Memória e Futuro: Património, Coleções e a Construção de um Museu para Tavira

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Câmara Municipal de Tavira Palácio da Galeria 2013

Capa: Fotomontagem a partir de imagem cedida pela Família Andrade.


Fotomontagem a partir de imagem cedida pela FamĂ­lia Andrade.


Ficha Técnica CATÁLOGO

EXPOSIÇÃO

Textos

Comissariado

Ana Vieira [AV], Célia Teixeira, Celso Candeias [CC], Daniel Santana [DS], Jaquelina Covaneiro [JC], Jorge Botelho, Jorge Queiroz, Luísa Ricardo, Leonor Esteban, Marco Lopes [ML], Patrícia de Jesus Palma, Sandra Cavaco [SC], Susana Gonçalves [SG]. Fotografias

Arquivo da CMT, Família Andrade, Idelberto Dores, Margarida dos Santos, Nerve Atelier de Design. Design Gráfico

Nerve Atelier de Design Impressão

ACD Print Tiragem

350 exemplares Depósito Legal

381474/14

Com o apoio de:

ISBN

978-972-8705-49-7

Célia Teixeira e Daniel Santana (Centro Histórico), Jaquelina Covaneiro e Sandra Cavaco (Arqueologia), Jorge Queiroz (coord.), Leonor Esteban (Conservação e Restauro), Luísa Ricardo (Etnografia e Património Imaterial), Patrícia de Jesus Palma (Instituição Militar). Produção Expositiva

Ana Miguéns, Nerve Atelier de Design. Técnicos de Arqueologia

Ana Vieira, Celso Candeias e Susana Gonçalves. Serviço Educativo

Patrícia Gonçalves Museografia

Anabela Jesus, Carlos Pires, Evelina Vaz, José Gregório, José Neves.

Secretariado

Pedro Santos

Design Gráfico

Nerve Atelier de Design Audiovisual

Arquivo da CMT, DGPC/Museu Nacional de Arqueologia, Família Andrade, Nerve Atelier de Design, Fábio Palma. Tradução

Onoma – Gabinete de Traduções Montagem

Nerve Atelier de Design Transporte

Câmara Municipal de Tavira Seguros

Allianz

Agradecimentos

Angelina Cartó, Arquivo Histórico Militar, Biblioteca do Exército, Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de História da Cultura, DGPC/Museu Nacional de Arqueologia, Eduarda Mestre, Hotel Vila Galé-Albacora, Instituto Geográfico Português, Lourdes Lutegarda, Maria Carlota Trindade Guerreiro Osswald, Maria Tolentina Pereira, Museu Municipal de Faro, Orlando Horta, Paróquia de Santa Maria do Castelo, Regimento de Infantaria n.º 1 de Tavira, Vítor Correia.


Fotomontagem a partir de imagem cedida pela FamĂ­lia Andrade.


Índice Presidente da Câmara Municipal de Tavira

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Jorge Botelho

Memória e Futuro, caminho de gerações

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Jorge Queiroz

150 anos de investigação arqueológica em Tavira.

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Sandra Cavaco / Jaquelina Covaneiro

A Cidade do Museu. Memória e Identidade do Centro Histórico de Tavira

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Daniel Santana / Célia Teixeira

Poder, território e ciência: a instituição militar em Tavira

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Patrícia de Jesus Palma

Memória, Património e Criatividade: Da Hibridez Etnográfica

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Luísa Ricardo

Um Museu para Tavira Génese de uma ideia e a sua Concretização

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Jorge Queiroz

Conservação de Bens Culturais em Tavira Leonor Esteban

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A cidade de Tavira e a sua envolvente possuem importantes e significativos registos materiais e espirituais de diversas épocas históricas, das civilizações e gentes que aqui viveram. Deles herdámos uma cultura milenar e um valioso Centro Histórico, distribuído pelas duas margens do rio, concentrando um elevado conjunto de representações simbólicas, arquitetónicas e exemplos de diversas concepções artísticas. “Memória e Futuro” é uma exposição sobre o património e a museologia, assinalando mais de uma década de trabalho continuado da autarquia e da comunidade na preservação e valorização territorial. Centrada na riqueza histórico-patrimonial de Tavira, com apresentação de documentação, espólios arqueológicos, etnográficos e artísticos das coleções do Museu Municipal, na importância do Centro Histórico, insere-se também na reflexão sobre o desenvolvimento cultural e a estratégia que a autarquia foi prosseguindo mandato após mandato, ano após ano e que importantes frutos têm dado, como evidenciam a atração crescente de turismo cultural sobre esta cidade e região ou a escolha de Tavira como representante de Portugal na candidatura da Dieta Mediterrânica a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO. A exposição realiza ainda um balanço do trabalho, transcorridos mais de dez anos sobre a reabilitação do Palácio da Galeria, concluída em 2001 com projecto do Arqº José Lamas, apresenta ainda o fundamento da opção por um modelo de museu de território polinucleado e multitemático. A abertura do Museu Municipal de Tavira, integrado na Rede Portuguesa de Museus, ocorre em 2002 e corresponde a uma aspiração da cidade datada da primeira metade do século XX . Um justo destaque é nela concedido a duas figuras incontornáveis da história patrimonial de Tavira, o engenheiro milita José Sande Vasconcelos (1730?-1808) matemático e cartógrafo e Sebastião Estácio da Veiga (1828 - 1891), o primeiro arqueólogo profissional português natural de Tavira, autor da primeira Carta Arqueológica do Algarve. Tavira apostará nos próximos anos na continuidade deste trabalho. Nesta ocasião uma palavra de apreço e reconhecimento à equipa do Museu Municipal de Tavira, Director, Técnicos e demais funcionários de apoio, à investigadora Patrícia Palma que colaborou neste projecto, à EMPET que apoiou a sua concretização e também a todos quantos ao longo de muitas décadas procuraram preservar e valorizar o património tavirense permitindo que possamos hoje usufruir desta herança.

Fotografia: Edificio das Paços do Concelho na atual Praça da República.

11 Fotomontagem a partir de imagem cedida pela Família Andrade.

Jorge Botelho Presidente da Câmara Municipal de Tavira


Memória e Futuro, caminho de gerações

Jorge Queiroz Director do Museu Municipal de Tavira

Nos últimos dois séculos, a valorização do património e a ideia de um museu para Tavira esteve no pensamento de diversas personalidades, cidadãos com consciência da riqueza patrimonial e artística da cidade, da sua singularidade estética e capacidade de atração, vislumbrando a possibilidade de criação de equipamentos voltados para a sua preservação, estudo, produção de conhecimento e divulgação. No século XIX Sebastião Estácio da Veiga revelou os testemunhos físicos das civilizações da antiguidade. Já no seculo XX Fernando Pessoa, poeta universal da língua portuguesa, fez nascer em Tavira o seu heterónimo Álvaro de Campos e Orlando Ribeiro dedicou a esta cidade o olhar interrogativo e rigoroso da renovada geografia humana, descortinando no casario as viagens e influências orientais. Também José Saramago, Nobel da Literatura, olhou Tavira na sua viagem a Portugal. Encontramos na bibliografia disponível e produzida nas últimas décadas, outras personalidades que demonstraram conhecer e compreender a importância do património de Tavira e da região. Após uma meritória tentativa da autarquia de, nos anos 40 do século passado, concretizar um museu para Tavira, coube à atual geração retomar

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Fotomontagem a partir de imagem cedida pela Família Andrade.


