiam em si a demoníaca paixão de tudo desvendar, na frase de Egon Friedell. 3. Das edições e traduções da Relatione del Reame di Congo quem melhor nos informa é o nosso ilustre confrade Frei Francisco Leite de Faria, no trabalho que já mencionei: "Em 1591 publicou-se em Roma a "Relatione del Reame di Congo et dellle Circonvicine Contrade", isto é, a "Relação do Reino de Congo e das Regiões Limítrofes", redigida pelo italiano Filippo Pigafetta e tirada dos escritos e considerações verbais do português Duarte Lopes, que como embaixador do rei do Congo tinha chegado a Roma. Esse livro, adornado com mapas e gravuras, descreve o Congo e relata a sua história, narrando como foi descoberto pelos Portugueses, que convertem os seus chefes à Fé Católica. Em 1728 e 1753 essa primeira edição em italiano reeditou-se em Veneza; a tradução holandesa apareceu em 1596 e teve as reedições de 1650, 1658, 1706, sem indicação do ano, e 1727; em 1597 publicouse em alemão, língua em que teve as reedições de 1609, a abreviada de 1628 e a de 1791 e no mesmo de 1597 também se publicou em inglês, língua em que (se) reeditou abreviadamente em 1625 e 1905 na colectânea de Purchas e integralmente em 1745, 1747, 1752 e 1881.
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Em 1598 publicou-se em latim e em 1624 reeditou-se nessa língua. Em francês só se publicou em 1883, 1963 e 1965 na Bélgica, e a tradução portuguesa apareceu em 1951, feita por Rosa Capeans, que em 1949 tinha publicado a edição fac-similar da italiana de 1591. Acabo de indicar, em diversas línguas, 27 edições da relação sobre o Congo escrita por Duarte Lopes e Filippo Pigafetta, o que mostra ter tido essa obra, que se refere ao descobrimento do Congo pelos portugueses, apreciável eco literário e impacto cultural." A Relação do Reino de Congo é um documento do mais alto interesse para a História da Colonização Portuguesa, e a sua vulgarização em toda a Europa prova quanto a matéria dela era desconhecida então. O seu objecto é tudo quanto deve entrar na história natural e na história civil dum país. Há nela a notícia circunstanciada do curso do Nilo, dos limites do Congo e suas províncias, a história política do país, o problema do tráfico e negócios com os naturais, dos quais dá uma larga e viva descrição: seus costumes, ritos e armas singulares e estranhas. Possuem marfim e ferro em abundância, alguns entregam-se à antropofagia, e a sua língua é dificilmente assimilável. A supremacia dos Portugueses era tão grande naquele Reino, que os príncipes do Congo tinham não só tomado os nomes portugueses e os títulos das diversas jerarquias da nobreza de Portugal, mas até os principais senhores tinham adoptado o vestuário português, e as mulheres do país imitavam mesmo os usos das mulheres de Lisboa. Na Relação se declara que antes da entrada e estabelecimento dos Portugueses os habitantes não tinham a menor ideia da arte de escrever. Foram estes que ali a introduziram. Durante as suas viagens pelo interior, encontrou Duarte Lopes alguns fortes construídos pelos Portugueses, e refere que cada um dos Sobas, ou Senhores, pagava um tributo a el-rei de Portugal. Mas, foram sobretudo os
problemas de ordem geográfica que mais interessaram a Europa culta do tempo, pois a toda a hora os conhecimentos geográficos se renovavam. A obra desafia ainda hoje os estudiosos do conhecimento de África no séc. XVI, pois das variadas matérias de que se ocupa apenas duas foram especificamente estudadas, tanto quanto sei: o problema do Nilo visto por Duarte Lopes, objecto de um estudo inédito do Prof. Lopes de Almeida; e a matéria médica do Congo, tema de uma comunicação apresentada ao Primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial pela Drª Rosa Capeans. Isto sem esquecer os trabalhos parcelares do Prof. Manuel Heleno. Seria ainda interessante determinar na Relação do Reino de Congo (se é que ainda se não fez!) a parte que é propriamente de Duarte Lopes e aquela que é da exclusiva autoria de Filippo Pigafetta. Requeria-se isto numa boa edição crítica em que os resultados das suas explorações fossem metodicamente comparados aos das viagens dos grandes exploradores estrangeiros que se lhe seguiram, devidamente esclarecidos pelas cartas portuguesas ou de viagens portuguesas desse tempo. 4. As revelações de Duarte Lopes não causaram em Portugal tanta sensação como no resto da Europa, o que explica o silêncio feito à sua volta e até o esquecimento. É que essas revelações não representavam alto grau de novidade para os Portugueses, habituados como estávamos a frequentes contactos com as costas e o interior de África, possuindo dessas regiões fartas notícias e conhecimentos. Algumas informações de Duarte Lopes foram até impugnadas, em particular por Frei João dos Santos, na sua Etiópia Oriental, em consequência de referências fantásticas que na Relação se lêem, como a existência das Amazonas e de "outras muitas cousas que não há nas ditas terras".
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Mas isto pode bem ter sido obra do redactor italiano, que afeiçoou e amplificou "a primitica relação, introduzindo alguma coisa que pudesse seduzir o interesse dos contemporâneos, mais solicitado pelo elemento fantástico da narração do que pela certeza dos descobrimentos expressos". Não obstante a existência de um grupo contestatário do valor da Relação grupo não numeroso e, a meu ver, menos esclarecido -, esta tem sido considerada pelos especialistas, como Léon Cahun, e continua a ser, uma fonte preciosa para o conhecimento da África pelos Europeus. Quando em tempos intentei organizar um catálogo circunstanciado dos escritores de Benavente, logo pensei começar por Duarte Lopes. Mas foi Duarte Lopes, o primeiro conhecedor do Congo, onde viveu cerca de 12 anos, também um escritor? Sem dúvida, e temos disso provas irrefutáveis, ainda que não conheçamos, até hoje, directamente, os seus textos. Um testemunho autêntico da existência de escritos de Duarte Lopes é-nos dado pelo italiano Filippo Pigafetta, na obra Relatione del Reame di Congo et delle Circonvicine Contrade, impressa em Roma em 1591 e traduzida para português pela Drª. Rosa Capeans, republicada há pouco pela Câmara da nossa terra. Logo no título se declara: Relação do Reino de Congo e das Terras Circunvizinhas, "tirada dos escritos e discursos de Duarte Lopes, português". Há ainda na obra de Pigafetta outros passos interessantes, que convém lembrar: Pág. 18: "No ano de 1578, em que se embarcou Dom
Sebastião, rei de Portugal, para a conquista do reino de Marrocos, Duarte Lopes, natural de Benavente, terra 24 milhas distante de Lisboa, na margem austral do rio Tejo, navegou também, no mês de Abril, para o porto de Luanda, sito no reino de Congo, em uma nau chamada Santo António, pertencente a um seu tio, carregada de mercadorias diversas para aquele reino…” Pág. 155: "Sendo feitas estas Relações e Tábuas principalmente para representarem o reino de Congo, e não se podendo conseguir isso bem na Tábua Geral de África, que o Senhor Duarte tinha trazido daquelas comarcas…" Pág. 160… "Até agora, ninguém tem representado tão bem, no desenho, a África, o Cabo de Boa Esperança, os lagos do Nilo e os montes de onde desce, e os reinos do Preste João e de Congo, como o Senhor nosso Duarte, com a sua grande carta…" "Glória autêntica da acção portuguesa ultramarina, Duarte Lopes deixou-nos uma contribuição famosa para o conhecimento do continente africano, e o seu nome deve ser inscrito como um dos de maior relevo da história desse continente." Praticamente tudo o que se sabe acerca de Duarte Lopes é o que nos transmite o italiano Pigafetta. Seria, pois, necessário prosseguir em bibliotecas e arquivos, portugueses e estrangeiros, a busca de mais informações acerca deste Homem notável, pioneiro no conhecimento directo das terras do Congo e das suas populações.
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Duarte Lopes e os seus trabalhos alcançaram projecção europeia no século de Quinhentos. Agora, que tanto se fala da integração de Portugal na Europa, vem a propósito recordar esse Português ilustre, que levou tão longe e elevou tão alto o nome de Benavente. Por tudo isto, decidimos abrir a galeria dos Escritores de Benavente, com o nome de Duarte Lopes, figura cimeira de Benavente quinhentista. Fui, talvez, demasiado longo. Que esta minha intervenção tenha apenas o significado de uma dupla homenagem: ao valor e à coragem do infatigável pioneiro, explorador sertanejo do Congo, e ao historiador, que foi Presidente da nossa Academia e Benaventense ilustre, a quem se devem os primeiros estudos, ainda por prosseguir, sobre a Epopeia não receemos o termo! Desse barão assinalado: Duarte Lopes. 5 . Um segundo quadro, este dramático, diz respeito ao terramoto que em 26 de Janeiro de 1531 destruiu a vila. Há, a este propósito, o relato de uma testemunha de origem espanhola, já publicado, enviado ao Marquês de Tarifa, no qual se refere que houve mortes em Benavente e o facto singular de que se encontrava aposentado no paço o rei D. João III, que dali partiu para Alhos Vedros. Era o paço mestral da Ordem de Avis, em tempos do administrador ou mestre da Ordem, D. Jorge de Lencastre, tio de D. João III.
A testemunha espanhola diz mais que "isto é comum em todo o Reino, especialmente nas partes marginais do Tejo, onde o dano é muito grande". Ficamos assim a saber que Benavente foi fortemente abalada por um sismo em 1531, e esta é uma das causas por que os testemunhos históricos desta vila são tão dificilmente encontráveis. 6. Remontam ao séc. XVI, depois de 1551, as armas de Benavente, que não são consequência de um diploma real, mas sim de iniciativa da própria edilidade. O significado dos símbolos que as decoram é bem conhecido: antes de mais, a cruz de Avis para testemunhar que Benavente é vila da Ordem, e um dos seus mais consideráveis domínios. A representação das "travas" ou "peias" é uma alusão à antiga dependência da Ordem de Calatrava, que deixou de existir na primeira metade do séc. XV, mais precisamente a partir de 1436. Para a gravação da cruz de Avis e das travas o Município tomou por modelo as representações que se viam na lápide do paço mestral. O Senhor Afonso de Dornelas, que foi um dos mais competentes heraldistas portugueses, explica que a representação do estandarte é também uma iniciativa do Município, "não tendo a ver com o estandarte real, símbolo de supremacia régia, que só podia ser usado pelas povoações que levavam um corpo de tropas à guerra, o que não consta ter sucedido em Benavente".
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Poderíamos ficar por aqui no que respeita às armas de Benavente, mas convém desfazer um equívoco resultante de uma tradição que pode correr o risco de ser assumida como verdade histórica. Refere o Dr. Ruy de Azevedo que no manuscrito de Álvaro Rodrigues de Azevedo se lê um artigo intitulado "As travas das Armas de Benavente",no qual se escreve: "É tradição local que a vargem era antigamente um vasto paul onde se criavam muitos cavalos bravios que, colhidos, eram peados com travas de ferro como algemas: e que esta foi a origem das travas emblemáticas que nas armas de Benavente figuram." O tema foi retomado pelo Prof. José Hermano Saraiva, quando recentemente dedicou um programa à nossa terra e todos lhe estamos muito gratos por isso, em termos tais, servido por uma imaginação prodigiosa, que pode ter levado alguém a tomar como credível a explicação que apresentou, baseada numa tradição, e não num facto histórico. Trata-se, a nosso ver, de uma simples interpretação popular. O povo tem explicação para tudo, à sua maneira, é evidente, mas tenta encontrar explicação para tudo. "Peias" representadas num brasão, só poderiam aludir ao seu uso para prender ou suster o gado. Tanto mais que, desde os tempos mais antigos, os autores latinos registaram a agilidade dos animais criados à beira do Tejo. Diziam mais: que as éguas concebiam do vento, e é o humanista eborense André de Resende cujo 5º. centenário do nascimento se está a comemorar este
ano quem nos conta que, aqui em Benavente, um lavrador, em casa de quem pernoitou, lhe referiu esse acontecimento, pelo menos, teratológico, se não pura invenção. Não se reparou que as "travas" não são exclusivas do brasão de Benavente, mas se vêem também na representação heráldica do Alandroal e de Juromenha, também senhorios da Ordem de Avis. Pois bem, e para terminar, as "travas" do brasão de Benavente nada têm a ver com isso, e são simples alusão à primeira dependência da vila da Ordem de Calatrava, situada em Espanha, doada pelo rei de Castela Sancho III a cavaleiros da Ordem de Cister para que a defendessem dos Mouros. Alguns desses monges vieram estabelecer-se em Évora onde fundaram uma Ordem Militar, a Ordem de Évora, que mais tarde se transferiu para Avis, vindo a ser designada por Ordem de Avis. A Ordem de Calatrava foi a primeira Ordem de Cavalaria fundada na Península Ibérica. É do nome da vila que deriva o seu nome, vindo a adoptar a regra de S. Bento. À Ordem de Calatrava, repito, estão ligadas as origens de Benavente. É também por esta razão que no brasão de Benavente estão representadas as duas "travas" ou peias, símbolo da Ordem Militar de Calatrava e que a Ordem de Avis por algum tempo usou. É esta a explicação que deve ser apresentada, e não qualquer outra por muito imaginosa que seja. 7. Agora duas notas relativas ao séc. XVII.
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No ano de 1644 o Rossio do Moinho de Vento, ou Rossio de Vento, porque na parte mais elevada existia um moinho, passou a ser designado por Rossio do Calvário, depois que, naquela data foi erigido um cruzeiro, em mármore de Estremoz, que tem gravada no pedestal a seguinte inscrição: ESTA OBRA MANDARÃO FAZER OS IRMÃOS DOS SANTOS PASSOS EM O ANNO 1644 A fundação da Confraria e Irmandade dos Santos Passos, à qual se deve a construção do belo cruzeiro, é anterior à carta de confirmação que lhe é passada em 7 de Março de 1646, em nome do rei D. João IV. Conhecemos os estatutos da Irmandade, que, no prólogo ao cap. 1º., esclarecem: "O povo da vila de Benavente ordena, de sua própria e livre vontade, sem serem constrangidos por pessoa alguma, e só para serviço de Deus e bem de suas almas, a Irmandade dos Santos Passos de Nosso Senhor Jesus Cristo em a matriz da mesma vila, para o que ordenam este compromisso na ordem seguinte." Seguem-se os artigos dos Estatutos, apresentados para aprovação em Julho de 1645. Quer dizer: a confraria funda-se em data anterior à promulgação dos Estatutos, o que se prova com a
erecção do cruzeiro em 1644. Só depois, em 1645, pede confirmação régia para a sua existência, que lhe é concedida em Março de 1646. O Cruzeiro do Calvário que, a partir do séc. XIX, passou a substituir a velha designação de Rossio do Moinho de Vento, é o mais antigo monumento de uma obra de caridade e assistência aos irmãos benaventenses carecidos de apoio moral e material. Deve, por isso, ser preservado e respeitado, dada a intenção com que foi erguido, e ser considerado como o verdadeiro ex-líbris de Benavente. 8. Falámos de um facto ocorrido em tempos do rei D. João IV. É oportuno que se faça agora alusão, para que se não esqueça, a um homem que ajudou a colocar no trono português, usurpado pelo rei de Espanha, o Duque de Bragança, como rei legítimo de Portugal. Refiro-me, já se adivinha, a Luís Godinho. Mas, Luís Godinho seria mesmo natural de Benavente ? A notícia é-nos transmitida pelo conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, na sua obra História de Portugal Restaurado, como acontecimento ocorrido no Paço da Ribeira, residência da Duquesa de Mântua, Margarida de Áustria, neta de Filipe IV de Espanha; em 1634, foi nomeada vice-rainha de Portugal, era a executora da política do primeiro-ministro espanhol, o condeduque de Olivares, que tinha por objectivo a unidade peninsular.
Escreve o conde da Ericeira: "Alguns dos archeiros tudescos que guardavam o Paço … querendo ganhar uma porta que ia para o quarto da Duquesa de Mântua, a acharam já ocupada por Luís Godinho Benavente, criado do Duque de Bragança, e por outras pessoas que o acompanhavam, os quais, matando um tudesco e ferindo outros, os fizeram retirar." O nome de Luís Godinho, mas sem o apelido Benavente, é também mencionado na lista dos Nobres que intervieram na Revolução, citada na obra Relação de tudo o que se passou na felice acclamação del Rey D. João o quarto. Não se pense que há contradição entre a informação do conde da Ericeira: "Luís Godinho Benavente, criado do Duque de Bragança", e a inclusão do nome de Luís Godinho na lista dos Nobres a que me referi. Entenda-se que a palavra "criado" não tinha o significado moderno que hoje lhe damos; trata-se de um vocábulo que, ao longo da história da língua portuguesa, adquiriu uma riqueza semântica singular: entre os sentidos com que foi usado, salienta-se o de pagem de reis, príncipes ou altos senhores. Álvaro Rodrigues de Azevedo e Ruy de Azevedo registaram, no Estudo Histórico-Descritivo, a existência em Benavente de uma família importante de apelido Godinho, a partir, pelo menos, do séc. XV. Os ilustres historiadores vão mais longe: em fins do séc. XVI e princípios do XVII, residia na vila Cristóvão Godinho, proprietário e tabelião, casado com Catarina Velha, os quais poderiam muito bem ter sido os pais ou parentes próximos de Luís Godinho, o herói de 1640.
Analisemos agora o nome do nosso conterrâneo, sob a forma plena que lhe dá o conde da Ericeira, "Luís Godinho Benavente", e sob a forma abreviada que outros lhe dão, "Luís Godinho", para concluir que a segunda não elimina a primeira. Para tanto, comparemo-lo, nada mais, nada menos, do que com o nome do maior poeta português: Luís Vaz de Camões. Luís: é um nome de origem germânica; alemão Ludwig, a palavra passou para o francês Louis. Luís veio-nos, pois, da França, ou directamente, ou por intermédio da Espanha, onde há Lois. Daqui se conclui que a palavra deve terminar em s, e não em z, como muitas vezes se vê. O alemão Ludwig foi latinizado em Ludovicus e em Aloysius. Uma e outra forma foram utilizadas pelos nossos autores que escreveram em latim. Na chapa de cobre, que se colocou nos fundamentos da estátua de Camões em Lisboa, lê-se, no texto gravado em latim, Ludovicus para o nome do Rei (sabe-se que a estátua foi inaugurada por D. Luís) e Aloisius para o nome do Poeta. Vaz: é propriamente patronímico de Vasco. Muitos patronímicos perderam essa categoria própria e passaram a simples apelidos. Quer dizer: quem, em tempos modernos, se chame Enes ou Eanes, Fernandes, Henriques, Vaz ou Vasques, não quer significar que seu pai se chamasse João, Fernando, Henrique ou Vasco. Vaz, proveniente do genitivo Velasci, de Velascus, significava ao princípio "filho de Vasco". Vasco é palavra de origem obscura, embora talvez ibérica.
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Camões: é um nome geográfico, correspondente ao topónimo galego Cámos, local de origem do primeiro Camões que veio para Portugal, Vasco Peres/Pires de Camões, em tempos do rei D. Fernando. Desempenhou funções de alcaide em Alenquer e, com a morte do Rei, aliou-se ao partido de D. Leonor Teles contra o Mestre de Avis, D. João. Foi difícil convencê-lo a passar-se para o lado do Mestre, que, como relata Fernão Lopes se deslocou pessoalmente a Alenquer para o dissuadir da sua obstinada posição, que, por fim, conseguiu. Passemos agora ao nome do nosso Luís Godinho Benavente ou Luís Godinho. Luís: está explicado, tal como o explicámos no nome de Camões. Godinho: apelido existente em Benavente nos séculos XVI e XVII, como dissemos, de origem germânica, latinizado em Godinus. O apelido já vem registado nos Nobiliários dos P.M.H. Com a mesma raiz de Guda, de Goda e de Godo, de que parece ser um diminutivo, são nomes de origem germânica certa, mas o seu étimo é incerto, porque podem ligar-se a vários radicais. Benavente, igual a de Benavente, forma paralela a de Camões. Assim se designava a origem ou proveniência da pessoa referida no nome próprio e no primeiro apelido. O nome genérico podia ser usado em pleno
Luís Vaz de Camões Luís Godinho (de) Benavente Ou em abreviado Luís Vaz Luís Godinho sem que a omissão do nome da terra de origem ou proveniência prejudicasse a identificação da pessoa. Julgo assim perfeitamente identificado, como cidadão benaventense, Luís Godinho, um dos heróis da Restauração de 1640. Dei uma certa ênfase a este acontecimento, porque outro benaventense ilustre, o historiador Manuel Lopes de Almeida, se ocupou destas matérias na sua famosa tese de doutoramento na Faculdade de Letras de Coimbra, intitulada Notícias da Aclamação e Outros Sucessos, e também porque em Benavente, desde velhos tempos, se comemora, com grande entusiasmo, esse acontecimento festivo, na madrugada do 1º. De Dezembro daquela que, pelos Portugueses de há trezentos e sessenta anos, foi chamada "manhã pura e radiosa", adjectivos auspiciosos para a Liberdade então reconquistada. Apresentei apenas alguns aspectos significativos dos fastos benaventenses, ou benaventinos, nos séculos XVI e XVII, de entre tantos outros a que poderia aludir. Porque a temática é muito vasta, fico à vossa disposição para responder a quaisquer questões que entendam formular.
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Um passeio pela História de Benavente Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão Começo por agradecer a amável convite do Senhor Professor António José Ganhão, ilustre Presidente da Câmara Municipal de Benavente, para participar neste Colóquio comemorativo do oitavo centenário do vosso Foral. Estendo o agradecimento ao Vereador da Cultura, Senhor Francisco Sousa Dias, e à Directora do Museu Municipal, Senhora Dra. Cristina Gonçalves, organizadora deste encontro. Também não quero esquecer o Senhor Dr. Francisco Correia, Director do Arquivo Distrital de Santarém, que lança hoje mais um valioso livro acerca da história benaventense. E, por último, desejo saudar o meu velho e admirado amigo, Senhor Professor Doutor Justino Mendes de Almeida, Reitor da Universidade Autónoma Luís de Camões, cuja dedicação pela terra que lhe foi berço se encontra na mesma altura da obra consagrada que vem dedicando à cultura portuguesa. Um olhar sobre a história de Benavente, a que poderia também chamar um passado pela história antiga desta vila, corresponde a salientar acontecimentos e a evocar figuras que se prendem à vida local. Só que um passeio não deve jamais fazer-se sozinho, para captarmos todo o encanto que se desprende desse mundo de evocações. Posso dizer que me encontro em boa companhia para recordar as raízes portuguesas de Benavente, pela valia dos participantes que enchem este Auditório e, entre os quais, encontro jovens professores e estudantes. Todos eles ávidos de conhecer o passado de Benavente, de uma terra que possui gloriosos títulos a enobrecerem o seu brasão como se a consciência do presente não pudesse dispensar as lembranças do tempo antigo.
Certo é que não vou debruçar-me nas origens remotas da vossa terra, porque seria um tema infindável para contar. Não se esqueça da teoria do "homo taganus" defendida, no século passado, pelo general Carlos Ribeiro e, na primeira metade do século XX, pelo Professor António Mendes Correia, da Universidade do Porto. Julgavam os dois arqueólogos que, na zona ribeirinha que vai de Muge a Benavente teriam vivido, entre as idades da pedra lascada e da pedra polida, tribos sedentárias de pescadores que deixaram nos concheiros rastro da sua existência. Com a boa cultura arqueológica que o define, também o Dr. Clementino Amaro nos falou de uma Benavente com origens romanas, como se depreende dos restos que nesta região se têm encontrado. Não vai tão longe o meu projecto, uma vez que somente me debruço sobre notícias que se pretendem já no tempo da história portuguesa. Como sabem, a estratégica de D. Afonso Henriques, antes ainda do Tratado de Zamora, assentou numa forma de reconquista cristã que lhe franqueasse o domínio dos castelos meridionais. Necessitava, para o efeito, de controlar a zona do baixo Tejo, tanto a que conduzia, através da fortaleza de Santarém, à posse de Lisboa como a que se abria na margem esquerda do rio em direcção ao Alentejo. Nessa perspectiva entende-se o significado da batalha de Ourique, em 25 de Julho de 1139, ainda que o local do fossado seja ainda hoje objecto de discussão.
