Terras d'Água 3

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REVISTA DE CULTURA | 3

Terras d’Água BENAVENTE

MUNICÍPIO DE BENAVENTE | MUSEU MUNICIPAL DE BENAVENTE


REVISTA DE CULTURA | 3

Terras d’Água BENAVENTE

MUNICÍPIO DE BENAVENTE | MUSEU MUNICIPAL DE BENAVENTE


FICHA TÉCNICA Propriedade | Município de Benavente Edição | Museu Municipal de Benavente Coordenação de edição | Cris na Gonçalves Colaboradores deste número| Aníbal Ferreira | António Ma as Coelho António Pedro Manique | Aurélio Lopes | César Neves | Clemen no Amaro Cris na Gonçalves | Jus no Mendes de Almeida | Mário Jus no Silva Rui Vieira | Sandra Ferreira | Sofia Garrido Grafismo | Sandra Figueiras Execução gráfica | Gráfica Central de Almeirim Tiragem | 500 ISBN 978-989-8495-06-8 Depósito Legal 423733/17 Benavente | Março 2017 Revista da Cultura do Município de Benavente - nº3 - Terras d' Água


ÍNDICE O NEOLÍTICO NO CONCELHO DE BENAVENTE: o sí o do Monte da Foz 1 | César Neves | 7 OLARIA ROMANA DA GARROCHEIRA, BENAVENTE | Clemen no Amaro e Cris na Gonçalves | 35 A EVOLUÇÃO TERRITORIAL DO RIBATEJO – DO SÉCULO XVIII AO ESTADO NOVO Território(s) e Iden dade(s) em torno de um Topónimo | António Pedro Manique | 57 ESTE NOME RIBATEJO | António Ma as Coelho | 71 AS FESTAS DO ESPÍRITO SANTO ANTERIORES AO MODELO IMPÉRIO O modelo primordial em Benavente | Aurélio Lopes | 75 OS FORAIS DE BENAVENTE E O SEU TOMBO - Benavente - 1516-1574 | Sandra Ferreira| 91 BENAVENTE QUINHENTISTA: imagens do quo diano numa vila ribatejana | Mário Jus no Silva| 151 DE BENAVENTE PARA A EUROPA Percurso médico-cien fico do Dr. António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782) | Jus no Mendes de Almeida | 169 PRESIDENTES DA CÂMARA MUNICIPAL DE BENAVENTE - 1716 / 1974 | Aníbal Ferreira | 175 O IMPOSTO SOBRE AS JANELLAS NA VILA DE BENAVENTE NO ANO DE 1832 | Sofia Garrido| 185 SERVIÇO MILITAR | Sandra Ferreira | 191 MANOEL LOPES D'ALMEIDA: Evocação do Mestre, Saudades do Homem | Jus no Mendes de Almeida | 207 DO TERRAMOT0 DE 23 DE ABRIL DE 1909 À RECONSTRUÇÃO DA VILA DE BENAVENTE | Rui Vieira | 217



NOTA DE ABERTURA A revista “Terras d'água”, revista de cultura do Município de Benavente, surgiu em 2001, no âmbito das comemorações dos oitocentos anos do Foral de Benavente, apresentando-se como um espaço privilegiado para o estudo e a valorização da história local, assumindo-se como um contributo na perceção da iden dade deste território. Esta edição retoma agora o seu terceiro número, reunindo um conjunto de ar gos, que à semelhança dos anteriormente publicados, procura lançar pistas para a inves gação. Com textos enquadrados na área geográfica do Ribatejo, esta revista vem propor uma perspe va temporal que iniciando num momento de ocupação neolí ca, chega a tocar na Revolução de Abril. Entendendo o território numa dimensão mul disciplinar, este projeto editorial pretende-se diverso, dinâmico, inovador e ainda que se possa apresentar como um desafio na realização de outros trabalhos de reflexão e inves gação.



O NEOLÍTICO NO CONCELHO DE BENAVENTE: O SÍTIO DO MONTE DA FOZ 1. César Neves UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; Associação dos Arqueólogos Portugueses



1. Introdução Em 2005, durante a realização de um Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução (RECAPE), para o projecto de construção do Sublanço A1/ Benavente da A10 – Auto-estrada Bucelas /Carregado (A1) – A13 (IC3), uma equipa da empresa ERA – Arqueologia iden fica, no traçado da futura Auto-Estrada, o sí o arqueológico Monte da Foz 1 enquadrando-o, genericamente, na Pré-História recente, com a atribuição cronológica de Neolí co / Calcolí co (Coelho, 2005). Em Março desse ano, a Brisa S.A. contrata a empresa Crivarque, Lda. para a execução das medidas de minimização propostas no RECAPE, a efectuar nas áreas iden ficadas como Monte da Foz 1. Estas medidas contemplavam a realização de sondagens arqueológicas manuais na área onde se projectava a construção da Plena Via e do Estaleiro Central. Iniciava-se, assim, a intervenção arqueológica de emergência dirigida pelo signatário e por Ana Rodrigues, terminando já no ano de 2006. A intervenção arqueológica, na sua globalidade, bem como o seu planeamento e metodologias preconizadas, es veram sempre condicionadas pelos calendários e impera vos de obra. Conscientes que a informação ob da durante as dis ntas fases da obra e da intervenção arqueológica não era suficiente para a caracterização do sí o, foi apresentado, em 2005, um Projecto de Inves gação, inserido no Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos (PNTA), onde se integravam, para além deste sí o, os novos dados provenientes de outras intervenções de emergência e/ou preven vas realizadas em áreas geográficas adjacentes. Ao englobar o Monte da Foz 1 num projecto de inves gação, abria-se a possibilidade de se estudar, na íntegra, os resultados ob dos no terreno tendo, por outro lado, disponíveis melhores meios e possíveis leituras de carácter interdisciplinar, imprescindíveis para a sua melhor compreensão e caracterização. O projecto in tulado Neolí co an go e médio na margem esquerda do Baixo Tejo (NAM), co-dirigido com Ana Rodrigues e Mariana Diniz, nha como linhas gerais a caracterização, cronológica e cultural, do Neolí co an go e médio na margem esquerda do Baixo Tejo, nas áreas administra vas dos concelhos de Benavente e Salvaterra de Magos, estando o sí o do Monte da Foz 1 enquadrado nesse horizonte crono-cultural.

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Estas fases culturais estão, em contraste com o Baixo Tejo, melhor documentados nas áreas da Estremadura, Alentejo interior e Algarve ocidental. O inves mento na inves gação nestas regiões que ocorre, embora de forma desigual, desde as duas úl mas décadas do séc. XX, tem sido decisivo para o conhecimento das sociedades humanas que habitaram o actual espaço português entre o 6º e 4º milénio AC. O presente texto é uma síntese de uma dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que teve como objec vo principal o estudo integral dos dados arqueológicos registados no Monte da Foz 1, assim como a sua integração crono-cultural na dinâmica do Processo de Neoli zação no extremo Ocidente Peninsular (Neves, 2010).

2. Espaço e Território O Monte da Foz 1 localiza-se, administra vamente, em Portugal, no distrito de Santarém e concelho de Benavente, situando-se num espaço denominado por Baixo Vale do Tejo, nomeadamente na margem esquerda deste curso de água principal. O sí o localiza-se na Carta Militar de Portugal na folha nº 391, na escala 1: 25 000. As coordenadas geográficas (UTM – WGS 84) são: Longitude M: 514 008,24 / -08º 50' 17, 888 La tude P: 431 3105,08 / 38º 58' 00, 490 Al tude: 11m Esta região corresponde a uma planície aluvial composta por depósitos de sedimentos finos de origem fluvial, marinha e con nental. Neste espaço, a evolução Plistocénica caracteriza-se pelo desenvolvimento de Terraços, com a localização topográfica específica do Monte da Foz 1 situado sobre um terraço Q4 de Benavente, cujas al metrias variam entre os 8-15m (Zbyszeswki e Ferreira, 1968). Disponíveis nestes depósitos de terraço, encontram-se cascalheiras de seixos de quartzo e quartzito. À semelhança de grande parte dos contextos crono-culturalmente paralelos, o espaço onde se implantou a ocupação do Monte da Foz 1 caracteriza-se como uma área aberta, plana, sobre um substrato arenoso, a baixa al tude e sem quaisquer condições naturais de defesa. Ao nível de recursos naturais, a ocupação terá do em conta a grande proximidade com as ribeiras do Sorraia e Almansor, afluentes de um curso principal, o Tejo, também ele, à data da ocupação, muito próximo do sí o arqueológico.

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Esta área é genericamente definida pelo paleo-estuário do Tejo, formado aquando da transgressão flandriana, procedendo a fortes alterações no rio e nos seus directos tributários, alcançando o seu máximo em ±5000 BP (Daveau, 1980). A paisagem que actualmente caracteriza a margem esquerda do Baixo Vale do Tejo é dis nta da que terá exis do no final do Plistocénico e na primeira metade do Holocénico (Vis e Kasse, 2009). O canal fluvial do Tejo e respec va planície aluvial, na sua génese e evolução, são o espelho das alterações paisagís cas e oscilações climá cas que esta região terá sofrido desde do Plistocénico superior até ao presente, que veram consequências ao nível da diversidade dos recursos existentes (Freitas et al., 2006). À data da ocupação do Monte da Foz 1, o ambiente estuarino que caracterizaria este território proporcionaria a existência de um ecossistema diversificado, com elevado potencial bió co, passível de ser ob do, sem grande esforço, através de prá cas cinegé cas e de recolecção. Esta situação deverá sido determinante na implantação deste habitat, uma vez que a especificidade das estratégias de ocupação neste espaço aberto estaria “moldada” aos recursos naturais existentes, às excelentes condições de mobilidade que o mesmo permite/exige estando, eventualmente, integrados numa rede de povoamento que incluiria sí os de dis nta natureza funcional e, possivelmente, dimensão espacial. A implantação deste sí o, na margem de cursos de água, terá do em conta os recursos aquá cos daí provenientes mas, de igual modo, as condições de circulação que as comunidades aí estacionadas podiam explorar. O Tejo e seus afluentes (Sorraia e Almansor), bem como as vastas planícies que circundavam o Monte da Foz 1, permi am aos grupos humanos que aí habitavam um ritmo de mobilidade sem grandes condicionantes geográficos, possibilitando a deslocação até territórios e contextos geológicos dis ntos (Estremadura e Alentejo interior, onde haveriam melhores condições para a prá ca da pastorícia e agricultura, respec vamente, bem como a existência de outros recursos ao nível das matérias-primas – sílex, granito e anfibolito), numa necessária complementaridade que o modelo social, cultural e económico do processo de Neoli zação, gradualmente, impunha (Neves, 2013). Por outro lado, a riqueza económica proveniente deste meio ambiente específico contrastaria com a débil ap dão dos seus solos (com alto teor de salinidade), para

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eventuais prá cas agrícolas. Esta limitação dos solos parece ser um dado contraditório face às dinâmicas esperadas para as primeiras fases do Neolí co. No entanto, a pologia funcional do Monte da Foz 1 jus ficaria esta situação, uma vez que, a julgar pela evidência empírica disponível, a agricultura não terá sido uma ac vidade primordial na “balança económica” do grupo que aí residiu (Figura 1 e 2).

Figura 1. Localização do Monte da Foz 1 na Península Ibérica e no Baixo Vale do Tejo (base cartográfica: Daveau, 1980 – adaptado).

Figura 2. Monte da Foz 1 – Localização. Lado esquerdo: na CMP à escala de 1/25 000 (folha 391 - excerto); lado direito: a plataforma onde se implanta o sí o.

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3. Intervenção arqueológica Em Abril e Maio de 2005, numa fase prévia à construção da A10, entre um conjunto alargado de medidas 2 de minimização, realiza-se a escavação arqueológica de 5 sondagens manuais - num total de 20m de área intervencionada - no sí o do Monte da Foz 1. Estas sondagens dis nguem-se das restantes acções de minimização pelo facto de, aí, se ter registado um nível de ocupação preservado e bem delimitado em termos cronológicos. Os par cularismos de uma escavação de natureza preven va oferecem, na maioria dos casos, significa vas limitações de natureza metodológica. No caso concreto desta escavação, as cinco sondagens encontravam-se espaçadas 15m entre si, dificultando a leitura conjunta dos dados arqueológicos, especialmente na impossibilidade de união das áreas sondadas. O facto do estudo da ocupação neolí ca do Monte da Foz 1 se centrar, exclusivamente, nos resultados destas sondagens devese à iden ficação e registo, em cada uma delas, de um nível arqueológico in situ e, na sondagem B13, de uma estrutura de habitat. Rela vamente aos dados arqueológicos recolhidos, estas sondagens foram as que apresentaram o maior número de espólio arqueológico, em melhor estado de conservação e com uma significa va homogeneidade crono-cultural e tecno- pológica entre si. A pedra lascada corresponde ao elemento artefactual mais representa vo, seguido das produções cerâmicas. A sequência estra gráfica registada é pouco complexa. As camadas superficiais caracterizam-se por níveis orgânicos com algumas perturbações pós-deposicionais de origem antrópica (trabalhos agrícolas), e de bioturbação vegetal e animal (raízes e tocas de roedores). Correspondem a níveis que apresentam um número muito reduzido de materiais arqueológicos e de reduzidas dimensões, cons tuindo-se como um excelente indicador da preservação do nível arqueológico. Depositado sob estes depósitos, a cerca de 50-60cm da super cie actual, encontra-se o nível arqueológico, bem consolidado e definido, caracterizado por uma camada sedimentar arenosa, que apresentava uma espessura variável entre 20-40cm de potência. Os horizontes estra gráficos correspondentes ao nível ocupacional dis nguiam-se das camadas sob e sobrepostas pela forte presença de materiais arqueológicos de todas as categorias artefactuais, estando pra camente ausentes as perturbações pósdeposicionais que caracterizavam as camadas superficiais. Além da homogeneidade crono-cultural dos artefactos, a possibilidade de se estar perante um momento ocupacional, que terá ocorrido numa mesma etapa crono-cultural, também se confirmava na ausência de qualquer hiato cronológico entre as camadas escavadas.

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Abaixo do nível ocupacional surge uma camada arenosa, de sedimento muito fino, totalmente estéril do ponto de vista arqueológico. Desconhece-se, no entanto, a sua real espessura, uma vez que não se a ngiu o seu limite inferior, escavando-se um máximo de 1,20m de profundidade em cada sondagem. De igual modo, a forte dinâmica ambiental e condições sedimentares (eólicas e fluviais) terão contribuído para a rápida colmatação da ocupação. Em virtude de não se ter recuperado qualquer elemento de matéria orgânica que permita a realização de datações absolutas, a definição cronológica da ocupação neolí ca do Monte da Foz 1 passou, essencialmente, pela análise tecno- pológica da cultura material, assim como pela caracterização da estratégia e pologia ocupacional e recons tuição dos subsistemas económicos e sociais (Figura 3).

Figura 3. Monte da Foz 1 - Aspecto geral do final da escavação da Sondagem B13.

4. Cultura Material Apesar de se reconhecer uma postura analí ca que privilegia uma abordagem tecnológica em detrimento de uma mera descrição e classificação pológica, um dos principais objec vos do estudo deste conjunto foi o de avaliar que espólio integra o “pacote artefactual” das comunidades desta fase do

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processo de Neoli zação, nomeadamente em contexto domés co, a fim de, entre elementos de pedra lascada, polida, afeiçoada e cerâmica, se obter um quadro geral que auxilie, no futuro, a caracterização de ocupações de natureza crono-cultural semelhante. O estudo da cultura material registada no Monte da Foz 1 procurou responder a um ques onário prévio, que teve em consideração o contexto de proveniência dos elementos artefactuais, uma vez que se entende o objecto em análise como estando sempre relacionado com a economia de exploração idealizada por quem o produziu e respondendo às necessidades que o meio envolvente o impõe, assim como à pologia funcional da ocupação.

4.1. Indústria Lí ca Na análise deste conjunto, formado por 1102 peças, destaca-se a exploração, no local, de três pos de matéria-prima, o quartzito, o quartzo e o sílex. Ainda que estejam presentes algumas peças em quartzo hialino, estas rochas têm um carácter muito residual, revelando valores muito diminutos. O quartzito apresenta-se como a matéria-prima mais u lizada, com 505 testemunhos, correspondendo a cerca de 46% do total da amostra. O quartzo e o sílex manifestam-se em quan dades inferiores, embora com maior superioridade para o quartzo. O quartzo, com 339 peças e o sílex com 243 perfazem cerca de 31% e 22% da amostra total, respec vamente. Com uma representa vidade muito residual, surge o quartzo hialino, em 15 elementos, compreendendo a cerca de 1% da totalidade de registos. Numa leitura conjunta, ao nível da debitagem e conformação de utensílios, constata-se que a representa vidade da matéria-prima não se altera muito. O quartzito con nua a ser a rocha mais representada, com cerca de 44% do total, seguida pelo sílex, com cerca de 37% de peças produzidas, e pelo quartzo, com cerca de 18%. O quartzo hialino só entra nesta contabilidade com uma única peça, coincidindo com 1% da amostragem. No campo da utensilagem, observa-se uma inversão de presenças rela vamente ao sílex e quartzo. Este facto está relacionado com as estratégias de debitagem e com a gestão diferenciada das matériasprimas, enquadradas na futura funcionalidade dos suportes de utensilagem. O conjunto revela abordagens diferentes consoante as matérias-primas disponíveis. A economia de exploração baseia-se em matérias-primas locais (quartzito e quartzo) e em matérias-primas exógenas (sílex), embora apresentando uma gestão diferenciada. Apesar de atestada, no local de

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ocupação, a exploração diversificada de matérias-primas, a u lização preferencial recairia por rochas imediatamente acessíveis, que correspondem a 78% dos elementos do conjunto (Quadro 1).

Quadro 1 | Monte da Foz 1- Inventário Geral da Pedra Lascada Material de Preparação/Reavivamento/Residual Esquírolas Inclassificáveis Subprodutos de talhe Acidentes talhe Microburis Peças de crista Lamelas Peças corticais Lascas Suportes não standartizados Total Lascas Material Lamelas Debitado Lâminas sobre lasca Utensílios sobre lamela sobre lâmina Núcleos e fragmentos de núcleos TOTAL

Quartzito

Quartzo

Q. Hialino

Sílex

Total

324 79 12 14 429 67 3 6 505 – 46%

242 52 2 8 304 24 3 1 7 339 – 31%

14 14 1 15 – 1%

146 15 3 1 18 2 185 3 34 1 3 12 5 243 – 22%

726 146 14 3 1 40 2 932 – 85% 95 37 1 7 12 5 13 1102 – 100%

Atendendo ao espólio recolhido, observa-se a presença de talhe local, com maior incidência no quartzito e quartzo, estando registados todos os processos da cadeia operatória. No sílex, a ausência de elementos da etapa final da debitagem (núcleos), não coloca de parte que esta rocha também tenha sido talhada localmente. Os restos de talhe, as peças relacionadas com descor cagem e reavivamento de blocos a debitar, bem como a presença de material debitado (em bruto e em suportes de utensilagem), são dados sólidos que comprovam essa ac vidade no Monte da Foz 1. Esta fase de descor cagem, presente, mas rela vamente escassa, pode indicar que, ao local, chegariam os blocos de sílex já testados e, em grande parte, descor cados e conformado, produzindo-se, na sua maioria, núcleos para lamelas e lâminas e, em menor número, lascas. O carácter exógeno da matériaprima e ap dão para o talhe de uma rocha que potencia um número mais elevado e diversificado de 16


suportes e utensílios, terá levado à exaustão e esgotamento dos núcleos, facto que poderá ter contribuído para a ausência dos mesmos no registo arqueológico. As rochas facilmente exploradas no território imediato de captação de recursos, o quartzito e quartzo, são as que detêm maior peso contabilís co no conjunto. No quartzito, o processo tecnológico envolve um talhe expedito que visava a produção de utensilagens sobre lasca, de concepção muito simples. Os núcleos unipolares, com poucos levantamentos, são indicadores seguros de uma ausência de necessidade em explorar e esgotar ao máximo uma matéria-prima que se apresenta localmente disponível, de forma abundante, e de fácil apreensão. Desta forma, não se procederia ao reavivamento e manutenção dos blocos escolhidos para debitar (Figura 4).

Figura 4. Monte da Foz 1. Pedra lascada (quartzito). 1 - lasca semi-cor cal com traços de u lização; 2-3 - lascas semicor cais; 4-5 – lascas não cor cais.

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O quartzo, por seu lado, apresenta dados que indicam uma exploração mais diversificada. A sua maior ap dão para o talhe permi u talhar, além de lascas, esquírolas e lamelas, ficando as lâminas como o único suporte não produzido neste mineral. Ainda assim, o grosso da produção centrava-se nas lascas, representado cerca de 89% do material debitado nesta rocha. Os núcleos e nódulos debitados registados vão ao encontro desta leitura. A exploração do quartzo e do quartzito assentaria numa estratégia expedita com uma minimização de esforço tecnológico e sico. A sua produção visaria o fornecimento de suportes (lascas) para utensilagens de “uso circunstancial (lascas retocadas ou em bruto para cortar…) …” (Carvalho, 1998b, p.89). A macro-utensilagem em quartzito é uma caracterís ca comum de sí os ocupados desde de uma fase evolucionada do Neolí co an go, principalmente quando o quartzito se apresenta como recurso imediatamente acessível. O sílex apresenta uma clara oposição face à estratégia e finalidade de talhe verificadas no quartzito. Os dados remetem para uma exploração dirigida para a produção de suportes alongados e micrólitos geométricos. A escassez de lascas em contraste com a forte presença de suportes lamelares e laminares (estes úl mos, ainda assim, em menor número do que as lamelas), demonstra o objec vo primordial da debitagem desta matéria-prima. Para que tal acontecesse, foi explorado sílex muito diversificado e de excelente qualidade, tendo parte sido aprovisionado em áreas distantes do sí o, em contextos geológicos secundários localizados na área da Estremadura, que em nada se relacionam com o enquadramento geológico do Monte da Foz 1. A exploração alóctone do sílex revela a importância que teria na economia do grupo, demonstrando, igualmente, a preocupação de uma comunidade em obter uma matéria-prima específica que se enquadra numa determinada estratégia de produção, também ela de grande especificidade, sendo que essa matéria-prima terá que ser recolhida em áreas rela vamente distantes do local de habitat. As limitações impostas pelo substrato geológico da área da margem esquerda do Baixo Tejo, obrigam ao desenvolvimento de estratégias de forte pendor social e económico, envolvendo o grupo que habitou o Monte da Foz em esquemas de circulação de matéria-prima. Desta forma, observa-se no sílex um talhe mais cuidado, intensivo, que visaria o aproveitamento quase integral desta matéria-prima recorrendo, em alguns casos, ao pré-tratamento térmico. Quanto à funcionalidade dos utensílios conformados (geométricos, peças retocadas e com traços de u lização), os mesmos remetem para “elementos de foice” e armaduras, relacionando-se com prá cas produ vas e cinegé cas. A sua fraca percentagem no total do conjunto parece relacionar-se com uma ocupação efémera e temporária. Se a isto se juntar a fraca representação de elementos de moagem e utensílios com gume em pedra polida (como em baixo veremos), é de crer que o grupo que habitou no

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Monte da Foz 1, embora conhecedor e portador dos elementos da cultura material que indiciem uma nova tendência produ va e de domes cação da paisagem, não teria o objec vo de implantar uma ocupação de forte pendor “sedentário” e permanente (Figura 5, 6 e 7. Quadro 2 e Quadro 3).

Figura 5. Monte da Foz 1. Pedra lascada (sílex e quartzo). Lamelas em bruto.

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Figura 6. Monte da Foz 1. Pedra lascada (sílex). 1-2 - microburis; 3-4 - segmentos; 5-6 – trapézios; 7-11 – Lâminas: 7-9 – com traços de u lização; 10 – com retoque marginal.

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Figura 7. Monte da Foz 1. Pedra lascada (sílex). Lamelas: 1-2 – com retoque marginal; 3 - entalhe; 4-6 – com traços de u lização; 7-15 – em bruto;

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Quadro 2 | Monte da Foz 1- Quadro pológico Sílex 1 1 2 2 8 8

Raspadeiras Entalhes Trapézios Segmentos P. retoque marginal P. traços de utilização

Quartzito 3

Quartzo 1

Total 1 1 2 2 8 12

Quadro 3 | Monte da Foz 1- Suportes de utensilagem Raspadeiras Entalhes Trapézios Segmentos P. retoque marginal P. traços de utilização

Lasca 3 4

Lâmina 1 1 3

Lamela 1 1 2 4 4

Outros 1 1

Total 1 1 2 2 8 12

Pedra polida e afeiçoada O conjunto de pedra polida e afeiçoada é muito reduzido, com os exemplares registados a surgirem em mau estado de conservação, apresentando um elevado grau de fragmentação. Desta forma, afigura-se di cil uma atribuição pológica e funcional dos respec vos elementos artefactuais. A pedra polida encontra-se representada através de uma pequena lasca em anfibolito polido. Trata-se de uma lasca com pouca espessura e irregular, apresentando uma face polida e uma outra em bruto, sendo esta úl ma uma zona fracturada. A sua classificação pológica é “indeterminada”. Os ves gios de possível utensilagem em pedra afeiçoada correspondem a 3 fragmentos em granito, recolhidos durante a escavação. Deverão tratar-se de elementos de moagem, apesar do elevado estado de fragmentação não permi r a dis nção entre moventes e dormentes.

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Os elementos artefactuais em pedra polida e pedra afeiçoada são cons tuídos por rochas de origem exógena. O granito e o anfibolito têm a sua fonte de aprovisionamento mais próxima no interior alentejano, nomeadamente nas áreas, hoje, pertencentes aos distritos de Évora e Portalegre, num raio mínimo de 60 a 70km. O mau estado de conservação e o elevado grau de fragmentação poderá estar relacionado com a intensidade e grau de u lização que estes elementos veram sujeitos. Após o seu abandono, que terá ocorrido quando o artefacto se encontraria completamente esgotado, ter-se-á verificado uma dispersão aleatória destes fragmentos pelo sí o, sem qualquer relação com os espaços de uso. Os principais artefactos pertencentes a estas categorias estão relacionados com as ac vidades económicas desenvolvidas no contexto dos novos sistemas produ vos introduzidos durante o processo de neoli zação. Embora presentes em número diminuto e em mau estado de conservação, os elementos existentes no Monte da Foz 1 atestam a presença de uma comunidade integrada nas an gas sociedades camponesas, portadora do clássico “pacote neolí co”, quer do ponto de vista artefactual/cultural, quer do ponto de vista de economia e produção (Neves, 2012).

Pedra com traços de u lização Percutores Foram registados 5 percutores no Monte da Foz 1: 4 sobre seixo de quartzito; 1 sobre seixo de quartzo. Trata-se de percutores duros u lizados, em grande parte, no talhe através da percussão directa sobre núcleos de quartzito, quartzo e sílex, sendo esta uma técnica claramente atestada nos materiais de pedra lascada do Monte da Foz 1. A escolha da matéria-prima é exclusivamente local, recorrendo-se aos seixos rolados ob dos nas cascalheiras localizadas nas redondezas do sí o.

4.2. Cerâmica O conjunto cerâmico do Monte da Foz 1 é formado por 2563 fragmentos de recipientes de produção manual, e por 9 objectos cilíndricos de funcionalidade indeterminada. Do total de 2563 fragmentos, 232 pertencem a bordos, 2329 são bojos, 1 foi classificado como fundo e 1 relaciona-se com um elemento de preensão, aparecendo isolado do seu recipiente original. Perante este número de elementos, impunha-se a inevitável selecção da amostra a estudar, para que fosse representa va do conjunto, possibilitando a sua caracterização e definição tecno- pológica. A triagem gerou um subconjunto com todos os fragmentos portadores de informação culturalmente

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significa va a serem descritos, individualmente, numa ficha de inventário elaborada para o efeito. Integraram a amostra todos os bordos, bojos com decoração, fundos, e os elementos de preensão e suspensão (e.p.s.) que ocorrem de forma isolada. O subconjunto é composto por 243 registos, correspondendo a 261 fragmentos. A presença de maior número de fragmentos rela vamente ao número de registos deve-se à colagem entre alguns bordos e bojos de uma mesma peça. Todos os fragmentos descritos foram desenhados, tendo em vista a sua caracterização pológica. Apesar da reduzida dimensão do conjunto, foi impossível definir o número mínimo de recipientes. O grau de fragmentação do material (1180 elementos com dimensão inferior a 2cm), o número de fragmentos lisos e a dispersão espacial que estes elementos sofrem em habitats abertos não permite, com mínima fiabilidade, es mar o número de contentores presente na amostra estudada (Quadro 4).

Quadro 4 | Cerâmica do Monte da Foz 1 - Principais caracterís cas

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Tecnologia

Morfologia

Funcionalidade

Decoração

Recurso a argilas locais para a manufactura dos recipientes;

Formas abertas e fechadas em % iguais (50% cada);

Claro domínio de recipientes lisos (76% subconjunto – 98% Total);

Utilização maioritária de pastas compactas (75%); Paredes pouco espessas (86%);

Predomínio das Taças (40%), Esféricos (28%) e Ovóides (21%); Paredes rectas em número residual (10%);

Recipientes de média dimensão multiplicidade funcional (preparação e consumo de alimentos);

Alisamento interno (41%) e externo das superfícies (46%);

Recipientes, na sua maioria, de média dimensão (78%);

Cozeduras em ambientes redutor com arrefecimento oxidante;

Baixa percentagem de vasos de grandes dimensões (17%);

Informação de carácter paleoeconómico subsistência “imediata”; Análise de conteúdos (estudo a decorrer); Escassos elementos tradicionalmente relacionados com a armazenagem e conservação de alimentos;

Incisão – técnica maioritária (80% dos fragmentos decorados); Impressão – técnica residual (16% dos fragmentos decorados); Linha incisa sob o bordo: Sulco abaixo do bordo motivo decorativo dominante (68% dos fragmentos decorados); Presença de sulco abaixo do bordo em taças hemisféricas, esféricas e ovóides;


A descrição e classificação dos materiais provenientes do Monte da Foz 1 visaram, de forma genérica, a persecução de dois objec vos: - Caracterizar o conjunto cerâmico quanto à sua variabilidade morfológica, tecnológica e es lís ca, enquadrando-os, posteriormente, num determinado âmbito crono-cultural; - Compreensão dos processos de formação e preservação do sí o arqueológico (par ndo do estado de conservação e dimensão dos fragmentos, em conjunto com a sua distribuição espacial na área intervencionada); A análise do conjunto artefactual do Monte da Foz 1 permi u observar uma produção cerâmica que parte da u lização de argilas localmente disponíveis, construindo recipientes de pastas compactas (75% da amostra), com paredes maioritariamente pouco espessas (86% do total da amostra), cozidas em ambiente redutor com arrefecimento oxidante, com presença frequente de elementos não plás cos de pequeno e médio calibre. Após o recipiente estar formalmente configurado, as super cies foram, em grande parte, alisadas ainda que com frequência não tenham sido alvo de nenhum tratamento. O polimento e aplicação de aguadas apresentam-se como técnicas pouco u lizadas neste conjunto. Num momento prévio à secagem, numa percentagem minoritária de recipientes (24% do universo de fragmentos individualmente descritos; 2% no total dos fragmentos cerâmicos do Monte da Foz 1), e num espaço muito próximo da abertura do vaso, foram aplicados mo vos decora vos. U lizou-se a técnica da incisão, desenhando, par cularmente, uma linha horizontal logo abaixo do bordo (sulco abaixo do bordo), bem como séries e fiadas de linhas paralelas entre si. A decoração impressa consis u na aplicação de puncionamentos individuais, em fiada, de matriz simples, paralelos entre si e perpendiculares ao bordo (Figura 8). Em termos decora vos, a técnica da incisão representa 80% do total das cerâmicas decoradas, enquanto a impressão a nge, somente, 16%, cingindo-se a combinação destas técnicas a 4% dos fragmentos analisados. Num universo dominado por recipientes lisos (c. 76% do subconjunto – 98% do total de fragmentos recolhidos), o sulco abaixo do bordo apresenta-se como o elemento decora vo predominante, em cerca de 68% dos fragmentos decorados, correspondendo, desta forma, ao único mo vo claramente padronizado e recorrente no conjunto das cerâmicas decoradas, estando presente em pra camente todos os pos morfológicos iden ficados.

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Figura 8. Monte da Foz 1. Recipientes decorados com sulco abaixo do bordo.

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A presença claramente maioritária de cerâmica lisa em conjunto com um domínio, na decoração, do sulco abaixo do bordo, aliada a uma presença residual de cerâmica impressa (c. 16% dos fragmentos decorados), serão indicadores de que a ocupação humana do Monte da Foz 1 remontará a uma fase evolucionada do processo de Neoli zação (Neves, 2015) (Figura 9). Em termos pológicos, o conjunto caracteriza-se pelo equilíbrio entre formas abertas e fechadas, que surgem em percentagens iguais. As formas de paredes rectas e de vasos de colo são muito residuais e sem grande expressão percentual. Os vasos são, na sua maioria, de média dimensão (78%), sendo, desta

Figura 9. Monte da Foz 1. 1-4 – Recipientes com decoração incisa; 5 – decoração impressa; 6 – decoração compósita - incisa/impressa; 7 – aplicação de e.p.s.

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forma, di cil de aferir a sua funcionalidade em virtude de poderem ter sido produzidos para uma mul plicidade de fins, tais como a preparação e consumo de alimentos. Verifica-se um claro domínio das taças, esféricos e ovóides (c. 89% dos fragmentos estudados), em contraste com as denominadas “paredes rectas”, que são residuais (c. 10%). O número de recipientes de grandes dimensões, provavelmente preparados para o armazenamento e conservação de líquidos e sólidos, é residual (c. 17% do conjunto), deixando antever que esta acção, normalmente relacionada com estadias mais estáveis e “sedentárias”, não seria um dos princípios base que orientava esta ocupação. O conjunto muito es lizado e coerente observado no Monte da Foz 1 poderá ser bem representa vo da natureza ocupacional aí verificada. À dimensão reduzida do conjunto, alia-se a padronização da dimensão dos contentores, dados que convergem para uma ocupação num espaço temporal único e de curta duração (Figura 10 e 11). A julgar pela globalidade do conjunto artefactual (indústria lí ca e cerâmica), o grupo que terá ocupado o Monte da Foz 1 estaria, economicamente e socialmente, enquadrado com as modalidades de interacção entre o Homem e o Meio que caracterizam o processo de Neoli zação em curso, num quadro global de ruptura, face às pré-existências mesolí cas.

5. Enquadramento crono-cultural Os dados provenientes da escavação arqueológica permitem enquadrar o Monte da Foz 1 num panorama diversificado de modelos de implantação, que se terá verificado no decorrer do processo de Neoli zação. A mobilidade residencial destes grupos, na procura de ecossistemas e territórios que facultassem um equilíbrio do subsistema económico, que começava a deter uma componente gerada por prá cas produ vas (agricultura e pastorícia), permi u que ocorresse, numa mesma etapa cronocultural, uma pluralidade de estratégias de ocupação do espaço que jus ficam a diversidade detectada no registo arqueológico, ao nível dos sí os de habitat. Atendendo ao quadro de sí os conhecidos relacionados com a Neoli zação do espaço ocidental da Península Ibérica, observa-se que as estratégias de ocupação obedeceram, par cularmente, a factores de ordem ecológica-ambiental e cultural (Diniz, 2003), surgindo o Monte da Foz 1 como mais um exemplo, do carácter específico, de uma determinada estratégia de ocupação de um território. O Monte da Foz 1 parece integrar-se numa pologia de ocupações, culturalmente relacionadas com as etapas iniciais do processo de Neoli zação, mais comum no actual território português: habitats

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Figura 10. Monte da Foz 1. Principais pos morfológicos – Formas abertas.

Figura 11. Monte da Foz 1. Principais pos morfológicos – Formas fechadas.

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temporários de curta duração. Face ao espaço onde se implantou e aos elementos artefactuais disponíveis no registo arqueológico, o Monte da Foz 1 parece corresponder a uma ocupação de natureza logís ca, por um grupo que, no território envolvente, pra caria uma economia essencialmente de caça, recolecção e pesca, permanecendo as ac vidades produtoras com um peso menos expressivo no subsistema económico (Neves, 2013). A par r da análise tecno- pológica do espólio artefactual (face à ausência de matéria orgânica e ecofactos que possibilitassem a obtenção de datações absolutas) e mediante a caracterização da pologia funcional e estratégia de ocupação, foi possível aferir que o nível de ocupação registado no Monte da Foz 1, estará enquadrado num espaço crono-cultural entre os momentos finais do Neolí co an go e o Neolí co médio inicial. Observando as datações absolutas existentes em contextos análogos, em termos cronológicos, a ocupação terá ocorrido entre a 2ª metade do 5º milénio e o início do 4º milénio cal BC. Estas leituras resultam da observação da informação registada em sí os que apresentam horizontes artefactuais semelhantes e das (escassas) datações absolutas que algumas dessas ocupações forneceram. Para o Monte da Foz 1, a busca de quadros de leitura com paralelos crono-culturais terá que ser realizada a uma escala supra-regional, pois as limitações arqueográficas que a margem esquerda do Baixo Tejo apresenta assim o impõem. Desta forma, a verificação e confrontação da leitura interpreta va proposta, recorreu a evidências empíricas observadas em outros espaços, do actual território português, nomeadamente a Estremadura, Alentejo interior e Costa Sudoeste. A nível da cultura material, este momento define-se, pela presença maioritária de recipientes cerâmicos de formas geométricas simples (taças e esféricos) de média e reduzida dimensão, pra camente desprovidos de qualquer decoração, pelo peso significa vo de recipientes decorados com sulco abaixo do bordo e por percentagens reduzidas de fragmentos impressos. No que diz respeito à indústria lí ca, observa-se uma primazia de uma estratégia de talhe expedito para a obtenção de lascas sob matériasprimas locais e pela existência de uma indústria lamelar e laminar em sílex para a produção de produtos alongados e utensílios. A pedra polida e/ou afeiçoada está escassamente representada. Este “grupo” artefactual é registado em sí os arqueológicos de dis ntos espaços geográficos do actual território português, parecendo ultrapassar os “regionalismos culturais” que eram evidentes, principalmente ao nível das decorações cerâmicas, durante os finais do 6º e os inícios do 5º milénio cal BC, dando lugar a uma certa uniformidade cultural que será mais evidente na etapa seguinte (Neves, 2015). 30


Na Estremadura, mais concretamente na área do Maciço Calcário Estremenho, ocorrem paralelos com o Monte da Foz 1, ao nível da cultura material, na camada Db do Abrigo da Pena d'Água, definida como do Neolí co médio inicial, e no Cerradinho do Ginete (Torres Novas), também ele integrado nesse período (Carvalho, 1998a e 2016; Nunes, 2014). Ainda nesta região, um enterramento humano iden ficado na Costa do Pereiro, datado de 4040-3795 cal BC (Carvalho e Petchey 2013, p.365), e o facto de estar associado a uma ocupação que apresenta uma clara representação de cerâmica lisa e, nas decorações, sulco abaixo do bordo (Nunes e Carvalho, 2013, p.330), coloca-o como muito próximo do horizonte temporal do Monte da Foz, estando a data ob da inteiramente compa vel com a leitura cronológica que temos vindo a referir. O espaço da Costa Sudoeste, em virtude de se constatar um enquadramento geomorfológico muito semelhante com a margem esquerda do Baixo Tejo, apresenta um conjunto de ocupações que, pela estratégia económica, implantação e componente artefactual, se podem cons tuir como contextos contemporâneos do Monte da Foz 1. Neste sen do, destacam-se as ocupações do Pontal (Comporta), Palmeirinha e, possivelmente, Brejo Redondo (Sines) (Soares e Silva, 2013; Silva, et. al, 2010; Silva e Soares, 2004). Estas ocupações detêm nos seus conjuntos artefactuais uma forte presença de cerâmica lisa, sendo o sulco abaixo do bordo o elemento decora vo mais representado nos recipientes. Os responsáveis cien ficos pelas intervenções arqueológicas e estudo destes contextos, enquadra-os num momento terminal do Neolí co an go e numa fase inicial do Neolí co médio. No Pontal, uma amostra de concha permi u obter uma datação, com um intervalo de tempo entre 3904-3638 cal BC (Soares e Silva, 2013, p.154). Em outros espaços geográficos, como é o caso do Alentejo interior, surgem sí os que, pela componente artefactual que apresentam têm que ser dos em conta nesta breve leitura de enquadramento, cronocultural, da ocupação do Monte da Foz 1. Na região de Évora, na sondagem 9/2 realizada no monumento megalí co de Vale Rodrigo 3, observaram-se camadas anteriores à construção do monumento, revelando um conjunto artefactual totalmente dominado por cerâmica lisa e cerâmica decorada com sulco abaixo do bordo, associado a uma indústria lí ca em quartzo (matéria-prima local) para a produção de lascas e lamelas (Armbruester, 2006). Este momento ocupacional está datado entre 3938-3699 cal BC (Armbruester, 2008, p.86). Ainda na área de Évora, e com muitas semelhanças rela vamente a Vale Rodrigo 3, surge a ocupação prévia à construção do monumento funerário Hor nha 1 (Rocha, 2007). Além do fenómeno ser bastante idên co, os dados correspondentes à produção cerâmica demonstram elementos e valores em comum, aproximando crono-culturalmente estas realidades. Em Hor nha 1, surge um conjunto cerâmico dominado pela presença de recipientes lisos onde as decorações, pouco frequentes, são dominadas pela 31


incisão, destacando-se os vasos com sulco abaixo do bordo. Sem qualquer datação absoluta associada, face aos elementos expostos, é de crer que o espaço temporal ob do para Vale Rodrigo 3 seja paralelizável com este momento prévio iden ficado em Hor nha 1, isto é, o 1º quartel do 4º milénio cal BC.

6. Conclusão Sí os como o Monte da Foz 1, localizado no espaço do actual concelho de Benavente, permite detectar realidades crono-culturais pra camente desconhecidas nesta região. Estas evidências arqueológicas demonstram que a presença de grupos humanos no Baixo Tejo, durante o Neolí co, é uma realidade, estando por esclarecer e caracterizar em que moldes se processaram as ocupações, as respec vas finalidades funcionais e os pos de estratégia de exploração do espaço envolvente. O conhecimento acerca do Neolí co no concelho de Benavente passará, necessariamente, pela caracterização cronológica e cultural destas primeiras comunidades produtoras de alimentos estabelecidas na região, pela definição das relações existentes entre estes grupos e os caçadores-recolectores que ao longo do Mesolí co ocuparam os territórios mais a Norte (Muge), pela percepção das trajectórias culturais das sociedades produtoras durante destas fases da Pré-História, e as conexões entre estas e a emergência do megali smo funerário. O estudo do Monte da Foz 1 corresponde ao início de uma abordagem de carácter regional, sobre um episódio primordial no desenvolvimento das An gas Sociedades Camponesas, num território tradicionalmente visto como “terra de ninguém”, após o abandono das comunidades de caçadoresrecolectores dos concheiros mesolí cos do Tejo. Desta forma, hoje são mais as problemá cas que surgem desta análise do que leituras concretas. As limitações inerentes a uma intervenção de emergência, condicionada ao espaço de afectação de uma empreitada, a ausência de uma equipa mul disciplinar que possibilite o cruzamento de toda a informação proveniente deste contexto geomorfológico em constante transformação são, juntamente, com impossibilidade de se recuperar elementos de matéria orgânica que ajudem na caracterização do subsistema económico e na obtenção de datações absolutas, obstáculos evidentes e uma certeza plena de que ainda há muito trabalho por realizar. Este estudo contribui, assim, para o aumento da base empírica de uma fase crono-cultural que, no registo arqueológico disponível, ainda não consegue encontrar respostas às múl plas questões que hoje dominam o debate cien fico. O Monte da Foz 1 está, a par r de agora, passível de ser discu do e de “par cipar” nesse mesmo debate. Lisboa, Fevereiro de 2017 32


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OLARIA ROMANA DA GARROCHEIRA, BENAVENTE

O MODELO PRIMORDIAL EM BENAVENTE

Clemen no Amaro Arqueólogo responsável pelo projecto

Cris na Gonçalves Arqueóloga co-responsável pelo projecto Câmara Municipal de Benavente

Este ar go é uma tradução do ar go «The Roman Figlina at Garrocheira (Benavente, Portugal) in the Early Empire», publicado na revista «Roman and Late An que Mediterranean Po ery, 10", edição «Lusitanian Amphorae Produc on and Distribu on» - 2016



1. Notas prévias A par r de um conjunto de materiais anfóricos e de loiça comum produzidos na olaria romana da Garrocheira propomos apresentar e caracterizar as estruturas de laboração, a sua produção, seu período de laboração e momento de encerramento. A olaria situa-se no concelho de Benavente a cerca de 1km do lugar da Garrocheira e a cerca de 1.5km a nordeste do actual percurso rio Sorraia. Foi localizada na década de 60 do século passado na sequência da remoção de terras para a construção do canal de rega de Salvaterra de Magos imediatamente a norte da olaria. Reconhecido o local em inícios dos anos 80, realizámos uma primeira campanha arqueológica em 1987, tendo-se iden ficado dois fornos. No decurso da segunda e terceira campanhas (2004 e 2010), iniciámos a escavação das entulheiras e do muro de delimitação do pá o, tendo-se concluído a escavação do interior dos fornos (Figuras 1 e 2). Inves u-se, por fim, no estudo químico compara vo de pastas no então ITN, actual Campus Tecnológico e Nuclear do Ins tuto Superior Técnico (ITN/IST). A olaria fica localizada num dos terraços que se desenvolvem ao longo da planície aluvial do vale do Tejo e seus afluentes, apresentando uma al tude média de 10m. Geologicamente, o sí o é cons tuído por um depósito de aluvião, de origem fluvial, do Quaternário, u lizado como matéria-prima na construção da olaria. O terraço fluvial onde se implanta a mesma fornece exemplares de indústria lí ca do Paleolí co, pologicamente idên ca a outros locais da região (Amaro, 1990a, p.88). Quanto à configuração do vale do Tejo, as acções antrópica e da natureza têm introduzido nos úl mos séculos profundas alterações na topografia actual do baixo Tejo e seus afluentes. No primeiro mapa de Portugal de que há conhecimento (Fernando Álvares Seco – 1561), tal como no da Província do Alentejo (Bap sta de Castro - 1762) é clara a representação do braço de rio da margem esquerda, o designado Tejo Velho, ainda navegável até Salvaterra e servindo, como tal, vários portos a par r de Pancas, como a vila de Benavente (Daveau, 1994, p. 24-31). A topografia do rio Sorraia sofre significa vas alterações nas proximidades da vila. Um dos braços do rio, que passaria junto à olaria romana, é já no século XVI referenciado por rio Velho ficando a actual várzea do Farilhão como memória de ilha fluvial, como sugere o topónimo (Amaro and Gonçalves, in print).

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Figura 1 – Vista geral da Olaria da Garrocheira em fase de escavação e desenho.

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Quanto ao contexto romano da região, no qual a olaria se integra, destacamos o sí o da necrópole da Courela das Caveiras, a cerca de 1.5km a sudeste, numa suave encosta que bordeja o an go braço de rio, e onde foi iden ficado um depósito monetário de cerca de seis centenas de numismas (Amaro, 1981, p.132). O conjunto é composto maioritariamente por AE2 ba dos entre 378 e 395. Tudo aponta para um tesouro ocultado no século V(1) (Amaro and Gonçalves, in print). De acordo com os materiais recolhidos na prospecção efectuada nos anos oitenta no local e de informações orais, tudo sugere que se pra caram os ritos de incineração e de inumação num arco cronológico, presumimos, entre o século I e V. O segundo sí o romano situa-se no Monte da Parreira, lugar da Barroca, a cerca de 3km a sudeste da olaria, agora na margem esquerda do Sorraia e corresponderá a uma villa romana (Amaro, 1981, p.132). No local do actual monte há relatos da localização de estruturas e na sua área envolvente procedemos à recolha de espólio numa mancha de dispersão com cerca de 250m. Deste, destaca-se material de construção, contentores anfóricos e loiça de uso domés co, esta enquadrável na pologia das produções da olaria da Garrocheira (Amaro and Gonçalves, in print).

2. Fornos e Estruturas de Apoio O local de implantação da olaria apresenta um desnível que foi aproveitado para a instalação dos fornos permi ndo o duplo acesso aos mesmos, através de dois níveis de circulação -. O nível superior, que é marcado pela quota média do pá o (7,30m. – porta de acesso), para além da zona de laboração, era des nado a enfornar os artefactos na câmara de cozedura, e o nível inferior - tendo como quota de referência a base da entulheira e do pilar de suporte do telheiro (4.65m) -, dava acesso à fornalha e à câmara de aquecimento (Figuras 1 e 2)(2). Os fornos apresentam semelhanças estruturais embora o forno 2 possua precisamente metade do diâmetro interno do forno 1. Pertencem ao grupo de fornos circulares com canal central e canais secundários perpendiculares e grelha sustentada por arcos paralelos entre si. As câmaras de combustão foram abertas no substrato geológico.

(1) O Doutor José Ruivo procedeu à análise e listagem das 17 moedas em depósito no Museu Municipal de Benavente, e acedeu à distribuição das moedas por imperadores elaborada por Jus no Mendes de Almeida no jornal Aurora do Ribatejo. (2) Levantamento aéreo graciosamente realizado pelo Campo de Voo de Benavente a quem agradecemos na pessoa de Luís Malheiro.

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Figura 2 - Planta geral da olaria romana da Garrocheira, Benavente

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O forno 1 tem 3.20m de diâmetro interno e cinco arcos de suspensura, construídos igualmente em jolo, e regularmente espaçados. Na suspensura central, o arco arranca a cerca de 0.80m da parede do forno. Este apresenta um lajeado em joleira que reveste o chão da câmara de combustão que se desenvolve entre a parede interna do forno até ao início do canal central. A altura máxima da câmara de combustão que subsis u é de 1.45m (Figura 3). Na zona de destruição realizada no forno nos anos sessenta do século passado, foram detectados ves gios do praefurnium, no decurso da úl ma campanha (2010), com um comprimento de cerca de 1.35m. O murete que subsis u (com 0.65m de largura) foi executado com joleiras, no lado interno, e por presumível adobe e blocos de pedra, no lado externo. O forno 2 tem 1.60m de diâmetro interno e dois arcos de suspensura, tendo subsis do, assente num deles, um canto da grelha da câmara de cocção. A parede da câmara de combustão apresenta um ressalto interno, na sua base, com cerca de 0.22m de largura. O pavimento da câmara é integralmente executado em seixo rolado, apresentando uma configuração ligeiramente côncava. Os arcos das duas suspensuras desenvolvem-se até cerca de 0.22m da parede da câmara. A altura da câmara de combustão (a par r do centro do pavimento até à zona inferior da grelha) é de 1.57m. A espessura da grelha é de 0.18m. A porta da câmara de combustão tem como medidas internas, cerca de 0.88m de altura e 0.56m de largura. Apresenta uma pequena antecâmara de planta rectangular, feita em joleira (Figura 2). O acesso às duas câmaras de combustão está aproximadamente orientado a oeste, donde sopram os ventos predominantes na região. A entrada dos dois fornos, dispostos em bateria, era coberta por um telheiro, suportado por pilares executados em joleira. O pilar iden ficado em F41 apresenta planta quadrangular, com 0.60m de lado (Figura 2). O alargamento da escavação em pleno caminho vicinal permi u-nos delimitar um muro com cerca de 8.30m de comprimento e 0.60m de largura apresentando uma abertura de 1.15m (cota máxima do muro: 7.35m). Este prolonga-se ainda no sen do sudeste (Figura 2). O embasamento do muro é executado por seixos e alteado por pedras calcárias de pequeno e médio calibre. Na área da porta e no interior do pá o iden ficámos a presença de dispersas joleiras fragmentadas, que sugere ter pertencido a um pavimento lajeado (à cota média de 7.15m). A existência de uma sala pavimentada a joleira foi registada no armazém de Abul (Mayet; Silva, 2005, p.80-81).

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Figura 4 - Entulheira diretamente sobre a cascalheira nos quadrados E/F 42 - 43, onde foi exumada a ânfora nº2

Figura 3 - Forno1 perfil de um dos arcos de suspensura, ainda com áreas de reboco.

A localização da porta, virada a nordeste, pode sugerir tratar-se do acesso à mata da Garrocheira que se desenvolvia a par r deste local, tendo aquela subsis do até ao século XIX (Amaro, 1990, p.72-74), fazendo-se o acesso ao rio pelo sen do oposto, ou seja, a sudoeste da olaria. Uma das escassas estruturas de apoio que reconhecemos no local é a presença de grandes fragmentos de paredes reves dos a opus cimen cium. Terão feito parte de um tanque de decantação desmontado pela retroescavadora nos anos 60 e amontoados na área do pá o.

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A par r das sondagens abertas em 1987 iden ficámos um despejo de cerâmicas rejeitadas associadas a cinzas e que, num primeiro momento, foram consideradas como duas entulheiras dis ntas. Trata-se, de facto, do mesmo contexto fronteiro ao acesso à fornalha de combustão dos dois fornos. Este conjunto de rejeitados e de cinzas assentam directamente sobre o depósito de aluvião (Figura 4). Registámos, na área da entulheira, a presença natural de alguns imbrices já que deveriam integrar o telheiro que protegia o acesso à fornalha.

3. Produções Do espólio exumado, predomina o fabrico da ânfora Dressel 14, sendo no entanto muito significa vo o registo de loiça comum de diversa funcionalidade (Figuras 5 a 8). Foi, entretanto, confirmada a presença da Dressel 14 tardia, ânfora bem referenciada no Sado, como Herdade do Pinheiro (Mayet and Silva, 1998, p.118-120) e Abul (Mayet and Silva, 2005, p.85-86). Os exemplares anfóricos caracterizam-se, em geral, por bordos abertos, de perfil sub-triangular ou com espessamento arredondado (perfil perolado). No entanto é notória a diversidade na execução das bocas (Figura 5). Guilherme Cardoso já anota esta diversidade de variantes de boca neste po de ânfora tanto em Muge, sí o que terá laborado até finais do século II (Cardoso, 1990, p.157-158), como em Peniche. Atribui este facto à cronologia de fabrico da peça e também ao oleiro que as executa (Cardoso, Rodrigues, Sepúlveda, 2006, p.264). As ânforas da forma Dressel 14 possuem a par cularidade de ter colo alto, a ngindo os 0.25m (nºs1 e 2), caracterís ca já anteriormente salientada (Amaro, 1990, p.91). O bojo apresenta-se cilíndrico, os pés são cónicos, embora em geral terminem em bico maioritariamente maciço e com a extremidade em forma de glande ou ligeiramente arredondada. As asas são ver cais, em fita espessa e com sulco longitudinal. Ensaiámos a recons tuição de um exemplar de Dressel 14 a par r de duas peças (exumadas no mesmo contexto e do mesmo po de pasta), perfazendo uma altura de 1.05m (Figura 9). O exemplar nº 2 integra-se na fase inicial da produção do centro oleiro (meados do século I d.C.), de lábio extrover do com espessamento exterior e colo bitroncocónico com caneluras internas. Asas em fita, ver cal, com duas ou três caneluras, à semelhança do exemplar nº 3. O exemplar nº 2 foi exumado na base da entulheira (Figura 4).

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Figura 5 - Dressel 14, Dressel 14 tardia, Almagro 51c (nº23), e afim ao po Morraçal 4 (nº21)

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Os exemplares de boca iden ficáveis com esta ânfora apresentam em média entre 13.8cm e 16.3cm de largura em contraste com as ânforas de maior porte, variando estas entre 17.4cm e 20.5cm. Existem diâmetros de bocas de Dressel 14 com valores intermédios cuja atribuição é problemá ca atendendo á dimensão dos exemplares em análise (nºs 6 e 11) (Amaro and Gonçalves, in print). O perfil dos bordos da ânfora tardia é muito diverso, tal como Carlos Tavares da Silva anotou para Abul. A cronologia atribuída à Dressel 14 tardia exumada em Abul é da primeira metade do século III (Mayet and Silva, 2005 p.85-86).

Figura 6 - Proposta de recons tuição de Dressel 14

Um bordo de ânfora se destaca dos restantes, ao apresentar lábio em aba rectangular (nº21). Temos um paralelo semelhante na produção do Morraçal da Ajuda, onde este po de ânfora é caracterizado por possuir colo curto, ombro descaído e corpo cilíndrico. É iden ficada como o po Morraçal 4 (Cardoso and Rodrigues and Sepúlveda and Ribeiro, in print). A Dressel 14 tardia é uma ânfora mais pequena e de paredes com menor espessura (nºs 5, 8, 9, 15).

É provável que a Garrocheira tenha iniciado a produção da Almagro 51c na sua fase final de laboração, embora esta forma esteja representada até ao momento apenas por um bordo, exumado em 2010 (nº23). Alguns fundos anelares baixos recolhidos na entulheira da olaria (nº47) sugerem uma atribuição à Almagro 51c, na sua variante A, presente em Abul (Mayet and Silva, 2005, p.86-87) e Pinheiro (Mayet and Silva, 1998, p.120-121) e igualmente no Porto dos Cacos, com a designação de afim da Dressel 30 (Lusitana 3), fabrico ainda do século II ou até primeira metade do século III. A sua produção está ausente na fase tardia do Porto dos Cacos (Raposo; Duarte, 1996, p.254-255). Do conjunto exumado, destacamos, por fim, um fragmento de bordo atribuível a uma boca da ânfora po Almagro 50 (nº25), produzida em finais do século II/1ª fase do século III.