Jorge Queiroz

Memória e Futuro, caminho de gerações

em 2001 esse desígnio que encontrou vitalidade na emergência de uma nova museologia que se actualizou e afirmou com um novo enquadramento legal. Decisivo foi sempre o apoio da autarquia e dos cidadãos que participaram neste projecto.

Para concluir este luminoso ciclo, o recente reconhecimento da cultura milenar de matriz mediterrânica de Tavira, da sua “daiata” ou estilo de vida, com a inscrição da Dieta Mediterrânica na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO concretizada em Baku a 4 de Dezembro de 2013.

A construção do museu tem um significado de par­tilha, um caminho de várias gerações, não como conjuntura mas como evolução permanente no conhecimento multidisciplinar, sem condicionamentos pouco produtivos e inclusiva de patrimónios, clássicos ou contemporâneos, materiais e imateriais.

Por estes motivos “Tavira vive cultura” não foi e não é um mero slogan, mas uma realidade visível e acessível a todos. A exposição “Memória e futuro” ajuda-nos a refletir a evolução do conceito plural de património, a sua importância para economia da cidade e bem-estar dos seus habitantes para preservarmos o território e os seus valores estéticos, artísticos e ambientais. Permitirá ainda um balanço da concretizada aspiração do município e dos cidadãos da criação de um Museu, apresentação de funções, programas expositivos, coleções e acções educativas desenvolvidas nos últimos dez anos.

Viveu-se na última década um período de valorização e dinamização cultural de Tavira, uma “década dourada”. É justa esta adjetivação porque fundamentada nos equipamentos (re) construídos, arquivo histórico na casa Cabreira, a ex-cadeia transformada em biblioteca municipal, reabilitação do Palácio da Galeria para museu, o Convento do Carmo como Centro de Ciência Viva, a reabilitação de muitos edifícios no Centro Histórico, a valorização da herança islâmica com abertura do núcleo museológico no ex-BNU, o restauro de património religioso, inúmeros projectos acompanhados pela arqueologia e outras ciências… É ainda a concretização de programas de acesso à informação das disciplinas artes, para residentes e visitantes, que promove a cultura portuguesa, popular ou erudita, sempre com abertura à diversidade cultural do mundo.

É também o momento para apresentar e fundamentar, colocando à reflexão de todos, a proposta de sistema museológico baseado no conceito de museu de território, polinucleado e multitemático, questionante e dinâmico, que evoluirá de acordo com as capacidades e disponibilidades do município, a par da produção de novos conhecimentos.

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Importa sublinhar neste contexto a importância das decisões e do apoio de José Macário Correia e de Jorge Botelho, presidentes da autarquia que acompanharam com actos no sentido de progresso cultural e educativo da cidade, sem deixar de sublinhar os contributos empenhado dos vereadores da Cultura e restantes membros dos executivos. Não esqueceremos ainda nestas páginas os colegas que nestes dez anos participaram na construção do Museu Municipal de Tavira, deixando aqui uma homenagem à memória dos que connosco já não estão e agradecendo ainda às centenas de pessoas que colaboraram nas mais de cinquenta exposições realizadas, artistas visuais, curadores, historiadores, geógrafos, museógrafos, aequeólogos, arquitectos, agricultores, carpinteiros, electricistas, músicos, atores de teatro, auxiliares de museografia e vigilância, tantos outros profissionais. Os que no passado viveram e construíram Tavira, os que hoje protegem o património e enriquecem o seu potencial humano, são os legítimos detentores desta herança cultural, os verdadeiros protagonistas da exposição “Memória e Futuro”.

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira.

Sandra Cavaco Arqueóloga. Câmara Municipal de Tavira scavaco@cm-tavira.pt Jaquelina Covaneiro Arqueóloga. Câmara Municipal de Tavira jcovaneiro@cm-tavira.pt

I. O SÉCULO XIX Corria o ano de 1865 quando o tavirense Sebastião Phillipes Martins Estácio da Veiga, pioneiro da investigação arqueológica algarvia e portuguesa, iniciou prospecções nos terrenos do litoral do concelho de Tavira (Fabião, 2003: 13), tendo localizado a conhecida cidade romana de Balsa entre o povoado de Santa Luzia (…) e a Freguesia da Senhora da Luz, afirmando que (...) naquellas paragens, distantes uns seis kilometros da cidade de Tavira, hoje cultivadas e povoadas de arvoredo, existiram os famigerados balsenses (Veiga, 1866: 12-13). Até então, a cidade de Balsa era considerada a antecessora directa da cidade de Tavira, conjectura avançada em primeira mão pelo eborense André de Resende (Fabião, 2003: 12). Para esta nova localização da cidade de Balsa contribuíram a observação directa do sítio e das evidências e testemunhos do passado realizada por Estácio da Veiga, bem como a interpretação da epigrafia encontrada no local (Ibidem, 13), de que se destacam duas inscrições que aludem a Balsa

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

150 anos de investigação arqueológica em Tavira

II. O SÉCULO XX

(Veiga, 1866: 15-18), também estudadas por Hübner (1887: 36-37). Esta localização de Balsa foi considerada como muito provável por Teixeira de Aragão aquando da pu­ blicação dos resultados dos trabalhos por si realizados no Arroio, durante os quais foi identificada uma necrópole romana (Aragão, 1868: 11).

Graças a este projecto, foram identificados novos sítios na freguesia de Cachopo, nomeadamente dois monumentos megalíticos, a Anta das Pedras Altas (Mealha) e a Anta da Masmorra (Alcarias de Pedro Guerreiro), pelo director do projecto, e cinco sítios de cronologia islâmica por Helena Catarino (Esmoriz, Cerro dos Mouros e Corguinhas de Alcarias de Pedro Guerreiro), dois dos quais inéditos (Graínhos e Monte do Telheiro) e posteriormente publicados (Catarino, 1997-98).

Na transição do século XIX para o século XX, passaram por Tavira António Santos da Rocha e Leite de Vasconcelos, tendo este último coligido novos dados sobre a arqueologia do território (Fabião, 2003: 15-16). Nos anos 40 são retomadas as investigações arqueológicas em Tavira, após quatro décadas de esquecimento. Os primeiros trabalhos foram conduzidos por Henri Breuil e Georges Zbyszewski que, em busca de vestígios paleolíticos, identificaram um terraço com materiais desse período no sítio do Pinheiro, na Luz de Tavira (Ibidem, 16). Também nessa época foram desenvolvidos trabalhos por Abel Viana, que escavou algumas sepulturas nas Pedras d’El-Rei, sendo ainda de destacar os trabalhos de Mário Lyster Franco, Pinheiro e Rosa e José Fernandes Mascarenhas, investigadores algarvios que incidiram as suas pesquisas no Algarve mostrando, porém, um interesse diminuto pelo concelho de Tavira (Ibidem, 16).

Após a publicação do opúsculo Povos Balsenses. Sua Situação geographico-physica indicada por dous monumentos romanos recentemente descobertos na Quinta de Torre d’Ares distante seis kilómetros da cidade de Tavira, em 1866, Estácio da Veiga empreendeu o levantamento da Carta Arqueológica do Algarve (Fabião, 2003: 14). No âmbito de um contrato celebrado com o Governo a 29 de Maio de 1879, e de forma a publicar os resultados do estudo dos monumentos e artefactos identificados nos trabalhos de campo realizados entre Março de 1877 e Outubro de 1978 contratados pelo Governo a 15 de Janeiro de 1877, Estácio da Veiga redige as Antiguidades Monu­mentais do Algarve, cujo primeiro volume foi publicado em 1886 (Cardoso, 2007: 17, 21). A morte prematura do tavirense, em 1891, impediu a conclusão de tão importante estudo, resumindo-se o contributo de Estácio da Veiga para a arqueologia de Tavira na identificação do local de implantação de Balsa e de alguns sítios e artefactos isolados (Fabião, 2003: 14), nomeadamente as vilas romanas do Paúl e de São Domingos da Asseca (Marques, 1995: 133-134, 137-138).

