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Fala de “Fado” quem sabe...

Todos nós (portugueses) nos arrogamos (mais ou menos) de perceber de Fado. Desde inventadas a cientificas explicações, passando pelas “descobertas” origens do Fado, muitos livros se têm escrito, muita tinta tem corrido. É bom! Enquanto se fala não se mata. Quantas vezes tentaram “matar” o Fado (das mais variadas formas)? Ora, investindo contra os autores/compositores e intérpretes; ora destruindo o património físico e testemunhal das suas existências. Mas, como diz o Povo – e o Povo é quem mais ordena – “enquanto houver portugueses…” haverá Fado, contestação, revelações de poetas, músicos e intérpretes, inovações e evoluções. O Fado a tudo resistirá porque ele é, na sua essência, a alma do Povo que o canta. Depois vem sempre a “peneira” do tempo que deixará para testemunho o nome, a voz, o carisma e a arte dos Melhores.

O mesmo entrevistador e o mesmo entrevistado. Revista “Crónica Feminina” de 26/08/1976.

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Em certa altura alguém perguntou a Manuel de Almeida:

R - Que pensa o Manuel de Almeida da evolução do fado? Dos seus novos intérpretes?

MA – Acho que o fado não muda. Os intérpretes é que podem modificar-se. Sempre têm aparecido e aparecem novos fadistas. Só é pena que muitos deles não tenham ou não procurem ter personalidade própria, estilo pessoal. Tentam imitar, fazem mal .O fado vive, essencialmente, da inspiração de cada fadista

– Que diria Manuel de Almeida na actualidade…?

“Obrigada”

Serão, talvez, a genuína simpatia e admiração que nutro, desde sempre, pela memória de Manuel de Almeida, que fazem surgir estas oportunidades, não apenas de o recordar, mas também de escrever algumas linhas que ele me continua a inspirar.

Já o escrevi, noutras alturas, sobre o encantador e consensual afecto que tinha o condão de despertar ao seu redor. Mas hoje, creio vir mais a propósito falar um pouco do fado que Manuel de Almeida me deu a conhecer, onde a tradição tinha um cariz tão profundamente vincado e, em simultâneo, se descobre uma alma aventureira que o impeliu a abraçar a audácia e risco de fazer um disco com o Rão Kyao, com sonoridades provavelmente inesperadas na sua voz e percurso, apesar do reconhecido e absoluto respeito do Rão pelas raízes do nosso Fado. Um respeito que se percebe numa produção que convida à permanência de uma voz e expressão tão genuínas como sempre, mas num som que traz em si actualidade e modernidade.

Quando nos conhecemos pessoalmente, e perante a minha total inocência e inexperiência no universo do Fado, diria que foi essa soma de tradição, verdade e originalidade que, a par de outras referências, me ajudou a sempre procurar um caminho onde a minha expressão se inspirasse no que de melhor se fazia, mas onde houvesse também a busca de algo “novo”, ou pelo menos tão personalizado quanto possível. E honesto.

Algo que hoje é muito corrente nos depoimentos das novas gerações, a referência a essa busca pela novidade e renovação, acaba assim claramente reconhecido como um fenómeno transversal a outros tempos e, afinal, um processo vivido e conquistado já por tantos outros artistas, em épocas onde os meios de divulgação eram incomparavelmente menos diversos que actualmente, mas onde a criatividade e inconformismo eram encaradas com a mesma coragem e tenacidade. Mas sempre com as fronteiras mais respeitadas talvez porque a natureza do artista permanecia inquestionada. Manuel de Almeida era um fadista e fadista seria para sempre.

A sua “música” teria de nascer sempre do seu Fado e a ele regressar. Qualquer experiência musical deveria transparecer essa clara hierarquia de valores e nunca lançar a menor dúvida sobre qual a expressão maior na sua vida. O seu timbre, o fraseado, a projecção, a respiração, o que o inspirava e escolhia para dizer cantando, tudo reconhecia, sem concessões, quem era Manuel de Almeida. E Manuel de Almeida era um fadista.

Talvez seja esta a grande diferença entre novas gerações que continuamente surgem no fado, procurando e advogando essa originalidade, nalgum momento do seu percurso e as gerações que já construíram um legado inquestionável, como a do Manuel de Almeida e outros. E incluo-me na primeira, naturalmente, pela natureza “inquieta” que tenho tido enquanto intérprete de fado. Porque se de alma e emoções sempre fui fadista, sei que o mesmo não se aplica nas escolhas artísticas que escolhi ir fazendo, bem como outros artistas, onde o horizonte de outras referências que temos nos leva a experimentar sem definir com clareza o que é Intocável. Serão os tempos e as suas diferenças o motivo para tal? Será uma necessidade interior de uma transformação maior? Será pura irresponsabilidade ou simples ingenuidade? Ou apenas a transformação natural no percurso de cada um e, em última instância, num estilo que se vai moldando para resistir aos tempos?

Não tenho sequer a veleidade de julgar ter a resposta. O certo é que, nem sempre conseguindo aclarar esse dilema que às vezes me atravessa, descubro que também não sinto grande necessidade de o fazer. De continuamente justificar ou aclarar qual a melhor definição de Fado. De fado novo ou fado antigo. De Fado que é ou não é.

Prefiro, cada vez mais, quando me perguntam o que é Fado, ir em busca desta ou daquela pérola, daquela fracção de segundos que me roeu por dentro, daquele fraseado que me cortou a respiração, daquela figura que me arrepia sem explicações. Da memória que tenho recheada de imagens, aromas, pessoas, músicos, tempos e que acorda, vibrante, assim que oiço: “... Obrigado pelos amigos que encontrei.”.

A melhor explicação sobre o que é fado? Chama-se “pele de galinha”. As novas gerações ainda precisam descobrir a arte de a provocar com igual autenticidade e frequência com que o faziam os antigos.

E aprender com Manuel de Almeida será sempre tanto uma honra quanto um privilégio. Porque o seu Fado não carece de mais nenhuma explicação.

Mafalda Arnauth

Fadista/Compositora Lisboa, 2017

Um Ser de excepção

Uma voz ímpar

Uma generosa e contagiante humanidade de alma Uma rara e gentil elegância, Um exemplo para sempre. O Homem e o Fadista. Para todos quantos com ele privaram.

Manuel de Almeida será sempre

Um símbolo de amizade, Grandeza e dignidade... E todos nos sabemos mais ricos Por termos cruzado o seu caminho, nesta vida.

Mafalda Arnauth

Dedicatória gravada na recordação do 19º Aniversário Ausente. Festa realizada no Restaurante “Quinta do Cortador”, Cascais, 27 de Abril de 2014.

A coerência nas palavras e nas atitudes. As suas verdades ditas sem hesitação. Jornal “Barricada” de 01/11/1979.

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