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Temos recolhido com frequência um diversificado conjunto de grafitos inscritos exclusivamente sobre os dois pos de pés da ânfora Dressel 14. Existem exemplares de letras e de marcas anepígrafas (Figura 8). O significa vo conjunto de grafitos da Garrocheira (como os de Muge, Porto dos Cacos e Abul) poderá corresponder à organização laboral, bem como à contabilidade do trabalho desenvolvido por cada um dos oleiros (Mayet; Silva, 2005, p.84). Guilherme Cardoso propõe mesmo a situação laboral de migrações cíclicas de oleiros pelas diversas olarias da região, em que a aplicação do grafito é a marca que personaliza o seu trabalho, feito, presume-se, à tarefa (Cardoso, 1990, p.157). A produção de loiça comum na olaria é muito significa va, realidade de igual forma registada noutros centros oleiros do vale do Tejo e Sado, como no Algarve, como é o exemplo da olaria de Manta Rota (Viegas, 2006, p.184-186). A maioria da cerâmica comum recolhida integra-se nas categorias funcionais de uso culinário e de serviço de mesa e recipientes de líquidos encontrando-se bem representados os pratos e gelas, panelas e tachos, e usos complementares, como potes e po nhos (Figuras 6 e 7). Os pratos (nº24) apresentam a parede muito evasada, levemente arqueada e o bordo arredondado, correspondendo ao po I-A-2 de S. Cucufate (Pinto, 2003, p.166-167). De entre as gelas, destaque para o exemplar de perfil pra camente completo, com parede duplamente arqueada e pé anelar (nº 41). Inês Vaz Pinto refere que se trata de uma imitação da forma Dragendorff 27 em terra sigillata, com cronologia de 15 a 20 d.C. com um período áureo de Cláudio até ao século II e integrável no po III-A-3 (Pinto, 2003, p.230-231). Da razoável variedade formal de panelas, um dos pos a destacar apresenta bordo oblíquo alongado, anguloso e voltado para fora, com pança ovóide e asas (peça nº 32). Corresponde ao po VIII-B-3-a que surge no horizonte 2 de S. Cucufate e vai até ao abandono da villa III (Pinto, 2003, p.355-358). A peça nº 27 é integrável no mesmo po da anterior, embora aqui o bordo seja arredondado. A peça nº 33 é integrável no po VIII-B-9, ou seja, uma panela de perfil em S, voltado para fora, bojo ovóide e asas ver cais (Pinto, 2003, p.374). Alguns exemplares exumados integram-se no po de panelas de bordo dobrado sobre o ombro, de pança geralmente piriforme, sem asas (nºs 36 e 38). Tipo de panelas profusamente representadas em S. Cucufate, e muito difundidas no sul do país – e com fabrico registado em Muge (Cardoso, Rodrigues, 1996 p.176) –, incluem-se na forma VIII-A-2 (Pinto, 2003, p.340-342).

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Figura 7 – Cerâmica comum domés ca e Almagro 50 (nº25)

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Figura 8 – Cerâmica comum domés ca, trempe (nº 42) e fundo de presumível Lusitana 3 (nº 47)

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Figura 9 – Bicos fundeiros.

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Outros exemplares de panelas (nºs 37 e 39), estão de igual forma bem referenciadas em olarias do Sado e Tejo, – são exemplos os nº 30 do Zambujalinho (Fernandes, Carvalho, 1996, p.105), e nº7 de Muge (Cardoso, Rodrigues, 1996, p.176). Surgem com frequência em locais de consumo e na necrópole de Valdoca (Aljustrel) (Alarcão; Alarcão, 1966). São, no entanto, integráveis na designação adoptada por Inês Vaz Pinto, na sua pologia das formas, de tachos de bordo dobrado sobre o ombro. Os dois exemplares apresentam bordo horizontal, pança, no geral, esférica ou ovóide, sem asas, do po VII-A-1 (Pinto, 2003, p.316-320). A este conjunto de panelas farão parte, no geral, os fundos rasos ou levemente côncavos exumados no mesmo contexto (nºs 43 a 46). O conjunto de po nhos está razoavelmente representado embora se encontrem muito fragmentados. São integráveis na categoria de po nhos os exemplares nºs 29, 30, 31 e 40. O exemplar nº 40 integra-se nos po nhos de bordo voltado para o exterior, de colo alto e bordo simples, do po X-A-1-B (Pinto, 2003, p.397-411). A peça referenciada com o nº 26 pode ser inserida na pologia dos cântaros com bordo horizontal espessado. A peça nº 28 é passível de ser integrada nesta categoria. As tampas estão igualmente presentes por um conjunto de fragmentos (nºs 34 e 35), onde se destaca um exemplar de bordo levemente espessado, de parede recta e aberta, integráveis no po XIV-A-1 (Pinto, 2003, p.463-466). O acervo recolhido na entulheira inclui uma maior diversidade de artefactos, embora ainda representados por escassas peças, como são os exemplos de pesos de tear, testos e trempes (nº 42).

4. Caracterização das pastas cerâmicas A análise macroscópica da amostra de fragmentos da ânfora Dressel 14 produzida na Garrocheira caracteriza as pastas entre a coloração vermelha alaranjada 2.5 YR 6/8 e pastas com o núcleo acastanhado mais intenso 2.5 YR 5/6 e menos intenso 2.5 YR 5/8 (MUNSELL: 1992). Quanto aos elementos não plás cos, predominam os grãos de quartzo, aos quais se associam, mais raramente, grãos de feldspato. Os grãos são de diâmetro médio, em geral inferiores a 0.5mm. Foi observável ainda, numerosos pequenos núcleos de óxidos ferrosos, de coloração sanguínea a castanho-escura (Coelho, A. V.; Cardoso, J. L., 1990, p.269).

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A constante presença de grãos de quartzo e de feldspato em todas as amostras de ânforas Dressel 14 produzidas no vale do Tejo inviabiliza qualquer diferenciação quanto ao local de fabrico. No entanto a presença de núcleos ferrosos foram registados apenas nas amostras da Garrocheira e do Porto dos Cacos. Apesar de terem sido diferenciados, macroscopicamente, cinco fabricos de ânforas lusitanas representadas na Alcáçova de Santarém, onde o fabrico 1A apresenta pastas de cor dentro dos padrões observados na olaria da Garrocheira, o estudo compara vo dos elementos não plás cos e químicos é ainda insuficiente para se avançar com uma interpretação consistente quanto ao local de fabrico, apesar de ser suges va a proximidade formal das bocas nºs 37, 44 e 48 com as formas produzidas na olaria (Arruda, Viegas, Bargão, 2006, p.243-245). Com o objec vo de aprofundar o rigor na caracterização dos elementos químicos e minerais que cons tuem as pastas cerâmicas presentes na Garrocheira, foram subme dos a uma primeira caracterização química um lote final de 23 amostras da ânfora Dressel 14 realizadas no então Ins tuto Tecnológico e Nuclear (ITN). Na sequência do estudo desenvolvido a um conjunto de amostras de argilas recolhidas em quatro locais previamente seleccionados, as inves gadoras Isabel Prudêncio e Isabel Dias iden ficaram o sí o do Furão como um dos locais de extracção de barro usado na olaria. O local fica a cerca de 500m a noroeste do centro oleiro, junto a um caminho vicinal e à cota máxima de 10m., altura que caracteriza os terraços fluviais neste troço de rio. Como resultado do estudo preliminar efectuado pelas duas técnicas do ITN/IST quanto à caracterização por ac vação com neutrões das 23 amostras – tendo como complemento os dados arqueológicos disponibilizados pelas duas primeiras campanhas arqueológicas –, foi apresentado um poster ao “8th European Mee ng on Ancient Ceramics” que decorreu na cidade de Lyon entre 26 e 29 de Outubro de 2005(3). Uma análise, ainda que preliminar, ao estudo químico compara vo entre a produção da olaria da Garrocheira e as cerâmicas produzidas em outros centros oleiros romanos dos vales do Tejo (Quinta do Rouxinol e Porto dos Cacos) e do Sado, (Herdade do Pinheiro), destacam-se alguns elementos químicos tais como: maior presença de sódio (Na), crómio (Cr) e cobalto (Co); menor presença ou elementos raros (3) Isabel Prudêncio, Isabel Dias, Clemen no Amaro e Cris na Gonçalves. O poster in tulado “The roman ceramic produc on center of Garrocheira (Tagus basin, Portugal): a first chemical characteriza on”, foi apresentado pelas duas primeiras signatárias.

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de tantálio (Ta) e tório (Th) e ainda mais raros de rúbio (Rb) e césio (Cs). No espectro de caracterização química dos quatro centros oleiros, a Garrocheira apresenta maior proximidade ao Porto dos Cacos.

5.Notas Finais No decurso das três campanhas não surgiram até ao momento materiais associados ao quo diano da olaria (como cerâmicas finas e numismas) que nos permita, desde já, propor uma cronologia mais fina para o período de laboração dos fornos. Por esse facto demos uma certa enfase ao acervo de loiça, passível de uma atribuição cronológica. Confirma-se, assim, uma laboração do período Alto Imperial e que terá decorrido a par r de meados do século I d.C. até, pelo menos, finais do século II d.C. ou, com maior probabilidade, primeira metade do século III, atendendo, basicamente, à produção da Dressel 14 tardia, à presumível produção da afim à Dressel 30 (Lusitana 3), referenciada no Sado por Almagro 51c, variante A, e, por fim, do fabrico de loiça cerâmica integrável em contextos do sul do país predominantemente do século III. Quanto às pastas, quer das ânforas como da cerâmica comum, não há alterações significa vas ao longo da fase produ va, ou seja, grão fino e médio com elementos não plás cos, onde predomina o quartzo. Quanto ao lábio das ânforas, con nua a destacar-se os de perfil sub – triangular e perolado. A suspensão da laboração da olaria sugere algum paralelo com Abul A, com uma cronologia no Alto Império até às primeiras décadas do século III, onde o úl mo forno é abandonado pouco depois do aparecimento das primeiras variantes da ânfora Almagro 51c. A produção final da olaria estará associada às grandes transformações ocorridas nos centros oleiros, como nas unidades de preparados de pescado, do extremo ocidental da península ibérica na passagem do século II para o III, em resultado de factores de mudança ainda pouco claros mas que se pode ter em consideração presumíveis alterações nas condições de pesca e dos circuitos comerciais (Fabião, 2008, p.735-736). Tudo leva a aceitar-se que a par r de meados do século III os fornos mais distantes dos centros de envase dos preparados piscícolas estejam já encerrados, como provável maximização e concentração de meios e encurtamento de distâncias, dando-se um novo impulso aos fornos localizados no estuário do Tejo, ou com acesso directo ao mesmo, como o caso do Porto dos Cacos, que permanece em plena ac vidade. O encerramento que se regista na Garrocheira igualmente se verifica em Muge.

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A EVOLUÇÃO TERRITORIAL DO RIBATEJO DO SÉCULO XVIII AO ESTADO NOVO Território(s) e Iden dade(s) em torno de um Topónimo António Pedro Manique Mestre em História dos Séculos XIX e XX. Professor Coordenador (aposentado) do Ins tuto Politécnico de Santarém (ESE). Inves gador e autor de diversos trabalhos sobre História da Administração Pública.



Uma abordagem cien fica da evolução do Ribatejo depara-se imediatamente com um paradoxo que importa esclarecer com profundidade: a contradição entre a vida efémera das realidades territoriais e jurídico-administra vas assim designadas e a longa e persistente permanência, na memória cole va, de uma “en dade” imaterial, uma representação simbólica de índole sociocultural - O Ribatejo -, com a qual se iden ficam comunidades concelhias diversificadas e rela vamente distantes no espaço. Esta contradição carece de explicações fundamentadas em inves gações sistemá cas que afastem especulações e emoções mais ou menos saudosistas, sobretudo quando elas tendem a considerar algum po de iden dade “única”, da qual fosse inteiramente banida a diversidade própria de qualquer comunidade humana. O obje vo deste texto é explicar a evolução territorial dos espaços administra vos aos quais, ao longo dos tempos, se aplicou o topónimo Ribatejo, sem prejuízo da abordagem breve de alguns aspetos de ordem sociocultural que influenciaram a definição dos mesmos, par cularmente no século XX. O concelho do Ribatejo, documentado desde o século XIII e situado em torno do estuário do Tejo, na sua margem esquerda, parece respeitar a e mologia da palavra (Riba: do la m ripa/ripae, significa margem de um rio, litoral, à beira de), ou seja, um território na margem do rio Tejo. Esse concelho, que António Ma as Coelho designou por Ribatejo primordial(1), não ultrapassou o século XIV, dividindo-se e dando lugar a outros que, todavia, con nuaram a referenciá-lo nas suas designações: é o caso de Aldeia Galega do Ribatejo (Mon jo, desde 1930) e Moita do Ribatejo. No século XVI, Cristóvão Falcão, numa das suas mais conhecidas obras poé cas, estendia a zona ribatejana ainda mais para sul, situando nela a própria Serra da Arrábida: “Ante Sintra, a mui prezada/e serra de Ribatejo/que Arrábeda é chamada/perto donde o rio Tejo/se mete n'água salgada/houve um pastor e pastora/que com tanto amor se amaram/como males lhe causaram/este bem, que nunca fora/pois foi o que não cuidarom”(2). Bastante mais tarde, o topónimo Ribatejo viria a migrar para outras paragens, vindo a ser de novo u lizado para designar circunscrições administra vas, agora mais alargadas. Com efeito, a nomeação de

(1) Ver António Ma as Coelho, Ribatejo, Região Migrante, in mediotejo.net, 16-04-2016. Disponível em: h p://www.mediotejo.net/ribatejo-regiao-migrante-por-antonio-ma as-coelho/ (2) Cristóvão Falcão, Crisfal (excerto), 1543-1546.

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Ribatejo viria a ser aplicada a comarcas e províncias, designando sempre territórios supraconcelhios, de acordo com a seguinte cronologia:

1792 Foi o Alvará de 7 de Janeiro de 1792 que criou a Comarca do Ribatejo, circunscrição administra va e judicial pica do An go Regime. Este Alvará regulamentou a Lei de 19 de Julho de 1790, que procedeu à abolição das jurisdições senhoriais e transformou as ouvidorias em comarcas. A Comarca do Ribatejo então criada e situada na província da Estremadura era formada pelos an gos concelhos de Vila Franca, Alhandra, Alverca, Castanheira, Povos, Arruda dos Vinhos e Cheleiros(3). Era já uma circunscrição supraconcelhia, embora parte dos referidos concelhos viessem posteriormente a tornar-se freguesias de Vila Franca de Xira. Esta Comarca do Ribatejo perdurou, sem interrupções, até 1832-1833, datas da publicação da primeira reforma administra va liberal, de Mouzinho da Silveira, e do Mapa territorial que a complementa. Está documentada em diversas publicações oficias, designadamente de 1811, 1820 e 1826(4). O Decreto nº 65, de 28 de Junho de 1833, deu corpo às divisões administra vas previstas por Mouzinho da Silveira, criando 40 comarcas dis ntas das anteriores. No Mapa anexo a este decreto não consta já a Comarca do Ribatejo, que deixa de ter existência legal. Com exceção de Cheleiros, todos os restantes territórios foram, por este decreto, integrados na nova Comarca de Alenquer. E a Comarca de Santarém, definida pelo mesmo decreto, con nha já muitos dos concelhos que viriam a integrar o distrito com o mesmo nome.

1827/1828 Entretanto, o nome Ribatejo con nuou a ser considerado como possível designação de uma circunscrição administra va mais ampla. No projeto de divisão do território discu do pela Câmara dos Deputados em 1827/1828, considerava-se a existência de 17 comarcas, uma das quais a Comarca do Ribatejo, que se estendia por um território bem mais amplo, muito próximo do que viria a ser o futuro

(3) Ver: António Pedro Manique, A Evolução Territorial do Concelho de Vila Franca de Xira, de fins do An go Regime a 1926, Separata do Bole m Cultural da Câmara M. de V. F. Xira, nº 3, 1987/1988. (4) Ver: Mappa Alfabe co das Povoações de Portugal que tem Juiz de Primeira Instância, Lisboa, Impressão Régia, 1811; Mappa Geral anexo às Instruções de 31 de Outubro de 1820, para a eleição de deputados; Mappa anexo às Instruções de 7 de Agosto de 1826, para a eleição de deputados às Cortes Gerais.

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distrito de Santarém(5). Esta proposta legisla va não chegou a ser aprovada, mantendo-se a pequena Comarca do Ribatejo atrás descrita. E foi este projeto de divisão territorial que serviu de base à criação dos distritos em 1835. O Decreto de 18 de Julho de 1835 estabeleceu os 17 distritos que chegaram ao século XX(6), entre os quais o de Santarém e o de Lisboa, ambos integrantes da an ga província da Estremadura, que se manteve. Mas os concelhos que compunham a an ga comarca do Ribatejo passaram para o distrito de Lisboa. Após a ex nção de 1833, em termos administra vos não voltou a falar-se de Ribatejo em todo o século XIX, mantendo-se as an gas províncias como grandes regiões, mas sem cons tuírem circunscrições administra vas dotadas de poderes e magistrados próprios. Mesmo os projetos de reforma administra va que propunham divisões distritais mais amplas, como a de 1867, apresentada por Mártens Ferrão, não contemplavam o Ribatejo em qualquer das designações sugeridas. Durante a Primeira República discu u-se muito a reintrodução da província como circunscrição administra va, mas também nenhum dos projetos em debate contemplava a designação de Ribatejo(7). No entanto, em meados do século XIX o topónimo Ribatejo era já u lizado para designar a região de Santarém, mostrando que a referida “en dade” estava bem viva nas representações cole vas. Com efeito, a Junta Geral do Distrito de Santarém, na Consulta referente ao ano de 1856, queixava-se da “ruína dos campos do Ribatejo”, resultante do estado deplorável do rio, o que fazia com que o “lavrador do Ribatejo” sofresse com os males da agricultura daí resultantes(8). Ou seja, o Ribatejo voltara a migrar, agora mais para norte, para quase se confundir com o distrito de Santarém. O topónimo é u lizado também ao nível do associa vismo e do coopera vismo agrícola, ins tuindo-se em Santarém, nos fins do século XIX, a Liga Regionalista do Ribatejo (ou Liga Regional Ribatejana), uma das primeiras associações do “regionalismo interno”(9), o que faz do Ribatejo um palco precoce de reivindicações deste po. Foi esta Liga que, em 1893, realizou uma exposição de produtos regionais, con nuando a afirmar a existência de um Ribatejo, do qual não se conheciam bem os limites territoriais,

(5) Ver: José António Santos, Regionalização, Processo Histórico, Lisboa, Livros Horizonte, 1985, pp. 68-69. (6) O Distrito de Setúbal foi criado apenas em 1926. (7) José António Santos, ob. cit., pp. 115-124. (8) Consulta da Junta Geral do Distrito de Santarém, ano de 1856. In Consultas das Juntas Gerais dos Distritos Administra vos do Reino e Ilhas

Adjacentes (Anos de 1855 e 1856), Lisboa, Imprensa Nacional, 1857, pp. 163-167. (9) Ver: Fernando Catroga, “Geografia e Polí ca. A querela da divisão provincial na I República e no Estado Novo”. In Fonseca, Fernando Taveira

(coord.), O Poder Local em Tempo de Globalização, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2005, pp. 171-242.

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mas que se situava já em pleno distrito de Santarém. Muito longe, portanto, dos anteriores espaços designados por Ribatejo. Também em 1908 se criou a Adega Social do Ribatejo, com sede em Alpiarça, atestando a mesma existência. Em contraste com este precoce regionalismo interno, o “regionalismo externo” ribatejano nasceu tardiamente, com a criação da Casa do Ribatejo, em Lisboa, apenas em 1937, enquanto a Casa das Beiras, por exemplo, teve as suas origens em 1911(10).

Século XX É no início do século XX que o debate sobre regionalismo, em boa parte importado de países como Espanha e França, põe em confronto “distritalistas” e “provincialistas”(11), ou seja, os defensores da manutenção da divisão distrital e os que defendem a necessidade de regresso à velha província como circunscrição mais ampla, por eles considerada mais adequada ao desenvolvimento económico do país e mais respeitadora da tradição portuguesa, até porque permi ria uma maior autonomia dos municípios, asfixiados pela centralização imposta através da organização distrital. É o movimento regionalista, bastante a vo durante a Primeira República, que permite verificar a força da referida “en dade” denominada Ribatejo. Com efeito, entre os vários congressos regionais então realizados, encontra-se o Congresso Ribatejano, reunido em Santarém em 1923 e cujos conteúdos vale a pena analisar, por cons tuírem um bom indicador das aspirações ribatejanas e da organização das forças sociais da região com o fim de as concre zarem. O I Congresso Ribatejano realizou-se em Santarém, de 18 a 21 de Maio de 1923, na Sala da Junta Distrital e foi obra de uma comissão organizadora presidida por Pedro Monteiro, também presidente da Câmara Municipal de Santarém. O Diário de No cias, que nha criado uma “Secção Regionalista”(12), apoiou e deu grande destaque ao Congresso, tendo publicado várias teses por ele aprovadas. Também o Correio da Extremadura, dirigido por João Arruda, deu cobertura ao Congresso, considerando que nele “vão finalmente dizer de sua jus ça as forças vivas da região, estudando e expondo ni damente as suas necessidades, cuja sa sfação reclamarão energicamente”(13).

(10) Maria João Figueiredo Forte, As Casas Regionais em Lisboa. A Casa das Beiras. Regionalidade e Associa vismo Urbano. Lisboa, UNL, 1996 (polic.), p.54. (11) Fernando Catroga, Idem. (12) Idem, p. 182. (13) Correio da Extremadura, Santarém, nº 1668, 21-04-1923.

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Para o presidente da comissão organizadora do Congresso, o aproveitamento do Tejo e a linha férrea Santarém-Peniche eram “as duas mais importantes aspirações da região”(14), mas as várias teses aprovadas abordavam temá cas diversificas, designadamente: Limites da Região do Ribatejo (Silva Teles)(15); A Terra Ribatejana. Clima e costumes. Mercados e feiras. Touros, campinos e touradas. Cantos e danças (Correia da Costa)(16); As touradas na Região Ribatejana (Mota Cabral); Museus Regionais (Diogo Oleiro)(17); O aproveitamento do Tejo para viação entre Santarém e Lisboa (Vice-almirante Augusto Neuparth)(18); Indústria Regionais; Ensino Primário. Ou seja, para além das questões de ordem económica, a cultura e as tradições mereceram também especial atenção dos congressistas. Além da afirmação dos interesses da região, o Congresso Ribatejano teve também um pendor fortemente polí co, tendo contado com a presença de dois ministros do governo presidido por António Maria da Silva: o Ministro do Comércio, que presidiu à sessão da tarde do dia 21; e o Ministro da Agricultura, que presidiu à sessão de encerramento e que prometeu atender “as aspirações da região rela vas aos vinhos ribatejanos”(19). O Congresso proclamou o Presidente da República (António José de Almeida) seu presidente honorário, e como vice-presidentes honorários foram aclamados o presidente do Ministério e os ministros do Comércio, da Agricultura, da Instrução e do Trabalho(20). Em suma, o poder polí co em peso a apadrinhar o Congresso, tal como aconteceu com os restantes congressos regionais e provinciais realizados pela mesma altura, dado que eles correspondiam aos ideais descentralizadores da República. As “aspirações” do Congresso foram sinte zadas pelo Correio da Extremadura em vinte pontos(21), dos quais destacaremos a navegabilidade do Tejo, a construção de uma linha férrea entre Santarém e o Oceano, a construção de um cais acostável no Barreiro, a construção de uma ponte entre Vila Franca e o Cabo, diversas medidas de apoio à agricultura, com destaque para o azeite e o vinho (interessante a reivindicação da criação do po de vinho “Lisbowine” para designar os vinhos licorosos do centro e sul do país), reparação de estradas, descentralização do ensino primário, permissão de touradas com touros de morte. Destacam-se, portanto, as preocupações relacionadas com a produção e o escoamento dos (14) Diário de No cias, nº 20593, 18-05-1923. (15) Publicada no D. N., nº 20590, 15-05-1923. (16) D. N., nº 20588, 13-05-1923. (17) Correio da Extremadura, nº 1672, 19-05-1923. (18) D. N., nº 20589, 14-05-1923. (19) D. N., nº 20597, 22-05-1923. (20) Correio da Extremadura, idem. (21) Idem, nº 1673, 26-05-1923.

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produtos da região, tendo-se discu do muito a ligação ferroviária ao litoral, que não mereceu consenso quanto ao seu traçado. De facto, certos interesses par culares defendiam que a ligação AlenquerPeniche devia par r de Vila Franca de Xira (Palha Blanco), enquanto o presidente do Congresso entendia que não havia mo vos para isso e que a ligação devia fazer-se a par r do Carregado(22). Interessante também é a ideia de construir um cais comercial no Barreiro, mostrando que o Ribatejo con nuava a contar com a zona do “Ribatejo primordial” para desenvolver a sua economia. Se o Congresso não foi “uma lauta parada das forças de toda a região”, não deixou de traduzir “um belo indício da vitalidade ribatejana em prol das suas jus ssimas reivindicações”(23), tendo tomado “importantes resoluções” para o seu desenvolvimento. E a unanimidade em torno de certos interesses não impediu a diversidade de opiniões, afirmada não apenas na questão da via férrea, mas também a propósito de temas mais “culturais”, como aconteceu com a reivindicação de touros de morte, cuja tese foi aprovada sem discussão mas provocou uma manifestação de protesto no exterior do Congresso(24). A preocupação de envolver toda a região no debate dos problemas comuns ficou patente na aprovação de um segundo congresso, que seria inaugurado em Abrantes, teria sessões ordinárias em Santarém, e seria encerrado em Vila Franca de Xira. Mas as condições polí cas viriam a alterar-se e seria necessário esperar por 1947 para se assis r a outro congresso ribatejano, num contexto polí co e social inteiramente diferente do anterior. No Congresso foi ainda acordada a realização de “uma importan ssima parada agrícola”(25), a realizar em Santarém em Junho ou Julho e a organizar pela Liga do Ribatejo. A feira-exposição viria a ter lugar de 29 a 31 de Julho, na Escola Agrícola, tendo o concurso “dos principais ramos da a vidade regional” e cons tuindo “um grande passo para a marcha do regionalismo no Ribatejo”(26). Inaugurada pelo Ministro da Agricultura, esta “Grande Exposição do Ribatejo” representou “uma clara demonstração dos nossos recursos e uma forte afirmação da admirável a vidade das populações ribatejanas”(27), tenho o Ribatejo dado “um magnífico exemplo que terá como consequência um melhor desenvolvimento dos seus valores”(28).

(22) D. N., nº 20593, 18-05-1923. (23) Correio da Extremadura, nº 1673, 26-05-1923. (24) D. N., nº 20597, 22-05-1923. (25) Idem, nº 20598, 23-05-1923. (26) Idem, nº 20643, 08-07-1923. (27) Idem, nº 20664, 29-07-1923. (28) Idem, nº 20667, 01-08-1923.

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Se nos alongamos na descrição do Congresso Ribatejano é porque a sua realização e resultados permitem compreender melhor a afirmação de Amorim Girão de que o Ribatejo “é uma daquelas frações do território português onde podemos surpreender a formação duma consciência regional mais visivelmente caracterizada”(29), argumento que o leva a recuperar o topónimo na sua proposta de regionalização do país. Foi no Congresso que se discu u e aprovou, pela primeira, uma demarcação da região ribatejana. Numa tese aprovada sem discussão logo na primeira sessão, Silva Teles propôs que a região, considerada em termos geográficos, se situasse entre “os enrugamentos secundários da península de Lisboa, os relevos terminais do Sistema Central Divisório, os peneplanos do Alentejo e a zona plana de transição para a bacia do Sado”(30). Embora baseada apenas nos aspetos sicos e naturais, esta demarcação tende a abranger ainda os territórios da margem sul onde nascera o topónimo Ribatejo. Mas é a Amorim Girão que se deve a construção geográfica que viria a dar origem à província do Ribatejo. Preocupado com um ordenamento regional do território que correspondesse às necessidades de desenvolvimento económico do país mas que fosse, simultaneamente, a base da divisão administra va, Amorim Girão, conceituado geógrafo e professor da Universidade de Coimbra, foi fortemente influenciado pela escola geográfica francesa, liderada por Vidal de La Blache, Lucien Gallois e Jean Brunhes, abundantemente citados na sua obra. Importando conceitos e experiências pra cadas em França, Amorim Girão apresenta, em 1930, o seu Esboço duma Carta Regional de Portugal, obra reeditada em 1933(31), onde expõe as suas ideias e propõe uma divisão assente na região-província, retomando e adaptando as denominações tradicionais das províncias portuguesas. Contestando as anteriores divisões geográficas, des nadas à demarcação de regiões económicas e assentes apenas em critérios de ordem sica e natural (geológicos, hidrográficos, climatéricos), Amorim Girão considera que uma boa divisão regional não pode deixar de ter em conta o fator humano, propondo um conceito de região geográfica que designe “toda a fração territorial em que o homem intervém como elemento integrante da paisagem e agente modificador da super cie”(32). Assim, uma

(29) Aris des de Amorim Girão, Esboço duma Carta Regional de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933, pp. 104-105. (30) Ver nota 14. (31) Aris des de Amorim Girão, ob. cit. (32) Idem, ob. cit., p. 23.

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região deve corresponder a “uma unidade e a uma diversidade, como um verdadeiro organismo em função. Cada região, diretamente subordinada à influência diretriz duma cidade que desempenha o papel de capital regional, deverá abranger todos os territórios e todas as populações que se definem por traços bem dis ntos, que têm as mesmas caracterís cas, as mesmas necessidades, os mesmos interesses e geralmente também - o que muito importa – um nome popular cole vo consagrado na tradição”(33). Trata-se, portanto, de conciliar a “geografia humana” com a tradição histórica na divisão regional do país. Divisão que obedecerá a três conceitos básicos: homogeneidade (de caracterís cas geográficas); extensão (abrangência de territórios e populações com os mesmos traços); e nodalidade (existência de um centro nodal que polarize as diversas correntes económicas, ou seja, a capital regional). Com base nestes critérios, Amorim Girão apresenta uma proposta de divisão do país em treze regiões, a saber: Minho, Trás-os-Montes, Alto Douro, Baixo Douro, Beira Litoral, Beira Alta, Beira Transmontana, Beira Baixa, Ribatejo, Estremadura, Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve. Rela vamente à região do Ribatejo, Amorim Girão não só recupera o topónimo tradicional, como a considera “inteiramente diversa das regiões com que se põe em contacto”, sendo “uma das mais interessantes unidades regionais portuguesas, talvez de feição mista – estremenha e alentejana – mas acima de tudo região inconfundível no conjunto do nosso país”(34). Considera ainda que no Ribatejo se pode observar uma forte consciência regional, como atrás se disse. E quais são, para Amorim Girão, os limites da região ribatejana? Depois de várias considerações sobre as possibilidades de demarcação da região, o autor não tem dúvidas que o centro nodal é a cidade de Santarém e que é possível considerar duas sub-regiões: Ribatejo do Norte, na margem direita do Tejo, e Ribatejo do Sul, predominantemente na margem esquerda, mas sem um alinhamento total com o curso do rio. Assim, ao Ribatejo do Norte pertenceriam os concelhos de Constância, Vila Nova da Barquinha, Torres Novas, Alcanena, Golegã, Chamusca, Alpiarça, Almeirim, Santarém, Cartaxo e Rio Maior; e ao Ribatejo do Sul os concelhos de Azambuja, Vila Franca de Xira, Salvaterra de Magos, Benavente e Coruche. Considera ainda poder incluir-se no Ribatejo pelo menos uma freguesia do concelho de Ponte de Sor.

(33) Idem, pp. 24-25. Itálicos no original. (34) Idem, pp. 103-104.

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Embora considere a Carta Orográfica e Regional de Barros Gomes (1875) “a mais perfeita de todas as que possuímos”(35), Amorim Girão afasta-se dela, mas inclui no Ribatejo as Baixas do Sorraia, que Barros Gomes nha caracterizado como uma sub-região do Alentejo. Como se verifica, a proposta de Amorim Girão não coincide inteiramente com o distrito de Santarém e exclui todos os concelhos do estuário do Tejo, o que jus fica pela aplicação do conceito de nodalidade. É que, considera o autor, os concelhos de Alcochete, Aldeia Galega do Ribatejo (Mon jo) e Moita nham perdido boa parte das suas caracterís cas ribatejanas, em virtude da influência crescente de Lisboa, para a qual convergiriam os seus interesses económicos. Apesar de considerar que nestes concelhos “tornase necessário dis nguir uma zona ribatejana de outra que o não é”(36), acaba por excluí-los da região do Ribatejo.

1930-1936 O novo regime saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926 discu u, em termos polí cos, a questão da província como circunscrição autárquica, com ou sem a manutenção dos tradicionais distritos. Sublinhese que Amorim Girão aderiu ao Salazarismo, que elogiou, e par cipou nessa discussão, começando por assumir uma posição inteiramente crí ca da divisão distrital, para mais tarde moderar a sua opinião e admi r a coexistência dos dois níveis, embora com predominância da província em termos de competências administra vas. O processo de reformulação autárquica do novo regime iniciou-se em 1930, com a nomeação de uma comissão(37) incumbida de preparar um projeto de divisão territorial, criando a província “homogénea com afinidades já existentes ou previsíveis”. Composta por Mendes Correia, Francisco Pereira de Sousa, Jaime Lopes Dias e Amorim Girão, a comissão entregaria o seu Relatório em Janeiro de 1931, tendo adotado, pra camente sem discussão, o Esboço de Amorim Girão que, com pequenos retoques, sustentava a proposta de divisão do Con nente em 11 Províncias. Mas a comissão sublinhava que “suprimir os distritos, que são, afinal, à parte os municípios, a nossa mais duradoura divisão administra va, seria ferir os hábitos, os costumes, a comodidade dos povos, e ofender, a par dos interesses, a sua dignidade”(38). Estava, assim, consignada a tese da coexistência de províncias e distritos, o que virá a acontecer. (35) Girão, ob. cit., p. XIII. (36) Idem, p. 107. (37) Portaria do Ministério do Interior, de 17 de Outubro de 1930. (38) José António santos, ob. cit., p. 126.

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A Cons tuição de 1933 consagrou a divisão administra va do território con nental em “concelhos, que se formam de freguesias e se agrupam em distritos e províncias”(39), e foi no cumprimento deste preceito que o Código Administra vo do Estado Novo (1936), elaborado por Marcelo Caetano, criou 11 províncias, entre as quais a Província do Ribatejo, com capital em Santarém, e autonomizada da Estremadura. A Província do Ribatejo consagrada pelo Estado Novo em 1936 não coincidia inteiramente com a demarcação de Amorim Girão, o mesmo acontecendo rela vamente aos limites do distrito de Santarém. Vejamos as diferenças. Região do Ribatejo – Amorim Girão (concelhos)

Alcanena Almeirim Alpiarça Benavente Cartaxo Chamusca Constância Coruche Golegã Rio Maior Salvaterra de Magos Santarém

Torres Novas Vila Nova da Barquinha Azambuja Vila Franca de Xira Ponte de Sor

(39) Ar go 124º.

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Província do Ribatejo – Código Administrativo de 1936 (concelhos) Abrantes Alcanena Almeirim Alpiarça Benavente Cartaxo Chamusca Constância Coruche Ferreira do Zêzere Golegã Rio Maior Salvaterra de Magos Santarém Sardoal Tomar Torres Novas Vila Nova da Barquinha Azambuja Vila Franca de Xira Ponte de Sor

Repare-se que, em relação ao distrito de Santarém, a Província do Ribatejo excluí Mação, que passa para a Beira Baixa, e Vila Nova de Ourém, que incluí na Beira Litoral. Recorde-se que o Entroncamento será concelho apenas em 1945. Por outro lado, incluí dois concelhos do distrito de Lisboa e um do distrito de Portalegre.


1936-1959 A existência da província como circunscrição administra va e com competências que se sobrepunham ao distrito nunca foi pacífica no seio do Estado Novo. A sua criação inscrevera-se na ideia de desenvolvimento de um país rural, tão cara a Salazar, e as suas áreas de intervenção iam da economia à cultura, relacionando-se também com a “polí ca do espírito”, que pretendia valorizar o tradicionalismo dos costumes e inculcar a ideologia do regime. A tese “provincialista”, muito cara ao Integralismo Lusitano, nha merecido, logo em 1926, a crí ca de Marcelo Caetano, que defendera não ser fundamental o debate entre distritalistas e provincialistas, entendendo que a verdadeira solução do problema da divisão administra va passaria pelo reforço do municipalismo, mas sem sacrificar o Distrito(40). Caetano viria, no entanto, a aceitar a Província, considerando mais tarde que a divisão de 1936 “foi obra de geógrafos competentes e está jus ficada no estudo do Prof. Amorim Girão”(41). Logo no ano seguinte à sua criação surgiram propostas tendentes à abolição das províncias, gerando uma discussão que con nuaria por mais de 20 anos. O deputado à Assembleia Nacional Querubim do Vale Guimarães apresentou mesmo um projeto de lei (15 de Dezembro de 1937) para uma emenda cons tucional que abolisse a Província, dado que ela “não tem tradições históricas no nosso país como circunscrição administra va”, enquanto que o Distrito “tem uma tradição de mais de cem anos na vida administra va do país”(42). O projeto não teve acolhimento e a esta argumentação responderia Amorim Girão que “a província não tem tradições administra vas em Portugal, nem para ser boa divisão administra va precisa de tê-las”, sublinhando que “a maior parte dos que se pronunciam contra a divisão provincial ou regional não se preocupam talvez com saber se ela corresponde a uma necessidade. Viram apenas, muito por alto, se favorecia ou não a sua terra e de harmonia com essa preocupação estreita de campanário formaram o seu juízo”(43). Trata-se de um debate marcadamente ideológico que prosseguirá, mas a verdade é que o funcionamento dos órgãos provinciais (Conselho Provincial e Junta de Província) não provocou os efeitos desejados, em parte devido à sua subjugação à vontade do poder central e à restrita autonomia financeira de que dispunham. Por outro lado, o Governo tendeu a valorizar os seus agentes diretos no

(40) Catroga, ob. cit., p. 212. (41) Idem, p. 211. (42) José António santos, ob. cit., p. 135. (43) Idem, p. 136.

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território (governadores civis, no distrito), e a dar menos atenção aos órgãos provinciais eleitos(44), o que conduziu ao definhamento da Província. A revisão cons tucional de 1959 estabeleceu que “sem prejuízo da designação regional 'província', o território do Con nente divide-se em concelhos, que se formam de freguesias e se agrupam em distritos”(45). Assim, a província deixou de ser considerada circunscrição administra va, voltando o distrito a ser a divisão territorial mais ampla. Desta forma, entre 1959 e 1974, as províncias man veramse como “regiões” simbólicas, mas sem personalidade jurídica.

Em conclusão O Ribatejo, enquanto circunscrição administra va foi, ao longos dos tempos, uma realidade migrante e sempre com vida efémera, enquanto a representação simbólica do Ribatejo como en dade agregadora de culturas e criadora de iden dade(s) regional/regionais parece ter penetrado mais fundo na consciência cole va de certas comunidades, a ponto de jus ficar o debate atualmente em curso sobre a necessidade de manter a unidade ribatejana. Não deixa de parecer estranho que um topónimo aplicado a territórios tão diferentes e com vidas temporalmente tão curtas (cerca de um século o Ribatejo primordial, cerca de 40 anos a comarca e 23 anos a província) tenha marcado tão profundamente as populações e criado laços iden tários tão fortes como os que ainda hoje se observam.

E, afinal, subsiste a pergunta: o que é o Ribatejo?

(44) Catroga, ob. cit., p. 226. (45) Ar go 125º do texto cons tucional chegado a 1974.

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ESTE NOME RIBATEJO

Antรณnio Ma as Coelho Historiador



É a única região portuguesa que não tem mar nem fronteira com Espanha. Nenhuma como ela se situa, portanto, tão adentro do país. Terra baixa e larga, muito fácil de percorrer, sempre foi mais sí o de passagem do que lugar de permanência. Daí a diversidade de elementos que cons tuem a sua cultura, fruto de múl plas influências que aqui foram chegando e o tempo caldeou. Leva no nome o Tejo que a percorre de ponta a ponta e lhe dá vida e sen do. É terra de águas por perto e de uma complexa relação com elas. Mas não se esgota na imagem da lezíria, dos campinos, dos cavalos e dos toiros a que às vezes a pretendem reduzir. Tem outros mundos em si e mais vastos horizontes. Ribatejo lhe chamamos, lindo nome lhe puseram.

Portugal fez-se de Norte para Sul. Começou por ser o Condado Portucalense, do Minho até ao Douro ou ao Mondego, e depois foi crescendo na direcção da moirama, com avanços e recuos. Fixou a linha do Tejo, uma posição estratégica, tomando uma série de castelos erguidos ao longo dele: Belver, Abrantes, Ozêzar (na foz do Zêzere), Almourol, Cardiga, Torres Novas, Santarém, Lisboa. E depois estendeu-se mais para sul, para lá do grande rio, para as terras de Além-Tejo, até conquistar o distante reino dos Algarves. É curiosa a designação que o país fixou para a imensa parte do território da sua metade sul, das proximidades do Tejo até à serra algarvia, e que, embora de forma contraída, con nuamos a usar: Alentejo, além do Tejo, como se fosse um acrescento e não uma parte integrante. Por analogia, às terras chegadas ao rio, entre as Beiras e Além-Tejo, se chamou terras de Riba, outro jeito de dizer margem, e Ribatejo ficou. Não há em Portugal região mais fácil de atravessar. Basta olhar para um mapa e ver que os grandes eixos de comunicação, com início em Lisboa, sempre passaram por aqui: de barco, antes de mais, Tejo arriba; de diligência também, tomando a estrada real, por Santarém e Tomar, a caminho de Coimbra, tendo na Golegã, se ver fundamento a história que se conta da origem do seu nome, um local de passagem e de descanso, onde se mudava de montada na estalagem que uma galega fundou; de comboio, pela linha do Norte que nos passa ao pé da porta; de automóvel, mais recentemente, pela autoestrada que corre tão perto de nós... Por ser fácil de percorrer e dispor de terras férteis, sempre o Ribatejo foi um local de convergência de gente de muitos lados, aqui vinda porque a vida é di cil e por cá a Natureza se mostra mais generosa. Só deste úl mo século, sem ter que ir mais atrás, ficaram diversos nomes de gente que aqui chegou, à procura de pão para a boca e que depois ia embora, embora às vezes ficasse: gaibéus, caramelos, barrões, ra nhos, serranos, bimbos, avieiros... Essa gente trouxe consigo, para além da precisão, gostos, costumes, can gas, danças, sabores, tradições, maneiras de estar na vida. E o Ribatejo é herdeiro de tudo isso. 73


Tem-se discu do muito o que é, afinal, o Ribatejo, tanto em termos culturais, etnográficos e folclóricos como no que respeita à própria delimitação do seu espaço geográfico. As enciclopédias dizem que é quase todo o distrito de Santarém (todos os concelhos, exceto os de Mação e Ourém), mais o da Ponte de Sor (do distrito de Portalegre) e os da Azambuja e Vila Franca (que pertencem a Lisboa). A estes 22 concelhos juntamos nós, e muitos outros connosco, Alcochete, o Mon jo, a Moita – a Moita do Ribatejo – e o Barreiro que dependem de Setúbal mas são tão ribatejanos como nós. É, pois, uma área imensa, dispersa por quatro distritos, densamente povoada ao longo do Tejo, em especial na parte mais a jusante, e quase um deserto humano quando se deixa a lezíria e viramos rumo ao sul. Parecendo não ter a personalidade vincada de outras regiões do país, como Trás-os-Montes ou o Algarve, encontrou na diversidade e na complementaridade das partes que a cons tuem a sua força e a sua razão de ser. Há umas décadas atrás, nos tempos do Estado Novo, a propaganda oficial criou, divulgou e impôs uma imagem do Ribatejo que, ainda agora, con nua a ser muito forte: lezíria, campinos, cavalos e toiros, realçando símbolos, como o barrete verde ou o colete encarnado, e manifestações, como o fandango ou a pega de caras, que se assumiram como emblemas do Ribatejo. O Ribatejo é tudo isto, e disto deve orgulhar-se, porque também por isto se iden fica, se dis ngue e se afirma. Mas é mais do que isto, muito mais. Basta olhar outra vez para o mapa para comprovar que assim é: o campo, as terras da Borda d'Água, de que aqueles valores são próprios, é apenas uma parte, e uma parte pequena, das terras do Ribatejo. Há depois as outras duas desta trilogia de que é feita a região que é a nossa: o bairro e a charneca. Bairro é a zona ondulada, a norte, salpicada de povoações e coberta, outrora mais do que hoje, de vinhedos e olivais – uma paisagem tão caracterís ca dos concelhos de Santarém e de Torres Novas, por exemplo, e em parte também do da Golegã, antes do milho vir tomar conta de tudo. E a charneca, terra pedregosa e pobre, caminho do Alentejo, entrecortada de ribeiras onde a vida ainda mexe, que os arroteadores desbravaram, a poder de charrueco ou apenas de enxadão, ao longo de quase um século, e o eucalipto conquistou em menos de trinta anos... Essa área imensa, do Rossio à Ponte de Sor, todo o interior dos concelhos da Chamusca, de Coruche, de Salvaterra, de Benavente e do Mon jo, entre outros, é terra ribatejana, distante e nem sempre lembrada, mas parte da mesma realidade plural e complexa que é a nossa região. Terra ampla e aberta, muito permeável às influências externas, no coração do país, nem norte nem sul, nem litoral nem interior, campo fér l, bairro an go, charneca imensa, a meio lhe corre o Tejo, espinha dorsal, veia cava, estrada líquida, cheias que matam e que criam, traço de união, essência da nossa vida e razão deste nome – Ribatejo. Texto publicado originalmente no jornal digital mediotejo.net em 01.04.2016

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AS FESTAS DO ESPÍRITO SANTO ANTERIORES AO MODELO IMPÉRIO O MODELO PRIMORDIAL EM BENAVENTE Aurélio Lopes Antropólogo



Das três pessoas da San ssima Trindade, o Espírito Santo cons tui, inegavelmente, a de mais problemá ca representação e definição conceptual. Na verdade, a própria noção de trinitarismo (de uma una divindade tripla ou tripla divindade una) é, ela mesma, de hermé ca compreensão, dando origem a interpretações vistas muitas vezes como heré cas, com as quais a Igreja tem man do, através dos tempos, relações assaz di ceis. E se o Espírito tem sido na filosofia predominantemente dualista ocidental encarado como oposição à matéria, o Espírito Santo, entendido como a Terceira Pessoa da San ssima Trindade, tem assumido porém, outras interpretações. Gilbert Durand apresenta o Paráclito como “o intercessor da III Aliança; como a efusão concreta e perpétua, aqui em baixo, da divindade(1).” Neste sen do o Espírito Santo seria assim algo de sensível, suscep vel de ser coerentemente representado por línguas de fogo, como se verifica nos “actos dos apóstolos” ou pela pomba como o associa, frequentemente, a iconografia cristã. Dis nto do espiritualismo etéreo, an tese da matéria, ele surge na verdade mais como o “consolador”, o “interceptor” ou o “defensor” que Cristo promete aos discípulos antes deles se separar, anunciando assim uma perene coexistência entre os Homens e o Espírito Santo: “… será enviado um outro consolador (allos parácletos) que ficará com os homens até ao fim dos tempos(2).”

A Idade do Espírito Santo Deste modo se configura uma visão escatológica tripar da das idades do mundo que culminaria com o reinado da “gra a” já perce vel em Santo Agos nho e que irá progressivamente adquirindo princípios doutrinários de que o Abade calabrés Joaquim de Fiore (que em 1195 escreve “Exposi o in Apocalypsum”) irá cons tuir a principal referência. Assim, à Idade do Pai, centrada em Jerusalém e aberta pelo papel desempenhado por Moisés, sucederase a Idade do Filho que decorrera sob o signo de Roma. O esgotamento anunciado deste segundo período marcava, portanto, o início da terceira idade; a Idade do Espírito Santo, “era da confraternização universal(3)”. A filosofia escatológica e universalista de Fiore acabará por (já no século XIII), se poli zar, “quando o recrudescimento das profecias sibilinas e o retomar das tradições milenaristas alimentaram a contestação feita à igreja de Roma(4)”.

(1) Gilbert Durand, Iconographie et Symbolique du St. Esprit, citado por Maria Fernanda Enes, A Piedade Popular e as Festas do Espírito Santo em São Miguel, Cultura; Revista de História e Teoria das Ideias, Centro de História da Cultura, Vol. IX, Lisboa, 1997, p. 354. (2) Ibidem (3) Luís Manuel Gonçalves, Fes vidades Religiosas do Concelho do Sardoal, Sardoal, Câmara Municipal, 2000, p. 135. (4) Luís António Santos Nunes Mata, Ser, Ter e Poder: O Hospital do Espirito Santo de Santarém nos Finais da Idade Média, Santarém, Magno Edições e Câmara Municipal, 2001, p. 30.

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E se a contra-reforma irá, mais tarde, abalar tais conceções, as mesmas hão-de contudo persis r nas inves gações filosóficas de pensadores portugueses modernos e contemporâneos, “confundido com o que, genericamente, denominavam de sebas anismo(5).” Para Joaquim Gandra, que se tem debruçado especialmente sobre a simbólica cultual do Espírito Santo, esta representava, de alguma forma, “a instauração do reino do céu na terra, de acordo com o espírito do evangelho: glória a Deus no céu e paz na terra aos homens de boa vontade.” E, adianta, “o advento dessa era ou idade gloriosa, profe zava-se para breve e prome a-se para depois da derrota do an -cristo(6)” António Quadros(7), por seu turno, liga-a ao mis cismo do “Quinto império” que define como “projecto áureo português sobre os homens e nos homens. Assim se assumindo a própria monarquia nacional como fundadora e garante de um império de Deus.” Em França, tais ideias irão dar origem, ainda na época carolíngia (séculos VIII e IX), a diversas confrarias ditas do Espírito Santo, que Pierre Duparc estudou e que, segundo este inves gador, cons tuíam “… essencialmente comunidades de habitantes caracterizadas pela vivência comunitária à volta da refeição comum do dia de pentecostes.” Já nessa altura “toda a comunidade (…) par cipava através de esmolas recolhidas pelos (…) priores {confrades}. O produto {em géneros} era guardado num celeiro próprio (o celeiro do Espírito Santo) e a par lha {realizada} na sala do Espírito Santo”. Revela ainda que na “na véspera da festa procedia-se, fes va e ritualmente, à cozedura do pão (no forno do espírito santo), à matança dos animais(8) e à preparação do banquete.” Finalmente, “no dia de pentecostes (…) a população, em cortejo processional, por entre cantos e músicas, aproximava-se da casa de banquete onde se servia a sopa do espírito santo(9).” O envolvimento comunitário na recolha de dádivas e na par lha de uma refeição conjunta, a ritualização da matança dos animais e da cozedura de pão, para lá de uma sopa específica e denominada, precisamente, “do Espírito Santo”, apresentam analogias sintomá cas com as festas açorianas tal como ainda hoje se realizam, o que sugere uma linha de con nuidade de uma matriz cultual existente já na

(5) “Falta porém demonstrar {segundo Manuel Joaquim Gandra}, que a Idade do Espírito Santo e o Quinto Império são, no coração daqueles que anseiam com um misto de saudade e esperança pela sua concre zação, dois modos de aludir, em épocas diferentes, à mesma realidade profe zada (…) por Joaquim de Fiore”, in Manuel Joaquim Gandra, O Culto do Espírito Santo in A Descoberta de Portugal, Porto, Selecções do Reader's Digest, 1982. (6) Manuel Joaquim Gandra, citado por Fernando Ferreira Coisas simples da terra tomarense: o rio, os açudes e as rodas; algumas achegas etnográficas, vol. I e II, Santarém, Junta Distrital, 1976, p. 26. (7) António Quadros citado por José Augusto França, Cidades e Vilas de Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p.104. (8) Aliás, entre os judeus, o Pentecostes cons tuiu uma festa na qual para além de ser obrigatória a “abstenção de trabalhos servis, se ofereciam a Deus dois pães fermentados feitos com farinha das primícias e se imolavam diversas ví mas”, entenda-se diversos animais. (9) Maria Fernanda Enes, op. cit., p. 358.

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Baixa Idade Média e que nas Ilhas terá encontrado condições ideais de preservação. Aliás, também com o Con nente, embora de forma menos perce vel face à decadência das mesmas, se verificam profundas semelhanças. De facto, chega-nos memória da existência destes cultos não só da França, mas igualmente da Suíça, Alemanha e Espanha embora, ao que se sabe, apenas no nosso país os mesmos tenham adquirido a peculiar configuração do, assim denominado, Império do Espírito Santo. Dúvida que tem subsis do, entretanto, reside na razão que terá levado à configuração tripar da fortemente hierarquizada (própria dos impérios de trezentos), com um “imperador” acolitado por dois “reis”, num país em que este tulo honorífico possui escasso significado histórico-cultural. É visível que tal hierarquização dificilmente se explicará em absoluto como símbolo estrito da San ssima Trindade(10), ou como paradigma das já referidas “idades do mundo”. Até que ponto outras simbologias, arcanas ou não, possam ter contribuído para tal? Leite de Vasconcelos apresenta-nos uma hipótese histórica que apesar de parecer não ter despertado grande interesse aos estudiosos da simbólica espiri sta (quem sabe se não seduzidos pelas singularidades das explicações arcanas) merece pelo menos ser aqui referida. Segundo ele, “fomes apertadas nos estados alemães determinaram um dos imperadores da dinas a de Otão {fins do século X e inícios de século XI} a lançar os fundamentos duma ins tuição, como banco de esmolas para acudir aos pobres em anos de penúria. Da divindade que invocavam e do imperante que tomara a inicia va decorrerão os festejos religiosos que a confraria imperial votara ao culto do Espírito Santo nesta quadra do ano, devoção e costume que de lá se propagavam pelos estados da Europa cristã(11)”. Eis assim, à falta de outra mais fundamentada, uma hipótese plausível que poderá explicar eventualmente origens simbólicas de um modelo paradigmá co que a lenda parece fazer nascer quase que por geração espontânea; leia-se pela simples inspiração da Rainha Santa Isabel! Todavia na sua temporalidade primeva (de que Benavente dá testemunho inequívoco), a inicia va reduzia-se entre nós apenas ao dia do Pentecostes (correspondente à comemoração da descida do Espírito Santo entre os apóstolos após a ressurreição), e a festa, como veremos adiante, à realização neste dia e correspondente preparação na véspera.

(10) É um facto que as chamadas “trindades ver cais” que se popularizaram entre nós nos séculos XV e XVI apresentam uma natureza hierárquica. Contudo nas representações anteriores tal como acontece com a denominadas “trindades tricéfalas”, tal não é ainda visível. (11) José Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, Vol. VIII, Organização de M. Viegas Guerreiro, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989, p. 336 e 337. Ficará contudo a dúvida porque apenas no nosso país se terão perpetuado estes contornos de simbologia imperialista. De assinalar também, como já abordamos, a existência de diversas facetas que consideramos normalmente específicas das fes vidades espiri stas em festas realizadas por confrarias medievas de outras invocações cuja origem remonta, pelo menos, a inícios de trezentos. Não só os bodos aí surgem, como igualmente “imperadores” e “coroações” diversos, o que abre, com certeza, todo um mundo de novas possibilidades.

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Seja como for, em Portugal, tais cultos irão merecer par cular destaque. Para lá da inequívoca proteção real de que os mesmos irão beneficiar, diversos autores consideram que o projeto das descobertas consubstanciou no pensamento português a assunção de um papel nacional privilegiado na criação de condições para a grande “era da confraternização universal” em que todos os povos do mundo, sob a bandeira de Cristo, se reuniriam em solidariedade perpétua. Espalhando pelos quatro cantos do mundo essas expecta vas, os portugueses ter-se-iam, assim, transformado como que em arautos de uma nova era, de uma nova dimensão existencial. Temá ca recorrente na filosofia portuguesa contemporânea desde Agos nho da Silva a António Quadros ou Breda Simões, esta cons tui na expressão de João Leal “um domínio que mais que uma racionalidade intrínseca, possuiria sobretudo uma série de virtualidades largamente imaginárias para o discurso de questões relacionadas com a obsessão da cultura portuguesa pela iden dade nacional(12).” Assim se compreende que Cortesão afirme: “Não se afigura excessivo (…) crer que a cerimónia de coroação do imperador tenha significado aos olhos de muitos portugueses e quando menos daqueles, frades ou leigos iniciados na doutrina dos espirituais, a inves dura simbólica da nação pelo Espírito Santo; espécie de pentecostes nacional na missão de propagar a fé pelo mundo(13)”. Num contexto social e polí co poderá, finalmente, afirmar-se, como Maria Fernanda Enes, que através dos cultos do Espírito Santo “se afirma a presença do espírito, do Paráclito, no seio do mundo, nomeadamente do laico contraposto ao eclesiás co(14).” E essa apropriação laica dos cerimoniais espiri stas irá condicionar de forma marcante as relações com a Igreja, numa dicotomia de interesses nem sempre isenta, como iremos ver, de conflitualidades explícitas e implícitas.