Imagem 1 – Volume IV das Antiguidades Monumentais do Algarve.

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Destaque ainda os trabalhos realizados por Manuel e Maria Maia na cidade de Balsa (Torre d’Ares) em 1977 e na villa suburbana de Balsa (Pedras d’el-Rei) em 1980 (Viegas, 2006: 7; Viegas e Dinis, 2010: 238). Os trabalhos em Balsa foram retomados no início dos anos noventa, sob a forma de prospecções arqueológicas realizadas por Cristina Tété Garcia (Viegas, 2009: 291), tendo ainda sido realizado o estudo dos materiais cerâmicos, vítreos e ósseos recolhidos por Estácio da Veiga e que se encontram depositados no Museu Nacional de Arqueologia, por Jeannette Nolen e Carlos Fabião (Nolen, 1994; Fabião, 1994).

Seria apenas na década de setenta que a investigação arqueológica no território administrativo de Tavira sofreria um novo incremento. Para tal contribuíram os trabalhos de Maria Luísa Estácio da Veiga Affonso dos Santos e de Victor dos Santos Gonçalves (Ibidem, 16). Se a primeira compilou e deu à estampa pela primeira vez um considerável volume de informação recolhida por Estácio da Veiga no que concerne o Algarve, o segundo investigador e a sua equipa, no âmbito do projecto CAALG, desenvolveram trabalhos de fundo no Alto Algarve Oriental (Ibidem, 16).

Em 1995 é publicado o volume da Carta Arqueológica de Portugal correspondente aos concelhos de Faro, Olhão, Tavira, Castro Marim, Vila Real de Santo António e de Alcoutim (Marques, 1995). No que respeita o concelho de Tavira, a Carta Arqueológica limita-se a compilar a informação já publicada, apenas acrescentando quatro novos sítios resultantes de prospecções realizadas pelo Departamento de Arqueologia do IPPAR (Fabião, 2003: 17; Marques, 1995: 129-130; 141-142).

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

No decurso de 1996 foram realizados os primeiros trabalhos arqueológicos na cidade de Tavira, tendo sido dirigidos por Manuel Maia na antiga agência do Banco Nacional Ultramarino (BNU), e que revelaram importantes vestígios de época islâmica em Tavira (Cavaco e Covaneiro, 2009: 438). A estes trabalhos seguiram-se, nos anos seguintes, escavações na Pensão Netos e no antigo Solar dos Corte Reais, desta vez dirigidas por Maria Maia (Ibidem, 439). Este incremento de trabalhos arqueológicos na cidade de Tavira levou à criação da Associação Campo Arqueológico de Tavira (CAT), a qual publica, no ano de 2000, o Levantamento da Carta Arqueológica de Cachopo, trabalho de grande importância uma vez que se passou de uma situação de 11 arqueossítios registados oficialmente e publicados, para 112 bem localizados (Maia, 2000: 7). A Carta Arqueológica de Cachopo consistia na primeira parte da Carta Arqueológica do Concelho de Tavira e que se encontrava prevista no Protocolo de Colaboração entre o Instituto Português de Arqueologia, a Câmara Municipal de Tavira e a Associação Campo Arqueológico de Tavira, assinado a 28 de Fevereiro de 1999. Para além da carta arqueológica concelhia, o protocolo previa ainda a criação de reservas de materiais arqueológicos e a contratação de um arqueólogo pela CMT para a gestão dos espólios, bem como a criação de núcleos museológicos. Imagem 2 - Anta das Pedras Altas, Mealha, Cachopo.

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

150 anos de investigação arqueológica em Tavira

III. O SÉCULO XXI

Na área claustral do convento, foram identificadas diversas estruturas ligadas à Antiga Escola de Pesca de Tavira, nomeadamente suportes de réplicas de mastros de navios da Antiga Escola de Pesca de Tavira (Cavaco e Covaneiro, no prelo). O espólio exumado é muito recente, situado, grosso modo, entre os séculos XIX e XX (Ibidem).

Em 2001, e para dar cumprimento ao Protocolo de Colaboração, a autarquia procedeu à contratação de um técnico superior de arqueologia, que se veio juntar ao técnico de Conservação e Restauro que aí exercia funções desde 1998. Nesse mesmo ano foi criado o Serviço de Arqueologia Conservação e Restauro (SACR), inserido na Divisão de Património e Reabilitação Urbana, tendo o mesmo sido extinto em 2010, a equipa integrada no Departamento de Cultura, Património e Turismo e, consequentemente, no Museu Municipal de Tavira. A actual equipa é composta por três arqueólogos (Jaquelina Covaneiro, Sandra Cavaco e Celso Candeias), uma técnica de Conservação e Restauro (Leonor Esteban), uma técnica de Museografia Arqueológica (Ana Vieira) e uma técnica de Património Cultural – Gestão e Divulgação (Susana Gonçalves).

Das dez sondagens realizadas no interior da antiga Igreja Conventual, apenas quatro revelaram a presença de múltiplos enterramentos, primários e secundários. Os cadáveres foram envolvidos em sudários (presos com alfinetes) e depositados em fossas simples, tendo ainda sido detectado o enterramento no interior de caixões de madeira. Do espólio associado, destacamos a presença de botões com a expressão Pro Patria Morit (“Pela Pátria morrerei”), pertencentes à farda do Regimento de Infantaria n.º 14 (Cavaco, Covaneiro e Candón Morales, 2005: 217).

Ao longo dos últimos doze anos a equipa de arqueologia desenvolveu as mais diversas actividades, de que se destacam os trabalhos arqueológicos e a divulgação de resultados, bem como o apoio a exposições, sendo ainda de destacar as acções realizadas junto da comunidade.

No verão de 2002 foi programada uma intervenção de emergência para o salvamento de uma sepultura parcialmente destruída aquando da abertura de um caminho rural, no sítio da Torre, junto à ribeira da Asseca. A intervenção revelou um esqueleto pertencente a um adulto do sexo masculino, o qual foi enterrado numa fossa simples. A datação por radiocarbono revelou que o indivíduo faleceu entre 706 e 866 d.C. (Candón Morales, Covaneiro e Cavaco, 2008: 118).

A primeira intervenção arqueológica realizada pela equipa de arqueologia municipal teve lugar no Claustro do Convento do Carmo e na antiga Igreja da Ordem Primeira do mesmo convento, actual Centro de Ciência Viva, no verão de 2001.

Imagem 3 - Escavação do arrabalde almóada da Bela Fria.