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Mas situando-se o prélio na zona de Castro Verde ou em Vila Chã de Ourique, nas cercanias de Santarém entende-se que Benavente tenha surgido como reduto ou atalaia na marcha de Afonso Henriques para o sul. E basta olhar para o mapa das operações militares no tempo do primeiro monarca, para se compreender a importância estratégica que a terra passou a usufruir. Situada na zona terminal do rio Sorraia e a duas léguas da sua junção ao Tejo, Benavente beneficiava do apoio guerreiro do castelo de Coruche, uma das chaves do rei de Portugal para a abertura do Alto Alentejo. Quer dizer que a fixação de um pequeno núcleo de colonos nos finais do século XII, tornou Benavente um ponto estratégico para a defesa do interior do Sorraia contra qualquer ataque dos mouros. Não se crê, ao contrário do que sucedia em Coruche, que a terra fosse dominada por um castelo, por não constituir um ponto altaneiro. A sua vocação haveria de comprovar-se no quadro geográfico da região, por ser uma passagem obrigatória nos caminhos oriundos do Alentejo e que buscavam uma saída para o rio Tejo. Digamos que Benavente se impôs, no quadro militar e geográfico da primeira dinastia, como a porta fluvial do Sorraia com destino a Lisboa. Por aqui, circulavam as pessoas, os víveres e os produtos no duplo sentido do interior para o litoral. Assim se entende a tese de um ilustre benaventense, o Professor Doutor Rui Pinto de Azevedo, ao mostrar a filiação da terra da ordem dos monges-cavaleiros de Calatrava. O seu primeiro nome foi de Freires de Évora, com a prova documentada de que no ano de 1199 já estavam aqui fixados. Como as restantes ordens de cavalaria, também os de Calatrava possuíam
dois objectivos: em tempo de guerra acompanhavam os monarcas na prossecução da reconquista cristã; em tempo de paz faziam povoar as terras, para as transformar em centros de vida e em oásis agrícolas. Ainda que Benavente estivesse no meio de uma região abundante em produtos da natureza e do rio, a terra recebeu esse influxo dos monges depois chamados de Avis, como estes já haviam feito em relação ao povoamento da vila de Coruche. Em 25 de Março do ano seguinte, 1200, Mestre Pelágio concedia uma carta de foro, juntamente com os seus frades, aos povoadores de Benavente, tanto presentes quanto futuros. Recebiam eles o foro de Coruche, com a obrigação de os cavaleiros serem obrigados a acompanhar o monarca nas incursões feitas em território inimigo. Quem não estivesse nos fossados, via-se compelido a pagar o tributo da fossadeira que correspondia à isenção do serviço militar. Nos fins do século XII existia, pois, em Benavente uma vida comunitária, embora incipiente, mas já com duas vertentes marcadas: a militar, ao serviço da coroa, e a agrícola, para o fomento da terra. Aliás, no foral de 1200 encontra-se uma referência a "fornos", locais onde se produziam artefactos de barro ou de cerâmica. Encontra-se no diploma uma alusão a "milhos", ou seja cereais que eram triturados para a obtenção de farinha. Mencionam-se as "tendas", o que pressupõe sítios onde se fazia comércio, não ainda monetário, mas alicerçado numa economia natural, para a venda e troca de produtos,. No foral de 1200 fala-se também de "gado", no sentido de que o gado de Benavente não podia ser onerado a título algum, condição essencial para
Terras d’Água proteger a vida comercial e agrícola. Tal como sucedia no foral de Coruche com os benefícios para a recolha do peixe do rio Sorraia, a população de Benavente usufruía de idêntico direito quanto ao peixe recolhido no Tejo. Tudo isto mostra a importância da terra que estava aqui a desenvolver-se nas suas promissoras actividades. Sejamos ainda mais claros no exame do tema. No caso de Benavente, prova-se que em 1199 a terra tem moradores, que no ano seguinte recebe um foral e que no ano de 1201 se faz sentir nela a protecção do Papa Inocêncio III. O que equivale a afirmar que o núcleo de vida implantado em Benavente era já importante. A vila de Coruche possuía um castelo que apenas se revestiria de valor estratégico se fosse atacado pelos mouros. Ao passo que a vossa terra surgia como guarda-avançada da defesa do Sorraia. Entretanto, o rei D. Afonso II, no ano de 1218 confirmava o foral de 1200, o que basta para documentar o crescente surto da população no quadro geo-histórico do Portugal coevo. Pode, no entanto, questionar-se a origem do étimo Benavente e, sem descermos ao fundo do problema, torna-se possível alinhar duas a três ideias sobre o tema. Os nossos mais ilustres toponomistas, para somente mencionar o Dr. Joaquim da Silveira e o Professor José Pedro Machado, sustentam não ser ainda possível encontrar a solução para o caso. O topónimo não é o único que existe em Portugal, pois conhecem-se terras com o idêntico nome nos concelhos da Guarda e de Sousel. No país vizinho encontra-se um Benavente não muito longe de Mérida e uma outra na província de Zamora. Na Itália existem várias Benaventes, com o nome de Ben Venito, a significar uma povoação agradável para viver.
Não creio que tal fosse a origem do topónimo português, que bem poderia significar, para as populações vizinhas, um local onde sopra vento favorável. Neste sentido e não passando de uma hipótese de trabalho, a planura de Benavente poderia assumir o sentido de sítio onde o vento sopra favorável de todos os lados. Voltando a referir a bula de Inocêncio III, de 1201, cumpre salientar a valia de um diploma em que as pessoas e bens de várias igrejas eram postas sob a protecção da Ordem Militar dos freires de Évora, mais tarde de Avis. Não despiciendo conhecer o nome das terras abrangidas pelo diploma papal: Évora, Santarém, Lisboa, Mafra, Coruche, Alcanede, Alpedriz, Roriz, Panoias e Benavente. No caso concreto desta vila, não se esqueçam que muitos dos seus cavaleiros acompanharam os nossos monarcas D. Sancho II e D. Afonso III na conquista dos castelos do Baixo Alentejo e do Algarve. Quero eu dizer que os homens de Benavente tiveram um papel activo na finalização da reconquista cristã. Estes e outros dados vêm na monografia sobre Benavente da autoria do Dr, Álvaro Rodrigues de Azevedo e que surgiu na terceira edição, prefaciada pelo Senhor Professor Doutor Justino Mendes de Almeida, filho ilustre desta vila. Depreende-se das fontes publicadas na História Florestal, Cinegética e Agrícola, cujos quatro primeiros volumes se devem ao labor do Professor Engenheiro Carlos Baeta Neves, que a terra de Benavente, no século XIV, estava rodeada de florestas e bosques, terreno portanto fértil para a arte da montaria. É conhecida uma carta de privilégio de D. Fernando, do ano de 1367, a dar licença aos moradores de Benavente para cortarem madeira na ribeira de Canha. Uma outra carta de sentença, esta de
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D. João I, antigo mestre de Avis, declarava pertencer ao monarca "a dízima do peixe que se pescar no rio de Benavente". Sabe-se que no vosso rio, que era ao mesmo tempo de água doce e salgada, andavam barcas em busca de peixe para a alimentação humana e, também, para a venda ao público. O rei da Boa Memória autorizava a pesca, mas reservando para a coroa a dízima do peixe pescado. Ainda do tempo de D. Fernando, cumpre não esquecer a carta de privilégio em que o monarca escusa os moradores de Benavente de servirem nas obras dos muros da alcáçova de Santarém. Decerto que alegaram a distância em que viviam da mesma vila e o prejuízo que resultava da sua ausência para a lavoura dos campos de Benavente. Nas proximidades da terra existia uma Quinta da Foz, coutada em benefício de D. Guiomar, mulher de João Afonso Telo de Meneses, condes de Ourém. Esta senhora obteve do rei D. Fernando que ninguém fosse pastar gado para a mencionada Quinta, pois quem o fizesse arriscava-se a severas penas. Estes factos provam quão cobiçadas pela sua riqueza eram as terras ao redor de Benavente e como a classe senhorial delas beneficiou. Os itinerários régios de D. João I e D. Duarte, publicados pelo Professor Humberto Baquero Moreno documentam as passagens da corte pela terra de Benavente. Tratava-se de um ponto obrigatório de trajecto entre a vila de Alcochete e o paço de Almeirim, o mesmo sucedendo quando os monarcas vinham de Coruche a caminho de Lisboa. A aposentadoria na terra implica a existência de casas cómodas para alojar os Reis e a nobreza que os acompanhava. A estada em Benavente documenta-se ainda melhor no tempo de D. João II, através dos seus itinerários, para fugir aos rigores da peste que se fazia sentir nas vizinhanças da capital.
Existe uma abundante seara a mondar nesse domínio histórico, para levar mais longe o conhecimento que já se possui acerca de Benavente como estância régia. Garcia de Resende escreveu na Vida e Feitos, del Rei D. João II que "El Rei partiu de Benavente em huma barca e por trazer bom vento e boa viagem veio em poucas horas até ao Tejo e daí foi até Alcochete até as bestas virem"... Muitos outros casos se podiam mencionar sobre o valor da terra como ponto de passagem da corte. Insistimos que Benavente já não se subordinava à dependência regional de Coruche por haver ganho uma autonomia própria como localidade ribeirinha. Desde meados do século XV que dispunha de melhores meios de assistência. Tenha-se presente que,D. Afonso V nomeou Fernão de Eanes, estribeiro do infante D. Fernando, para o cargo de provedor das albergarias de Benavente e Salvaterra. Podiam ali receber-se peregrinos, gente enferma ou casada , que dispunham deux um prato de sopa para comer de um catre para dormir. No início de reinado de D. Manuel, mais precisamente no ano de 1496, era alcaide - mor de Benavente um fidalgo de nome Figueira. Como guardador da mata de Asseiceira do Paul surge um Frei João Vaz, da Ordem Franciscana. Como local de fixação para os moradores e de passagem para os viajantes , Benavente dispunha de várias estalagens. No dia 21 de Fevereiro de 1498, um João Fernandes, morador em Benavente, foi autorizado a abrir uma estalagem numas casas suas. Onze anos depois, surge uma nova estalagem a rogo de Martim Fernandes, morador na mesma vila, podendo ele ostentar o título de "estalajadeiro". Estes dados servem para comprovar a valia do crescimento urbano de Benavente, agora como um local onde os
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viajantes encontravam boas condições para se alojar e permanecer. Quanto à vila de Coruche, mergulhara no seu destino de terra do interior, como a vida circunscrita ao labor agrícola que lhe vinha das águas do Sorraia. Entrado no século de Quinhentos, acentua-se o surto urbano e regional de Benavente, como vila para sempre integrada no complexo geo-económico do rio Tejo. No ano de 1501, a vila dispunha de um médico ou "físico", de nome Álvaro Castelhano, que recebeu carta para o exercício da medicina, passada pelo físico-mór Vasco de Lucena. Aqui também vivia um monteiro-mór incumbido das montarias de Benavente, Samora Correia e Salvaterra de Magos, denominado Fernão Gomes. Quando este fecha os olhos em 1521, a montaria passa a ser pertença de António Lopes. Quando da morte do rei D. Manuel, três estalagens estavam aqui em plena actividade, o que mostra a irradiação de Benavente como um ponto de trajecto obrigatório na margem esquerda do Tejo.
Após o trágico acidente que vitimou o príncipe D. Afonso, em 13 de Julho de 1491, na então vila de Santarém, a corte portuguesa deixou de assentar nos seus paços. A atracção de Almeirim, como "Sintra de inverno" de D. Manuel a D. Sebastião levava os nossos Reis a tomarem o caminho que liga Alcochete a Salvaterra e a Muge e, depois, até Almeirim. A fixação ou a passagem por Benavente eram marcos fulcrais do caminho régio, o que permite conjecturar que a vida municipal se tinha desenvolvido. As actas camarárias de 1559 a 1564, publicadas pelo senhor Dr. Francisco Correia, bastam para documentar o processo local e regional de Benavente. Enquanto Salvaterra de Magos mostrava ainda as delícias das suas coutadas, num desejo de fixação da corte que veio a acentuar-se nos meados do século XVIII, a vila de Benavente apresentava já uma fisionomia regional que a impunha como a terra mais importante da foz do Sorraia.
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O numeramento de 1527, mandado efectuar pelo rei D. João III, contém dados de valor para a história local. Benavente pertencia à Ordem Militar de Avis, sendo a jurisdição e as rendas do monarca e cabendo o governo espiritual da terra à diocese de Évora. Os "moradores" ou "vizinhos" cifravam-se em 199, o que pressupõe uma população na casa dos 800 habitantes. Mas os casais andavam ao redor de 49, o que num cômputo largo permite considerar uma população envolvente de 200 habitantes. Reunindo a gente da terra e dos casais, a vila contaria com 1000 habitantes. Ao passo que Salvaterra não excedia os 600 habitantes e Samora Correia os 250 com mais 5 casais em torno. Acrescente-se que a vila de Muge, realenga, tinha apenas 360 habitantes e 9 casais ao redor.
Muitos outros dados se poderiam acrescentar sobre a evolução histórica de Benavente, desde os finais do século XII aos alvores de quinhentos. Longe de mim a pretensão de haver esgotado o tema, quando apenas desejei chamar a atenção dos jovens investigadores aqui presentes para o interesse da história de Benavente e numa demorada pesquisa em bibliotecas e arquivos. Vou mais longe ao afirmar que a Vila de Benavente merece um novo empreendimento, na senda do que os Doutores Rui de Azevedo, Manuel Lopes de Almeida e Justino Mendes de Almeida, todos eles benaventenses ilustres e os primeiros de saudosa memória, já consagraram à sua terra natal. Tudo o que se fizer nesse sentido, merece justos louvores.
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Lançamento do Inventário do Arquivo Histórico Municipal de Benavente
As minhas primeiras palavras são de agradecimento. Ao Presidente da Câmara Municipal de Benavente, António José Ganhão, e à demais vereação, pela disponibilidade, desde sempre demonstrada, para as questões da Cultura e do Património Cultural, sem a qual seria impensável a concretização deste trabalho. Agradeço igualmente, à Directora do Museu Municipal, Dr.ª Cristina Gonçalves, pela entusiástica colaboração neste projecto Um agradecimento especial à Dr.ª Sandra Ferreira que ao longo deste último ano foi colaboradora inexcedível, em trabalho e dedicação. Por fim, agradeço a todos vós pela gentileza da vossa presença que muito valoriza esta sessão de lançamento. Este projecto de organização do Arquivo Municipal de Benavente nasce na sequência do I Colóquio sobre História Regional e Local, realizado em Santarém, de 11 a 13 de Novembro de 1987, numa organização da escola Superior de Educação de Santarém. A comunicação que, na altura, proferimos sobre "Os Arquivos e a Investigação em História Regional e Local", e as ideias defendidas da necessidade de um intercâmbio entre historiadores e arquivistas, no sentido da valorização do nosso património arquivístico local, foram ouvidas. De entre as instituições autárquicas representadas
Dr. Francisco Correia
neste evento e que, desde logo, manifestaram o seu interesse por esta temática dos arquivos locais, destacou-se a Câmara Municipal de Benavente. No ano de 1988, viríamos, em representação do Arquivo Distrital de Santarém, a assinar um protocolo de apoio técnico com este município protocolo, ainda hoje, em vigor , visando a organização e a inventariação do seu arquivo municipal. E tal como este, muitos outros trabalhos de apoio técnico têm sido desenvolvidos pelo Arquivo Distrital de Santarém junto de outras autarquias deste distrito, como sejam, as de Coruche, Alpiarça e Salvaterra de Magos, tentando, desta forma, suprir uma falta que, ainda hoje, se verifica a nível local de técnicos superiores de arquivo, em número suficiente. Uma política de descentralização da actividade arquivística, por um lado, e um forte incremento das investigações em História regional e local, são duas das causas apontadas para este recente incentivo à organização dos nossos arquivos locais. Quanto á primeira, longe vão os tempos em que o ideário arquivístico defendia o depósito em Lisboa e em mais ou três centros urbanos do País, de todo o património arquivístico nacional - ideário que esteve na origem da incorporação de muita documentação local no Arquivo nacional da Torre do Tombo e
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noutros arquivos de maior dimensão, no século XIX. Particularmente com Júlio Dantas, já neste século, estas ideias centralizadoras viriam a ser abandonadas, também, atendendo à vastidão do património documental local, criando em capital de distrito um Arquivo Distrital (Decreto-lei n.º 19.952, de 27 de Junho de 1931), com funções de preservação e tratamento desse mesmo património. Nos últimos vinte anos, assistiu-se a um forte desenvolvimento da temática dos arquivos: a criação de uma direcção-geral, autonomizando esta actividade (em 1988 - precisamente o ano do início do presente trabalho no Arquivo Municipal de Benavente), primeiro com o Instituto Português de Arquivos (IPA) e, desde 1992, com o Instituto dos Arquivos N a c i o n a i s / To r r e d o To m b o ( I A N / T T ) ; seguidamente, com a publicação da Lei de Bases dos Arquivos (Decreto-lei n.º 16/93, de 23 de Janeiro), onde, pela primeira vez, são previstas as sanções respectivas, ficando, desta forma, regulamentada a política arquivística nacional. Para além deste corpo legislativo, têm sido realizados, ao longo da última década, grandes investimentos em infra-estruturas nos arquivos dependentes do Ministério da Cultura: desde o novo edifício do ArquivoNacional da Torre do Tombo, inaugurado em 1990, que todas as instalações dos diversos arquivos distritais têm sofrido obras assinaláveis, quer através da
construção de edifícios de raiz, quer através da adaptação e remodelação das existentes. Os arquivos municipais não foram esquecidos nestes incentivos do poder central, tendo sido criado em 1998 um Programa de Apoio à Rede de Arquivos Municipais (PARAM), através do qual os municípios têm à sua disposição verbas para ajuda na construção ou apetrechamento de infra-estruturas arquivísticas. Os historiadores podem, assim, ver alargadas as suas fontes de investigação, também a nível local. E não será demais insistir na importância da investigação que se realiza nos nossos arquivos locais, para o aprofundamento da nossa História Nacional. O Professor Doutor Jorge Borges de Macedo, saudoso director-geral do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, órgão de gestão da política nacional de arquivos, nas múltiplas reuniões de directores de Arquivos Distritais a que presidiu, nunca deixou de se referir à necessidade da organização dos arquivos locais, e na importância do estudo do seu acervo para o aprofundamento de tantos e tantos temas da História Nacional. Espero que este trabalho vai de encontro a essas preocupações da moderna historiografia, que corresponde, igualmente, a uma nova política arquivística, existente no nosso país. Muito Obrigado.
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Encerramento Francisco Souza Dias Verador do Pelouro da Cultura
Senhor Professor Doutor Veríssimo Serrão, Senhor Professor Doutor Justino Mendes de Almeida, Dr. Francisco Correia, meus queridos amigos, permitam-me que os trate assim. Eu estou nervoso ! Para uma pessoa que começou a sua actividade profissional, em Benavente, como encarregado geral de gado, estar perante tão douta assembleia, provoca uma certa inibição. No entanto, compete-me este papel de encerrar este agradável convívio que foram as 1ª.s Jornadas de História , comemorativas do VIII Centenário da doação do Foral de Benavente. Esta circunstância sugere-me o seguinte episódio: uma vez um jornalista alemão passou por Santarém e viu um senhor a podar a vinha, falou com ele e depois escreveu num jornal alemão:«contactei um agricultor do Ribatejo que falava fluentemente o inglês, arranhava o alemão e tinha conhecimentos de história de Portugal e de história universal muito vastos, é enorme a cultura geral dos agricultores do Ribatejo». Era o Alexandre Herculano que estava a podar a sua vinha, em Vale de Lobos.
Assim, lembrando-me de como é conhecida a grande cultura geral de um agricultor do Ribatejo sinto-me à vontade para o fazer. O objectivo da Câmara Municipal, no âmbito das comemorações dos 800 anos do Foral como referiu, esta manhã, o Senhor Presidente da Câmara, é que devemos encarar o passado não de forma saudosista, mas que o futuro tem de ser feito com base no conhecimento do passado - preferencialmente, com conhecimento científico - e em manter o nosso desenvolvimento, mais do que o nosso crescimento, no respeito pelas nossas raízes, pela nossa cultura e pelos nossos valores. Neste sentido, é nossa intenção recuperar a garagem existente no edifício onde se encontra a Biblioteca Municipal, para aí instalar o vasto e precioso Arquivo Histórico de Benavente, em condições adequadas para a conservação de documentos e para a pesquisa e estudo da história local. Estas Jornadas representaram isso mesmo pelo que agradeço a todos a forma empenhada como participaram neste acontecimento.
ÁREA ESCOLA RECRIOU 800 ANOS DE CONCELHO Nas comemorações do Foral de Benavente
Maria Inês Gonçalves Professora da escola E.B. 2, 3 de Duarte Lopes, Benavente e coordenadora-geral da área- escola
Mário Justino Silva Professor e vice-presidente do conselho executivo da escola E.B. 2, 3 de Duarte Lopes, Benavente
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A 25 de Março do já longínquo ano de 1200, Mestre Pelágio doou aos povoadores de Benavente o seu foral. (fig.1) 2000 foi, portanto, ano de festa para o Concelho de Benavente que muito justamente se engalanou para comemorar condignamente aquela que foi a data da sua «certidão de nascimento». Uma comunidade que preserva a sua memória colectiva, mostra vitalidade. E quanto mais viva é a memória colectiva de um grupo humano, mais capacidade de resistência e de criatividade demostra. Ao invés, o desleixo pelo passado, é sempre revelador da ausência de laços comuns, da sobreposição de interesses individuais aos colectivos, e de falta de espírito comunitário. A comunidade que aqui foi ganhando raízes demonstrou capacidade de vencer as dificuldades, marcando com dignidade uma posição própria no contexto da região onde se insere ou mesmo no conjunto do país a que pertence. Soube, numa palavra, fazer uma obra colectiva de que se orgulha, resultante das suas lutas e da sua vontade de viver. Orgulho sem o qual, afinal, não há dignidade. E foi em boa hora que as escolas EB 2, 3 de Duarte Lopes, o Agrupamento do 1º ciclo, o jardim de Infância e duas turmas da Escola Secundária resolveram associar-se às comemorações dos 800 anos de foral que a edilidade levou por diante. O tema aglutinador da área-escola foi "Benavente: 800 anos de Vida, 800 anos de História". O objectivo foi, por consequência, percorrer os oito séculos de vida deste Concelho, recriando pequenos quadros históricos, através de «flashes» que de algum modo caracterizaram e vivenciaram as raízes culturais destas gentes que, ao longo de muitas gerações, ajudaram a moldar a face desta terra.
Fig. 1 - Mestre Pelágio e os seus cavaleiros vestidos a rigor na solene proclamação da Carta de Foral
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Fig. 2 - Aspectos do Mercado Medieval com a sua habitual azáfama
Fig. 3 - Aspectos do Mercado Medieval com a sua habitual azáfama
Fig. 4 - Os boticários e físicos também marcaram presença no evento
Do século XIII ao século XX, muitos foram os sub-temas preparados (alguns deles durante vários meses) pelas várias turmas e nos quais alunos, professores e funcionários investiram muito do seu esforço na pesquisa e investigação das temáticas escolhidas, na confecção dos trajes, na recolha de objectos e utensílios, na montagem dos cenários, na preparação do recinto, no ensaio dos diálogos, das encenações, das músicas e das danças. A divulgação pública a toda a comunidade teve lug ar, justamente, no dia 25 de Março de 2000, o dia maior de todas as comemorações que, entretanto, se estenderam ao longo do ano. A recriação do mercado medieval teve lugar junto ao largo fronteiro à Matriz da vila, (fig. 2) que foi o cenário escolhido para o desfile de «memórias vivas» dos oito séculos de história deste concelho da borda d'água ribatejana. Neste mesmo espaço conviveram padeiros, ferreiros, boticários, (fig.4) oleiros que emprestaram, assim, um garrido muito particular e sugestivo à festa.
Terras d’Água Ovos, coelhos, hortejos, queijos, azeitonas, galinhas, cebolas... de tudo um pouco se vendeu, comprou, trocou, entre o pregão de uma regateira e os gritos da populaça que enchia o recinto e rejubilava com o aparato e a pompa da chegada dos notáveis. A ancestralidade dos trajes, o exotismo de alguns comportamentos, o colorido de saltimbancos e malabaristas, (fig.5) e onde não faltaram os jogos tradicionais e a música transmitiram ao evento a alegria contagiante e a magia dos grandes momentos. Foram também recordadas e, mais do que isso, revividas, instituições, acontecimentos e personalidades que, de algum modo, ajudaram a edificar esta terra ubérrima e a forjar e engrandecer esta comunidade que se orgulha dos seus diletos filhos.
Fig.5 - Malabaristas e saltimbancos eram sempre presença habitual nestas ocasiões
O papel relevante da Santa Casa da Misericórdia; a presença das minorias religiosas (judeus) e étnicas (ciganos); a chegada do grande Duarte Lopes, filho ilustre da Benavente quinhentista; (canção 1) a passagem do infante D. Luis; a Inquisição; os rituais de namoro e casamento do século XX; a tragédia do devastador terramoto de 1909; o estoicismo e abnegado patriotismo dos benaventenses que participaram na I Guerra Mundial; a incontornável Festa da Sardinha Assada que tem feito da Amizade, entre outros, o seu principal atributo, temas que constituíram, afinal, um belo pretexto para, mais uma vez, se mostrar a Escola à comunidade que serve. Em suma, a ligação da Escola à Comunidade parece ter sido, mais uma vez, conseguida. E não terá a Escola que ser, cada vez mais, fonte de construção dos saberes, espaço de cidadania e um pólo aglutinador e dinamizador, capaz de mobilizar todas as sinergias da Comunidade ?