Raízes e persistências Poucos são os dados conhecidos respeitantes à existência de festas consagradas ao Espírito Santo anteriores à implementação do modelo alenquerense que é suposto ter sido uma criação da “rainha santa” em fins do século XIII ou, mais precisamente, em 1295. Tanto quanto é possível saber hoje, estas fes vidades constavam simplesmente, até aí, de cortejos processionais mais ou menos faustosos, nos quais uma confraria procedia à distribuição de alimentos, num bodo (ou “convite” como se dizia em Benavente) aos pobres e desprotegidos. Bodo, esse, decorrente, total ou predominantemente, da contribuição de diversos confrades.

(12) João Leal, as Festas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Cultural, D. Quixote, Lisboa, 1994, p.17. (13) Jaime Cortesão, Obras Completas: A Expansão dos Portugueses no Periodo Henriquino, Lisboa, Livros Horizonte, 1965, p. 264 (14) Maria Fernanda Enes, op. cit., p. 355.

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Na verdade, as primeiras confrarias do Espírito Santo de que há no cia surgem invariavelmente associadas a albergarias e hospitais da mesma invocação que mais tarde se hão-de transformar em hospitais da Misericórdia(15). O conhecimento da existência de uma confraria em Santarém, administradora de um Hospital do Espírito Santo e alvo de uma doação em 1269, pouco deixa porém perceber da funcionalidade da mesma, nesses tempos. À falta de outros dados relevantes, é assim Benavente que nos surge como referência/padrão, suscep vel de nos fornecer informações algo pormenorizadas, e permi r algum vislumbre das configurações que reves riam tais fes vidades em meados do século XIII. Embora algo diáfana, a tese que apresenta os franciscanos (nomeadamente a sua fação dita dos “espirituais”), como responsável pela introdução do culto no nosso país, surge-nos das brumas da história como par cularmente sustentável. Aliás, dificilmente poderíamos desligar em absoluto este fenómeno das novas formas de pensamento religioso (geradoras, inclusive, de confrontos de dogmas) que a Europa medieval de duzentos viu emergir; projetando-se em a tudes piedosas e assistenciais que as ordens mendicantes irão, necessariamente, veicular. Alguns autores, como Cortesão, argumentam até que a sua rápida divulgação apenas poderia ter por detrás uma estrutura religiosa dessa natureza(16). Estabelecem uma relação causal entre a doutrina e prá ca religiosa dos franciscanos e a introdução do culto no nosso país, fundamentando-se naquilo a que aquele chama “a sintonia deste culto como a espiritualidade franciscana de tendência naturalista e civilista(17)”.

(15) Aliás as próprias confrarias hão-de igualmente muitas vezes sem subs tuídas (a par r de meados de quinhentos) por confrarias da Misericórdia. (16) A tese franciscana vem à luz em 1931 por intermédio de Cortesão na “História de Portugal” dirigida por Damião Peres. Depois, em 1956, é publicado por este historiador, na Seara Nova, o ar go “A Sen do da Cultura Portuguesa no Século XIV”, em que é explicitada a tese do Espírito Santo. Retoma e complementa a fundamentação dois ou três anos depois na II parte do I Volume de “Os Descobrimentos Portugueses”, no capítulo 3º, com o tulo “Franciscismo e Laicismo em Portugal”. Para lá desta tese, hoje perfeitamente plausível, alguns estudiosos têm sugerido ainda um papel mais ou menos significa vo neste processo de propagação por parte dos Templários, embora sem negar os dados que apontam para uma importância determinante dos frades de São Francisco. É o que se verifica com Luís António Nunes Mata, Ernesto Jana ou Carlos Veloso. Jana, por exemplo, analisando as regras da ordem templária encontra aí implícitas ligações mís cas ao Espírito Santo, o iluminador: “que ilumina o caminho dos fiéis, que alumia a inteligência e a vontade componentes da alma”; in O Cartaz e o Bilhete Postal como Veículos de Divulgação da Festa dos Tabuleiros, op. cit., pp. 283 e 284. Já Nunes Mata estabelece conexões espiri stas com a Ordem do Templo, reconhecendo-as na fes vidade naban na e encarando as raízes templárias desta como um dado adquirido; Ser, Ter e Poder, op. cit., pp. 30 a 33 (17) Jaime Cortesão, Obras Completas, I Volume, Factores Democrá cos na Formação de Portugal, Livros Horizonte, Lisboa, 1974, p. 267.

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Ora se é verdade que a pobreza militante franciscana parece antagónica da faustosidade do culto alenquerense não é menos verdade que as indicações anteriores ao modelo “império do Espírito Santo” remetem essencialmente para uma distribuição cerimonial de esmolas (o bodo) muito longe da ostentação que o século XIV acarretará. De facto, se as ordens mendicantes são portadoras de uma espiritualidade enquadradora de diversificadas prá cas devocionais, são especialmente os franciscanos que desde finais do século XII fomentarão “novas formas de piedade (…) que rapidamente serão inculturadas pelas massas populares, principalmente em fins da Idade Média(18).” E se o papel mendicante dos franciscanos é igualmente inegável em Benavente(19), os mesmos surgemnos noutros locais ligados frequentemente, embora não organicamente, a estas fes vidades. É o que se verifica em Eiras/Coimbra em que o Convento de Celas, igualmente franciscano, tem desempenhado papel determinante no desenrolar da fes vidade ou, ainda, em Alenquer em que a mesma, segundo a tradição, foi fundada no convento franciscano local(20), enquanto da Igreja de São Francisco saía a ponta do rolo de cera com que a procissão havia de envolver a vila num cordão mís co de fogo sagrado. Em San ago do Cacém sabe-se que a Igreja do Espírito Santo, basilar nos rituais fes vos espiri stas, pertencia aos Irmãos Terceiros de São Francisco. Em Gouveia, era no largo da Igreja igualmente dos franciscanos que a memória oral guarda lembrança da realização das fes vidades do Divino. Nos Açores sabe-se que o povoamento se fez essencialmente “sob a acção cris anizadora dos franciscanos”.

As confrarias medievais Parece contudo, claro, que as confrarias do Espírito Santo se enquadravam num contexto mais vasto de múl plas e diversificadas irmandades medievas com as quais par lharam durante muito tempo, muitos dos seus caracteres mais ou menos paradigmá cos.

(18) Vítor Gomes Teixeira, Algumas Devoções Populares Medievas e suas Raízes Franciscanas, op. cit., p. 249. (19) Aliás em Benavente chegou até aos nossos dias a tradicional “Procissão dos Terceiros”, prova de uma intensa e con nuada ação dos

franciscanos nesta vila do Ribatejo aos quais se sabe ter pertencido a an ga ermida de San ago, a Igreja de San ago construída no século XVII e ainda o convento de Jenicó, fundado em 1542. Tal procissão manteve-se até 1909, tendo a par r daí desaparecido mas vindo a ser rea vada entre os anos quarenta e sessenta e finalmente em 1984: in Vários, Festas Religiosas em Benavente: Nossa Sra. da Paz/Procissão dos Terceiros, Círculo de Estudos, Santarém, 1997. (20) Conforme reconhecem os cronistas seiscen stas da Rainha Santa Isabel, Frei Manoel da Esperança, D. Rodrigo da Cunha ou Frei Francisco Brandão.

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De facto, face à degradação social e ao aumento da pobreza verificado nos séculos XII e XIII, surgem no nosso país todo um conjunto de ins tuições de finalidade assistencial e carácter essencialmente laico: as confrarias. A sua ação solidária e carita va estava especialmente vocacionada para o apoio aos seus membros (confrades) principalmente em caso de morte, doença e situações crí cas da vida. Ligadas a uma divindade específica de invocação que servia de patrono, estas organizações medievais veram no nosso país uma importância determinante na assistência social na Alta Idade Média. Algumas possuíam claros contornos corpora vos ou classistas agregando pessoas do mesmo mister ou grupo social. Ângela Beirante refere, entre outras, a Confraria dos Cavaleiros do Sabugal, dos Ovelheiros de Viana, dos “Homens-bons” de Beja, dos Lavradores de Torres Novas, dos Bacharéis de Coimbra, etc,... Em alturas determinadas do ano, quase sempre no dia do patrono realizavam, as mesmas, refeições comunitárias, alargadas ou não aos pobres, que denominavam “bodos” ou “jantares.” “Os banquetes designados por mesas, jantares e bodos, eram anuais e nham lugar na mesma data do cabido geral ou noutra data estabelecida {entenda-se pré-estabelecida} Os alimentos neles consumidos eram o pão, o vinho e a carne (...) iguarias compradas quer à custa da confraria quer dos confrades(21).” Aliás, prova da existência usual destes bodos (e inicia vas afins) ainda em fins do século XV são, por exemplo, as Ordenações Manuelinas de que o documento seguinte é parte integrante e que proíbe terminantemente os bodos, com exceção, precisamente, dos bodos do Espírito Santo: “que não façam vodos de comer e beber posto que fora das igrejas sejão e que dizem que fazem por devoçam d´alguns santos(22)”. É mais uma vez o esforço de contenção face aos excessos que as fes vidades populares sempre ocasionaram. Por isso os bodos em honra dos santos (oportunidade para exaltações e desregramentos) são aqui interditados ameaçando-se “de que todo o que pera tal vodo se receber, se pagar em dobro de cadea por aquelles que asi pedirem e receberem não tolhando porém os vodos do Santo Espirito que se fazem na festa do pentecostes porque somente concedem que estes se façam e outros nenhuns nom(23).” Porém, mesmo os bodos próprios das festas do Espírito Santo e de uma maneira geral toda a componente lúdica destas fes vidades trinitárias, virão mais tarde a sofrer fortes restrições e proibições, tanto eclesiás cas como seculares.

(21) Ângela Beirante, Confrarias Medievais Portuguesas, edição do autor, Lisboa, Abril de 1990, p. 33. (22) Ordenações Manuelinas, liv. V, tulo 33, 6. Documento datado de 1497. (23) Ângela Beirante, Confrarias Medievais Portuguesas p. 43 e, ainda, Santarém Medieval, edição da Universidade Nova, Lisboa, Faculdade de

Ciências Humanas, Abril de 1980, p. 134.

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Seja como for, Ângela Beirante defende que, não só, a realização de bodos pelas mais diversas confrarias era frequente (em honra dos diversos patronos) mas que era ainda comum a realização de “impérios”, inclusive, nalguns casos, com coroação do respec vo imperador como acontecia na Confraria de Santo André em Montemor-o-Novo, cujo compromisso, que remonta a 1316, refere a dado passo: “prijmeyro domimguo damte samta marija d'aguosto pera fazer emperador.” Podemos também ver que, em Santarém, na Confraria de São Ildefonso datada de 1370, o elemento de consagração do direito a organizar a respec va festa era nessa altura uma coroa(24). “E por que a corocha sooe d'amdar em pregan a quem mais da da aquelle da por sua vespera too asy aos clérigos como confrades e a todos. E se sse acomtecer que ninguem nam tome a corocha o mordomo fara a feesta aa custa do dicto ospitall(25)”. Um pouco mais tarde, e respeitante a Évora, surge-nos igualmente uma referência quatrocen sta acerca do costume de nessa época “os çapateiros trazerem o seu emperador em cortejo(26).” É assim claro que, nestas ins tuições, as festas realizadas no início do século XIV incluem símbolos que considerávamos próprios (quiçá exclusivos) das festas do Espírito Santo e que nestas se irão, aliás, perpetuar e tornar conhecidos. Uma questão interessante consis ria em perceber se estas simbologias (a coroa, o “imperador”, o cetro, etc..) exis am já durante o século XIII, antes da criação dos impérios de Alenquer ou de Sintra, eventualmente adstritos a confrarias de diversas invocações. Corresponderia isso a ques onar até que ponto a criação supostamente isabelina em Alenquer cons tuiu a fundação de um modelo cerimonial em absoluto, em termos parciais ou, até, uma refundação! Porém, isso é algo que os dados atuais não nos permitem, para já, perceber. Apenas se sabe que a primeira confraria do Espírito Santo conhecida, a de Benavente, não incluía tais símbolos nos seus primeiros tempos mas apenas, tanto quanto é possível saber, bodos e cortejos cerimoniais.

(24) Ângela Beirante, Confrarias Medievais Portuguesas pp. 43 a 44. Aliás encontramos este fenómeno u litário da coroa como correspondendo, curiosamente, a uma refuncionalidade que este po de símbolos adquirem, muitas vezes, com o declínio das festas do Espírito Santo. Quando desaparecem as valências consagratórias da simbólica entronização, a coroa mantêm-se algumas vezes, como elemento residual que é entregue àquele que, eleito ou não, fica encarregado de organizar a próxima solenidade. Tal como acontece com as “bandeiras”, ou as “bonecas” que, um pouco por todo o país, em outras festas populares, desempenham papel idên co. (25) De salientar que não se fala aqui na u lização entronizatória das coroas (o que só acontece na descrição de 1623) e muito menos em coroação. Quer isto dizer que não se u lizava tal simbologia real ou apenas que se tratava de costumes que pela sua vulgaridade não mereceriam destaque? Fica a dúvida! (26) Gabriel Pereira, Documentos Históricos da cidade de Évora, II, p. 159.

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Permitem, contudo, conceber um âmbito de divulgação mais vasto do que se suponha do modelo “império” nas diversas festas que as não menos diversas confrarias realizavam entre nós na época medieval, mesmo que não seja visível uma grandiosidade de realização análoga à que encontramos em Alenquer, e que irá depois impregnar, um pouco por todo o país, os impérios do Espírito Santo. Permitem ainda concluir, de forma defini va, que a fórmula paradigmá ca do “império” (pelo menos nos seus caracteres simbólicos mais significa vos) não foi, como se poderia pensar numa primeira análise, exclusiva das festas do Espírito Santo mas chegou, inclusive (por mime smo ou paralelismo), a configurar outro po de fes vidades consagradas a santos diversos. Referiremos apenas, à guisa de exemplo, as festas de São João na Amieira que, pelo menos nos séculos XV e XVI, possuíam uma configuração que envolvia um “imperador”, “oficiais”, “meirinhos” e outros personagens, nesse tempo comuns aos impérios do Espírito Santo(27). Também no “julgado de Lagomel”, ainda no século XVI se realizava em Janeiro, “no dia de São Sebas ão, (…) hum ajuntamento e vodo em onra do dito santo(28)”.

Confraria e Festa do Espírito Santo em Benavente Mas fiquemo-nos agora pelas fes vidades espiri stas e u lizemos os dados que se conhecem da festa benaven na de forma a tentar perceber as etapas evolu vas de um processo/padrão que, mais ou menos literalmente, mais ou menos precocemente, atravessou nas diversas fes vidades pentecostais formas semelhantes de crescimento, apogeu e declínio. Que a Confraria do Divino Espírito Santo de Benavente (que teve origem nas primeiras décadas do século XIII, provavelmente em 1232), é a mais an ga conhecida entre nós, cons tui fundamentado elemento de referência histórica num mar de dúvidas e incongruências, eventualidades e idealizações, que impregnam grande parte dos dados disponíveis, muitos deles lendários, respeitantes aos primeiros tempos destas ins tuições. Que desde a origem a sua ação é dirigida para a assistência social, sobretudo a hospitalização de enfermos pobres, a sepultura de pobres defuntos, a ajuda aos confrades em necessidade, doença ou morte e ainda, explicitamente, “dar aos pobres um convite em cada ano, à custa dos confrades” parece, igualmente, indubitável.

(27) Carta de D. Afonso V, confirmada por D. Manuel, reconhecendo, à semelhança das festas do Espírito Santo de Marvão, Portalegre, Nisa, etc.… diversos privilégios aos rapazes da Amieira no que concerne, aí, às Festas de São João. Aliás, a mesma cons tui um modelo pra camente igual aos que eram nessa época, des nados às Festas do Divino, confirmando normalmente privilégios aos respec vos organizadores; in Chancelaria de D. Manuel. Livro 11, folha 67 citado por Pedro d'Azevedo, As Festas dos Imperadores, Revista Lusitana, Vol. IV, pp. 140 a 142. (28) Luís Chaves, Revista Lusitana, Vol. XXXVII, 1939, op. cit., p.51

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De facto, o seu compromisso, explicita claramente a obrigação de dar “pasto aos pobres (...) segundo aquele evangelho que diz: ouve fome e deste-me de comer, ouve sede e deste-me de beber(29)”. E o mesmo, mais adiante, pormenoriza a natureza e precisa temporalmente o dito convite: ”...nós sobreditos, desejando de cumprir estas coisas, ins tuimos das próprias fazendas, em o ano uma vez, um convite aos pobres em Cristo por dia do espírito santo, o qual Cristo é apascentado em os pobres, aos quaes todos os confrades cautelosamente terão e a nenhum ofenderão e com diligência e ves duras farpadas e bem aparelhadas (...) os clérigos com sobrepelizes e os leigos com as ves duras farpadas devem de discorrer pelas igrejas, cantando com pandeiros e campãs bem soantes (...) e distribuindo aquelas esmolas aqueles dias e com muito prazer e alegria porque, em verdade, o tal dadôr ama Deus(30)”. Segundo Álvaro D'Azevedo, este po de cortejo carita vo realizado no dia do Espírito Santo, perpetuouse ali durante “séculos sem que o fio dessa tradição se quebrasse” tendo-se pelo contrário incrementado e adquirido ainda maior “pompa e um garrido e complexo cerimonial.” Verificou-se isto até ao princípio do século XVI em que vamos encontrá-lo com “um tanto amortecido entusiasmo” o que levou, aliás, a que o provedor da comarca ordenasse que se viesse a restaurar a tradição “com vésperas solenes e missa do dia” que, pelos vistos, se nham deixado de celebrar. Mas não só os cerimoniais litúrgicos mereceram tal patrocínio revivalista: também aí era determinado que se fornecesse vinho e fruta àqueles que cantassem as ditas “vésperas”, enquanto se defendia a perpetuação, igualmente, de um singular responso proferido sobre a “cova acustumada”; cova essa de que falaremos adiante. Nesta altura a festa incluía sempre tourada no “corro” da vila, “correndo-se um ou mais touros do Hospital. Um dos touros era morto e a sua carne distribuída pelos pobres e pelos ministros da casa(31).” A par r dos anos trinta desse século o entusiasmo reacendeu-se de tal forma que os próprios provedores veram de meter travão nos gastos “tanto na tourada como no comer e beberete e em ofertas a padres(32)” Em 1552 o provedor António Brochado proibiu, inclusive, que a casa comprasse touro para o dia, “correndo-se touro apenas quando o hospital o vesse da sua manada(33)”. (29) Álvaro D'Azevedo, op. cit., p. 82, citando uma tradução datada de 1544. Para além do bodo aos pobres, realizado através de distribuição de esmolas num cortejo cerimonial, o vector alimentação incluía ainda uma distribuição de alimentos aos “ministros da casa” (diretores e eventualmente organizadores da festa) e ainda o “beberete” possivelmente uma refeição conjunta entre os “irmãos”. (30) Ibidem. Mas as funções da Confraria incluíam ainda, e principalmente, a proteção e assistência aos confrades, tanto por doença e acompanhamento em caso de morte (”com candeias acesas o corpo levem à igreja e o guardem até ser sepultado”) como na concessão de recursos para o enterramento e respec vas missas ou, ainda, na doação de esmolas por alma dos mesmos. (31) Idem, pp. 119 e 120. A tourada surge assim, desde o dealbar da Idade Média pelo menos, ligada às fes vidades do Divino. Situação conhecida, igualmente, nos “impérios” da capital, perpetuar-se-á nalgumas festas estremenhas como o Penedo, em solenidades ribatejanas como a Meia Via e Azinhaga, em Leiria até fins do século XIX e, ainda, nas “folias” raianas de Segura e da Zebreira e, finalmente, na Ilha Terceira. (32) Idem, p. 120. Como sempre é a natureza excessiva das fes vidades que está em causa. Excessiva demais para uns, natural e adequadamente excessiva, para outros! (33) Idem, p. 118.

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Contudo, na segunda metade do século (1560) o hospital e a confraria irão ser ex ntos e subs tuídos pela nova Confraria da Misericórdia, herdeira de seus bens e obrigações. Tal parece ter correspondido a um compreensível e rude golpe na fes vidade. No princípio do século seguinte receavam já os provedores e irmãos que a Festa do Espírito Santo viesse a cair no esquecimento (deveriam ser notórios, nessa altura, os sinais de decadência) e assim decidem proceder ao registo escrito da sua forma e natureza “para que sempre dure a memória deles”. Esclarecida decisão, esta, da qual resultou uma descrição, preciosa pelos seus pormenores e datada de 1623. Através desta podemos verificar que a fes vidade incluía charamelas e trombetas que acompanhavam o cantar das “vésperas” e abrilhantavam as corridas de touros, cortejos em que par cipavam provedor, capelão e irmãos (igualmente com “folia” e charamela), e em que o mordomo transportava o guião e o capelão “a coroa em um prato de prata”. E assim andavam dando esmola. No Sábado do Espírito Santo, matava-se ainda o boi des nado aos “pobres e aos ministros da casa.” No dia seguinte, “doze moças bem trajadas e ves das {transportando} em seus taboleiros esmolas de trigo que são dez alqueires, com cada uma sua vela na mão (...) duas mulheres para levarem a oferta de vinho que são dous almudes e com cada uma sua vela (...) dous homens que levem dous carneiros com suas velas(34)”, …desfilavam cerimonialmente pelas ruas da vila. Diversos cortejos como este se sucediam (portadores de oferendas e acompanhados sempre pelo provedor, irmãos e respec vos clérigos) transportando os símbolos do Espírito Santo das suas casas até à casa do mordomo, mais tarde até à “casa da Misericórdia” pertencente à Igreja Matriz e, finalmente, para o adro onde se proferiria um “responso”, findo o qual “se tangerão as charamelas e os foliões foliarão com muito prazer e alegria porque assim achamos ser costume an go(35)”. A par cipação eclesiás ca é assaz significa va como expressam a dado ponto referências à inclusão habitual nos cortejos cerimoniais de “três padres reves dos como se es verem à missa”. Tal facto marcará, as suas caracterís cas com uma matriz canónica que se vislumbra nos cortejos encabeçados pelo capelão, nas “vésperas” provavelmente de cariz litúrgico, nos “responsos”, etc.,.. A simbólica do “império” apenas se relembra, nesta altura, no transporte da coroa e da salva, ficando a dúvida sobre a temporalidade da existência da dita (quando se iniciou e quando se ex nguiu) e, ainda, se a mesma acarretava, aqui, cerimoniais de “coroação(36)”.

(34) Idem, p. 119. (35) Idem, p. 120. Curiosamente esta interação laico-religiosa estará já nesta altura (inícios do século XVII) a ser par cularmente ques onada

entre nós. Interdições dos espaços religiosos, proibições da par cipação de prelados, avultam por todo o país a par r de meados do século XVI. (36) Será que as cerimónias de coroação terão desaparecido naquela que parece ter sido a sua grande mutação sofrida em altura indeterminada

antes do século XVI e que, entre outras coisas, levou a que a mesma se passasse a chamar “festa de Maria Anes” e em que parte considerável das suas a vidades lúdicas passaram a radicar na sua vontade?

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Contudo as a vidades lúdicas surgem aqui, igualmente, reves das de um pres gio que a tradição consagra. O papel da tourada, por exemplo, parece ter sido crucial bem, ainda, como a importância do “balho” com que acabava a festa. “Balho” esse, realizado em memória de Maria Anes, grande “balhadeira” que, em tempos ignotos, nha influenciado profundamente esta fes vidade. Parecem, de facto, ter coexis do aqui cerimoniais litúrgicos e inicia vas claramente lúdicas (e naturalmente profanas) numa simbiose de alguma forma estranha e invulgar. E a esta singular promiscuidade não deverá ter sido estranha a peculiar personagem atrás referida. Na verdade, esta Maria Anes, que em rigor não se sabe quem foi mas que parece ter introduzido uma profunda reforma nesta inicia va, adquiriu tal popularidade que a festa alterou até, sintoma camente, a denominação para “festa de Maria Anes(37)”, nome que ainda conservava em 1731. Que a reforma que a mesma introduziu, para além de proteger e apoiar (provavelmente economicamente) a inicia va (era por exemplo rezada missa por sua alma na matriz, durante os festejos, ao mesmo nível de Pedro Urzela e Maria Pires que se sabe terem sido importantes beneméritos(38)) se deve ter caracterizado por um reforço considerável do vector lúdico/profano, parece inques onável. Em favor disto existe ainda a referência explícita à “ins tuidora desta festa (...) uma grande bailadeira” de tal forma que, calcule-se, mandou até que, no dia do Espírito Santo, se “balhasse sobre a sua cova!”. A mutação da própria denominação, mostra bem não só a dessacralização em presença mas ainda a profunda marca que esta personagem peculiar deixou na memória popular. O suceder de percursos cerimoniais das casas dos mordomos para a igreja e casas do Espírito Santo, ou entre estes lugares, bem como os respec vos regressos, lembram mecanismos difusores de sacralidade visíveis ainda hoje nas versões insulares e brasileiras e, embora hoje escassos e limitados, em tempos medievos comuns igualmente aos “impérios con nentais”. O cortejo das “doze raparigas bem trajadas, transportando tabuleiros de trigo”, remete de alguma forma para o modelo processional que encontramos principalmente, ainda hoje, no Vale do Tejo. Parece contudo claro, que no século XVII esta festa estava já em grande parte profanizada (tal como se depreende da própria denominação) e as a vidades lúdicas possuíam, nessa altura, uma importância determinante. Este corresponde, aliás, a um des no comum a muitas destas inicia vas que, como veremos cons tui sintoma ou prenúncio de um desaparecimento sem honra. E, finalmente, o século XVIII parece ter levado ao seu desaparecimento defini vo.

(37) Álvaro D'Azevedo, op. cit., p. 120 (38) Doando, inclusive, uma albergaria à Irmandade.

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Em suma, parece claro que este po de fes vidades já exis a bem antes dos finais do século XIII (provavelmente desde os inícios do mesmo) e, deste modo, que Alenquer não corresponde, em absoluto, ao protó po das festas do Espírito Santo de que terão resultado todas as outras. Parece todavia igualmente claro, que Alenquer marcou uma etapa determinante, quiçá primordial, na implantação do modelo “império” e que, neste, teve papel de relevo Isabel de Aragão pelo menos a avaliar pelos dados fornecidos (veiculadores com certeza de uma forte tradição) por todo um conjunto de cronistas do século XVII, como D. Rodrigo da Cunha, Frei Manuel da Esperança, Padre Manoel Fernandes ou Frei Francisco Brandão. E, se considerarmos que é precisamente este o modelo que se vai espalhar por todo o país nos séculos XIV e XV e que a par r do Con nente vai chegar à Madeira e aos Açores com a perenidade que se conhece, podemos dizer que, de qualquer forma, face aos dados existentes, Alenquer cons tui a grande festa/mãe da qual, direta ou indiretamente, irão evoluir todos os “impérios” encontrados no espaço português. Contudo tais inicia vas exis am já, como vimos, no nosso país durante o século XIII, sendo costume, no dia respe vo, a oferta, desenvolvida pelos irmãos, de pão e carne aos pobres e desvalidos. E aí, Benavente, surge pela dimensão e natureza dos dados disponíveis, como o grande referencial nacional histórico e documental.

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OS FORAIS DE BENAVENTE E O SEU TOMBO Benavente | 1516-1574 Sandra Ferreira Mestre em Histรณria Arquivo Histรณrico Municipal de Benavente



1. Introdução Os documentos agora apresentados assumem-se como uma fonte de grande interesse para qualquer inves gador que se dedique ao estudo da vila de Benavente. Através da medição e demarcação do espaço ocupado pelas casas câmara e do açougue pode “recriar-se” uma geografia do centro da vila. Pela descrição dos espaços e a forma como estes se distribuíam podemos visualizar elementos quo dianos da população da época como por exemplo o «corro dos touros», a «hermida de San ago» e até mesmo a «casa estrebaria» o que nos leva a crer que Benavente era zona de passagem obrigatória pois dispõem de uma situação geográfica favorável sendo que é um ponto estratégico entre Lisboa, Évora e Santarém. Podemos ver, igualmente, que uma das principais vias, à época, é a Rua de Évora. No cruzamento dos dados fornecidos quer pelo Foral quer pelo Tombo conseguimos iden ficar as principais famílias e as personalidades (com cargos públicos) que residiam neste espaço. Aqui, podemos evidenciar, por exemplo, o Conde da Castanheira que era o proprietário da Quinta da Foz (também referida ao longo do texto). Para além deste, é possível iden ficar a presença do alcaide, do almoxarife e do Juiz dos órfãos que, com certeza, assumiam um papel importante na administração da vila. Assim, o Foral Novo e o Tombo do Concelho cons tuem uma fonte de relevo para o conhecimento da nossa história, antroponímia, geografia da vila de quinhentos.

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2. Caracterização do Espaço Rural 2.1. Tipo de Propriedade O espaço rural que envolvia o núcleo urbano de Benavente dividia-se entre coutadas, courelas e cortes. Desta forma, a essa data dos bens rurais do concelho constavam, além de vários carris e pequenos corredouros, das seguintes propriedades: A Lezíria dos Cavalos que era «terra de pam tem o concelho muito plana, e' muito boa»; a lezíria das Éguas (3 moios de semeadura); três courelas na Várzea; a Corte do Poço (junto ao Poço Velho); a Corte do Boi, terra de pastagem, salgadiça, na Várzea de Samora; uma terra de pastagem na Várzea de Samora «que levaria dez ou doze moyos de semeadura senão entrassem nella os estos [esteiros], e' mares como entrão em todas as mais terras da dita varzea que são salguadiças e alagadas pella qual causa senam Lavrão nem serve senão pera pastos quando estam despeiadas dagoa (…)»; o Braceal, terra baldia para pasto dos gados, na vertente direita do Almansor.

Descrição do Braceal: «Tem mais o concelho outra terra baldia chamada Braceal, que serve de pastos de guados, como a Garrocheira. Parte da banda do Norte com carril do C.º [Concelho] que sae da pescaria e vai dar na serra, e da banda do sul com terra do Conde de Penella sempre ate dar na serra, e da banda do Levante parte com matos concelhys do termo de Benavente: e do Poente parte com courella, que foi do barbudo. Vay outrosy a dita terra divisada, e confrontada per divisões, e confrontações en que não há duvida alguma.» Finalmente, os matos concelhios que compreendiam quase toda a charneca a sul da vila. Todas as terras da várzea andavam arrendadas, excepto a Corte dos Juncaes que estava aforada por um moio de trigo. Para além destas propriedades rurais importa evidenciar com mais rigor as duas grandes faixas de terreno designadas de Lezíria dos Cavalos e Lezírias das Éguas.

Referente à Lezíria dos Cavalos diz-nos o Tombo: «Outra terra de pam tem o concelho muito plana, e' muito boa dalem da villa em hu baixo contra o sul abaixo do recio do moinho do vento, e' ortas da Lezira, a qual terra se chama Lezira dos cavallos, parte da banda do Poente com corte de Janemena pello esteiro que foi rio velho, e' vallado, que antre hua e' outra vay e assi vai do dito rio par ndo com ella dereito ao sul pellos Pomares de fonte de Manhanas ate

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entestar nesta fonte e torna pello dito rio velho arriba en volta contra o Levante correndo por darredor do Juncal sempre atequi ate hir dar em buscarroido terra do dito Juncal, e' dhi volve en redondo pera o Levante longo das ortas do dito rio, com as quaes por elle vem par ndo sempre, e' pella aberta dos vallados das ditas ortas, e' torna a passar per delongo dos vallados das ortas de Elena dabreu, e' de Manuel Roiz ate dar em sorraya sempre pello rio velho, onde se acaba, aqual Lezira acabando de par r com a dita Orta de Manuel Roiz pella trazeira toma o Botelhãozinho de terra feito a modo de triangulo do qual atras fica dito de perfi confrontandose com elle o recio do moinho do vento, e' assi vai par ndo a dita Lezira com o dito Botelhaozinho pello dito Rio Velho ate dar en sorraia.» Esta lezíria, segundo nos induz o texto deveria ser banhada por um esteiro do rio Sorraia contornando, este, a vila pelo seu lado norte. Este esteiro seria designado por Rio Velho.

Referente à Lezíria das Éguas diz-nos o Tombo: «Outra terra tem o concelho chamada Lezira das egoas, aqual iaz na varzea da dita villa quasi de fronte da hermida de Sam francisco, e' fonte da villa: parte da banda do sul com o rio, e' do Norte com carril do concelho, que vem de Pero Durão aao longo da corte do rouco, e' da mesma Lezira e' da banda do Poente parte com rio vellho, que vay antre esta Lezira, e' corte' que foi de dona Tareila: e' do levante com vazacovas per comaro grande que vai antre a dita Lezira e vazacovas e dahi vay a dita terra dereito dar ao Rio, e'antes que nelle enteste se faz hu aguilhão de terra pera a mão esquerda, que vai entestar na terra de' Luis Caesar por hu esteiro, que vai antre ella e o dito Aguilhão ter ao rio: o qual aguilhão, ou botelhão que sae fora do dereito do comaro da dita Lezira e' vay assi entestar na dita terra de Lois Caesar, também hé do concelho. O qual botelhão desdo dereito do comaro da Lezira acima dita das egoas ao longo da valla da dita vazacovas dereito ao Levante ate dar no esteiro, que divide este Botelhão da terra de Lois Caesar, ate onde o dito Botelhão faz hua Pontaguda, tem cincoenta e tres varas, e' vem ao Longo do dito esteiro dereito ao rio, levará de' semeadura tres alqueires. (sinal de pontuação) esta Lezira anda de arrendamento com as mais terras do C.º [Concelho] e lhe pagão della sua ração como das outras herdades suas, leva a dita Lezira de semeadura tres moyos de trigo.» Para além dos anteriormente referidos exis a em torno de todo o núcleo urbano olivais, zambujeiros e vinha. Neste espaço predomina a pequena propriedade de arneiro com olivais, vinha e cultura mista, onde trabalha o próprio dono ou o rendeiro da terra.

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Enumeremos, de seguida, alguns locais e prédios rús cos no termo de Benavente iden ficados no treslado do Tombo do Mestrado de Avis: Terras da Várzea: Campo dos Freires Corte do Freixo Corte da Senhora Corte do Rouco Lombo do Mestre Pendurão («Pero Durão» - Fazia parte da Capela de S. Bartolomeu, ins tuída por Pero Durão) Montes: Mon jos (Pertenceu, por doação régia, ao Convento das Religiosas do S. S. Coração de Jesus. Em 1784 estava arrendado por 25 moios de trigo.) Vales: Valverde Quinta da Foz A Quinta da Foz foi pertença da Condessa de Ourém, D. Guiomar de Castro, que a vendeu a Álvaro Cou nho, 1.º Conde da Atouguia. Em 1544 era de D. António d'Ataíde, Conde da Castanheira, senhor das Vilas de Povos, Castanheira, etc. Pertenceu mais tarde aos Marqueses de Cascais e por ex nção dessa família, descendente do chancelermor João das Regras, passou para a Casa dos Marqueses de Niza. Foi sobretudo no tempo dos Marqueses de Niza que esta Quinta alcançou nomeada pelas grandes festas que nela se promoveram. Tinha um bom palácio com capela e praça de touros, e em volta habitações para o pessoal da lavoura. O seu nome provém da foz do Sorraia ter sido primi vamente próximo dessa Quinta. Coutada da Garrocheira O Tombo descreve-a como sendo «Huma boa peça de terra há no termo da dita villa de Benavente chamada a Garrocheira(1) toda iunta circuitada e demarcada sobresi demais de mea legoa de muito (1) Há época a Garrocheira servia de pasto para gados.

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soveral, não hé propriedade propria do concelho aiuntouse esta terra das testadas das terras que os moradores da dita villa naquella parte naquelle tempo nhão, rando cada hu desi sua parte, pera que servisse de pasto, e logração de seus gados de lavoura, e lhes ficasse como ficou em coutada, não pode pessoa alguma pao, madeira nem lenha, nem cortar, nem rar cousa alguma sem licença do C.º [Concelho] e a causa, porque os sobreditos, as ditas testadas de suas terras, que entestavão no termo da salvaterra, alargarão pera fazerem a dita coutada, foi, porque os de Salvaterra lhes encoimavão muitas vezes seus guados, e de cada cabeça lhes levavão quinhentos rs [reis]. E agora pastão os guados da Lavoura de Benavente nos matos de Salvaterra per provisam sem pena alguma, per provisam Del Rey, Santa gloria aJa, avida en tempo, que a villa de Salvaterra fora de Dom Nuno Manuel. (sinal de pontuação) parte a dita coutada da banda do Norte com termo de salvaterra per hua estrada, e marcos que por hi vão alogares desviados della: e da banda do sul, que hé dabanda da varzea pellas somas quanto cobre a augoa: e do Levante com Val da Boinseira, e do Ponente parte com valde Maria Negral, que tambem sae da varzea, ate dar no termo de Salvaterra.» Convento de Jenicó (ou Jericó) referido ao longo do Tombo como Mosteiro de Janicoy Convento dos monges arrábidos fundado em 1544 pelo Infante D. Luís. Jenicó é também o nome dado aos arneiros adjacentes ao Campo dos Freires. Lagoas: Assim se designavam terrenos, quase sempre de arneiro, apaludados e que pela sua humidade se prestavam a cul vo. Lagoa do Imperador Esteiros e Pegos: A várzea do Sorraia(2) era toda retalhada de esteiros, por onde certamente subiam as marés e por pegos fundos e ricos em peixe.

(2) A várzea do Sorraia é uma extensa e rica campina que as inundações do Sorraia por vezes cobrem de flanco a flanco, a qual se estende desde as Figueiras e várzea do Borralho, inclusive até junto da ponte de ferro, viaduto e aterro da estrada de Salvaterra. Na parte da várzea entre a ponte de ferro e o dique de Bilrete, ponto até onde chegam as marés do Sorraia, destacam-se os seguintes campos, todos desprotegidos de valados e em parte subdivididos em pequenas propriedades ou courelas: Fura Grades, Corte Grande, Conchegado, Baixos da Capela, Arnatos, Corte do Secretário, Corte das Patas, Cantos do Concelho, Farilhão e Caveiras. À esquerda do Sorraia, fronteira ao Farilhão, fica a pequena várzea de Trejoito, cujo solo apresenta as mesmas caracterís cas do da várzea. A restante parte do vale do Sorraia, isto é, da Garrocheira e Portos da Barrosa até ao termo de Coruche, é geralmente denominada Várzea dos Montes.

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No Tombo destacam-se os seguintes esteiros: das Somas, da Malveira, da Azambaninha, do Farilhão, das Cerveiras. Dos pegos, surge-nos o do Preto ou da Pon nha (à Vala Nova)

3. As Comunicações e a Relação com o sistema hídrico: Rio Sorraia e Tejo As vias de comunicação são um factor importante para o desenvolvimento de um povoado, vila, cidade ou região. Nesta época o sistema viário reduzia-se a alguns troços de an gas estradas romanas e a simples carreiros (carris) abertos pelos pés dos viajantes e pelas patas dos animais. O sistema locomotor terrestre medieval define-se pelo emprego de animais de carga, cavalos e gado muar(3), ao lado do transporte às costas e à cabeça, como podemos confirmar no extracto do Foral Novo de Benavente que se segue. «De todo trigo çenteo ceuada mylho pajnço auea e farinha de cada hum delles E assy de cal ou de Sal ou de vynho ou vynagra e Linhaça E de qualquer fruyta verde emtrando melloães ortalliça e assy pescado ou marisquo se pagara por carga maior .s. cauallar ou muar de cada huma das ditas cousas hum Real de seis cei js o Real E por costal que hum homem poderá trazer as costas dous cei js e dy pera baixo em qual quer can dade em que se venderem se pagara hum cei l E outro tanto se pagara quando se rar pêra fora Porem quem das ditas cousas ou de cada huma dellas comprar e rar pêra fora pêra seu vso e nam pêra vender cousa que nã chegue a meo Real de portajem segundo os sobreditos preços dessa tal nam pagara portajem nem ho fara saber.» Os transportes fluviais desempenham um papel importante na economia do termo de Benavente. Este transporte, efectuado através do Rio Sorraia, garan a a ligação entre este território e Lisboa servindo, ao mesmo tempo, para escoamento de produtos. Não podemos esquecer que o Rio Sorraia seria navegável até à zona de Coruche e nos dava acesso directo ao Rio Tejo.

(3) Muar, que resulta do cruzamento de cavalo e burra ou de burro e égua.

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3.1. Desenvolvimento Local (esteiros) O Rio Velho seria um esteiro do Rio Sorraia contornando a vila a norte. Este esteiro surge referido no texto, pela primeira vez, quando se menciona as confrontações do “Recio do Vento”. Na disposição que remete para a lezíria dos Cavalos podemos confirmar esta afirmação: «Outra terra de pam tem o concelho muito plana, e' muito boa dalem da villa em hu baixo contra o sul abaixo do recio do moinho do vento, e' ortas da Lezira, a qual terra se chama Lezira dos cavallos, parte da banda do Poente com corte de Janemena pello esteiro que foi rio velho, (…) ate dar em sorraya sempre pello rio velho, onde se acaba, aqual Lezira» Outros esteiros iden ficados ao longo do texto: . Esteiro da calçada grande . Esteiro da Azambaninha . Esteiro do Farilhão . Esteiro das Cerveiras . Esteiro do Boy

3.2. Sistemas de Transformação (sistemas de moagem) 3.2.1. O Moinho de Vento, sua localização e o espaço envolvente Recio do Moinho de Vento ou Recio do Vento são estes os nomes que em 1561 se dão ao Largo do Calvário, sí o este que nas próprias palavras do tombo é: «saindo da villa perª a banda do Ponente pellas costas da hermida de San ago». Segundo o referido tombo, nesse mesmo ano, já havia uma rua a ligar o Rocio do Vento (Calvário) com a vila: «a rua, que vai do mesmo recio pera a villa». Supomos ser a Rua do Pinheiro, que nesse tempo nha um pequeno número de casas, conforme se infere da descrição que do Barrocal faz o citado tombo. Só em 1573, segundo o Livro de acórdãos da Confraria da Misericórdia (truncado), nos aparece o nome Rua do Pinheiro. Mas, já em 1530, de acordo com o Tombo da Igreja Matriz de Benavente (fls. 22v), esse largo era chamado Moinho de Vento, pertencia ao concelho e abrangia uma super cie muito maior que o actual Largo do Calvário, estendia-se para S.E. compreendendo parte da Rua do Pinheiro e descia irregularmente até às ribanças dos dois lados, confrontando com várias hortas, cerrados e algum vinhedo. Na parte mais elevada exis a um moinho de vento, talvez o único da vila, por longo tempo. 99


A moagem para consumo local era feita em atafonas, uma espécie de moinhos movidos a força braçal ou tracção animal. Houve na vila várias atafonas(4) e o o cio de atafoneiro(5). O Rocio do Moinho de Vento passou a denominar-se Rocio do Calvário depois que em 1644 foi erigido o Cruzeiro, que ainda hoje existe, nesse largo. Esse Cruzeiro tem gravado as seguintes inscrições: EST OBRA MANDARÃO FAZER OS IRMÃOS DOS SANTOS PASSOS EM O ANNO 1644 HOC SIGNUM CRVCIS ERIT IN CAELLO – CVM DOMINVS ADVDICANTUM VENERIT FOI REFORMADA NO ANNO DE 1725 O velho moinho que exis u no Rocio do Calvário deu ainda o nome ao Largo do Moinho de Vento e à Travessa do Moinho de Vento, ambos con guos àquele rocio e à Rua do Pinheiro. No século XVIII, em vez de Rocio do Calvário passou a empregar-se, mais frequentemente, a forma Calvário(6). Já então havia nesse Largo vários celeiros, sendo o mais importante o do Infantado que depois passou para a Companhia das Lezírias. A escolha desse local para celeiros obedeceu certamente à sua proximidade do porto do Sorraia, onde havia con nuo tráfego de cereais. Além de vários celeiros par culares, exis am ainda os seguintes: o celeiro da coroa, no Largo do Calvário; o celeiro da rainha na Rua da Misericórdia; o celeiro das miunças e casa do almoxarife, na Travessa de Antónia Velha, também designada de Travessa da Amoreira; o celeiro dos azeites, na Rua do Pinheiro.

3.3. Transferência de mercadorias: Os Portos Fluviais 3.3.1. Porto da Pescaria «Tem o concelho outro carril, que sae do porto da pescaria e vay per antre o rio e terra do Conde da Castanheira e sae dereito fora ao longo do rio pellas bordas dos Arneiros da Foz do Conde, até dar nos matos do Concelho, e dar onde soya estar hu marco antre as terras da foz e do concelho, e o rio faz huã volta he' este carril todo guastado (…)»

(4) Tombo da Igreja Matriz de Benavente – 1544-1876, fls. 82 a 85v (5) Tombo da Igreja Matriz de Benavente – 1544-1876, fls. 111 a 113 (6) Livro das Contas da Capela do Padre João de Pontes – 1755, fl. 4v

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O Porto da Pescaria ficaria situado junto à Ponte de Pedra no final da calçada que par a da Rua da Amoreira(7) para o Rio Sorraia e seria o principal porto da vila. Era neste porto que se fazia o transbordo de mercadorias dos barcos de grande lote para outros de fundo chato que iam até ao Alto Alentejo. Junto ao Porto da Pescaria e Ponte sobre o Sorraia ficava o Beco dos Açucares, zona de celeiros. Este beco (actual Rua do Norte), que nasce a meio da Ladeira (Calçada) da Ponte e tem saída para a Praça do Município. Assim, con guo ao porto, com movimentos de embarque e desembarque, possivelmente o Beco será um dos pontos da vila onde mais cedo começaram a surgir edificações. Tendo sido o Sorraia uma via fluvial de grande importância para o comércio entre Lisboa e o Alto Alentejo, - o foral novo de D. Manuel confirma isso – não nos será di cil encontrar a razão do nome desse beco. Assim, possivelmente, esse espaço seria a zona de armazenagem dos açucares que desembarcavam no porto da vila.

3.3.2. Porto da Judiaria(8) Em Benavente houve judeus. Assim o prova o Tombo do Concelho quando nos refere o Porto da Judiaria no momento em que se refere a uma das “ortas” do concelho. «Tem mais o concelho outra orta, que lhe trazião sobnegada abaixo dos pacos hindo pera o Porto da Ludaria: parte do Norte com rio de Sorraya, e' do sul cõ caminho, que vai do dito Porto da ludaria pera o Curral do concelho: e' do Leuante' com pomar dos ditos pacos, e' do Poente' com o mesmo caminho, e' porto, onde' bebem as bestas.(…)» Havia, pois, em Benavente, uma Judiaria mais an ga e outra mais moderna, cada qual com a sua priva va e ligadas por uma Travessa. Essas ruas eram: a Rua da Judiaria Velha (Rua do Poço)(9) e a Rua da Judiaria Nova (Rua de Santarém)(10). Estas ruas teriam acesso directo ao centro urbano da vila visto que delas se (7) A primi va Rua da Ponte seria a Rua da Amoreira (actual Rua dr. Manuel Velho C. Calheiros). Em 1561, par a ela da Igreja e Praça da Vila em direcção à Calçada da Ponte, onde terminava (Tombo do Concelho, verba 4.ª), ao passo que a rua da Amoreira parte da Praça do Município e segue até ao Calvário, ficando-lhe à direita a Calçada da Ponte. A Rua da Ponte era, possivelmente, a mais importante pois, seria por ela, que se fazia o trânsito da parte central da vila para a ponte de pedra que atravessava o Sorraia para a várzea, Campo dos Freires e estrada que ia até Salvaterra de Magos. (8) A judiaria era o bairro em que os judeus viviam, dentro das povoações e cons tuíam uma espécie de concelhos, chamados em tempos mais remotos «comunidades» e depois «comunas». São anteriores ao reinado de D. João I e foram ex ntas em 1497, quando da expulsão dos judeus, por determinação de D. Manuel, em Dezembro de 1496. A judiaria de Benavente pertencia á ouvidoria de Évora. (9) Actual Rua do Paço (10) Actual Rua João Maria da Silva Correia

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acedia directamente à Praça onde encontrávamos as Casas da Câmara e Igreja Matriz. Para além destas ruas, verificamos anteriormente a existência da Rua de Évora(11) (ainda hoje conhecida pelos populares por este nome). Supomos, desta forma, que seriam estas as principais vias de acesso ao exterior daí que, a Rua de Évora seria a principal saída com des no a essa cidade assim como, a Rua de Santarém daria acesso à cidade do mesmo nome. O Porto da Judiaria ficaria situado em frente do referido bairro, na pequena enseada e praia que o Sorraia forma a montante da Ponte que dá acesso a Salvaterra de Magos. Este porto seria con guo à Judiaria senão mesmo priva vo. Este espaço será o que actualmente se designa por Jardim da Fateixa. Foi para junto deste espaço que se “deslocou” a Ponte sobre o Sorraia. A Rua da Judiaria Velha tomou o nome de Rua do Paço(12).

4. Aspectos Económicos 4.1. Agricultura Benavente foi, desde sempre, uma zona agrícola. Desta forma, o seu Tombo apresenta como principal cultura de pão o Trigo: «(…) Leva de semeadura seis quarteiros de trigo.» A Lezíria das éguas era terra de produção de trigo. «(…) leva a dita Lezira de semeadura tres moyos de trigo.» Para além desta referência, no Foral é-nos dito que: «Decraramos primeiramente que a portajem que se ouuer de pagar na dita villa a de seer per homens de fora della que hy trouxerem cousas de fora hy a uender ou as comprem hy e as rem pera fora da dita villa e termo A qual portajem se pagara desta maneira .s. De todo trigo çenteo ceuada mylho pajnço auea e farinha de cada hum delles E assy de cal ou de Sal ou de vynho ou vynagra e Linhaça E de qualquer fruyta verde emtrando melloães ortalliça e assy pescado ou marisquo se pagara por carga maior .s. cauallar ou muar de cada huma das ditas cousas hum Real de seis cei js o Real (…)»

(11) A Rua d'Évora, tal como a Rua de Lisboa (também designada de Rua Luiz Godinho e actualmente Rua da Misericórdia), é uma das ruas mais an gas de Benavente e indicam o provável objec vo da fundação da vila: “estação” de comunicações entre Évora e Lisboa. (12) Tombo da Igreja Matriz de Benavente (1544-1876). Esta referência é de 1635, mas é natural que já no século XVI essa Rua se denominasse Rua do Paço.

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A vinha parece cons tuir uma das culturas dominantes ao lado dos cereais (trigo, milho), pois ao longo do texto do tombo várias são as zonas que envolvem o núcleo urbano onde aparece a indicação desta cultura: «Traz huã or nha no dito logar per escriptura, que o Almox.(e) sesmeiro della lhe fezera a xxuºy de Mayo de M. b. xby e' lha dera de' sesmaria, e' com ella hû chão pera vinha sem foro, e'que ella de nenhum destes chãos o pagaua.» Na disposição refrente ao Cerrado de Telhal surge mais uma referência a vinhas: «Hum cerrado tem o concelho aque chamão o telhal iunto do recio, en que está o poco nouo, hé huã terra mais alta de todas suas vezinhas, estão na boca do Arrabalde' hindo da villa pera o dito poco caminho antre o dito telhal, e' o poco en meio somente' he feito en triangulo, parte de todalas bandas com caminhos pubricos, tem quareta e' duas varas de medir do caminho que vay antre elle e' o recio do Poco. E' pella outra banda de Leuante pella estrada, que' vay da villa pera as vinhas, tem trinta e' oito varas. E'polla outra banda do Norte' pello caminho que vem do Arrabalde pera o dito poco tem vinte e'noue varas, não ho traz nenguem.» Para além disso, na disposição referente à Corte do Poço surge-nos a indicação não só da existência de vinhas mas também de olivais: «(…) per hu esteiro, que vay de longo das vinhas e olivaes e do Poente com resio do dito poço entesta no cerrado no cerrado dos paços (…)» Outra referência a olivais: «(…) do çarrado de' Elena Dabreu, que está da banda de' Valdegodinho, e olivais da villa passando quasi pello peé da força(…)» Ainda outros produtos agrícolas se cul vavam: hortaliças, árvores de fruto.

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4.2. Pesca A situação geográfica do termo de Benavente era bastante favorável ao aproveitamento da riqueza fluvial. Assim, para além da agricultura: cereais, vinho, azeite e outros produtos hor colas viviam da pesca, ocupando este produto um lugar de relevo quer na alimentação(13) quer no comércio. O Rio Sorraia oferecia uma grande variedade de peixe: Barbo, Tainha-Fataça, Boga, Carpa, Achigã, entre outros. A ac vidade piscatória aparece exposta no foral quando se refere à portagem e apresenta o tributo dos pescadores e do pescado: «E pagar sse a do pescado duas dizimas .s. huma dizima da ordem e a outra dizima a nos que per bem do contracto dos pescadores nos he deuyda nam se pagara mais em nynhum outro lugar delles. E será dado comduto aos pescadores quando vierem com seus pescados de que nam pagaram dizima per Jujzo dos ofiiciaaes Nem a pagarã do que tomarem com anzollo ou a linha ou a maão ou em nassa ou couão pêra comer. Saluo se forem pescadores cadimos por que estes taaes pagaram a dizima velha soomente e nam a noua dos pescados que na dita maneira matarem E sse hy vierem a vender per agoa pagaram de quorenta hum E sse sayr per agoa ou vier ou sayr per terra hum real por carga mayor. E dizima das sentenças senam leuara hy em njnhum tempo porque assy foy determinado per nos Jeralmente com nossos leterados em Rollaçam.» Da portagem: « A qual portajem se pagara desta maneira .s. De todo trigo çenteo ceuada mylho pajnço auea e farinha de cada hum delles E assy de cal ou de Sal ou de vynho ou vynagra e Linhaça E de qualquer fruyta verde emtrando melloães ortalliça e assy pescado ou marisquo se pagara por carga maior .s. cauallar ou muar de cada huma das ditas cousas hum Real de seis cei js(…)»

4.3. Comércio O foral dá-nos alguns elementos referentes à vida comercial da época. Desta forma, é-nos dada a indicação de que os religiosos(as) estavam isentos do pagamento de portagem assim como «das cousas que venderem de seus bens e bene cios como das que comprarem». (13) No nosso país, durante a Idade Média, o peixe situava-se na base da alimentação, especialmente entre as classes menos abastadas (AH Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, 3.ª edição, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1974, p.9)

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«As pessoas eclesyas cas de todollos moesteiros assy domens como de molheres que fazem voto de profissam E os clérigos dordens sacras e assy os beneficiados dordens menores posto que as nõ tenham que viuem como clérigos e por taaes sam auydos todollos sobre ditos sam ysentos e pryvyllygiados de pagarem nynhuma portajem vsajem nem costumajem per qualquer nome que a possam chamar assy das cousas que venderem de seus bens e bene cios como das que comprarem trouxerem ou leuarem pera seus vsos ou de seus bene cios e casas e famylliares de qual quer quallidade que seiam assy per mar como per terra É assy será escuso da dita portajem no dito lugar a vylla soomente de guymaraaes a que foy dado priuyllegio de não pagar amte da era de mill e duzentos e quatorze na qual foy dado o dito lugar aa dita ordem E assy ho será qualquer outro que o semelhãte priuillegio uer ante da dita era.»

5. A Estrutura Municipal e a Ruralidade 5.1. Organização Municipal, As Categorias Sociais “os alcaldes, alvazis ou simplesmente juízes vinham a ser os principais magistrados dos municipios”(14). Assim, os dirigentes municipais chamavam-se alcaides ou alvazis; os fiscais de mercado, almotacés. Nas finanças régias temos os almoxarifes e os almoxarifados. O Alcaide aparece à frente do governo local, sendo, portanto, o mais elevado funcionário do concelho, exercendo uma delegação do rei. Assim, o alcaide oficial do rei como governador militar da povoação era simultaneamente magistrado municipal, intervindo na distribuição da jus ça e no governo económico do concelho. «E leuara mais o alcayde por açougagem os pees dos porcos e nam outra cousa.» Foral Novo, 1516

Outras situações em que os documentos referem a presença do alcaide: «(…) Manuel Roiz Alcaide traz huã repar da em tres com t.º(…)» Tombo do Concelho, 1574

(14)A.