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Entre 2002 e 2006, no âmbito das obras de adaptação do Convento de Nossa Senhora da Graça a Pousada, a equipa realizou trabalhos arqueológicos em todas as áreas afectadas pela obra, tendo identificado vestígios de ocupação desde a Idade do Ferro até aos nossos dias, sendo notórias as alterações produzidas pela ocupação militar. No largo fronteiro ao convento, devido à instalação de diversas infra-estruturas, foi reconhecida a presença de uma necrópole de incineração, com urnas de tipo Cruz del Negro, tendo sido identificadas apenas três sepulturas (Arruda, Covaneiro e Cavaco, 2008: 128). Com base na morfologia das urnas cinerárias, foi possível aferir a utilização desta necrópole na segunda metade/finais do século VII a.C. (Ibidem, 130). A ocupação da Idade do Ferro foi ainda confirmada pela presença de materiais cerâmicos dispersos. Quer na área do claustro, quer por toda a cerca conventual, foram identificados vestígios de um bairro islâmico, fundado de raiz durante o período almóada, como atesta o urbanismo deste conjunto habitacional. Este bairro era constituído por diversas habitações, dispostas em torno de arruamentos, estando ainda presente um complexo sistema de saneamento (Covaneiro, Cavaco e Lopes, 2008). Do abundante espólio exumado, destaque para um fragmento de telha que ostenta sete estrelas de seis pontas rodeando parte do al-basmaLlah, “Em nome de Deus, o Misericordioso, o Clemente” lendo-se apenas, bismi-Llahi Rahim Ra[hmani] (Ibidem, 56). Ainda que a “Corografia”, de Frei João de S. José relate que Frei Pedro de Vila Viçosa instalou o Convento da Graça na judaria [judiaria] e que (…) da esnoga [sinagoga] fez igreja, a que pôs por invocação de N. S.a da Graça (cfr. Santana, 2001: 126), apenas foram encontrados fragmentos de duas candeias de Hanukkah. Com excepção dos objectos religiosos, os objectos do quotidiano de cristãos, judeus e muçulmanos não se diferenciariam muito, pelo que dificilmente poderemos aferir a presença judaica no local (Cavaco e Covaneiro, no prelo). As áreas do Claustro, da Igreja e do Poço do Elevador serviram de sepulcro entre os séculos XVII e XVIII. No claustro apenas foram identificados dois enterramentos, correspondentes a um feto masculino com 5 ou 6 meses de gestação e uma mulher

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adulta de mais de 40 anos, ambos inumados no interior de fossas simples (Ibidem).

e o século XVIII (Covaneiro e Cavaco, 2008: 628). Do material arqueológico recolhido destaque para os cachimbos holandeses do século XVII.

Na Igreja foram identificados diversos enterramentos, todos eles em fossa simples, de que se destacam as sepulturas de Álvaro Vaz e de Diogo Henriques, atestadas por duas lápides funerárias: Sepultura de Alvoro Vas e de seus erdeiros e Sepultura de Diogo Amriqes e seus erdeiros (Ibidem). Do espólio arqueológico recolhido, destacamos um rosário que se encontrava ao pescoço de uma das inumações.

Após a conclusão dos trabalhos na Casa Irene Rolo, e até 2004, a equipa realizou trabalhos no Largo de Santa Ana, no âmbito do projecto de requalificação urbana e arranjo de exteriores. Durante os trabalhos foram identificadas estruturas relacionadas com o antigo Palácio do Governador do Algarve, bem como inúmeros enterramentos associados à ermida dedicada à mãe de Maria. A maioria destes enterramentos foram realizados no interior de fossas simples, tendo sido identificadas três sepulturas com cabeceiras antropomórficas. De destacar que a densidade de enterramentos indicia o uso intensivo do espaço sepulcral em torno da igreja, ao longo de várias gerações (Cavaco, Covaneiro e Candón Morales, 2006: 99). O material arqueológico exumado é escasso, pelo que destacamos três lápides funerárias discóides.

A pequena sala onde actualmente se localiza o elevador da pousada parece ter servido como uma pequena capela ou cripta onde, possivelmente, foram sepultadas, em fossas simples, várias gerações de uma família de estatuto elevado (Candón Morales, Covaneiro e Cavaco, 2010: 216). No que concerne o espólio associado, destacamos pequenos objectos relacionados com o culto cristão, nomeadamente uma pequena cruz em osso trabalhado e várias medalhas (Ibidem, 216).

Devido à adaptação do antigo Orfeão de Tavira a Pousada da Juventude a equipa realizou, em 2005, sondagens arqueológicas de diagnóstico na área do logradouro, tendo sido possível identificar diversas estruturas habitacionais. O material arqueológico exumado nesta fase da intervenção é escasso e pouco representativo, tendo ainda assim permitido estabelecer uma cronologia de ocupação do espaço, entre o século XVI e o século XVIII.

No verão de 2003, durante as obras de reabilitação do edifício “Irene Rolo” ocorreu no piso superior o aluimento de uma parede de suporte de terras. Considerando a elevada concentração de material arqueológico, a equipa municipal realizou uma intervenção prévia à construção do novo muro de contenção de terras. Todo o sedimento foi crivado e a totalidade do material arqueológico recolhida, tendo sido possível reconhecer uma longa ocupação do espaço, situada entre os finais do século XV

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Data de 2005 a primeira intervenção arqueológica realizada no Convento das Bernardas pela equipa, tendo os trabalhos sido retomados em 2010. Os trabalhos permitiram a identificação de várias estruturas habitacionais, relacionadas com a ocupação conventual, bem como estruturas industriais relacionadas com a nova utilização dada ao edifício a partir de finais do século XIX.

O arrabalde da Bela Fria estender-se-ia, pelo menos, até à ermida de S. Roque, tal como foi verificado pelos trabalhos realizados no seu interior em 2009. Para além do arrabalde, foram identificadas diversas sepulturas, relacionadas com o período de utilização da ermida, as quais não foram escavadas. A equipa realizou ainda sondagens de diagnóstico no antigo Compromisso Marítimo, no Castelo e em área adjacente à Torre do Relógio da Igreja de Santa Maria. Os trabalhos efectuados no Compromisso Marítimo inserem-se no projecto de reabilitação do edificado, tendo sido possível a identificação de estruturas anteriores à sua construção e que poderão ser datadas do século XVII. Destaque para uma estrutura abobadada, parcialmente escavada, que a continuação dos trabalhos poderá permitir aferir a sua cronologia e funcionalidade.

Foi exumada uma quantidade significativa de materiais arqueológicos relacionados com o convento, em especial cerâmicas, que permitiram aferir uma cronologia de ocupação centrada entre os meados do século XVI e os inícios do século XVIII (Covaneiro e Cavaco, 2010: 639). Destacamos a presença de uma pequena cruz em madeira, de objectos de adorno em pasta vítrea e de um almofariz em mármore. Entre 2006 e 2008, devido ao projecto de reabilitação urbana da Calçada de Santa Maria/Rua da Bela Fria, foram desenvolvidos trabalhos arqueológicos que permitiram a identificação de um arrabalde de época islâmica. À semelhança do bairro identificado no Convento de Nossa Senhora da Graça, o arrabalde da Bela Fria também era constituído por casas dispostas ao longo das ruas, as quais possuíam infra-estruturas de saneamento (Cavaco e Covaneiro, 2009: 440). No que concerne o espólio recolhido, destaque para um fragmento de talha com uma inscrição que poderá corresponder ao nome do proprietário ou do oleiro: Faraj ben allayt.