OLARIA ROMANA DA GARROCHEIRA, BENAVENTE
Clementino Amaro Arqueólogo Direcção Regional de Lisboa IPPAR
Artigo publicado nas Actas das Jornadas de Estudos realizados em Conímbriga, 13 e 14 da Outubro de 1988 Museu Monográfico de Conímbriga, 1990 55
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A olaria romana da Garrocheira localiza-se na margem direita do rio Sorraia, na freguesia e concelho de Benavente (fig. 1). Local outrora bordejado pelo "rio Velho", hoje o Sorraia está afastado cerca de 1,5 Km do sítio dos fornos. A olaria foi localizada na década de 60, ao ser destruído quase na sua totalidade um forno circular por acção de uma retroescavadoura quando procedia à remoção de terras para construção do canal de rega de Salvaterra de Magos. Efectuamos o reconhecimento da estação(1) em inícios da década de 80, tendo-se observado ainda suficientes vestígios do entretanto designado forno 1 (fig.2). Procedeu-se à recolha de vários fragmentos de ânforas exclusivamente da forma Beltrán IVb. Foi, na mesma altura, partida e amontoada no local uma estrutura quadrangular de paredes em pedra, argamassada e com vestígios de revestimento em opus signinum, identificável como um tanque de apoio à olaria. A primeira referência sobre a olaria está registada na notícia sobre um levantamento cultural iniciado em três concelhos ribatejanos em Maio de 1980 (2) .
Fig.1 - Localização da olaria na Carta Militar de Portugal
O interesse desta estação arqueológica e a sua integração num projecto de investigação criado em 1985 "A Ocupação Romana da Margem Esquerda do Estuário do Tejo", teve em conta a sua localização, ao integrar-se na parte mais a montante do estuário, onde se dá a junção dos rios Tejo e Sorraia, e por onde as embarcações romanas tinham acesso à olaria. Mais importante ainda é o facto de se procurar perspectivar o enquadramento desta olaria no contexto dos fornos produtores de ânforas do Vale do Tejo, recentemente localizados - Porto dos Cacos e Quinta do Rouxinol - e o já conhecido forno do Porto do Sabugueiro, Muge.
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Fig.2 - Planta geral da primeira campanha arqueológica de 1957
Uma primeira campanha arqueológica ocorrida em 1987 forneceu os primeiros dados relativos à laboração da olaria e sua cronologia. Dado o facto desta comunicação representar o primeiro estudo da olaria, por um lado, e de o objectivo principal destas primeiras Jornadas se centrar na problemática da produção lusitana de ânforas, por outro, proceder-se-á aqui a um estudo, necessariamente sumário, do sítio arqueológico e das estruturas da olaria já descobertas, após o que se fará uma primeira aproximação à produção do material anfórico.
O Sítio. Localização e contexto geográfico. A olaria assenta num declive virado a Sul, numa região particularmente plana, a uma cota máxima de 10 metros. Localiza-se na folha 391 da Carta do Serviço Cartográfico do Exército, com as coordenadas Gauss M 137249 o acesso faz-se, a partir da fábrica de tomate, por uma estrada de terra batida e após ultrapassar-se o Monte da Garrocheira, vira-se à direita, ficando a olaria imediatamente a sul do canal de Salvaterra (fig.2). Geologicamente, o sítio é constituído por um depósito de aluvião, de origem fluvial, do período quaternário. Apresenta abundante cascalho sobreposto por sedimentos de espessura variável, registando vestígios de ocupação humana do período pré-histórico (3).
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Recolheu-se indústria paleolítica tipologicamente idêntica à dos terraços fluviais prospectados por H. Breuil e G. Zbyzewski na região entre a vila de Benavente e Santo Estevão e referenciados no trabalho publicado por aqueles em 1945 (4). O sítio apresenta a Norte uma minúscula mancha de sobreiros dispersos e mato, e uma vasta área reservada à cultura intensiva, com realce para o milho (5). A Sul e após a secagem do paúl, a cultura do milho tem a primazia. Em sentido estrito, o sítio sondado fica num estreito talude entre o corte da retroescavadora, feito na década de 60, e um caminho vicinal, tendo este facto condicionado fortemente as possibilidades de uma visão mais alargada da olaria e respectivas entulheiras. Cerca de 1 Km a NW da olaria fica a fonte d`El Rei conhecida, popularmente, pela fonte dos Mouros e que tem a particularidade de apresentar uma planta quadrangular em tudo semelhante ás fontes de origem romana. A 3 Km a NE da olaria, labora a fábrica de tijolo "Cerâmica dos Fornos de Salvaterra de Magos" explorando os barreiros das imediações. No horizonte a SW, a vila de Benavente repousa num "ferro de engomar" cingida, no período Medieval, pelo rio Sorraia e por uma muralha que fechava a base do triângulo. Em termos de enquadramento arqueológico fica a 1,5 Km para SE, o sugestivo topónimo Courela das caveiras onde se localizou uma necrópole romana com uma provável ocupação entre os séc. I e III / IV d.C.. Na margem esquerda do rio Sorraia e a cerca de 3 km para SE, recolheu-se espólio arqueológico e obtiveram-se informações orais sobre a existência de estruturas enterradas, dados conducentes a referenciarem uma villa romana (6).
O estudo da olaria. Objectivos e metodologia. A intervenção arqueológica no olaria romana teve como interesse imediato conhecer a sua produção e período de laboração. Perante o ainda vasto conhecimento do tipologia dos fornos de produção de ânforas e das várias estruturas destes complexos fabris, concentrou-se a escavação na área envolvente ao forno já anteriormente referenciado. O facto deste forno se encontrar num apertado talude levou-nos a implantar a quadrícula não em função do Norte magnético, mas sim de acordo com o desenvolvimento do referido talude. Perante a pequena área disponível para escavação nesta primeira campanha optou-se por abrir uma área de 12,5 m de comprimento e 7,5 m de largura. A quadrícula é alfanumérica com 2,5 m de lado adoptaram-se, à partida, planos artificiais de 0,20 m. Atendendo à curta campanha realizada - quatro semanas - apenas em F 41 e F 45 se atingiu o solo de base (fig.2).
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Olaria. Fornos e estruturas de apoio. Forno 1. A intervenção no forno grande limitou-se, no essencial , a trabalhos de limpeza e a pôr em evidência o troço da abóbada da fornalha ainda existente e o pouco que resta das cinco suspensuras de sustentação da grelha . Optou-se por manter parte do enchimento da fornalha, constituído por fragmentos de tijolo, pequenas pedras e areia grossa, como suporte da abóbada que resta. O forno 1 é de planta circular e teria um diâmetro interior de cerca de 3,40 m. Escavado no areão de base e, em parte, na cascalheira, a parede lateral foi revestida a fiadas de tijolo. Não se detectou ainda qualquer vestígio de pavimento. O forno está envolvido por uma mancha de espessura média de 0,35 m de areia argilosa queimada, resultante da laboração do mesmo. Forno 2. Encontra-se, em parte, sob o caminho vicinal. A primeira camada que o cobria caracterizava-se pela pobreza da espólio cerâmico e por ser particularmente compacta. Sobre os contornos do forno, a segunda camada, constituída por areia avermelhada, incluía grande densidade de ímbrices e outros materiais de construção associados a alguns fragmentos de cerâmica doméstica fina. Na área envolvente do forno, apenas no canto sul se registou uma pequena mancha de cinzas associada a reduzido espólio - material de construção, fragmentos de uma ânfora Beltran IVb e cerâmica doméstica fina. O entulhamento do forno era constituído essencialmente por materiais de construção resultantes da degradação do próprio forno e por fragmentos de ímbrices atribuíveis ao derrube do telheiro que lhe ficaria anexo. De registar, unicamente, a recolha de um fundo de Beltran IVb . Não está integralmente concluída a escavação no seu interior. A altura actual é de 0,80 m. O forno é de planta circular, sendo a fornalha em rotunda, com um diâmetro interior de 1,70 m (exactamente metade em relação ao forno1) e representa duas suspensuras em arco. Subsiste unicamente a fornalha e respectiva entrada e um pequeno vestígio da grelha no lado Este. A fornalha apresenta um canal central e canais laterais. A boca de acesso está virada sensivelmente a Oeste. Esta é um arco de volta inteira. A fornalha foi escavada na areia de base sendo a concavidade revestida a tijolos ligados por barro seco por acção do fogo. Junto à boca da fornalha desenvolve-se uma estrutura simétrica (ainda por definir na sua total dimensão no lado Sul) constituída por fiadas de tijoleiras e que se organiza em "antecâmara", provavelmente coberta , constituindo, mais do que um corredor, um telheiro de protecção à fornalha (fig. 2).
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Estruturas de apoio. Entre os dois fornos existem vestígios de um muro ou pilar construído em pedra, seixos rolados e material cerâmico. Esta estrutura foi igualmente atingida pelo corte efectuado pela retroescavadora. Tratar-se-ia, por hipótese, de um pilar de apoio a um telheiro que cobria o acesso à boca da fornalha que, atendendo à orientação das suspensuras, se orientaria a SW. Em F 41 surgiu um pilar de planta quadrangular. Construído com tijoleiras, e com a altura actual de 0,65m, encontra-se em bom estado de conservação (fig.2). A articulação deste pilar com as restantes estruturas é ainda difícil de perspectivar . As medidas do pilar (0,60m de lado) são idênticas aos pilares de algumas fábricas tradicionais de produção de tijolo e telha por nós observadas na zona de Leiria e do Ribatejo. Tratar-se-á de simples coincidência ou de uma medida ideal, em termos de resistência, para suporte dos telheiros que protegem tanto os fornos como os materiais antes e após a cozedura? Hipótese que merece verificação futura. Entulheira. Em E 42 e E 43 detectou-se a parte final de uma pequena entulheira que se optou, num primeiro momento, por manter in sito. Esta é constituída por grandes fragmentos de ânfora Beltrán IVb associados a fragmentos de cerâmica doméstica. Acresce dizer que tanto a entulheira como a área envolvente apresentam uma compacta camada de cinzas negras associadas, provavelmente à limpeza do forno 1.
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Espólio Os fragmentos cerâmicos referentes a vasilhame anfórico são ainda relativamente escassos. Não se inclui nesta primeira notícia a cerâmica doméstica de produção local. No entanto adiante-se que o tipo mais representado até ao momento é a tijela (7). Outro facto assinalável é a constante associação entre a forma Beltrán IVb e a cerâmica comum doméstica, em toda a área entretanto escavada. O estudo do material anfórico aqui apresentado constitui uma amostragem cobrindo as diferentes características de bordos e fundos até agora examinados. Inclui-se ainda na figura 13, com o nº 10, o que se propõe ser uma trempe, atendendo aos escassos exemplares referenciados. De acordo com os dados disponíveis, a cronologia aceite para a ânfora Beltrán IVb compreende o período entre os inícios do séc. I e, pelo menos finais do séc. II d.C.. Uma característica formal particular nos exemplares examinados no Garrocheira é a grande altura do Colo, atingindo os 25 cm (8). No Porto dos Cacos, Alcochete, existem alguns exemplares que atingem a altura de 22 cm (9). Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho Soares apresentam dois exemplares completos da área urbana de Setúbal com a altura de 20 cm e 16,5 cm (10). Na Quinta da Alegria os mesmos autores apresentam dois exemplares com os nº 4 e 5 e com a altura de colo de 18 e 20 cm, respectivamente (11). Pensamos que esta particularidade formal não é ainda suficiente e satisfatória, no momento actual dos nossos conhecimentos, para se propor como uma variante local dentro da forma Dressel 14 / Beltrán IVb ou Lusitana 2ª segundo a tipologia de Dias Diogo, apresentada nestas Jornadas. No tocante à descrição da pasta, esta varia entre o vermelho alaranjado e o amarelo acastanhado, grão fino e médio com elementos não plásticos predominando o quartzo, e ainda uma pequena percentagem de feldspato. Análises macro e microscópicas levadas a cabo em três amostras registaram elevado número de pequenos núcleos de óxidos ferrosos de coloração sanguínea e castanho escuro (12).
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Últimos alinhavos Pelo que nos foi dado observar, a destruição da olaria limitou-se, no essencial, ao forno 1 e a um tanque de apoio. As grandes entulheiras encontrar-se-ão a Este, bem como outras estruturas da olaria atendendo aos vestígios de superfície registados e às informações prestadas pelo proprietário do terreno. A cerca de 6 m para Este dos fornos, aflora um muro, passando o caminho vicinal sobre o mesmo. A laboração desta olaria limitou-se à produção de ânfora Beltrán IVb e ainda cerâmica comum doméstica. Começa a confirmar-se a organização dos fornos em "bateria" de dois. Esta característica está presente também em Porto dos Cacos, Alcochete e na Quinta do Rouxinol, Corroios, só para referir o vale do Tejo. Esta característica está bem registada nas obras tradicionais de loiça, como o caso do Centro Oleiro de S. Pedro do Corval, Reguengos de Monsaraz Começam a desenhar-se duas características particulares nos contentores produzidos na Garrocheira , em termos de análises macro e microscópicas, e morfológicas: ânforas de colo particularmente alto e a presença de núcleos ferrosos, só registados no Porto dos Cacos (mas aqui associados a palhetas de biotite) e ausentes no Vale do Sado. Subsistiu até ao séc. XIX a velha Mata da Garrocheira que, outros tempos outras necessidades, foi desbastada e vendida para investir na construção de valas de drenagem para defesa das inundações e valorização agrícola. A tradição oleira persiste na região com a fabrica do tijolo dos fornos de Salvaterra e respectiva exploração dos barreiros locais.
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Fig.3 - Fragmentos de ânforas, produzidas na Garrocheira
Legenda - fig.3 1- Boca , colo e arranque de pança. Lábio com espessamento acentuado, de perfil sub-triangular, com parte superior convexa com ressalto. Colo alto, estreito e estrias interiores e exteriores marcadas, sub-cilindríco, de tendência bitroncónica e extrovertida. NºM.M.B.: GA 1 (Museu Municipal de Benavente). 2- Fragmento de boca. Lábio de perfil sub-triangular com espessamento e com ressalto no seu interior. Asa em fita com estria exterior, vertical, de secção ovóide, achatada. M.M.B.: GA 431. 3- Fragmento de boca. Lábio perolado, colo cilíndrico com arranque de asa. M.M.B.: GA 89. 4- Fragmento de bordo. Lábio perolado, espessamento exterior em aresta. M.M.B.: GA 21. 5- Pé maciço terminando a base em forma mamilar. M.M.B.: GA 84 SUP. 6- Fundo maciço terminando a base em forma mamilar. Apresenta grafito. M.M.B.: GA 120 7- Fundo com pé cónico, maciço, base cónica e pequeno ressalto anelar. Apresenta grafito. M.M.B.:GA 235. 8- Fundo com pé cónico, bico cónico com ressalto anelar. M.M.B.: GA 4 9- Pé cónico, maciço, terminando em bico cónico. M.M.B.: GA 91 10- Fragmento de trempe (?), com bordo de perfil rectangular de um dos lados e aplanado no outro. M.M.B.: GA 92
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Notas: 1.Como Director do Museu Municipal de Benavente, iniciávamos na altura o reconhecimento de sítios com indícios de vestígios arqueológicos. Fomos acompanhados por Joaquim Parracho, funcionário da Câmara Municipal Benavente, em destacamento no Museu Municipal. 2.C.Amaro, levantamento Cultural em três concelhos ribatejanos, Arqueologia 3, 1981, p.131-132. 3.O reconhecimento desta indústria paleolítica foi efectuado por Luís Barros aquando da sua visita aos trabalhos arqueológicos, alertando-nos para o facto. 4.H.Breuil e G. Zbyzewsky, Industries recueilles sur la rive nord de la rivière Santo Estêvão (entre Benavente e Santo Estêvão), Comunicações dos serviços geológicos , XXVI, 1945, p.489/514. 5.Este minúsculo vestígio de mato e sobreiros é o que resta da antiga mata, cortada no século XIX, de acordo com o documento publicado por nós na comunicação "Romanização da margem esquerda do estuário do Tejo: um (des)alinhar de ideias", apresentada nestas Jornadas de Estudo sobre ânforas lusitanas. 6.C.Amaro, levantamento Cultural em três concelhos ribatejanos, Arqueologia 3, 1981, p.131-132. 7.De acordo com a nomenclatura adoptada para as formas de Conímbriga. cf. J. Alarcão, Cerâmica comum local e regional de Conímbriga, Coimbra, 1974, p.32-37. 8.Dias Diogo na sua comunicação apresentada às Jornadas de estudo sobre as ânforas lusitanas, regista como altura média do colo da Beltran IVb a medida de 20cm. 9.J.Raposo, Uma oficina de produção de ânforas romanas do Vale do Tejo, a publicar. 10.A. Coelho Soares e C.Tavares da Silva, Ânforas romanas da área urbana de Setúbal, Setúbal Arqueológica, IV, 1978, p.171191. 11.Soares, A..Coelho; Silva, C. Tavares da - Ânforas Romanas da Quinta da Alegria (Setúbal). Setúbal Arqueológica, V. 1979, p. 205-215 12.Comunicação apresentada às Jornadas de Estudos sobre Ânforas Lusitanas por A. V. Pinto Coelho e J. L. Cardoso
A ATALAIA DE BELMONTE NA FRONTEIRA DOS TERRITÓRIOS DA ORDEM DE SANTIAGO
Cristina Gonçalves Técnica Superior de História Museu Municipal de Benavente
Clementino Amaro Arqueólogo Direcção Regional de Lisboa, IPPAR
Texto publicado nas actas do 1º Simpósio Internacional sobre Castelos, Palmela, 2000
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A atalaia de Belmonte na fronteira dos territórios da Ordem de Santiago
A atalaia de Belmonte, estrutura militar de carácter defensivo, construída em taipa, situa-se na Herdade de Belmonte, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente e distrito de Santarém. Localizada numa pequena elevação na margem esquerda do rio Almansôr, integra-se em pleno na zona do montado de sobro, distando cerca de 11 Km. da sede do concelho e 10 Km. da vila de Samora Correia, esta última também localizada na margem esquerda do rio mas junto à foz. O acesso é feito através de um caminho de terra que parte da Estrada do Infantado, no troço compreendido entre o Porto Alto e o cruzamento de Coruche, distando para o interior cerca de 2 Km. Todo este território se integra em propriedades da Companhia das Lezírias. As sondagens arqueológicas realizadas em 1995 e 1996, integravam-se no projecto de investigação denominado "A ocupação romana na margem esquerda do Estuário do Tejo", concorrendo para um conhecimento mais alargado das estratégias de ocupação nesta região e potenciando, naturalmente, a sua articulação com a restante zona estuarina. A torre constitui o elemento que permite a individualização do local e a sua relevância, enquanto posição militar avançada da Ordem Militar de Santiago.
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o sítio - O ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO O sítio assenta no topo de uma elevação sobranceira à Ribeira de Santo Estêvão ou Rio Almansôr, numa zona designada de Paúl de Belmonte, um pouco a jusante da Herdade Monte dos Condes, situada na margem oposta. O coberto arbóreo deste monte e dos envolventes apresenta como tipo dominante o zambujeiro, forma selvagem da oliveira. De resto, toda esta zona de charneca é fundamentalmente rentabilizada como montado ou pasto de gado bovino e ovino, enquanto nas várzeas e terrenos marginais do rio, encontramos a cultura orizícola como predominante (Fig.1).
Fig. 1 - Pormenor da carta militar nº405; vista do Monte de Belmonte
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O Monte de Belmonte é uma plataforma regular no que respeita à altimetria, verificando-se uma oscilação média entre os 24 e os 26 metros de altura, e irregular quanto à forma, apresentando-se como uma das elevações mais destacadas da área. Destaca-se claramente como uma plataforma elevada, com valores máximos de 70 metros de comprimento por 50 metros de largura. As vertentes apresentam declives por vezes superiores a 45º de inclinação excepto na extremidade Sul que corresponde ao corredor natural de acesso à plataforma (Fig. 2). A morfologia do terreno envolvente isola o planalto, a Norte, Este e Oeste, definindo-o como um esporão facilmente defensável e encaixado na curva do rio, situação que proporciona uma ampla visibilidade sobre o seu curso. A navegabilidade deste afluente do Tejo terá permitido desde sempre e até meados deste século, o contacto do homem com territórios mais remotos, tornando-se uma via de comunicação da maior relevância. A concorrência de todos estes factores terão contribuído para um padrão de ocupação contínuo do território tanto espacial como cronologicamente.
Fig. 2 - Desenho a pastel da atalaia de Belmonte, de Leonardo Charréu
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O enquadramento político administrativo A atalaia de Belmonte integrava, em pleno século XIII, o termo de Palmela, representando o seu ponto estratégico mais avançado a Noroeste e definindo os limites com Coruche através da Ribeira de Canha, Ribeira de Santo Estêvão ou Rio Almansor. A individualização de Benavente promovida pela Ordem Militar de Évora mais tarde designada de Ordem Militar de Avis, que se concretiza na doação da Carta de Foral por Pelágio, Mestre da Ordem, "aos povoadores de Benavente, tanto presentes como futuros", em 25 de Março de 1200, provoca o desmembramento desta do Castelo de Coruche passando, então, a Ribeira a delimitar os termos de Palmela e Benavente (Fig. 3).
Construído antes de 1207, "(...) também adjudicamos por sentença integralmente as décimas de todas as possessões de Arruda como as que vão até Palmela e Belmonte(...)", o "castelo" de Belmonte constitui um elemento essencial na consolidação e posse das terras marginais do Baixo Tejo, reconquistadas pelos cristãos. Enquanto Comenda da Ordem Militar de Santiago, sediada em Palmela, Belmonte adquiriu alguma projecção do ponto de vista militar, eclesiástico e administrativo. As Inquirições de 1220, incluem "o castro de Belmonte" quando procedem à enumeração de todas as possessões da Ordem. Ainda na Chancelaria de Santiago, encontramos uma referência a esta Comenda datada de 1478, à época atribuída a Álvaro Mascarenhas, onde constava que o termo de Belmonte valia 60 mil reis . O surgimento de um núcleo urbano a jusante e situado, igualmente, na margem esquerda do Rio denominado Samora Correia, com Foral datado de 1510, terá conduzido ao abandono sistemático deste local, uma vez que do ponto de vista económico, teria melhores acessibilidades tanto fluviais como terrestres. Poderemos ainda relacionar a mudança do carácter da Ordem, abandonando o ideal de cruzada e, neste sentido, a sua vocação marcadamente militar.
Fig. 3 - Os territórios conquistados nos séculos XII e XIII, por Ruy de’ Azevedo
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No entanto, ainda no século XVI, o sítio de Belmonte fez concentrar em torno de si um conjunto de casas térreas, uma construção de maiores dimensões que constituiria a morada dos Comendadores e uma ermida dedicada a São João, dados estes que podem ser comprovados pela documentação relativa a uma Visitação no ano de 1574 "há uma ermida de são João, em parte derrubada e a cair, pedindo ao Duque e Comendador que mandásse fazer aquilo que é sua obrigação". E já no século XVIII encontramos duas referências a Belmonte que já evidenciam o progressivo abandono deste local. Uma primeira inscrita na Corografia Portuguesa de 1721 "(...) no termo (de Samora Correia) há outra comenda, que chamaõ de belmonte, antigamente de bom rendimento, a qual consta de hum paúl com muitas terras & matos, montados & arvoredos, não hé dos Comendadores formados, que tem igreja, mas hé de dizimos & raçaõ (...)". E ainda as Memórias paroquiais compiladas pelo Padre Luís Cardoso, em 1758, relatam-nos a existência de Belmonte como um dos lugares de Samora Correia com doze vizinhos, o que apesar de tudo nos sugere a permanência naquele local de cerca de 42 pessoas. As memórias paroquiais referem ainda a existência da ermida"(...) na distãncia de duas legoas de S. Joam de
Belmonte, pertencente e administrada pela Excellentissima caza de Aveiro". Em 1834 a comenda de Belmonte foi extinta, passando a integrar as propriedades da recém criada Companhia das Lezírias do Tejo e Sado, situação que aliás hoje se mantém embora o território sob administração da Companhia tenha sido consideravelmente reduzido. Em toda a área de intervenção ocorrem conjuntos de fragmentos cerâmicos de carácter, mais ou menos, heterogéneo remetendo para diferentes momentos de ocupação e que evidenciam a localização privilegiada do sítio. Com efeito, podemos referir, entre outros, a ocorrência de escassos materiais romanos recolhidos, que por se encontrarem descontextualizados não evidenciam uma integração coerente. De resto, importa salientar a ocupação sistemática do local, referenciada até ao século XVIII e que corresponde ao momento de abandono de Belmonte. As sondagens realizadas localizaram-se em três áreas dentro do perímetro definido, uma primeira no limite sudeste, junto ao muro exterior, uma segunda junto à face noroeste da atalaia e uma terceira área numa zona central do recinto. Do ponto vista metodológico foi definida uma quadrícula com 2,5x2,5m e atribuída uma identificação alfanumérica (Fig.4).