Herculano, História de Portugal, Tomo IV, Livro VIII, Parte II . Lisboa, Livraria Bertrand, 1981, p. 186

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«(…) Tralas Manuel Roiz Alcaide per iscriptura de arrematação, que pollos officiaes da Camar.ª lhe forão afforadas en tres pessoas feita a xxb de Nouebro de mil e' quinhentos e' quarenta, e' oito por foro de cem rs. cadanno.» Tombo do Concelho, 1574

Para além do alcaide, outra figura se nos apresenta, o almoxarife: « Os manynhos seram dados pollo almoxeriffe da ordem guardando sse Inteiramente a llei das sesmarias nã prejudicando aos vezinhos (…)» Foral Novo, 1516

«E se o senhorio dos ditos direitos o dito foral quebrantar per sy ou per outrem seia logo sospensso delles e da Juridiçam do dito lugar se a uer em quanto nossa merce for E mais as pessoas que em seu nome ou por elle o fizerem emcorrerã nas ditas penas e os almoxeriffes e escriuaães e officiaes dos ditos direitos que o assy nã cõprirem perderã logo os ditos officios nã auerã mais outros» Foral Novo, 1516 Aparece também, no texto do Tombo, o o cio de escrivão do almoxarifado: «(…) Maria Bernaldez que foi molher de Afonso Lopez Almox.(e) e' sesmeiro do mestre' mostrou t.º feito pelo escriuão do Almox.(do) a X. de Setembro de mil e' quinhentos, e'quatro, pello qual o dito seu marido tomam pera si no dito Iug.(as) (?) quarenta e' noue couados de chão en quadrado, que nunca fora aproveitado, e' o fezera en orta, e'paguaua foro, e' tomara o dito chão en fathiota. Jl Isabel Afonso Besteira, molher, que foi de Joam Aluarez Besteiro(…)» A função de Besteiro surge-nos mencionada no Tombo de 1574 da seguinte forma: « E' medido da vinha de Isabel afonso molher, que foi de joam Alvarez Besteiro ate' a serven a da dita villa, que he a saida das ditas duas ruas, e' assi da rua do Arrabalde(…)» Os besteiros estavam nos forais equiparados, em imunidades e prerroga vas, aos cavaleiros do concelho. De qualquer forma, esta função não aparece referida no Foral mas, com a citação do Tombo, ficamos a saber que exis u na vila um besteiro.

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5.2. A Praça da Vila No que diz respeito à estrutura municipal o Tombo inicia-se com a “delimitação” de uma Praça central onde assinalamos a presença das Casas da Câmara, da Igreja Matriz e do Pelourinho. Nesta Praça, hoje designada por «da República», podemos evidenciar, ainda, a existência de um pequeno “Chão” que confronta a norte com a Estrebaria e a sul com as próprias casas da Câmara. «Tem o concelho outro pequeno chão iunto das casas da Camara na Praça, o qual he' recebimento das casas de Bernaldo de' Guoez. Parte do Norte'com casa estrebaria de Joam Roiz Bulhão, e'do sul com casas da camara, e'audiencia, pella sua escada de pedraria, e' do Leuante com a praça e' do Poente cõ casas do dito Bernaldo de'Guoez. Tem de largo tres varas, e' de comprido cinco, tralo en fathiota, pag.ª delle de foro ao concelho cadanno dez rs'.» Descrição da localização das casas da Câmara que passaremos a citar: «Há casa e paço do Cõcelho, en aqual se fazem as audiencias é camaras pelos juizes, e vereadores, e mais officiaes da villa de Benavente: está na praça da dita villa, com a qual praça, é adro da egreia Matrix (…)» Neste extracto do Tombo podemos verificar que a Igreja matriz estaria junto às casas da Câmara transformando a praça no centro urbano da vila donde par riam as principais ruas como seria a Rua de Évora, a de Lisboa ou a de Santarém. A primeira marca presença ao longo de todo o documento sendo que nela estaria, também, o Açougue municipal. Assim, na praça da vila, onde mais tarde se encontrava a majestosa Igreja matriz de Nossa Senhora da Graça que ruiu pelo terramoto de 23 de Abril de 1909, ficaria a velha Matriz que até aos fins do século XV se chamou Igreja de Santa Maria de Benavente. Para além da situação geográfica das casas da Câmara está patente no documento a descrição sica das mesmas. Como podemos verificar: «(…) são duas logeas cerradas, nesta se fazem as audiencias, e camara hé encaniçada: tem duas janellas de pedraria de peitoriis, e assentos, e o mais de Alvenaria: tem sua seda pera os officiaes, sobem a ella per

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hûa escada de boa pedraria de quatorze degraos, não tem mainel, fica esta escada por defora par ndo da banda do Norte com a praça. As duas logeas são repar das per parede de pedra e cal até o sobrado hûa antoutra: e a dianteira tem dous arcos sobre hûa columna de pedra lavrada: e os vãos dos arcos são cerrados de grades de madeira, tem seus poyais ao redor de pedra, e gello. Nesta logea se agasalhão aquelles, que de fora trazem mercadorias a vender à dita villa. He toda calçada de seixo meudo, e gello de peralto. Tem de comprido o chão destas tres logeas hûa antoutra quatorze varas de cinco palmos vara e de largo cinco varas, tamanha hûa como a outra e a decima sobradada he dop tamanho das duas logeas primeiras.» Em relação à mencionada Praça podemos verificar que defronte às casas da Câmara ficaria o pelourinho, símbolo do poder municipal. «Tem mais o dito concelho defronte da dita casa da camara hû Pelourinho(15) de muito boa pedraria lavrada, alto com seus ferros, e grimpa, e Cruz de Sam Bento com suas Pomas douradas, com cinco degraos a redonda da mesma pedraria.» Na estrutura municipal destacamos a existência do Açougue e respec vo talho na entrada da Rua de Évora. «Hûa casa do açougue tem o concelho na entrada da Rua de'uora a primeira da mão esquerda, hindo da Egreia pera o recio do chaveiro. Partem da banda do norte com casas, e quintal de Manuel preto tabellião e do sul com a dita Rua Deuora: e do Levante com quintaes, e casas de Manuel frade escrivão da Camara da dita villa, e do Ponente tambem com casas do sobredito Vaz tem de comprido em vão nove varas e tres quartas, e de largo também em vão cinco varas. He hûa só casa madeirada de quatro agoas cuberta de telha vaã: as paredes de Alliçeçes de pedra, e os altos de formigão. Tem hû repar mento com suas grades com sua escada de quatro degraos pera o talho. He muito bem fechada de boas portas, e fechadura.»

(15) O Pelourinho de Benavente foi apeado cerca de 1874, quando se procedeu à construção dos actuais Paços do Concelho. Estava erguido à esquerda dos an gos paços, aproximadamente onde assentam hoje os alicerces dos novos, à entrada da Rua da Amoreira. Erguendo-se primi vamente na Praça Velha, fronteiro à primeira casa da Câmara, presumimos que, quando se procedeu à construção da segunda casa da Câmara, não se colocou o pelourinho defronte da mesma para não obstruir a Praça Nova onde, desde os fins do século XVI, se corriam os touros. Deste Pelourinho existem hoje apenas os dois troços que formavam a sua coluna.

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Este elemento, perante a descrição patente no Tombo, serviria de matadouro “municipal” onde poderíamos encontrar também o talho. Assim, como podemos iden ficar junto do centro da vila, a existência de uma casa de quatro águas onde se efectuava a matança das rezes e de seguida se procedia à sua venda.

5.3. O « corro dos touros» «Tem o concelho hû chão dentro na dita villa corro dos touros, o qual está hindo da Egreia pera as casas de Alvaro Lucas, que estão sobre a ponte ficando o dito corro da mão dereita par ndo com celleiro novo, ou aliceces em que está o celleiro nouo da Ordem da banda do Poente: e do Levante parte com a frontaria toda das casas antre as quaes estão o forno, e casas de Lianor Diaz e do sul parte com a dita rua, que vai da egreia, e praça pera as casas de Alvaro Lucas, na qual rua, ou fronteria estão as casas de Gaspar Diaz, e Ruy Viegas e outras. E do Norte parte com casas de Gaspar Lourenço e com outras, pellas suas fronterias e serven as. Tem de comprido de Norte a sul sessenta e cinco varas: e de Levante a Ponente trinta e nove tem dentro en si hûa Amoreira grande. Tem dentro en si hûa amoreira grande.» O «corro dos Touros» era considerado neste período um chão dentro da vila pois, supõe-se que a povoação não se estendia para além da Ladeira da Ponte, depois designada de Calçada da Ponte Velha, e em toda a restante parte NO e N. apenas havia uma ou outra casa dispersa, azinhagas, vinhedos, cerrados e hortas ao correr da encosta, ficando, assim, a hermida de San ago completamente isolada da vila. Assim, considerando a ponte uma das entradas da vila este «corro» ficava numa posição estratégica para a recolha do gado que vinha das bandas de Salvaterra de Magos. Ainda paira na memória da população a condução de gado bravo pelas ruas da vila, situação que na maioria das vezes se dava durante a noite por mo vos de segurança. Junto ao local onde exis a a ponte de pedra permanece uns corros para o gado que é trabalhado na festa anual – Festa da Amizade.

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6. Os Subúrbios da vila: O Chaveiro(16) e o Arrabalde O Campo do Chaveiro e o Arrabalde ficavam no limite da vila. O Chaveiro era um campo valado, pertencente à Ordem de Avis, no qual havia oliveiras e zambujeiros. Este campo passou a pertencer ao concelho por contrato de troca celebrado em vereação a 8 de Março de 1514, entre o Mestre da Ordem, D. Jorge, e a Câmara, que deu pelo dito campo uma courela na várzea. «Este recio foi da ordem, e' por necessidade, que o Cº nha delle o Mestre Dom Jorge lho deu en escaimbo de hûa courella de terra na varzea, que par a com terra de Alvaro perdigão, e entesta da banda debaixo cô carril do Concelho, e da banda derriba com Estevão Dazambaninha: é a escriptura do escaimbo aneda no cartorio da camara, é o trelado della nos autos das diligencias, e' neste' liuro razão della.» Em 1561, já esse largo se chama Recio do Chaveiro, no seu centro, próximo de umas oliveiras, erguia-se uma cruz grande de pau e ao fundo, onde hoje vemos uma frontaria de casas, estava levantada a forca. «Estão en o meio delle' duas oliveiras, hûa Cruz grande de pao, e no cabo onze oliveiras, e' muitos Azambuleiros. Serve' este recio de logração, não se lavra, nem semea, no cabo delle'está a forca, levará de' semeadura Lª ou Lxª algr.» O Chaveiro era atravessado pela estrada de Montemor-o-Novo e já em 1531 havia uma «estrada publica do concelho que vem da forqua para o barceal»(17) (corresponde hoje aproximadamente á Avenida Dr. Francisco José Calheiros Lopes anteriormente designada de Avenida Esperança) No Tombo do Concelho de 1685(18) aparecem mencionado o Rocio de São Bento e a Travessa da Forca(19) a SE do Chaveiro. O nome deste rocio derivou da Ermida de São Bento que aí se encontrava. Esta foi destruída pelo terramoto de 23 de Abril de 1909. Por sua vez, o nome da Travessa da Forca indicará a sua proximidade com o local em que se encontraria a já referenciada forca.

(16) Actual Parque 25 de Abril. (17) Tombo da Igreja Matriz de Benavente (1544-1876), fl. 14 (18) Tombo do Concelho, 1685, fl. 36v. [Livro de Reconhecimento de Foros, Medições das Terras do Concelho e Inventário dos Bens Móveis que tem esta Câmara] (19) Ibidem, fl. 50

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Em meados do século XVIII já aí se nomeia a Rua da Paz(20), que também aparece sob os nomes de Rua da Senhora da Paz e Rua Nova da Paz. Estes nomes jus ficam-se pelo facto da ermida de São Bento ter adoptado a par r do século XVIII um novo orago, o da Nossa Sr.ª da Paz. Ainda em 1840, quase todas as Casas do Chaveiro eram foreiras à Câmara. O Arrabalde era, no século XVI, um pequeno bairro suburbano, ao longo do muro. Ainda em 1453 aí ficava a «vinha de traz do muro»(21), pelo que se infere que poucas habitações exis riam nesse local. No extremo Oeste do Arrabalde ficava o «Recio do Poço Novo», nome que derivou do poço que o concelho aí mandou fazer. «Tem o concelho mais outro recio com hû poço em si nouo, o qual está saindo da villa pera a Lezira dos caualos, e' ortas da Lezira. Parte' da banda do Nort.(e) com caminho que' vai antre o dito recio, e' o telhal chão do concelho. E' da banda do sul parte'com o rio velho, que'vái outrosi antre'este'recio e' a lezira dos cauallos. E' da banda do Leuante com chão de'Pedraluarez Baracha, e' da banda do Poente' entesta nas ortas do recio digo da Lezira, e' rio velho. Tem de largo de'Norte a sul ao longo da restada da orta do C.º que he' á derradeira, com a qual o mesmo recio entesta trinta varas, e' tem outras tantas ao longo da que'soya ser orta do dito Pedraluarez Baracho: e' medido de Leuante'a Poente'ao longo do caminho tem trinta e'cinco varas. Tem o dito Poco hû bocal alto de' pedraria, e huã pia grande de Pedra iunta asy,en q bebem as bestas, o qual poco se abrio ali á custa do C.º por falta que'auia de agoa na villa auia trinta ann.º ao tempo das diligencias deste thombo.» Nesse mesmo extremo ficava, também, o telhal do Arrabalde. «Hum chão tem o C.º [Concelho] Barrocal, pendurado sobre o caminho que vai ao longo das ortas da lezira dos cavallos, pello alto do qual vão em fio, e lanço de casas de Isabel Aº Fernão Varella, Matheus Fernandez e lagar de Diego Correa com as traseiras das quaes casas parte da banda do Norte e do Sul com o dito caminho e do Levante entesta no caminho que vai ao longo do telhal do Arrabalde pera o Poco novo, e do Poente parte com recio do moinho de vento. hé da compridão das ortas da Lezira que são trezentas e quinze varas mais tres ou quatro que as ortas da o C.º [Concelho] do dito chão algumas par culas pera ortaliça de Inverno assi como se concerta com as pessoas, e lhas ra, quando lhe praz.» Assim, são diversas as formas como surge referenciado, no Tombo, o Arrabalde(22): Telhal do Arrabalde, Rua do Arrabalde e Boca do Arrabalde. (20) Livro das Contas da Capela do Padre João de Pontes (1755), fl. 7. (21) Tombo da Igreja Matriz de Benavente (1544-1876), fl. 20 (22) A Rua do Arrabalde é designada actualmente por Rua Luís de Camões.

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Doc. 1 1200, 25 de Março Escrivão: João Domingues Carta de Foral da vila de Benavente (D. Sancho I confirmou a Carta de Foral de Benavente a 8 de Abril de 1238 da era César que corresponde a 25 de Março de 1200.) Livro dos Forais An gos, maço 12, nº3, fl 15, Arquivo Nacional Torre do Tombo

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Critérios de Transcrição Nas leituras duvidosas aparece [...?] Nas leituras não conseguidas aparece […] Todos os nomes próprios – de pessoas – cuja grafia era minúscula, transcreveram-se em minúsculas. Ao longo da transcrição manteve-se o texto de acordo com o original, ou seja, não se actualizou a linguagem con da nos textos.

PRIMEIRO FORAL DE BENAVENTE 25 de Março de 1200 da era Cristã

Em nome de Deus(23). Esta é carta de fôro que mandei fazer Eu Pelágio, por graça de deus mestre de Évora, juntamente com os meus freires(24) para vós povoadores de Benavente, tanto presentes como futuros. Concedemo-vos que tenhais o fôro de Coruche, convém a saber. Que duas partes dos cavaleiros(25) vão fora em fossado(26) e a terça parte permaneça no recinto da vila, e façam fossado uma vez no ano, e o que fôr no fossado pague cinco soldos(27) para a fossadeira(28).

(23) O Foral ou Carta de Foral é um documento escrito que estabelecia ou reconhecia um concelho em que se definiam os direitos e os deveres dos seus moradores. Este documento podia ser concedido ou pelo Rei ou por um Senhor. No caso específico da vila de Benavente este documento foi concedido por Pelágio, Mestre de Avis, no ano de 1200. O Foral de Benavente é semelhante ao de Coruche. (24) Cavaleiros professos de qualquer Ordem Militar. (25) Os cavaleiros eram no la m medieval designados pela denominação milites. Uns pertenciam à nobreza, pelo que se designavam cavaleiros filhos d'algo, ou fidalgos. Outros, não nobres, mas ainda assim com valiosos privilégios, cons tuíam a classe preeminente dos concelhos, e por isso se denominavam cavaleiros vilãos; é destes que aqui se trata. Em Benavente, sempre exis u uma rua designada de Rua dos Cavaleiros, das mais pequenas e recônditas da vila, junto ao núcleo histórico da vila e do centro religioso destruído pelo terramoto de 1909. (26) O fossado significa assalto, arreme da contra os muçulmanos, com carácter de guerra ofensiva e com o objec vo da pilhagem. (27) O soldo é a moeda an ga. Corresponde ao preço regular de um alqueire de pão. (28) A fossadeira era um tributo anual pago pelos cavaleiros vilãos quando não prestavam o serviço do fossado.

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E por homicídio pague cem soldos ao palácio(29). – E por casa arrombada com armas, com escudos e com espadas, pague trezentos soldos e a sé ma(30) para o palácio. E quem furto fizer pague por um nove, e o acusador tenha duas partes, e as outras sete partes o palácio. – E aquele que forçar mulher, e ela clamando disser que por ele está aforciada e ele negar, dê ela outorgamento(31) de três homens tais quais ele fôr: e ele jure com doze se ela poderá ter outorgamento, caso ele não queira êste outorgamento. E se ela não quizer (ou não ver) outorgamento de três homens, jure ele só e vá isento de calunia(32). E se não puder jurar, pague trezentos soldos e a sé ma para o palácio. – E a testemunha men rosa e o fiel men roso pague sessenta soldos e a sé ma para o palácio e dobre el haver. – E aquele que no Concelho(33), ou no mercado, ou na Igreja, ferir, pague sessenta soldos, metade para o palácio e metade para o Concelho: e da metade do Concelho a sé ma para o palácio. E homem que for gen l(34) ou herdador(35), não seja meirinho(36). – E aquele que na vila achar penhores(37) ou fiador e fôr ao monte penhorar, dobre os penhores(38) e pague sessenta soldos e a sé ma para o palácio. – E aquele que não fôr a sinal do juíz(39) e o penhor sacuda para o saião(40), pague um soldo para o juíz. – E aquele que não for ao apelido(41), exceptuados os que estejam em serviço alheio, sendo cavaleiro, pague dez soldos, e sendo peão, cinco soldos para os vizinhos(42). – E aquele que ver aldeia(43), e um jugo de bois, e quarenta ovelhas, e um jumento, e dois leitos(44), compre cavalo. E aquele que

(29) O fisco ou fazenda real. (30) Isto é, a sé ma parte da pena. (31) Testemunho abonatório. (32) Pena imposta a certa espécie de crimes; e ás vezes esse nome designava esses mesmos crimes. (33) O Concelho designa, neste caso, a junta da Câmara e homens–bons para fazerem ou deliberarem o que determinava o respec vo Foral. De

seguida está empregado no sen do de circunscrição territorial, cujos povos estavam sob a jurisdição dessa Junta. (34) O Gen l era o indivíduo que era nobre por nascimento. (35) Herdador é aqui o mesmo que “Cavaleiro Vilão”. (36) O meirinho era um o cio ínfimo, do como indecoroso. Os meirinhos eram meros executores, fazendo apenas o que lhes mandavam os

superiores. Corresponde, mais tarde, ao oficial de diligências. (37) Bens, objecto de penhora. (38) Aqui penhores significa o acto da penhora em si mesma. (39) “O mandado ou ordem dele (juiz) firmado de seu próprio punho ou sinal” Viterbo (40) O saião era o executor de jus ça, mas podia servir, igualmente, de carcereiro (41) Interpreta-se como o grito de alarme ou chamamento geral ás armas contra inimigos que invadem o concelho ou que acometem a povoação.

Este termo nha também, entre outras significações, a do corpo de gente armada que acudindo a esse grito, irrompia em defesa da sua terra. O apelido contrapõe-se ao fossado, este era agressivo, aquele era defensivo. (42) Os vizinhos eram os habitantes da povoação. (43) “Ter aldeia” significa ter Casa Rural. os (44) Do texto la no: “Et qui habuerit aldeam et unum iugum bouum, et XXXX oues, et unum asinum, et II lectos, comparet caballum.”

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quebrar o sinal(45) com sua mulher pague um soldo para o juíz. E a mulher que fugir a seu marido de benção(46) pague trezentos soldos e a sé ma para o palácio. E aquele que deixar sua mulher pague um dinheiro(47) para o juiz. – E aquele que cavalgar cavalo alheio por um dia pague um carneiro: e, se mais, pague as angueiras(48), por cada um dia seis dinheiros e por cada uma noite um soldo. – E aquele que ferir de lança ou de espada á entrada pague dez soldos: e se passar alem para outra parte, pague vinte soldos ao quereloso(49). – E aquele que britar(50) olho, ou braço, ou dente de outrém pague por cada um membro cem soldos ao lesado e dê a sé ma ao palácio. - Aquele que ferir mulher alheia ante seu marido pague trinta soldos ao quereloso e a sé ma ao palácio. - Aquele que mudar o moion(51) alheio para o seu ero(52) pague cinco soldos e a sé ma para o palácio. – Aquele que o linde(53) alheio quebrantar pague cinco soldos e a sé ma para o palácio. - Aquele que matar conducteiro(54) alheio pague a seu dono(55) o seu homicídio e dê a sé ma ao palácio: semelhantemente quanto ao seu hortelão, e ao seu quarteiro(56), e ao seu moleiro, e ao seu solarengo(57).

(45) Nesta disposição a palavra sinal significa a caução ou pacto nupcial, primi vamente chamado compra do corpo, e depois por carta de arrhas, caução pela qual o marido, em doação feita a sua mulher, lhe conferia a posse de certos bens, enquanto viva fosse e não passasse a segunda núpcias. (46) Bênção, do la m eclesiás co benedic o, -õnis, significa a acção de abençoar os fiéis. Neste caso a expressão é empregada no sen do de ser casado à face da Igreja. Do texto la no: “Et mulier qui (que) relinquerit maritum suum de benedic one pectet CCC solidos et VIIª ad palacium.” (47) O Dinheiro era moeda de cobre, antes de D. João I, 12 dinheiros valiam um soldo. (48) Palavra tomada do la m que significa serviço indevido, mormente de carregar, a que são compelidas pessoas ou bestas. (49) Queixoso, ofendido. (50) Do texto la no: “Et qui fregerit occulum aut brachium, aut dente (dentem) pró uno quoque membro pectet C solidos al lisiado et ille det VIIª ad palacium.” Traduzimos fregerit, por britar (51) Moion significando marco, baliza, ou sinal estabelecido para demarcar e dividir sem confusão as propriedades e terras. (52)Ero ou, como em outros forais se lê, hero, significa herdade, prédio rús co. (53)Linde designa o limite de um terreno e parece que também o terreno mesmo a dentro dos limites. Na tradução de 1404 a disposição em que está o termo linde foi assim traduzida: “Todo o homem que o limite alheo quebrantar entrando em el com bestas ou com gaados…” (54) Conducteiro, nome derivado de conducto, seria talvez o homemque nha a seu cargo cozinhar e levar as comidas onde fosse preciso. (55) O dono ou senhor da casa, considerado em relação aos seus serviçais, já nos séculos XII e XIII se denominava amo, como se vê nos forais de Évora, Terena, alcáçovas e outros, nos quais se encontra escrito amo no lugar onde no foral de Benavente se lê domino (dono). (56) Quarteiro era o colono cul vador de cereais, legumes, ou vinhas que contribuía ao senhorio com um quarto das respec vas produções. (57) Interpretamos solarengo como pessoa que, como serviçal ou lavrador, vivia na casa ou herdade de pessoa nobre.

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Os vassalos(58) que alguém ver em seu solar ou na sua herdade não sirvam a outro homem quanto a toda sua fazenda, senão ao senhor do solar(59).

Tendas(60), moinhos, e fornos sejam livres de fôro(61). Os cavaleiros de Benavente estejam em juízo como podestades(62) e infanções(63) de Portugal. Os clérigos porém tenham os costumes dos cavaleiros(64). – Os peões(65) estejam em juízo como os cavaleiros vilãos. – Aquele que vier vozeiro(66) a seu vizinho a favor de homem de fora da vila(67), pague dez soldos e a sé ma ao palácio. Ganado(68) de Benavente não seja

(58) Os vassalos são indivíduos que se colocavam na dependência de um Senhor, através de uma cerimónia e de um contrato pelo qual ambos passavam a ter direitos e deveres recíprocos. (59) Solar é a quinta, casal ou fazenda. Do texto la no: “Qui habuerit uassalos in suo solar, aut in sua hereditate nom seruiant ad alterum hominem de tota sua facienda nisi ad dominum de solar.” Traduzimos facienda por fazenda, palavra que ainda hoje significa prédio rús co, mormente daqueles que, como os de vinha, exigem mais acurado cul vo, sendo que, além desta palavra ser originária daquela, a referida acepção bem se coaduna com o objecto da disposição. Segundo Álvaro Rodrigues de Azevedo, o texto desta disposição no foral de Évora e no de Coruche condiz com o do foral de Benavente, salvo leves variantes no de Évora que não alteram o sen do. Porém, o mesmo texto no Foral de Castelo Branco e no de Terena diz serviat e não serviant, como está escrito naqueles três, variante que lhe inverte todo o sen do pois, neste caso, a tradução deverá ser: Aquele que ver vassalos em seu solar ou na sua herdade não sirva outro homem quanto a toda a sua fazenda, senão a senhor de solar. (60) Tenda é simultaneamente a oficina e a loja de negócio dos artefactos mais usuais, como por exemplo: tenda de sapateiro, tenda de ferreiro, etc. (61) Foro, na linguagem fiscal, era denominação genérica das contribuições em dinheiro ou em géneros que os povos dos concelhos pagavam. (62) Podestade significa pessoa inves da de poder ou de autoridade. Infanção designa pessoa de um alto grau de nobreza, imediatamente inferior aos ricos-homens. Os cavaleiros ocupavam o terceiro lugar na ordem hierárquica destes três graus de nobreza. (63) Ver nota 40. (64)Do texto la no: “Clerici uero habeant mores militum.”, isto é: os clérigos observem as praxes consuetudinárias dos cavaleiros. (65) Os Peões são os soldados medievais que guerreiam a pé. Cavaleiros e peões actuavam em conjunto. Na classe dos peões estava incluída toda a população cristã dos concelhos que não pertencia à classe dos cavaleiros vilãos e à clerezia. Cada concelho era como que uma miniatura do reino; nha nesses cavaleiros a aristocracia, nos tonsurados o seu clero, e nos peões o seu povo propriamente dito. Estes denominavam-se desta forma porque quer na paz quer na guerra não andavam a cavalo. (66) Vozeiro, como substan vo, significa a pessoa que tem a voz bastante forte, ou que fala com extraordinária força de voz. Na linguagem foralenga pode tomar acepções manifestamente diferentes daquela. Aqui supomos significar agressivamente clamoroso. Em outra disposição que nos surge mais à frente no texto ordena o foral que «o juiz seja vozeiro», aí o sen do da frase é segundo supomos: «o juiz seja diligente promotor». (67) «homem de fora da vila» entendia-se ser pessoa de fora do concelho. (68) Gado.

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montado(69) em nenhuma terra. E o homem ao qual se nafragar(70) o seu adestrado(71) posto que tenha outro, seja escusado até o cabo do ano. Mancebo(72) que matar homem de fora da vila e fugir, seu amo não pague o homicídio. – Em todas as rancuras(73) de palácio o juiz seja vozeiro. – Se alguem na vila penhorar com o saião, e o sacudirem, o saião que outorgue(74) o penhor e tome o concelho de três colações(75), e penhore por sessenta soldos, metade para o concelho e metade para o rancoroso(76). – (69) Onerado com tributo. (70) Nafragar ou anafragar significa «morrer ou por qualquer modo impossibilitar-se para servir».

Esta significação confirma-se: primeiro, pelos forais de Coimbra (1111) e Leiria (1142) que empregam respec vamente os verbos obire e perdere na mesma disposição, frase e lugar em que no foral de Évora, no de Coruche, no de Benavente, e em geral nos outros do po do de Évora se lê nafragare e anafragare; segundo, pela tradução do foral de Tomar (1262), feita no século XIV e pela de Benavente, feita em 1404 que verteram pelo verbo morrer as formas de nafragare e anafragare. Além das referidas formas ainda encontramos mais duas: no foral de Terena (1262) naufragare e no foral de Abrantes (1279) anufragare. Presumimos que nafragar, anafragar e anufragar sejam meras viciações do verbo naufragar, sendo este aplicado na disposição de que se trata a designar, por metáfora deduzida do navio que se perde ou afunda, o cavalo que morre ou que por qualquer mo vo fica inu lizado para o serviço. (71) Adestrado era um cavalo exercitado na guerra. Numa das disposições anteriores diz-se quais os homens obrigados a ter cavalo. Esses que o nham, e enquanto o nham, estavam na categoria de cavaleiros vilãos, com importantes privilégios, mas também com graves encargos, mormente o de fossado. Agora nesta disposição ins tui-se que no caso do cavalo morrer ou impossibilitar-se fica, então, o dono «escusado até ao cabo do ano», clausula esta cujo sen do está incompleto porque não diz no que consis a a escusa, a qual na tradução de 1404 se declara ser a da compra de «outro (cavalo) ataa ho año acabado». (72) O mancebo seria um escravo. Do texto la no: “Mancipium qui mactauerit hominem foras uille et fugerit suus amus non pectet homicidium.” Mancipium, em la m, entre outras significações nha a de escravo. Essa palavra, no la m dos nossos an gos forais, e mancebo, manceba na linguagem dos nossos velhos costumes e leis codificadas nas Ordenações Afonsinas, significam o homem ou mulher, moços ou não na idade, de baixa e pobre condição e por isso no caso de se sujeitarem ou serem constrangidos a, por soldada ou mesmo a bem fazer, se empregarem no serviço, mormente rural, de um senhor ou amo. Chamava-e-lhes, também, mancebos serviçais o que faz presumir haver outros que não serviam a amo ou senhor e tais seriam, como se pode inferir das Ordenações Afonsinas livro IV, t. XXVIIII, § 5, os «filhos e filhas em mentre morassem com seus padres e madres, e os servissem». A história dos mancebos serviçais desde o primeiro quartel so século XIII até ao decurso do século XV está documentalmente incluída nas Ordenações Afonsinas, liv. IV, t. XXV-XXXII o que se traduz num interessante episódio da nossa história social. Tudo o que dessas páginas consta: a generosa lei de D. Afonso II, proclamando «que qualquer homem, que for livre, per todo nosso regno filhe qualquer senhor que quizer», o que indica que até então não era assim; as reiteradas instâncias dos senhores e amos contra este santo principio, repe das até em cortes gerais não menos de seis vezes, e com tanto empenho feitas que conseguiram vitória quase completa no sen do e sob a invocação dos anteriores costumes opressores, alcançando mesmo a imposição do serviço forçado; a per naz relutância dos mancebos e de seus pais a um tal jugo, manifestada por todos os meios possíveis; tudo, em suma, que esses tulos do código afonsino dizem e revelam, junto com a denominação la na mancipium que os an gos forais davam aos mancebos serviçais, tudo isto põe em evidência a triste situação desses mancebos, muito análoga à dos chamados serviçais livres nas nossas colónias africanas. (73) Rancura era a queixa ou querela dada em juízo contra alguém. (74) Outorgar significa reconhecer ou dar como verdadeiro, confirmar ou comprovar. (75) Do texto la no: “Qui in uilla pignorauerit cum saione et sacudirent ei pignus outorget el saion et predat (prendat) concilium de tribus colla onibus et pignoret pró LX sólidos, médios ad concilium et médios ad rancoroso Barones de Benauente non sint in prestamo dados.” A frase «predat» ou «prendat concilium de tribus colla onibus», que se lê no texto la no do foral e que traduzimos “à letra”, como acima está, poderá ser ver da, sem forçar o sen do das palavras e com clareza suficiente, nos seguintes termos: proceda à reunião de três paroquianos. Concelho está na acepção de grupo ou reunião de pessoas, que o texto limita a três. Estas três pessoas eram chamadas não tanto para testemunhas quanto para auxiliares visto que só eram chamadas no caso de ter havido resistência à penhora. Colação, em direito canónico, é o provimento defini vo em um bene cio eclesiás co que significava freguesia, paróquia mas, no texto, supomos estar no sen do de paroquiano. (76) Queixoso.

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Barões(77) de Benavente não sejam em prestamo(78) dados. – E se homens de Benavente verem contenda judicial com homens doutra terra, não corra entre eles exquisa ou reto(79). – E dos homens que quizerem pousar com seu ganado em vossos termos, os habitantes de Benavente recebam montadigo(80): de rebanho de ovelhas, quatro carneiros, e de busto de vacas, uma vaca. Este montadigo é do concelho. – E todos os cavaleiros que em fossado ou em guarda(81) forem, de todos os cavalos que se perderem em algára(82) ou em lide(83), os primeiros sejam tomados sem quinta(84), mas dos depois nos deis a quinta direita. – E todos os homens de Benavente que acharem homens doutras cidades(85) nos seus termos talhando ou levando madeira dos montes prendam tudo que acharem, sem calunia. – De azarias e de guardias deem-nos a quinta parte, sem ofreçom(86). (77)A expressão “Barões” designa, nesta disposição, os homens de condição não servil. (78) A velha linguagem foralenga deu o nome de prestamo não só à pensão ou consignação real ou aparentemente remuneratória de serviços ou

encargos permanentes, imposta nos rendimentos de bens territoriais ou de outras proveniências, senão também a esses mesmos bens e demais fontes oneradas com pensões ou consignações tais, chegando até os próprios tributos concelhios a serem conver dos em prestamos. Mas, segundo Álvaro Rodrigues d'Azevedo, nem uma nem outra destas acepções pode ser empregada na disposição a que esta nota respeita, porque aí não se trata de prestamo dado em favor de alguém , porém sim se determina que os barões de Benavente não sejam dados em prestamo. Presuminmos, portanto, que neste caso a palavra prestamo, acostando-se mais ao sen do próprio, significa serviço, serviço militar sem duvida e extraordinário, além daquele a que o foral obrigava. A tradução de 1404 verte esta disposição pelas palavras seguintes: «Nenhuns de Benavente paguem ninhuns pedidos». Nestes termos verifica-se que o tradutor tomou a designação «barões» pela totalidade dos contribuintes, e a indicação «prestamo» pela espécie de tributo ou finta eventual que era lançada por cabeça e, embora obrigatória, denominavam pedido ou pedida. (79) Exquisa significa inquirição, inves gação, exame. Quanto à palavra reto, que em alguns forais assim vem escrita, lendo-se noutros recto e em outros repto, varia a interpretação, porque com p significa desafiar alguém em duelo; com c tomado adverbialmente significa conforme direito; e sem p nem c pode ter uma ou outra das referidas acepções, que o contexto da frase onde esteja nem sempre indicará. E cert é que na tradução do foral de Benavente, de 1404, foi ver do com o significado de duelo e na an ga versão do foral d'Avis com o significado de direito. Cremos assim, que esteja escrito repto, recto ou reto o verdadeiro sen do será o de recto. (80) Montadego, montadigo ou monta co é um imposto que se pagava a certos senhorios para os gados pastarem nos seus montados. Os montados era uma região povoada de sobreiros e azinheiros, onde pastam porcos. (81) Guarda ou guardia era o troço ou as patrulhas de cavaleiros para observar ou vigiar o inimigo, se não fosse a vanguarda do fossado mesmo. (82) Algára era a correria repen a contra o inimigo: o recontro, a peleja ou combate de pouca monta. (83) Lide era a batalha, o combate importante. (84) Quinta, era a quinta parte que da presa feita aos inimigos pertencia ao rei ou ao senhor que deu o foral; sem quinta indicava a isenção deste ónus; quinta direita, a integral sa sfação dele. No foral que, em Junho de 1111, o Conde D. Henrique deu a Soure foi estatuído que «De preda de fossato non de s nobis plusquam Vam partem» (De presa de fossado não nos deis mais que a quinta parte); e este texto esclarece não só o fecho senão também o todo da disposição a que damos esta nota, pois que lida a mesma disposição à luz dele, reconhece-se ter ela por objecto a par lha de cavalos perdidos pelo inimigo ou a este apreendidos. Do texto la no: “Et omnes milites qui fuerint in fossado uel in guarda (gardia), omnes caballos qui se perdiderint in algara uel milite (sic) primitus sint erec sine quinta et postea nobis de s quintam directam.” Assim, segundo Álvaro Rodrigues d'Azevedo, no texto la no da disposição há duas correcções a fazer: 1.ª- Acrescentar imediatamente antes das palavras «omnes caballos» a preposição de; 2.ª- Subs tuir a palavra «milite», que na perspec va do autor é um erro de cópia, pela locução in lite ou in lide. (85) O mesmo que vilas. (86) Trata-se da contribuição ou paga da quinta parte da presa feita em azarias ou em guardias. As palavras «sem ofreçom», isto é, sem mais encargos a tulo de oferta ou de dádiva, deixam suspeitar que, com efeito a azaria nha por objecto quaisquer produtos do solo, valiosos e cobiçados.

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Quem fizer penhorar ou arrebatar ganado domés co pague sessenta soldos para o palácio e dê em dobro o ganado a seu dono. – Testamos em verdade e para sempre firmamos que quem penhorar mercadores ou viandantes cristãos, judeus ou mouros, excepto se forem fiador ou devedor, esse que tal fizer pague sessenta soldos para o palácio e dê em dobro o ganado que haja sido tomado a seu dono(87): e alem disto pague cem morabi nos(88) por o couto(89) que transgride: o Rei tenha metade e o concelho metade. – Se alguém a vossa vila vier por força tomar comeres ou alguma cousa, e aí for morto ou espancado, nem por isso aquele que o haja trazido, ou o haja espancado, ou o haja morto pague alguma calúnia, nem seja homicida dos parentes dele(90): e, se alguém vier com queixa disto ao Rei ou ao senhor da terra, pague cem morabi nos, metade ao palácio e metade ao concelho. – Mandamos e concedemos que se alguém houver sido ladrão e já por um ano ou dois deixou de furtar ou roubar, e se por alguma cousa que cometeu for de novo acusado, se salve como ladrão: e, se ladrão (87) A úl ma parte deste foral, in tulada “De portagem”, a qual é comum a muitos forais, se infere que o trato mercan l de terra em terra era frequente e importante. Portanto, os mercados seriam igualmente importantes e frequentes. Era este comércio ambulante que então abastecia as povoações do interior: dele provieram as feiras anuais, desde os reinados de Afonso III e D. Dinis. Por isso e por outros mo vos de interesse económico, os mercadores desde cansa vo e arriscado tráfico eram especialmente protegidos em não poucos dos an gos forais, do que dá prova, também, o de Benavente nesta e numa anterior disposição. Da austeridade e penalidades que aí se notam, a bem dos mercadores e viandantes, ressalta o grande apreço então dado a esta ac vidade. E, certamente que, este grupo de providências proveio não tanto da tolerância religiosa quanto de interesses posi vos. No foral de Évora e em outros do mesmo po está, como no de Benavente, a conjunção vel (ou) entre as palavras mercatores (mercadores) e viatores (viandantes), fazendo-as indicar duas en dades diferentes. Porém, na tradução de 1404 não aparece essa conjunção e diz-se, em manifesta referência a uma en dade única, mercadores caminhantes, provavelmente no sen do de mercadores ambulantes, mercadores estranhos à localidade onde vinham negociar. No texto dos mencionados forais, a palavra viandantes sem dúvida significa pessoas forasteiras que, sem serem mercadores, concorriam a negociar no mercado da vila. Poderíamos, aqui, estar na presença de pequenos agricultores que, tendo produção em demasia para consumo domés co se deslocavam ao mercado para dela re rarem outros proventos. A palavra ganato (ganado) de certo que nesta disposição não significa apenas o gado ou bestas que os mercadores ou os viandantes vessem consigo senão também quaisquer mercadorias ou outros valores que consigo levassem. Este significado amplo conforma-se com o sen do primário da palavra ganado (adjec vo verbal que significa adquirido, ganhado). Se o proteccionismo concedido aos mercadores e viandantes fosse restrito ao gado ou bestas, e não respec vo também aos objectos de seus negócios, esse favor redundaria em pura burla porque deixava aqueles expostos a graves extorsões e perdas nos géneros de seus próprios tráficos. (88) O morabi no era moeda de ouro ou prata. O de prata valia quinze soldos e são os mais vulgares. Seguramente, é a morabi nos de prata que esta disposição se refere porque, como já foi referido, estes deviam ser os mais vulgares e deveria ser por esta espécie de moeda que ordinariamente se faziam os contratos. (89) Couto designa aqui, não qualquer dos lugares privilegiados outrora chamados couto, mas sim a «defeza» (como diz a tradução de 1404), isto é, proibição, acima feita de «penhorar mercadores e viandantes», proibição que, para estas gentes de negócio, era preciso couto ou caução ao seu tráfico. Era seguramente com disposições análogas a esta que D. Dinis mandava «coutar» as suas feiras, como ele disse na carta de 6 de Julho de 1290, pela qual ins tuiu um mercado no castelo de Lamego. (90) Ser ou ficar homicida dos parentes da ví ma significava, nos an gos forais, ser ou ficar o criminoso sujeito á vindicta sanguinolenta da família da ví ma. Esta vindicta (do la m vindicta), que significa punição, cas go, nha lugar nos casos de homicídio aleivoso e traiçoeiro, de rauso ou rousso, isto é, de rapto ou estupro violentos, e em outros de menor monta considerados como ofensivos da honra das famílias. D. Afonso IV, em duas leis, uma de 16 de Março de 1326 e outra de 11 de Abril de 1347, transcritas nas Ordenações Afonsinas, liv. V, t. LIII, proibiu sob severa penalidade tais vindictas.

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é e ladrão foi, morra e sofra a pena de ladrão. – E se alguém fôr acusado por furto, e não é nem foi ladrão, responda conforme seus foros. – Se algum homem raptar filha alheia contra sua vontade, entregue-a a seus parentes e pague trezentos morabi nos e a sé ma para o palácio; e, além disso, seja homicida dos seus parentes. De Portagem(91) – Fôro(92) de troxel(93) de cavalo, de panos de lã ou de linho, um soldo. – De troxel de fustões, cinco soldos. – De troxel de panos de côr, cinco soldos. – De carga de pescado, um soldo. – De carga de jumento, seis dinheiros. – De carga de conelios de cristãos, cinco soldos. – De carga de conelios de mouros, um morabi no. – Portagem de cavalo que venderem no fôro(94), um soldo. – De mulo, um soldo. – De jumento, seis dinheiros. – De boi seis dinheiros. – De carneiro, três mealhas(95). – De porco, dois dinheiros. – De furão, dois dinheiros. – De carga de pão e de vinho, três mealhas. – De carga de peão, um dinheiro. – De mouro que venderem no mercado, um soldo. – De mouro que se remir, a décima. – De mouro que talha(96) com seu dono, a décima. – De couro de vaca e de zebra, dois dinheiros. – De couro de cervo e de gamo, três mealhas. – De carga de cera, cinco soldos. – De carga de azeite, cinco soldos. – Esta portagem é dos homens de fora da vila(97). E de toda esta portagem a terça parte seja do hospedeiro(98) e duas partes para o palácio.

(91) Portagem ou portadigo era o imposto ou direito fiscal que, às portas ou entradas das cidades, vilas, julgados ou coutos, que nham jurisdições sobre si, se pagava das mercadorias e de tudo mais para aí trazido a vender. Só em caso excepcional, como veremos, a portagem se regulava pela importância ou preço da transacção. (92) Foro, isto é, imposição ou paga prestatuida. (93)”Troxel de cavalo” significa a carga ou fardo do cavalo. (94)Fôro significa, nesta situação, a praça, o rocio ou lugar espaçoso onde era o mercado ou feira. (95) A mealha era metade de um dinheiro par do com faca ou outro instrumento. Por ser metade se diz mealha. (96) Talhar, além de outras significações, alguma das quais conserva, significava, como no presente caso, ajustar, fazer avença com alguém. Inferese do texto, que o mouro, mediante o encargo da avença com o dono, se libertava do ca veiro até certo ponto (97) Do texto la no: “Iste portagem est de hominibus foris uille.” Portanto, os vizinhos do concelho eram isentos de pagar portagem. Esta isenção não compreendia os moradores quer judeus, quer mouros, os quais também não eram dos por vizinhos do lugar onde residiam, como se mostra nas Ordenações Afonsinas, liv. II, t. LVIIII e CVIII. (98) Este hospedeiro seguramente não era qualquer en dade par cular que desse hospedagem aos forasteiros que vinham vender mercadorias. A um mero par cular não seria consignada a terça parte de um imposto e tão umportante como o das portagens. É, pois, de presumir que o hospedeiro fosse já o senhor da terra, já outro nobre senhor, já mesmo o concelho a cujo mercado essa gente de negócio concorria. Como diz o Tombo do Concelho de Benavente, na «logea dianteira (do paço do concelho) se agasalhão aqueles que de fora trazem mercadorias a vender à dita vila». E destas palavras se infere que, atento o aposento onde era dada a hospedagem em Benavente, o hospedeiro aqui seria ou a Ordem de Avis, da qual o território do concelho era senhorio, ou o próprio concelho. Mas fosse quem fosse o hospedeiro, este por si ou seus agentes, zelaria, a bem de seu especial interesse, a cobrança das portagens em geral e, talvez por isso, é en dade que aparece, senão em todos, em muitos dos forais do po do de Évora.

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Eu Sancho, por graça de Deus Rei de Portugal, juntamente com meu filho o Rei Dom Afonso e com meus outros filhos e filhas, esta carta roboro e confirmo. Foi feita esta carta em Coimbra ao oitavo dia das calendas de Abril da era de 1238(99). – Foram presentes: Mar nho, Arcebispo de Braga, conf.(100) – Mar nho, bispo do Porto, conf. – Pedro, bispo de Lamego, conf. – Nicolau, bispo de Vizeu, conf. – Pelagio, bispo de Évora, conf. – Sueiro, bispo de Lisboa, conf. – Pedro Gomez, test.(101) – Egas Petriz, test. – Gonçalo Mendes, Mordomo da Cúria(102), cont. – Pelagio Muniz, Signifero do Rei(103), conf. – João Fernandes, Dapifero do Rei(104), conf. – Mar nho Fernandes, conf. – Raimundo de Pelagio, conf. – Pedro Muniz, test. – Fernando Muniz, test. – Rodrigo Petriz, test. – Juliano, notário da cúria. Eu Afonso segundo, por graça de Deus Rei de Portugal, juntamente com minha mulher a Rainha Dona Urraca e com nossos filhos os infantes D. Sancho e Dom Afonso e Dona Leonor, a carta supra escrita e o foral, que o supra nomeado Mestre deu e concedeu aos habitadores de Benavente, roboro e confirmo por esta carta que mandei fazer e asselar com o meu selo de chumbo: a qual foi feita em Santarém ao quinto dia de Fevereiro da era de 1256(105). – Nós supra nomeados, que esta carta mandámos fazer na presença dos abaixo assinados, a roboramos e nela fizemos estes sinais. +++++(106). – Foram presentes: Dom Estêvão, Arcebispo de Braga, conf. – Dom Mar nho, bispo do Porto, conf. – D. Pedro, bispo de Coimbra, conf. – Dom Sueiro, bispo de Lisboa, conf. – Dom Sueiro, bispo de Évora, conf. – Dom Pelagio, bispo de Lamego, conf. – Dom Bartolomeu, bispo de Vizeu, conf. – Dom Mar nho, bispo de Idanha, conf. – Dom Mar nho Anes, Signifero do Senhor Rei, conf. – Dom Pedro Anes, Mordomo da Cúria, conf. – Dom Lourenço Suares, conf. – Dom Gil Valasques, conf. – Dom João Fernandes,conf. – Dom Gomes Suares, conf. – Dom Rodrigo Mendes, conf. – Dom Poncio Afonso, conf. – Dom Lopo Afonso, conf. – Mestre

(99) D. Sancho I confirmou a Carta de Foral de Benavente a de Abril de 1238 da era César que corresponde a 25 de Março de 1200. (100) Conf. É a abreviatura de confirmo ou confirma. (101) Test. É a abreviatura de testemunha. (102) Mordomo da Cúria era o an go mordomo da corte, subsequentemente chamado Mordomo-mor da Casa del-Rei, alto cargo este de que

tratam as ordenações Afonsinas, liv. I, t. LVII. (103) Signifero do Rei era o Alferes-mor d'el Rei, dando-se-lhe a denominação de signifero, que no la m significa o porta-bandeira ou insígnia

militar, porque era o alferes-mor quem no exército levava o estandarte real. Nas referidas Ordenações, liv. I, t. LVI, trata-se deste elevado posto da an ga milícia. (104) Dapifero significa a pessoa que tem a seu cargo trazer ou ministrar as iguarias. Dapifero do rei ou Dapifero da Coroa deveria, pois, ser um cargo pala no análogo ao depois chamado Vedor ou Veador da Casa Real, cargo este mencionado nas Ordenações Afonsinas liv. I, t. LVII, §1. (105) Este ano da era de César corresponde ao de 1218 da era de Cristo. (106) O sinal de Cruz, raso ou ornamentado, era a forma corrente de assinar, nesses velhos tempos.

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Pelagio, Chantre do Porto(107), test. – Pedro Gacez, test. – Joanino, test. – Vicente Mendes, test. – Pedro Petriz, test. – Mendo Petriz, test. – Gonçalo Mendes, Chanceler da Cúria(108). – João Domingues, escreveu.

FORAL NOVO DE BENAVENTE 1516 Foral da uilla de benauente dado pollo Mestre dauys Dom Manoel er Graça de Deos Rei de Portugal e dos Algarves daquem e dalém maar em Africa Senhor da Guine e da Conquista, Navegação e Comercio da Ethiopia Arábia Pérsia e da Índia. A quantos esta nossa Carta de Foral dado á Villa de Benavente virem fazemos saber que per bem das diligencias e isames que em nossos Reinos e Senhorios mandamos geralmente fazer pêra jus ficaçam e decraraçam dos Foraes delles e per algumas Sentenças e Determinações que com as do nosso Conselho e Leterados fazemos Acordamos que as rendas e direitos se devem hy darecadar na forma seguinte. Mostrasse pello dito foral ser dado polla forma do foral da nossa cidade deuora polla qual nam foram Impostos nynhuns trebutos nem foros da terra. E por tanto se nam pagaram nem levaram hy agora nem em nynhum tempo.

(107) Chantre do Porto, isto é, da Sé da diocese do Porto. Chantre é a designação eclesiás ca que superintende ao coro nas catedrais. (108) Chanceler da Cúria era o chanceler da corte, depois chamado chanceler-mor, ao qual D. Afonso V deu o regimento constante nas Ordenações

Afonsinas liv. I, t. II. Este regimento começa dizendo: «O chanceller he o segundo Officio da Nossa Casa daquelles que teem Officio de Puridade (isto é, de segredo, ou como agora dizemos, de ín ma confianaça) ca (porque) bem assi como o Capellam he medianeiro antre Deos e Nós em feito de Nossa alma, bem assi ho he o Chanceller antre Nós e os homens quanto he em cousas temporaaes». Estas palavras mostram bem qual a natureza e importância deste alto cargo pala no.

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Doc. 2 1516, 16 de Janeiro . Lisboa – Escrivão: Fernam de Pina Foral Novo da vila de Benavente dado por D. Manuel Livro dos Forais Novos de D. Manuel Entre Tejo e Odiana, fls. 87 v.º - Arquivo Nacional Torre do Tombo

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E pagar sse a do pescado duas dizimas .s. huma dizima da ordem e a outra dizima a nos que per bem do contracto dos pescadores nos he deuyda nam se pagara mais em nynhum outro lugar delles. E será dado comduto aos pescadores quando vierem com seus pescados de que nam pagaram dizima per Jujzo dos ofiiciaaes Nem a pagarã do que tomarem com anzollo ou a linha ou a maão ou em nassa ou couão(109) pêra comer. Saluo se forem pescadores cadimos(110) por que estes taaes pagaram a dizima velha soomente e nam a noua dos pescados que na dita maneira matarem E sse hy vierem a vender per agoa pagaram de quorenta hum E sse sayr per agoa ou vier ou sayr per terra hum real por carga mayor. E dizima das sentenças senam leuara hy em njnhum tempo porque assy foy determinado per nos Jeralmente com nossos leterados em Rollaçam. E pagara cada um dos três tabelliaes que hy há dauer por anno trezentos e sessenta e seis Reis. Dos montados vsara ho concelho com seus comarcaaos como elles com elles vsarem por suas posturas E aos que entrarem sem vezin amça ou licença leuaram de cabeça de gaado vacum oyto Reaes E do porco quatro no tempo da montanheira(111) E no outro tempo leuaram hum Real como qual quer cabeça de gado meudo. Os manynhos seram dados pollo almoxeriffe da ordem guardando sse Inteiramente a llei das sesmarias nã prejudicando aos vezinhos Os quaaes manynhos se daram sem nynhum foro nem trebuto mas liuremente ficaram com as pessoas a que se assy derem ordenadamente. E do uynho de que se leuaua de cada pipa hum almude nam se leuara mais porque nam ouue fundamento para se leuar E leuaram por hum almude nam se leuara mais porque nam ouue fundamento para se leuar E leuaram por Respeito das cargas Segundo adiante vay decrarado. E leuara mais o alcayde por açougagem(112) os pees dos porcos e nam outra cousa. E da pena darma se leuaram duzentos Reaaes e as armas soomente e nem os duzentos e quorenta e sete Reaaes que se mais agora leuauam Os quaees duzentos Reaaes e armas se leuaram com estas decrarações .s. que as ditas penas se nam leuaram quando a punharem espada ou qualquer outra arma sem a rar Nem pagarã a dita pena aquellas pessoas que sem preposito e em Reixa noua tomarem paao

(109) Covão, espécie de cesto comprido, feito de vimes, para pescar. (110) Cadimos, habituais. (111) Montanheira, a ceva de bolota que o gado suíno pasta nos montados. (112) Açougagem, direito que se pagava pela matança do gado.

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ou pedra posto que cõ ella fação mal. E posto que de preposito tomem a dita paao ou pedra se nõ fizer mal cõ elle não pagara a dita pena Nem a pagara moço de xb anos para baixo nem molher de qualquer hydade Nem pagarã a dita pena aquellas pessoas que cas gando sua molher e filhos e escrauos e criados rarem sangue nem pagara a dita pena quem jugando punhadas sem armas rar sangue com bofetada ou punhada E as ditas penas e cada huma dellas nã pagaram ysso mesmo quaaesquer pessoas que em defendimento de seu corpo ou por apartar e estremar outras pessoas em arruydo rarem armas posto que cõ ellas rem sangue Nem escrauo de qualquer hydade que cõ paao ou pedra rar sangue. O gaado(113) do uento será do comendador quando se perder segundo nossa ordenaçã com decraraçam que a pessoa a cuja maão for teer o dito gaado ho venha escreuer a dez dias primeiros segujntes so pena de lhe ser demandado de furto. Decraramos primeiramente que a portajem que se ouuer de pagar na dita villa a de seer per homens de fora della que hy trouxerem cousas de fora hy a uender ou as comprem hy e as rem pera fora da dita villa e termo A qual portajem se pagara desta maneira .s. De todo trigo çenteo ceuada mylho pajnço auea e farinha de cada hum delles E assy de cal ou de Sal ou de vynho ou vynagra e Linhaça E de qualquer fruyta verde emtrando melloães ortalliça e assy pescado ou marisquo se pagara por carga maior .s. cauallar ou muar de cada huma das ditas cousas hum Real de seis cei js o Real E por costal que hum homem poderá trazer as costas dous cei js e dy pera baixo em qual quer can dade em que se venderem se pagara hum cei l E outro tanto se pagara quando se rar pêra fora Porem quem das ditas cousas ou de cada huma dellas comprar e rar pêra fora pêra seu vso e nam pêra vender cousa que nã chegue a meo Real de portajem segundo os sobreditos preços dessa tal nam pagara portajem nem ho fara saber. E posto que mais se nam decrare adiante neste foral a carga mayor nem menor decraramos que sempre a primeira adiçam e assemto de cada huma das ditas cousas he de besta mayor sem mais se decrarar .s. pollo preço que nessa primeira será posto s entenda logo sem sse hy mais decrarar que o meo preço dessa carga será de besta menor E o quarto do dito preço per com sseguynte será do dito costal E quando as ditas cousas ou outras vierem ou forem em Carros ou Carretas pagar sse a por cada huma dellas duas cargas mayores segundo o preço de que forem E quando cada huma das cargas deste foral se nam venderem todas começando sse a vender pagar sse a dellas soldo a liura segundo venderem e nam do que ficou por vender.

(113) Gado de vento, abandonado, sem dono.