a estágios não remunerados de final de curso (Yamilet Dias) ou a trabalhos de fim de curso a alunos do ensino superior (Ana Teresa Rio, Liliana Nunes e Tânia Dinis) ou tecnológico (Emanuela Mateus), bem como a estágios profissionais em pareceria com o IEFP. A equipa tem ainda investido na divulgação dos resultados dos trabalhos arqueológicos por si desenvolvidos, sendo presença assídua no Encontro de Arqueologia do Algarve que se realiza anualmente em Silves, bem como noutros encontros e congressos nacionais e internacionais realizados no país ou no estrangeiro. Outra das formas de divulgação utilizada são as exposições, tendo a equipa desenvolvido conteúdos para várias exposições e respectivos catálogos, nomeadamente a exposição Tavira. Território e Poder, patente no Museu Nacional de Arqueologia em 2003, e as

Os trabalhos realizados no castelo e na Torre do Relógio, possibilitaram constatar a existência de níveis de aterro, bem como a presença de restos osteológicos humanos dispersos. Para além das escavações arqueológicas, a equipa de arqueologia da autarquia desenvolveu outras actividades, nomeadamente ofertas educativas anuais destinadas às escolas do concelho, a integração de jovens em actividades arqueológicas, quer no âmbito dos projectos OTL (IPJ) e Férias Activas (CMT), quer em contexto escolar, em pareceria com a Escola D. Paio Peres Correia (planos curriculares alternativos). Destaque ainda para o apoio

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Imagem 4 - Projeto de Valorização e Sinalização de Vestígios Arqueológicos de Cachopo.

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

150 anos de investigação arqueológica em Tavira

exposições Espírito e Poder. Tavira nos tempos da modernidade (2006), Patrimónios do Mar (2008), Cidade e mundo rurais. Tavira e as sociedades agrárias (2010), Dieta Mediterrânica património cultural milenar (2013) no Palácio da Galeria, Tavira Islâmica (2012) no Núcleo Islâmico, tendo ainda organizado a exposição Da Terra ao Museu (2006) na Casa André Pilarte. As visitas guiadas às exposições do Núcleo Islâmico, ao Núcleo Expositivo do Convento da Graça e demais património islâmico da cidade são outra das actividades de divulgação patrimonial.

São ainda de mencionar os trabalhos arqueológicos desenvolvidos, no âmbito de obras particulares e/ou municipais, por diversas empresas e pela Associação Campo Arqueológico de Tavira (Maria Maia), identificando ocupações desde a Idade do Bronze Final até aos nossos dias.

Destaque ainda para a participação em diversas publicações promovidas pela autarquia, nomeadamente Tavira. Vila antiga, cidade renovada ou o Roteiro do Património Arquitectónico e Militar de Tavira, bem como para o apoio ao Projecto de Valorização e Sinalização de Vestígios Arqueológicos de Cachopo e ao Centro Paroquial de Cachopo na edição de A vida da Serra, catálogo do Núcleo Museológico de Cachopo.

IV. O Futuro A equipa tem diversos projectos para o futuro. Sem dúvida que o mais emblemático é a concretização do Núcleo Fenício do Museu Municipal de Tavira. Este núcleo museológico tornará visitável um troço da muralha fenícia, bem como um conjunto de estruturas de outras cronologias, parcialmente visíveis na Calçada D. Paio Peres Correia.

As arqueólogas da equipa integram o projecto CIGA (Cerâmica Islâmica do Gharb al-Andalus), sendo ainda de destacar a colaboração com diversos investigadores, entidades e associações (Associação Geonauta – Núcleo de Tavira) nos diferentes projectos, sendo algumas destas colaborações gratuitas. Destaque para o apoio dos investigadores Abdallah Khawli, Ana Margarida Arruda, Antonio Fornaciari, Gonçalo Lopes, Tânia Dinis e Vera Teixeira de Freitas no estudo das cerâmicas de diferentes períodos, bem como para o estudo da terra sigillata realizado por Catarina Viegas. O trabalho com outras instituições e investigadores tem sido realizado sempre que possível. Assim, o estudo dos enterramentos foi realizado pelo Laboratório de Antropologia do Campo Arqueológico de Mértola (Alicia Candón Morales, Clara Guerreiro e Teresa Carmo); o Instituto Tecnológico e Nuclear (António Monge Soares) e o ChronoCentre da Queen´s University of Belfast realizaram diversas datações de rádiocarbono, enquanto a empresa Eastern Atlas (Cornelius Meyer) efectuou sondagens geomagnéticas na Quinta da Torre d’Ares. De realçar as análises a cerâmicas fenícias provenientes de várias escavações de Tavira realizadas por Sonja Behrendt (Laboratório de arqueometria de Turingia, Alemanha) e Dirk Paul Mielke (Universidade de Münster, Alemanha). Foi ainda dado apoio a Cândida Simplício na recolha e tratamento de uma âncora em pedra encontrada pela sua equipa no rio Gilão.

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O aprofundamento do conhecimento das ocupações humanas da colina de Santa Maria também se encontra nos nossos objectivos futuros, bem como a realização de sondagens arqueológicas no Castelo e na antiga Mesquita (Igreja de Santa Maria do Castelo). Por último, destacamos a criação de itinerários arqueológicos e/ou culturais (ou a integração de Tavira em itinerários já existentes) e a organização das reservas do Museu com o pedido de incorporação definitiva dos materiais arqueológicos que se encontram em depósito provisório.

Imagem 5 - Sondagens geo­magné­ticas na Quinta da Torre d’Ares. Imagem 6 - Limpeza e análise da âncora em pedra encontrada no Gilão.

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

150 anos de investigação arqueológica em Tavira

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Sandra Cavaco · Jaquelina Covaneiro

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Sebastião Phillipes Martins Estácio da Veiga 1. Prato de Terra Sigillata marmoreada (Dragendorff 36) Torre d´Ares (Balsa)

6. Pithos

7. Pithos

Torre de Ares, Balsa

Antigo Parque de Festas

Antigo Parque de Festas

Época flávia (?)

Idade do Ferro (séculos VIII/VII a. C.)

Idade do Ferro (séculos VIII/VII a. C.)

Cerâmica

Cerâmica

Alt. 88mm; Esp. 10mm

M00000280

M00000279

Alt. 109mm; Esp. 7mm

Alt. 92mm; Ø bordo: 88mm

Cerâmica

MNA 14558

Alt. 37mm; Esp. 5mm; Ø bordo: 150mm

Pote de Terra Sigillata Hispânica de tipo Hermet 90.5 (TSS), de bordo aprumado, bojo ovoide, pé de bolacha, fundo alteado e com um sulco. A peça apresenta engobe de cor de tijolo, grosso, aderente e com certo brilho. Ostenta decoração de folhas de água de barbotina a meia altura do bojo. Possivelmente, destinar-se-ia ao serviço de mesa, devendo ser procedente do centro de fabrico de Andújar.

Museu Nacional de Arqueologia | MNA 14655

Nolen, 1994. Nolen, 2003: 290. [JC]

3. Píxide Torre d´Ares (Balsa) Alto Império Cerâmica Alt. 67mm; Ø bordo: 95mm Museu Nacional de Arqueologia | MNA 14654

4. Envelope timbrado do Museu Archeologico do Algarve

5. Etiqueta do Museu Archeologico do Algarve

Século XIX-1880

Século XIX – 1880

Papel

Papel

Museu Nacional de Arqueologia

A Alimentação

2. Pote de Terra Sigillata Hispânica

Cerâmica

40-70/80d.C

Mundo Quotidiano

Museu Nacional de Arqueologia

8. Talha Bela Fria Época Islâmica (século XIII)

A peça apresenta bordo extrovertido, lábio espessado ao exterior, colo cilíndrico recto e corpo ovóide, separado do colo por uma carena. A asa é bífida e de secção circular, saindo do lábio e terminando no início do corpo. A superfície interna apresenta aguada, de coloração amarela avermelhada. Externamente, o lábio exibe engobe e superfície polida, ostentando junto à asa três conjuntos de linhas entrecruzadas, pintadas a preto. A restante superfície apresenta decoração pintada em bandas, realizada sobre aguada. Junto à asa, no colo, são visíveis dois orifícios circulares.