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Fig. 4 - Esquema de nomenclatura de quadrículas
As estruturas As estruturas existentes evidenciam a utilização das matérias-primas disponíveis, nomeadamente, os seixos rolados provenientes dos densos cordões de cascalheiras que ocorrem por toda esta área aluvionar e as areias. Da combinação destes materiais resultam as estruturas que detectamos revelando uma maior ou menor resistência, de acordo com a função que lhes está atribuída : a atalaia, construída em taipa; o perímetro defensivo, em seixos rolados e argamassas, que envolve toda a plataforma , cobrindo na face exterior uma presumível muralha em taipa; os muros de pedra aparelhada e argamassados.
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Atalaia / torre A torre de Belmonte representa a estrutura mais evidente deste conjunto. A atalaia é uma estrutura defensiva em taipa, de planta quadrangular, com cerca de 10 metros de lado. Apresenta sinais de degradação evidentes, mas mantém ainda em duas faces (Sudoeste e Sudeste) uma altura de aproximadamente 5 metros, enquanto na face que permite o acesso ao seu interior (face Noroeste) apresenta os indícios mais claros de desmoronamento, atingindo uma altura que não ultrapassa 1,5 metros (Fig. 5 e 6). A curiosidade suscitada por esta construção, atribuída tradicionalmente aos "mouros", motivou a população, sobretudo da aldeia mais próxima (Santo Estêvão) a cerca de 3 Km, a fazer descobertas reveladoras no local. Talvez, por esta razão a torre apresente a entrada tão destruída, dado que provavelmente não haveria um acesso junto ao solo mas sim superior, e mesmo no interior sejam ainda visíveis as marcas de um grande buraco feito em busca do tão misterioso túnel (cisterna?). Fig. 6 - Vista parcial do interior da atalaia
Fig. 5 - Atalaia de Belmonte - vista das faces sul e sudeste
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A espessura dos muros, oscilando entre 1,40 metro e 1,50 metro, denuncia a solidez da estrutura potenciando a sua altura para valores bastante superiores. Nas proximidades não existe nenhuma construção tão marcante no terreno. Do ponto de vista construtivo esta torre apresenta claramente definidas as linhas de separação entre as cofragens, evidenciando o côvado como medida de construção. Os taipais têm cerca de 85 cm, tal como definido para construções similares, e na separação de cada cofragem os buracos resultantes dos travessões horizontais que permitiam manter a cofragem até que os materiais secassem e compactassem, encontram-se mal definidos mas apontado para os 15 a 20 cm de diâmetro (Fig. 7 e 8). As argamassas têm um aspecto bastante compacto conferindo-lhe as características de taipa militar. E, apesar de não ter sido ainda realizada qualquer análise aos materiais que constituem o taipal, importa destacar a sua grande consistência, resultando por um lado, do alinhamento de seixos rolados dispostos de forma muito ordenada e por outro da própria estrutura de argamassa feita à base de cal e areias.
Fig. 7 - Pormenor da atalaia, face noroeste
O alargamento da área de escavação, pondo em evidência a grande quantidade de derrubes provenientes da torre e, sobretudo a limpeza do interior da referida torre fizeram reunir um número muito elevado de seixos rolados. Apenas como dado complementar, foram primeiro quantificados todos os seixos rolados que resultaram da abertura de uma das quadrículas, a quadrícula 08, e em cerca de 3 m3 de terra foram retirados 900 seixos rolados de dimensões médias, exibindo quase sempre uma face marcada com cal (Fig. 9 ).
Fig. 8 -Pormenor da escavação junto á atalaia, face noroeste
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Perímetros defensivos Todo o recinto, definindo uma plataforma com cerca de 2.500 m2, parece assumir um carácter murado constituído por um muro discreto no que respeita à construção, mas aparentemente consistente. Nas quadrículas escavadas superficialmente de modo a retirar apenas a camada de revolvimento inicial e condicionadas, tal como já foi referido, pela ocorrência de uma terra compactada provavelmente proveniente de derrubes em taipa, define-se o capeamento exterior da muralha de taipa. Estas estruturas feitas com seixos rolados argamassados não ultrapassam os 0,15 m de espessura e apresentam no seu interior um revestimento em argamassa muito regular, alisada e disposta de forma totalmente vertical. Se, na face exterior, este muro sugere uma construção bastante consolidada e que resulta da colocação dos seixos de forma organizada, o seu interior deveria ser preenchido com taipa ou terra fortemente compactada, hipótese esta que apenas poderá ser comprovada através da realização de futuras sondagens. Toda a plataforma sugere que se encontra, eventualmente, "muralhada" por esta estrutura criando um recinto fechado onde se define claramente um acesso virado a sul. Paralelamente, convém ainda referir a ocorrência de estruturas em taipa ou terra intencionalmente compactada com argilas, resultante de prováveis derrubes de construções feitas com estes materiais (Quadrícula H14), apenas identificáveis quando se proceder à abertura da área escavada em extensão.
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Vestígios de habitações e
outras estruturas
Na quadrícula P14, individualizou-se um muro de pedra orientado no sentido Este/Oeste com cerca de 60 cm de espessura, visível desde a camada superficial. Trata-se de uma estrutura posterior à atalaia e, por agora, sem relação com o restante contexto. A sua fundação assenta directamente sobre a terra a cerca de 60 cm de profundidade. No limite Nascente da quadrícula, distando 50 cm do seu limite, o muro desaparece definindo uma soleira com seixos dispostos de forma regular, corresponde à camada 3. Sob a referida estrutura continuam a surgir fragmentos de cerâmica. Na quadrícula aberta junto à atalaia, O8, na parte que não contacta com esta começou a individualizar-se no último nível escavado, um muro em pedra com uma orientação vagamente diferente da torre, muito bem consolidado. Desta estrutura apenas ficou visível uma parte muito reduzida (Fig. 10).
Perfil 2 quadrículas P14 e Q14
Fig. 10
C1 - Camada superficial de terras pouco compactadas, com seixos de calibres variando entre 1 e 15 cm e fragmentos de cerâmica comum e de construção. C2 - Terra com coloração castanha acinzentada com fragmentos cerâmicos e fauna, criando uma bolsa individualizada. C3 - Camada muito fina de argamassa branca, com cerca de 1 cm de espessura, sugerindo um pavimento. C4 - Terra castanha correspondendo, provavelmente, a uma camada de enchimento com cascalheira fina, com poucos fragmentos de cerâmica e muito fragmentados. C5 - Terras castanhas claras compactas com muitos seixos rolados de calibres variando entre 5 e 15 cm, vestígios de argamassas, fauna e fragmentos de cerâmica comum e de construção. C6 - Terra de coloração alanrajada solta com alguns seixos e cerâmica de construção.
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O espólio cerâmico
1. BM95-299
2. BM96-625
3. BM96-575
4. BM95-496
5. BM95-239
6. BM95-53
7. BM95-50
0
Fig. 11
1
5
10 cm
As cerâmicas que se recolheram na sequência das duas campanhas de sondagens não se integram em contextos coerentes, encontrando-se muito fragmentadas e possibilitando poucas colagens. Destaca-se um conjunto pouco homogéneo reunindo tipologias que vão do período romano (3 fragmentos de pé em sigillata hispânica), até aos vidrados atribuídos ao século XVI. As cerâmicas aqui registadas foram, quase na sua totalidade, fabricadas em fornos de cozedura oxidante embora ocorram casos de cozedura redutora. As pastas apresentam texturas muito diversas desde as grosseiras com componentes não plásticos de granulometria média e desengordurantes grossos, até às pastas finas bem depuradas. As pastas analisadas à lupa apresentam características típicas de barros recolhidos em planícies aluvionares, tanto mais válido quanto nos encontramos numa região com essas características geo-morfológicas. Estes conjuntos cerâmicos parecem apontar, de acordo com os tipos de pastas e tipologias, para produções de carácter regional associadas a momentos de ocupação medieval remetendo para cronologias que vão da primeira metade do século XIII à primeira metade do século XVI (Fig. 11). Quanto à produção de carácter regional começa a desenharse o que sugere tratar-se de uma certa coerência formal e tipológica entre materiais exumados em sítios arqueológicos que se distribuem pela bacia do Tejo e Sado, nomeadamente, ao nível da loiça e de contentores em cerâmica comum, dentro de um espaço cronológico que se pode balizar entre o século XIII/inícios do XIV até à primeira metade do século XVI.
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Um significativo conjunto de peças da atalaia de Belmonte apresentam, em termos formais, o que se pode designar por certos "traços de família" com exemplares exumados no espaço cultural atrás referenciado, como são os casos das panelas (fig. 11 nºs. 1 e 2), copos, pratos e alguns modelos de taças e terrinas (fig. 11 nºs. 3 e 4). Quanto às bilhas, estas denotam uma representatividade formal, tudo o leva a pensar, muito variada, no que respeita aos modelos e dimensões herdadas (fig. 11 nºs. 5,6, e 7). Nesta primeira abordagem às cerâmicas é de salientar a presença de um conjunto cerâmico, cronologicamente atribuível aos séculos XIII e XIV, que corresponde a peças pintadas a branco revelando influências de tradição islãmica. As cerâmicas vidradas encontram-se pouco representadas, limitando-se a pequenos fragmentos de asas e panças. Até ao momento não se regista a presença de pratos e de taças esmaltados, assim como há total ausência de faianças. Finalmente, quanto à cerâmica importada, há a registar a presença de um fragmento de fundo de parede, provavelmente de uma escudela, com a superfície esmaltada a branco e com decoração interna a azul de cobalto. Esta peça é integrável no século XVI e de origem, provavelmente, Sevilhana.
Objectos metálicos Apareceram nas diferentes camadas e nas quadrículas escavadas onde foi possível definir sequências estratigráficas, pregos de vários tamanhos, com secção quadrangular e cabeças quadradas ou circulares. O conjunto mais significativo foi o que surgiu na camada 5 da quadrícula O8. Nas camadas superficiais, correspondendo à camada 2 das quadrículas P14, Q14 e O8, recolheram-se sete dinheiros de Afonso III, iguais ao número 164 do "Catálogo descritivo das moedas portuguesas". Foram ainda recolhidas duas meias moedas nas mesmas condições de achado das referidas anteriormente, não identificáveis.
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Algumas considerações finais Da realização das duas campanhas de escavação que tiveram lugar nos anos de 1995 e 1996, os resultados arqueológicos obtidos, embora ainda bastantes escassos no que se refere ao espólio exumado, indiciam já a existência de uma ocupação Medieval e Baixo Medieval. Por agora temos como melhor documentada, uma vez que assente na documentação histórica, a ocupação medieval cristã. Com efeito, ao longo deste período, toda a área constituída pelo planalto onde se inscreve a atalaia aponta para uma ocupação de carácter contínuo. A partir de meados do século XVI e, provavelmente, na sequência do progressivo desenvolvimento de Samora Correia, com Foral de D. Manuel I, em 1510, verifica-se um gradual e continuado abandono do local. Actualmente, a antiga comenda de Belmonte, resume-se a uma pequena capela, totalmente despojada e utilizada durante muito tempo como palheiro. Ainda nas proximidades, encontramos o Monte de Belmonte, estrutura agrícola totalmente abandonada, que pelas dimensões que ainda ostenta, indicia a existência de um Monte Agrícola tradicional de grande expressão local. Apesar da ocupação sistemática do local, não compreendendo quaisquer momentos de abandono pelo menos durante cerca de 500 anos, até ao momento os contextos arqueológicos revelam-se modestos, evidenciando grande quantidade de fragmentos de características técnico-morfológicas muito diversas. O fraco potencial estratigráfico foi ainda mais agravado pelo intensivo plantio de olival, no início do século XX, que conduziu a um grande revolvimento das camadas de abandono. Também o progressivo abandono do local, sem rupturas evidentes, poderá marcar a grande ausência de peças completas. Muito embora ocorram fragmentos dispersos, muito bem individualizados, do período romano não é ainda possível apurar qualquer estratégia de ocupação ao longo deste momento histórico. As condições favoráveis à fixação do homem nesta área, apontam para que tenha sido explorada do ponto de vista da navegabilidade do rio e da localização estratégica. A articulação com outras estruturas na região e de forma mais alargada em toda a zona estuarina do Tejo, poderá revelar-se vantajosa para o estudo deste local em particular. No conjunto, o prosseguimento deste trabalho permitirá definir padrões de ocupação nesta região que, do ponto de vista, diacrónico se estendem até ao século XVIII.
NOTAS HISTÓRICAS SOBRE A PONTE DE BENAVENTE
Sandra Ferreira Técnica Superior de História Arquivo Histórico Municipal de Benavente
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Pontes sobre o Sorraia
O Sorraia já foi atravessado por três estruturas distintas: Uma ponte de pedra, ao fundo da Calçada da Ponte Velha, bem perto do Cruzeiro do Calvário. Uma ponte de madeira, no seguimento do viaduto construído por D. José depois do terramoto de 1755, próxima do local da actual ponte de ferro. A ponte ardeu no início do XIX. Uma ponte de ferro, aproveitando o viaduto existente, é inaugurada em Setembro de 1875. A ponte de pedra foi demolida em 1876. É esta sucessão de pontes, esta sucessão de modalidades de transposição deste obstáculo, o Rio Sorraia, que pretendemos relatar de momento. Passaremos então a essa breve nota que pretendemos dar à História da nossa vila, salientando a importância da ponte para a vida do concelho e naturalmente o patrocínio do concelho na construção da dita ponte.
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Local onde ficava situada a Ponte de Pedra,no fim da anterior calçada da Ponte Velha
Calçada da Ponte Velha
A 5 de Agosto de 1510, a Câmara Municipal, reunida em sessão plenária na presença de todo o povo da vila, resolve fazer uma ponte de pedra no rio da vila, para substituir a de pau, que estava derrubada. Em virtude de ser uma obra muito dispendiosa, a que o Município não podia fazer face com os seus próprios rendimentos, toma a resolução de impetrar a El-Rei D. Manuel várias mercês, tais como: - auxílio monetário pelos direitos reais do Concelho; - contribuição obrigatória, para a obra, dos lugares da comarca, a saber Coruche, Muge, Salvaterra e Samora Correia, assim como dos institutos religiosos, pessoas privilegiadas e outras não residentes no Concelho que hajam nele bens; - disposições para que as autoridades locais mandem que se cedam barcas, carros, bestas e material de construção, e os artífices dos vários mesteres prestem serviços, tudo isto segundo o "estilo da terra". A obra foi orçada em 400.000 reis(1). Desta forma, passou a existir, ligando a vila à várzea, uma ponte de pedra sobre o Sorraia. Essa ponte, que tinha um declive suave para o rio, obra do séc. XVI: tinha um arco grande central e dois menores laterais.
Dando o grande, passagem a barcos de tamanho regular. Ao lado existia um porto, de carga e descargas, para os barcos que subiam o Tejo e entrando no Sorraia vinham descarregar o sal, entre outros produtos, para abastecimento local. A ponte significava, como já foi mencionado, uma passagem para a várzea que envolvia a vila de Benavente. Para a várzea onde as gentes iniciavam o seu dia no rude trabalho do campo. E, em tempo de cheias seria com maior segurança que ultrapassavam as águas do Sorraia, isto se este com a sua força não tivesse, ainda, inundado a várzea circundante. Mas, o Tombo de 1499 já refere o "caminho que vae para a ponte!" e o Livro de Aforamentos (Arq. Misericórdia) nomeia em 1509 a "ponte da vila", mas é possível que se tratasse de uma ponte de madeira que havia existido próximo daquela, conforme se diz no Tombo de 1561. Aí ficava também o porto principal da vila, onde se fazia transbordo de mercadorias dos barcos de grande lote (porte) para outros de fundo chato, que íam até ao Alto Alentejo.
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Referências há em relação a esta ponte quando: Em 1560 (14 de Julho) por proposta do Corregedor, foi aprovada a reparação da ponte uma vez que estava em ruínas, trabalho esse a ser custeado pelo Concelho. Na recuperação da ponte era previsto gastar 200000 reais e o Corregedor propôs que a Câmara retirasse das rendas do Concelho 40000 reais por ano, o que ao fim de cinco anos perfazia a quantia global; foi igualmente proposto pelo Corregedor, no sentido de as mesmas obras se iniciarem imediatamente que ele falasse à Rainha D. Catarina [Regente]) (2) para o empréstimo da totalidade da verba, retirada do cofre dos Orfãos, a pagar pelos cinco anos (3). A 25 de Abril de 1561 é acordado, em sessão de Câmara, passar cartas para Lisboa, Santarém, Tomar e outros lugares, para se pôr em pregão a obra de reparação da ponte desta vila, em conformidade com ordens régias. João Rodrigues Bulhão, em 12 de Junho de 1561, é nomeado para o cargo de recebedor e vedor da obra de reparação da ponte. Nesse processo, a 3 de Julho de 1561 é decidido pedir dinheiro a sua Alteza para a reparação através da imposição dos vinhos por cinco anos. Mas, a 30 de Julho a Câmara volta atrás e desta vez acordam em anular o pedido que fizeram a El-Rei no sentido de lhes conceder a imposição dos vinhos por cinco anos, uma vez que as obras poderiam alongar-se por mais tempo. Acordam pedir a El-Rei que, em vez de conceder a imposição dos vinhos, passasse a esta vila provisão para que esta Câmara pudesse lançar um imposto da finta na vila e seu termo, o que fosse necessário para a reparação da ponte.
Ponte sobre o rio Sorraia
Em 12 de Outubro do mesmo ano, é acordado em sessão de Câmara fazerem uma quotização por todos, para arranjarem a quantia de 10000 reais que faltava para cobrir o custo geral das obras de reparação da dita ponte, no total de 220000 reais, preço pelo qual se procedeu à arrematação da obra, para o que pediam autorização a El-Rei, em vez do monarca passar provisão lançando imposição nos vinhos. O mestre da obra de reparação era Vicente Ribeiro, com o qual o Concelho tinha uma dívida. Em 9 de Março de 1562, o licenciado Diogo Gastão, do Desembargo do Paço, Provedor das terças, Orfãos e resíduos da Comarca de Setúbal, leu uma provisão régia sobre essa dívida onde se ordenava o lançamento da imposição nos vinhos que se vendessem nesta vila até perfazer a quantia de 40000 reais, sendo 26000 reais para pagarem ao mesmo pedreiro e o restante para se entulharem uns caboucos e pegos que estão abaixo e acima da ponte de pedra apoiando o povo, por maioria a imposição régia atrás referida mas somente até à verba estipulada. É pago de prémio ao vedor e recebedor da obra da ponte, João Rodrigues Bulhão a quantia de 5000 reais, à razão de 1 tostão por dia, o que era costume pagar no reino, durante três meses e meio, pouco mais ou menos, que foi o tempo que durou a obra.
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A imposição finda em 1 de Abril de 1564, quando em sessão de Câmara se acorda que a partir desse dia em diante nenhuma pessoa meça mais pelas medidas da imposição, sob pena de 1000 reais de multa, mandando que o aferidor do Concelho as afilasse por canadas como dantes, isto porque já tinham sido passados 2 anos sobre a imposição, imposta por provisão de ElRei, para ajuda das obras da ponte da vila, notificando, ainda, o rendeiro da imposição, Manuel Rodrigues, alcaide. Segundo o Estudo Histórico Descritivo de Álvaro Rodrigues D'Azevedo, em 1724 estava a ponte de pedra já muito arruinada, e a Câmara pretendeu lançar um imposto sobre a carne e o vinho, para com essa verba custear o conserto da ponte. Toda esta estratégia não chegou a efectivar-se.
Em 1872 a Câmara anuncia o mau estado em que se encontrava a ponte e nesse mesmo ano empreendeuse, então, uma obra muito importante, de que Benavente muito necessitava: o aproveitamento do viaduto pombalino que foi bastante reforçado, assim como alteado o macadame, e o lançamento de uma sólida ponte de ferro sobre o Sorraia, a ligar aquele com a vila. Do lado de lá da ponte seguia um caminho até à Vala Nova, designado de "Pégo da Pontinha" e que seguia até à vizinha Salvaterra de Magos. O mau estado da ponte-viaduto sobre o Sorraia é relatado em sessão de Câmara do dia 19 de Março do dito ano, como atesta o documento que se segue.
Após o terramoto de 1755, no reinado de D. José, construiu-se um viaduto sobre arcos de alvenaria, atravessando a várzea até ao Sorraia. Foi precisamente em 1770 que se fez o dito viaduto, que custou vinte contos de réis e é também neste mesmo ano que se constrói as Casas da Câmara de Salvaterra (A.H.U. M. do Reino m.29)(4). Posteriormente, mas ainda em reinado de D. José, ligou-se o viaduto à vila por uma ponte de madeira, que vinha assentar nas barreiras, perto do local onde está hoje a ponte de ferro. Essa ponte de madeira foi feita por subscrição do comércio de Lisboa, em reconhecimento daquele monarca o isentar de pagamento de certo imposto. No princípio de séc. XIX ardeu a ponte de madeira, voltando o trânsito a fazer-se pela ponte de pedra(5). Ponte sobre o rio Sorraia
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Acta da sessão do dia 19 de Março de 1872(6) Aos desenove de Março de mil oitocentos setenta e dois nesta villa de Benavente, Paços do Concelho e sala das sessões da Camara Municipal se reuniram o Snr. Presidente João Sabino d'Almeida Fernandes e os Snrs. Vereadores José Gomes Corrêa, Carlos Sabino de Freitas e António Lopes Nogueira da Silva. Faltou com motivo justificado o Snr. Vereador Pedro Alexandrino Cardoso. Estava presente o Snr. Administrador do Concelho, António Justino Corrêa da Fonseca. Pelas dez horas e meia da manhã o Snr. Presidente abriu a sessão. Leu-se e foi approvada a acta da sessão antecedente. Em seguida deliberou a Camara representar á Junta Geral deste distrito o estado verdadeiramente deplorável em que se acham as pontesviaductos sobre as varzeas de Benavente e Samora Correia pedindo-lhe que empregue os meios ao seu alcance para que com a brevidade possivel se proceda nas obras necessarias nas mesmas pontes-viaductos. Mais deliberou que, accusando-se a recepção do officio do Snr. Procurador á Junta Geral pelos Concelhos de Benavente, Coruche e Salvaterra de Magos, Doutor Julião Casimiro Ferreira, em que pede se lhe indiquem para as propor em Junta as maiores necessidades deste Concelho, se lhe apontasse como uma das mais instantes a da conclusão e reparação das duas sobreditas pontes-viaductos, remettendose-lhe a representação da Camara sobre este assumpto para ser por sua Excellencia apresentada, e disendo-lhe que na urgencia de prover de remédio a este mal se confundem todas as outras precisões. E finalmente deliberou que se passassem editais para se arrendar em praça nos Paços do Concelho um hectar e cinco mil e cincoenta e quatro centiares de terreno no valle d'Asseiceira, junto ao terreno aforado por Florencio de Jezus com as condições gerais dos arrendamentos do Concelho. Não havendo mais que tratar o Snr. Presidente levantou a sessão, eram dose horas do dia. E de tudo, para constar, se lavrou a presente que assignam depois de lida. Eu Custodio Manoel de Sá Pereira e Moura, Escrivão da Camara, a escrevi. (Seguem-se as assinaturas)
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Apesar da existência de uma ponte, de um meio de ultrapassar o Sorraia, o Rio como via de comunicação continua a exercer as suas funções. É neste sentido que verificamos a existência em Actas da Câmara Municipal de referências a um barqueiro, também pescador, que fazia o transporte de gentes e de mercadorias de uma margem para a outra, como podemos verificar na passagem que se segue: "Concertam-se com Fernão de Eanes, barqueiro e pescador, para que passe toda a pessoa que quiser para a outra margem do rio, pagando-lhe em bolo ou por cada travessia, fixando, neste último caso, o preço de 5 reais para a pessoa de pé, de ida e de vinda, e 10 reais para a pessoa a cavalo, pagando as pessoas de fora, 10 reais e 20 reais, respectivamente, e os almocreves, que carregam grão para as azenhas, pagarão 10 reais por besta e 5 reais por saco, determinando, mais, que somente este Fernão de Eanes possa fazer este trabalho sob pena de lhe pagarem p prémio que ele levar"(7) Na vila, para além da existência da ponte e de todo um ambiente que caracteriza a área que a circunda, apareceria na toponímia referências a nomes de ruas que ficam marcados pela proximidade da dita ponte, esta de pedra, como é o caso da Calçada da Ponte Velha. Iríamos encontrar, atracados no porto junto à ponte, barcos carregando cortiça, lavadeiras, pescadores, mesmo que não fosse essa a sua principal ocupação, gentes do campo que a usavam como acesso rápido e seguro para o seu rude local de trabalho, homens a cavalo misturados com os primeiros carros que apareciam na vila, certamente dos mais abastados... É assim que pudemos imaginar, hoje, o ambiente que circundaria a «nossa» ponte.