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A qual portajem se nam pagara de todo pam cozido queyjadas Bizcoyto ffarellos nem douos nem de leite nem de cousas delle que seiam sem sal Nem de prata laurada Nem de vides nem de canas nem de quarqueija Tojo Palha Vassoyras, Nem de pedra nem de barro nem de lenha nem derua Nem das cousas que se comprarem da vylla pêra o termo nem do termo pera a villa posto que seiam pera vender assy vezynhos como estrangeiros(114) nem das cousas que se trouxerem ou leuarem pera alguma armada nossa ou feita per nosso mandado. Nem dos man mentos que os camynhamtes comprarem e leuarem pera sy e pera suas bestas Nem dos gaados que vierem pastar e alguns lugares pasando nem estando saluo daquelles que hy soomente venderem Dos quaaes emtam pagarã pollas leis e preços deste foral E decraramos que das ditas cousas de que assy mandamos que se nom pague portajem se nom há de fazer saber. A qual portajem ysso mesmo se nom pagara de casa moujda(115) assy hyndo como vyndo nem outro nynhum direito per qual quer nome que o possam chamar saluo se com a dita casa mouida leuarem cousas pera vender por que das cousas pagaram portajem omde soomente as ouuerem de vender segundo as comthias neste foral vam decraradas e nam doutra maneira. Nem se pagara de nynhumas mercadorias que a dita villa vierem ou forem de passajem pêra outra parte assy de noyte como de dia e a quaaes quer oras Nem seram obrigados de o fazerem saber nem emcorreram por ysso em nynhuma pena posto que hy descarreguem e pousdem E sse hy mais ouuerem destar que ho outro dia todo por alguma causa emtam o farama saber dy por diante posto que nam ajam de uender. Nem pagaram a dita portajem os que leuarem os fruytos de seus bens mouees ou de Rays ou leuarem as Rendas e fruytos de quaaes quer outros beens que trouxerem da Rendamento ou de Rende Nem das cousas que algumas pessoas forem dadas em pagamento de suas tenças Casamentos Merçees Ou man mentos posto que as leuem pêra vender. E pagar sse a mais de cada cabeça de gaado vacum assy grande como pequeno hum Real E de porco meo Real E de carneyro e de todo outro gaado meudo dous cei s E de besta cauallar ou muar dous Reaes E da besta Asnal hum Real. E do escrauo ou escraua ajnda que seja parida seis Reaaes e se sse forrar dará o dizimo da vallia de sua alfforya porque se Resgatou ou forrou. E pagar sse a mais de carga mayor de todollos panos de Laã lynho e Seda e algodam de qual quer sorte que seiam assy delgados como grossos E assy da carga de lãa ou lynho fyados oyto Reaaes E sse a lã ou linho forem em cabello pagaram quatro Reaaes por carga.

(114) Indivíduos de fora do concelho. (115) Casa mudada.

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E os ditos oyto Reaaes se pagaram de toda a coyrama cor da E assy do calçado e de todollas obras delle. E outro tanto da carga dos coyros cavarys cor dos e por cor r E E por qual quer coyro da dita coyrama dous ceitjs que se nom comtar em carga. E outros oyto Reaaes por carga mayor dazeite Cera Mel Seuo Vmto Queijos sequos Mãteiga salgada Pez Rezyna breu Sabam Alcatram. E outro tanto por pelles de coelhos ou cordeiros E de qual quer outra pellitaria e forros. E da dita maneira doyto Reaaes e carga mayor se leuara e pagara por todallas marcarias e especiarias Bo quaryas e tynturas E assy por todallas suas semelhantes. E outro tanto se pagara por toda carga daço Estanho e por todollos outros metaaes e obras de cada hum delles de qual quer sorte que seiam. E do ferro em barra ou em maçuquo(116) de qual quer obra delle grossa se pagaram quatro Reaaes por carga mayor E se for lymada estanhada ou emvernyzada pagaraoyto Reaaes como as outras dos metaaes de cima E quem das ditas cousas ou de cada huma dellas comprar e leuar para seu huso e nam pera vender nam pagara portajem nam passando de costal de que se ajam de pagar dous Reaaes de portajem que há de seer de duas a Rouas e mea leuando a carga mayor deste foral em dez a Rouas E a menor em çinquo E o costal per este Respeito nas ditas duas a Rouas e mea. E pagar sse a mais por carga mayor destas outras cousas a três Reaaes por carga mayor de toda fruyta seca .s. Castanhas e nozes verdes e secas e dameixias passadas Amendoas pinhões por britar auellãas bolletas mostarda Len lhas e de todollos outros legumes secos E das outras cargas a esse Respeito e assy de çebollas secas e alhos por que as verdes pagaram com a fruyta verde hum Real E a casqua e Çumagre(117) pagaram os tres Reaaes como estoutros de cima. E por carga mayor de qual quer telha ou jollo e outra obra e louça de barro aynda que Seia vidrada e do Regno e de fora delle se pagaram os ditos tres Reaaes. E os outros tres Reaaes por carga de todollas arcas e de toda louça e obra de paao laurado e por laurar e outro tanto por todallas cousas feitas desparto Palma ou Junquo Assy grossas como delgadas e assy de tábua ou de funcho. E as outras cousas contheudas no foral an go sam escusadas aquy por que dalgumas dellas nam há memoria que vsem nem leuem e as outras sam sopridas por leis e ordenaçõoes de nossos Regnos. E os que trouxerem mercadorias pera vender se no próprio lugar omde quyserem vender ouuer Rendeiro da portajem ou oficial della far lho am saber ou as leuaram a praça ou açougue do dito lugar ou nos Ressyos e saydas delle qual mais quyserem sem nynhuma pena E sse hy nõ ouuer Rendeiro nem praça

(116) Massuca, ferro ainda não purificado. (117) Sumagre, planta com cujas folhas e casca se curtem coiros.

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descarregaram liuremente omde quyserem sem nynhuma pena comtanto que nã venda sem o noteficarem ao Requeredor(118) se o hy ouuer ou ao Juiz ou vytaneyro(119) se hy se poder achar E se nynhuns delles ouuer nem se poder emtam achar notefiquem no a duas tes nunhas ou a huma se hy mais nom ouuer E a cada hum delles pagaram o dito direito de portajem que por este foral mandamos pagar sem nynhuma mais cautella nem pena. E nam ho fazendo assy descamynharam e perderam as mercadorias soomente de que assy nam pagarem o dito direito da portajem e nam outras nynhumas nem as bestas nem carros nem as outras cousas em que as leuarem ou acharem E posto que hy aja Rendeiro no tal lugar Ou Praça se chegarem porem despois do sol posto nã no fará saber mas descarregaram homde quyzerem comtanto que ao dia atee meo dia o no fiquem aos officiaaes da dita portajem primeiro que vendam soo a dita pena. E se nõ ouuerem de vender e forem de camjnho nam será obrigados a nynhumas das ditas Recadaçoões segundo que na tollo da passajem fica decrarado. E os que comprarem cousas pera rar pera fora de que se deua de pagar portajem podellas am de comprar liuremente sem nynhuma obrigaçam nem dilligençia. E ssomente ante que as rem pera fora de tal lugar e termo a Recadaram com os ofiiçiaes a que pertencer soo a dita pena de descamynhado E os priuylligiados da dita portajem posto que a nom ajam de pagar nem seram escusos destas dilligençias destes dois capitollos atrás das entradas e saydas como dito he soo a dita pena. As pessoas eclesyas cas de todollos moesteiros assy domens como de molheres que fazem voto de profissam E os clérigos dordens sacras e assy os beneficiados dordens menores posto que as nõ tenham que viuem como clérigos e por taaes sam auydos todollos sobre ditos sam ysentos e pryvyllygiados de pagarem nynhuma portajem vsajem nem costumajem per qualquer nome que a possam chamar assy das cousas que venderem de seus bens e bene cios como das que comprarem trouxerem ou leuarem pera seus vsos ou de seus bene cios e casas e famylliares de qual quer quallidade que seiam assy per mar como per terra É assy será escuso da dita portajem no dito lugar a vylla soomente de guymaraaes a que foy dado priuyllegio de não pagar amte da era de mill e duzentos e quatorze na qual foy dado o dito lugar aa dita ordem(120) E assy ho será qualquer outro que o semelhãte priuillegio uer ante da dita era. E assy o seram os vezinhos do dito lugar e termo escusos da dita portajem no mesmo lugar nem seram obrigados a fazerem saber da hyda nem vynda.

(118) Requeredor, cobrador da alcaidaria. (119) Vintaneiro ou vinteneiro, oficial dos barqueiros ou pescado, magistrado popular das vintenas, etc. (120) Nesta disposição acha-se um novo testemunho de que o território de Benavente estava, de facto, incluído no termo de Coruche, quando, no

ano de 1176 (1214 da era de César), D. Afonso I doou à Ordem de Évora aquele castelo. Os vimaranenses já gozavam de isenção de portagem quando o território de Benavente ainda era da coroa, por isso não nham que pagar ali tal imposto.

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E porque na dita villa nam podia atee ora nynhuma pessoa pousar se nam na estallagem da ordem decraramos não se deuer assy de fazer Mas que qual quer pessoa poderá agasalhar em suas casas de dia e de noyte quaaes quer pessoas pera hy pousarem e dormyrem e comerem assy de dia como de noyte E assy de graça como pollo dinheiro saluo as bestas nam poderam agasalhar por dinheiro senam na dita estallagem em quanto na dita estallagem poderem caber. E as pessoas dos ditos lugares priuylligiados nõ rarã mais o trellado de seu priuillegio nem no trazeram somente traram çer dam feita pollo escriuã da câmara e cõ o sello do cõçelho como sam vezinhos daquelle lugar E posto que aja duuida nas ditas cer dões se sam verdadeiras ou daquelles que as apresentam poder lhes ham sobre ysso dar juramento sem os mais deterem posto que se diga que nã sam verdadeiras e se depois se prouar que era falssas perdera o escriuã que a fez ho oficio e degradado dous annos pêra çepta e a parte perdera em dobro as cousas de que assy emganou e sonegou a portajem a metade pera a nossa câmara e a outra pera a dita portajem. Dos quaaes priuihegios husarã as pessoas nelle contheudas pollas ditas cer dõoes posto que nãvam cõ suas mercadorias nem mandem suas procuraçõoes Comtamto que aquellas pessoas que as leuarem jurem que a dita çer dam he verdadeira e que as taaes mercadorias sam daquelles cuja he a çer dam que apresentam. Qualquer pessoa que for cõtra este nosso foral leuando mais direitos dos aqui nomeados ou leuando destes mayores conthias das aqui decraradas ho auemos por degradado hum anno fora da villa e termo e termo E mais pague da cadea XXX rreaes por hum de todo o que assy mais leuar pera a parte a que os leuou E sse a nõ quiser leuar Seia a metade pera quem ho acusar e a outra pera os ca vos E damos poder a qualquer Ius ça honde acõtecer assy Iuizes como vintaneiros ou quadrilheiros(121) que sem mais processo nem hordem de Juízo sumariamente sabida a uerdade condenem os culpados no dito caso de degredo a assy do dinheiro atee conthia de dous mjl reaes sem apellaçam nem agrauo e sem disso mais poder conhecer almoxerife nem contador nem outro oficial nosso nem de nossa fazenda em caso que oha hy aja E se o senhorio dos ditos direitos o dito foral quebrantar per sy ou per outrem seia logo sospensso delles e da Juridiçam do dito lugar se a uer em quanto nossa merce for E mais as pessoas que em seu nome ou por elle o fizerem emcorrerã nas ditas penas e os almoxeriffes e escriuaães e officiaes dos ditos direitos que o assy nã cõprirem perderã logo os ditos officios nã auerã mais outros E por tanto mandamos que todallas as cousas contheudas neste foral que nos poemos por ley se cumpra pêra sempre do theor do qual mandamos fazer tres hum delles pera a câmara da dita villa e outro pera a nossa torre do tombo pera em todo o tempo se poder rar qual quer duujda que sobre isso possa sobre vijr Dada em nossa muy

(121) Quadrilheiro, oficial inferior de jus ça; beleguim

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nobre e sempre leal cidade de lixboa a dezasseis dias de Janeiro anno de nosso senhor iesu christo de myl quynhemtos e dezaseis. E vay scripto ho original em noue folhas soo scripto e assynado pollo dito fernam de Pina.

Doc. 3 1574, 3 de Dezembro – Escrivão dos Tombos da Ordem: António Pinto / escrivão: Manuel Tomás Treslado dos bens e propriedades do concelho da vila de Benavente do Tombo da Ordem e Mestrado de Avis. 22 fls. CMB AHM

Bens do Concelho da Vila de Benavente: Tirados do Tombo do Mestrado de Avis Há casa é paço do Cõcelho, en aqual se fazem as audiencias é camaras pelos juizes, e vereadores, e mais officiaes da villa de Benavente: está na praça da dita villa, com a qual praça, é adro da egreia Matrix iuntamente parte doLeuante, e do Poente com quintal da Elena d'abreu e do sul com casas de Donna Loisa: e do Norte com parte da dita praça, e com casas da dita Elena D'abreu são duas logeas cerradas, nesta se fazem as audiencias, e camara hé encaniçada: tem duas janellas de pedraria de peitoriis, e assentos, e o mais de Alvenaria: tem sua seda pera os officiaes, sobem a ella per hûa escada de boa pedraria de quatorze degraos, não tem mainel, fica esta escada por defora par ndo da banda do Norte com a praça. As duas logeas são repar das per parede de pedra e cal até o sobrado hûa antoutra: e a dianteira tem dous arcos sobre hûa columna de pedra lavrada: e os vãos dos arcos são cerrados de grades de madeira, tem seus poyais ao redor de pedra, e gello. Nesta logea se agasalhão aquelles, que de fora trazem mercadorias a vender à dita villa. He toda calçada de seixo meudo, e gello de peralto. Tem de comprido o chão destas tres logeas hûa antoutra quatorze varas de cinco palmos vara e de largo cinco varas, tamanha hûa como a outra e a decima sobradada he dop tamanho das duas logeas primeiras.

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Pelourinho Tem mais o dito concelho defronte da dita casa da camara hû Pelourinho(122) de muito boa pedraria lavrada, alto com seus ferros, e grimpa, e Cruz de Sam Bento com suas Pomas douradas, com cinco degraos a redonda da mesma pedraria.

Açougue Hûa casa do açougue tem o concelho na entrada da Rua de'uora a primeira da mão esquerda, hindo da Egreia pera o recio do chaveiro. Partem da banda do norte com casas, e quintal de Manuel preto tabellião e do sul com a dita Rua Deuora: e do Levante com quintaes, e casas de Manuel frade escrivão da Camara da dita villa, e do Ponente tambem com casas do sobredito Vaz tem de comprido em vão nove varas e tres quartas, e de largo também em vão cinco varas. He hûa só casa madeirada de quatro agoas cuberta de telha vaã: as paredes de Alliçeçes de pedra, e os altos de formigão. Tem hû repar mento com suas grades com sua escada de quatro degraos pera o talho. He muito bem fechada de boas portas, e fechadura.

Corro Tem o concelho hû chão dentro na dita villa corro dos touros, o qual está hindo da Egreia pera as casas de Alvaro Lucas, que estão sobre a ponte ficando o dito corro da mão dereita par ndo com celleiro novo, ou aliceces em que está o celleiro nouo da Ordem da banda do Poente: e do Levante parte com a frontaria toda das casas antre as quaes estão o forno, e casas de Lianor Diaz e do sul parte com a dita rua, que vai da egreia, e praça pera as casas de Alvaro Lucas, na qual rua, ou fronteria estão as casas de Gaspar Diaz, e Ruy Viegas e outras. E do Norte parte com casas de Gaspar Lourenço e com outras, pellas suas fronterias e serven as. Tem de comprido de Norte a sul sessenta e cinco varas: e de Levante a Ponente trinta e nove tem dentro en si hûa Amoreira grande. Tem dentro en si hûa amoreira grande.

(122) O Pelourinho de Benavente foi apeado cerca de 1874, quando se procedeu á construção dos actuais Paços do Concelho. Estava erguido á esquerda dos an gos paços, aproximadamente onde assentam hoje os alicerces dos novos, á entrada da Rua da Amoreira. Erguendo-se primi vamente na Praça Velha, fronteiro à primeira casa da Câmara, presumimos que, quando se procedeu à construção da segunda casa da Câmara, não se colocou o pelourinho defronte da mesma para não obstruir a Praça Nova onde, desde os fins do século XVI, se corriam os touros. Deste Pelourinho existem hoje apenas os dois troços que formavam a sua coluna.

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Recio Hum resio tem o concelho de Benavente saindo da villa pera o Leuante hindo da Rua Deuora, e da rua, q vai por detras os paços pera estrada de Montemor o Novo, aqual estrada vai pello meio delle: e da banda do Poente parte com serven a da villa, que sae das boca se das ditas duas ruas: e do Leuante prate com olivaes de Lionel perdigão, e de Valdegodinho, e do Norte com quintaes dordem, que traz o dito Lionel perdigão e olival de Fernão Varela, e vinha de Gonçalo Lopez, e do sul com çarrados de António Lopez, e de Issabel Roiz, e outro çarrado Dordem, que traz Pero Correa per vallados altos, e comaros an gos. Tem de Largo de' Norte' à sul do chão Dordem, que traz Lionel perdigão até o çarrado de Antº Lopez, que' he' no sainte' da villa, cento e oitenta e duas varas e do cabo delle, que' he' do çarrado de' Elena Dabreu, que está da banda de' Valdegodinho, e olivais da villa passando quasi pello peé da força atravessando a estrada pera vinha de Gonçalo Lopez ate' entestar nos vallados della, tem cento e noventa varas e mª. E' medido da vinha de Isabel afonso molher, que foi de joam Alvarez Besteiro ate' a serven a da dita villa, que he a saida das ditas duas ruas, e' assi da rua do Arrabalde, tem trezentas e sete varas medindose periunto do curral. Estão en o meio delle' duas oliveiras, hûa Cruz grande de pao, e no cabo onze oliveiras, e' muitos Azambuleiros. Serve' este recio de logração, não se lavra, nem semea, no cabo delle'está a forca, levará de' semeadura Lª ou Lxª algr.(?) Este recio foi da ordem, e' por necessidade, que o Cº nha delle o Mestre Dom Jorge lho deu en escaimbo de hûa courella de terra na varzea, que par a com terra de Alvaro perdigão, e entesta da banda debaixo cô carril do Concelho, e da banda derriba com Estevão Dazambaninha: é a escriptura do escaimbo aneda no cartorio da camara, é o trelado della nos autos das diligencias, e' neste' liuro razão della.

Recio Outro recio tem o concelho saindo da villa perª a banda do Ponente pellas costas da hermida de San ago, chamasse' recio do vento(123), porque' onde en elle está hû moinho de ventº Parte da banda do Norte com

(123)Recio do Moinho de Vento ou Recio do Vento são estes os nomes que em 1561 se dão ao Largo do Calvário, sí o este que nas próprias palavras do tombo é: «saindo da villa perª a banda do Ponente pellas costas da hermida de San ago». Segundo o referido tombo, nesse mesmo ano, já havia uma rua a ligar o Rocio do Vento (Calvário) com a vila: «a rua, que vai do mesmo recio pera a villa». Supomos ser a Rua do Pinheiro, que nesse tempo nha um pqueno número de casas, conforme se infere da descrição que do Barrocal faz o citado tombo. Só em 1573, segundo o Livro de acórdãos da Confraria da Misericórdia (truncado), nos aparece o nome Rua do Pinheiro. Mas, já em 1530, deacordo com o Tombo da Igreja Matriz de Benavente (fls. 22v), esse largo era chamado Moinho de Vento, pertencia ao concelho e abrangia uma super cie muito maior que o actual Largo do Calvário, estendia-se para S.E. compreendendo parte da Rua do Pinheiro e descia irregularmente até às ribanças dos dois lados, confrontando com várias hortas, cerrados e algum vinhedo. Na parte mais elevada exis a um moinho de vento, talvez o único da vila, por longo tempo.

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rio sorraya, e iuntamente com hum chão muito plano do concelho, que ao peé do dito recio está pera a banda da foz do conde da castanheira, a terra do qual he' muito mais baixa, que a do mesmo recio, porem está hû iunto com o outro, se antreambos semetez outra cousa, assi, que' parte' dabâda da varzea per Sorraya abaixo, e' tanto, que' chega ao rio velho, volue pera o sul par ndo com elle e' pon nha de pedra, que' no dito rio velho está, e' vai por hi até dar na Orta, que dizem ser de' Henrriq.(e)Mendez de'Vasconcellos, que traz Manuel Roiz e' vay par ndo pella dita Orta per vallados muito altos de bastos, e' grandes marmeleiros, e' vay uoluedo pellos ditos vallados acima contra a villa ate' chegar no alto do dito recio, e' hi sedesuia do dito vallado quatro varas de medir pera dentro de sy per hû rego, que por hi vai, e' vai assi deferir ao cant.º da dita Orta digo ate defronte do dito canto da dita Orta, que' traz manuel roiz, onde fica o dito recio ia mais afastado do dito vallado, que as ditas quatro varas, porque' o vallado, da dita orta faz pera dentro hû rodeo, por onde' o rego fica mais afastado, pello qual o dito recio parte, que as ditas quatro varas. E depois de acabar de par r com o canto da dita Orta, parte'inda ao mesmo dereito com o vallado de hûa Ortazinha do Concelh.º que traz Elena Dabreu, com a qual confronta ul mamente da dita banda do sul, e' acabando de par r com a ortazinha, torna a voluer en redondo fazendo volta pellos vallados do quintal da dita Elena Dabreu, e' Diego Afonso, e' cosmo fernandez e' sayndo do vallado de cosmo fernandez atrauess.ª a rua, que vai do mesmo recio pera a villa, e' tom.ª dalem do dito caminho o vallado da vinha, e' quintal de fernão varella deçendo dereito pera o Norte' à ribeira de' Sorraya donde' começou, e' não semedio pello dito chão, que está peguado com elle' par r pero dito rio de' sorraya, e' rio velho, e' vallados altos, com os quaes todo está cercado elle' e o dito chão. Dentro deste' recio iunto do çarrado de' cosmo fernandez e' Elena Dabreu estão duas casas terreas e' hû

A moagem para consumo local era feita em atafonas, uma espécie de moinhos movidos a força braçal ou tracção animal. Houve na vila várias atafonas (Tombo da Igreja Matriz de Benavente – 1544-1876, fls. 82 a 85v) e o o cio de atafoneiro (Tombo da Igreja Matriz de Benavente – 15441876, fls. 111 a 113). O Rocio do Moinho de Vento passou a denominar-se Rocio do Calvário depois que em 1644 foi erigido o Cruzeiro, que ainda hoje existe, nesse largo. Esse Cruzeiro tem gravada as seguintes inscrições: EST OBRA MANDARÃO FAZER OS IRMÃOS DOS SANTOS PASSOS EM O ANNO 1644 HOC SIGNUM CRVCIS ERIT IN CAELLO – CVM DOMINVS ADVDICANTUM VENERIT FOI REFORMADA NO ANNO DE 1725 O velho moinho que exis u no Rocio do Calvário, deu ainda o nome ao Largo do Moinho de Vento e á Travessa do Moinho de Vento, ambos con guos àquele rocio e á Rua do Pinheiro. No século XVIII, em vez de Rocio do Calvário passou a empregar-se, mais frequentemente, a forma Calvário (Livro das Contas da Capela do Padre João de Pontes – 1755, fl. 4v). Já então havia nesse Largo vários celeiros, sendo o mais importante o do Infantado que depois passou para a Companhia das Lezírias. A escolha desse local para celeiros obedeceu certamente á sua proximidade do porto do Sorraia, onde havia con nuo tráfego de cereais.

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chão do qual Elena Dabreu pagua ao concelho cinco r's, e' joam fernandez Prazeres pagua outros cinco r's, doutro chão, que está en casas. E' no mais alto do dito recio no cabo della' está hû forno de cal sobre' o chão mais baixo, que' tambem he do concelho. Botelhão de Terra Hum botelhão pequeno de terra tem o concelho antr.(e) o chão mais baixo, que o dito recio, e' a lezira dos cauallos, que' tambem h'e do concelho, e' antre o rio de' sorraya, he feito á moda de vela la na parte' da banda da varzea de Benavente com sorraya e da banda do sul com a dita Lezira per hu vallado alto, e' rio velho, que' por hi soyahir. E'assi parte' da banda do Levante' com o dito rio velho de maneira que fica en triangulo antre'o rio, Lezira e Chão baixo. O qual chão baixo, e'botelhão andão en arrendam.ª en cada hû anno, e' não são aforados, nem emprazados.

Recio do Paço Velho Tem mais o concelho outro recio aque' chamão dºpaco velho, o qual do Leuante parte' com chão da Ordem, o qual paco, e'chão sayndo da villa pellas ruas Devora (124)e' a que vay por detrás dos pacos, fica pera o dito Leuante e' o chão Dordem: tralo Lionel Perdigão Almox.(e) e' parte' com chão do concelho, que traz Ascenso Fernandez, e' semeasse de ortalica, e' parte' com esteiro da corte' do poço, que' vay antre este resio, e' a dita corte, e'entesta da banda do norte com rio de' sorraya fazendo hi huã ponta e torna do Poente' contra a villa par ndo com hû girão de huã ortazinha, que'vay ao longo do pomar dos paços, e' a or nha he' do concelho, trala Aluareanes da Barrosa, e'parte com carrado, e'pomar da Ordem, que traz Catharina Paez sogra do dito Almox.(e) e' parte'com Monturos: Não se laura, nem semea como o do chaueiro, que'está muito delle', não semedio por ser en tal lugar a medida desneçessaria.

Poco Velho Tem o dito concelho o Poco Velho, que está no recio acima escripto: o qual poco hé en hû chão empedrado, que'entesta na corte' do poco.

124) A Rua de Évora é actualmente designada por Rua João Sabino de Almeida Fernandes.

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Recio Tem o concelho mais outro recio com hû poço em si nouo, o qual está saindo da villa pera a Lezira dos caualos, e' ortas da Lezira. Parte' da banda do Nort.(e) com caminho que' vai antre o dito recio, e' o telhal chão do concelho. E' da banda do sul parte'com o rio velho, que'vái outrosi antre'este'recio e' a lezira dos cauallos. E' da banda do Leuante com chão de'Pedraluarez Baracha, e' da banda do Poente' entesta nas ortas do recio digo da Lezira, e' rio velho. Tem de largo de'Norte a sul ao longo da restada da orta do C.º que he' á derradeira, com a qual o mesmo recio entesta trinta varas, e' tem outras tantas ao longo da que'soya ser orta do dito Pedraluarez Baracho: e' medido de Leuante'a Poente'ao longo do caminho tem trinta e'cinco varas. Tem o dito Poco hû bocal alto de' pedraria, e huã pia grande de Pedra iunta asy,en q bebem as bestas, o qual poco se abrio ali á custa do C.º por falta que'auia de agoa na villa auia trinta ann.º ao tempo das diligencias deste thombo.

Chão no Cabo da Rua Devora Hum chão pequeno no cabo da rua Devora tem o concelho, que serve' de'recebimento das casas da Ordem pegadas ao recio do Poco Velho, as quaes com elle'traz Catharina Paez sogra de Lionel Perdigão Almox.(e) o qual chão fica en canto sayndo da dita rua Devora virando pera baixo pera o recio do Poco velho, de modo, que'o recanto das paredes, que hi se faz he'do dito chão do concelho, que está cercado de paredes da banda de fora. Parte'este chão com as dictas casas da Ordem, e' com o recio, e' cabo da dita rua devora. Tem de comprido treze varas e'de largo cinco e m.ª (125) traz(?) este chão a dita Catharina Paez não mostrou tulo, nem se disse'q'pesso.ª era nelle', confessou ser do concelho, pagua delle'de foro cada anno dez rs.'.

Chão iunto as casas da Camara Tem o concelho outro pequeno chão iunto das casas da Camara na Praça, o qual he' recebimento das casas de Bernaldo de' Guoez. Parte do Norte'com casa estrebaria de Joam Roiz Bulhão, e'do sul com casas da camara, e'audiencia, pella sua escada de pedraria, e' do Leuante com a praça e' do Poente cõ casas do dito Bernaldo de'Guoez.

(125) M.ª = meia

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Chão da Azinhaga Outro chão tem o concelho iunto da Azinhaga de San ago, e'da Hermida, parte' da banda do Norte com quintal de Joam Gomez, e'do sul com seruen a da dita Azinhaga, que'vai pella porta da dita Hermida, que fica em rua ao dito chão ordenado pera casas: e'do Leuante parte' com casas de Lourenço Mendez e do Poente com huã seruen a do concelho, que faz hû canto. Tem de cõpr.(do) de Lia.(P) sete varas, e'dous palmos: e de largo tres varas, e dous palmos. Traz este chão aforado en fathiota pera nelle' fazer casas Christouão Diaz Vallador, per carta de aforamento, q delle' lhe fizerão os vereadores, e' procurador do concelho á trinta de' Septembro de mil, e' quinhentos, e' sess(~)ta por foro de cinco rs'., en cada hû anno.

Orta Huma orta tem o concelho no recio do Poço Velho no qual recio entesta, e' parte do Norte' com rio de Sorraya, e' do sul, com pomar, e' carrado da Ordem, q traz Catharina Paez, e' do Leuante' com o dito recio, e' do Poente com orta dos Paços. Tem de comprido cento, e' dez varas, e' de Largo vinte'duas: he' cercada toda ao redor de comaros altos com grandes marmeleiros per cima delles, serue de' ortaliça. Traz este chão, e' orta Aluareanes da Barrosa morador na Barrosa termo da dita villa en pessoas, não mostrou tulo, anda no rol dos foros en vinte rs'. Cada hû anno. Confessou porem ser esta orta do concelho.

Orta Tem o concelho outra orta no recio do Poco velho en o qual entesta, e'do Leuante parte com orta de Gaspar Correa morador na dita villa, e' do Poente' com recio do Poco, e'do Norte' com a corte' do Poco, todo do concelh.º e' do sul com chão da Ordem, que traz Lionel Perdigão. Tem de Largo vinteoito varas: e'de comprido quarent.ª e'tres. Hé cercada de'valladas como há decima. Traz esta orta Ascenso Lopez ou Fernandez sem tulo, não decrarou, que' pessoa era nella, nem quanto pagaua, de foro, confessou ser do concelho.

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Orta Outra orta tem o concelho iunto do recio do Moinho do vento, en o qual recio encima pella banda do Norte' entesta a dita orta per vallado, e' embaixo por que'a orta vay en ladeira abaixo dar na Lezira dos cauallos e' ambaixo parte' pello rio velho, que vai antrella, e' a dita Lezira: e' da banda do Leuante' parte' por huã barrançeira, que' tambem vai antre ella, e' as ortas da Lezira peguada com a primeira orta della, e' da banda do Poente' com orta de Manuel Roiz. Tem de largo ao longo do dito recio quarenta varas. Tem a compridão da de atras desdo recio ate dar na valla do rio velho, que' vai antre ella, e' a Lezira dos cauallos. Serue de' ortaliça, tem aruores de fruto. Traz esta orta E'lena Dabreu, não mostrou della t.º anda no rol en cinco rs. de foro sobrella, e'os pagua. Esta orta dece pera baixo muito ao sopé, e' com o rio digo rio velho debaixo, e' recio decima fica a cõpridão certa pera baixo, e' pella parte, que no rio entesta, está vallada de' vallados. Item¶ sobresta orta se' fez exame' depois de ser medida sem E'lena Dabreu sendo requerida, a qual apparecendo despois disse'a orta ser propria sua, e'a ter vendida, e' a uerdado o tulo, que della teuera ao comprador entam absente: Confessou, que' ella trouxera do Concelho huã Orta no recio do Moinho do Vento, e' que della pagara os cinco rs. de foro, e'a tal orta era ex ncta, por ficar en recio com o recio grande, e' della não teuera tulo. E'os offiçiaes do concelho requeridos, e' cer ficados do que' E'lena Dabreu dezia, mostrauãose incertos de' ser a orta acima, há do concelho, e' assi ficou sobduuida ate ella mostrar tulo, e'o derá ao que'lla comprara, pera o que lhe foi dado tempo.

Orta Tem mais o concelho outra orta, que lhe trazião sobnegada abaixo dos pacos hindo pera o Porto da Ludaria: parte do Norte com rio de Sorraya, e' do sul cõ caminho, que vai do dito Porto da ludaria pera o Curral do concelho: e' do Leuante' com pomar dos ditos pacos, e' do Poente' com o mesmo caminho, e' porto, onde' bebem as bestas. Tem de comprido de Norte' a sul qªrenta e'quatro varas: e' de largo de Leuante' a Poente'vinte'e'huã. Esta orta traz Francisca Nunez molher, que foi de Duarte'Pirez sobnegada, confessou ser do concelho, Auianlhe'os offiçiaes de fazer aforamento e'que foi quintal, de que falla o XXIII capº do Liuro do Cº que diz que parte' com casas, e'quintal de Fernandeanes Alhandro.

Ortas DEezaseis ortas tem o concelho ao longo, e' antre o caminho, que vai do Moinho do Vento pera o poco nouo, e' antre a Lezira dos cauallos, com aqual parte todo este Lanco de'ortas todo per fio desdocomeco ate'o cabo, da banda do Poente': e' da banda da villa parte'outrosi pello dito caminho ate' o cabo. E'da banda do sul entesta com chão do dito poco, e' embaixo contra o rio entesta en a orta de' E'lena Dabreu,

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que ella vendeo por sua, e'se nha por do concelho. Tem este'Lanco de'ortas ao longo do caminho trezentas e'dez varas, e'de largo ao longo do chão do poco trinta, e' embaixo outras tantas pouco mais, ou menos. Treze pessoas trazem estas ortas, dellas com tulo e'dellas sem tulo: de cada huã se paga de foro cinco rs. somente'a molher, que foi de André Pirez pagua da sua dez rs. Manuel Roiz Alcaide traz huã repar da em tres com t.º Manuel Afonso traz duas Has. Miguel Frz.'per carta de vanda, á molher de Joam Fernandez Prazeres huã. Joam Aluarez Alfaiate' huã en fathiota per carta de compra en pregão: Maria Bernaldez huã com tº Isabel Afonso huã com t.º Aluaro Carualho huã com t.º Lourenço Mendez huã com t.º Ines Roiz huã, A molher que foi de Andre Pirez huã, dez rs. Marcos Roiz huã a molher, que foi de Symão Pirez huã. A molher, q, foi de Pero Roiz huã, são de foro cento e' setenta rs. Ao tempo das ditas diligencias das pessoas atras inscritas somente' se'acharão possuir suas ortas as seguintes - Jl Manuel Roiz Alcaide as tres per carta de aforam.(to) en nome'dos vereadores iuntas no rio velho, a noue de Abril de mil,e'quinhentos,e'quarenta,e'oito xb rs. Jl Lourenço Mendez traz huã no dito rio velh.º per carta de aforamento, que os vereadores auiam feito a seu antecessor Domingos Fernandez, que for.ª casado com Marg.(da) Fernandez sua molher.E'a carta feita a vii de Outubro de M. .b.xlv. com foro de V. rs. H Aluaro Carualho barqueiro traz huã no dito rio velho, per carta de aforamento, que os vereadores auião feito a Esteuão Mar nz seu antecessor, e' sua molher, Lianor Fernandez he nella segunda pessoa paga b. rs. Jl Fernão Pirez, Joam Aluarez Alfaiate' traz huã, q. lhe foi arrematada en pregão iuntamente com hum pardieiro (126), que não he' do concelho, aelle', e'a sua molher Guiomar Diaz, disse, que en fathiota pagão della cinco rs. ao concelho. H Maria Bernaldez que foi molher de Afonso Lopez Almox.(e) e' sesmeiro do mestre' mostrou t.º feito pelo escriuão do Almox.(do) a X. de Setembro de mil e' quinhentos, e'quatro, pello qual o dito seu marido tomam pera si no dito Iug.(as) (?) quarenta e' noue couados de chão en quadrado, que nunca fora aproveitado, e' o fezera en orta, e'paguaua foro, e' tomara o dito chão en fathiota. Jl Isabel Afonso Besteira, molher, que foi de Joam Aluarez Besteiro (127) Traz huã or nha no dito logar per escriptura, que o Almox.(e) sesmeiro della lhe fezera a xxuºy de Mayo de M. b. xby e' lha dera de' sesmaria, e' com ella hû chão pera vinha sem foro, e'que ella de nenhum destes chãos o pagaua. Jl Manuel Afonso per licença da camara vendeo as ortas duas en huã á Miguel Fernandez, e'a Justa Fernandez sua molher por quatro mil rs. en fathiota: os quaes a trazem en fathiota pella carta de venda, q. lhes foi feita da dita orta a uºy de Mayo de M.b. e'Lx. Pagão ao concelho della de foro dez rs. Jl E'nes Roiz deu ou trespassou aque' trazia a Aluaro Gomez seu genro, e' há muitos annos

((126) Pardieiro, (talvez do la m *parie narius, de parie nae, ou seja, paredes em ruínas), significa edi cio em ruínas mas também pode designar casa tosca, pobremente construída. ((127) Besteiro, (do la m ballistarius), fabricante ou vendedor de bestas.

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que'atraz, paga ao concelho della de foro cinco rs. disse,' que nha tulo, não ho mostrou. Jl as mais pessoas, de que o cap.º atras se faz menção, q. trazem ortas, trouxeram as :E' agora no tempo das ditas diligencias outros foreiros mostrarão seus tulos dellas, e' são os seguintes. Jl Fernam Pirez traz huã orta per carta en nome dos vereadores a xi de Outubro de M.b. xlix. que'lhe' emprazarão en tres pessoas hû pedaço de chão pera orta no rio velho com condição, que'o não alarguasse'mais, pagua della cinquo rs. Jl Pero Correa forneiro deu razão que trazia huã orta na dita Lezira, que esse anno auia comprado a Manuel Bernaldez morador en Camora, e'não rara aynda carta, e' que era o […] chão das ortas iunto ao do poco, paga b. rs. Jl Andre Pirez laurador traz outra orta per carta de venda a üÿ de Outubro de M. b. Lÿ pella qual Cosmo Lopez, e' Maria Fernandez sua molher lha venderão no dito logar ao longo da dita Lezira por u rs. não ouue L.(ca) diz a carta que he en vidas, er' paga della dez rs. Jl Simeão Moço orfão per fallecimento de seu pai Marcos Roiz traz outra orta no dito logar, trala en seu nome Aluaro Gomez seareiro, que' disse', que' assi lha entregarão, paga della - b- rs.' ao concelho.

Quintal ~Tem o concelho hû quintal, que de todalas bandas parte' com propriedades, e' caminho do concelho. Tralo Lourenço Mendez per carta de aforamento, que os vereadores delle fezerão á Domingos Fernandez seu antecessor en sua vida sómente por foro de' vinte' rs' cadanno.

Oliueiras Tem o concelho no chaueiro, e' em valuerde certas oliueiras, e' Azambugeiros. Tralas Manuel Roiz Alcaide per iscriptura de arrematação, que pollos officiaes da Camar.ª lhe forão afforadas en tres pessoas feita a xxb de Nouebro de mil e' quinhentos e' quarenta, e' oito por foro de cem rs. cadanno.

Cerrado de Telhal Hum cerrado tem o concelho aque chamão o telhal iunto do recio, en que está o poco nouo, hé huã terra mais alta de todas suas vezinhas, estão na boca do Arrabalde' hindo da villa pera o dito poco caminho antre o dito telhal, e' o poco en meio somente' he feito en triangulo, parte de todalas bandas com caminhos pubricos, tem quareta e' duas varas de medir do caminho que vay antre elle e' o recio do Poco. E' pella outra banda de Leuante pella estrada, que' vay da villa pera as vinhas, tem trinta e' oito varas. E'polla outra banda do Norte' pello caminho que vem do Arrabalde pera o dito poco tem vinte e'noue varas, não ho traz nenguem.

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Carril (128) Tem o concelho na varzea de Benauente' certas quan dades de terras, aque chamão Carrys, que'servem de serven as pera a dita varzea, hus' mais largos, e'compridos, que'outros, segundo a necessidade' que' o servico delles requere. Hum destes carrys tem o concelho na dita varzea, o qual sae da terra que entesta na ponte', e' vay contra o Norte' pera Saluaterra ate dar no termo dessa vila. E da banda do Poente comeca a par r com terra da Capella de São Bartholomeu (129), e' mais adiante'vay par ndo com terra da Ordem, que se chama das calcadas, com aqual parte en todo o mais dahy endiante' da parte' do Poente'. E da bãda do Leuante partem com terra de Antonio Diaz Froes, e' com Arnato pequeno da Ordem, e' com terra de' Antonio Coresma, ate dar en termo de' Saluaterra, e'da banda decima, que he do Norte, entesta no termo de Saluaterra. E' da banda contra a villa de Benauente e' entesta en terra da Ponte iunto com o e'steiro. O qual carril medido á entrada da Ponte, donde sae da terra da mesma ponte, tem vinte e huã varas de medir: e´ medido pella vagem, que sae do esteiro pera terra de São Bartholomeu, a qual chamão (Perodurão.) iunto do Botelhão, que está antre dous esteiros; que tambem he' do concelho medido antes de chegar ao esteiro da calçada grande, tem por hi sessenta e duas varas, mais treze das que lhe dá o assento do Livro do concelho Z. Assento na z.ª folha, e' hindo pordiante contra a soma passando o esteiro, que sae das calçadas logo na entrada antre a terra da Ordem e a de Antonio Coresnia tem a medida do assento do Livro que sam vinte duas varas, e tres quartas. E' medido pella borda do esteiro das somas polla banda de dentro contra a villa tem quatorze varas, e dous peés, e' medido no cabo delle pellas somas tem vinte tres varas. Toda esta medida de varas he de vara com uã de cinco palmos, perque forão medidas todas as propriedades da mesa Mestral, e as do concelho posto que as varas, perque são medidas estas terras, são varas de vallador, que tem cada huã tres e' m.ª das comuãs de medir pano marcadas. Outro carril tem o concelho, que naçe do outro, que sae da terra que entesta na ponte, e sae da calcada, e vem atravessando a pon nha, que vay pera Salvaterra a dar no carril, que começa na alagoa do imperador. O qual carril da banda do sul parte com Perodurão, terra de Sam Bartholomeu, e vay ate dar na mesma alagoa. E' da banda do Norte parte com terras da Ordem, e com terra de Joan Alvarez dalmada, e de Sam Bartholomeu, o qual medido defronte de huã terra courela da Ordem, e da de Perodurão, tem vinte huã varas de medir, e' da banda do sul parte com terra de Joam Gomez Jhz.º e com terra de Helena Dabreu, que entesta na dita alagoa, que entesta na dita alagoa do emperador na qual (128) Carril, o mesmo que caminho estreito. (129) Foi ins tuída por Pedro Durão, que viveu do século XV para o século XVI. Constava de onze courelas e rendia, segundo alguns autores, 30

moios de trigo «além das pitanças». O ins tuídor impôs a obrigação de se fundar uma albergaria de sete leitos. Segundo Álvaro Rodrigues d'Azevedo, por acordo com o hospital foi esse obrigação subs tuída pela entrega de 21$000 réis anuais áquele estabelecimento, para custear a hospitalização de sete doentes.

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alagoa se medio a largura deste carril per de fronte da terra de Fernão Varela e de Elena Dabreu e acharam-se cincoenta e duas varas. E dahi vai con nuando o dito carril com courela de Gomez de Souto Mayor da banda do sul, e da banda do Norte com courela de Fernão Varela, e medindo da Courela de Fernão Varela atraves à do Souto Mayor tem vinte varas, duas e' m.ª mais das que' lhe dá o Livro da Camara: e' aqui atravessa o caminho que vay da villa pera o campo dos freires, hindo correndo pello dito carril pera o esteiro da Azambaninha sempre pera o Poente: e' medido bem iunto do dito esteiro da Azambaninha de hu marco de seixo preto an go, que hy está rente com a terra na botelhada de Diego Velho pera a Courela de Lois Caesar, que he' da Malueira, tem desete varas e m.ª e de hy vai perante a corte da senhora, que he de Joam Gomez, e per antre terra de Diego Velho, e corte do rouco: e torna volvendo perante a corte da senhora, e o Lombo do Mestre per vallados de huã e outra parte até dar na corte da Oliueira ou freixo, e vay assi até dar no rio de pedra, onde feneçe (130). Outro carril tem o concelho, o qual sae vay da corte de Perodurão e vay pella vagem das Courelas da Malueira ter á corte do rouco, e vai ao longo della perantre a Lezira das Egoas, e a corte do rouco lhe fica da banda do Norte e a Lezira das Egoas da banda do sul, e vai per antrambas a morrer no rio, e' tem de Largo encima e embaixo quatorze varas de medir. Outro carril tem o concelho que sae da sobredicta terra da ponte, atestada da banda decima do qual da banda do Norte entesta com o carril que vem da calçada e vai antre este e terra de Elena Dabreu: e' da banda do Leuante parte com corte de PeroDurão e do Ponente com terra de Fernão Varela, e foi do ferrador, o qual carril medido antre Fernão Varela e Pero durão, tem vinte e huã varas / e' medido pello pee' debaixo contra a villa, e caminho, que vai pera o campo dos freires per iunto do mesmo caminho tem vintequatro varas e m.ª. E vai assy o dito carril en redondo ate' dar na terra de Perodurão, e vai feneçer na calcada da ponte, par ndo do Norte com terra de Sam Bartholomeu, e do sul com terra de Lois Caesar: tem a medida do Livro antre huã terra e outra. Tem o concelho outro carril, que sae do porto da pescaria e vay per antre o rio e terra do Conde da Castanheira e sae dereito fora ao longo do rio pellas bordas dos Arneiros da Foz do Conde, até dar nos matos do Concelho, e dar onde soya estar hu marco antre as terras da foz e do concelho, e o rio faz huã volta he' este carril todo guastado, comesto do rio que delle não há cousa alguã, o qual rio esta digo entra ia gastando, e comendo a terra do conde, e no cabo da volta enfim do Arneiro iunto dos mon jos torna o carril a ficar inteiro, e' con nuarse', e' vai par ndo do Norte com o rio desdo cabo da volta ate' mon jo, e'

(130) Fenecer, v. Tr. Acabar; morrer; murchar; ex nguir-se. (Do la m “finiscere, freq. De finire, «acabar»)

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da outra banda com o conde', e' vaisse' dereito á serra, par ndo da banda do Norte com Henrique Lopez Iuiz dos Orfãos, e' com Isabel Afonso a Naba, e' Belchior de França, e' Joam de Parada, e'Symão da Cunha, e' Aluaro Lucas e'JoamCarvalho ate' entestar na serra: e' do sul com terra deJoam Alvarez pedreiro, e' com Simão da Cunha, e' com Antonio Cabral ate chegar á serra pella outra banda e' por onde este carril vay inteiro, tem á medida certa do Livro. Outro carril tem o concelho, que' sae do carril atras, que sae do Porto da Pescaria, e' vay pera os lucaes chamados camaroeiros, e' vay par ndo com terras do Conde da Castanheira contra o Norte, e' Noroeste cinguido ao redor as terras do Conde, e' da outra banda com terra de Joam Alvarez de hua capella e vay assi ate' entestar nos ditos Iuncaes, e' não chega este carril ao rio de pedra, porque estão agora os ditos Iuncaes que o concelho deu ao Conde antre o rio e as Somas: e' depois que' entesta nos iuncaes, corre por darredor delles, e' vay entestar na corte do boy, onde morre par ndo da banda do Levante com terra de Joam Alvarez, e' da outra com iuncaes. Este carril esta na varzea de camora termo de Benavente tem a medida certa do Livro. Outro carril tem o concelho que sae da corte Peteia vem sempre ao longo das vallas do campo dos freires par ndo com ellas da banda do Poente: e' passado o dito campo vem dar na corte do freixo, com as vallas da qual vay par ndo: e' mais adiante parte da mesma banda com corte do freixo pequena: e mais adiante com corte do freixo grande, e ao diante vai mesmo par ndo da mesma banda com terra do secretairo Pero Dalcacona, e vay assi con nuando ate dar na ribeira de sorraya do rio velho: e da banda do Leuante vay o dito carril par ndo com a corte grande de Diego Velho, e com terra de Guiomar Bulhosa digo Bulhoa, e Violante de Meira tem a medida certa do Livro do Cº.~.[Camara] Tem o concelho outro carril, que sae do carril atras a este proximo, que sae da Corte Peteia e este que delle sae vai perante o Lombo do Mestre e corte de Diego Velho todo vallado de hua banda e' doutra e com a corte de Diego Velho vay par ndo da banda do Norte e do Sul que he da banda do rio com o ditº[dito] Lombo do Mestre: e correndo contra a villa vai envolta da banda do rio sempre com o dito Lombo do mestre e da banda do Norte sempre com o dito Diego Velho, e Corte da Senhora, que he de Joem Gomez ate dar na Cornelhada: e torna de longo do esteiro da Azambaninha ate dar no outro carril, que no dito esteiro da Azambaninha entesta. Tem o dito esteiro a medida certa do Livro da camara. Outro carril tem o concelho, o qual começa da ponta dos Olivaes do cabo da corredoura, e parte do Norte com terra de Sanc sprito que traz Catharina Paez e do sul com terra de Afonso Vaaz da ribas e vai ter a ponte de Traioute. Tem de largo encima e em baixo a medida certa do Livro da camara, que sam varas de medir dezanove.

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Huma courella de terra tem o concelho da villa de Benavente que anda com as rendas do concelho em arrendamento com as mais terra suas, a qual esta na varzea da dita villa, saindo da ponte pera mão direita estará da villa cinco ros de besta onde chamão a sylveira antre esta sylveira e a fonte do seixo, entesta da banda descontra o Norte na coutada dos Bois a que chamão Garrocheira antre a qual coutada e courella atravessa o esteiro hu ro de pedra da dita coutada e tem por hi de Largo de levante a Ponente dezanove varas, e' da banda do Levante vai sempre par ndo com courela do espiritosancto, atravessando a estrada que vai de Benavente para Coruche ate dar no rio e mediose na estrada e' nha por hi de levante a Ponente vinteduas varas e antes de dar no rio atravessa o esteiro do farilhão par ndo sempre do levante com courela do espirito sancto, e' da outra banda, qur he' do Poente vem sempre par ndo com courella da Callada ate' o dito rio dambalas bandas per marcos sem duvida, ate' entestar, como dicto he', no rio da banda do sul e nesta testada do rio tem vinte hua varas (sinal de pontuação) foi esta courela de Pero fernandez da Marquesa cuia fazenda herdou Isabel Afonso a Naba e Pero Fernandez a deu en escambo ao comcelho, por hu arneiro que hia dar na Porta do dito Pero Fernandez do qual escaimbo não se achou escritura e o concelho esta de posse pacifica as dita courella a qual se achou passar da banda dalem do dito rio a entestar em hua courella do Morgado que fora do Gavião ao qual soccedeo Guiomar Bulhoa filha de Joam Roiz Bulhão o qual decrarou a dita courella não pertençer ao dito Morguado, pollo que sua filha tomando posse do dito Morgado, e' tendoa alarguara a dita courella em a qual se dezia hir entestar esta do cº[Concelho]. E' os officiaes da Camara ficarão encarregua da camara, ficarão encarreguados de saber a certeza disso, disserão porem que a can dade que desta courella do concelho passava alem do rio a entestar na do Gavião servia de carril, e' portanto devia ser de pouca importancia e com tudo o saberião e farião disso assento. Terra da Varzea de Camora Hua terra grande tem o concelho de Benavente en seu termo meia Legoa da Villa pera abanda do Sul na varzea de Camora, que levaria dez ou doze moyos de semeadura senão entrassem nella os estos [esteiros], e' mares como entrão em todas as mais terras da dita varzea que são salguadiças e alagadas pella qual causa senam Lavrão nem serve senão pera pastos quando estam despeiadas dagoa: tem estas porem hu pedaço en xui […?] que se podia lavrar: parte da banda contra o sul com rio de Canha, vay ter às Somas pellos arneiros fora ate entestar no carril do Cº [Concelho] que sae da pescaria, e' vay pera a serra en o qual carril entesta contra o Norte que he pera a banda de Benavente, e' da banda do Levante parte com a coret nova, e' com terra Dalvaro Lucas, que foi dos herdeiros de R.º Aª dos pés, e' com terra de Antonio Coresma passando pela fonte dos ferreiros dereito ao mesmo carril e' da banda do Poente, com corte e' orta de Belchior de França, e' com terra de Isabel Aº a Naba, tudo per vallados, e' comaros sem duvida. (sinal de pontuação) Dentro nesta terra tem o Conde da Castanheira hua orta, que foi do dito concelho, que trocou, e' escaymbou […?] pella courella á quebrada do farilhãologo adiante lançada, tem

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o dito Conde a dita orta per compra daquelle aquem foi escaymbada pella dita courella, está a dita orta dentro na dita terra vallada toda de valladosaltos sem duvida com a dita terra do C.º [Concelho] Outra courela de terra tem o concelho á quebrada do farilhão cinco ros de besta da villa saindo pella ponte pera a banda do Poente hindo pera Coruche. Comecasse a dita courela par ndo da banda do Norte com a coutada da Garrocheira entestando nella, perantre a qual coutada, e' a dita courella hu ro de pedra de hua a outra atravessa o esteiro, que vem pella fonte do seixo abaixo, e' dahi a dar dereito no rio sorraya, em o qual entesta da banda do sul e' da banda do Levante vai par ndo sempre com courella de Andree Lucas per vallado: e' do Poente do começo ate' o cabo com courela de Gomez de Souto Mayor, que'traz Matheus Dias: e' com estes dous parte per vallados e'comaros Largos, e na testada da banda do Norte faz hua ponta na largura da qual, onde comecahis aguçando tem vintesete varas, e' a dita ponta se causa do sobredito esteiro, que porhi passa com hua volta, esta courella passa atravessando a estrada que vai de Benavente pera Coruche, e' onde há atravessa tem de largo outras vintesete varas , e' a dita ponta se causa do sobredito esteiro, digo, e' dahi vai por diante, e' atravessa bem cortando o esteiro do farilhão ate hir dar na ribeira en a qual entesta da banda do sul, en cuia testada tem vinte e sete varas, e' m.ª e' não se medio de comprido por vir assi dereitamente da dita coutada á ribeira sem duvida pollas ditas confrontações (sinal de pontuação) anda a dita courella de arrendamento com as mais do C.º [Concelho] o qual a ouve dos herdeiros de Fernam Velh.º polla orta, que' que' ora he do Conde me da dentro na terra do C.º [Concelho] acima escripta.

Corte do Poço Hua terra de pam chamada corte do Poço tem o concelho iunto da villa, e' resio do dito poço, parte da banda do Norte com sorraya: e' do sul, com vinhas de Joam Roiz Bulhão, e' Gonçalo Lopez Alfaiate, e' de Gaspar Correa, e' do Levante com Lezira da Ordem, per hu esteiro, que vay de longo das vinhas e olivaes e do Poente com resio do dito poço entesta no cerrado no cerrado dos paços: (sinal de pontuação) tem de comprido mais per iunto das vinhas, que' pello rio, per que' vay en voltas quatrocentos, e' cincoenta varas, e' de' largo pella testada decima contra trajoute pello comaro da alagoa no dereito de hu freixo, que hy esta ate dar na borda dagoa, e' dar no dito freixo tem trezentas e duas varas: e' da banda do Poente tem cento e duas: Leva de semeadura seis quarteiros de trigo. Lezira dos cavallos Outra terra de pam tem o concelho muito plana, e' muito boa dalem da villa em hu baixo contra o sul abaixo do recio do moinho do vento, e' ortas da Lezira, a qual terra se chama Lezira dos cavallos, parte da banda do Poente com corte de Janemena pello esteiro que foi rio velho, e' vallado, que antre hua e' outra vay e assi vai do dito rio par ndo com ella dereito ao sul pellos Pomares de fonte de Manhanas ate

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entestar nesta fonte e torna pello dito rio velho arriba en volta contra o Levante correndo por darredor do Juncal sempre atequi ate hir dar em buscarroido terra do dito Juncal, e' dhi volve en redondo pera o Levante longo das ortas do dito rio, com as quaes por elle vem par ndo sempre, e' pella aberta dos vallados das ditas ortas, e' torna a passar per delongo dos vallados das ortas de Elena dabreu, e' de Manuel Roiz ate dar em sorraya sempre pello rio velho, onde se acaba, aqual Lezira acabando de par r com a dita Orta de Manuel Roiz pella trazeira toma o Botelhãozinho de terra feito a modo de triangulo do qual atras fica dito de perfi confrontandose com elle o recio do moinho do vento, e' assi vai par ndo a dita Lezira com o dito Botelhaozinho pello dito Rio Velho ate dar en sorraia.

Lezira das egoas Outra terra tem o concelho chamada Lezira das egoas, aqual iaz na varzea da dita villa quasi de fronte da hermida de Sam francisco, e' fonte da villa: parte da banda do sul com o rio, e' do Norte com carril do concelho, que vem de Pero Durão aao longo da corte do rouco, e' da mesma Lezira e' da banda do Poente parte com rio vellho, que vay antre esta Lezira, e' corte' que foi de dona Tareila: e' do levante com vazacovas per comaro grande que vai antre a dita Lezira e vazacovas e dahi vay a dita terra dereito dar ao Rio, e'antes que nelle enteste se faz hu aguilhão de terra pera a mão esquerda, que vai entestar na terra de' Luis Caesar por hu esteiro, que vai antre ella e o dito Aguilhão ter ao rio: o qual aguilhão, ou botelhão que sae fora do dereito do comaro da dita Lezira e' vay assi entestar na dita terra de Lois Caesar, também hé do concelho. O qual botelhão desdo dereito do comaro da Lezira acima dita das egoas ao longo da valla da dita vazacovas dereito ao Levante ate dar no esteiro, que divide este Botelhão da terra de Lois Caesar, ate onde o dito Botelhão faz hua Pontaguda, tem cincoenta e tres varas, e' vem ao Longo do dito esteiro dereito ao rio, levará de' semeadura tres alqueires. (sinal de pontuação) esta Lezira anda de arrendamento com as mais terras do C.º [Concelho] e lhe pagão della sua ração como das outras herdades suas, leva a dita Lezira de semeadura tres moyos de trigo.