Cerâmica Esp. 7mm; Ø bordo: 286mm MMT00003449

9. Talha Convento de Nossa Senhora da Graça Séculos XV-XVI Cerâmica

Maia, 2003: 39-47. Maia e Nascimento, 2003a: 253. Martín Ruiz, 1995. [JC]

Alt. 582mm; Esp. 17mm; Ø bordo: 320mm MMT00003450

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira 10. Taça

11. Taça carenada

16. Tigela

Convento de Nossa Senhora da Graça

Palácio da Galeria

Antigo Orfeão de Tavira

Idade do Ferro (século VII a.C.)

Século XVII

Idade do Ferro (séculos VII/V a.C.) Cerâmica Alt. 60mm; Esp. 8mm; Ø bordo: 200mm MMT00002293

Cerâmica

Cerâmica Alt. 44mm; Esp. 8mm; Ø bordo: 210mm

Alt. 57mm; Esp. 5mm; Ø bordo: 220mm; Ø base: 108mm

M00000304

M00000282

Tigela de bordo extrovertido, lábio espessado ao exterior, corpo troncocónico invertido e base plana. Na face interna apresenta decoração pintada a azul-cobalto sendo visíveis no bordo traços diagonais seguidos de um conjunto de semicircunferências. No corpo mostra decoração fitomórfica enquanto que no fundo ostenta motivo zoomórfico (ave) e fitomórfico (plantas e flores). Carreira, 2005. [SG] 12. Taça Época Romana (finais do século I – 60 a 100 d.C.) Rua Gonçalo Velho

13. 14. Tigelas

15. Prato

Cerâmica

Horta dos Mouros

Esp. 7mm; Ø bordo: 170mm

Época Islâmica (século XIII)

Convento de Nossa Senhora da Graça

M00000281

Cerâmica Alt. 75mm; Esp. 9mm; Ø bordo: 274mm; Ø base: 155m

Fragmento de bordo de terra sigillata clara A, forma Hayes 3a. Bordo vertical, com lábio em aba em curva. Apresenta decoração em relevo na aba do lábio, tipo “folha de água”, realizada a barbotina. A peça apresenta verniz de coloração vermelho claro em ambas as superfícies. Foi produzida no norte da Tunísia (Tunis ou Cartago).

Alt. 76mm; Esp. 6mm; Ø bordo: 237mm; Ø base: 135m MMT00003461 MMT00003462

Séculos XIV-XVI Cerâmica Alt. 52mm; Esp. 9mm; Ø bordo: 245mm; Ø base: 68mm MMT00003452

17. Taça em smalto berettino Antigo Orfeão de Tavira Século XVI Cerâmica Alt. 55mm; Esp. 5mm; Ø bordo: 129mm; Ø base: 57mm

18. Taça tipo Cástulo Terreiro do Parguinho Idade do Ferro (século V a. C.) Cerâmica Alt. 34mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 120mm

19. Skyphos de Figuras Vermelhas com decoração geométrica estilo Saint Valentin

20. Jarrinha

Convento de Nossa Senhora da Graça

Cerâmica

Idade do Ferro (finais do século V, 1.º quartel do século IV a.C.)

M00000284

Cerâmica

M00000283

Alt. 6mm; Esp. 4mm

Py; Adroher Auroux e Raynaud, 1993. Viegas, 2006 e 2009. [CC]

MMT00002738

36

37

Horta dos Mouros Época Islâmica (século XI) Alt. 127mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 78mm; Ø base: 56mm MMT00003457


150 anos de investigação arqueológica em Tavira 21. Jarrinha

22. Jarrinha

23. Jarrinha

25. Garrafa

Horta dos Mouros

Antigo Orfeão de Tavira

Proveniência desconhecida

Época Islâmica (séculos XII-XIII)

Século XVII

Época Islâmica (séculos X-XI)

Convento de Nossa Senhora da Graça

Cerâmica Alt. 140mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 87mm; Ø base: 62mm MMT00003458

Cerâmica

Cerâmica

Alt. 89mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 57mm; Ø base: 38mm

Alt. 115mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 106mm; Ø base: 75mm

M00000285

MMT00003454

27. Artefacto de encabamento Convento de Nossa Senhora da Piedade

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Séculos XVI-XVIII Osso trabalhado

Vidro

Larg. 19mm; Comp. 48mm

Alt. 145mm; Larg. 158mm; Esp. 2mm

M00000289

Artefacto de encabamento em osso trabalhado e de superfície polida. Apresenta um estreitamento progressivo até à zona de encaixe. Na extremidade ostenta rebordo destinado a melhor segurar o objecto. A extremidade preservada mostra representação antropomórfica, definida por uma moldura composta por duas linhas incisas paralelas e concêntricas.

MMT00003455

24. Jarrinha

Covaneiro e Cavaco, 2009:707-717. Gonçalves, Pereira e Pires, 2008: 189-214. [JC]

Convento de Nossa Senhora da Piedade Séculos XVI-XVIII Cerâmica Alt.72mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 87mm M00000286

Jarrinha de bordo extrovertido, boca polilobada, lábio arredondado, colo troncocónico invertido recto, corpo ovóide e quatro asas verticais de secção oval. Apresenta engobe de coloração cinzento-escuro. No corpo, e entre cada asa, mostra um rosto realizado a molde, posteriormente colado na peça, sendo de realçar que estes se encontram rodeados por quatro flores realizadas por estampilha. Sobre os rostos e sobre as estampilhas foi aplicada moscovite (mica branca). [AV]

38

26. 28. Artefactos de encabamento Convento de Nossa Senhora da Piedade Séculos XVI-XVIII

29. Panela

30. Caçoila de “costillas”

Horta dos Mouros

Horta dos Mouros

Época Islâmica (século XIII)

Época Islâmica (finais do século XII, primeira metade do século XIII)

Cerâmica

Larg. 20mm; Comp. 69mm

Alt. 126mm; Esp. 4mm; Ø bordo: 128mm; Ø base: 116mm

Larg. 11mm; Comp. 50mm

MMT00003456

Osso trabalhado

Cerâmica Alt. 85mm; Esp. 6mm; Ø bordo: 252mm; Ø base: 215m

M00000288 M00000290

MMT00003460

39


150 anos de investigação arqueológica em Tavira 31. Caçoila

32. Tacho

Horta dos Mouros

Casa Irene Rolo

Século XIV-XV

Séculos XVI-XVIII

Cerâmica

Cerâmica

Alt. 63mm; Esp. 7mm; Ø bordo: 259mm; Ø base: 185m

Alt. 115mm; Esp. 10mm; Ø bordo: 253mm; Ø base: 140m

MMT00003459

MMT00003453

Mundo Quotidiano

Pesca

33. Almofariz Convento de Nossa Senhora da Piedade Séculos XVI-XVIII

38. 39. Pesos de rede

40. Peso de rede

Bela Fria

Bela Fria

Época Islâmica (século XIII)

Época Islâmica (século XIII)

Chumbo

Chumbo

Larg. 15mm; Comp. 62mm; Peso: 60gr

Larg. 11mm; Comp. 66mm; Peso: 25gr

Larg. 12mm; Comp. 56mm; Peso: 26gr

MMT00003475

Navarro Palazón e Robles, 1996. [SC]

MMT00003473 MMT00003474

Mármore Alt. 109mm; Esp. 23mm; Ø bordo: 140mm

Peso de rede em chumbo, de corpo cilíndrico. A partir de uma folha de chumbo fundido procedeu-se à sua dobragem, a quente, unindo as extremidades e formando um cilindro. O interior é oco de modo a possibilitar a passagem do fio da rede. As extremidades laterais estão unidas apenas em dois pontos, não sendo visíveis marcas do objecto utilizado na dobragem.