«... os touros vinham da várzea, passavam o rio à ponte, se não a vau, subiam a ladeira da ponte e ficavam logo encurralados na praça.»
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Inauguração da ponte de ferro sobre o Sorraia Tornando-se uma peça fundamental para o dia-a-dia das gentes de Benavente e para quem nela passava vindo de terras distantes a ponte assume, desta maneira, um papel vital. Neste sentido, em 1869, considerado o estado de ruína da ponte e viaduto, é elaborado pela Repartição Distrital das Obras Públicas do distrito de Santarém uma memória descritiva para que se efectuasse uma intervenção na ponte, salientando os factores causadores de tal ruína, como podemos verificar no seguinte excerto: “[...] seria de grande conveniência fazer-lhe aquella estrada districtal, reparando e complectando o viaducto hoje abandonado, fazendo-o ligar com a villa de Benavente, para o que seria necessario construir mais dois ou trez aqueductos, e uma ponte de trez vãos (que poderia ser do systema misto) sobre o Rio Sorraia, deste modo acabariam as despezas que é necessario continuadamente estar fazendo em reparações por cauza das cheias, que na estação própria inundão aquella várzea sobre que atravessa o viaducto, bem como collocava os habitantes d’aquella villa em circunstancias de se poderem transportar ao local de embarque que os conduz ao Tejo, por que o Rio Sorraia que atravessa a dita várzea nas proximidades da villa, está quasi inavegavel, principalmente em certas estações do anno, por isso a navegação de Benavente para o Tejo faz-se por uma valla que fica a grande distancia da povoação, sendo preciso atravessar a dita várzea por não poderem ir pelo viaducto, por não estar concluído, dizem que já alli houve uma ponte de madeira, construida em tempo d’ElRei D. Joze que dava accesso da villa para o viaducto, porém a acção do fogo encarregou-se de destruir. [...]”
Todas estas deligências são efectuadas para que o trânsito não fosse subitamente interrompido devido ao estado de ruína da ponte de pedra, a ponte de ferro foi inaugurada em Setembro de 1875 na presença de todos os ilustres da vila e aberta ao público em Novembro do mesmo ano (Doc.1); as obras da ponte, reforço do viaduto e construção dos últimos arcos, a partir da curva que o mesmo faz, duraram de 1872 a 1877. A ponte de pedra foi começada a demolir em 1875, mas ainda nesse ano se transitou por ela, acabando a demolição em 1876. A partir de então, a ponte de ferro iniciou a sua actividade permitindo a passagem para a outra margem do rio. O acesso a Salvaterra de Magos e à várzea que circunda a vila ficou, agora, mais facilitado. Em 1909 (23 de Abril) Benavente sofreu um forte abalo sísmico que arruinou grande parte da vila, perdendo esta a grande maioria do seu mais valioso património. Em relação à «nossa» ponte não há registos de ruína a salientar. Somente nos surge referência a umas "fendas abertas perto da ponte de Benavente"(8).
Tabuleiro da ponte sobre o Sorraia
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Doc. n.º 1 CMB/M/B.6. Auto de abertura ao trânsito da ponte sobre o Rio Sorraia
Concelho de Benavente Anno de 1875 Auto da commemoração da abertura ao tranzito publico da ponte mixta sobre o rio Surraia que faz parte da estrada distrital n.º 16 de Benavente ao Tramagal. Gentes de Benavente atravessando o tabuleiro da Ponte
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos setenta e cinco, ao primeiro de novembro pela uma hora da tarde, nesta vila de Benavente e sitio denominado-o porto da judiaria(9) onde já se achava prezente o chefe de secção de construcção, Francisco Liberato Telles de Castro da Silva representando o Director das Obras Publicas deste districto e acompanhado do conductor chefe de trabalhos Alfredo Maximino Bethamio d'Almeida, tendo ahi chegado a Camara Municipal deste concelho, presidida pelo seu Vice-presidente Francisco de Paula Xavier e composta com os vereadores Carlos Sabino de Freitas e Pedro Alexandrino Cardozo, o Presidente da mesma Camara, servindo d' Administrador do Concelho, o Comendador João Sabino d'Almeida Fernandes, os seguintes cavalheiros: Doutores Henrique Pinto e António Teixeira Alves Martins, Juiz de Direito o primeiro e o segundo Delegado do Procurador Regio desta Comarca, Doutor José António d'Azevedo Borralho, Doutor Joaquim Monteiro Grillo,
Francisco José Cabral de Lemos Calheiros, António Vicente d'Almeida Fernandes, João Moniz da Silva Botto, Doutor Anselmo Augusto da Costa Xavier, João Vicente d'Almeida, José Rodrigues d'Azevedo, Manoel de Sá Pereira, Francisco Macedonio Nunes da Silva, Manoel de Sá Pereira Junior, Francisco d'Assis Barreto Junior, Domingos Neves de Carvalho, José Melitão Gomes Barboza, Francisco d'Assis Barreto, Joaquim Antonio Varella, Francisco Cezar Gonçalves e Silverio Soares da Costa e muitas outras pessoas da localidade, o referido chefe de secção, depois de em breves palavras fazer o detalhe da construcção da sobredita ponte, e de por esta occasião agradecer o auxílio que recebeu de differentes pessoas desta vila para o regular andamento da mesma construcção, dirigiu-se ao Presidente da Camara dizendo que havendo-se sujeitado a ponte ás provas legaes, e tendo ellas sido satisfatorias lhe pedia se dignasse declara-la aberta ao tranzito publico, o que o referido Presidente praticou, observadas as formalidades do estylo.
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Ao findar a declaração do Presidente da Camara de que a ponte estava aberta ao tranzito publico, inumeros foguetes foram lançados ao ar e a philarmonica benaventense que tão bem estava prezente executou o hynno da carta. Por ultimo o mesmo Presidente da Camara pediu e unanimemente se concordou em que se consignasse neste auto um voto de louvor ao Director das Obras Publicas do Districto de Santarem e Lisboa, o Tenente Coronel do Estado Maior d'Arthelharia, Domingos d'Apresentação Freire, pela dedicação e zelo que tem empregado tanto na elaboração do respectivo projecto digo que empregou tanto na elaboração do respectivo projecto como na sua construção e bem assim aos demais empregados que o auxiliaram com especialidade o chefe de secção de construção, Francisco Liberato Telles de Castroda Silva, e os conductores de trabalho José Antonio d'Oliveira Duarte e Alfredo Bethamio d'Almeida. E de tudo para constar, se lavrou o prezente auto que depois de lido em voz alta foi assignado. E eu Custodio Manoel de Sá Pereira e Moura, escrivão da Camara, o escrevi.
Vista da estrutura da Ponte
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Francisco de Paula Xavier Carlos Sabino de Freitas Pedro Alexandrino Cardozo João Sabino d'Almeida Fernandes Francisco Liberato Telles de Castro da Silva Alfredo Maximino Bethamio d'Almeida Henrique Pinto Antonio Teixeira Alves Martins José Antonio d'Azevedo Borralho Joaquim Monteiro Grillo Francisco Jose Cabral de Lemos Calheiros António Vicente d'Almeida Fernandes João Moniz da Silva Botto Anselmo Xavier João Vicente d'Almeida José Rodrigues d'Azevedo Manoel de Sá Pereira Francisco Macedonio Nunes da Silva Manoel de Sá Pereira Junior Francisco d'Assis Barreto Junior Domingos Neves de Carvalho José Melitão Gomes Barbosa Joaquim Antonio Varella Francisco Cezar Gonçalves Francisco d'Assis Barreto Silverio Soares da Costa Manuel Eduardo Barreto Eugenio Costa Paim dos Reis Luiz Carlos Pinto d'Azevedo Registrado no l.º comp. de fl.65 a fl.67. Benavente, 26 de Março de 1888
O Secrect.º da Camara Pereira e Moura
Ponte de ferro sobre o Sorraia
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Cronologia 1509 No livro de aforamentos da Misericórdia (Arq. da Misericórdia) aparece referência à ponte da vila
(30 de Julho) A Câmara anula a decisão de pedir dinheiro, a El-Rei, através da imposição, pois as obras podem alargar-se por mais tempo.
(5 de Agosto) A Câmara resolve fazer uma ponte em pedra, substituindo a de madeira. (Exp. Feira de Santarém)
(12 de Outubro) Em sessão de Câmara é acordado fazer uma quotização por todos, para arranjar a quantia de 10000 reais que faltava para cobrir o custo geral das obras de reparação da ponte.
1559
1563
(12 de Abril) Necessidade de reparação da ponte, atendendo ao estado de ruína. (1) (Ponte do Bêco do Açucar)
1724
1510
1560 (16 de Março) Proibição de passar com o gado pela ponte da vila. (56) (14 de Julho) Foi aprovada a reparação da ponte porque se encontrava em ruínas, trabalho custeado pelo Concelho.
(9 de Agosto) Reparação da ponte por mestre pedreiro.
A ponte de pedra estava muito arruinada e a Câmara pretendeu lançar um imposto sobre a carne e o vinho, para com essa verba custear o conserto da ponte.
1872 (19 de Março) A Câmara anuncia o mau estado em que se encontrava a ponte-viaduto.
1872-1877 1561 (25 de Abril) Acordado em sessão de Câmara, enviar carta para Lisboa, Santarém, Tomar, entre outros lugares, para se pôr em pregão a obra de reparação da ponte.
Tempo de duração das obras da ponte, reforço do viaduto e construção dos últimos arcos.
1875 (Setembro) Inauguração da ponte de ferro sobre o Sorraia. A ponte de pedra começa a ser demolida.
(12 de Junho) É nomeado para o cargo de Recebedor e Vedor da obra de reparação da ponte, João Rodrigues Bulhão.
(1 de Novembro) Abertura ao trânsito público da ponte de ferro sobre o Sorraia.
(3 de Julho) Decisão de pedir dinheiro a sua Alteza para reparação da ponte, através da imposição dos vinhos por cinco anos.
2000 Obras de alargamento do tabuleiro da ponte sobre o Sorraia, em Benavente.
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Bibliografia
Documentação
- Almeida, Alfredo Bethâmio de, O Convento de Jenicó 1542-1834, Benavente, 2ª edição; 2000;p. 78
Arquivo Histórico Municipal
- Azevedo, Álvaro Rodrigues d', BENAVENTE, Estudo Histórico-Descritivo, reedição da Câmara Municipal de Benavente; 1981; p. 276 - Correia, Francisco, Inventário do Arquivo Histórico de Benavente, Câmara Municipal de Benavente, 1ª edição, Benavente, 2000 - Correia, Francisco,- Subsídios para a História Benaventina de Século XVI (Sumários de um Livro de Actas da Câmara de 1559 a 1564), edição da Câmara Municipal de Benavente; 1ª edição; Benavente, Julho de 1995
CMB/M/B.6. Auto de abertura ao trânsito da ponte sobre o Rio Sorraia, 1875 CMB/B/A/1.10. Livro de Actas da Câmara Municipal de Benavente; 1869-1875 CMB/M/A/5. Projectos para obras Municipais - Projecto para a substituição da ponte de madeira - Santarém 4 de Setembro de 1886. - Memória Descritiva sobre o estado de ruína das pontes de Benavente e Samora Correia, elaborado pela Repartição Distrital das Obras Públicas do distrito de Santarém
Arquivo Histórico Ultramarino - Ministério do Reino, Maço 29
Terras d’Água
Notas: 1- Carta autografa, T. Tombo, Corp. Cron. I, maço 9, nº45 2- D. João III faleceu em 16 de Junho de 1557, iniciando-se um período de regências, primeiro de D. Catarina e depois do Cardeal D. Henrique, antes de D. Sebastião subir ao trono. 3- Acta da Câmara Municipal de Benavente de 14 de Julho de 1560. 4- Almeida, Alfredo Betâmio de O Convento de Jenicó 1542-1834 Benavente, 2ª edição; 2000;p. 78 5- Projecto para a substituição da ponte de madeira - Santarém 4 de Setembro de 1886. 6- Arquivo Histórico Municipal - Livro de Actas da Câmara Municipal de Benavente; CMB/B/A/1.10.1869-1875 7- Sumários de um livro de Actas da Câmara de 1559 a 1564 Acta de 16 de Janeiro de 1563; 1996 8- Azevedo, Álvaro Rodrigues d', BENAVENTE, Estudo Histórico-Descritivo, reedição da Câmara Municipal de Benavente; 1981; p. 276 9- Este porto era em frente do bairro da Judiaria, na pequena enseada e praia que o Sorraia forma a montante da Ponte de Ferro, supostamente no que é hoje o Jardim da Fateixa.
SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DA ALDEIA DE SANTO ESTÊVÃO
Alfredo Betâmio de Almeida
(A partir de um texto manuscrito pelo autor)
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Terras d’Água
A Aldeia de Santo Estêvão fica na região alentejana do concelho de Benavente. Nascida na vizinhança da chamada Ribeira de Canha, era, ainda não há muito, por vezes, conhecida pela Aldeia da Ribeira. Há vestígios nas suas cercanias de remota presença do homem. No sítio chamado "o castelo dos mouros" consta que se encontraram sepulturas e vasilhas. Já em meados do século XIV existia Santo Estêvão. O "Inventário dos bens móveis e imóveis da Ordem de Avis, organizado em 1364 ..."faz referência ás herdades da Ribeira de Canha, entre as quais se nomeia a seguinte: "item outra coirela acima de San Stevã que parte cõ Roi Gil e cõ Domingos Bogalho e seus ereos ". Parece pois que, já no ano de 1364, haveria uma ermida que tinha Santo Estêvão por orago, o que talvez ainda não fosse era curada. Mas pelo tombo da mesma Ordem feito em 1561, há poucos anos publicado, somos informados que por esta época possuia a ermida de Santo Estêvão cura próprio e tinha dezoito fregueses. Este Tombo da Ordem de Avis de 1561, livro da maior importância para o estudo de Benavente nos meados do século XVI, contém ainda outras notícias sobre a Aldeia de Santo Estêvão. Por ele sabemos que possuía a Ordem neste lugar, os seguintes casais: o denominado do "Montinho ou do Arraial" que tinha anexas a Corte dos Fornos, a da Murteira e Cortinha d'Água Boa, além de outros pedaços de terra; o casal chamado de "Monte velho", talvez o mais antigo, e cuja carta de aforamento foi assinada pelo Mestre D. Jorge em 8 de Novembro de 1533 e o
casal do "Porto de Alcácer" que tinha duas azenhas, uma no lugar do porto velho com dois engenhos, um alveiro e outro segundeiro; e outra situada no porto mesmo de Alcácer, ao pé do Outeiro da ordem, a qual possuía um só engenho alveiro e segundeiro. Sendo Regente do reino o Cardeal D. Henrique, foi frei Cosme Dias, nomeado capelão da igreja de Santo Estêvão. Eis a sua carta de apresentação: “Dom Sebastyam como Governador e perpétuo Administrador que sam da ordem e cavalaria do mestrado davis faço saber a vós reverendo em Christo padre dom joam de mello arcebispo devora e do meu concelho que por ora estar vaga a capellanja perpétua de igreja de santesteuam da ribeira de canha termo da villa de benavente anexa a igreja matriz da dita vila per falecimento de frei pero godinho que dela foi ultimo e immediato possuidor e confiando eu da bondade letras e suficiência do licenciado frei cosme diaz freire professo da dita ordem que serujra a dita igreja como cumpre a serviço de nosso senhor e bem das almas dos fregueses dela o apresento por capelam perpetuo da dita igreja com seu estipendio ordenado pela ordem e vos encomendo que hu confirmeis e lhe paseis vosas letras de confirmaçam em forma nos quaes ira incerta esta carta e se fara expresa mençam de como o confirmastes a minha apresentaçam pera guarda e conseruaçam do direito da dita ordem dada em lixboa a xxbj dabrjl francisco coelho e fez anno do nascimento de nosso senhor jhesu christo de mjl bc lx bj-registad per mjm franscisco coelho" (A.N.T.T. Chancelaria da ordem de Avis, livro 3º, fls 118 s)
Revista de Cultura
Frei Cosme Dias deve ter ido para Santo Estêvão em 1566 e, no ano seguinte, talvez por não ter aposentadoria condigna, mandou o Cardeal Infante fazer umas casas como se depreende da leitura do Tombo impresso da Ordem de Avis : " Tem a Ordem huas casas em benauete feitas na courela do Arneiro da Ordem iunto da egreja de santo Esteuão da Ribeira de Canha, e são tres casas terreas com aliçerses de pedra e cal ate sobre a terra, e o mais de taipa com formigão de cal, e cunhaes de tejello forradas de Cortiça com hua chamine, as quaes casas El Rey nosso S.or como Mestre mandou fazer pera aposento do Prior Curado da dita Egreja per duas suas prouisões, hua feita per fr.co coelho á xxviij.º de Mayo de j bc lxvij assinada per Martim Goncalluez da Camara e per Paulo Afonso: e outra feita per Simão Borralho assinada per S.A. e per seu mandado se lançaraõ em tombo” Em 18 de Setembro de 1596 foi passado um alvará de 4.000 reis anuais para a fábrica da igreja de S.to Estevão (Chancelaria da O. de Avis livro 8, folha 223 s) e, em 1598, um outro documento para que se desse 2.000 reis ao capelão curado da mesma igreja a fim de ensinar doutrina. A igreja de Santo Estêvão foi sempre muito modesta. No verso da última folha do livro nº 1 dos seus registos paroquiais, depois dos assentos das cláusulas testamentais que diziam respeito ás capelas desta igreja, encontra-se um curioso inventário que vamos transcrever na íntegra: Rol das pessas que achei quando vim p.ª esta ig.ª de S. Estevão q servião na mesma ig.ª
hua crux de prata desmanchada e outra de pao huas quartinas (cortinas) e sobreseo de linho huas toalhas do altar, hum pano das mãos hua guarda de caniquim (?) hua alva de linho m.to velha hum vei de tafeta banco da estante hua vestimenta de chamalote vermelho e hua capa e palio do mesmo hum amito de carniquim (?) m.to velho hua vestimenta de setim falsso preto dous missais hum bom outro q não prestava p.ª nada huns corporais e duas palas, e hum sanginho todo roto quatro castissais de arame hum cordão que não prestava para dizer misa por ser quebrado hua estante de nog.ª do altare, e outra p.ªos cantores hua pedra clara hua cadeira velha despergas, com dous isopes de ferro tres varas do palio hum frontal de damasco branco, com suas vestimentas do mesmo hua manga da crus de setim falso azul
tudo isto q digo asima achei nesta ig.ª e por verdade me asinei aqui oie (hoje) 17 de desembro de 1613, véspora de nosa Sorã do Ó q foi o dia q cheguei a esta terra. Fr. Bernardo d' Aguiar
Terras d’Água O último assento com o nome de frei Bernardo d' Aguiar é um óbito de 11 de Fevereiro de 1637 julgamos, por conseguinte, que esteve 24 anos em Santo Estêvão. A 31 de Julho de 1725 foi concedida uma provisão de licença para os moradores da Ribeira de Canha, termo de Benavente, erigirem uma irmandade na Matriz do dito lugar. (Chancelaria da Ordem de Avis livro 27, folha 80 v.º). E no ano seguinte, 1726, com a data de 2 de Setembro, foi passada a provisão de confirmação de compromisso da Irmandade do Rozário na Igreja de Santo Estêvão (Idem, livro 27, folha 140 v.º).
Igreja de Santo Estêvão
Em meados do século XVIII, a casa para os priores de Santo Estêvão construída cerca de dois séculos antes, já não existia, pois que a 16 de Outubro de 1751 se passou uma provisão a Julião dos Reys, para trocar um prazo foreiro à igreja de Santo Estêvão do lugar da Ribeira de Canha, por um chão que foi casa dos Ermitães da dita igreja. (Chancelaria da Ordem de Avis, livro 37, folha 41 v.º). A modesta e antiga igreja de Santo Estêvão, pela distribuição das pratas do extinto Convento de Jenicó, coube a peça mais valiosa: uma bela custódia do século XVIII, que ainda existe e a terra guarda desvanecidamente. Todas estas notícias reunimo-las, por acaso, durante as investigações que fizemos para a nossa monografia “O Convento de Jenicó". Ao publicá-las agora, mais não pretendemos que dar uma achega para a história desta pequena terra do concelho de Benavente, que, através dos tempos, de casais de arroteadores da charneca passou a lugar de azenhas, e , por fim, chegou à aldeia acolhedora e progressiva que hoje é. Turma feminina, 3ª classe, 1942
A NOBREZA DA CAÇA EM SAMORA CORREIA Do Paleolítico aos nossos dias
Mário Gonçalves
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Terras d’Água
A riqueza venatória do nosso Ribatejo, a beleza da paisagem, a proximidade com Lisboa e as facilidades de navegação pelo Tejo, fizeram desta região o local escolhido por reis e fidalgos para a prática da caça. Era também aqui que existiam algumas das melhores coutadas reais. Aliás, os reis da II dinastia pareciam escolher, sem qualquer tipo de hesitação, a estância de Almeirim para dar alguns tiros. Mais tarde, Salvaterra de Magos viria a suceder-lhe, e os monarcas da IV dinastia até D. Miguel elegeram o local como um dos melhores do País para as suas caçadas. Mesmo ali ao lado, encontrava-se Samora Correia, local escolhido por D. Maria I para uns longos passeios a cavalo e algumas horas de prazer de caça. Segundo Caetano Beirão, D. Maria I não era tão perita como sua mãe, mas, durante o Inverno, entre Dezembro e Fevereiro, ninguém parecia conseguir convencê-la a sair de Samora Correia. Consultadas algumas cartas pessoais de D. Maria I, facilmente saltam à vista diversas alusões a batidas aos lobos, aos veados e às perdizes em Samora e Salvaterra. Numa carta que escreveu à Infanta Maria Josefa de Bourbon, em 20 de Janeiro de 1783, refere o seguinte: "Eu fico bôa louvado seja Ds., e vim e a mais família para êste cítio de Samora a 15 do corrente, fazendo a nossa jornada felizmente”.
Numa carta escrita de Salvaterra à mesma Infanta, passados apenas 13 dias, a 2 de Fevereiro, D. Maria I, depois de ter informado a destinatária que D. João estava melhor das bexigas, escreve o seguinte: "brevemente espero ter o gosto de o ver neste cítio, para onde vim, e a mais família no primeiro dêste mez felismente que dista de Samora duas léguas; em qtº la estivemos se mataram 9 lobos". D. Maria I não terminou a carta sem informar esta sua amiga que o tempo estava agradável. Quando na Biblioteca Nacional ou na Torre do Tombo, em Lisboa, se procuram alusões a Samora Correia, raros são os documentos que não se referem à caça. Carvalho da Costa, para além de falar na abundância de peixe, diz também que o local “é abundante em caça, gado e Colmeias. Recolhe algum pão, vinho e tem bons pinhais, com muita carne de porco". No livro "Portugal Antigo e Moderno", quando se refere a Samora, Augusto Soares Leal escreve: " Esta freguezia bellamente situada em uma vasta planicie, sobre a margem esquerda doTejo é fertillissima em todos os generos agricolas do paiz e cria muito gado e tambem touros bravos, para as corridas. Tem matas, que produzem muita lenha, e criam muita caça.”
Revista de Cultura
Por estas paragens, a caça sempre foi muito abundante e variada. Para não se recuar mais no tempo, no início da nacionalidade, o Ribatejo era um conjunto extenso de terras à beira rio cobertas de matagais e bosques, o que atraiu várias espécies. Até o nosso Garcia de Resende, ao referir-se ao Ribatejo, escreveu na sua “Miscelãnea”: “vi muitos matos romper, grandes paúis abertos, muitas herdades fazer, em terras matos desertos ”. Mas falar da caça em Samora Correia sem abrir o livro “Samora Correia Através dos Tempos”, da autoria do Padre Camilo Neves Martins, seria a mesma coisa que ir a Roma e não visitar o Papa. Também aqui, neste que é o livro mais completo sobre a história de Samora, a palavra caça aparece muitas vezes. Neste caso, talvez fosse oportuno recuar até ao paleolítico, idade da pedra lascada. É que embora pouco se saiba desses nossos antiquissímos conterrâneos, uma coisa parece certa: segundo o historiador de Samora Correia, “foram encontrados machados de pedra talhada na zona entre Alcochete e Catapereiro, mais propriamente em Pancas, Olho da Praia, Monte do Vale dos Frades, Cascalheira, Catapereiro e Sítio do Bicho. Eram utilizados para a caça e quiçá para culturas agrícolas rudimentares.” Logo no início, quando no manual se traça o quadro sociogeográfico do século XIII, adverte-se que nessa altura a vila passava “bastante despercebida nos primeiros séculos da nacionalidade e para pouco mais servisse do que para coutadas de caça, graças aos montados que a cobriam...” Um século mais tarde, no tempo de D. Pedro I, as suas crónicas parecem ser muito explícitas quanto à riqueza da caça em Samora. E é então que se sabe que o rei gostava muito de caçadas em Pancas.