Botelhada Huma terra de pam dicta Botelhada tem o C.º [Concelho] na varzea ao esteiro da Azambaninha o qual antre ella e a terra de Diego Velho iaz e com o dito esteiro parte da banda do levante e do Poente com corte do dito Diego velho per vallados e da banda do sul contra o rio de Benavente parte com terra de Joam Gomez Thrº e da banda do Norte contra o Mosteiro de Janicoy parte com terra de Violante de Meira, tem de largo ao longo do dito esteiro da Azambaninha cento vintecinco varas e medida ao longo pella banda do Mosteiro de Janicoy ate o cabo onde faz hua pontaguda embaixo onde entesta com corte de Diego Velho que foi de Alvaro Perdigão ate o cabo da dita ponta tem quatrocentas cincoenta e cinco

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varas e pella outra banda he mais curta, mas a dita testada vem a quinete per hu vallado alto per onde fica certa medida pella outra banda de comprido e medida de largo per esta parte par ndo com a dita corte de Diego Velho percima do Aguilhão onde a terra vai dereita de hua banda e doutra tem por hy duzentas e vinte varas (sinal de pontuação) leva de semeadura hu moyo de trigo. Esta botelhada foi de Alvaro Perdigão que ha escaymbou com o concelho por outra courella na varzea sob a barbeira que parte do Norte com courella da capella de Sam Bertholomeu e do Levante com courella de Margarida Mar nz et os […]

Courela Outra courella de terra na varzea tem o C.º [Concelho] a qual sae do esteiro da Azambaninha e do levante entesta no dito esteiro o qual vai antre ella e terra de Diego Velho e do Poente entesta en carril do C.º [Concelho] que vem da corte Peteia: e da banda do Norte que he pera o mosteiro de Janicoy parte com terra do sprital dos Meninos de Lixboa que per outro nome se diz ora terra das pestanas: e da banda do sul com terra de Fernão Roiz de Villa Viçosa per vallado e comaro. Tem a medida certa do Livro do concelho ∫∫ - no começo onde parte com Diego Velho pello esteiro da Azambaninha, tem vinte e quatro varas e m.ª [meia] e tres pées que sam as sete e tres do dito Livro e no meio tem dezanove varas e m.ª [meia] par ndo com corte de Diego velho, que foi de Joam da Rosa, tem desaseis varas e m.ª [meia] he muito comprida leva trinta alqueires de semeadura.

Corte dos Inncaes Huma corte que entra en Iuncaes toda vallada que parte do Norte com terras da foz do Conde da Castanheira e do sul com rio de pedra, e do Levante e Poente com Iuncaes do dito Conde. (sinal de pontuação) trouxe esta corte Bras Aª pagava della no C.ª [Concelho] hu moyo de trigo, ouvea delle Joam Gomez que dizem avela vendido ao dito Conde, ficando elle dito Joam Gomez de pagar o dito moyo de foro ao C.º [Concelho] e o Conde ysento delle com a corte propria leva de semeadura cinco myos antre ella e as terras da foz do conde vai par ndo per vallados. Todas as outras terras do C.º [Concelho] se arrendão, desta somente se paga hu moyo de foro. Canto de terra Hum canto de terra aque chamão do caneiro tem o C.º [Concelho] o qual sae da ponte de Traioute ete a estrada que deçe ás Somas em que entestão os Arneiros de Diego Velho que forão de Nuno Barbudo: e do sul parte com valla do paul de Traioute amaior parte desta terra he serven a como carril. Lavrase delle somente semeadura de pouco mais de hu quarteiro.

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Terra á boca de Dom Davi Hum pedaço de terra tem o concelho m.ª [meia] legoa da villaiunto da estrada que vai de Benavente pera Coruche e fica antre a dita estrada e o rio: com a qual estrada parte da banda do Norte: e com o rio sorraya da banda do sul, e com elle parte tambem do levante e do Poente porque está este pedaço de terra antre a dita estrada, e o dito rio agucando dambas as pontas não se lavra, nem semea, serve de porto en que bebem os gados: levara de semeadura hu saco de trigo.

Coutada Huma boa peça de terra há no termo da dita villa de Benavente chamada a Garrocheira(131) toda iunta circuitada e demarcada sobresi demais de mea legoa de muito soveral, não hé propriedade propria do concelho aiuntouse esta terra das testadas das terras que os moradores da dita villa naquella parte naquelle tempo nhão, rando cada hu desi sua parte, pera que servisse de pasto, e logração de seus gados de lavoura, e lhes ficasse como ficou em coutada, não pode pessoa alguma pao, madeira nem lenha, nem cortar, nem rar cousa alguma sem licença do C.º [Concelho] e a causa, porque os sobreditos, as ditas testadas de suas terras, que entestavão no termo da salvaterra, alargarão pera fazerem a dita coutada, foi, porque os de Salvaterra lhes encoimavão muitas vezes seus guados, e de cada cabeça lhes levavão quinhentos rs [reis]. E agora pastão os guados da Lavoura de Benavente nos matos de Salvaterra per provisam sem pena alguma, per provisam Del Rey, Santa gloria aJa, avida en tempo, que a villa de Salvaterra fora de Dom Nuno Manuel. (sinal de pontuação) parte a dita coutada da banda do Norte com termo de salvaterra per hua estrada, e marcos que por hi vão alogares desviados della: e da banda do sul, que hé dabanda da varzea pellas somas quanto cobre a augoa: e do Levante com Val da Boinseira, e do Ponente parte com valde Maria Negral, que tambem sae da varzea, ate dar no termo de Salvaterra.

Braçal Tem mais o concelho outra terra baldia chamada Braceal, que serve de pastos de guados, como a Garrocheira. Parte da banda do Norte com carril do C.º [Concelho] que sae da pescaria e vai dar na serra, e da banda do sul com terra do Conde de Penella sempre ate dar na serra, e da banda do Levante parte com matos concelhys do termo de Benavente: e do Poente parte com courella, que foi do barbudo. Vay outrosy a dita terra divisada, e confrontada per divisões, e confrontações en que não há duvida alguma.

(131) Há época a Garrocheira servia de pasto para gados.

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Iuncaes Hus iuncaes, e terra que estão alem da Ponte do rio de canha que estão cercados da banda do Norte com rio de Canha nova, e com rio de Pedra: e da banda do Poente com esteiro das Cerveiras, e do Sul e levante com rio de canha a Velha, sam do C.º [Concelho] (sinal de pontuação) E esta terra que outro tempo foi iuncaes esta feita agora en cortes, e são do Duque Daveiro, o qual dizem avellas comprado de hu homem ao qual o Mestre seu pay do Duque avia feito merçe delles, dos quais nenhuma cousa sepagava ao C.º [Concelho] sendo terra de muito proveito.

Corte do Boy Huma corte chamada do Boy tem o concelho na Varzea de Camora termo de Benavente, parte doNordeste com rio de pedra e do Sul com rio de canha, e do Levante com corte da ordem, que trouxe Luis Fogaça: e do Norte com esteiro do Boy, que vai antre ella e o Conde da castanheira, pello qual esteiro he hua testada della, e a outra entesta no dito rio de Canha, hé tambem Salgadiça, não sepode entrar pera semedir, há trinta annos que senão lavra, serve pera pastos sendo vazia de agoa, levaria perto de tres moyos de trigo de semedura.

Botelhão na corte de Lois Fogaça Por endereitarem a valla da corte da Ordem que trouxe Lois fogaça auida L.(ca) do Mestre Dom Jorge cortarão pella terra da dita corte do Boy a quan dade necessaria: aqual fica me da por do concelho dentro na da ordem, levará de semeadura podendose semear hu saco de trigo, também he salgadiça, e há tanto tempo como a do boy parte de todalas partes com a dita corte da ordem - ∫∫ - com vallas della e o rio de Canha a Velha. Todas estas propriedades do concelho estão per seus iteems lanaçadas en Livro do C.º [Concelho] posto que não com a solennidade, que en direito se requere como são as donde estas aqui forão neste livro lançadas per mandado Del rey nosso senhor.

Carril Ho primeiro carril em Ordem rado do Livro da camara he este oqual está da banda dalem do rio pegado com a ponte, hu pouco acima, donde soya estar a Ponte de pao. Vai pello rio abaixo par ndo com elle a entestar defronte da banda do Noroeste na terra de Lois Caesar, que foi de Mar m Estevez

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dos pees. Tem ao longo do dito rio desdo canto as dita ponte, donde começa ate entestar defronte da terra de Lois Caesar duzentas e oitenta varas de medir panno e da hy volve contra o Norte, e vay par ndo da banda do Poente com a dita terra de Lois caesar e vay en redondo volvendo sobre a mão direita, e a diante torna a fazer volta sobre a mão esquerda e vai assi en voltas ate dar no carril do C.º [Concelho] que entesta en terra da Capella de sam Bertholameu, e foi de Pero durão e depois de chegar á terra da dita capella, volve en redondo sobre a mão dereita e atravessa a calçada que vay da ponte pera Salvaterra fazendo volta contra o Rio ate entestar no esteiro que vai pello m.º [meio] da varzea a dar no outro esteiro, que vay pera a Ponte, do qual esteiro defere pera o Rio, onde se acaba: e o dito esteiro vai antre esta terra do C.º [Concelho] e terra de Ant.º [Antonio] Diaz Froez. Não semedio o mais desta terra por hir assi en voltas sem feição de se poder medir: não se semea, que se semeasse Levaria quarenta alqueires. Serve de logração de guados, e bestas. Mediose de traves do esteiro á terra de Lois Caesar, tem por hy duzentas e dez varas.

Barrocal Hum chão tem o C.º [Concelho] Barrocal, pendurado sobre o caminho que vai ao longo das ortas da lezira dos cavallos, pello alto do qual vão em fio, e lanço de casas de Isabel Aº Fernão Varella, Matheus Fernandez e lagar de Diego Correa com as traseiras das quaes casas parte da banda do Norte e do Sul com o dito caminho e do Levante entesta no caminho que vai ao longo do telhal do Arrabalde pera o Poco novo, e do Poente parte com recio do moinho de vento. hé da compridão das ortas da Lezira que são trezentas e quinze varas mais tres ou quatro que as ortas da o C.º [Concelho] do dito chão algumas par culas pera ortaliça de Inverno assi como se concerta com as pessoas, e lhas ra, quando lhe praz.

Curral Ho curral do concelho está saindo da villa pera o recio do chaveiro ficando a mão dereita. Parte do Norte com sayda, e serven a da villa pera o dito recio, e do Sul com chão da confraria do Espiritu Sancto: e do Levante com quintal da ordem, que traz Joam Alvarez, e do Poente com quintal de peroFernandez Gazel. Tem de largo treze varas de medir e de comprido dezanove e m.ª [meia] hé cercado de paredes altas de taipa e os alliceses de pedra e cal. Foi rado este trelado dos beens e propriedades do C.º [Concelho] da villa de Benavente do Tombo da Ordem e Mestrado Davis, que o Lecençeado Jorge Lopez per mandado Del Rey Dom Joam terçeiro deste

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nome que Deos tem ordenou, e delle fez as diligencias com o Lecençeado Manuel Thomas seu escrivão, o qual trelado eu Antonio Pinto escrivão dos Thombos das Ordens po ElRei nosso Senhor bem e fielmente rei do proprio, e com elle o conçertei com o riscado/ ando accressentado da camara, ficarão, encarregua./.sobejo/ tem dentro en si hua amoreira grande./emendado/ comprido de L. A P. / e vai escrito en vinte duas folhas com esta do concerto e a pe çam, que por parte do C.º [Concelho] da dita villa de Benavente se fez ao doctor Gonçalo Diaz pera se lhe dar este trelado fica en meu poder com hu despacho que diz que se lhe de, e por tudo ser verdade assinei aqui o fez 3 de Dez.º de 1574 risquei Nou. ------------------------------------------- Assinatura -

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Alfredo Betâmio de - O Convento de Jenicó 1542-1834. Câmara Municipal de Benavente; Abril de 1990 AZEVEDO, Alvaro Rodrigues d' - BENAVENTE Estudo Histórico-Descri vo. Lisboa; 1926 (Obra póstuma, con nuada e editada por Ruy d'Azevedo, professor do Liceu Camões) AZEVEDO, Alvaro Rodrigues d' - BENAVENTE Estudo Histórico-Descri vo. 2.ª Ed. Câmara Municipal de Benavente; 1981 AZEVEDO, Carlos A. Moreira; AZEVEDO, Ana Metodologia Cien fica. Contributos prá cos para a elaboração de trabalhos académicos. Porto: C. Azevedo; 1994. (Contém indicações para aplicação da NP405 Norma de referência bibliográfica) MARQUES, AH Oliveira, A Sociedade Medieval Portuguesa, 3.ª edição, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1974

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BENAVENTE QUINHENTISTA IMAGENS DO QUOTIDIANO NUMA VILA RIBATEJANA Mรกrio Jus no Silva Professor



O presente ensaio procura fazer uma incursão sobre o quo diano de uma vila ribatejana, Benavente, em meados do século XVI. Esta «viagem no tempo», seguindo de perto um livro de actas da Câmara, à distância de quatro séculos e meio, é sempre um desafio surpreendente. Trata-se de um documento precioso para a história local, não apenas pela sua raridade e reconhecida sinceridade, mas porque nos permite perscrutar um tempo cheio de inquietações e pleno de mudanças, como foi a centúria de Quinhentos.

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Percorrer o «Livro de Actas»(1) da Câmara de Benavente (1559 - 1564), foi uma revelação, um mergulho no tempo, no quo diano de uma vila sul-ribatejana de meados de Quinhentos. Trata-se, pois, de um documento singular sobre o palpitar do dia-a-dia da Benavente de meados do século XVI. Aquele foi um tempo marcado, recorde-se, pelas regências da rainha D. Catarina e do cardeal-Infante D. Henrique em virtude da menoridade de D. Sebas ão, o Desejado. Este «Livro de Actas», pela sua especificidade e pelas informações que encerra, permite-nos, pois, descer ao âmago de uma comunidade estra ficada, hierarquizada, estruturada com base na desigualdade social, como de resto era apanágio das sociedades de An go Regime. Com efeito, a desigualdade era algo de natural, fazia parte da representação mental colec va, isto é, havia homens superiores e homens inferiores, consoante pertencessem a determinados grupos hierarquizados. Era uma sociedade de corpos. Valorizava-se pouco o indivíduo. O importante era o corpo ou grupo social em que cada um se integrava, pois a graduação das pessoas não era feita em função da riqueza, mas da es ma que a comunidade atribuía a determinadas funções. Era isso que definia o estatuto social de cada membro da comunidade. Este mundo de corpos diferenciados e hierarquizados era, portanto, ao longo da época Moderna, algo de perfeitamente normal e aceite(2). Encontramos, neste peculiar documento, um diversificado conjunto de informações sobre as mais diversas realidades, desde as posturas da Câmara (registos de rendas, arrematações, fianças, nomeações, obrigações, tomadas de posse, confirmações, acórdãos, fixação de preços, de salários…), à toponímia, passando pelas profissões, pela paisagem, pelas gentes … numa panóplia quase interminável de aspectos que de algum modo nos permitem fixar e desvendar um pouco da Benavente de meados do século XVI.

(1) Um sumário deste Livro de Actas (de 1559 a 1561) foi publicado por Francisco Correia, Subsídios para a História Benaven na do século XVI. (Sumários de um Livro de Actas da Câmara de 1559 a 1564), Benavente, Câmara Municipal, 1995. Foi esta publicação que serviu de base a este nosso trabalho. (2) João Cordeiro Pereira, “A Estrutura Social e o Seu Devir”, in Nova História de Portugal, Dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. V, Do Renascimento à Crise Dinás ca, Coord. João José Alves Dias, Lisboa, Presença, 1998, pp. 277-284.

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Benavente, uma vila “de muito pouca gente” “Exíguo povoado”(3), orlado de vinhas e olivais, hortas e pomares, pauis, arneiros, várzeas e esteiros, Benavente devia ter uma população pouco numerosa: “esta vila era de muito pouca gente”(4). O casario, modesto e sóbrio, distribuía-se em redor do largo da Igreja Matriz(5) , e também em torno da Praça onde se encontrava a “casa da camara”(6), o Pelourinho, de “muito boa pedraria laurada alto com seus ferros e Grimpa e cruz de Sam Bento com suas Pomas douradas, com cinco degraos a redondo da mesma pedraria”(7). A igreja, da invocação de Nossa Senhora da Graça, era o maior monumento da vila, com as suas duas altas torres sineiras que se podiam avistar à distância. Era uma igreja “grande, sólida e singela”(8). Seria por ali, certamente, entre o adro da igreja e a Praça, que pulsava o coração da vila. Era ali o centro do poder poli co, judicial, económico e religioso da comunidade. As praças estavam muito ligadas ao desenvolvimento do mercado, acabavam por ser o prolongamento dos adros das igrejas(9). Lá se vendiam os mais diversos produtos, lá se faziam as arrematações das rendas do concelho e, enfim, se desenrolava todo um conjunto de ac vidades que envolviam diariamente quem trabalhava pelo sustento, pela sobrevivência do agregado familiar. Note-se que a noção de família, naquela época, não se restringia aos membros unidos por laços de sangue, mas alargava-se ao conjunto de todos os indivíduos que habitavam na mesma casa e que dependiam social e materialmente do cabeça de casal. O casamento, que pouco nha a ver com o amor e os afectos, era mais uma relação económica e era, sobretudo no mundo rural, uma forma de reprodução, ou seja, de produção de filhos que sustentassem o trabalho familiar(10). Na Benavente quinhen sta, as habitações eram por certo de frágil estrutura. Algumas apresentavam, como se refere no documento, fissuras nas paredes, ou mesmo buracos onde inclusive os pardais se acoitavam e procriavam(11), sinal da modés a de quem nelas vivia e da precariedade dos materiais u lizados na sua construção. Havia no entanto quem ostentasse “parede bordada”(12) nas suas moradias, luxo só acessível às bolsas mais abastadas, às “pessoas poderosas”(13) da terra, aos “homens honrados” que habitualmente ocupavam cargos na governação da vila. (3) Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Benavente – Estudo Histórico-Descri vo, Lisboa, s. l.,1926, p. 15. (4) Idem, Op. Cit., p. 112. (5) Era o maior monumento da vila, com as suas duas altas torres sineiras que se podiam avistar à distância. Era uma igreja “grande, sólida e singela”

(Cfr. Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Op. Cit., p.32).Ficou em ruinas com o terramoto de 23 de Abril de 1909. (6) Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Op. Cit., p.58. (7) Idem, Op. Cit.. (8) Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Op. Cit., p.32).Ficou em ruinas com o terramoto de 23 de Abril de 1909. (9) Maria Ângela Beirante, O Ar da Cidade: ensaios de história medieval e moderna, Lisboa, Colibri, 2007, p. 60 (10) Maria João Lourenço Pereira, “O Afecto”, in Nova História de Portugal, vol. V…, p. 659. (11) Francisco Correia, Op. Cit., p. 34. (12) Idem, Op. Cit.,. (13) Idem, Op. Cit.,, p.83.(14) Francisco Correia, Op. Cit., p.32.

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Já havia no século XVI algumas ruas “calçadas” na vila de Benavente, o que facilitava as deslocações e o transporte das mercadorias. Mas a sua reparação e conservação era dispendiosa. Por vezes, a vereação mandava calcetar as ruas à custa dos respec vos moradores. Numa das actas diz-se mesmo que o concelho gastava todos os anos muito dinheiro na reparação das calçadas, muito danificadas pela passagem de “carros” e “carretas”(14). Próximo da ponte, que ligava a Salvaterra de Magos, localizava-se o poço da vila, “o único por onde o povo bebe”(15) e que, no ano de 1563, necessitava de reparação urgente por estar “muito desmanchado”. Era a principal fonte de abastecimento de água de que a população dispunha: “daí bebia toda a gente desta vila”(16). Eram, pois, compreensíveis todos os cuidados da Câmara em tentar preservar a qualidade da água. Todavia, conta-se que um tal Ensenso Fernandes abrira uma vala a céu aberto numa horta que cul vava mesmo junto ao poço da vila. A vala lançava muita sujidade no poço. Este, no Verão, exalava um “ruim cheiro”(17). A Câmara, através do porteiro do concelho, in mou o prevaricador a tapar a referida vala, sob pena de 1000 reais de multa e cadeia. A resposta foi teimosamente desconcertante: “respondeu que não havia de tapar”. .. Na zona limítrofe da vila, extramuros, no lado Sul, ficava o Arrabalde(18). Era um pequeno bairro suburbano(19) disposto ao longo de um muro “baixo e fraco”(20), que, na Idade Média, deveria cons tuir talvez uma pequena estrutura defensiva. Presume-se que nunca chegou a ser concluído, no entanto terá perdurado até finais do século XV. Ainda fora de portas, havia o Rossio do Chaveiro, um campo valado, preenchido com oliveiras e zambujeiros onde se erguia uma grande cruz de pau e, ao fundo, localizava-se a forca do concelho(21). Estas estruturas, de execução da pena capital, ficavam sempre extramuros(22). Seis marcos de pedra, “lavrados”(23) e ostentando a cruz de Aviz, demarcavam o limite com os concelhos vizinhos de Salvaterra de Magos e Coruche. Dois deles, os de maior dimensão, nham nove palmos de altura, dois de «testa» e palmo e meio de grossura. Os restantes quatro nham sete palmos de altura.

(14) Francisco Correia, Op. Cit., p.32. (15) Idem, Op. Cit.,, p. 118. (16) Idem, Op. Cit.,, p. 138. (17) Idem, Op. Cit.,, p. 138. 18) Termo de origem árabe que significa espaço extramuros, do «amuralhado» das vilas e cidades. (19) Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Benavente – Estudo Histórico…, p. 57. (20) Idem, Op. Cit.,, p. 18 e 41. (21) Idem, Op. Cit.,, p. 56. (22) Maria Ângela Beirante, O Ar da Cidade…, p. 62 (23) Francisco Correia, Op. Cit., p.58.

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No termo de Benavente ficavam os povoados de São Braz da Barrosa e Santo Estêvão da Ribeira de Canha. Apesar de tudo, não deixavam de ocorrer conflitos entre os concelhos limítrofes, mo vados quase sempre por divergências em relação à propriedade das terras e quanto à localização da extrema que delimitava os concelhos. Saber se uma terra pertencia a um ou a outro concelho, mo vava acesas disputas e demandas. São referidos, por exemplo, abusos de alguns moradores de Salvaterra de Magos que entravam e lavravam terras pertencentes a Benavente. Conhecidos são também as demandas e o nível de conflitualidade entre, por exemplo, os vizinhos concelhos de Coruche, Erra e Santarém em torno da definição dos limites territoriais de cada concelho.

«Eleições» para os oficiais da Câmara A escolha dos oficiais da Câmara (juízes, vereadores e procurador) era realizada nos úl mos dias do ano. O ouvidor do mestrado da ordem de Aviz elaborava três “pelouros”, ou seja listas com nomes para os vários cargos. Os “pelouros” eram depositados no “cofre das eleições” da Câmara que dispunha de três fechaduras diferentes. Em fins de Dezembro procedia-se ao “sorteio” de um dos pelouros. Abria-se o cofre das eleições, com as três chaves, cada uma na posse de uma pessoa diferente. Re ravam-se, de dentro de uma bolsa, os “pelouros” que eram então colocados dentro dum chapéu e embaralhavam-se. Depois, uma criança me a a mão dentro, re rava um dos “pelouros” e abria-o. De lá saiam então os nomes dos oficiais. Os “pelouros” restantes eram depositados de novo na bolsa que, depois de fechada e atada, era novamente colocada no referido cofre, fechado sempre com as três chaves. Os recém eleitos tomavam posse, através de um juramento, com a mão sobre os “Santos Evangelhos”, jurando bem servir o concelho. No caso de serem sorteados nomes de pessoas entretanto já falecidas ou, por algum mo vo, ausentes do concelho e impossibilitados de assumirem o cargo, era feita de imediato a eleição do subs tuto. Neste caso, a eleição efectuava-se pelo maior número de “vozes” (de votos) de entre os presentes na ocasião. Geralmente, eram pessoas que, pelo seu status, nham já alguma experiência no desempenho de cargos ligados à governança do concelho.

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Quadrilheiros: patrulhamento de ruas e caminhos Ao fim da tarde, o toque das Avé-Marias ao pôr-do-sol convidava a população ao recolhimento e à oração, anunciando o cair da noite que se aproximava. Era o momento de recolher a casa. No tempo das “cheias e invernadas e tempestades de escuro”(24), acendia-se o farol. Este funcionava a azeite e era um auxiliar da navegação fluvial ao longo do Rio Sorraia. Porém, quando algum proprietário não permi a a colocação do farol nas casas que nham junto ao rio, cabia ao procurador do concelho providenciar a colocação do farol no cimo de um “mastro alto de um pinheiro defronte da ponte”(25), zelando para que permanecesse sempre aceso. Caía a noite e, com ela, um conjunto de perigos e de violências espreitavam a cada instante. Era preciso garan r a segurança de ruas e caminhos. Grupos de quadrilheiros, nomeados na Câmara para o efeito, nham o encargo de patrulhar as ruas da vila. Cada quadrilha, chefiada por um “cabeça”, nha a seu cargo, durante um determinado período de tempo, o patrulhamento específico de determinadas ruas. Cada quadrilha era composta por um conjunto de habitantes, das mais diversas ocupações: carpinteiros, alfaiates, sapateiros, oleiros, cabreiros, barqueiros, ferreiros… que vigiavam as ruas que lhes nham sido atribuídas. As preocupações com a segurança cresciam, por certo, em épocas de fome, agravamento do custo de vida, e maus anos agrícolas que eram campo fér l à criminalidade. A Câmara estava com dificuldades financeiras e o ambiente era de crise.

1559-64: anos de “muita necessidade” Viviam-se em Benavente, e na região, naqueles anos de meados da centúria de quinhentos, tempos di ceis(26). Aliás, há registos de magras colheitas já desde 1540 e anos seguintes(27). O pouco trigo que havia era preciso para semente, “por a estrelidade nõ somête ser nesta vila mas em todo o reino e as semêtes desta vila serê tremezes que se acha em poucas terras deste reino”(28).

(24) Idem, Op. Cit.,, p. 33. (25) Idem, Op. Cit.,, p. 34. (26) Em 1558, o provedor da Casa do Espírito Santo mandou distribuir pelas “pessoas honradas pobres e envergonhadas” 90 alqueires de milho do

Hospital. O Cardeal-Infante enviou, para o mesmo fim, mais 20 cruzados (cfr. Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Benavente – Estudo Histórico…, p.104). (27) Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Op. Cit., p.102. (28) Idem, Op. Cit., p.103

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Procurava-se que receitas provenientes de certas coimas, de rendas, ou até do cofre dos órfãos, fossem aplicadas em importantes obras públicas, de que a vila de Benavente tanto carecia: obras na ponte, no poço, na cadeia…. Havia, em especial no ano de 1561, “muita esterilidade”(29), ou seja falta de pão(30), tremenda escassez de cereais, sobretudo trigo, por uma sucessão de maus anos agrícolas. Os gados passavam fome. Exis a “muita necessidade”(31) na vila e seu termo “por não haver que comer”. Foram, portanto, anos de seca, calor intenso e pouca chuva em Benavente. Os “gados da lavoura”(32) não nham que comer, devido à acentuada quebra na produção de cereais. O gado vacum era “o principal gado por onde os homens vivem”(33) e considerado a “principal riqueza desta vila”(34). Aliás, marchantes de Lisboa costumavam deslocar-se a Benavente para comprar bois, vacas, porcos… para a respec va carne ser depois vendida no açougue da capital do reino, mas só a par r da Páscoa, por força do jejum quaresmal. Para superar todas estas dificuldades, decorrentes da escassez de cereais e da falta de comida para o gado, um dos expedientes a que se recorria era a autorização para, excepcionalmente, se “descoutar os coutos”(35), permi ndo que o gado entrasse em terras defesas. O “gado miúdo”(36) – ovelhas, cabras, porcos(37)… – assumia também grande importância para a subsistência das populações. Na Garrocheira, lugar de espessos matagais, abundavam os lobos que, não raro, lançavam o pânico nos rebanhos. A Câmara permi a então que se queimassem os matos naquele lugar inóspito para afugentar os lobos, devido ao “prejuízo que causam aos gados”(38). As doenças do gado, que dizimavam muitas rezes, preocupavam os proprietários e as autoridades concelhias. Havia um extremo cuidado na detecção e controlo das “bestas gafas”(39). Os lavradores eram obrigados a manter em casa os animais doentes ou a matá-los, evitando assim que transmi ssem “gafeira a outras bestas de boa saúde”.

(29) Francisco Correia, Op. Cit., pp.71 e 73. Também na região de Évora houve falta de cereais em 1561 e 1562 (cfr. Gabriel Pereira, Documentos Históricos da Cidade de Évora, Parte II, Évora, 1887, p.270). (30) Francisco Correia, Op. Cit., pp. 64 e 68. (31) Idem, Op. Cit.,, p. 70. (32) Idem, Op. Cit.,. (33) Idem, Op. Cit.,, p. 79. O “gado de lavoura” ou bois de arado desempenhavam um papel fundamental no amanho das terras. (34) Idem, Op. Cit.,, p. 82. (35) Idem, Op. Cit.,, p. 70. (36) Idem, Op. Cit.,, p. 30. (37) Idem, Op. Cit.,, p. 86. (38) Idem, Op. Cit.,, p. 120. (39) Idem, Op. Cit.,, p. 52.

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Estalagens: apoio a viajantes e peregrinos Ligadas à segurança de caminhos e povoações, as estalagens desempenhavam um importante papel na dinamização e desenvolvimento comercial das vilas e cidades do reino. Era necessário criar estruturas para acolhimento e hospedagem a quem demandava as povoações. Na verdade, a Coroa incen vava os concelhos a construírem as suas estalagens. Para isso havia que dar privilégios aos estalajadeiros. Era uma forma de incen var a expansão da rede de abastecimento às povoações e a própria circulação de pessoas e bens entre os vários pontos do reino. Na época, a circulação ainda estava condicionada, não apenas pelo número insuficiente de vendas, estalagens – locais de abrigo a viajantes, caminheiros, peregrinos… – mas também pela insegurança dos caminhos devido à acção de assaltantes e marginais e pelos ataques de animais ferozes(40). Um regimento de 1572 es pulava, para as estalagens, o po de cama, consoante a dignidade dos seus ocupantes. Para os «escudeiros» 1 almadraque e colchão, 2 lençóis, 1 cobertor de papa e 1 travesseiro enfronhado. Para os «homens de pé» 1 almadraque, 2 lençóis, 1 manta de Alentejo e cabeçal(41). Já no século XVII, Bartolomé Joly, que entre 1603 e 1604 viajou por Espanha, testemunha que estalagens e vendas só ofereciam cama, sal, azeite e vinagre. Tudo o resto nha que ser o próprio viajante a trazer. E isto apesar de uma ordem de Filipe II que em 1560 obrigara os estabelecimentos instalados ao longo dos caminhos a fornecer também comida(42). Em Benavente parece ter havido, a par r de 1563, uma estalagem, explorada por um tal Mateus Dias. A «concessão» era por um período de três anos, em «regime de exclusividade», tendo o estalajadeiro a obrigação de dar aos viajantes, cama, comer, agasalho e ter estrebaria com palha e cevada para os cavalos(43). Um alvará régio de 1558 determinava que em todos os lugares do Mestrado de Avis, exis ssem casas disponíveis para aposentar o ouvidor do Mestrado e seus acompanhantes aquando das suas deslocações.

(40) Isabel Maria Ribeiro Mendes Drumond Braga, “A Circulação e a Distribuição dos Produtos”, in Nova História de Portugal, vol. V…, pp. 195-200. (41) Vítor Manuel Pavão dos Santos, A Casa no Sul de Portugal na Transição do século XV para o século XVI, 1964 (texto policopiado), p.188. (42) César Aguilera, História da Alimentação Mediterrânica, Lisboa, Terramar, 2001, p. 217. (43) Francisco Correia, Subsídios Para a História…, p. 108.

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A alimentação A base da alimentação(44) da população portuguesa estava no pão, na carne, no peixe e no vinho. No essencial, eram estes os produtos que se vendiam nas tabernas. No documento há também curiosas referências a arroz, avelãs, castanhas piladas(45), apregoados pelas “vendeiras”. Cereais como o trigo, milho, centeio, cevada, eram u lizados no fabrico do pão. O grão era levado para as diversas moendas(46): para o moinho de Magos, para o da Aldeia Galega (actual Mon jo); também para as azenhas de Fidalgos (na actual freguesia de Biscainho, concelho de Coruche), da Ribeira de Canha, do Serrão, da Lançada (no Mon jo), de Sarilhos (no Mon jo). A moagem para consumo local era feita nas várias atafonas que havia na vila(47). Do trigo fazia-se o pão alvo, o mais caro de todos e também o mais desejado: “Não há pão como o pão alvo/Nem carne como a de carneiro/Nem peixe como a pescada/Nem amor como o primeiro”. As padeiras eram obrigadas a fazerem-se acompanhar de balança(48) para pesar o pão que vendiam. O transporte de mercadorias por terra era, no essencial, assegurado por carreteiros e almocreves, através de “carros”, “carretas”, puxados por “bois de cingel” ou “vacas de canga”. Por via fluvial transportava-se pessoas e bens, em barcas e batéis que laboravam no Rio Sorraia, aos cuidados de barqueiros e arrais. Era por via fluvial que chegava o pescado proveniente de Lisboa, nomeadamente sardinhas e atum. A faina piscatória no curso do rio Sorraia teria um importante valor económico. As espécies piscícolas pescadas no rio referidas no documento são o sável e a taínha. Cada pescador de Benavente nha o seu dia es pulado para, com a devida autorização da Câmara, vender à sua porta dois sáveis(49), mas com a obrigação de u lizar apenas e só os pesos adoptados pela Câmara. O peixe, trazido de Lisboa ou pescado à rede ou à cana no rio Sorraia, era vendido à posta ou a peso. O que era vendido a peso não podia ser molhado nem sacudido do sal. O sável, por exemplo, era habitualmente vendido à posta. Havia as postas abertas, as postas fechadas, as pequenas do rabo, as da cabeça e as do “degoladouro”.

(44) A generalidade da população tomava duas refeições diárias. O jantar, por volta das 10/11 horas, e a ceia cerca das 18 horas. O almoço, quando havia, era tomado logo depois de levantar (cfr. João Pedro Ferro, Arqueologia dos Hábitos Alimentares, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996, p. 19). (45) Na Quaresma, era hábito em Benavente comer-se a chamada «sopa de jejum», confeccionada com castanhas piladas (Cfr. Mário Jus no Silva e Maria Filomena Santos Henriques, Aspectos da Religiosidade Popular no Concelho de Benavente, Benavente, Câmara Municipal, 1999, p.42). (46) Moendas ( = engenhos de moer, como moinhos, azenhas, atafonas). (47) Álvaro Rodrigues d'Azevedo, Op. Cit., p. 54. (48) Francisco Correia, Op. Cit., pp.79 e 92. (49) Idem, Op. Cit.,, p. 54.

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Eram também vendidas as muito apreciadas ovas e, dos machos, os “ gados”(50). O pescado era preparado de diversas formas: “de fumo”(51), seco ao sol, fresco, salgado e cada “vendeiro” nha que, obrigatoriamente, trazer consigo a «bitola» do concelho para medir o pescado a vender. No que diz respeito à carne, refere-se que a cozida era vendida à posta(52). Vendia-se também carne de porco “requentada”(53). O vinho, por seu turno, ocupava um lugar central na dieta alimentar da generalidade dos portugueses de Quinhentos, desfrutando de uma enorme popularidade. É que a alimentação era, regra geral, pesada e condimentada, exigindo, portanto, que se bebesse muito(54). E bebia-se sobretudo vinho. Os mais comuns eram, ao que parece, vinhos mais doces que alcoólicos e por isso bem tolerados pelo organismo, possibilitando elevados consumos diários, na ordem dos dois litros por pessoa(55). Para vender vinho em Benavente, como consta no «Livro de Actas», era necessária a respec va autorização da Câmara que pretendia evitar quebras no seu fornecimento ao longo do ano e especulações no seu preço, garan ndo que todo o ano houvesse no concelho vinho “atabernado”(56). Quem pretendesse vender vinho da sua colheita, era obrigado a, junto do almotacé – o oficial incumbido de vigiar todos os o cios urbanos –, fixar o respec vo preço(57). Só em casos excepcionais (por exemplo o da manifesta falta de vinho no concelho), era autorizada a entrada em Benavente de vinho vindo de fora, porém, o seu preço não podia ultrapassar determinado valor. Também a venda de vinho de Benavente para fora do concelho estava grandemente condicionada. Todos os anos deslocava-se a Benavente um mestre tanoeiro, proveniente do Porto, contratado para “consertar a louça dos vinhos”(58). O consumo excessivo do «precioso néctar» era uma preocupação constante das autoridades, pois cons tuía um potencial gerador de comportamentos sociais desregrados e causa de conflitos e desordens que as autoridades pretendiam evitar ou, pelo meno, minimizar. Apesar de publicamente condenado, o consumo de vinho em excesso não estava no entanto confinado apenas à “gente comum”(59).

(50) Idem, Op. Cit.,, p. 80. (51) Idem, Op. Cit.,, p. 74. As sardinhas (frescas, salgadas ou fumadas) eram muito apreciadas, sobretudo junto das camadas mais desfavorecidas.

O seu preço era acessível. (52) Idem, Op. Cit.,, p. 73. (53) Idem, Op. Cit.,, p., 24. (54) A. H. de Oliveira Marques, “Dossier da Vida Quo diana”, História-8º ano, Lisboa, Texto Editora, 1999, pp. 10-11. (55) Mário Paulo Mar ns Viana, Os Vinhedos Medievais de Santarém, Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Lisboa, 1996, pp. 131-137. (56) Francisco Correia, Op. Cit., p. 27. (57) Idem, Op. Cit.,, p. 28. (58) Idem, Op. Cit.,, p. 96. (59) Idem, Op. Cit.,, p. 20.

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Sabe-se por exemplo que muitos frequentadores da Corte chegavam a mas gar erva-doce, canela ou mesmo folhas de louro para disfarçar o cheiro intenso a álcool. De tal modo que o aroma do louro passou a ser indica vo de consumo de vinho(60) e, por isso, mo vo de chacota e zombaria, inclusive no ambiente palaciano. Conta-se que certo dia o próprio D. João III fez escarnecer de vergonha um seu escrivão da câmara. Este, quando foi a despacho junto do rei, mas gava louro para disfarçar o cheiro a álcool. O monarca, percebendo o ar cio, perguntou-lhe com ironia: “debaixo do louro há boa sombra ?”(61). Apesar de todas as restrições e interditos, o vinho era, verdadeiramente, visto com um símbolo de alegria e contentamento. Vinho entornado na mesa era, como dizia a tradição, sinal de alegria(62) e nhase tal facto por um bom augúrio, desejando-se que a alegria entre todos se espalhasse(63). Nos provérbios e ditos populares sobre o vinho, alguns de raiz muito an ga, encontramos exemplos que apontam num duplo sen do. Uns revelam um carácter moralizador e de condenação dos excessos: “Quem amigo é do vinho, inimigo é de si mesmo”; “O vinho em excesso/ nem guarda segredos, nem cumpre promessas”; “Quando o vinho entra, o juízo sai”; “Quem bebe muito vinho / Perde o no”; “Vinho e mouro / Não é tesouro”; “Bebe vinho, não bebas o siso”. Outros há que enaltecem as virtudes do vinho: “O pão de hoje, a carne de ontem e o vinho do outro Verão/ Fazem o homem são”; “Se queres ser bem disposto/ Bebe vinho e manja mosto”; “O bom vinho faz bom sangue”; “Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salta aos olhos”; “O bom vinho alegra o coração do homen”.

(60) Sebas ão Pestana, O Pranto de Maria Parda de Gil Vicente, Sá da Bandeira [Angola], s.n., 1975, p.69. (61) Ditos Portugueses Dignos de Memória. História Ín ma do século XVI, 3ª ed., anotada e comentada por José Hermano Saraiva, Lisboa,

Publicações Europa-América, 1997, p. 45. (62) Fernando Braga Barreiros, “Tradições Populares de Barroso (Concelho de Montalegre)”, Revista Lusitana, Dir. J. Leite de Vasconcelos, vol.

XIX, nº1-2, 1916, p. 98. (63) Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, Introdução, notas e fixação do texto de José Adriano Freitas de Carvalho, Lisboa, Presença, 1992,

p. 196.

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Caça: entre a diversão e a subsistência Não se pode falar de alimentação, no quadro socioeconómico e mental do século XVI, sem falar da prá ca da caça. Com efeito, a caça, para os grupos sociais subalternos, cons tuía um importante meio de subsistência e complemento da economia familiar(64). Ao invés, para os grupos sociais privilegiados a caça grossa era um desporto, uma ac vidade lúdica e também de preparação para o exercício das armas e treino militar, cons tuindo uma espécie de simulacro da guerra em tempo de paz. Era uma imagem de marca, um dis n vo da superioridade do status de quem a podia pra car. Mas a existência de um excessivo número de coutadas, terras onde só os seus proprietários podiam caçar e reservadas ao desfrute dos Grandes, levou a sucessivos protestos das populações em vários pontos do reino. As populações sen am-se lesadas com a existência de tais privilégios “por nos regnos haver muitas coutadas, & officiais dellas”(65). Por isso, era frequente a “gente comum” cometer abusos recorrendo à caça fur va, com a u lização de furões e outros expedientes e ar cios, nomeadamente armadilhas com laços e redes. Essas prá ca nham tendência a aumentar de intensidade em épocas de escassez de alimentos. De resto, no «Livro de Actas», que temos vindo a analisar, vem bem expressa uma determinação, dirigida aos homens que exerciam os o cios de barqueiros, sapateiros, ferreiros, alfaiates e de outros mesteres, proibindo-os de caçar coelhos, lebres ou perdizes u lizando cães ou furões(66), pois os Grandes tentavam impedir que as coutadas fossem devassadas, pelo recurso em excesso à prá ca da caça fur va.

(64) As carnes e as peles dos animais caçados nham grande interesse gastronómico e valor comercial. (65) Capítulos gerais das Cortes de 1498, cit. por Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. III, O Século de Ouro (1495-1580), 2ª ed.

revista, Lisboa, Verbo, 1988, p. 305. Alguns anos depois, D. Sebas ão, através de Regimento de 27 de Abril de 1569, procedeu à demarcação da importante coutada de Salvaterra de Magos (cfr. Biblioteca da Academia da Ciências de Lisboa, Legislação Portuguesa, IV (1560-1604), nº 37). (66) Francisco Correia, Op. Cit., p.90.

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Um conjunto diversificado de servidores Ao serviço das “pessoas poderosas” de Benavente, estava, como detectamos no documento, um conjunto diversificado de servidores, homens e mulheres que desempenhavam tarefas diversas e que pertenciam aos estratos mais baixos da população. Encontramos no cia, por exemplo, de um escravo negro, de nome Salvador(67), carregando grão, com as bestas do seu senhor, para a Azenha dos Fidalgos; um outro escravo trabalhava numa barca(68) entre o porto de Benavente e Lisboa, sob as ordens do arrais Diogo Velho. Em maior número são as referências a mancebos, também designados de criados. Eram moços, talvez assalariados, que em duas bestas transportavam o grão para as moendas. Quanto às escravas negras, ca vas(69), vendiam pescado, pão e outros produtos. E porque eram propriedade de pessoas poderosas da terra, vendiam frequentemente os produtos não obedecendo às posturas da Câmara(70), com a cumplicidade dos seus amos. Acabavam por ser ví mas de jogos de poder e conflitos de interesses, apanhadas no «fogo cruzado» entre os interesses da Câmara e os privilégios dos senhores da terra.

Mulheres: vigilância e controlo social Do conjunto de referências às gentes que habitavam em Benavente, encontram-se interessantes alusões ao universo feminino, nomeadamente acerca do comportamento das mulheres e a vigilância e pressão social que sobre elas era exercida. Em 1559 a Câmara deliberou expulsar da vila algumas mulheres: as que “estão na casa de Catarina Pais”(71); uma que “está na casa do ferreiro”; outra que era “manceba de Gaspar Dias”; outra “criada que foi de Gaspar Lourenço” e todas as mulheres que se achassem no Arrabalde. Eram acusadas de roubo e de pra carem “outros inconvenientes”.

(67) Idem, Op. Cit., p. 31. (68) Idem, Op. Cit.,, p. 127. Curiosamente, a par r de 1572, o regimento dos barqueiros de Lisboa proibia que as barcas ou batéis vessem por

arrais ou ajudante “nenhum home mourisco nem índio ne preto ne mulato quer seja forro quer cap vo” (cfr. Livro dos Regimetos dos Officiaes mecânicos da mui nobre e sepre leal cidade de Lixboa (1572), publ. por Virgílio Correia, Coimbra, 1926, cap. LXIII, pp. 192-197). (69) Francisco Correia, Op. Cit., p. 54. (70) Idem, Op. Cit.,, p. 80. (71) Idem, Op. Cit.,, p. 20.

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Que inconvenientes seriam esses ? que suspeitas recairiam sobre elas ? seriam mulheres alcoviteiras? fei ceiras?(72) barregãs? pros tutas?(73) Apesar das pros tutas pertencerem a um grupo socialmente reprovável, a sua ac vidade era vista na época, mas sobretudo nas cidades, como um mal menor e até, dentro de certos limites, uma ac vidade tolerada(74). Todavia, num meio pequeno como Benavente, é muito provável que essa tolerância fosse substancialmente restringida uma vez que o controlo social seria mais apertado. O documento refere ainda a existência de “mancebas”, “criadas”. Tratavam-se, por certo, de mulheres «recrutadas» junto das camadas mais pobres da população, des nadas a serem concubinas, “criadas de cama e mesa”(75). O pagamento que recebiam pelos seus trabalhos era considerado comércio lícito. Cerca de três anos depois das expulsões de mulheres, decretadas pela Câmara, a vereação constatando que con nuavam a exis r em Benavente “muitas mulheres solteiras que não têm amo nem vivem com ninguém”(76), deliberou que tais mulheres deveriam sair da vila. Entretanto, as casadas que viessem para Benavente viver com seus maridos, nham de, no prazo de oito dias, “dar no cias de si”(77) e “mostrar donde vêm”. Esta desconfiança, apertada vigilância e controlo social sobre as mulheres, entronca na «herança» medieval que via a mulher como “agente de Satã”(78). O século XVI actualizou a caracterização do sexo feminino, cuja imagem da mulher estava associada a um estatuto de menoridade e cujos traços mais marcantes eram a sua fraqueza e debilidade: “Oh minha mãe, que cousa é casar ?/ Chorar, parir e fiar”(79).

(72) Considerava-se que as mulheres que pra cavam a fei çaria estavam a promover, directamente ou através de ar cios e poções, o adultério de todo o po de mulheres (cfr. Francisco Bethencourt, O Imaginário da Magia. Fei ceiras, Saludadores e Nigromantes no século XVI, Lisboa, Projecto Universidade Aberta, 1987). (73) Curiosamente, no mesmo ano de 1559, a vereação da cidade de Coimbra estava preocupada com o facto de não se poder dis nguir as “mulheres solteiras que ganham sua vida por seu corpo” das mulheres honradas quando todas estavam na igreja. Deliberou então que, na rua ou na igreja, as pros tutas teriam de usar o manto pelos ombros e não sobre a cabeça (cfr. Alberto Rocha Brito, As epidemias do século XVI e as Câmaras de Coimbra, sep de IIIe Congrès Interna onal d'Histoire des Sciences. Actes, Conferences et Communica ons, Lisboa, Seara Nova, 1936, p. 288). Em Lisboa, havia a obrigação das mulheres da mancebia usarem lenço cor de açafrão (Cfr. Maria Ângela Beirante, Op. Cit., p. 83). (74) Lembre-se que já no século XIII um homem da Igreja como S. Tomás de Aquino defendia a tolerância para com a pros tuição desde que confinada e pra cada em bairro isolado. (75) Ângela Mendes de Almeida, O Gosto do Pecado: Casamento e Sexualidade nos Manuais de Confessores dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Rocco, 1994, p. 94. (76) Francisco Correia, Op. Cit., p. 88. (77) Idem, Op. Cit.,, p. 87. (78) Ana Isabel Buescu, Imagens do Príncipe. Discurso Norma vo e Representação, Lisboa, Cosmos, 1996, p. 216. (79) Teófilo Braga, O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986, p.259.

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Nota conclusiva Documento precioso para a história local, este «Livro de Actas», à distância de quatro séculos e meio, convida-nos, a cada passo, para uma viagem no tempo. Um tempo cheio de incertezas e inquietações, medos e interrogações, num universo mental onde predominava o fabuloso e o fantás co e onde a ausência de fronteiras claras entre o real e o imaginário cons tuíam traços caracterizadores da mentalidade daquela época(80). Um mergulho no quo diano que é também um desafio. Um quo diano sempre di cil de perscrutar na sua complexidade e em toda a sua extensão. É notória, no documento em apreço, a «avalanche» de deliberações, norma vos, regras, proibições… Seria toda essa complexa e exaus va regulamentação exequível ? Estaria o poder concelhio em condições de fazer cumprir todas as posturas municipais? Ora, as sucessivas deliberações tomadas sobre os mesmos assuntos, cons tui porventura o sinal de que muitas posturas não seriam cumpridas. Só assim se explica a referência (quase sistemá ca) a assuntos recorrentes, bem como a necessidade de retomar deliberações que, notoriamente, se arrastavam no tempo, sem serem cumpridas, pelas mais diversas vicissitudes. No olhar atento que lança sobre a realidade do seu tempo, e apesar da sua reconhecida sinceridade, este documento, pela pena do seu autor – o escrivão da Câmara –, trata com sub leza assuntos de algum melindre, não desvendando por completo certos casos e acontecimentos. Um dos casos, a que já se fez referência, foi o da expulsão de algumas mulheres, ordenada pela vereação, acusadas de pra carem “inconvenientes”. O outro caso, esse mais enigmá co, foi o despedimento do sico do concelho, o licenciado António Vaz. A acta mais uma vez não revela os verdadeiros mo vos que es veram na origem da decisão da vereação. Apenas se alegam “alguns justos respeitos que se não podem aqui escrever”(81). Em suma, os livros de actas das câmaras, mormente os do século XVI, são ferramentas preciosas para ajudar a desbravar os caminhos que hão-de levar a um melhor conhecimento da história dos múl plos concelhos e lugares deste país, numa época tão complexa e simultaneamente tão exaltante como foi a centúria de Quinhentos.

(80) Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2ª ed., vol. I, Lisboa, Presença, 1981, pp.36-41. (81) Francisco Correia, Op. Cit., p. 96.

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Referências Bibliográficas Aguilera, César, História da Alimentação Mediterrânica, Lisboa, Terramar, 2001 (1ª ed. espanhola de 1997). Almeida, Ângela Mendes de, O Gosto do Pecado: Casamento e Sexualidade nos Manuais de Confessores dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Rocco, 1994. Azevedo, Álvaro Rodrigues d', Benavente – Estudo Histórico-Descri vo, Lisboa, s. l.,1926. Barreiros, Fernando Braga, “Tradições Populares de Barroso (Concelho de Montalegre)”, Revista Lusitana, Dir. J. Leite de Vasconcelos, vol. XIX, nº1-2, 1916, pp. 76-133. Beirante, Maria Ângela, O Ar da Cidade: ensaios de história medieval e moderna, Lisboa, Colibri, 2007. Bethencourt, Francisco, O Imaginário da Magia. Fei ceiras, Saludadores e Nigromantes no século XVI, Lisboa, Projecto Universidade Aberta, 1987. Biblioteca da Academia da Ciências de Lisboa, Legislação Portuguesa, IV (1560-1604), nº 37. Braga, Isabel Maria Ribeiro Mendes Drumond, “A Circulação e a Distribuição dos Produtos”, in Nova História de Portugal, Dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. V, Do Renascimento à Crise Dinás ca, Coord. João José Alves Dias, Lisboa, Presença, 1998, pp. 195-247. Braga, Teófilo, O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986 (1ª ed. de 1885). Brito, Alberto Rocha, As epidemias do século XVI e as Câmaras de Coimbra, sep. de IIIe Congrès Interna onal d'Histoire des Sciences. Actes, Conferences et Communica ons, Lisboa, Seara Nova, 1936. Buescu, Ana Isabel, Imagens do Príncipe. Discurso Norma vo e Representação, Lisboa, Cosmos, 1996. Correia, Francisco, Subsídios para a História Benaven na do século XVI. (Sumários de um Livro de Actas da Câmara de 1559 a 1564), Benavente, Câmara Municipal, 1995. Ditos Portugueses Dignos de Memória. História Ín ma do século XVI, 3ª ed., anotada e comentada por José Hermano Saraiva, Lisboa, Publicações Europa-América, 1997 (1ª ed. de 1980). Ferro, João Pedro, Arqueologia dos Hábitos Alimentares, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996. Godinho, Vitorino Magalhães, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2ª ed., vol. I, Lisboa, Presença, 1981 (1ªed. de 1963). Livro dos Regimetos dos Officiaes mecânicos da mui nobre e sêpre leal cidade de Lixboa (1572), publ. por Virgílio Correia, Coimbra, 1926, cap. LXIII, pp. 192-197. Lobo, Francisco Rodrigues, Corte na Aldeia, Introdução, notas e fixação do texto de José Adriano Freitas de Carvalho, Lisboa, Presença, 1992 (1ª ed. de 1619). Marques, A. H. de Oliveira, “Dossier da Vida Quo diana”, História-8º ano, Lisboa, Texto Editora, 1999. Pereira, Gabriel, Documentos Históricos da Cidade de Évora, Parte II, Évora, 1887. Pereira, João Cordeiro, “A Estrutura Social e o Seu Devir”, in Nova História de Portugal,… vol. V, pp. 277-284. Pereira, Maria João Lourenço, “O Afecto”, in Nova História de Portugal, vol. V…, pp 657-665. Pestana, Sebas ão, O Pranto de Maria Parda de Gil Vicente, Sá da Bandeira [Angola], s.n., 1975. Santos, Vítor Manuel Pavão dos, A Casa no Sul de Portugal na Transição do século XV para o século XVI, 1964 (texto policopiado). Serrão, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. III, O Século de Ouro (1495-1580), 2ª ed. revista, Lisboa, Verbo, 1988 (1ª ed. de 1978). Silva, Mário Jus no e Maria Filomena Santos Henriques, Aspectos da Religiosidade Popular no Concelho de Benavente, Benavente, Câmara Municipal, 1999. Silva, Mário Jus no, O rei e os nobres: imagens do quo diano nos Ditos portugueses dignos de memória, Cascais, Patrimonia, 2003. Viana, Mário Paulo Mar ns, Os Vinhedos Medievais de Santarém, Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Lisboa, 1996.

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DE BENAVENTE PARA A EUROPA Percurso médico-cien fico do Dr. António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782)

Jus no Mendes de Almeida Professor Doutor (1924-2012)



Os Benaventenses podem orgulhar-se de que o médico Dr. Ribeiro Sanches, depois de licenciado em Medicina pela Universidade de Salamanca, tenha vindo exercer clínica em Benavente, aqui contraindo amizades. Foi daqui que par u para o exílio na Europa, conquistando tal fama que foi chamado para tratar a czarina de todas as Rússias, Catarina, a Grande. Em Benavente, terra de sezonismo, foi amigo do Dr. Manuel Pacheco de Sampaio Valladares, grande lavrador e homem também dedicado às Letras. Foi nas cartas de Sanches a Valladares, redigidas algumas de S. Petersburgo, que o Prof. Maximiano de Lemos recolheu preciosos elementos para a sua biografia de Ribeiro Sanches, publicada no Porto, em 1911. A diversidade de trabalhos de Maximiano de Lemos acerca da vida e da ac vidade de Sanches permite-nos concluir que a figura do grande médico de Penamacor foi objecto dos mais importantes trabalhos de Maximiano de Lemos. Ribeiro Sanches, e toda a sua obra, em par cular o Tratado da Conservaçam da Saude dos Povos, como que dominaram o ensino da medicina na Europa do séc. XVIII. Estranhar-se-á como tão ilustre médico não pôde exercer ac vidade no seu país. A razão foi de ordem religiosa, porque sendo cristão novo, e os seus familiares entregues à Inquisição, fugiu de Benavente em 1726 para a Inglaterra onde foi membro da Sociedade Real de Londres. A extraordinária correspondência que lhe é dirigida pelos mais afamados cien stas da época, e que se encontra dispersa por várias cidades estrangeiras, sendo que algumas delas, em par cular as que foram dirigidas a Sampaio Valladares que estão em Évora, é um índice bastante de como era admirado por toda a Europa. Um elevado número de cartas, redigidas em português, la m e francês, existentes em Viena de Áustria, conjuntamente com textos de “consultas” de Ribeiro Sanches e um “Projecto de Instrução para um Professor de Cirurgia nos Hospitais de S. Petersburgo”, mostra-nos à evidência o pres gio de Ribeiro Sanches. São autores desta epistolografia portugueses e estrangeiros, como disse, e vale a pena citar os seus nomes para avaliarmos melhor a dimensão do pres gio que alcançara: João Jacinto de Magalhães, José Joaquim Soares de Barros, P.e Teodoro de Almeida, P.e Manuel Bap sta, Marcelo Sanches, Luís António Verney, Bernardo Lopes de Pinho, etc., e, dos estrangeiros, D'Alembert, os Euler (Pai e Filho), Isaac K. Boerhaave, Albert Haller, Barão Van-Swieten, Stehlin (Governador do Czar, esposo de Catarina II), Le Begue de Presle, Gaubius (Prof. de Medicina em Leyde), J. Conrad Amann, Goldbach, Dr. Gunz, Schoepflin, Schreiber, Mertens, etc.