MMT00003451

Fragmento de almofariz, de corpo cilíndrico. Originalmente, deveria apresentar, no corpo, quatro contrafortes recortados. A base é ligeiramente convexa. [SG]

41. 42. Anzóis

43. Peso de rede

44. 45. Pesos de rede

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Antigo Parque de Festas

Convento de Nossa Senhora da Graça

Época Turdetana (século V a.C.)

Convento de Nossa Senhora da Graça

Cerâmica Alt. 66mm; Esp. 51mm; Ø máximo: 129mm

Metal 34. Fauna malacológica

35. Fauna mamalógica

36. Casca de Ovo

37. Fauna ictiológica

Convento de Nossa Senhora da Graça

Bela Fria

Convento de Nossa Senhora da Piedade

Convento de Nossa Senhora da Piedade

Séculos XVI-XVIII

Séculos XVI-XVIII

MMTC00000099

MMTC00000101

Época Islâmica (século XIII)

Época Islâmica (século XIII)

MMTC00000100

MMTC00000102

40

Alt. 27mm; Larg. 21mm; Esp. 3mm Alt. 27mm; Larg. 21mm; Esp. 3mm MMT00003476 MMT00003477

M00000272

Peso de rede com orifício central vertical. Corpo globular achatado e perfurado no centro. Maia, 2004. [SC]

41

Época Islâmica (século XIII) Cerâmica Alt. 79mm; Esp.17mm; Ø máximo: 47mm Alt. 63mm; Esp. 19mm; Ø máximo: 55mm MMT00003378 MMT00003379


150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Mundo Quotidiano

Objectos de Adorno e de Uso Pessoal 49. 50. 51. Pulseiras

52. Brinco

Convento de Nossa Senhora da Piedade

Convento de Nossa Senhora da Graça

Convento de Nossa Senhora da Graça

Séculos XVI-XVIII

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Época Medieval

Larg. 23mm Larg. 19mm Larg. 14mm MMT00003466 MMT00003467 MMT00003468

Alt. 13mm; Larg. 12mm

Elemento de brinco composto por uma esfera e pelo arranque de suporte para a argola. A esfera apresenta decoração geométrica em alto-relevo sendo constituída por nove conjuntos de seis pontos, delimitados por um círculo. No espaço vazio situado entre cada círculo são visíveis conjuntos de três ou quatro pontos. Na união entre as duas partes da esfera é visível cordão aplicado.

MMT00003464 MMT00003465 MMT00003463

53. Conta

55. Escova Convento de Nossa Senhora da Piedade

Rafael, 2001:179. [SG]

Casa Irene Rolo

Séculos XVI-XVIII

Escova em osso trabalhado. A cabeça da escova apresenta forma rectangular, sendo visíveis três alinhamentos verticais, com perfurações circulares, onde encaixam fios metálicos destinados a segurar um outro elemento da escova. O cabo da peça apresenta forma ondulada. [JC]

Séculos XVI-XVIII Vidro Alt. 23mm; Larg. 11mm MMT00003498

42

Alt. 119mm; Larg. 77mm; Esp. 5mm M00000305

Gomes, no prelo. Maia e Nascimento, 2003b: 243. [JC]

MMT00003469

Larg. 25mm; Esp. 5mm Larg. 42mm; Esp. 6mm Larg. 31mm; Esp. 4mm

Netos

Apresenta bordo com espessamento interno, colo pouco desenvolvido de forma sub-globular, separado do bojo, de tendência igualmente globular, por um pequeno ressalto. A asa arranca do colo e termina na parte superior do bojo. O fundo, embora presente, é pouco perceptível. A peça apresenta uma aguada de coloração bege que não se encontra uniformemente distribuída. Considerando a pequena dimensão destes objectos, bem como a sua morfologia e a analogia com os aryballoi ou lekythoi aryballísticos de produção grega, considera-se que estes pequenos contentores cerâmicos destinar-se-iam a conter substâncias aromáticas (óleos, perfumes e/ou unguentos).

Metal

Vidro

Cerâmica

Idade do Ferro (século VII a. C.)

46. 47. 48. Anéis

Vidro

54. Ampolla

Osso trabalhado Larg. 11mm; Comp. 99mm; Esp. 3mm M00000276

43


150 anos de investigação arqueológica em Tavira

56. Leque

57. Pente

62. Cachimbo de haxixe

63. Cachimbo

Convento de Nossa Senhora da Piedade

Convento de Nossa Senhora da Graça

Convento de Nossa Senhora da Graça

Casa Irene Rolo

Séculos XVI-XVIII

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Séculos XIV-XV

Osso trabalhado

Leque em osso trabalhado. A parte conservada do leque apresenta decoração incisa com motivos vegetalistas. Na parte mais estreita da peça é visível uma perfuração, possivelmente destinada a receber um elemento de suporte e/ou de união do leque. [JC]

Larg. 12mm; Comp. 113mm; Esp. 2mm M00000277

Cerâmica Ø da fornalha: 28 mm

Osso Trabalhado

MMT00002281

Larg. 32mm; Comp. 17mm; Esp. 2mm

59. Pendente

60. 61. Botões

Convento de Nossa Senhora da Piedade

Bela Fria

Convento de Nossa Senhora da Graça

Séculos XVI-XVIII

Época Islâmica (século XIII)

Metal

Osso Trabalhado

Comp. 47mm; Esp. 1mm

Larg. 18mm; Comp. 32mm

MMT00003497

MMT00003444

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII) Osso Trabalhado Larg. 14mm; Esp. 2mm Larg. 17mm; Esp. 2mm MMT00002771 MMT00002795

Alt. 29mm. Comp. 65mm; Ø da fornalha: 19 mm; Altura da base de assentamento: 4mm.

64. Cachimbo

Fragmento de fornalha de cachimbo de haxixe. Apresenta corpo esférico, base convexa e arranque de haste cilíndrica. O fornilho apresenta secção cilíndrica e base plana. A haste apresenta canal condutor que vai estrangulando até encaixar no fornilho. Este cachimbo ostenta ornamentação incisa e roletada na fornalha e na haste. Na base da fornalha apresenta um pequeno coração inciso. A descoberta de cachimbos deste período levanta, uma vez mais, a questão do consumo de haxixe na Península Ibérica. Segundo Ibn al-Jatīb, o haxixe foi introduzido em Granada no século XIV e, ao que parece, o sultão Muhammad VI era um assíduo fumador. O consumo de haxixe difundiu-se, não apenas entre as populações islâmicas peninsulares, mas também entre os cristãos, sendo ainda um produto muito popular entre marinheiros e mercadores.

onvento de Nossa Senhor C da Piedade Século XVII Cerâmica Alt. 30mm; Comp. 117mm; Ø da fornalha: 21mm; Altura da base de assentamento: 3mm. M00000306

Covaneiro, Cavaco e Lopes, 2010: 116. Valdés Fernández, 2001: 245-256. [SC]

44

Cerâmica

MMT00002908

MMT00002772

58. Pinça

Século XVII

45


150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Mundo Quotidiano

75. Assobio Convento de Nossa Senhora da Piedade

Objectos Lúdicos

Séculos XVI-XVIII Cerâmica Alt. 54mm; Larg. 32mm; Esp. 5mm.