No século XIV, continua-se a falar nessa herdade rica em caça. Em 1385, quando D. João I deu o couto de Pancas a Vasco Gonçalves Teixeira, defendia-se que não admirava mesmo nada o local ser cobiçado pelos nobres. Além da riqueza cinegética, Lisboa estava muito próxima e o Tejo era simples de atravessar. Mais tarde, em 1527, em todo o termo (Belmonte e Pancas) existem registos que cerca de cinco grandes famílias habitavam o local com o único interesse na caça. É no capítulo 7, quando se faz uma abordagem ao impacto do século XVIII, que surge uma referência a um pavilhão de caça existente no Porto Alto. O edifício, hoje transformado em palheiro, parece que serviu (dado não confirmado historicamente) para albergar “três filhos bastardos de D. João V, com medo da fúria do Marquês de Pombal.” Mais à frente, onde se pode encontrar a radiografia do concelho no século XVIII, a certa altura, nas “Memórias Paroquiais” (grande fonte de informação para o século XVIII), o padre Manuel Pires responde a várias perguntas sobre Samora. E, numa delas, retrata o que considera mais digno: “As couzas dignas de memoria que há nesta terra saõ (...) tem huma coutada da Excelentissima Caza de Aveiro abundante de porcos bravos, coelhos, perdizes, lebres, rapozas, gatos, seus lobos, algumas corças, foi abundante de veados, servos, gamos e gamos, de que se espera ser ainda fertillisima desta caça por ser capaz para criaçam della outra chamada de pancas abundante da caça acima nomeada com sua quinta e paços aonde vem todos os annos assistir Magestades que Deos guarde para divertimento de caçar em huma outra coutada, em que apanham muito porco com sumo gosto das mesmas Magestades que Deos guarde.”
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Ainda neste século, no livro “Corographia Portuguesa”, também o padre António Carvalho da Costa não se esqueceu de falar da caça em Samora: “Há abundante caça, gado, colmeyas, recolhe paõ, vinho & tem bons pinhais, com muita carne de porco.” Mas, parece ser no censo de 1790 que se reforça a importância da caça. Nesse ano, defendeu-se que o sistema económico assentava imagine-se - na grande propriedade explorada quase praticamente em caça e pecuária e alguma agricultura. E, quando mais à frente, se aborda a diminuição da população em toda a freguesia pode ler-se que “(...) num sistema de multiplicidade de concelhos, fechados uns aos outros, sem gente para o trabalho, não admira que Samora Correia estagnas-se e não se desenvolvesse, pois nem estímulos haveria no povo para a sua promoção social, nem os grandes senhores latifundiários ausentes se interessavam mais do que pela caça e recolha de rendimentos (...)”.
Reportando-se ainda aos latifundiários, o padre Camilo sustenta que “não só o latifúndio era travão a um desenvolvimento equilibrado, como se acrescentou ainda a transferência de posse da Ordem para os Comendadores reais, e destes, após o suplício e morte do duque de Aveiro em 1759, para a Coroa, com a desorientação consequente pelo vazio provocado, ficando as terras em grande parte destinadas a coutos de caça, sem proveito para os aborígenes.(...) Sendo os grandes senhores os possuidores das terras, ligados à Casa Real, pelo Infantado e Comendas, eles só residiam passageiramente para as caçadas no local” Mas as referências à caça, aos coutos de caça e à herdade de Pancas não se ficam por aqui. Nos séculos XIX e XX, continuam a aparecer com todo o destaque.
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Caça Turística na CL é das melhores do País Nove mil e seiscentos hectares na zona da Charneca do Infantado são o grande espaço da Companhia das Lezírias (CL), desde 1989, para a prática da caça turística. Neste triângulo, compreendido entre as estradas que ligam o Porto Alto a Alcochete, Porto Alto-Infantado e Infantado-Alcochete, caçam-se várias espécies que parecem abundar na região. Só para o pombo bravo foram vendidas, no ano 2000, 65 portas, o que corresponde ao mesmo número de caçadores. Caça-se ainda à rola (em Agosto e Setembro), aos patos (entre Agosto e Fevereiro), à lebre e às perdizes (entre Outubro e Dezembro) e às narcejas e galinholas (entre Novembro e Fevereiro). Quanto aos coelhos, a situação esteve mais fraca nesse ano uma vez que a recente doença - diarreia hemorrágica - parece ter diminuído significativamente a espécie nesta zona. Embora existam muitos caçadores na região, a maior parte vem de fora. Numa conversa tida com o eng.º Servúlo Correia, responsável pela produção florestal e pela caça, conseguiu-se confirmar que os caçadores vêm de todos os pontos do país, "desde o Minho ao Algarve". E, todos os anos, a Companhia das Lezírias tem muitas solicitações para novas inscrições. Pedidos que tem recusado dado às limitações que são impostas.
Para que tudo corra como previsto, ao longo dos anos, a CL tem tomado algumas medidas para evitar que sejam cometidas ilegalidades ao que está regulamentado. Todas as caçadas, em grupo, aos coelhos e às perdizes são acompanhadas por um dos oito guardas florestais da Companhia, explicou Servúlo Correia. O objectivo é evitar que os caçadores matem espécies não autorizadas. Além disso, é mais
fácil contabilizar o que cada um caçou. É que no final de cada jornada, os caçadores têm de pagar as peças de caça, como daremos conta mais adiante. Outras das preocupações da Companhia, é o repovoamento de algumas espécies, nomeadamente, das perdizes. Além disso, a CL tem tido alguns cuidados com os coelhos, proporcionando-lhes água, comida e abrigos.
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É que, para além do calor do Verão, os coelhos precisam de estar protegidos dos predadores aéreos, principalmente das águias e falcões que abundam na região. Os coelhos e as perdizes têm sido as principais vítimas da Águia de Asa Redonda. Segundo Servúlo Correia, há um excesso desta espécie na nossa zona mas nada pode ser feito, já que a Águia é um animal protegido e a única solução é criarem-se abrigos para os coelhos. Além destes, existem ainda os predadores terrestres.
Por isso, a CL está também atenta às raposas, aos javalis e aos saca-rabos. O que também já preocupou a Companhia das Lezírias foi a prática da caça ilegal. Pois se, neste momento, isso parece não existir, houve uma altura em que chegaram a ser apanhados indivíduos a caçar ilegalmente à noite em plena reserva. Sobre o assunto, Servúlo Correia sustenta que os caçadores devem procurar a caça pelos meios legais, caso contrário em vez de caçadores são "matadores".
Caça a corricão, uma tradição ribatejana A Companhia das Lezírias apresenta igualmente boas condicões para a "caça a corricão" à lebre e à raposa. Várias vezes no ano, a zona de Catapereiro um local plano e limpo torna-se um espaço de eleição para as lebres. Sendo uma caçada tradicional do Ribatejo, a "caça a corricão" comporta a utilização de dois Galgos. O objectivo é saber aquele que pontua mais na perseguição efectuada às lebres, isto tendo em conta as voltas e pancadas que dá a cada lebre. A caçada começa por ter o apoio dos cavalos, que servem para bater o terreno. Logo que salta uma lebre, o indivíduo que leva os galgos pela trela deixa a lebre afastar-se cerca de cinquenta metros, e só depois solta os cães. Questionado sobre o sofrimento das lebres, Servúlo Correia recorda que não chegam a ser mortas vinte por cento das lebres. O importante é testar o comportamento dos cães. Além disso, defende que a lebre sofre mais se for morta a tiro, pois quando é apanhada pelos Galgos tem morte imediata.
MUSEUS, EDUCAÇÃO E SOCIEDADE Uma complementaridade difícil para o tempo pós-moderno
Leonardo Charréu Assistente Universitário Universidade de Évora
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Terras d’Água
"...Em qualquer cenário dado, há uma forma autêntica e uma forma não autêntica (de sermos livres), a primeira aponta para o futuro e a última para o passado..." Arthur Danto in After the End of Art
Na reflexão que se segue procurar-se-á diagnosticar o "estado de saúde" de três invenções humanas de capital importância para o entendimento daquilo que foi o mundo, naquilo que é hoje e, por fim, naquilo que poderá vir a ser. Essas invenções foram o museu, a educação e essa complexa e extraordinária rede de inter-dependências a que chamamos sociedade, sem a qual ninguém consegue ser aquilo que é sem uma espécie de legitimação de tipo grupal ou social. O museu e a educação são, para além das suas definições tradicionais, formas de entendimento do mundo, a primeira mais estática (na sua acepção tradicional), a segunda mais dinâmica, se conjugadas para o fim atrás descrito podem constituir extraordinários instrumentos de cultura e cidadania. A época contemporânea está, em termos sociais, marcada pelo fim das grandes narrativas. Esta é hoje uma das correntes dominantes do pensamento filosófico e social a que se convencionou chamar de pós-modernismo. Esta espécie de ruptura tem sido mal aceite no mundo universitário ou não se auto-considerasse este último o campo privilegiado de actuação das grandes narrativas. As grandes narrativas são o conjunto das teorias explicativas que abalizam o entendimento universal do mundo social. As grandes narrativas fundamentam-se num conceito de verdade que alguns filósofos recentes (Kuhn, Lakatos, Habermas e Popper entre outros) vieram a desmontar e a colocar em causa. Tudo isto implica uma reorganização e uma reconstrução da ideia que temos de mundo, verificando igualmente quais as estruturas de poder que estão por detrás das organizações sociais e dos conceitos científicos mais ou menos generalizados. É esta a razão pela qual a universidade os tem ignorado de uma forma mais ou menos compulsiva. Parece historicamente confirmado que, em todos os tempos, tem sido o mundo académico que pontualmente, tem produzido as ideias de ruptura, mas também simultaneamente uma barreira de dificuldades à aceitação e imposição das novas ideias. A famosa apresentação e consequente contestação da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin parece ser o exemplo mais paradigmático. Os mais ferozes adversários surgiram mais do meio académico do que do meio religioso.
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Com uma argumentação muito simples e bem fundamentada em evidências da história da ciência, Kuhn, ele próprio um físico reputado, provou que a verdade científica só vale enquanto se mantiverem as condições de onde emerge, sendo manipulada numa espécie de circuito fechado auto-referencial. Uma mudança de paradigma (do conjunto das teorias que sustentam uma determinada posição) que muitas vezes vem adstrita a uma profunda mudança dos quadros mentais numa determinada época, origina, por sua vez, a adopção de uma nova verdade e de novas certezas sobre determinado saber. O exemplo dado por Kuhn para a "falácia" da verdade científica, que normalmente é considerada como o modelo da verdade rigorosa e insofismável, é o da história do desenvolvimento do modelo atómico: se o primeiro modelo idealizado pelo cientista inglês John Dalton há cerca de dois séculos atrás fosse considerado uma verdade absoluta e inquestionável, jamais se poderia chegar aos modelos actuais de átomo. Dalton considerava o átomo como uma forma esférica onde os componentes mais pequenos estavam incrustados, mais tarde Niels Bohr considerava o átomo como se fosse uma espécie de sistema solar em miniatura com os electrões a descreverem órbitas, em redor do núcleo por sua vez Heisenberg trouxe uma novo conceito de átomo com o seu princípio da incerteza. Neste último modelo um átomo é considerado algo de muito mais instável, não se podendo com precisão determinar a posição de um electrão que se manifesta em nuvem em redor do núcleo atómico.
Imagine-se se o decrépito modelo de Dalton, aceite pela comunidade científica da altura, fosse considerado inquestionável! Popper acrescenta a teoria de Kuhn com o seu princípio da refutabilidade, ou seja toda e qualquer teoria deve-se apresentar à comunidade como algo automaticamente passível de ser refutado e substituído por outra mais consistente. Estas posturas críticas são essenciais para o estabelecimento de uma nova relação pedagógica entre a escola - cada vez mais refutada como lugar único do saber e da aprendizagem e o museu local, onde as verdades do discurso que é possível construir à volta dos seus objectos pode agora ombrear com as verdades construídas à volta do espólio dos chamados grandes museus nacionais. Esta dignidade que a postura pós-moderna em educação coloca no pequeno museu, confere-lhe agora responsabilidades acrescidas que só um corpo técnico bem preparado pode dar seguimento, bem como um diálogo permanente com os centros escolares. O pós-modernismo ao dar voz a grupos sociais que normalmente não a tinham, bem como ao admitir as narrativas locais em pé de igualdade com as grandes narrativas (a faina do senhor Zé, construtor de miniaturas de barcos, é tão ou mais importante que a "história" oficial dos Descobrimentos) e ao considerá-las essenciais à construção da identidade do indivíduo que actua nesse meio social, veio a atribuir responsabilidades acrescidas aos pequenos museus.
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O conceito de identidade encontra-se muito próximo do de "autenticidade" defendido pelo crítico de arte e filósofo norte americano Arthur Danto, no pequeno excerto do início desta reflexão. Ser autêntico, afinal, para os homens e mulheres de hoje, significa conhecerem as suas raízes, como responderam os seus antepassados aos diversos problemas que tiveram de enfrentar? Que objectos foram inventados para os vencer? Que redes de relações se formaram entre as pessoas? Que estruturas de poder se manifestaram? Como é que foram mantidas? Porque razão algumas dessas relações se mantiveram ou se extinguiram? Que ganhos trouxe essa manutenção ou extinção à sociedade contemporânea? Que caminhos poderão novamente ser experimentados? Que correcções poderão ser feitas? Enfim, poder-se-ia mencionar um sem número de questões que uma exposição museológica bemmontada poderá colocar, esboçar as respostas, ou
esperar que seja o público a induzi-las (que afinal é uma das melhores formas de aprendizagem). Ser "inautêntico" significa desejar ser outro indivíduo, movido pela atracção dos néons de um futuro construído sem memória, significa essencialmente cortar as amarras que o liga à comunidade, enfim oferecer completamente a mente e por vezes o próprio corpo! - ao rolo compressor da cultura de matriz anglosaxónica, esse sim bem autêntico. Ser inautêntico também passa por ignorar uma espécie de amor próprio que torna "especiais entre iguais" os indivíduos de um determinada comunidade local no contexto nacional, ou os indivíduos de uma determinada nacionalidade no contexto europeu ou mundial. A protecção desta diversidade é fundamental para que a sociedade continue a edificar-se com alicerces mais diversificados.
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Logo se um deles ruir, outros haverão que pela sua solidez continuarão a manter o edifício social de pé, sem que haja uma descaracterização que torne cinzentos ou descoloridos os aspectos mais genuínos e mais identificativos de cada indivíduo e de cada grupo micro ou macro social. Por isso os museus já não podem constituir depósitos de características coleccionistas, mas sim locais de interacção com a comunidade, explorando linhas temáticas de exposição, trazendo o debate para o interior do museu, tornando-o um ambiente de aprendizagem e de disponibilização e circulação de informação. Estas posturas críticas são essenciais para o estabelecimento de uma nova relação pedagógica entre a escola - cada vez mais refutada como lugar único do saber e da aprendizagem e o museu local, onde as verdades do discurso que é possível construir à volta dos seus objectos pode agora ombrear com as verdades
construídas à volta do espólio dos chamados grandes museus nacionais. Esta dignidade que a postura pósmoderna em educação coloca nos pequenos locais de aprendizagem como a oficina ou o pequeno museu, confere-lhes agora responsabilidades acrescidas. No que respeita ao pequeno museu parece óbvio que só um corpo técnico bem preparado pode dar seguimento ao que dele se espera, assumindo um diálogo permanente e persistente com os centros escolares e exigindo, justamente, fazer parte do projecto educativo dos centros escolares locais. É aqui na concepção de um projecto educativo que têm surgido as maiores dificuldades de interligação entre a escola e o museu (nacional ou local). O projecto educativo é hoje uma espécie de imagem de marca de uma instituição de ensino. A sua "estrutura" revela -se um centro escolar é criativo e inovador e em que modelo pedagógico assenta as suas práticas.
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Obviamente, difere de instituição para instituição, pois as realidades e as culturas locais podem ser muito diferentes de região para região mesmo num pequeno país como o nosso pelo que se torna caricato encontrar professores à procura de uma "receita" universal para a concepção de um projecto educativo quando ele tem de emanar do seu próprio meio e da sua noção de intencionalidade educativa. "Compreender para agir" sobre o meio, sobre si próprio, e sobre as opções de vida de um quadro social necessariamente polifacetado, parece ser um dos objectivos mais marcantes dos novos modelos pedagógicos que tendem a admitir outros agentes (os artesãos, os museólogos, os bibliotecários, os artistas, os cientistas, etc.) e outros cenários sociais (os citados
museus, as fábricas, as oficinas etc.) como "pares" fundamentais para a grande tarefa comum que é a educação. A grande questão a colocar é a de saber se estarão os museus, os professores, as escolas preparados para trabalhar em conjugação de esforços? Sobretudo se pensarmos que o modelo pedagógico prevalecente nos quadros mentais da maioria dos professores e educadores (existem também muitas excepções, é claro!) ainda continua a ser o da predominância do saber teórico, academizante e expositório sobre as competências práticas, e as metodologias participativas e interactivas que muitos museus em Portugal, felizmente, têm vindo a desenvolver. Todavia, há ainda um longo caminho à espera de ser percorrido.
O PAPEL DOS PEQUENOS MUSEUS NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E TECNOLÓGICA Desafios para o novo milénio As aprendizagens consideradas significativas, isto é, aquelas que jamais se esquecem e que se encontram na base de outras aprendizagens, fazendo parte, por assim dizer, de uma espécie de estrutura cognitiva e experimental, fundamentais para que os indivíduos continuem a ter capacidade para a prender (mesmo depois de ter terminado a sua "escolaridade") podem ser realizadas fora da escola, em museus nacionais, mas também em museus locais, preparados para o efeito. Estes últimos têm a vantagem de se constituir como centros de construção de identidade local, de capital importância para a edificação de um conceito identidade fundamental para fazer face às arremetidas globalizantes da sociedade contemporânea, onde uma espécie de pensamento único parece querer impor-se e, actualmente, levar até vantagem sobre outras formas de pensar, de ser e de agir. Vejamos então dois "estudos de caso" em dois países diferentes da união europeia, onde dois pequenos museus transformaram-se rapidamente em pólos de educação e cultura, sendo bastante estimados pela população local que lá acorre com frequência porque são sempre capazes de apresentar coisas novas, ou de apresentar o espólio "tradicional" em enquadramentos temáticos novos. Para além de funcionarem em rede com outras instituições congéneres, trocando colecções e ajudando a uma apreciável circulação de informação cultural.
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Ao projectarem exposições sempre inovadoras são capazes de irem ao encontro do apetite cultural de uma população, na qual, paulatinamente, foi criado o tão propalado "hábito cultural", fundamental para que a oferta tenha sentido. Os museus "Felicien Rops" da cidade de Namur, na Bélgica francófona e o Museu Molí Paperer de Capellades, uma pequena povoação das serranias da Catalunha, em Espanha, constituem dois excelentes exemplos em como os pequenos museus locais podem ter uma importante palavra a dizer, não só no que respeita à apresentação "tradicional" do seu espólio, mas sobretudo, em relação às aprendizagens significativas que aí se podem realizar. Vejamos detalhadamente estes dois casos, o seu enquadramento urbano, as suas políticas museológicas e o seu alcance educativo. O museu Belga, dedicado a Felicien Rops, foi instalado na cidade natal do artista, num casarão situado numa das artérias do casco histórico de Namur. É por isso um museu onde se respira familiaridade, onde a escala arquitectónica é humana e o ambiente é acolhedor. Felicien Rops foi um artista Belga que viveu nos finais do século XIX, foi contemporâneo dos impressionistas franceses e a sua obra é merecedora de ombrear com o que de mais interessante produziu a cultura francesa no âmbito das artes visuais nesta época. Tivesse nascido em França e certamente que faria parte das enciclopédias e dos livros de História da Arte de oitocentos, ao lado dos inevitáveis Manet, Renoir, Toulouse-Lautrec, Degas, entre outros.
Mas se há países que têm uma capacidade extraordinária de promover a sua cultura e os seus artistas, a França é um deles e o belga Rops jaz esquecido num pequeno museu à espera de ser descoberto pelos estudantes de belas artes do mundo inteiro, pelos investigadores em história da arte e pelo público comum ávido de descobrir novos artistas, esquecidos e injustiçados pela história. No entanto, é um artista bem querido e conhecido da cidade. No essencial, Felicien Rops destacou-se como artista no campo das artes visuais como qualquer artista da época mesmo como os seus colegas franceses teve de distribuir-se por inúmeros trabalhos para conseguir sobreviver. Desenhou peças de vestuário masculino e feminino, chapéus, objectos de uso quotidiano, pintou retratos e paisagens, decorou tectos e pintou frescos, tendo também elaborado cartazes publicitários. O museu apresenta admiravelmente esta faceta polivalente do artista quanto à diversidade de técnicas onde manifestou o seu talento. Numa das salas principais dois manequins apresentam o vestuário "belle époque" concebido por Rops para os costureiros da cidade. Mas foi na gravura onde o artista encontrou o seu campo de expressão principal e, por conseguinte, foi a técnica por si mais apreciada. Num traço muitas vezes caricatural Rops desenhava caricaturas humorísticas para os jornais da época conseguiu exprimir de uma maneira tão original quanto provocadora e, até mesmo, escandalizante, o funcionamento de uma sociedade fruto do industrialismo acelerado vivido pela sua região nos finais do século XIX.
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Do simples operário até à família mais abastada de uma burguesia endinheirada, sustentada pelas inúmeras fábricas e minas de carvão da região, nada escapou ao riscador e ao lápis atento e crítico do artista. Manifestou, é certo, uma predilecção pela crítica, por vezes violenta, às classes sociais de topo, mas nisto não esteve nada longe da maioria dos artistas "malditos" do seu tempo, que viviam praticamente na miséria e viam na arte uma forma de crítica e de intervenção social privilegiada. O museu possui, no espólio pessoal de Rops, as inúmeras cartas que escrevia aos seus colegas artistas, dando conselhos sobre como fazer uma boa gravura, a melhor percentagem da mistura do ácido com a água, o tipo de papel mais indicado em função da chapa e do tema, desenhando igualmente os objectos e as ferramentas a utilizar em cada caso específico. Estas cartas de Rops, plenas de desenhos, à semelhança dos manuais didácticos actuais, são hoje autênticas relíquias tendo sido já fruto de investigações universitárias constituem também, no seu conjunto, um raro exemplo de clareza e profundidade pedagógica e didáctica no que respeita à técnica da gravura. Por isso, a melhor homenagem que os seus concidadãos do século XX/XXI lhe puderam prestar foi a instituição de uma oficina-atelier de gravura no sotão do casarão onde foi instalado o seu museu. É aqui que reside o interesse educativo deste projecto museológico. As escolas da região, de vários níveis de ensino, frequentam regularmente o museu não só para as inaugurações das exposições de artes plásticas o museu também possui uma galeria para exposições
temporárias de artistas contemporâneos mas sobretudo para aprenderem a técnica preferida de Felicien Rops na oficina de gravura do museu, podendo cada aluno levar para a sua casa o trabalho individual produzido no final de cada sessão. Desta forma, o museu não apresenta apenas memórias e objectos raros e antigos, apresenta um plano de formação artística que muitas escolas não podem nem conseguem apresentar por não se sentirem vocacionadas para tal. Por outro lado, as experiências reais e as aprendizagens aí efectuadas não deixarão de exercer um efeito positivo e duplicador, proporcionando ao jovem visitante e frequentador um conhecimento muito mais completo do que o que seria obtido num tradicional circuito pelo corredores e galerias de um museu tradicional. Em Capellades, pequena vila situada numa zona montanhosa situada a cerca de 30 kilómetros de Barcelona, os serviços competentes da Generalitat (governo autónomo da Catalunha) instalaram, já há alguns anos o Museu Moinho Papeleiro de Capellades (Museu Molí Paperer). Integra a rede de vários museus (de Cerâmica, do Automóvel, da Tinturaria e outros) que no seu conjunto constituem o Museu Nacional de Ciência e Tecnologia da Catalunha. O que começa por ser interessante neste projecto museológico é o facto da implementação de um Museu "Nacional" situado não na todo poderosa cidade de Barcelona (que já tem museus que baste) mas sim dispersos por várias regiões da rica região ibérica, cabendo inclusive a pequenas povoações o privilégio de fazerem parte desse roteiro.