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A divulgação destas no cias deve-se ao Doutor Joaquim de Carvalho, professor da Universidade de Coimbra, no nº 14 (Setembro de 1955), da Revista Filosófica. Como Ribeiro Sanches foi também colaborador da famosa Enciclopédia de Diderot e d'Alembert, vale a pena até transcrever uma carta deste úl mo, de 3 de Novembro de 1782.

Monsieur Recevez tous mês remerciments de l'ouvrage que vous avez bien voulu me prêter. Je l'ai lu avec d'autant plus d'intérêt, qu'il m'a tranquillisé à bien des égards sur la crainte que j'avais d'être a aqué de la Pierre. Je souffre maintenant très peu, et j'espère, grâce à M. Barthès et à mon régime, être bientôt sans douleur. Je voudrois bien qu'il en fut ainsi de vous, et que votre vieillesse fût aussi tranquille que votre âme. Soyez au moins bien persuadé de l'intérêt vif et sincère que j'y prends, ainsi que du respectueux a achement avec le quel je serai toute ma vie Monsieur Votre et très humble et très obéissant serviteur D'Alembert

Deve salientar-se que as relações culturais luso-russas foram par cularmente fomentadas por intermédio de Ribeiro Sanches, através da Academia Real da História Portuguesa e da Academia Real das Ciências de Lisboa. Foi por intermédio do cien sta português que da Academia Imperial de Petersburgo foram enviadas muitas obras às Academias portuguesas. Não é por isso estranho que na Academia das Ciências de Lisboa, de que Ribeiro Sanches foi sócio correspondente estrangeiro, se encontre material, manuscrito e impresso, de grande importância para o estudo do médico português. É desse material que reproduzimos o fac-símile da portada da obra de Sanches, que circulava pelas mãos de médicos portugueses e estrangeiros, in tulada Tratado da Conservaçam da Saude dos Povos, bem assim a reprodução do rosto de um Peculio de Varias Receytas para Diversas Queyxas pello Doutor Antonio Ribeyro Sanches: Mandadas de Pariz a Algumas Pessoas desta Côrte de Lisboa (repare-se no caso insólito de um médico, impedido de exercer no seu país e solicitado por todas as cortes da Europa, não esquecer os doentes de Portugal, aos quais mandava receitas, em par cular a pessoas da Corte que o proibia de entrar em Portugal). Reproduzimos também o texto de uma carta autógrafa dirigida ao Dr. Rodrigo Soares da Silva e Bivar, outro médico, com indicações preciosas, como seja o cuidado que há a ter com o uso da quina e a vantagem da u lização de todos os sumos de frutas e bem assim, caso estranho, o consumo do vinho do Sardoal ou de Abrantes, “contanto que seja bom e branco”. Note-se ainda como

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Sanches recomenda ao seu colega o uso da medicina experimental, em que Portugal estava tão atrasado. Repare-se nestas palavras: “Mas Vossa Mercê, abrindo os cadáveres, do modo que lhe for possível, ainda que não seja ar stamente, aprenderá mais em uma hora de tempo de Anatomia que por toda a vida vendo e examinando lâminas e figuras anatómicas; tempo perdido! Aqui chegam boatos de reforma da Universidade: mas que reforma será se ficarem os dois colégios de S. Pedro e de S. Paulo em pé? São baluartes e fortalezas da Corte de Roma que estão defendendo o Decreto e as Decretais e as Bulas...”. Um aspecto importante da ac vidade de Ribeiro Sanches decorreu na cidade de Leyde, entre 1730 e 1731, ao qual dedicou um estudo de muito interesse o Prof. Maximiano de Lemos (Janus, 16º ano, 1911, p. 237-253). Sanches foi discípulo e colaborador do Prof. Herman Boerhave, figura de primeiro plano na medicina europeia de então. Por isso, o médico português cita constantemente o nome de Boerhave nas cartas que dirige ao benaventense Dr. Sampaio Valladares. Devo fazer referência aos trabalhos que a tão interessante publicação Medicina na Beira Interior da PréHistória ao Século XX, cadernos de cultura cujo conhecimento devo à muita amizade do meu an go aluno e dis nto poeta, Prof. António Salvado, tem consagrado à exaltação de Ribeiro Sanches, bem como de outros médicos da região. Saliento os excelentes estudos da Dr.ª Fanny Andrée Font Xavier da Cunha, bem como a edição da Memória sobre os banhos de vapor da Rússia considerados para a conservação da saúde e para a cura de várias doenças, pelo Dr. António Ribeiro Sanches, “an go primeiro Médico do Corpo da Imperatriz de todas as Russias, Associado estrangeiro (etc)”. Outros estudiosos portugueses dedicaram a sua atenção a Ribeiro Sanches. Cito o caso especial do Dr. Raul Rego, ao publicar a obra inédita de Sanches, Christãos Novos e Christãos Velhos em Portugal (edição do conceituado livreiro an quário Arnaldo Henriques de Oliveira). Também nos parece oportuno reproduzir, pela sua raridade, a portada do catálogo dos livros da biblioteca privada de Ribeiro Sanches, vendidos em leilão em Paris, após a sua morte. A venda deve ter sido pra cada por seu irmão Manuel Nunes Sanches, com quem manteve correspondência regular, como se deduz das cartas ao Dr. Sampaio Valladares. Apurou o Prof. Maximiano de Lemos que, ao abrir-se o testamento de Ribeiro Sanches, viu-se que ele deixava ao irmão uma parte das rendas vitalícias de que gozava e que lhe legava também os seus livros, com excepção dos manuscritos de sua autoria de que dispusera em vida. Porque grande parte das ac vidades do Dr. Ribeiro Sanches têm raízes fortes em Benavente e na amizade com o Dr. Manuel Pacheco de Sampaio Valladares, que, além de rico proprietário, era também médico e homem erudito, autor de uma gramá ca de Português e de livros de poesia, e até de pequenas obras dramá cas (que temos reunido na nossa biblioteca pessoal), pareceu-nos interessante publicar este

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pequeno ar go acerca da grande figura, de dimensão europeia, de Ribeiro Sanches, afinal um grande português injustamente rejeitado por Portugal. Se Penamacor se orgulha, com toda a jus ça de ser o berço de Ribeiro Sanches, e por isso tão condignamente celebrou em Outubro de 1983 o segundo centenário da sua morte em Paris, a vila de Benavente também se orgulha de ter acolhido, embora por pouco tempo, e, segundo creio, a convite do Dr. Sampaio Valladares, aquele que viria a ser uma das grandes figuras da medicina europeia no séc. XVIII, já que a génese do brilhante futuro de Sanches teve origem em Benavente onde exis a também um forte núcleo judaico-cristão por certo do conhecimento de Sanches. Como quer que seja, o que é certo é que Ribeiro Sanches, não obstante a sua intensa ac vidade em países como a Inglaterra, a Bélgica, a Holanda, a Rússia e a França, nunca esqueceu Benavente. Mas, em vida, não foi muito celebrado pelos Portugueses. Um outro, também exilado como ele, e sofrendo enormes agruras, lhe dedicou uma ode: Filinto Elísio, que, não obstante ter sido forçado a fugir de Portugal uma vez mais, a intolerância religiosa, nem por isso deixou de ser um dos melhores poetas portugueses.

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PRESIDENTES DA CÂMARA MUNICIPAL DE BENAVENTE 1716 – 1974 Aníbal Ferreira Licenciado em História Museu Municipal de Benavente



APRESENTAÇÃO A relação de Juízes de Fora e de Presidentes de Câmara que presidiram aos des nos do concelho nos úl mos três séculos é o resultado final do trabalho de inves gação a que nos propusemos e que julgamos, de u lidade, para um melhor conhecimento da nossa história local. O Arquivo Histórico Municipal, generoso na quan dade e qualidade de documentos, permi u--nos recuar no tempo e embrenharmo-nos nas vivências sociais de outras gentes, de diferentes períodos históricos, inseridas no mesmo espaço sico que hoje também par lhamos: o concelho de Benavente. Na consulta ao Arquivo destacamos duas séries documentais do Fundo da Câmara Municipal que estão na génese de todo o trabalho: - Atas das Reuniões da Câmara Municipal (1716 – 1974), excetuando os livros em falta correspondentes aos períodos de 1743-1777 e 1861-1868. Rela vamente ao primeiro período, não nos foi ainda possível determinar a seriação dos representantes do poder local, pese embora, a con nuada consulta às mais diversas fontes documentais disponíveis. - Registo de Correspondência Expedida (1860 – 1870), composto por dois volumes, de acrescida importância, por não exis rem livros de atas da Câmara referentes ao período homólogo. Note-se que todo o registo de “correspondência expedida” que compreende estas datas é sempre assinado pelo Presidente da Câmara, facto que permi u a iden ficação e respec vo período dos mandatos. A leitura e análise destas séries documentais, nomeadamente, dezenas de livros de atas, foi tarefa demorada e exaus va, mas compensadora, não só pelo que adiante apresentamos, como pela vasta recolha informa va que fizemos, fonte de inspiração para outras abordagens que, em tempo, desenvolveremos no âmbito da história local. Não menos importante foi a recolha e consulta de legislação relacionada com o tema e épocas em estudo, revelando-se preciosa para o esclarecimento e entendimento das sequências das vereações, designadamente a forma de nomeações ou eleições dos representantes do poder local: Juízes de Fora, Presidentes de Câmara e Vereadores.

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Juiz de Fora Funcionário de nomeação régia e duração trienal que presidia às reuniões de Câmara. Tinha preparação jurídica, geralmente bacharel em leis, nas atas é sempre referido como Juiz de Fora Presidente. A denominação de Juiz de Fora deve-se ao facto de este magistrado ser estranho ao concelho onde desempenhava as suas funções que compreendiam a jurisdição em 1ª estância sobre (quase) todas as matérias, como poderá ser constatado pelas “Ordenações e Leis confirmadas e estabelecidas pelo Senhor Rei D. João IV…”. Não se devia ausentar por muito tempo do seu lugar, mas caso fosse inevitável, era subs tuído pelo Vereador mais velho, quer em matérias administra vas, como de jus ça. O juizado de fora de Benavente foi criado por Alvará de 21 de maio de 1643 (Chancelarias An gas da Ordem de Aviz, Liv.14, fol. 139) e pelo decreto n.º 24 de 16 de maio 1832 foram ex ntos os juízes de fora(1).

Presidente de Câmara Com o advento do Liberalismo em Portugal surgem novas conceções de organização administra va da Fazenda, da Jus ça e da Administração. Em 1830, inicia-se a ação legisla va da Regência, em Angra, nos Açores, com a publicação de dois decretos, um cria as Juntas da Paróquia (N.º 25, 26.11.1830) e, o outro reformula as Câmaras Municipais (N.º 26, 27.11.1830), ambos cons tuem o esboço inicial da organização administra va. A instabilidade polí ca vivida à época degenera em guerra civil, colocando em confronto os defensores do absolu smo e os apologistas dos ideais liberais da Revolução Francesa. Após dois anos de lutas, os liberais saem vencedores e a 26 de maio de 1834 é assinada a Convenção de Évora Monte que legi ma o regime liberal e cons tucional no país. Após esta data, dá-se a aplicação do Decreto n.º 23 de 16 de maio de 1832, de Mouzinho da Silveira, que implementa o novo sistema administra vo. As Câmaras tornamse de base ele va e “ o vereador que na eleição obtém maior numero de votos é o presidente da Câmara;”(2).

(1) Azevedo, Álvaro Rodrigues d`, BENAVENTE, Estudo Histórico-Descri vo, reedição da Câmara Municipal de Benavente; 1981; p.156 (2) § 5º, art. 11º do Capítulo III do Decreto de 16 de maio de 1832 (N.º 23)

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A ex nção de juízes nas Câmaras e a criação dos novos elencos governa vos nas mesmas, prenuncia claramente, a separação do Poder Judicial atribuindo exclusivamente a juízes os atos até então sentenciados naquelas representações concelhias. O primeiro Presidente de Câmara de Benavente inicia funções no dia 16 de julho de 1834(3). Mas só em 03 de janeiro de 1835 é dada posse à nova Câmara em conformidade com o art.º 21 do Decreto de 9 de janeiro de 1834(4).

Notas sobre a listagem de presidentes: - A grafia dos nomes mantém a forma original; - A seguinte listagem respeita às personalidades que assumiram funções na Câmara e não ao número de mandatos exercidos pelos mesmos. Na generalidade, os Juízes de Fora e, posteriormente, os Presidentes de Câmara eram reconduzidos no cargo; - As datas são correspondentes à primeira sessão em que o Juiz de Fora e/ou Presidente presidiram ao ato naquela qualidade.

(3) Ata do Auto de Vereação de Câmara de 16 de julho de 1834. (4) Ata da Câmara de 03 de janeiro de 1835

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02-06-1716

Macedonio Pais de Carvalho

08-03-1719

Manoel da Silva (?) Azevedo

(?)-03-1721

Gaspar dos Reis de Carvalho, Dr.

25-07-1722

Andre Carvalho da Silva, Dr.

25-03-1727

Diogo Baracho de Abreu, Dr.

13-09-1730

Andrade de Souza Pinheiro da Camara, Dr.

25-02-1734

Joze de Lima P. Aragão, Dr.(5)

14-11-1778

Joze Ignacio Moreira, Dr.

15-02-1783

João António Rodrigues Frade, Dr.

28-02-1789

João Manoel Pimenta de França e Faro(6)

13-01-1790

Bernardo Agostinho Borges, Dr.

27-02-1793

Domingos Alvares Lobo, Dr.

23-05-1798

Antonio de Andrade Faro(7)

05-09-1798

Francisco Ricardo da Horta Barretto, Dr.

15-03-1811

Manoel Pedrozo Baratta, Dr.

11-09-1814

Francisco Telles de Santa Barbara(8)

08-10-1814

Antonio Maria Cardozo da Costa Cabral, Dr.

06-09-1820

Thomaz de Freitas Coelho Machado Torres, Dr.

21-08-1822

João Fragozo Damazo Carvalho(9)

07-06-1823

Thomaz de Freitas Coelho Machado Torres, Dr.

01-01-1833

Caetano Antonio d’Andrade Valente(10)

06-11-1833

Joze Antonio Luiz Gallo, Dr.

16-04-1834

Caetano Antonio d’Andrade Valente(6)

(5) Este Juiz de Fora encontra-se em funções na Câmara, pelo menos, até finais de dezembro de 1735. Nesta data termina o livro de atas, verificando-se a inexistência dos mesmos até novembro de 1778. (6) Vereador mais velho. Toma posse na presença do Dr. Ouvidor que apresentou “... a pauta das pessoas que hão-de servir...” (7) Vereador mais velho que passa a presidir às reuniões até à nomeação do Juiz de Fora. (8) Cavaleiro da Ordem de San ago de Espada; vereador mais velho em subs tuição do Juiz de Fora até nova nomeação. (9) Vereador mais velho. (10) Por impedimento do Juiz de Fora, este vereador, sendo o mais velho, assume a presidência.

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11-06-1834

Araujo Costa, Dr.

16-07-1834

João António de Morais(11)

18-01-1836

João Vicente de Almeida

24-05-1837

José Rodrigues de Azevedo

01-01-1839

Joaquim José Barreto

01-02-1839

António Cypriano de Araujo Ferreira

03-01-1840

António d’Alcantra Borralho

31-01-1841

José Maria de Sá Pereira e Moura(12)

09-06-1846

António d’Alcantra Borralho(13)

29-09-1846

José Gomes Correia

11-01-1847

António da Silva Júnior(9)

21-11-1847

João António de Morais

02-01-1852

João Maria da Silva Correia

13-01-1856

Luís Ferreira Roquette(14)

02-01-1858

José Maria de Sá Pereira e Moura

10-03-1866

António Pedro Gomes Barboza

04-03-1868

João Maria da Silva Correia

02-01-1870

João Sabino d’Almeida Fernandes(15)

02-01-1876

Francisco da Paula Xavier

02-01-1878

Anselmo Augusto da Costa Xavier, Dr.

18-08-1878

João Sabino d’Almeida Fernandes(16)

(11) Primeiro Presidente de Câmara ao contrário dos anteriores, todos Juízes de Fora, ou vereadores subs tutos. (12) A par r de 07 de maio de 1843, não há registos de atas no respe vo livro. O mesmo é retomado no Auto de Posse aos membros da Comissão

Municipal em 09 de junho de 1846. (13) Presidente da Comissão Municipal. (14) Este Presidente esteve poucas vezes presente nas reuniões de Câmara durante os dois anos de mandato, sendo subs tuído pelo

Vice-Presidente António Elizeo da Costa Freire. (15) Comendador da Ordem de Cristo. (16) Suspendeu o mandato em 25 de outubro de 1880 para assumir o cargo de Administrador subs tuto do concelho. É subs tuído pelo

Vice-Presidente.

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25-10-1880

João José de Brito Corrêa(17)

21-06-1881

Luiz Carlos Pinto d’Azevedo

02-01-1884

Pedro Hypolyto de Freitas e Brito(18)

21-05-1885

Narciso de Seixas(19)

02-01-1886

João Vicente d’Almeida

02-01-1887

António Plácido Pinto d’Azevedo

14-01-1891

Anselmo Augusto da Costa Xavier, Dr.

02-01-1908

José Maria Henriques da Silva(20)

22-02-1908

Anselmo Augusto da Costa Xavier, Dr. (21)

02-01-1914

Carlos Alberto Paim dos Reis Fernandes

04-01-1915

Arthur Cezar Vasconcelos e Horta

09-06-1919

Álvaro Maximiano Betamio de Almeida, Dr.

27-04-1921

António Esteves Calado

04-01-1922

José Justino Lopes

02-01-1923

Arthur Cezar Vasconcelos e Horta

02-01-1926

Francisco de Sousa Dias, Dr.

14-07-1926

Álvaro Maximiano Betamio de Almeida, Dr. (22)

30-08-1926

Joaquim Ferreira Pedrosa(19)

20-05-1929

Álvaro Maximiano Betamio de Almeida(23)

05-02-1931

José Bernardo Alves Inácio(19)

(17) Vice-Presidente. Faleceu a 18 de junho de 1881 e de acordo com o Código Administra vo convoca-se nova votação para 21 de junho de 1881. (18) Dispensado do cargo em 20 de maio de 1885, pelo Conselho do Distrito, sendo subs tuído pelo Vice-Presidente. (19) Vice-Presidente. (20) Presidente da Comissão Administra va nomeada pelo Governo Civil, nos termos do Decreto de 12 de dezembro de 1907. (21) A par r de 1911 e até final do mandato este Presidente esteve quase sempre ausente da Câmara sendo subs tuído pelo Vice-Presidente

Joaquim Neves Sequeira Carvalho. (22) Presidente da Comissão Execu va, por dissolução de todos os Corpos Administra vos do país, nos termos do Decreto-Lei nº 11875 de 13 de

julho de 1926. (23) Presidente da Comissão Administra va

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Anselmo Augusto da Costa Xavier

Arthur Cezar Vasconcelos e Horta

ร lvaro Maximiano Betamio de Almeida

Francisco de Sousa Dias

Antรณnio Gabriel Ferreira Lourenรงo

Edmundo Soeiro

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04-05-1933

António Eugénio d’Almeida(19)

05-04-1935

Lúcio Rodrigues Neto(19)

05-07-1935

António Eugénio d’Almeida(24)

27-01-1939

Álvaro Maximiano Betamio de Almeida, Dr.

14-02-1945

João Vicente Brito d’Almeida, Eng.º

29-08-1949

António Eugénio de Almeida

15-06-1953

António Gabriel Ferreira Lourenço, Dr.

16-06-1965

Edmundo Soeiro

02-01-1972

Augusto António de Almeida Ferreira

28-06-1974

António de Pina Cabral(25)

Bibliografia - Azevedo, Álvaro Rodrigues d`, BENAVENTE, Estudo Histórico-Descri vo, reedição da Câmara Municipal de Benavente; 1981. - Correia, Francisco, Inventário do Arquivo Histórico de Benavente, Câmara Municipal de Benavente, 1ª edição, Benavente, 2000.

(Este ar go foi redigido ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)

(24) Este Presidente da Comissão Administra va, a par r de 02 de janeiro de 1938, passa a exercer o cargo de Presidente da Câmara. (25) Presidente da Comissão Administra va nomeada por Portaria de 28 de junho de 1974, após a Revolução do 25 de ABRIL.

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O IMPOSTO SOBRE AS JANELLAS NA VILA DE BENAVENTE NO ANO DE 1832 Breve Análise Social e Geográfica Sofia Garrido Historiadora



Hade servir este livro para a escrituração do imposto lançado as janellas pelo Decreto de 16 de Junho de mil oitocentos e trinta e dois vai numerado e rubricado e com o termo de enserramento. É com base nesta introdução e validação presente no livro de registo do Imposto sobre as janelas de 1832 da vila de Benavente que se inicia esta sucinta análise descri va. Este imposto sobre as janelas foi decretado em 1832 com o objec vo de angariar fundos para o exército e perdurou, pelo menos “oficialmente” até ao início de Agosto de 1833, data em que foi anulado: " ...Hei por bem, em Nome da Rainha, Decretar que fiquem desde já considerados nullos, irritos, e de nenhum vigor os decretos de dezeseis, e vinte e oito de Junho de mil oitocentos trinta e dous; que estabeleceram o Novo Imposto da Decima por um anno e o das Janellas, ..." por despacho de D. Pedro, Duque de Bragança. Estas mudanças reflectem obviamente a instabilidade administra va, social e polí ca fortemente evidenciada neste período do Portugal Liberal. Após um período de forte domínio e dependência em relação ao poder central, a par r de 1822 a vida municipal tende a adquirir uma certa autonomia, com a adopção de novos princípios reguladores, tais como a possibilidade de eleger os magistrados a nível local e escolher os representantes que actuavam junto dos administradores régios. Contudo, a contra-revolução e a guerra civil impediram a aplicação de tais medidas até pelo menos o ano de 1832. Em 1836 verifica-se um pequeno aumento da autonomia local com o código administra vo de 1836, mas esta abertura será neutralizada pela legislação de Costa Cabral em 1842. Esta luta de sobreposição protagonizada pelo poder central face ao poder local e vice-versa mantém-se até ao fim do século XIX. Todavia, esta fonte cons tuída por um registo fiscal de 1832 servirá essencialmente, no âmbito deste estudo, como base de análise social e geográfica da população de Benavente e do seu respec vo património. Neste contexto específico, como património deve-se entender par cularmente, as casas situadas nas ruas, travessas e becos desta vila, e o número de janelas térreas e de primeiro andar (altas) que possuíam. Tendo em conta esta leitura, a existência, quan dade e pologia das janelas das casas, acabava por caracterizar a hierarquia social e económica dos seus proprietários e contribuir para o estudo histórico da vila e população. No ano de 1832, estas casas tornaram-se objecto de tributação, com base no número de janelas térreas e altas existentes. O valor do imposto correspondia a cento e vinte réis por cada janela térrea; por cada janela alta este valor duplicava. Esta tributação deveria ser paga pelos donos das propriedades ou na ausência destes, seus feitores, procuradores ou administradores.

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Este livro de registo de imposto sobre as janelas testemunha e indica a localização de cada casa, o nome da pessoa ou representante, o número de janelas térreas e altas existentes, e o valor efec vamente pago. Estas informações permitem a detecção da presença e/ou concentração de elites locais em determinadas zonas, ou não, bem como averiguar e definir parte do património das casas existentes. Assim, após o levantamento e análise dos dados discriminados neste registo, verifica-se a existência de quarenta e quatro (44) locais alvos deste imposto: Chaveiro Lado Drtº Rua da Paz Lado Drtº Rua da Paz Lado Esqº Frontaria do Chaveiro Chaveiro Lado Esqº Pedra da Paciência Arabalde Lado Drtº Arabalde Lado Esqº Rua do Posso Rua Nova Lado Drtº Rua Nova Lado Esqº Rua do Arco Lado Drtº Rua do Arco Lado Esqº Rua dos Cavalleiros Lado Drtº Rua dos Cavalleiros Lado Esqº Rua de Évora Lado Drtº Rua de Évora Lado Esqº Rua do Passo Lado Drtº Rua do Passo Lado Esqº Rua dos Bois Lado Drtº Rua dos Bois Lado Esqº Rua de Santarém Lado Drtº

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Rua de Santarém Lado Esqº Rua da Ponte Lado Drtº Rua da Ponte Lado Esqº Travessa da Praça e Beco Beco dos Assucres Lado Drtº Beco dos Assucres Lado Esqº Largo da Praça Frontaria da Praça Rua da Amoreira Lado Drtº Rua da Amoreira Lado Esqº Travessa d 'Antº Velha Lado Drtº Travessa d' Antº Velha Lado Esqº Largo da Igreja Rua de S. Tiago Lado Drtº Rua de S. Tiago Lado Esqº Rua do Negues Lado Esqº Rua do Negues Lado Esqº Rua da Mesericordia Lado Drtº Rua da Mesericordia Lado Esqº Rua do Pinheiro Lado drtº Largo do Calvário Rua do Pinheiro Lado Esqº


Em parceria com a informação histórica, geográfica, social e descri va da vila, e após a análise toponímica destes locais, que sofreram várias alterações ao longo dos séculos, fruto da própria história local e nacional, e o confronto com o mapa da vila datado de 1908, tendo em conta que o momento significa vo de ruptura deu-se somente com o terramoto de 1909 que arrasou a quase totalidade destas edificações, podemos determinar para além da conhecida proximidade com o Rio Sorraia e a Lezíria do Tejo, um grupo principal situado no Largo da Praça (mais tarde Praça do Município) e no Largo da Igreja (mais tarde Praça da República). A importância e relevância geográfica do Largo da Igreja remonta ao século XII, onde já agrupava as três grandes rotas ou trajectórias da vila para o exterior: Rua de Évora, Rua de Lisboa e Rua de Santarém, que se situavam respec vamente na direcção das cidades com o mesmo nome. A Rua de Évora e Rua de Lisboa são as mais an gas de Benavente, o que possivelmente traduz o desejo medieval e posterior de transformar esta vila num ponto de comunicação e convergência entre Évora e Lisboa. A área de concentração habitacional situa-se entre o Largo do Calvário (NO) e o Chaveiro (SE). A zona com maior dimensão espacial, demográfica e habitacional é cons tuída pela Rua do Pinheiro - do lado esquerdo com cerca de cinquenta e duas janelas registadas (30 altas e 22 térreas) e do lado direito com cerca de vinte e oito janelas (1 alta e 27 térreas) , pela Rua da Amoreira com um total de trinta e duas janelas do lado direito e trinta janelas do lado esquerdo, e a Rua S. Tiago com dezassete janelas registadas no lado esquerdo (5 altas e 12 térreas) e quinze janelas no lado direito (5 altas e 10 térreas). Estas três ruas localizam-se no centro da vila, são paralelas entre si, e caracterizam-se por uma forte homogeneidade na disposição e pologia das edificações o que traduz também um certo equilíbrio a nível social. Na Rua do Pinheiro destacam-se algumas famílias dis ntas socialmente, caso da família Sá, que para além de outras propriedades na restante vila, possuía duas habitações nesta rua, e da família dos Faros com duas casas nobres altas. A zona cons tuída pelo Arrabalde do lado direito com dozes casas e dezasseis janelas (5 altas e 11 térreas) e do lado esquerdo com dez casas e dezassete janelas (8 altas e 9 térreas), pela Pedra da Paciência (Largo Popular), e pelo Chaveiro enquadra-se também nesta categoria com caracterís cas sociais e demográficas muito homogéneas. Para além desta homogeneidade geográfica, destaca-se um outro agrupamento com fortes afinidades sociais e arquitectónicas cons tuída pela Rua de Évora, Rua da Amoreira, Travessa, Frontaria e Largo da Praça e o Largo da Igreja. Estas ruas apresentam casas mais an gas e claramente mais abastadas, com boa apresentação, frontaria e/ou varanda.

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A Rua de Évora e Rua da Amoreira caracterizavam-se por uma certa tradição e coerência social e geográfico, a primeira apresentava dez casas de cada lado e as janelas repar das muito uniformemente. O registo deste imposto permite concluir que o Largo da Igreja man nha a sua relevância geográfica e social, traduzida pelo maior número de janelas altas presentes na vila, cerca de trinta e cinco janelas altas e duas térreas, o que totalizou uma contribuição de oito mil seiscentos e quarenta réis. Esta concentração social de casas nobres e mais abastadas poderá também ser explicada pela proximidade com a Igreja Matriz de Benavente - local de culto e devoção e pela herança cultural e histórica. Desta concentração eli sta, podemos destacar, uma das suas marcas, nomeadamente um palacete, elegante, espaçoso e com frontaria, mandado edificar a par r de 1830 por Pedro Hipolito, seu proprietário, e que consta igualmente deste registo com um pagamento de dois mil cento e sessenta réis correspondentes a nove janelas altas. No Largo da Praça, a propriedade da família de João Azevedo com cinco janelas altas viradas para o Largo da Praça e frente ao edi cio dos Paços do Concelho, traduz o estatuto de dis nção e tradição desta família que excedia a escala social média. A Rua de Santarém denota também um período de construção próprio das primeiras décadas do século XIX, tais como as propriedades da família Torres, dos herdeiros de Luís Cardoso e do Capitão Mor Manuel de Santos - casas altas, amplas e que representam um núcleo rela vamente assimétrico. Contrariando esta paisagem mais uniforme e concentrada, existem zonas quase despovoadas tais como a Rua da Paz, a Rua do Arco, a Rua do Posso, a Rua dos Cavalleiros e a Rua dos Bois, que se situam em zonas mais periféricos e discretas. Não se encontra nesta área qualquer casa de habitação que denuncie um estatuto, herança ou tradição acima da média. Na maioria dos casos, e exceptuando algumas especificidades já referidas, as edificações desta vila (mais de dois terços) são simples, baixas ou de pavimento térreo, e têm, por vezes, fins agrícolas ou industriais, que as transformam em celeiros, palheiros, oficinas, padarias, adegas ou outros. Estas informações permitem concluir a presença efec va de concentrações habitacionais e geográficas que traduzem a tradição e o estatuto social de cada família, sua condição e grau de riqueza. A disposição patrimonial da vila de Benavente denunciava claramente estas diferenciações sociais e económicas e apoiava a tese da concentração de elites sociais locais com território próprio e que dificilmente se "misturavam ou deslocavam" fora do seu estatuto e nível.

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SERVIร O MILITAR Sandra Ferreira Mestre em Histรณria Arquivo Histรณrico Municipal de Benavente



O inventário agora apresentado resulta do tratamento da documentação produzida e acumulada pela CMB, ao longo de quase um século de existência, no que respeita às suas funções rela vas ao recenseamento militar. Trata-se de uma área orgânica Serviço Militar que espelha bem a evolução polí co-administra va do Estado e as diferentes soluções que no seio deste foram sendo encontradas, quanto à centralização e descentralização destas funções. As datas extremas (1846-1949) são o resultado directo da gestão e coordenação de funções na área do serviço militar. Embora as competências neste domínio nunca tenham sido completamente ex ntas, às câmaras municipais foi desde sempre deixado um papel de grande protagonismo e intervenção nesta área. A documentação agora em análise encerrou, assim, o seu ciclo de vida. O seu valor ac vo ou primário deu lugar ao valor informa vo, histórico e cultural, razão pela qual se conserva e se divulga o conjunto documental em causa. É este valor informa vo que jus fica a tarefa arquivís ca empreendida sobre o acervo documental em questão (que materialmente se traduz em 54 livros, 18 caixas e 8 pastas) pois toda esta massa documental é de conservação permanente. Exis a já, um instrumento de descrição disponível que permi a, apesar da sua debilidade, a recuperação da informação. No entanto, foi transferido grande volume documental para Arquivo histórico e porque aquele instrumento disponibilizava, apenas, uma ínfima parte da documentação sen u-se a necessidade de reestruturar toda a secção existente. Assim, toda a secção - Funções Militares foi completamente reestruturada. Introduzimos um quadro de classificação onde se pretendeu desenvolver a actuação do serviço produtor, seguindo o já definido para o Arquivo Histórico Municipal. Neste sen do, man vemos a mesma designação de secção Funções Militares para integrar toda a documentação em presença, o mesmo fizemos para as subsecções, naquele quadro já definidas, introduzindo, no entanto, toda documentação posteriormente transferida. Ao nível das séries fomos, sempre que possível, fiéis à designação original, por vezes patente nos próprios documentos, ou à preexistente, procedendo de igual forma no que respeita à sua ordenação. Encontramos, assim, critérios vários: cronológico e cronológico-administra vo.

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Para todas as séries e sempre que se tornou possível foi elaborada uma nota sumária informa va do conteúdo dos documentos e dos procedimentos que estavam na sua origem. Para as séries de entendimento inequívoco, não foi registada qualquer nota explica va. Procedemos à correspondência de referências an gas e novas registadas junto da respec va série documental. Destacamos, ainda, que todo este trabalho foi desenvolvido com alguma celeridade devido ao estágio desenvolvido por Maria Clara Casanova Parracho da Silva Lourenço, funcionária desta autarquia, no âmbito do 1º Curso de Técnicos Profissionais de Arquivo ministrado pela BAD (Associação Portuguesa de Bibliotecários, arquivistas e documentalistas). Desde sempre o Serviço Militar assumiu primordial importância. Em 1822, pelo Decreto n.º 152 de 19 de Janeiro, o recrutamento militar foi uma da incumbências atribuídas às Câmaras Municipais sob as regras prescritas pela Portaria de 28 de Setembro de 1813. Este Decreto foi emanado na sequência da necessidade de se efectuar um recrutamento que suprisse as baixas, resultantes do Decreto de 17 de Abril de 1821. O Decreto n.º 271 de 25 de Janeiro de 1823, por sua vez, estabelece que o recrutamento seria efectuado pelos Comandantes e Oficiais dos Regimentos de Milícias, em cada distrito, de acordo com as respec vas Câmaras. De acordo com os procedimentos definidos, as Câmaras Municipais entregavam aos coronéis e capitães dos Regimentos de Milícias, através de requisição feita por escrito, os livros que se encontrassem nos seus arquivos, pertencentes às ex ntas Ordenanças, bem como outros documentos que vessem sobre a população do distrito. Os coronéis de Milícias, verificavam a exac dão dos referidos livros, confrontavam-nos com a população existente na altura, indo, para esse fim, pessoalmente a cada um dos distritos de Companhias. Findo o recrutamento, eram devolvidos todos os livros e documentos às respec vas Câmaras. Eram sujeitos ao recrutamento todos os mancebos de idade entre os 18 e os 25 anos de idade, que vessem “cincoenta e sete e meia polegadas de altura, e a disposição necessária para o serviço militar”(Art.º 5º do decreto n.º 271 de 25 de Janeiro de 1813).

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Com a nova Divisão Administra va do Reino, cuja execução foi regulamentada pelo Decreto de 18 de Dezembro de 1835, uma das competências atribuídas ao Administrador do Concelho, de acordo com o seu art.º 8º, era a do Recrutamento do Exército e alistamento da Guarda Nacional. Em 1836 procede-se ao recrutamento de 8.700 homens. Neste ano, o recrutamento era preenchido por alistamentos voluntários. Se estes não bastassem para completar o con ngente exigido, em cada um dos distritos, concelhos e freguesias, eram rados à sorte, de entre os mancebos compreendidos no recenseamento a que anteriormente se deveria proceder, tantos recrutas quantos faltassem para prefazer o número necessário (art.º 3º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). O recrutamento era efectuado pelas Juntas de Paróquia e compreendia todos os mancebos residentes nela, desde os 18 até aos 25 anos de idade completos (art.º 4º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). Estas Juntas, em sessão pública, tomavam conhecimento das reclamações que, eventualmente, fossem apresentadas, sendo as decisões proferidas levadas ao conhecimento das respec vas Câmaras, as quais, igualmente, em sessão pública, decidiam sumária e defini vamente, não só as eventuais reclamações, mas quaisquer outras que as próprias Juntas de Paróquia não vessem do conhecimento. (art.º 5º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). No caso de haver Câmaras com uma só freguesia, era nomeada uma Comissão para efectuar o recenseamento que subs tuiria, para todos os efeitos, a Junta de Paróquia (§ único do art.º 5º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836), e o sorteamento era efectuado perante as Câmaras Municipais, em sessão pública (art.º 6º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). Os mancebos que eram sorteados ficavam, desde logo, considerados como recrutas. Era, contudo, permi do no acto do sorteamento, a cada um dos sorteados, trocar o seu número com qualquer dos indivíduos que constassem no recenseamento (art.º 7º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). Era, igualmente, permi do a qualquer sorteado fazer-se subs tuir por outro, ainda que maior de 25 anos, na condição do subs tuto reunir as condições necessárias para o Serviço Militar, e possa servir por todo o tempo a que o sorteado fosse obrigado (art.º 8º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). No acto do sorteamento, eram decididas sumária e defini vamente, pelas respec vas Câmaras Municipais, todas as dúvidas e reclamações, que pudessem ocorrer (art.º 9º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836).

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Os recrutados que, depois da in mação, não comparecessem no local e dia indicados, eram considerados desertores e, como tal, punidos com as penas estabelecidas nos Regulamentos Militares. Ficavam, além disso, obrigados a servir por mais três anos (art.º 10º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). Ao mesmo tempo, os que se alistassem voluntariamente serviam pelo espaço de três anos. Os recrutas sorteados ou seus subs tutos, serviam pelo espaço de seis anos (art.º 11º do Decreto lei de 25 de Novembro de 1836). A Portaria de 22 de Dezembro de 1836, em aditamento ao Decreto anterior de 25 de Novembro, vem reafirmar a intervenção da Junta de Paróquia no processo de recenseamento militar, conforme refere o art.º 5º que se transcreve: (...)“ A Comissão [cons tuída para proceder ao sorteamento dos recrutas, na capital do distrito] será composta do Administrador Geral, da Autoridade superior Militar do Distrito, e de um Médico por aquele nomeado: reprovado algum dos sorteados, ordenará o Administrador Geral que a Junta de Paróquia mande à sua presença imediatamente o mancebo, que ver o número immediato aos já designados Recrutas, o qual será pelo mesmo modo examinado.” (...) Da importância que todo o processo de Recenseamento e Recrutamento Militares sempre assumiu, realçamos o conteúdo da Portaria de 9 de Junho de 1837, que de seguida se transcreve: “Ministerio do Reino Sendo da maior urgência que se verifique, e complete o recrutamento determinado por Decreto de 25 de Novembro do anno proximo passado; e constando da escandalosa e reprehensível frôxidão, com que se tem conduzido algumas das Authoridade encarregadas deste objecto, sem que até ao presente nada tenha concluido, nem mesmo adiantado, havendo Concelhos em que ainda se não deu princípio ao recenseamento dos mancebos: Manda a RAINHA pela Secretaria d'Estado dos Negócios do Reino que o Administrador Geral interino de Faro expeça immediatemente as mais posi vas e terminantes ordens para que as Authoridades da sua competencia sa sfaçam sem perda de tempo às repe das recommendações, que a semelhante respeito lhes tem sido dirigidas fazendo accelerar, e ul mar o sobredito recrutamento por ser negócio importan ssimo; devendo o Administrador Geral dar parte por este Ministerio, da mais pequena omissão que encontrar no cumprimento destas Reaes Ordens, para ser logo punida com a correspondente demonstração. Palácio das Necessidade, em 9 de Junho de 1837. = António Dias de Oliveira Iden cas a todos os Administradores Geraes do Reino, e Ultramar”

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Entretanto, neste período, atendendo ao estado de sensível diminuição por que passava o Exército, por efeito de deserções, mortes, baixas por incapacidade sica e outras, o Ministério da Guerra fez publicar novo Regulamento para o Recrutamento do Exército, através do Decreto de 9 de Julho de 1842, o qual veio permi r o recrutamento de 10.213 homens. Segundo o art.º. 7º do referido diploma, “O recenseamento dos mancebos habeis para o recrutamento será feito pelos Administradores de Concelho, ou de Bairro.”, prevendo ainda este ar go, no seu § único, que esta competência possa ser delegada nos Regedores de Paroquia: “Nos termos do ar go 14º. § 3º. Da Carta de Lei de vinte e nove de Outubro de mil oitocentos e quarenta, poderão os Administradores de Concelho ou de Bairro delegar nos Regedores de Parochia, se o julgarem conveniente, mas sempre debaixo da sua inspecção e responsabilidade, a comissão de procederem no districto de suas respec vas Freguezias ao dito recenseamento.” Evidencia, este Regulamento, uma maior preocupação estruturante, através da uniformização de procedimentos e do estabelecimento de critérios organiza vos, com a demarcação das diversas funções inerentes ao processo de recenseamento e recrutamento. Pela primeira vez é criado um modelo próprio de impresso, referido no ar go 8º do mesmo diploma legal. Pelo Decreto de 27 de Julho de 1855, o processo de recenseamento e sorteamento dos mancebos, passa a ser da competência das Câmaras Municipais. Esta situação persiste até à publicação do Decreto de doze (12) de Setembro de mil oitocentos e oitenta e sete (1887), que veio atribuir esta função, a uma Comissão de Recrutamento, composta pelo Presidente da Câmara, que a presidia, e de quatro cidadãos designados pela respec va Câmara . Por sua vez, o Regulamento de 29 de Outubro de 1891, confere novamente às Comissões de Recrutamento a incumbência de efectuar o recenseamento e sorteamento. Em 1896, com o Regulamento de 6 de Agosto, surge pela primeira vez a referência às Comissões de Recenseamento e às Juntas de Inspecção. Esta comissões de recenseamento eram, igualmente, compostas pelo Presidente da Câmara e por quatro cidadãos por esta nomeados. Em 1901, sai novo Regulamento que dá con nuidade às Comissões de Recenseamento, procedendo à subs tuição das Juntas de Inspecção pelas Juntas de Recrutamento, e ao mesmo tempo foram criados novos impressos- po.

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A Lei do Recrutamento Militar n.º 1961 de 1 de Setembro de 1937, veio atribuir novamente esta competência às Câmaras Municipais, persis ndo a Junta de Recrutamento. História custodial da documentação A documentação apresentada é rela va à ac vidade desenvolvida pela Câmara Municipal no que toca ao Serviço Militar e corresponde a uma das Secções existente no Fundo da Câmara Municipal de Benavente. Encontra-se na posse do Arquivo Histórico Municipal.

Organização e Ordenação A documentação foi man da de acordo com a sua proveniência, tendo sido respeitada a orgânica ins tucional. As séries que integram esta secção são resultado de todo o expediente desenvolvido para levar a cabo o processo de recenseamento militar, tende a ser testemunho dos actos e procedimentos, recons tuindo, tanto quanto possível, os circuitos documentais e ordem original. Cons tuíram-se subsecções funcionais, seguiu-se sempre que possível, o circuito do documento e estabeleceu-se uma ordenação valora va das séries. Esta secção insere-se no plano de classificação adoptado e corresponde a uma estrutura orgânicofuncional.

Condições de Acesso e u lização A documentação em causa não está sujeita a reservas.

U lização e Reprodução Reprodução sujeita ao exercício dos direitos patrimoniais e a autorização prévia.

Caracterís cas Físicas A documentação encontra-se na sua maioria em bom estado de conservação assim, não existem dificuldades na sua leitura. Abreviaturas u lizadas liv. (livro) // vol. (significando livro) mç. (maço) pt. (pasta) doc. (documento)

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proc. (processo) cad. (caderno) cx. (caixa) CMB (Câmara Municipal de Benavente) AH (Arquivo Histórico) SC (Secção) Ssc (Subsecção)

QUADRO DE CLASSIFICAÇÃO Fundo Câmara Municipal de Benavente (Sc) CMB/H/ Funções Militares (Ssc) CMB/H.A. Recenseamento Militar (Ssc) CMB/H.B. Comissão de Recrutamento Militar (Ssc) CMB/H.C. Comissão de Recenseamento

INVENTÁRIO CMB/H/ Funções Militares CMB/H.A. Recenseamento Militar A documentação que diz respeito a esta subsecção traduz a ac vidade exercida pelas câmaras municipais nesta área a quem, por atribuição legal, compe a a elaboração do processo de recenseamento militar. No decorrer da sua avaliação surgiram algumas discrepâncias ao nível das datas devido ao facto de exis rem dois períodos dis ntos em que as respec vas câmaras exerceram esta ac vidade. O primeiro período vai de 1855 a 1887 e o segundo de 1937 a 1949. Entre um e outro foi esta função atribuída a Comissões específicas criadas para o efeito, a de Recrutamento e a de Recenseamento, que serão alvo de igual tratamento.

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Relações de mancebos em condições de serem inscritos no recenseamento militar Estas relações contemplam o nome do mancebo, filiação, sua naturalidade, emprego e data de nascimento. Os mancebos que verem de 20 a 21 anos eram recenseados, nos seus respec vos domicílios, sem excepção alguma; e assim como todos os mancebos de 21 e 22 completos, que, por dolo ou culpa, ou mero esquecimento e omissão, não foram incluídos no recenseamento quando nham a idade de 20 a 21 anos. 1858-1878 1 mç. CMB/H.A./0.1.

Registo de Recenseamento militar Este livro servia para o registo dos recenseamentos militares o qual é rubricado no termo de abertura e encerramento, pelo Governador Civil. A transcrição no livro de registo encontra-se rubricada em todas as sua folhas pela Câmara Municipal, Administrador do Concelho e Regedores das freguesias. Só eram válidas as cer dões e cópias extraídas deste livro. 1856-1868 1 vol. CMB/H.A./02

Acta do recenseamento dos mancebos do ano de 1859 Na primeira quinta-feira do mês de Maio, procediam as Câmara Municipais ao sorteamento de todos os mancebos inscritos, publicitando através de editais. A acta em questão é referente às freguesias de Muge, Santo Estevão, Samora Correia, Salvaterra de Magos e Benavente. 1859 1 doc. CMB/H.A./03

Cadernos de recenseamento para o recrutamento do exército Cadernos para o recenseamento geral dos mancebos domiciliados nas freguesias deste concelho. Encontram-se numerados e rubricados pelos membros da Câmara Municipal, Administrador do Concelho, párocos e regedores na parte respec va ás suas freguesias. 1869-1883 2 cad. CMB/H.A./0.4.

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Relações de guias de marcha para inspecções Guias de marcha conferidas aos mancebos designados em relação para se apresentarem no Governo Civil a fim de serem inspeccionados. Esta tarefa era da incumbência da Junta de Revisão que examinava os mancebos reme dos pela autoridade administra va. A referida Junta podia rejeitar aqueles que fossem fisicamente incapazes de servir. Esta relação contempla o número de ordem, nome dos mancebos, respec vas freguesias, numero de sorte, ano do sorteio e resultado da inspecção. 1884-1888 19 docs. CMB/H.A./0.5.

Mapas de distribuição dos con gentes de recrutas por concelho Mapa indica vo do con gente de recrutas aptos para o serviço militar, que eram fixados anualmente pelas cortes e distribuídos pelos distritos administra vos, na proporção da sua população. Os referidos mapas remetem para cada concelho do distrito de Santarém, segundo a distribuição feita em sessão extraordinária do Conselho Administra vo do mesmo distrito. Estes indicavam o número de mancebos que cada concelho devia pron ficar para o serviço militar. Na posse deste números, as Câmaras Municipais na terceira quinta-feira do mês de Setembro, em sessão pública, com a assistência do administrador do concelho, dos regedores e párocos de todas as freguesias, procediam à formação da lista dos mancebos que deviam cons tuir o con gente dos respec vos concelhos para aquele ano. 1856-1867 12 docs. CMB/H.A./0.6.

Autos de reclamação Desde o primeiro domingo do mês de Abril podiam ser apresentadas às Câmaras todas as reclamações contra a inscrição ou omissão de qualquer cidadão indevidamente feita no recenseamento. Estas reclamações podiam ser feitas pelo próprio interessado ou por qualquer cidadão do município com relação a terceiro, assim como pela a autoridade pública respec va. Sempre feito por escrito, o processo iniciava-se com a apresentação de um requerimento onde o interessado jus ficava o mo vo da sua reclamação e ao qual anexava todos os documentos que lhe serviam de prova. Depois de instruídos os processos e no acto do sorteamento dos mancebos eram lidas todas as

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reclamações apresentadas e sobre cada uma era proferida uma decisão, deferindo ou indeferindo, a Câmara Municipal, conforme fosse de jus ça. Destas decisões poderiam ainda recorrer para o Conselho de Distrito. Este recurso era interposto por declaração escrita e apresentada pelo recorrente devendo ser acompanhado por todos os documentos e alegações que o fundamentassem. Por sua vez, a Câmara Municipal, depois de informação prévia, reme a o respec vo processo para o Governador Civil que emi a o competente alvará, onde se mandava que a respec va Câmara no ficasse da decisão o interessado. 1856-1883 27 maços (3cx.) CMB/H.A./07.

Relações de mancebos sorteados para o serviço militar Esta relação de mancebos era inicialmente da competência do administrador do concelho (ar go 7º da Lei de 9 de Julho de 1842). Com a publicação da Lei de 27 de Julho de 1855 que regulava o modo de se fazer o recrutamento para o exército passou a ser, de acordo com o Ar go 14º da referida Lei, uma das competências das Câmaras Municipais. Neste sen do, a base legal desta série documental assenta no ar go 7º da Lei de 9 de Julho de 1842 e nos ar gos 27º e 28º da Lei de 27 de Julho de 1855. 1846-1858 10 docs. CMB/H.A./08.

Listas de Mancebos proclamados recrutas efec vos Na terceira quinta-feira do mês de Setembro, procediam as Câmaras Municipais, em sessão pública, com assistência do Administrador do Concelho, dos Regedores e Párocos de todas as freguesias, à formação da lista dos mancebos que deviam cons tuir o con ngente dos seus respec vos Concelhos para aquele ano. Os primeiros mancebos sorteados que não vessem sido excluídos ou isentos até ao preenchimentos do número requerido para o con ngente, eram proclamados recrutas, formando-se de todos uma lista, que no domingo imediato seria afixada nas portas das igrejas, dando-se assim por publicada. 1879 1 doc. CMB/H.A./09.

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Guias de marcha Nas capitais de Distrito Administra vo exis a uma Junta de Revisão composta pelos respec vos dos governadores civis que as presidiam, de um faculta vo civil, por ele nomeado, de um Oficial superior e de dois faculta vos militares, nomeados pelo Comandante da Divisão. Para esta Junta, eram enviados os mancebos para serem inspeccionados com a respec va guia. Estas guias eram passadas pelo presidente da Câmara Municipal. Cada mancebo seria abonado com o subsídio de 120 réis pago antecipadamente pela recebedoria do concelho, por conta do ministério da guerra. 1884-1886 27 docs. CMB/H.A./10.

Relações de mancebos inspeccionados pela Junta de Revisão A Junta de Revisão examinava os mancebos reme dos pela Autoridade Administra va para o serviço militar, podendo rejeitar os que fossem fisicamente incapazes de servir. As decisões finais desta Junta eram escritas e devidamente fundamentadas. 1861-1866 16 docs. CMB/H.A./11.

Cadernetas Militares Todo o militar recebia ao ser incorporado uma caderneta militar que ficava na posse do indivíduo enquanto es vesse na situação de licenciado ou na reserva. Devia guarda-la mesmo depois de terminar o tempo legal de serviço militar para poder, em qualquer circunstância jus ficar a sua baixa defini va. O militar que perder a caderneta deve par cipar a ocorrência à autoridade militar a que es ver subordinado. 1904-1938 7 docs. CMB/H.A./12 Nota: No processo de recenseamento de 1895 (CMB/H.A./18. - Cx. 01) encontra-se uma caderneta militar modelo n.º 3 do regulamento para a organização das reservas Ordem do exercito n.º 2 de 1892.

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Relações dos licenciados e reservistas que faltaram à revista de inspecção Por não comparecerem à revista de inspecção, os licenciados e os reservistas eram punidos pelo comandante da unidade a que pertencessem com a multa de 20$ a 50$, que no caso de reincidência poderia ser elevada até 100$. Verificada a transgressão e aplicada a multa a en dade militar elaborava por freguesias uma relação modelo B que enviava ao Administrador do concelho o qual no ficava pessoalmente os transgressores para procederem aos respec vos pagamentos. 1938 1 doc. CMB/H.A/13.

Guias de depósito para subs tuição de recrutas no serviço militar Era permi do a qualquer mancebo recenseado, sorteado e julgados aptos para o serviço militar, livrarem-se da respec va obrigação, mediante a entrega de uma quan a em dinheiro igual ao preço de uma subs tuição. 1861-1872 39 docs. CMB/H.A./14.

Relações e editais de praças convocados para serviço extraordinário O militar na situação de disponibilidade podia ser chamado às fileiras por simples aviso convocatório do comandante da sua unidade em cumprimento da ordem do governo. As praças que faltassem à convocação seriam considerados desertoras nos termos do Código de Jus ça Militar. 1943-1947 5 proc. CMB/H.A./15.

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Relações de soldados com capacidade eleitoral Até ao úl mo dia de Fevereiro seriam enviados ao funcionário recenseador pelas repar ções e serviço civis, militares ou militarizados do Estado ou dos corpos administra vos, sob pena correspondente ao crime de desobediência qualificada a aplicar aos respec vos chefes, mapas do pessoal com direito de voto, dos quais deveriam constar nome, idade, estado civil, profissão, filiação, residência e habilitações literárias. 1943-1945 3 docs. CMB/H.A./16.

Correspondência recebida 1947-1949 1 maço CMB/H.A./17.

Processos de Recenseamento Militar 1888-1949 49 proc. CMB/H.A./18.

Livros de Recenseamento Militar O livro de recenseamento era concluído no final do mês de Fevereiro, e ficava patente, até ao dia 15 de Março, desde as 9 horas da manhã até às 3 da tarde de cada dia, a todas as pessoas que o quisessem examinar. Deste livro eram extraidas por freguesias cópias auten cadas, que em todo o referido mês de Março estavam afixadas nas portas das igrejas paroquiais e nos lugares públicos do costume. 1870-1911 46 vol. CMB/H.A./19.

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MANOEL LOPES D'ALMEIDA: EVOCAÇÃO DO MESTRE, SAUDADES DO HOMEM (NO CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO) Jus no Mendes de Almeida Professor Doutor (1924-2012)



O tempo, na sua caminhada imparável, vai deixando para trás, por vezes sujeitos a esquecimento, homens e acontecimentos que, por fortes razões, ficaram em nós gravados para sempre, de tal forma que, enquanto vivermos, e conservarmos o dom da memória, jamais os olvidaremos. Pode até dizer-se que, por nós, todos os dias recordamos factos e pessoas que nos impressionaram, nos es mularam ou nos auxiliaram de modo decisivo na vida, vida que, ano a ano, se foi tornando di cil de tolerar, mas que o exemplo desses homens bons ajudou a enfrentar. Veja-se também nesta nossa a tude uma manifestação de respeito e de pura amizade que temos como um dever observar em relação a quem o merece. Vamos hoje lembrar, e homenagear, um desses homens, na passagem do centenário do seu nascimento – que só se cumprirá no dia 16 de Agosto próximo: evocamo-lo como Mestre, mas saudosos do Homem, sem que a condição de seu familiar nos impeça de usar de toda a objec vidade na evocação que faremos. Manoel Lopes d'Almeida, natural de Benavente, foi o segundo dos três filhos de Joaquim Cândido de Almeida e de Maria Jus na Lopes de Almeida. Pelo lado paterno, os ascendentes provinham de Castro Daire, enquanto pela Mãe as raízes são oriundas do lugar de Abrã, no concelho de Santarém. O Senhor Joaquim Cândido manifestou muito cedo aos amigos o futuro que desejava para os seus filhos: o mais velho, o Cândido, seria negociante e lavrador; o Manuel seria médico; a filha, Francisca Isabel, a mais nova dos três, seria professora de instrução primária. Nenhuma destas previsões se concre zou plenamente. Manoel Lopes fez os estudos primários em Benavente, um curso de apenas sete alunos, de que conheci Manuel Ferreira Henriques e Manuel de Sá Pereira, regido pela Prof.ª D. Elvira – um nome que, consagrado, ecoou por largos anos em Benavente, e ainda hoje é lembrado. Aos nove anos, um acidente provocado pela derrocada da caliça de uma parede no terramoto que devastou a vila em 23 de Abril de 1909 a nge-o na vista e força-o a usar óculos muito novo, mas não lhe refreia o gosto pela leitura. Concluído o ensino primário, o pai decide enviá-lo para o liceu de Santarém, servindo-se para tal da ajuda de amigos que nha naquela cidade, entre eles dois muito citados, os Senhores Duque e Camões. Em Santarém conclui o curso liceal e, de entre os condiscípulos, falava com frequência do Dr. Rafael Duque. Terminados os estudos liceais, decide o Pai enviá-lo para Coimbra, para se matricular no curso de Medicina. É seu companheiro o conterrâneo Domingos Ferreira Pedrosa. Nesta decisão do Pai, que era um desejo de já alguns anos, devem ter influído outros factores, como seja: o Senhor Joaquim Cândido de Almeida, alfaiate de profissão, era simultaneamente fiscal no hospital da Santa Casa da Misericórdia, portanto em contacto com doentes; dizia com frequência que o seu filho haveria de ser médico e viria para Benavente tratar toda a gente “de graça” durante um ano; outra razão, era o exemplo dado pelo

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médico Dr. Francisco de Sousa Dias, que em Benavente assis a graciosamente aos pobres e viria a ter acção preponderante no combate à terrível “pneumónica” que, por 1919, devastou o País. Ainda uma terceira razão: de Benavente, e o mais ilustre representante de uma Família an ga dali, era o Doutor João Jacinto da Silva Correia, orgulho do povo de Benavente, que na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, como professor catedrá co, e em toda a cidade desfrutava de grande pres gio. Quando da sua aposentação, deslocou-se a Coimbra uma delegação de operários, para homenagear o seu ilustre conterrâneo, com a oferta de uma peça de arte por eles fabricada, com a seguinte legenda: “Ao Doutor João Jacinto oferecem os operários de Benavente.” Três situações ligadas à Medicina, que afinal o Manoel Lopes não seguiu. Mais tarde, um dos seus sobrinhos abraçou essa carreira, como que a sa sfazer o desejo do Avô. Nesta cidade, Manoel Lopes ainda frequenta os Preparatórios Médicos, mas em breve reconhece que não era essa a sua vocação. Sem nada dizer à família, desiste da Medicina e inscreve-se na Faculdade de Letras, na licenciatura em Ciências Histórico-Geográficas, que conclui com brilho em 1930. Entretanto o seu amigo e conterrâneo Ferreira Pedrosa termina o curso de Medicina, vem exercer para Benavente e é ele quem divulga que afinal Manoel Lopes desis ra do curso e se formara em Letras. Foi grande por certo a desilusão do Senhor Joaquim Cândido de Almeida, mas contam familiares e amigos que lhe ouviram estas palavras: “Pois bem: siga então o caminho que escolheu!” Seguiu o que era a sua verdadeira vocação, e em boa hora! Mais tarde, ao percorrermos os seus cadernos em Benavente, havíamos de reconhecer que, muito novo ainda, já exis a nele uma preferência acentuada pelos estudos históricos e literários, e até pela poesia, que cul vou com a ingenuidade própria da adolescência. Tenho exemplares desses pequenos poemas, que são testemunhos de premonitória apetência para o culto das Musas:

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Porque a ventura me falta Não me chamem desgraçado. Deus me deu sorte mais alta Porisso seja louvado.

As nossas vidas são como Nosso Senhor as fadou. Se uma corta logo o pômo Outra ao ramo nem chegou.

Oh minha tristeza d'alma Foste gerada em que idade? Saudade – tu és a calma No meio d'esta ansiedade.

Pão nosso de cada dia Oh que divina fartura Que aonde falta a alegria Logo sobeja a amargura.

O amor é hos a divina De que a alma se alimenta. Eu tenho coisa mais fina Tenho a dôr que me sustenta.

Benavente | 18 x ags.to x 920

Tristeza d'alma


Isto acompanhado de um gosto profundo pela música, de que foi mais tarde, em Coimbra – dizia o seu fraterno Colega, Vitorino Nemésio –, um bom executor de guitarra. Tendo feito preceder o acto de licenciatura de uma estada de três anos na Universidade de Hamburgo, como leitor de Língua e Literatura Portuguesa, com um bom domínio da língua alemã – o Prof. Paiva Boléo referia a correcta pronúncia do alemão do Prof. Lopes d'Almeida –, pôde enriquecer-se culturalmente em contacto com a riquíssima bibliografia germânica, de que reuniu uma vasta biblioteca, hoje em meu poder, em Benavente, em par cular nos domínios da história, da literatura, da polí ca e da arte. O conhecimento do alemão permi u-lhe publicar recensões crí cas de obras redigidas nessa língua, tal como contribuiu para cimentar amizades profundas com intelectuais germânicos, de que recordo apenas um nome, de quem foi seu fraterno amigo até à morte, o Prof. Joseph Piel. De um outro, este português, mas devotado à língua, à literatura e à cultura alemãs, o Prof. Paulo Quintela, nada nem ninguém pôde separá-los. A ac vidade cien fica, pedagógica e académica do prof. Manoel Lopes d'Almeida foi criteriosamente expendida nesta Academia, no elogio histórico pronunciado, em 1985, pelo Doutor António Alberto Banha de Andrade, saudoso confrade, seu sucessor na Cadeira n.º 1. Esse elogio foi precedido por uma peça oratória do mais requintado es lo, pronunciada pelo Senhor Presidente da Academia, Prof. Joaquim Veríssimo Serrão, e complementado por um brilhante discurso do Prof. Francisco da Gama Caeiro, de saudosa memória, também na mão de Deus, em saudação ao recipiendário. Tudo, e na mais perfeita forma, foi então dito, tornando-se inoportuno o que aqui pudesse eu dizer a esse propósito, e que não passaria de repe ção desnecessária. Mas, como aluno que fui do Prof. Lopes d'Almeida, nas disciplinas de História de Portugal e de História da Arte, esta durante a regência transitória que assegurou, após a morte súbita do prof. Aarão de Lacerda, e porque com ele convivi durante muitos anos, em variadas situações, tenho uma palavra a dizer – porque o tempo de que disponho não dá para mais – a este respeito, e também da sua obra em geral, e até de aspectos que não são do conhecimento público, com a preocupação, contudo, de não demorar. Como tese de licenciatura, apresentou um trabalho sobre o seu conterrâneo, o quinhen sta Duarte Lopes, desbravador do Congo. Para o efeito, u lizou pela primeira vez, no sen do de desvendar os arcanos da família do mercador, o arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, cuja documentação seria mais tarde tão ú l a Ruy d'Azevedo, outro benaventense ilustre, e redigiu um estudo pioneiro que veio depois a rever e a completar noutras ocasiões em que se ocupou dessa notável figura de Benaventense. Possuo, como peça ines mável, o original manuscrito dessa tese de

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licenciatura, redigido na bonita letra que conservou inalterada até sempre. O júri classificou-o com 19 valores. Contratado em seguida pela Faculdade de Letras de Coimbra como professor auxiliar, foram-lhe distribuídas, ao longo das dezenas de anos em que serviu na Faculdade, as regências das cadeiras de História Medieval, História de Portugal, História Moderna e Contemporânea, História Geral da Civilização, História dos Descobrimentos e da Colonização Portuguesa, Esté ca e História da Arte, e a direcção dos trabalhos prá cos de Arquivologia e de Arquivo-Economia no curso de BibliotecárioArquivista. Nas aulas de História de Portugal, a que assis mos, a sala repleta deliciava-se com as exposições do Mestre, que, ao conhecimento profundo das matérias a tratar, aliava uma capacidade oratória invulgar, uma arte de bem dizer que empolgava a assistência. Não esqueço mais, quando e como, ao ocupar-se do drama de Inês de Castro e das suas repercussões na história portuguesa, separava a verdade histórica da ficção poé ca (prestava então culto ao seu Mestre Doutor António de Vasconcelos), sem que a segunda desvirtuasse a primeira, nem a primeira se alheasse inteiramente do conteúdo poé co que necessariamente o envolve no espírito do ouvinte ou do leitor. Eu poderia estar aqui horas a falar do professor e do pedagogo que nunca deixou de ser, mesmo distante da sua cátedra. Atenho-me, porém, a recordar que, como Mestre, soube criar discípulos, que acompanhou na maioria nos seus percursos académicos. Não recusava a par cipação em júris de doutoramentos e concursos, até de candidatos que não pertenciam ao grupo das Ciências Históricas, e por mais de uma vez contribuiu para solucionar situações dúbias criadas em outras faculdades. Dotado de dons naturais e intelectuais de excepção, todos os que o acompanhavam de perto previam que, de um momento para o outro, seria, não atraído pela Polí ca, porque se considerava, acima de tudo, um universitário, fiel à Alma Mater Conimbrigensis, mas arrebatado pela Polí ca. Admirador do Doutor Salazar, amigos comuns – D. Manuel Gonçalves Cerejeira e Mário de Figueiredo, entre outros – deram a conhecer ao Presidente a existência em Coimbra de um jovem docente que sobressaía na Faculdade de Letras, para mais, de sólida formação católica, que não recusava par cipar em acções e solenidades de inicia va de católicos em Coimbra. E a sua par cipação polí ca, não carreira polí ca, porque esta sempre foi a de um universitário puro, inicia-se como chefe do Gabinete do Doutor Tamagnini Barbosa, ministro da Instrução Pública, depois a Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, e em 1940 é o primeiro subsecretário de Estado da Educação Nacional, sendo ministro o Prof. Mário de Figueiredo. Tinha entretanto ob do, por unanimidade, o grau de doutor em Ciências Históricas, enfrentando um júri que integrava arguentes como Joaquim de Carvalho e Damião Peres, que, não regateando louvores ao candidato e à tese que apresentara, não poupou o doutorando com

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remoques que denotavam desconhecimento da personalidade do candidato. O Doutor Lopes d'Almeida, como sabem os que o conheceram, era um homem que ves a impecavelmente e dava importância à vida social e ao convívio com os amigos. Não se dispensava de, cumpridas as suas obrigações universitárias, descer e parar à porta da Atlân da para conviver, e também ver os livros que saíam. Foi sempre um excelente conversador e homem de bom convívio. Quem assim o via, e não conhecia bem, sobretudo os professores que seguiam outro es lo de vida, pensavam, erradamente, que em Lopes d'Almeida o social se sobrepunha ao universitário. Errado! Daí que naquelas provas de doutoramento, à maneira muito coimbrã, um dos arguentes vesse u lizado remoques como estes: “Levante-se mais cedo! Não passeie tanto na Baixa!” E com par cular intenção: “Estas coisas não se aprendem nas escadas dos Ministérios!” Como parlamentar, o Regime usou e abusou da sua par cipação, porque era admirada a sua capacidade oratória, e na Assembleia Nacional pronunciou efec vamente notáveis discursos. Enganam-se, porém, os que pensam e escrevem que a Polí ca prejudicou a carreira intelectual do Prof. Lopes d'Almeida. Garanto-vos que nunca deixou de estudar, de ler e de anotar, de escrever, de publicar, de adquirir livros, de visitar livreiros e an quários – numa palavra, nunca subes mou o ideal universitário que defendia e que era a sua opção na vida, mas também entendia que não nha o direito de se escusar aos sacri cios que o seu país lhe exigia. Em Maio de 1961, bem contra sua vontade, mas por grande insistência do Doutor Salazar, aceitou o cargo de Ministro da Educação Nacional. Historiadores modernos se têm ocupado já desse período conturbado da vida portuguesa contemporânea, mas de forma incorrecta ou suspeitosa. Nenhum deles até hoje disse que o novo ministro recebera uma pasta fortemente inquinada de males que previam explosão na área universitária, e assim de facto aconteceu. Acompanhei o Prof. Lopes d'Almeida como chefe do seu Gabinete, e muito nha a dizer. Vivemos horas dolorosas, e não nos deixavam fazer trabalho ú l ao País. Ainda assim, foi possível conseguir a restauração da Faculdade de Letras do Porto, a integração do Ins tuto Superior de Ciências Sociais e Polí ca Ultramarina na Universidade Técnica de Lisboa, entre outras medidas, mas, em Dezembro de 1962, o Ministro deixava esse cargo, mal com os homens por amor de El-Rei, mal com El-Rei por amor dos homens. Regressa à sua Coimbra e o que aí não fez, quer na Universidade, quer em especial na Biblioteca Geral! E nos Acta Vniversita s Conimbrigensis! Desdobra-se em ar gos, conferências, na presidência de comemorações centenárias, na presidência da nossa Academia, que direi eu!

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Não devo repe r aqui, já o disse, o que acerca da sua obra escreveram Joaquim Veríssimo Serrão, António Alberto Banha de Andrade e Aníbal Pinto de Castro, para referir apenas alguns que o conheceram melhor. Mas, como posso eu conter-me, e não citar a co-autoria, com Mário Brandão, da História da Universidade de Coimbra, a reimpressão da História Genealógica, da Biblioteca Lusitana e a edição do Memorial de Pêro Roiz Soares, de muitas crónicas e outras obras fundamentais para o estudo da historiografia portuguesa, o Arquivo de Bibliografia Portuguesa, que fundou e dirigiu, e tantas, tantas obras, umas maiores, outras menores em dimensão, que não em rigor? E os estudos que antecedem as edições dos Tesouros da História e da Literatura, excelente inicia va aceite pelo seu grande Amigo, Senhor Edgar Lello? Lugar à parte reservo para os estudos benaven nos que foi redigindo ao longo dos anos e testemunham um grande amor à sua terra natal. Discursos e conferências, em grande número inéditos, cujos originais tenho em meu poder, ainda pensámos em reuni-los em volume neste ano centenário. E porque não as tão eruditas palestras sobre o séc. XVII português, pronunciadas aos microfones da Emissora Nacional? Saudosos do Homem, a quem devemos quase tudo, eu e meus Irmãos depois de termos recolhido os seus restos mortais em Benavente, junto dos que lhe foram mais queridos, quisemos, como que em acção de graças, preservar para sempre a sua lembrança. Mandámos cunhar uma medalha, trabalho magistral do Prof. Escultor Joaquim Correia, que vamos distribuir por familiares, amigos e ins tuições que o mereçam. No anverso, a e gie de Manoel Lopes de Almeida, que o escultor Joaquim Correia conheceu bem; no reverso, o alfa e o ómega da sua vida, Benavente e Coimbra, simbolizadas pelo Cruzeiro do Calvário, que o homenageado sempre visitava, e pelo pá o da Universidade, com sua torre, termo de uma vida para nós exemplar. Do amor à sua terra reproduzimos um texto inédito que possuimos, talvez o seu úl mo escrito: No número de Aurora do Ribatejo, do passado dia 15 de Novembro, vinha reproduzido o Cruzeiro de Benavente, erguido lá onde chamamos, desde a sua an ga implantação, o Calvário. Fiquei-me a olhar a pequena gravura, que mostra o pequeno portão, tantas vezes aberto e fechado por estas minhas pobres mãos. Entrei agora mais uma vez, idealmente, de alma e coração, na reminiscência das horas passadas naquele lugar deleitoso, há tantos e tantos [anos]! Os velhos somos assim, basta tocar-lhes uma corda sensível, falar-lhes ao jeito dos seus tempos e das coisas de quando moços, que logo não é fácil calá-los, porque as saudades os afogam.

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Eis, Senhoras e Senhores, em breves e descoloridas palavras, mas leais e francas, a evocação de um Benaventense que ilustrou a sua terra, como professor da Universidade de Coimbra, como presidente desta Academia, e como cidadão, devotado a familiares e amigos. Recordamo-lo hoje, na presença do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Benavente e de outros conterrâneos, quando se aproxima a data do centenário do seu nascimento, como Alguém que o tempo não fará esquecer. Na galeria dos presidentes desta Academia, o retrato de Manoel Lopes d'Almeida é uma justa homenagem a quem, honrando as Ciências Históricas, também se sacrificou pelo seu país. Lisboa, 7 de Junho de 2000. Jus no Mendes de Almeida Comunicação apresentada na Academia Portuguesa da História em 7 de Junho de 2000.

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DO TERRAMOT0 DE 23 DE ABRIL DE 1909 À RECONSTRUÇÃO DA VILA DE BENAVENTE Estudo do processo da renovação urbana de Benavente Rui Vieira Arquiteto



No número anterior da revista “Terras d'Àgua” publicava a primeira parte deste estudo que visa fazer a recons tuição do processo de renovação urbana de Benavente após o terramoto de 23 de Abril de 1909. In tulado Os Tempos da Angús a, procurava-se ali contextualizar o período imediatamente posterior à catástrofe, período de naturais dúvidas e amarguras, definindo assim os cenários onde decorreria a reconstrução da vila. É agora altura de publicar a segunda e úl ma parte do trabalho, denominada As Angús as do Tempo, um tempo penosamente longo, durante o qual Benavente procuraria refazer-se da destruição de que fora ví ma. Revelando os mecanismos que possibilitariam à vila a execução de tamanha obra, procura-se caracterizar, em traços largos, as consequências do terramoto na fisionomia urbana benaventense. Nunca sendo demais, volto a agradecer ao Museu Municipal de Benavente e, em especial, à Dr.ª Sandra Ferreira, guardiã do magnífico espólio deste município.

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Parte II- As Angús as do Tempo No dia 23 de Abril de 1910, um ano exacto passado sobre a terrível catástrofe que assolara Benavente, uma missa seria celebrada na igreja da Misericórdia, a única que resis ra à violência do embate. O comércio fecharia todas as suas portas e os operários repousariam nesse dia, trabalhando no domingo. Alguns populares lançariam flores sobre as sepulturas das ví mas falecidas em consequência do terramoto, e todos recordariam, com amargura, o dia que lhes deformara o mundo em que viviam. Para trás haviam ficado doze meses de bizarra existência, doze meses marcados por divergências pessoais, ideológicas e polí cas que haviam transformado aquilo que deveria ter sido um tempo de concórdia ins n va num espaço de guerrilha ins tucionalizada. Enquanto na vizinha e súbdita Salvaterra de Magos se começavam a desmanchar barracas, que a vila, essa, já se encontrava quase totalmente reconstruída, em Benavente, a maioria da população habitava ainda os bairros de pau, que a vila, essa, man nha-se quase totalmente destruída. Centena e meia de prédios arrasados, mais de quatrocentos de pé, mas inabitáveis, apenas cerca de cem casas reparadas por patrocínio da Comissão Nacional de Socorros, e nem meia dúzia reconstruída por conta própria dos chamados ricos. E já nem os persistentes trovões subterrâneos, acompanhados ou não de abalos, amedrontavam a população e serviam de jus ficação para tamanho atraso na reconstrução da vila. Afinal, eram também eles já uma autên ca trivialidade na vida desvirtuada daquelas gentes. Fora este o resultado da indiferença, inépcia ou cas go dos então curtos e instáveis governos monárquicos para com a vila republicana. Fora também o resultado das desavenças entre as duas comissões locais de socorros, em grande parte mo vadas pela acção de um governador civil de Santarém que parecia coleccionar inimigos em Benavente. E fora, finalmente, o resultado de uma tensa relação com a Comissão Nacional de Socorros, a organização que deveria servir de primordial apoio à vila, mas que, por mais de uma vez, daria mostras de não querer reconhecer o real nível da destruição a que esta fora subme da. E o primeiro forte indício dessa recusa ocorrera aquando da atribuição de verbas para as obras de reparação e reconstrução dos imóveis par culares, feita mediante a apreciação de um relatório dos danos sofridos, elaborado pela Subcomissão Oficial de Socorros da vila procedimento a que se submeteriam todos os semelhantes documentos das subcomissões cons tuídas nas restantes povoações afectadas pelo terramoto. Começado a elaborar em Junho de 1909, rapidamente o relatório de prejuízos despertara a indignação entre as gentes benaventenses, veiculando que as avaliações estariam a ser feitas muito abaixo do seu real valor e que ficariam muito aquém dos dois mil contos de réis que se supunha serem necessários para a reconstrução da vila. Isto, não obstante o injus ficado

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mistério em que se envolviam os trabalhos de avaliação e as próprias reuniões realizadas à porta fechada - da subcomissão oficial, a qual, recorde-se, era então presidida pelo polémico Sabino José da Costa, o administrador do concelho nomeado pelo governador civil de Santarém, Joaquim Luís Mar ns, logo após o terramoto. Envolto no maior secre smo, seguira assim o relatório de prejuízos para apreciação da Comissão Nacional, sendo desconhecido da quase totalidade dos verdadeiros interessados que montantes e quais os beneficiados eram por ele referidos. Saber-se-ia somente, mais tarde, que fora dividido em três categorias, estabelecendo a diferença entre os que eram considerados pobres, remediados e ricos, numa suposta salvaguarda de que os primeiros seriam socorridos, em detrimento de segundos e terceiros, que ficariam dependentes das disponibilidades financeiras dos cofres da comissão central. Sendo a terra unanimemente reconhecida como a mais a ngida, a Benavente seria des nada, a 3 de Agosto de 1909, a maior quan a, 33:584$000 réis, verba insuficiente, mas sobretudo incompreensível quando em comparação com importâncias reservadas a povoações como Salvaterra de Magos, a quem calhara 28:098$000 réis votados a 20 de Julho de 1909 e acrescidos de 4:160$000 réis a 24 de Agosto. Tratando-se de terras de calibre aproximado, tornar-se-á de di cil explicação esta proporção de subsídios quando era inegável a desproporção em termos de danos sofridos. E não se sabendo que relatório chegara às mãos da Comissão Nacional, mais di cil ainda se tornará ajuizar sobre os mo vos de tamanha injus ça, não deixando, porém, de ser visível, desde logo, um significa vo alheamento para com o estado de destruição de Benavente. Os trabalhos de reconstrução subsidiada na vila, por sua vez, não começariam de imediato. O receio por novos abalos violentos, avivados pela réplica de 2 de Agosto, acabaria por protelar o início das obras até finais de Setembro de 1909, restringindo-as ainda aos prédios menos danificados e em ruas que se supunha não virem a sofrer modificações. Esta limitação, que se traduziria numa extrema morosidade e escassez de obra feita, exasperaria os benaventenses que se viam divididos entre a ânsia de regressarem aos an gos lares reconstruídos e a compreensão da oportunidade que tão infeliz acontecimento proporcionara para a rec ficação das estreitas e tortas ruas da vila. Era este, afinal, o lado posi vo possível de toda a catástrofe, possibilitado pelo estado de ruína de pra camente todo o casario. Esperava-se então pelos desenvolvimentos dos trabalhos de levantamento da planta cadastral de Benavente, realizados em Julho desse ano pelo capitão de infantaria Leite de Castro, adjunto da Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos e Topográficos. Des nada ao estudo da comissão encarregue de determinar os processos constru vos ideais para regiões sísmicas, nomeada a 27 de Abril de 1909, a planta cadastral de Benavente acabaria por ser alvo de análise de uma sua subcomissão, especialmente incumbida do estudo topográfico das povoações sinistradas. O relatório resultante desse trabalho,

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presente ao rei, mo varia a criação de uma outra comissão, nomeada a 28 de Outubro de 1909, por portaria emanada pelo Ministério das Obras Públicas, encarregue de estudar e propor os meios adequados para, económica e rapidamente, pôr em prá ca o es pulado no dito documento. No final de 1909, Benavente teria finalmente direito a um período de tréguas, inesperadamente mo vado por uma série de medidas tomadas pelo polémico governador civil de Santarém. A primeira dessas medidas, a demissão de Sabino José da Costa dos seus cargos de administrador do concelho e de presidente da Subcomissão Oficial de Socorros, daria término a uma actuação que, havia muito, se tornara insustentável e de consequências ameaçadoramente perigosas. A subcomissão, por seu turno, ficaria obrigada a prestar contas da sua gestão, o que, em reunião realizada a 28 de Novembro de 1909, revelaria não só a apa a dos seus restantes membros, como também - e mais grave - confirmaria o desvio de avultadas, ainda que inexactas, somas de dinheiro de dona vos para supostas despesas da administração do concelho e o fornecimento ilícito de materiais de construção quando este deveria ter sido feito por arrematação. A mais surpreendente das medidas do governador civil seria, porém, a proposta de entrada de dois delegados da Comissão Municipal de Socorros na antagonista e sua protegida subcomissão oficial. Este estranho e súbito reconhecimento de um órgão que sempre ignorara permi ria a passagem da subcomissão agora com maior equilíbrio de forças nas facções polí cas ali representadas para uma nova fase de funcionamento, de actuação muito mais límpida e regular. A par r da reunião de 28 de Novembro, as sessões passariam a ser públicas, perdendo o secre smo imposto pelo ex-administador, e com a escrituração em dia, quer de actas, quer de contabilidades. As obras custeadas pela Comissão Nacional passariam a poder ser feitas por administração dos proprietários ao contrário do período anterior, onde eram feitas por gestão directa da “toda-poderosa” subcomissão, sorteando-se as ruas, não suscep veis de rec ficações, onde elas se realizariam, de modo a concentrá-las, favorecendo a economia e o trabalho de fiscalização, e terminando com suspeitas de favorecimentos. As arrematações de materiais, por sua vez, passariam a ser feitas em carta fechada, obstando assim a possíveis conluios na praça pública entre os concorrentes. Mas o grande trabalho a que se propunha então a subcomissão era a elaboração de um segundo relatório de prejuízos a apresentar à Comissão Nacional de Socorros, reivindicando a quota parte de direito do bolo total subscrito, condizente com o nível de destruição a que fora subme da a vila, incomparável a qualquer outra povoação afectada. Depois de ultrapassadas as inevitáveis contrariedades, mo vadas quer pela dificuldade em conseguir de Sabino José da Costa os cadernos das misteriosas primeiras avaliações, quer pelas naturais reclamações de proprietários, o segundo relatório

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de prejuízos seria finalmente aprovado, em assembleia plena da subcomissão, a 18 de Fevereiro de 1910. Dividido nas mesmas três categorias, os danos seriam então avaliados em 82:004$050 réis para os pobres, 54:399$450 réis para os remediados, e 202:746$000 réis para os ricos, num total de 339:149$500 réis. Mas a polémica não demoraria a voltar a instalar-se. Dos 82 contos de réis avaliados como prejuízo da classe pobre da vila a única a ser subsidiada, a Comissão Nacional apenas votaria 59 contos, informando que mais não fora aprovado por dúvidas sobre a classificação de alguns proprietários. Em Benavente, apenas em meados de Abril de 1910, dois meses depois de elaborado o relatório, chegaria a confirmação oficial destes valores, dando mostras, uma vez mais, da má vontade da Comissão Nacional para com a destruída povoação ribatejana. Revelar-se-iam, também aqui, as funestas consequências de uma viagem à capital do presidente da subcomissão local Henriques da Silva o subs tuto, no cargo, de Sabino José da Costa - e do vogal Vidigal Salgado para, em conferência com a Comissão Nacional, darem conta do seu desacordo em relação ao segundo relatório enviado de Benavente. Vencidos na votação para a sua aprovação, estes dois membros da subcomissão haviam demonstrado assim, ao mais alto nível, a sua discordância quanto à classificação de alguns dos sinistrados. Convocados ou ali idos voluntariamente, apenas os jornais denunciariam a sua presença junto do organismo central, despertando a indignação nos restantes membros da subcomissão, que, deste modo, se julgavam traídos e desconsiderados. Dali em diante, a indisposição entre os seus vogais jamais permi ria o retomar do normal funcionamento da subcomissão oficial de socorros da vila. Passara então o tal ano sobre a catástrofe, um ano de constante instabilidade e controvérsia e de muito parcos resultados prá cos. Feliz e finalmente, os tempos seguintes trariam sinais de uma maior prosperidade. Aos dinheiros enviados pela Comissão Nacional juntar-se-ia a chegada, em Maio de 1910, da tão aguardada planta da vila com as rec ficações a executar - o que permi ria um substancial incremento nas obras de reconstrução e insuflaria de alento a descrente população de Benavente. Em finais de Junho de 1910, já alguns pontos pela vila começavam a assumir o an go aspecto, e a par das reconstruções subsidiadas pela Comissão Nacional, também alguns proprietários mais abastados iam retomando as obras de reparações das suas habitações, com preocupações de modificações e melhoramentos no seu aspecto e solidez. Mas a um incondicionado desenvolvimento das obras opunha-se a depauperada condição do tesouro municipal, incapaz de fazer frente às despesas das necessárias expropriações para abertura e alargamento de ruas. Os sucessivos pedidos de emprés mo da vereação benaventense feitos desde 27 de Abril de 1909 e reiterados nos meses seguintes encontrariam sempre a negação dos governos da

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Monarquia, que, apenas a 25 de Agosto de 1910, dezasseis meses depois do terramoto, anuiriam, consen ndo finalmente, por decreto publicado em Diário do Governo, que a câmara da vila contraísse um emprés mo não superior a 20:000$000 réis, amor zável até 30 anos. Esta autorização, porém, restringia a aplicação da verba abonada exclusivamente às obras de reconstrução dos Paços do Concelho, permi ndo apenas que o restante desse dinheiro fosse empregue nas expropriações necessárias para abertura e alargamento de ruas. Dúvidas sobre os modos de garan a de pagamento, no entanto, voltariam a atrasar o processo, obrigando o governo a publicar nova portaria em Diário do Governo de 27 de Setembro de 1910 para aclaramento da situação. A instauração da República poucos dias depois, a 5 de Outubro, revolucionando as estruturas de todo o país, levaria a Caixa Geral de Depósitos e Ins tuições de Previdência a retomar em consideração um an go e negado pedido de emprés mo da vereação benaventense. Uma rápida troca de correspondência entre a Caixa e a Câmara precipitaria assim um processo que teria resolução a 18 de Novembro de 1910, com a assinatura do emprés mo de 20:000$000 réis, outorgado por Anselmo Xavier, como presidente da Câmara Municipal de Benavente e por José Estevão de Vasconcelos, na qualidade de administrador geral da ins tuição bancária. Coincidência ou não, o emprés mo que andara a ser pedido quase desde o dia do terramoto era, deste modo, garan do pouco mais de um mês depois de instaurada a República. Talvez se tratasse, de facto, de uma mera casualidade, mas não deixará de ser curioso que aquilo que fora negado pelos governos da Monarquia a uma câmara republicana, durante meses a fio, fosse tão prontamente conseguido debaixo de governação propícia. A implantação da República vinha assim reacender a esperança dos benaventenses. Destronados os inimigos monárquicos, ascendidos ao poder os correligionários republicanos, Benavente acreditava que tudo se restabeleceria, então, normal e rapidamente. Mas os atribulados primeiros anos da República encarregar-se-iam de desfazer por completo a ilusão dos bene cios que o novo regime traria para a fiel vila ribatejana, ressarcindo-a dos males da Monarquia. Se, numa fase inicial, um certo pudor em incomodar os trabalhos ministeriais de consolidação da República inibiria, consideravelmente, as reclamações benaventenses, o posterior desmembramento do par do republicano e as consequentes lutas pelo poder, fazendo recordar as mais acesas guerras polí cas do velho regime, acabariam por não dar a Benavente grande espaço de manobra para reivindicar a assistência a que julgava ter direito. A mí ca República revelara assim a sua não imunidade à desmedida ambição humana, e a mais destruída de todas as terras pelo terramoto de 23 de Abril de 1909 rapidamente perceberia que apenas consigo própria poderia contar para levar a bom termo a pesada tarefa da sua reconstrução.

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Fundamental a essa tarefa parecia ter sido, desde o início, o projecto de rec ficações a introduzir na malha urbana da vila, trabalhado sucessivamente pelas comissões oficiais nomeadas a 27 de Abril e a 28 de Outubro de 1909. In tulado Plano Geral de Arruamentos, era este um projecto claramente abordado segundo dois prismas: o da reconstrução e o da expansão. Reconstrução do an go tecido da povoação, da chamada Vila Velha, propondo alargamentos e rec ficações de vias, procurando re rar-lhe a tortuosidade própria das malhas medievais e incu r-lhe um cunho de maior modernidade; e expansão para sul, para os terrenos até então ocupados por cerrados, para o Bairro Novo, uma estrutura a primar pela regularidade e pela largueza de espaços, manifestamente inspirada num projecto encomendado, em 1905, pela Câmara Municipal de Benavente a Júlio Francisco de Sousa, condutor principal das Obras Públicas de Santarém. Mas a planta que, em Maio de 1910, chegara a Benavente, com a indicação das rec ficações a introduzir na estrutura urbana da vila, deixara à evidência que o processo de reconstrução ali preconizado seria moroso e, sobretudo, extremamente dispendioso. Para além dos gastos com as expropriações para o Bairro Novo, o projecto advogava ainda uma ideia de linearidade e rec dão, naturalmente avessa à malha de índole medieval da Vila Velha. Seria então necessário alargar e desafogar ruas demasiadamente estreitas, adicionando-lhes, tanto quanto possível, um carácter rec líneo, situação que implicava intervenções a grande escala por todo o casco do velho núcleo do aglomerado. Não parecia haver ali qualquer interesse em compreender a História daquele pedaço de tecido urbano, talvez porque a História que interessava era a que ficava a sul, no Bairro Novo, e essa estava ainda pra camente toda por fazer. Na Vila Velha, importava apenas introduzir um pouco do cunho modernista e arejado da malha que se propunha para a nova zona de expansão de Benavente. Não seria por isso de admirar que a maior parte das rec ficações propostas para a parte velha da vila se concentrasse no núcleo mais an go e primordial do aglomerado, em redor da an ga Praça da Vila - à data do terramoto ocupada pela monumental igreja matriz - e dos seus eixos estruturais, as ruas de Évora e de Lisboa. Tratava-se afinal do pedaço da malha de raiz mais medieval e, por conseguinte, mais sinuoso e menos desafogado da vila. Assim e significa vamente, nenhumas das ruas adjacentes à praça - que agora se voltava a proporcionar pelo desmoronar integral do imponente templo - escapava a alterações e rec ficações. Para todas elas seriam propostas transformações, em alguns casos profundas, que pareciam ter numa regular conformação da praça renascida a sua grande força motriz. A norte deste centro da Vila Velha, por sua vez, as intervenções pautar-se-iam por uma muito maior pontualidade, decrescendo de número à medida que se afastavam do núcleo mais an go do aglomerado, como reflexo natural da sua mais recente construção e, por conseguinte, menor apego à tortuosidade e exiguidade das estruturas medievais. Os longos eixos que percorriam toda a parte norte da vila, desde o velho centro

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até ao Largo do Calvário, extremidade noroeste, seriam disso exemplo perfeito, pelo modo significa vo como apenas deveriam sofrer alterações de vulto nos troços a sul da Travessa da Amoreira. Intervenção de relevo deveria ocorrer na face norte do Largo Popular, local de confluência da Rua de Évora e da Rua da Ponte, onde a construção mediadora destas duas vias deveria avançar pelo largo adentro, consumando o quarteirão em vér ce e re rando muita da amplitude do espaço fronteiro, reduzido quase à condição de cruzamento. Esta intervenção estaria seguramente relacionada com o proposto para a extremidade da Praça Anselmo Xavier que lhe ficava fronteira, para onde se indicava a construção de uma nova igreja, de dimensões inferiores à destruída igreja matriz, mas com a clara função de subs tuir os templos perdidos. A face norte do Largo Popular e o corpo da nova igreja tornar-se-iam então nos contrapontos já não de um mero cruzamento, mas de um novo centro, atravessado pelos vários eixos de ligação ao exterior da vila. Assim, quer para quem viesse pela estrada real n.º 16, pelos lados de Samora Correia ou Salvaterra de Magos, quer para quem chegasse pela estrada de Trejoito, vindo das bandas de Évora, o ponto de confluência tornar-se-ia este renovado largo de formas extremamente irregulares, mas dignificado pela presença da nova igreja. O renovado Largo Popular funcionaria também aqui como o nó do espar lho a que ficaria sujeita a malha de Benavente, dis nguindo-se nela, claramente, o núcleo norte do velho aglomerado, de ruas amplificadas e largos renovados, da expansão a sul, subdividida, por sua vez, no Bairro Novo e na parte sul da Vila Velha, circundante da Praça Anselmo Xavier. Não se deverá porém considerar que tal divisão clara significasse um isolamento entre as diversas partes da vila. Ainda que parecendo cada uma viver por si, per nentes vias manteriam o contacto e entabulariam uma comunicação que acabava por se revelar extremamente directa. Assim, enquanto a Travessa da Rua Nova ligaria a rua principal do Bairro Novo ao coração da Vila Velha, a Rua de Évora, a nascente, cons tuir-se-ia em segmento de um longo eixo longitudinal que atravessava todo o aglomerado, assegurando ainda um amplo contacto das praças do núcleo velho com o Largo Popular, a nova rótula de ar culação da vila. Entre o Bairro Novo e a zona envolvente da Praça Anselmo Xavier, por seu lado, abrir-se-iam amplas ligações, pelo rasgamento da frente edificada a sudoeste da praça, encerrando assim o sistema de relações estabelecido entre as diversas partes de uma malha espar lhada, mas interligada e ar culada com alguma habilidade. Mas o atraso, quer na chegada à vila deste plano de rec ficações, quer na concessão de um emprés mo que permi sse à câmara executar as muitas operações que aquele propunha, impediria a sugerida revolução urbana em Benavente. Unicamente salvaguardado para alterações parecia ter sido, então, o eixo de atravessamento principal do casco velho da vila, com início na Rua de Évora e fim no local onde, até à data do terramoto, exis ra a igreja de S. Tiago - com passagem pelas praças da destruída igreja matriz e dos Paços do Concelho. Seria este, de facto, o grande alvo de intervenções em todo o tecido

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urbano da Vila Velha, num aparente cumprimento das directrizes para ali traçadas pela comissão oficial. E aparente porque, pouco depois do terramoto - quando pela vila se começava a discu r sobre a sua reconstrução, e muito antes da chegada de qualquer planta oficial, já pelo espírito das gentes da terra andava a ideia de abrir uma grande artéria desde a Praça Anselmo Xavier até ao Calvário, obrigando ao natural alargamento da Rua de Évora, considerada a via principal da povoação, bem como da Travessa do Almoxarife, elo de ligação dos largos da matriz e do edi cio da câmara. Se a esta ideia preconcebida se adicionar a inevitabilidade da demolição das duas igrejas, a matriz e a de S. Tiago, não será di cil concluir que, para a edilidade benaventense, não seria necessário qualquer plano de arruamentos para saber que des nos dar àquele eixo de atravessamento da vila. Será então possível que se tenha esperado durante tanto tempo em Benavente pela planta da comissão de 28 de Outubro para depois não lhe dar real aplicação prá ca? Efec vamente, tudo assim o parece indicar. E mais consistência ganhará esta ideia se se atentar ao facto das restantes alterações a que a câmara acabaria por proceder na malha da Vila Velha não terem sido, sequer, referenciadas pela comissão oficial na sua planta - no caso do aterro da Rua da Ponte -, ou não se poderem considerar um verdadeiro cumprimento dos seus alvitres - no caso da reformulação dos limites do cemitério, decorrente da forçosa demolição da capela de Nossa Senhora da Paz. A Rua de Évora ou Rua João Sabino de Almeida Fernandes seria então um dos alvos de reformulação, com as alterações a serem-lhe exclusivamente introduzidas na face sudoeste, preservando a dimensão da desembocadura no Largo Popular, mas fazendo recuar o edificado daí em diante e eliminando o afunilamento a que a rua se prestava no sen do da destruída igreja matriz. O ponto de referência situarse-ia assim no cunhal que dobrava para a Rua Nova, imutável e eixo de charneira para a movimentação de uma face sudoeste da Rua de Évora que procuraria estabelecer o paralelismo possível com a sua frente oposta. Ao centro da rua, na frente reformulada, erguer-se-ia a então in tulada Casa do Povo, obra de inicia va camarária, terminada em 1912, e que serviria de sede à corporação dos bombeiros voluntários no rés-do-chão, reservando-se o andar superior, um amplo salão, para a realização de conferências, reuniões de classe e outros acontecimentos de relevo e interesse para a população situação vista com maus olhos por alguns, que temiam vir aquele local a transformar-se em perigoso antro de conluios populares. Com a destruição e inevitável desaparecimento da imponente igreja matriz, o seu lugar de implantação acabaria por dar lugar a uma praça bap zada de Praça da República em Novembro de 1910, cujas margens sofreriam rec ficação apenas na face noroeste, com o avançar dos lotes situados junto ao gaveto com a Travessa do Almoxarife para o enfiamento da restante frente edificada. A plataforma da praça, por sua vez, seria ajardinada, mas apenas em meados da década de 50 - aproveitando-se a

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efeméride da construção da nova igreja matriz, no Chaveiro, erguer-se-ia ali um símbolo ao significado daquele local. A pon ficar a praça, um obelisco, projecto do mesmo autor da nova matriz, o arquitecto Luiz Benavente, tornar-se-ia assim, quase meio século depois, no monumento alusivo à catástrofe de 23 de Abril de 1909, figurando um dedo apontado aos céus, em permanente prece por aqueles que encontraram a morte em tão trágico dia e por todos aqueles que não regatearam esforços em auxiliar a desditosa vila de Benavente. Intervenção semelhante à da Rua de Évora, se bem que em muito menor escala, sofreria a Travessa do Almoxarife, elo de ligação entre os largos da destruída igreja matriz e dos Paços do Concelho, com o recuo da sua frente nordeste - o que permi ria pra camente duplicar o seu calibre. A Praça do Município, elo seguinte do eixo de atravessamento da Vila Velha, sofreria a rec ficação que melhor comprovaria a pouca atenção que a vereação benaventense dispensara ao Plano Geral de Arruamentos da comissão de 28 de Outubro de 1909. Com efeito, a frente oposta ao edi cio dos Paços do Concelho, inalterada no projecto da comissão oficial, acabaria por ser alvo de importante intervenção, com o avançar dos lotes até ao perfilar por um mesmo alinhamento. Esta alteração não estabeleceria nenhuma situação de paralelismo com a frente dos Paços do Concelho situação aliás pouco percep vel quando edificada, mas eliminaria as torções entre lotes que a tornavam irregular, contrapondo assim à rigidez das linhas do edi cio camarário uma semelhante rec dão. Desta frente realinhada faria parte o novo talho municipal, construído no lote con guo ao an go talho, do qual herdaria muitas caracterís cas e, inclusive, materiais de construção. Os Paços do Concelho, imponente edi cio concluído em 1876, centralizador das atenções na praça e bastante danificado pela violência do terramoto, sofreria naturais obras de restauro, que implicariam a reconstrução parcial do piso superior e a reparação geral do edi cio. A edificação de uma torre com relógio e alto mirante colocada sobre e a eixo do edi cio acabaria, no entanto, por ser a grande novidade da sua reconstrução, tornando-se simultaneamente na nova referência dos céus benaventenses - órfãos, desde o terramoto, da imponência da igreja matriz que, durante séculos, se havia destacado do casario e marcado de modo singular a silhueta de Benavente. A encerrar o eixo de atravessamento da Vila Velha que sofreria intervenções no pós-terramoto, o Largo de S. Tiago, com a homónima igreja des nada à demolição, tornar-se-ia inevitavelmente mais amplo e cons tuiria o segundo caso, em Benavente, onde à queda de um templo sucederia um espaço de desafogo constru vo.

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Vista sobre a Praça da República . MMB

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Bairro Municipal . MMB

Edifício Escolar antes do terramoto . MMB

Casa do Jornal “O Século” Ilustração Portuguesa Nº2932 de Outubro de 1911

Alargamento da Travessa do Almoxarife Ilustração Portuguesa Nº 293 - 2 de Outubro de 1911

Paços do Concelho em reconstrução Ilustração Portuguesa Nº.293 - 2 de Outubro de 1911


Não se deverá pensar, no entanto, que todo o restante tecido urbano da vila permaneceria inalterado e respeitaria o traçado anterior ao terramoto. Na realidade, dificilmente alguma rua ou travessa se terá man do sem sofrer a mínima alteração, tendo-se, bem pelo contrário e seguramente, em todas elas registado pequenos e naturais reajustes, não por imposição camarária, mas por inevitável consequência do caos resultante de tanta destruição. A par r de Janeiro de 1912, a câmara começaria a exigir pedido de licença para qualquer obra confinante com a via pública, obrigando então ao respeito pelos alinhamentos e cotas de nível, que não poderiam ser alterados sem autorização prévia. Era esta, afinal, uma forma de obstar a possíveis aproveitamentos e abusos, terminando, de igual modo, com o pouco controlo que as muitas licenças verbais dadas desde o terramoto haviam permi do ter. Para sul, para o Bairro Novo, a zona de expansão da vila anteriormente ocupada por cerrados, o Plano Geral de Arruamentos da comissão de 28 de Outubro de 1909 inspirara-se, como já referido, no projecto que a câmara benaventense encomendara, em 1905, a Júlio Francisco de Sousa - projecto esse que fora a resposta da edilidade às sérias carências de alojamento que a estrutura urbana da vila apresentava no virar do século. O vasto terreno composto por cerrados, a sul do velho aglomerado, compreendido entre a estrada distrital n.º 132, o bairro de Santo André, a Rua Luís de Camões e a Praça Anselmo Xavier, cons tuíra-se no natural e ideal local para o estabelecimento das então tão necessárias novas edificações. Consciente desse facto, a câmara benaventense mandara abrir, a sul desses terrenos, durante o ano de 1899, uma ligação entre a estrada distrital n.º 132, que conduzia a Santo Estevão, e a estrada de Trejoito, de ligação a Évora, aproveitando a existência prévia de um caminho. Curiosamente denominada Avenida Esperança - actual Avenida Dr. Francisco José Calheiros Lopes -, essa larga ligação arborizada rapidamente vira a sua face norte ponteada de construções, destacando-se claramente destas o novo edi cio do Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, segundo projecto do arquitecto José Alexandre Soares e com início de construção em 1903 - mas ainda por inaugurar aquando do terramoto. Ficara assim formado um amplo talhão, de formato aproximadamente quadrangular, com os limites difusamente preenchidos, mas com um vasto miolo composto por cerrados e árvores, onde a única presença edificada era o novo edi cio da escola primária, construído atrás da cor na limítrofe da Praça Anselmo Xavier. Da autoria do arquitecto Adães Bermudes, a sua construção decorrera nos anos de 1902 e 1903, junto ao local de desembocadura da Azinhaga do Chaveiro - estreito caminho que atravessava todo o terreno de cerrados de modo quase paralelo à Avenida Esperança -, e perto da praça de touros provisoriamente construída para as festas de Nossa Senhora da Paz.

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O novo edi cio escolar, a par com o hospital da Misericórdia, cons tuíam-se assim nas primeiras grandes materializações da expansão necessária e desejada, mas à qual faltava ainda um plano que orientasse e determinasse o desenho urbano que deveria assumir o novo tecido urbano da vila. Para evitar qualquer indiscriminada ocupação que inviabilizasse um crescimento considerado moderno e compa vel com o de uma próspera vila de província, a vereação de Benavente decidiria então, em Julho de 1905, entregar a Júlio Francisco de Sousa - que fora já o projec sta da Avenida Esperança - a tarefa de elaborar o plano daquilo que in tulava ser o novo bairro da vila, a implantar no talhão predefinido. O projecto, concluído antes do final desse ano, apresentaria uma matriz claramente racionalista, onde imperavam ruas amplas e largas, numa lógica de ortogonalidade que só não seria levada ao extremo por imposições naturais, especialmente decorrentes da forte presença que as duas construções acima referidas assumiam na concepção do projecto. Curioso nesta planta de Júlio Francisco de Sousa não deixará de ser o considerável calibre das ruas todas iden ficadas por letras, com doze e quinze metros de largura, situação própria num urbanismo de prevenção an -sísmica, mas que, neste caso, não cons tuiria mais do que uma insólita premonição. O projecto, porém, não teria execução imediata. O elevado preço da operação refrearia os ânimos dos vereadores, de tal modo que, nas vésperas do terramoto, nenhuma rua fora ainda traçada, embora já vessem sido expropriadas as faixas de terreno necessárias para a abertura das ruas A, H, I e L, assim como o arranque da Rua C. Edificada estaria apenas grande parte da frente da Rua H, lateral à escola e à Praça F, bem como levantada alguma construção no talhão definido pelas Ruas A, B, L e H. A ligação com a Travessa da Rua Nova não fora ainda estabelecida, mesmo já tendo a câmara uma casa expropriada para esse efeito. A comissão oficial nomeada para redesenhar a estrutura urbana de Benavente no pós-terramoto incluiria assim, naturalmente, este projecto no seu Plano Geral de Arruamentos. As únicas alterações introduzidas resumir-se-iam a situações pontuais, invariavelmente em posições de fronteira, de contacto com as margens do talhão de implantação. O miolo manter-se-ia fielmente incólume. Mas, tal como sucedera na Vila Velha, também aqui a vereação benaventense, escudada pelos novos tempos da República, poria de parte a proposta da comissão, cingindo-se exclusivamente ao es pulado por Júlio Francisco de Sousa. As expropriações e os avanços no processo passariam, no entanto, a ser determinados pelas imposições e condicionantes do momento, uma vez que as dificuldades do tesouro municipal, depois de 23 de Abril de 1909, já não permi riam a con nuação da polí ca cadenciada de expansão que a câmara adoptara até aí.

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Não seria pois de espantar que, apenas em 1911 e graças ao emprés mo de 20 contos de réis contraído no final do ano anterior, se registassem novos processos de expropriação de faixas de terreno de cerrados para a abertura das projectadas ruas novas. O rápido esgotar desse recurso, no entanto, levaria a uma natural fase de estagnação, a que só o contributo da Comissão Municipal de Socorros, de novo em ac vidade, faria frente, permi ndo que novas parcelas de terreno fossem expropriadas ainda em 1912. Seria então necessário esperar durante mais três anos, até 1915, para que a câmara benaventense, finalmente conseguindo algum desafogo nas suas contas, se voltasse a dedicar ao processo de expansão da vila. As expropriações prosseguiriam, já de modo mais cadenciado, nos anos seguintes, até que, em 1922, a vereação realizaria aquela que se cons tuiria na úl ma operação determinada pelo projecto de Júlio Francisco de Sousa. Este não ficara, no entanto, totalmente executado. Os grandes talhões situados por detrás da cor na edificada da Rua Luís de Camões con nuavam por esventrar, e assim con nuariam pois não mais a câmara benaventense retomaria o processo de expropriações de ruas do Bairro Novo. A execução do plano parara ali e só seria retomada na década de 30 para estabelecer a ligação viária, ainda interrompida, entre algumas das novas vias com a frente da Praça Anselmo Xavier, demolindo algumas das suas casas limítrofes. Mas já não era este um processo de expansão urbana, já não se procurava criar novas estruturas de suporte para edificado, já nada aqui havia do projecto de Júlio Francisco de Sousa senão resquícios. Aqui, já só se procurava eliminar os defeitos dos pontos de costura entre duas malhas urbanas, de diferentes idades, mas obrigatória convivência. O papel camarário neste processo de expansão urbana da vila, no dotar o Bairro Novo de estrutura viária, nha então chegado ao seu fim. O terramoto parecera aqui um percalço, um acidente de percurso, sem o qual tudo teria, seguramente, desenrolado de modo diferente, mas, provavelmente, com os mesmos resultados. Da catástrofe de 23 de Abril de 1909, no entanto, resultara algo que, de outro modo, jamais seria realizável: a construção de bairros para famílias pobres. E o primeiro a ser concluído seria o Bairro Diário de No cias, edificado com dinheiros da subscrição aberta pelo homónimo periódico, a que se haviam juntado verbas de outras inicia vas. Com um total de doze casas - que começariam a ser habitadas em meados de 1912 -, este bairro seria a primeira grande materialização a ocupar terrenos do Bairro Novo, dando início e forma aos planos de expansão da vila para sul. Por outro lado, ajudaria a solucionar o problema de habitação na vila, onde muita gente se man nha ainda em condições pouco superiores às encontradas após o terramoto e sem alterna vas, quer pelas suas próprias dificuldades financeiras, quer pela escassez de casas reconstruídas des nadas a arrendamento - por muitos dos seus proprietários não terem igualmente meios para as mandar reparar. Significa vo, ainda e sobretudo, o modo como traduzia a espantosa onda de solidariedade que varrera todo o mundo português após a catástrofe, perpetuando-a num conjunto de paredes e tectos que fizera seguramente mais pela vila e pelos seus habitantes do que os actos de todos os arautos da discórdia que tão infeliz processo conhecera. 233


Felizmente, não fora também acto isolado. Com início de construção contemporâneo ao Bairro Diário de No cias e nascido com o mesmo espírito deste, o Bairro Cidade do Porto ver-se-ia, no entanto, edificado e habitado somente em meados de 1913, depois de ultrapassada uma série de problemas surgidos durante a sua construção. Fruto de uma subscrição aberta pelo Club Fenianos Portuenses, seria composto por dezoito habitações, dispostas em posição de vizinhança com o Bairro Diário de No cias, num natural seguimento da polí ca de expansão da vila. A úl ma das obras que, neste âmbito, teria início em Benavente seria igualmente a de maior dimensão e aquela que representaria o despertar do longo estado de hibernação em que, pra camente desde 1909, havia entrado a Comissão Municipal de Socorros. Com efeito, só a 23 de Fevereiro de 1912 - depois de gastas as verbas deixadas pela então ex nta subcomissão oficial e quando, já havia muito, a Comissão Nacional deixara de dar sinais de vida -, esta comissão voltaria a reunir, decidindo, nessa ocasião, edificar mais um bairro para famílias pobres nos cerrados da vila, dando seguimento aos dois que já ali se iam construindo. Com trinta e quatro habitações, seria a intervenção de maior envergadura realizada na Benavente do pós-terramoto, numa operação que suportaria inclusive as despesas de expropriação de ruas e casas, de modo a permi r mais comunicações do Bairro Novo com a malha velha da vila. Era o prosseguimento de uma polí ca de expansão urbana que a câmara já pouca capacidade nha para financiar. A ocupação do Bairro Municipal, como ficaria conhecido, seria pra camente contemporânea da do Bairro Cidade do Porto, dando-se portanto em meados de 1913. Disseminadas pela vila, exis am também construídas algumas casas, as quais, tal como os bairros acima referidos, se des navam a habitação de famílias carenciadas: a casa d'O Século ou da Índia, resultado de uma quo zação realizada pela comunidade portuguesa naquele país, cujo produto havia sido enviado ao cuidado do periódico; e a casa de Trancoso, nascida de subscrições realizadas naquela povoação. Outras localidades, como Leiria, Pombal ou Tomar, haviam manifestado igualmente o desejo de construir em Benavente, mas tal nunca viria a verificar-se. Resultados desta imensa onda de solidariedade que assolara o mundo português seriam igualmente a reconstrução, em 1913, do edi cio escolar da vila com dinheiros da Comissão Municipal de Socorros e da subscrição dos alunos da Escola Politécnica de Lisboa e a construção, terminada em 1915, de um novo edi cio escolar com quatro salas de aula e habitação para professor - erguido nas traseiras do an go, graças, uma vez mais, aos dinheiros da subscrição dos alunos da Escola Politécnica e de uma outra subscrição, aberta pelo jornal A Luta. Para a construção desta úl ma escola, concorrera ainda o Estado, com a verba de dois mil escudos, atribuídos da verba de duzentos contos aprovada pelo Parlamento para conserto ou edificação de edi cios escolares sem relação, portanto, com qualquer apoio directamente decorrente da destruição de 23 de Abril de 1909. 234


De facto, em Benavente, obra alguma perpetuaria o empenho dos vários governos do país, monárquicos ou republicanos, no reerguer da vila, dando talvez deste modo a verdadeira expressão da dimensão de tal empenho. Todo o edificado, subsidiado e decorrente da catástrofe de 23 de Abril, seria, isso sim, a demonstração clara e inequívoca da mais espontânea das solidariedades, a de um povo comovido com a desgraça de alguns dos seus, um sen mento sem quaisquer contornos polí cos nem mo vações de vingança. E seria esse sen mento de solidariedade a perdurar em cada uma das casas que, pela Vila Velha, haviam sido reerguidas graças ao esforço da gente anónima que por todo o país e por esse mundo afora acorrera a contribuir com o seu óbolo de conforto. E perduraria ainda mais visivelmente nos grandes bairros para habitação de famílias pobres, Diário de No cias, Cidade do Porto e Municipal, bem como nos dois edi cios escolares, o reconstruído e o construído, todos elementos fulcrais na materialização dos planos de expansão da vila, começando a dar corpo, de modo consistente, ao Bairro Novo. Sem tamanha cooperação alheia, que des nos teria do a arruinada vila benaventense? Ficara, no entanto, ainda muito por fazer. Durante décadas, con nuariam a chegar à câmara municipal pedidos de licença para a reconstrução de casas na Vila Velha. Enquanto isso, pelo Bairro Novo, começariam a mul plicar-se as construções par culares, com conjuntos de moradias em linha, inspirados nas pologias dos três bairros do terramoto, subs tuindo, aos poucos, as barracas de madeira e zinco que iam persis ndo. A vida retomaria assim, lentamente, o seu curso normal e a vila ribatejana retornaria ao anonimato, ao qual fora violentamente arrancada naquele fa dico dia de abril. Pensara-se ainda em eternizar a memória da catástrofe na forma de um Museu do Terramoto, a organizar em duas salas desocupadas dos Paços do Concelho. Unanimemente aprovada em sessão de câmara, em meados de 1912, tal ideia pretendia assim arquivar muitas das recordações daquele dia, dispersas umas, mal cuidadas outras, e tantas já perdidas. Restos de imagens, objectos encontrados em escavações, fotografias, areia e fósseis saídos das fendas da terra, entre muitas outras coisas, procurariam, deste modo, cons tuir um memorial que relembrasse a desgraça que se abatera sobre aquela vila. Mas a ideia nunca ganharia forma e Benavente nunca viria a ter o seu Museu do Terramoto. Chegara-se eventualmente à conclusão que 23 de Abril de 1909 não era um dia para recordar ou, pelo menos, para memorar. Afinal, como recordação, bastariam as ruínas que pontuavam a vila e que manteriam, durante décadas a fio, bem desperta a lembrança daquele que fora, seguramente, o mais negro dia da História de Benavente.

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Vista aérea de Benavente, anos 30 Benavente Folheto Comemorativo da Exposição de Santarém, 1936

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revista cultura

Terras

d’Água Nº 3 . 2017


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