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As razões são óbvias, a maioria desses museus foram instalados em fábricas ou em oficinas que ainda hoje podem laborar como o faziam há muitas décadas atrás, antes do aparecimento do "capitalismo beduíno". Este, normalmente assumindo um formato multinacional, assenta uma fábrica numa região onde a mão de obra se oferece a preços irrisórios e levanta a fábrica - como se de uma tenda se tratasse para a voltar a instalá-la noutra região (às vezes na outra metade do globo) onde a mão de obra ainda é mais barata, repetindo o ciclo o número de vezes necessário à prossecução dos seus objectivos, em regra passam sempre pela exclusão dos operários da distribuição dos lucros da produção. Não foi por acaso que o museu papeleiro foi instalado em Capellades bem no centro da pequena vila. Nesta povoação situada numa zona de média montanha, rica em cursos de água - essencial ao processo manual de fabrico do papel - chegaram a existir quase duas dezenas de moinhos de papel, pelo que esta actividade manufactureira dominava a economia do lugar. O Museu foi então instalado num moinho do século XVIII que na realidade não é mais do que uma enorme azenha movida pela água de uma enorme represa artificial, de um dos vários riachos que atravessam a localidade longitudinalmente. Esta lago envolve uma parte do enorme edifício que possui três andares e uma cave. O andar superior é todo rasgado por um fila de janelas cujas portadas podem regular-se no fecho: era o andar destinado à secagem por corrente de ar - das folhas de papel produzido em folhas de tamanho normalizado. No enorme lago que alimenta a roda motriz da azenha pode-se andar de barco, para além disso as suas águas límpidas alimentam as piscinas municipais que foram construídas logo abaixo do museu.
Esta forma inteligente de planificação urbanística, origina que a alimentação das piscinas dispense a bombagem, uma vez que se faz por gravidade, a água corre sempre para a cota mais baixa. Esta solução ecológica faz com que o próprio museu contribua para uma poupança de energia apreciável por parte da piscina, se forem contabilizados todos os meses do ano. Mas o que o museu de Capellades tem de interesante é a forma como lida com o seu espólio e com os seus públicos. Antes de passarmos à dimensão didáctico-pedagógica do museu vale a pena efectuar um percurso geral processo de fabrico do papel no século XVIII. A profissão de trapeiro deste tempo prendia-se sobretudo com a recolha dos tecidos velhos para os moinhos papeleiros. Numa altura em que não fazia sentido falar de reciclagem, era de facto isto que sucedia. As fibras de linho ou algodão do vestuário velho transformar-se-iam em papel. O processo passava por poucas fases. Chegados ao moinho os trapos eram encaminhados para a cave, era aqui onde se efectuava a maior parte das tarefas de transformação e fabrico. Depois de retirados os botões e outros adereços, os tecidos eram cortados em pequenas tiras com cerca de cinco centímetros de lado, eram colocados num cilindro de rede movido a manivela para se retirar as poeiras com a rotação. Os tecidos eram depois depositados numa enorme pia de pedra, eram humedecidom juntando-se-lhes depois soda cáustica. Ficava então a "apodrecer" alguns dias até à obtenção de uma pasta grosseira. Esta pasta esbranquiçada era depois pisada em cubas de pedra por enormes martelos movidos por um
Terras d’Água sistema rudimentar de rodas dentadas ligados à roda principal da azenha. Separavam-se assim as fibras vegetais do linho ou do algodão (que davam papeis diferentes). Esta pasta fina era mergulhada na água em percentagens que faziam parte do segredo da profissão. A pasta de papel, de aspecto leitoso era então preparada num enorme tanque. Era depois crivada por uma rede quadrangular com a marca de água do moinho fabricante, o depósito da rede constituído pelas fibras vegetais era vertido sobre feltros para absorverem a água restante, esta folha era prensada, e seca numa estufa a lenha, mais tarde podia ser martelada caso se pretende-se obter uma folha de papel fino. As mortalhas finas para os cigarros e charutos eram bastantes apreciados. A Catalunha era famosa pela qualidade do seu papel uniforme e muito branco. Durante a Idade Média, os árabes tinham servido de intermediários entre a China (onde foi inventado) e o ocidente, introduzido o papel na Europa. A Catalunha tinha sido das primeiras regiões ibéricas a fabricá-lo, pelo que os muitos séculos de fabrico traduziram-se em qualidade. Em Capellades todo o processo artesanal funciona, como funcionava no século XVII e XVIII, inclusive a azenha.Mas o interesse educativo deste museu reside na política de abertura total à população, em particular à população estudantil. O Museu que também apresenta um importante espólio das jazidas préhistóricas em que a região é rica, apresenta todo o processo e produção de papel em maquete animada com motores eléctricos. A componente visual da exposição é muito forte. Podem-se observar imagens ampliadas das diversas fibras de celulose que compõem o papel comum. As fibras de linho, mais compridas dão um tipo de papel indicado para determinados fins , enquanto as fibras de algodão dão um papel mais macio para outras utilizações.
Nas plantas baixas do museu-moinho produz-se ainda hoje o papel ecológico como se fazia há dois ou três séculos atrás. Uma equipa de funcionários mantém a produção e o museu vende diversos tipos de papel para todo o mundo. Por outro lado oferece diversos cursos com diferentes níveis de dificuldade à população estudantil da região. Outro aspecto que se deve realçar neste museu é a dinâmica de internacionalização implementada pela sua jovem directora: Vitória Rabal. Existem cursos anuais intensivos de "art paper" ( uma nova expressão artística que passa pela importância dada ao suporte o papel ), para uma população já mais adulta. São então abordadas as técnicas de fazer papel à mão mexicanas, japonesas, chinesas e de outras regiões. Os "artistas-artesãos" são convidados a virem à Catalunha para demonstrarem os segredos das suas técnicas. Uma forma muito interessante de se conhecer uma cultura é conhecer as formas como ela se relaciona com o mundo em diversas dimensões, incluindo a tecnológica, por muito rudimentar que seja. O denominador comum entre as várias técnicas de produção de papel parece ser a ausência de poluição e de subprodutos no processo de fabrico destas culturas extra-europeias, o que, infelizmente hoje não acontece na produção industrial maciça de pasta de papel na Europa comunitária. Um bom educador pode pois tirar bastante proveito da um instituição deste género, e a sua criatividade poderá levá-lo a explorar dimensões educativas que, aparentemente, não se encontrem explícitas no cenário ou no ambiente educativo. Por esta razão, e por muitas outras que ainda estão por descobrir, o museu "Molí Paperer" de Capellades merece uma distinção especial pelo trabalho meritório que vem desenvolvendo, não só em termos meramente museológicos, como também em termos educativos.
UMA INTERVENÇÃO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO NUMA PEÇA ETNOGRÁFICA
Carlos Henriques Técnico de Conservação e Restauro Museu Municipal de Benavente
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Carro Lezirão
Nestes últimos anos a conservação e restauro tem vindo a ser encarada de forma mais metódica e científica com um único objectivo - o de valorizar o nosso património histórico-artístico e arqueológico.
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De facto é necessário encarar esta nova atitude da conservação e restauro como fazendo parte de um conjunto interdisciplinar, onde os mais variados estudos histórico-científicos fornecem o suporte metodológico das intervenções a desenvolver, pois é cada vez mais importante não repetir os erros do passado a fim de evitar intervenções mal concebidas ou mal executadas. Tais intervenções, muitas vezes originadas por falta de conhecimentos ou por improvidência, levam a uma "não valorização" do património cultural. Para conservar e principalmente para restaurar um qualquer bem, seja ele móvel ou imóvel, é imprescindível conhecer a sua "história". É sem duvida este o principal aspecto a ter em conta, quando se pretende realizar com êxito qualquer intervenção, por mais simples e fácil que possa vir a revelar-se. A conservação é talvez, do ponto de vista museológico, a opção mais correcta e a que melhores resultados poderá proporcionar. No entanto, manter a integridade do objecto é em muitos casos tarefa árdua e inglória, nomeadamente quando o seu estado de
degradação é tão avançado que mais cedo ou mais tarde poderá levar à sua destruição. É por isso necessário ponderar conscientemente e analisar minuciosamente cada peça, pois cada caso é um caso e se para se manter um determinado bem é apenas necessária uma "simples limpeza", na maioria das vezes o processo de intervenção é bem mais complexo e profundo. É nessa dificuldade que surge o restauro como forma de preservar qualquer peça de uma destruição eminente e este deve ser encarado como uma das soluções possíveis para a salvaguarda de um património cultural que é de todos nós. Assim, dentro deste espírito de salvaguarda do património, surge em 1996 a Oficina de Conservação e Restauro do Museu Municipal de Benavente, com o intuito de preservar o vasto espólio do Museu (cerca de 20.000 peças). Desde aí o Museu tem vindo a desenvolver um trabalho cada vez mais dinâmico na área da conservação e restauro, proporcionando estágios profissionais e curriculares a alunos dessa área, assim como colaborando em diversas actividades no sentido de divulgar e alertar para a preservação do património junto da comunidade.
Terras d’Água No âmbito do projecto para a criação do Núcleo Museológico Agrícola, instalado no antigo Matadouro Municipal, em 1999, procedeu-se à selecção dos objectos que iriam integrar a exposição que aí ficaria patente. O carro “lezirão”, apresentou-se como um dos objectos cujo interesse histórico-cultural exigia a definição de um programa especifico para a sua recuperação.
PROCESSO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DO CARRO DE BOIS (LEZIRÃO) IDENTIFICAÇÃO Obra: Carro de bois (lezirão) Autor: Desconhecido Material: Madeira e metal Dimensões: 540x260x110cm Data: 1ª metade século XX Proveniência: Benavente Proprietário: Câmara Municipal de Benavente/Museu Municipal Nº de Inventário: MMB-2929
DESCRIÇÃO Carro em madeira e metal de forma rectângular, com dois eixos horizontais sendo o posterior fixo e o anterior móvel. Era puxado por duas ou mais parelhas de bois e tinha como função transportar os "produtos" da lezíria ribatejana. Mais tarde, com a mecanização da agricultura, este foi adaptado a fim da ser puxado por um tractor agrícola.
ESTADO DE CONSERVAÇÃO
Apresentava-se em mau estado de conservação, estando a sua estrutura parcialmente apodrecida e atacada por insectos xilófagos. Apresentava grandes fendas e fissuras a nível estrutural, provocadas pelos movimentos de absorção-cessação de humidade da madeira e pelas tensões causadas pela sua normal utilização. Os elementos metálicos existentes apresentavam forte oxidação.
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TRATAMENTO O tratamento de conservação e restauro assentava essencialmente na conservação dos materiais existentes e no restauro das fendas e fissuras existentes a nível da estrutura, seguindo os critérios da intervenção mínima. No entanto e mediante uma análise mais profunda e minuciosa de toda a peça, concluiu-se que o seu estado de degradação era tão avançado que em algumas zonas as condições estruturais não asseguravam a estabilidade da obra. Foi por isso imprescindível substituir grande parte das madeiras ao nível do "esqueleto" estrutural do carro de bois a fim de lhe conferir uma maior rigidez e segurança. Para tal foram utilizadas técnicas de construção e materiais de idêntico tipo e características.
Limpeza superficial: remoção de toda a sujidade superficial acumulada (pó, excrementos, teias de aranha, etc.), que impediria uma correcta aplicação dos materiais de consolidação e protecção. Tal operação foi realizada através de um processo mecânico com o auxílio de vassouras macias e aspirador de ar.
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Remoção das madeiras deterioradas e sua substituição: remoção de todas as peças, ou parte delas, que se encontravam apodrecidas e posterior substituição por madeiras novas.
Desinfestação: desinfestação de todas a partes constituintes do carro com um desinfestante eficaz contra o ataque dos insectos xilófagos e de fungos. Este processo foi realizado por impregnação por meio de pincelagem ou injecção de um líquido desinfestante na superfície e interior das madeiras.
Consolidação: consolidação de todas as madeiras que se encontravam mais debilitadas devido ao ataque por insectos xilófagos, a fim de lhes conferir uma maior resistência e durabilidade. Este processo consistiu na injecção de uma resina acrílica no interior da madeira, mais concretamente nas galerias abertas pelos insectos xilófagos.
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Remoção das oxidações dos elementos metálicos: os elementos metálicos encontravam-se fortemente oxidados pelo que se procedeu à sua limpeza através de processos mecânicos (lixagem) e químicos (banhos ácidos). Estes processos foram minuciosamente controlados a fim de apenas remover o material da oxidação (ferrugem) sem afectar o metal em bom estado.
Colagem de fendas e preenchimento de lacunas: todos os elementos que se apresentavam quebrados foram devidamente colados com resina PVA, em certos casos esta colagem foi reforçada interiormente com a aplicação de cavilhas de madeira, principalmente nos elementos estruturais. As diversas lacunas foram preenchidas com pastas à base de madeira e resina PVA.
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Acabamento final: depois de concluído todo o trabalho de limpeza, consolidação e reparação do carro de bois procedeu-se ao acabamento. Este consistiu na pintura integral do carro de bois com o mesmo tipo de tinta original. Para tal preparou-se a tinta segundo a receita tradicional.
Tinta Azul 1 Parte de Alvaiade 2,5 Partes de Óleo de Linhaça 1/2 Parte de Aguarráz 1/2 Parte de Secante Líquido Pigmento em pó Azul Ultramarino q.b. ( 3 Partes) Misturam-se os componentes pela ordem descrita e por último adiciona-se lentamente o pigmento em pó até se obter o tom desejado.
AS PALAVRAS DO FADO - A POÉTICA DE CARLOS CONDE
Domingos Lobo
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Terras d’Água Não é canção de vencidos É mentira, meus senhores! Quem canta o fado e trabalha Faz parte dos vencedores (1)
1. DAS ORIGENS AO RECONHECIMENTO Quando, em 1901, Júlio Dantas publicou o romance A Severa, estaria, provavelmente, longe de supor que esse acontecimento literário criaria o mito e traria o Fado para a ribalta dos teatros e salões, num estranho concubinato entre o povo e os restos de uma nobreza feudal em decadência, como bem refere Júlio Conrado no texto Os Fados do Fado. O Fado, que durante o Miguelismo conhecera algum fulgor, dado que as mulheres de má-nota que cantavam e batiam e fado (2) eram companheiras habituais dos futricas de D. Miguel em orgias por estes organizadas nos palácios e nas hortas de Benfica e de Entre-Campos, completadas com esperas de toiros, acalentadas como ritos de virilidade e demonstrativas de heroísmo marialva, orgias onde não participavam, naturalmente, damas de linhagem (3), declina sem luta nem glória, face à conquista do poder pelos cartistas. Grande parte da aura lendária conquistada pelo Fado vem deste período, embora as orgias e sardinhadas fora de portas e os despiques fadistas que lhe davam cor, fossem comuns pelo menos até à implantação da República. Nos finais do século XIX, o Fado vivia, contudo, acantonado nos bairros lisboetas da Mouraria e Alfama onde a revolução liberal, a partir de 1833, o haveria de colocar, começando, embora timidamente, nos inícios do século XX, a expandir-se para as tascas e lupanares do Bairro Alto, na mesma progressão em que este local começou por ser abandonado pela nobreza e pela burguesia mercantilista em ascensão.
A Severa de Júlio Dantas, acabou por ser um enorme êxito literário e mundano, resistindo até aos nossos dias em sucessivas edições populares. Aproveitando o filão, o autor escreve uma versão para opereta, da qual sairia um dos clássicos do fado que Amália tornara imortal: Novo Fado da Severa. Era a primeira incursão de um escritor com estatuto e respeitabilidade, pelos universos poéticos do fado. A abordagem neo-romântica da vida e dos amores da cantadeira da Mouraria, com o pícaro da criação da variante mistificadora do marialva, para além de perpétuar e credibilizar o mito, transportaria, definitivamente, o Fado dos lupanares e tascas de Lisboa, para a ribalta dos teatros e para o brilho dos salões. O Fado vestia-se a rigor, encenava-se, as fadistas ganhavam estatuto de atracções nas revistas da época, a melopeia repetitiva e dolente transformava-se musicalmente pela inspiração de compositores de talento, a desgraça aligeirava-se, o fatalismo urgia-se alma, destino da raça. Da canção de proscritos, cantada em tabernas e casas de má nota, como refere António Osório no livro A Mitologia Fadista, pouco restará em finais dos anos vinte do século passado. Com o advento da TSF e das imagens animadas, o Fado passa para a Rádio e para o Cinema com a mesma naturalidade com que entrara no Teatro. Seria, aliás, o Cinema, a transportar universalmente o Fado. Logo com Leitão de Barros, que faz a versão cinematográfica de A Severa (ainda em versão não sonorizada), estando depois o fado presente, em maior ou menor escala, em grande parte dos filmes produzidos nas décadas de 30 e 40: Canção de Lisboa, de Continelli Telmo, O Páteo das Cantigas, de Francisco Ribeiro, Capas Negras, de Armando de Miranda Fado - História de Uma Cantadeira , de Perdigão
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Queiróga, ambos com Amália Rodrigues, fadista que viria a transformar-se num fenómeno artístico de dimensão universal. É o cinema que projecta, definitivamente, o Fado além-fronteiras, com a notável interpretação por Amália de Barco Negro, no filme francês Os Amantes do Tejo. Se numa primeira abordagem os intelectuais do Estado Novo atacaram o Fado, sobretudo aqueles mais ligados aos ditâmes das correntes modernista e futurista o certo é que a mão hábil de António Ferro soube recuperá-lo, transformando-o em Canção Nacional. O Fado impõe-se e ganha inusitada dimensão lúdica e cultural. Do doce lundum chorado que os escravos libertos pela lei abolicionista de 1761 cantavam pelas ruelas e tascas miseráveis de Lisboa, só resta o testemunho dessa herança legado pelos escritores de Tinop e Gonçalo Sampaio. Se algumas vozes privilegiadas contribuíram para o reconhecimento e sedução do Fado, é certo, igualmente, que os poetas a ele ligados - nomeadamente a partir da década de 30 do século XX, quando o Fado invade os espaços do Teatro e do Cinema - foram decisivos para dignificar uma canção que inicialmente vivia de contar as desgraças da vida, a miséria, a abjecção, as dores e as traições amorosas, numa linguagem primária, redundante e formalmente insipiente. É com o aparecimento de um número importante de poetas, escritores e compositores, em grande parte ligados ao teatro de revista, à opereta ou às cégadas, que
o fado se renova e impõe, radicando como matriz de uma certa forma de estar urbana e lisboeta, no nosso imaginário colectivo. Nomes de letristas como os de Frederico de Brito, Avelino de Sousa, Silva Tavares, Aníbal Nazaré, Linhares Barbosa, José Galhardo e Carlos Conde; compositores como Joaquim Campos, Alfredo Marceneiro, Raul Ferrão, Alberto Janes (também poeta), Jaime Mendes, Carlos Dias, Fernando de Carvalho e Frederico Valério; vozes como as de Alfredo Marceneiro, Hermínia Silva, Maria Teresa de Noronha, Carlos Ramos, Berta Cardoso, Frutuoso França e Amália Rodrigues, contribuíram, cada qual a seu modo, para retirar definitivamente o faduncho das vielas, acrescentando-lhe a mais valia da qualidade ar tística, outorg ando-lhe um estatuto de respeitabilidade e maioridade estética, da qual o Fado, ainda hoje, é largamente tributário. Poetas dos mais diversos quadrantes estéticofilosóficos e de nomeada como António Botto, José Régio, Pedro Homem de Mello, Henrique Segurado, David Mourão Ferreira, José Carlos Ary dos Santos e Manuel Alegre, seriam seduzidos pela magia arrebatadora do Fado, escrevendo letras ou baseando os seus textos em aspectos da vulgata mitológica. O Fado entrava, assim, pela mão dos eruditos, no universo da grande literatura. Uma canção popular e urbana, na sua expressão elementar, era, finalmente, trauteada sem remorsos nos cânones da inteligência lusa.
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2- A POÉTICA DE CARLOS CONDE Carlos Conde faz parte da geração que, a partir de finais dos anos vinte do século passado, se propõem renovar, formalmente, o Fado. No entanto, os poetas populares, vivendo tempos de censura férrea, não conseguem escapar aos temas herdados de um lendário e obscuro passado: as tradições fadistas, as saudades de tempos idos, o fatalismo das paixões, a morte, os amores não correspondidos. Em Carlos Conde há outras variantes, tais sejam a exaltação da mulher, os conselhos para uma justa condução da vida, a alegria das festas de Lisboa. De resto, a paixão de Carlos Conde por Lisboa, pelos seus bairros típicos, pelas suas gentes, são uma constante ao longo da sua vasta obra:
Essa mestria, essa capacidade de urdir a sonoridade das palavras - capacidade que é comum a todos os grandes poetas populares e cujo conhecimento empírico foi herdado por gerações sucessivas, em tradução oral, dos jograis galaico-portugueses aliada à estrutura melódica do Fado, é uma componente de poética de Carlos Conde, onde o verso se constrói em pureza estilística, sem rimas falsas ou travejamentos de mau gosto: Vamos todos para Cacilhas Numa alegre burricada À Cova da Piedade E à noite, no Quebra Bilhas, Há peixe frito e salada Com carrascão à vontade!
Com uma linguagem simples, mas prolixa, sem redundâncias formais, Carlos Conde constrói versos de grande rigor estrutural, com conhecimento pleno da sua morfologia, da semântica, tanto na quadra como na redondilha maior, sempre com rima escorreita e uma criteriosa escolha da componente fonética das palavras:
Se esta geração de poetas e letristas do Fado não se aventura por caminhos de renovação temática, se permanece nostálgica na exaltação do passado fadista (um passado que não foi, como sabemos, nem muito estimulante nem grandioso), se persiste no imaginário destes criadores os aspectos colaterais da mitologia gizada por autores como Júlio Dantas e estimulada por políticos como António Ferro e por Leitão de Barros, encenador-mór do regime, é porque o universo fadista era, à época, redutor e alimentava-se dessa imagética circular. Carlos Conde não foge a esses pressupostos:
Mas o bairro de mais fama Todo fadista e marujo É a linda e velha Alfama Do Norberto de Araújo.
A tradição nunca finda Inda ninguém a matou E o presente vive ainda Do passado que ficou.
Bairros que o povo acarinha Tornam mais bela a fagueira Esta Lisboa velhinha Tão velhinha e menineira.
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Mas, se em Carlos Conde o Fado permanece na estreiteza temática herdada das mitologias fadistas, se nos seus versos se exalta a tradição, a boémia, as noitadas nos salões da nobreza, o instinto rasca, (como lucidamente o poeta reconhece), igualmente nos seus versos perpassa um fulgor novo que radica na construção sintáctica, na facilidade de manobrar as palavras e na lisura despojada da dramaticidade: Senhor juiz: eu sou mãe, E juro que o meu menino Não me roubou nem bateu O Cadastro que ele tem Traduz o negro destino Da sorte que Deus lhe deu. Se em lugar do fatalismo fadista do destino e da sorte, os versos de Carlos Conde intuíssem uma análise social de cariz progressista (como fez, por exemplo, António Aleixo), teríamos em muitos dos poemas que escreveu - nos quais as preocupações humanistas do poeta se inscrevem - uma visão mais próxima da realidade portuguesa do seu tempo. Assim, a denúncia social, a existir, perde-se nos contornos brumosos do destino e da sorte que Deus nos deu. Ao destino há que aceitá-lo como sina, como carga para o resto dos dias. Foi na análise da situação social do País que os poetas do Fado - e outros que, embora eruditos, viveram na esteia do mesmo filão mitológico - falharam. Mas falharam igualmente os poetas da 1ª geração neorealista ao afastarem-se do Fado, considerando-o conservador e um dos três malefícios do regime salazarista: o tempo veio a provar que se enganaram e que o preconceito é, também ele, conservador. O amor, o íntimo fulgor dos sentidos, tiveram expressões contagiantes, de emoções rarefeitas, numa
linguagem ora amarga, ora exaltante, na obra de Carlos Conde: Quem diz que o amar que custa Decerto que nunca amou Eu amei e fui amada Nunca o amar me custou. É de notar, igualmente, na obra do poeta, um lirismo, de boa cepa: Quando eu canto e a chuva cai Uma nuvem de incerteza Paira em mim de quando em quando, Cada gota lembra um ai A rimar com a tristeza Dos versos que eu vou cantando! Um dos fados de Carlos Conde mais glosados foi, sem dúvida o que tem por título Não Passes Com Ela à Minha Rua. Desde rábulas revisteiras, até a brejeirices larvares, estes versos serviram para toda a sorte de trocadilhos que pretendiam tornar ridículo o que nele se expressa de sentimento de fidelidade a um amor que se sabe fisicamente perdido mas que permanece intacto no sentir do amoroso. No entanto, o poema, de uma simplicidade tocante, não é arrebatado nem trágico (e os amores trágicos eram o leit motiv do imaginário fadista épocal), mas tão-só feito de distanciamento, sem rancor ao ser amado, lúcido na aceitação da dor. Penélope serenamente à espera que o seu Ulisses volte, sabendo, contudo, que ele se apaixonou pelas Tágides. Mesmo o tema do ciúme e a sua radicalização, tão presente no universo poético do Fado, está destes versos ausente.
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Ou seja, estes versos são exemplares de lucidez, na forma de dar a amargura, de racionalizar os sentimentos, da grandeza do amor enquanto sentimento generoso e total, onde cabem o ser amado e o outro, que chega a negar um concubinato, porque esse facto seria a negação da sua prória condição de amante: Ao fim de tantos anos de eu ser tua, Amaste outra, casaste, foste ingrato, Vi-te passar com ela à minha rua, E abracei-me a chorar ao teu retrato! (...) Eu bem sei que me tentas convencer, Mas o que tu propões não é bastante, Se eu não servi p'ra ser tua mulher, Também não devo ser a tua amante! Casaste, sê felíz, Deus te proteja Não te desejo mal, e tanto assim, Que não tenho ciúme, nem inveja, Como a tua mulher teve de mim. Se este fado deu azo a chacotas revisteiras, esse facto deve-se, sobretudo, à contenção das suas propostas, que ao invés de intuir à vingança, ao ciúme cego, ao lugar do trágico, contrapõe a aceitação, o desprendimento, o amor silencioso (e todavia expectante), que redime e torna lícitos os actos da paixão. Essa negação da tragédia era, à época, a própria negação da essência fatalista do Fado. Este poema transformava-se, assim, num poema subvertor das regras comumente aceites.
Embora as interpretações gravadas deste fado sejam irregulares (e ele merece, indubitavelmente, uma grande intérprete), julgo que a melhor é, sem duvida a de Fernanda Maria. Um outro fado, penso que anterior ao Não Passes Com Ela à Minha Rua, escrito por Carlos Conde e interpretado por Amália, com o título A Mulher Que Já Foi Tua, dá-nos a visão inversa do poema anterior. Nele é a mulher legítima que fala da outra, que a tenta compreender enquanto mulher apaixonada pelo seu homem. Neste fado, para além da visão dialéctica da mesma realidade, deste jogo dos contrários, perpassa a mesma ausência do trágico, do ciúme redutor. É a tolerância, a aceitação do outro, a condição de cumplicidade, do ser mulher, antes de ser amante, perante os objectos da paixão: Mudou-se p'ra nossa rua Aquela que já foi tua E passa o tempo à janela, Se passas, ela sorri, Mas não olha pra’ti Por me ver olhar p’ra ela! (...) Mudou-se p'ra nossa rua A mulher que já foi tua P'ra que junto dela passes Não fez tudo o que devia Pois muito mais eu faria Se por outra me trocasses.
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Complementares um do outro, estes fados deveriam, a meu ver, ser cantados, simultaneamente, por duas intérpretes distintas. Porque, o que Carlos Conde, homem que veio do teatro de amadores e das cégadas, construiu com estes dois fados, foi uma pequena peça teatral, com Bertolt Brecht lá no meio a espreitar que o autor o adivinhasse. Carlos Conde é letrista de uma mão cheia de fados que se tornaram clássicos: Fado da Bica, Marquês de Linda-aVelha, Não Passes Com Ela à Minha Rua, Saudades do Fado, Sótão da Amendoeira, Trem Desmantelado, entre muitos outros. Alguns destes fados foram cantados por gerações sucessivas de fadistas (o primeiro, fado conhecido do autor data de 1929, Lá Vai o Enterro Dele), quase todos marcando, indelevelmente, o percurso do Fado e a sua renovação. Se a partir dos anos 60 o Fado se transfigura, melódica e liricamente, se começa a intelectualizar-se com a chegada de grandes poetas e músicos eruditos à ribalta
fadista; (Alain Oulman, António Victorino d'Almeida, na música; Alexandre O'Neill, Manuel Alegre, na poesia - para citar apenas alguns nomes), o certo é que a aura mitológica permanece, a invocação do passado, dos fadistas de outras eras (que foi, sobretudo, imaginado por Carlos Conde e os poetas da sua geração) atravessa ainda, numa nostalgia diluída em sons de saxofone e contrabaixo os fados mais recentes, como um anátema, como uma perene matriz identitária. Um século após ter ensaiado os primeiros passos para sair dos becos e vielas e ver as luzes sedutoras da fama e da glória, o Fado, esse sobrevivente manganão, está vivo e apronta-se para novas e estimulantes descobertas, ou não tivesse ele andado Na amurada de um veleiro /No peito de um marinheiro, ou, mais prosaicamente, para permanecer deleite dos sentidos, catedral das palavras essências. P’ra sentir dentro de nós Esse bem que a dor acalma, /Não basta apenas ter voz, /O que é preciso é ter alma!, como certeiramente o definiu Carlos Conde.
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Notas:
Alguma Bibliografia:
(1) - Transcrito no livro E Vice-Versa, de Júlio Conrado (2) - Enciclopédia Luso-Brasileira (3)- E Vice-Versa, de Júlío Conrado
- Fado - Vida e Obra de Carlos Conde, de Paulo Conde - E Více-Versa, de Júlio Conrado - A Severa, de Júlío Dantas - As Palavras dos Outros, de Baptista Bastos - O Feitiço da Quadra, de Luísa Freire - A Mitologia Fadista, de António Osório - História do Fado, de Pinto de Carvalho
SÍTIO RAMSAR 211 Reserva Natural do Estuário do Tejo
Ricardo Espírito Santo Arquitecto Técnico Superior da R. N. Estuário do Tejo - I.C.N.
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"Esta terra não nos foi dada pelos nossos pais, ela foi-nos emprestada pelos nossos filhos." Provérbio Masai, África Oriental
Tarambola cinzenta Pluvialis squatarola
Esta frase sinuosa, este provérbio intrincado e no entanto tão claro na sua mensagem, reflecte muito mais do que uma atitude. Propõe um modo de viver, no qual a pedra-de-toque é o respeito por tudo o que existe e, muito mais importante, por tudo aquilo que potencialmente existirá. É no entanto suficientemente lato. Não propõe um respeito tão estrito que nos impeça em absoluto, o usufruto e o gozo do planeta. Simplesmente proíbe que o danifiquemos e muito menos admite que o façamos de um modo irreversível e insustentável. E, se tal ocorrer, ou se alguns de nós o fizeram no passado, cabe-nos a todos repará-lo o melhor e o mais rapidamente que soubermos e pudermos.
Perpétuo Movimento Transformar, mudar o mundo, é-nos permitido, será em muitos casos desejável, será eventualmente parte integrante do nosso destino. Mas as mudanças que possam de um modo irreparável, pôr em causa a permanência ou a simples existência de modos de vida alternativos, devem ser liminarmente rejeitadas. Os factores de mudança de génese humana, terão porventura tanta validade quanto os factores naturais. Se os factores naturais são habitualmente de efeito mais localizado no espaço, mas de grande âmbito temporal, permitindo aos sistemas bióticos, que são dinâmicos, uma adaptação gradual às alterações introduzidas ou à sua substituição, as alterações ambientais produzidas pelo homem têm frequentemente um curso de acontecimentos rápido e com uma grande influência espacial, atingindo de uma forma brutal e simultânea, sistemas naturais adjacentes e complementares. Ao quebrar deste modo alguns dos elos vitais de relação entre sistemas bióticos, coloca-se em causa, a integridade da biosfera. As mudanças que naturalmente se produzem na biosfera não decorrem de, nem terão por finalidade, um objectivo específico. Podem considerar-se, de algum modo, aleatórias e como tal permitem a todos jogar com o mesmo conjunto de regras. Por outro lado, as intervenções humanas sobre o meio ambiente, frequentemente desastradas, apresentam-se ou desenvolvem-se para escalas que fogem ao seu controlo. As intervenções de génese humana têm sempre um objectivo específico, vedando todos os outros caminhos alternativos.
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A biosfera onde estamos definitivamente mergulhados, rege-se pela busca de delicados equilíbrios, em resposta a desequilíbrios permanentemente introduzidos no ambiente. A biosfera está, por definição, em constante mudança, em perpétuo movimento.
As marés conferem aos estuários um persistente leque de cenários alternativos. O chão ainda há pouco pleno de água, está agora exposto ao sol! Onde há pouco deslizavam peixes, corre agora a lontra, veloz.
Estuários Um dos possíveis paradigmas dessa dinâmica permanente, são as zonas húmidas estuarinas. A distribuição mundial da complexidade biológica e da biodiversidade, não é homogénea em torno do globo. Verifica-se a sua concentração em pontos-chave, em nodos territoriais, onde diversos sistemas naturais confluem, contribuído na sua complexidade, para a criação de um sistema mais abrangente que a todos engloba. De entre esses nodos, poucos possuem a importância dos estuários de características mediterrânicas, que associam ao facto de constituírem um dos sistemas mais produtivos e mais complexos do mundo, também a circunstância de possuírem uma elevada biodiversidade. De enorme importância sistémica e estratégica, são altamente significativos nas perspectivas social, económica e cultural, providenciando funções de apoio a inúmeras actividades humanas. Existe nos estuários uma espécie de cadência, um pulsar ritmado, que por todos, homens, animais ou plantas, é sentido e interiorizado.
Pintassilgo, Carduelis carduelis
Existirão porventura outros locais no planeta onde as condições ambientais se alteram assim tão dramaticamente, mas em nenhum outro estas alterações são tão ritmadas nem tão previsíveis como nos estuários. Os seres vivos, sábios de saberes antigos, apostaram na diversidade de cenários destes locais, crentes na infinita riqueza dos depósitos aluvionares, fornecidos diariamente e em dose dupla, sobretudo pelo rio mas também pelo mar.
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Monte de Pancas
São estes depósitos a base da pirâmide trófica e portanto da vida estuarina. São constituídos por minúsculas partículas arrancadas aos continentes, ou deslocadas dos fundos marinhos pelo constante fluxo das águas. Uma vez chegados às regiões baixas e planas dos estuários, aí se precipitam e depositam nos fundos. Nestes fundos lamacentos, base de futuras terras emersas, a vida é densa, activa, contando-se por milhares os seres vivos microscópicos existentes num punhado destas lamas. Estes microorganismos, produtores e consumidores primários, são os responsáveis pelo mais eficiente e produtivo sistema natural alguma vez referenciado. O seu potencial biológico é de tal forma elevado que podemos, sem errar muito, considerar a zona de lamas entre-marés de um estuário, como uma massa viva. Desta massa depende toda a biodiversidade do território, todas as potencialidades que abriga, todas as características que fazem de cada estuário um sistema único e irrepetível. As zonas húmidas e em particular as zonas húmidas mediterrânicas estuarinas, são unidades territoriais importantes por uma grande variedade de motivos.
São elas os grandes armazéns da diversidade biológica e provêem sistemas de apoio à vida para uma importante fracção da humanidade. Desempenham um papel fulcral no controlo dos sedimentos em suspensão nas águas, nas inundações, na manutenção da qualidade das águas em particular na redução dos seus níveis de poluição. Assumem um papel de purificadores naturais das águas superficiais e subterrâneas, constituindo também um recurso económico não desprezível no aproveitamento piscícola e dos terrenos agrícolas que os circundam. Contribuem também para a estabilidade climática pelo seu papel nos ciclos globais da água e do carbono. Por fim, são excelentes cenários para o desenvolvimento de acções educacionais, científicas e recreativas. A humanidade depende muito estreitamente do uso sustentado das zonas húmidas estuarinas. À medida que estas e as funções que lhes estão associadas se perdem, desaparecem também as oportunidades de conseguir atingir um patamar sustentável de desenvolvimento.
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Salinas de Vale de Frades
Convenção de Ramsar Em 1971, as delegações de 18 países assinaram na cidade iraniana de Ramsar, aquela que viria a ser designada por Convenção de Ramsar para as Zonas Húmidas de Importância Internacional Especialmente como Habitat de Aves Aquáticas, rapidamente abreviada para Convenção de Ramsar. Conseguiu-se, há trinta anos, produzir um Tratado Intergovernamental, que se apresentou como uma referência para a cooperação internacional no sentido da conservação e uso racional das zonas húmidas. Tendo as zonas húmidas e particularmente os estuários, enorme importância como unidade ecológica para a flora e para a fauna, a Convenção propõe como objectivo global, a conservação e a racionalização do seu uso. Com este fim, a Convenção obriga as Partes Contratantes à realização de acções de gestão de zonas húmidas no seu território nacional, encarado globalmente, e em particular à designação de sítios para
integração na "Lista de Zonas Húmidas de Importância Internacional", ou Lista Ramsar. Existem obrigações específicas relativas a estes sítios designados. A selecção baseia-se na importância internacional de cada sítio, consideradas as vertentes ecológica, botânica, zoológica, limnológica e hidrológica. A Convenção desenvolveu Critérios específicos para a identificação e classificação de territórios, que em si contenham as características de Zona Húmida de Importância Internacional neles definidas. Os países contratantes, cujo número subiu em 2001 para um total de 123, assumem ainda a manutenção das características ecológicas dos Sítios designados e a cooperação nas acções de gestão e maneio das Zonas Húmidas e das espécies migradoras partilhadas internacionalmente. Actualmente, a área mundial de território declarado como Sítio Ramsar eleva-se acima dos 800.000 Km2, correspondendo este território a cerca de 10 vezes a superfície do território nacional.
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Critérios
Garça branca pequena, Egretta garzetta
Os Sítios Designados da Lista Ramsar, ou Sítios Ramsar, comportam uma grande variedade tipológica de Zonas Húmidas compreendendo águas costeiras marinhas, águas estuarinas até 6 metros de profundidade na baixa-mar, lagos permanentes ou temporários de água doce, pântanos, charcos, turfeiras e costas arenosas, entre outros. De dimensões muito variáveis, encontram-se distribuídos um pouco por todo o planeta. Existem hoje 1042 Sítios Ramsar, estudando-se e propondo-se em permanência, a inclusão na Lista de novos sítios, baseados no cumprimento dos Critérios Ramsar. A sua importância e hierarquia é determinada de acordo com o número de Critérios cumpridos, também eles em permanente desenvolvimento e actualização. Até meados da década de 90, os Critérios cabiam em três grandes grupos: 1.Critérios para Zonas Húmidas Representativas ou Únicas; 2.Critérios Gerais Baseados em Plantas ou Animais; 3.Critérios Específicos Baseados nas Aves Aquáticas. De então para cá foram redefinidos os parâmetros de cada Critério, sendo introduzido um novo grupo baseado em Critérios relativos a peixes. Actualmente, encontram-se em vigor os Critérios que a seguir se listam: Um determinado território é considerado como Zona Húmida Representativa ou Única se for: 1.a 1.b 1.c 1.d
Um exemplo representativo de uma zona húmida característica da zona biogeográfica em questão; Um exemplo particularmente representativo de um tipo de zona húmida existente em várias regiões biogeográficas; Um exemplo particularmente representativo de uma zona húmida que influencie de forma significativa, do ponto de vista hidrológico, biológico ou ecológico, o funcionamento de uma bacia hidrológica ou um sistema costeiro, principalmente se situada em zona transfronteiriça; Um exemplo de um tipo específico de zona húmida rara ou pouco habitual na região biogeográfica em questão.
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Para ser considerado como Zona Húmida Importante pelos Valores Faunísticos e Florísticos presentes deverá: 2.a 2.b 2.c 2.d
possuir um conjunto significativo de espécies ou subespécies, de plantas ou animais, raras, vulneráveis ou em vias de extinção, ou um número significativo de indivíduos de uma ou mais destas espécies; ser particularmente importante para a manutenção da diversidade ecológica e genética de uma dada região face à riqueza e singularidade da sua fauna e flora; ser particularmente importante como habitat de plantas e animais num estado particular e crítico do seu ciclo biológico; assumir especial valor para a presença de uma ou mais espécies endémicas de plantas e animais;
Será também considerado uma Zona Húmida Importante para as Aves Aquáticas se: 3.a 3.b 3.c
abrigar habitualmente pelo menos 20.000 aves aquáticas; abrigar habitualmente um número significativo de indivíduos de um dado grupo de espécies indicadoras do valor, produtividade e diversidade da zona húmida; abrigar habitualmente 1% dos indivíduos da população de uma região biogeográfica de uma dada espécie ou subespécie de aves aquáticas;
Por fim, será considerado como uma Zona Húmida Importante para Peixes se: 4.a
4.b
albergar uma proporção de subespécies de peixes autóctones, espécies ou famílias, fases do desenvolvimento, interacções entre espécies e/ou populações que sejam representativas dos benefícios e/ou valores das zonas húmidas e deste modo contribuam para a diversidade biológica global; for uma importante fonte de alimento para peixes, local de reprodução, maternidade e/ou local de migração.
Perdiz-do-mar, Glareola pratincola
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Sítio Ramsar 211 O estuário do Tejo na sua zona deltaica, foi declarado como Reserva Natural pelo Decreto-Lei n.º 565/76 de 19 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/77, de 17 de Novembro. Esta Reserva Natural, que celebra agora os seus primeiros 25 anos de existência, é legitimamente considerada como a mais importante zona húmida nacional e uma das dez mais importantes da sua unidade biogeográfica, o Paleártico Ocidental. Este é definido por um grosseiro polígono quadrangular, com fronteiras nos Montes Urais, a nascente, numa linha norte/sul que abrange os Açores a poente, pela linha boreal definida pela Islândia e o norte da Península Escandinava e a sul atravessando pela zona sahariana até ao Golfo Pérsico.
Na confrontação com a Lista de Critérios acima enunciados, a Reserva Natural do Estuário do Tejo cumpre 10 deles(1), tendo sido declarada em 24 de Novembro de 1980 como o Sítio Ramsar 211. Na mesma ocasião foi ainda declarado como Sítio Ramsar 212, o Parque Natural da Ria Formosa, no Algarve. Actualmente Portugal possui 10 Sítios Ramsar(2) abrangendo sob esta designação uma área total de território de 65.823 hectares. Dos Critérios cumpridos pela Reserva Natural do Estuário do Tejo, para inclusão na Lista Ramsar, cabe destacar o Critério 3c pela importância particular de que se reveste ao abrigar habitualmente mais de 1% de indivíduos de uma população da região biogeográfica em que se insere, das espécies das aves aquáticas abaixo listadas:
Garça-vermelha Perna-longa Perdiz-do-mar Ganso-comum Marrequinha Pato-trombeteiro Pilrito-comum Maçarico-de-bico-direito Tarambola-cinzenta Flamingo Piadeira Perna-vermelha Garça-branca-pequena Alfaiate
Ardea purpurea Himantopus himantopus Glareola pratincola Anser anser Anas crecca Anas clypeata Calidris alpina Limosa limosa Pluvialis squatarola Phoenicopterus ruber Anas penelope Tringa totanus Egretta garzetta Recurvirostra avosetta
2% 5% >4% 1,4% 1,4% 2,3% 1,2% 11,8% 5,4% >1% 1% 2,1% 2% 20,1%
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Outras espécies da fauna que contribuem para o adensar da importância desta Zona Húmida tão perto de nós, são sem dúvida a Lontra-europeia (Lutra lutra) e do ponto de vista da ictiofauna e da importância económica deste recurso no estuário do Tejo, o Robalo (Dicentrarchus labrax), a Solha (Platichthys flesus) e o Linguado (Solea solea e Solea senegalensis). Acresce ainda a importância de comunidades de plantas halofíticas ou de sapal que constituem os principais elementos de fixação dos novos solos e o principal agente despoluidor de alguns metais pesados presentes no estuário.
Defender o Sítio A lógica de protecção de um determinado Sítio, e no caso vertente da Reserva Natural do Estuário do Tejo, levou à criação de diferentes diplomas legais que garantem como que uma defesa territorial através de uma organização e gestão específica do território. Este contexto lógico, constitui actualmente o suporte do ordenamento do território. Não podendo escamotear a pressão humana em ambas as margens do estuário, optou-se pela criação de classificações diferenciadas, com uma cada vez mais restrita utilização dos solos, à medida que nos aproximamos da área mais sensível do território, a Reserva Natural. Temos assim, uma área classificada de 45.020 hectares, com utilização condicionada dos solos, e que abrange zonas diversificadas de montado de sobro, de lezírias, de sapais, de planos de águas, de praias, de salinas, enfim de uma multiplicidade de ambientes que constituem o território compreendido entre Vila Franca de Xira, Porto Alto, Infantado, Alcochete, Montijo e Moita, sem esquecer parte da margem norte no concelho de Loures, definida ao abrigo da Directiva Comunitária 79/409/CEE, como Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo.
Perna-vermelha, Himantopus himantopus
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Pancas
Nesta área são demarcadas zonas de importância para a avifauna, com diversos matizes e critérios de conservação, que condicionam em grande medida as alterações ao uso do solo, nomeadamente a construção fora dos Perímetros Urbanos definidos em Plano Director Municipal. No seu interior, totalmente integrada no território da Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, desenvolve-se a Reserva Natural do Estuário do Tejo, com 14.563 hectares, que para além da designação como Sítio Ramsar, se encontra ainda definida como Área Importante para a Avifauna Europeia, nas categorias 1iii, 3 e 4, como Biótipo CORINNE (C2 1200009) e como Sítio Designado da Rede Natura 2000 pela aplicação da Directiva Habitats 92/43/CEE. Aqui, o uso do solo é fortemente condicionado à manutenção das condições ecológicas existentes, estando formalmente interditas algumas actividades,
Dando-se como exemplo o exercício da caça. Por fim, bem no coração da Reserva Natural do Estuário do Tejo, definiram-se duas zonas de Reserva Integral - Pancas e Lagoa do Mouchão do Lombo do Tejo. A primeira com predominância de aves limícolas e com pouco mais de 1020 hectares, e a segunda dedicada a anatídeos com 29 hectares. O uso do solo é aqui estritamente condicionado à manutenção de padrões ambientais adequados à conservação das espécies, pelo que até as visitas de carácter recreativo e científico são ponderadas caso a caso, como garante da manutenção de níveis de tranquilidade para a avifauna protegida. Este tipo de ordenamento e gestão de uso de solos tem dado frutos, uma vez que passados 21 anos da sua designação como Sítio Ramsar, a Reserva Natural do Estuário do Tejo, mantêm intactas as suas potencialidades naturais.
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No futuro O futuro passará seguramente pela manutenção e melhoria das características que fazem deste território um lugar único, através da aplicação de critérios de âmbito continental. Neste sentido, a Reserva Natural do Estuário do Tejo submeteu recentemente à União Europeia, um Projecto LIFE Natureza 2000, denominado “Recuperação dos Santuários de Avifauna do Estuário do Tejo”, visando a aquisição de territórios abandonados de salinas e lagoas nos municípios de Benavente e Vila Franca de Xira, para promoção de uma correcta gestão de níveis de água, garantindo assim as condições necessárias à alimentação e reprodução da avifauna aquática que os utiliza.
Marrequinha, Anas crecca
Ao ser aprovado, em Julho último, este projecto com a duração de cinco anos, poderá constituir um ponto de partida para a gestão mais sustentada de Zonas Húmidas do estuário do Tejo, agregando neste percurso outros territórios e outros parceiros e promovendo, deste modo, uma actuação concertada. As populações são interventoras importantes deste processo de gestão, é também para seu usufruto e enriquecimento que se procura a manutenção das características naturais do estuário. É com as populações, residentes ou não, que se deve contar, pois só com a sua participação será possível devolver às gerações do futuro, aquilo que tão gentilmente nos emprestaram.
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Notas: (1) - A Reserva Natural do Estuário do Tejo cumpre os seguintes Critérios Ramsar (1.a)/(1.b)/(1.c)/(2.a)/(2.b)/(3.a)/(3.b)/(3.c)/(4.a)/(4.b). (2) - Reserva Natural do Estuário do Tejo (Sítio Ramsar 211), Parque Natural da Ria formosa (Sítio Ramsar 212), Paul de Arzila (Sítio Ramsar 822), Paul da Madriz (Sítio Ramsar 823), Paul de Boquilobo (Sítio Ramsar 824)., Lagoa de Albufeira (Sítio Ramsar 825), Reserva Natural do Estuário do Sado (Sítio Ramsar 826), Ria de Alvor (Sítio Ramsar 827), Lagoas de Santo André e da Sancha (Sítio Ramsar 828) e a Reserva Natural do Sapal de Castro Marim (Sítio Ramsar 829)
Fontes: - Http://www.ramsar.org - Dias, AA & Marques, JM (1999).Estuário do Tejo, o seu valor e um pouco da sua história.ICN.Alcochete - Frazier, S. (1996). Visión general de los Sitios Ramsar en el mundo. Wetlands International. Oxford.UK
Museu
MunIcIpal de Benavente