65. Dado

66. Dado

67. Peça de jogo?

68. 69. 70. Peças de Jogo

Convento de Nossa Senhora da Graça

Bela Fria

Antigo Parque de Festas Idade do Ferro (séculos VIII/VII a. C.)

Bela Fria

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII) Osso Trabalhado Alt. 9mm MMT00002753

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Osso trabalhado

Osso Trabalhado

Alt. 14mm; Larg. 30mm

Alt. 7mm

M00000275

MMT00002818

M00000307

Assobio onomatopeico figurando uma ave. Ambas as superfícies encontram-se roladas e concrecionadas. Do ponto de vista morfológico, apresenta pé alto maciço e corpo oco assemelhando-se a um galináceo. A meio do corpo apresenta um orifício circular a que se seguem duas caneluras. Presume-se que o bocal de insuflação, possivelmente em forma de bisel, se localizasse na zona da cabeça, já que o “pescoço” da ave apresenta um canal circular perfeito. Como quer o “pescoço” quer a “cauda” se encontram truncados, desconhecemos a existência de outros orifícios. Segundo Flávio Gonçalves, existem dois tipos de assobios, os rouxinóis e os cucos, sendo que os primeiros necessitam de água para produzir som e os segundos são simples aerofones. Ainda que os rouxinóis apresentem, em regra, o corpo de uma ave de tipo galináceo, a altura a que o orifício do corpo se dispõe inviabiliza que se trate de um rouxinol, sendo provável que se trate de um cuco. Ostenta vários defeitos de fabrico, ao nível do acabamento e aspeto geral da peça, conferindo-lhe uma aparência algo tosca. Ainda assim, julgamos que os defeitos não interfeririam com o som produzido pelo assobio. De facto, os assobios produziam sons afinados e harmónicos, pois caso contrário não seriam adquiridos.

Época Islâmica (século XIII) Osso Trabalhado Alt. 16mm; Larg. 15mm Alt. 16mm; Larg. 15mm Alt. 17mm; Larg. 17mm MMT00003033 MMT00003035 MMT00003036

71. Peça de Jogo

72. 73. 74. Peças de Jogo

Bela Fria

Bela Fria

Época Islâmica (século XIII)

Época Islâmica (século XIII)

Osso Trabalhado

Cerâmica

Alt. 32mm; Larg. 19mm

Larg. 52mm; Esp. 11mm Larg. 31mm; Esp. 3mm Larg. 26mm; Esp. 7mm

MMT00003443

Astrágalo direito de ovicaprídeo reaproveitado como peça de jogo. Apresenta ambas as faces laterais polidas.

MMT00003470 MMT00003471 MMT00003472

Covaneiro e Cavaco, 2009: 707-717. Gonçalves, Pereira e Pires, 2008: 189-214. [JC]

46

Rosselló Bordoy, 2006: 13-50. [SC]

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Mundo Militar e da Guerra 76. 77. Botões

78. 79. Botões

80. 81. Acicates

82. Bola de funda

84. Bainha de punhal

Séculos XVIII-XIX

Convento de Nossa Senhora da Graça

Igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça

Séculos XVIII-XIX

Séculos XVII-XVIII

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Metal

Metal

Calcário

Bronze

Alt. 8mm; Esp. 1mm; Ø 20mm Alt. 9mm; Esp. 2mm; Ø 20mm

Alt. 5mm; Esp. 2mm; Ø 19mm Alt. 4mm; Esp. 2mm; Ø 15mm

Larg. 112mm; Comp. 257mm; Esp. 15mm

Bela Fria

Convento de Nossa Senhora da Graça

MMT00003479 MMT00003480

MMT00003481 MMT00003482

Larg. 111mm; Comp. 255mm; Esp. 15mm

Metal Convento de Nossa Senhora do Carmo

Ø 46mm

Remate inferior de bainha de punhal, de forma triangular e faces laterais redondas, definindo o encaixe para a ponta de um punhal. O espelho da frente encontra-se decorado por um conjunto de três círculos e três rectângulos, respectivamente, e a encimar tudo, um coração. A face posterior ostenta dois conjuntos de três círculos e três rectângulos. A ponta termina numa pequena saliência circular estrangulada, que possivelmente corresponde ao gito de fundição e que desta forma integra a decoração da própria peça.

Alt. 48mm; Larg. 25mm; Esp. 1mm

MMT00003485

MMT00003487

MMT00003483 MMT00003484

Marques, 2000: 344. [SG]

83. Bola de funda Convento de Nossa Senhora da Graça

85. Fragmento de cota de malha

86. 87. Pontas de virote de besta

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII)

Horta dos Mouros

Calcário

Bronze

Ø 21mm

Convento de Nossa Senhora da Graça

MMT00003486

Bola de funda, usada como objecto de arremesso. Apresenta forma esférica e a superfície da pedra encontra-se polida. [SG]

48

Esp. 1mm; Ø das argolas: 10mm M00000268

88. Ponta de flecha Horta dos Mouros Século XVII-XVIII

Época Islâmica (século XII/XIII)

Metal Larg. 21mm; Comp. 69mm; Esp. 5mm

Metal Larg. 13mm; Comp. 57mm; Esp. 8mm

M00000271

Larg. 16mm; Comp. 56mm; Esp. 9mm M00000269 M00000270

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

O Mundo Religioso 89. Queimador de perfumes Palácio da Galeria Idade do Ferro (século VII a.C.) Alt. 66mm; Esp. 6mm; Ø bordo: 170mm M00000308

Convento de Nossa Senhora da Graça Época Islâmica (finais do século XII, inícios do século XIII) Cerâmica Larg. 70mm; Comp. 86mm; Esp. 7mm MMT00002730

92. Hanukiá (Candeia de Hanucá)

Convento de Nossa Senhora da Graça

Séculos XIV-XV

Igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça

Cerâmica

Século XVII

Cerâmica

Convento de Nossa Senhora da Graça

Pasta vítrea

Alt. 25mm; Larg. 61mm; Esp. 5mm; Ø bordo: 54mm; Ø base: 42mm

Alt. 25mm; Larg. 61mm; Esp. 5mm; Ø bordo: 54mm; Ø base: 42mm

MMT00003491

MMT00003492

Séculos XIV-XV

Cerâmica

90. Fragmento de telha com o “al-basmaLlah”

91. Hanukiá (Candeia de Hanucá)

O fragmento de candeia de Hanukkah apresenta bordo extrovertido, lábio arredondado, bico de paredes divergentes, corpo troncocónico invertido, e base plana assente sobre suporte rectangular plano onde se dispunham as restantes candeias. A superfície da peça apresenta-se engobada. As Hanuquias são utilizadas para celebrar o Hanucá, festa judaica que decorre do dia 25 de Kislev até ao dia 2 de Tevet. Em cada dia é acesa uma das oito candeias que compõem a Hanuquia em celebração da re-dedicação do Segundo Templo de Jerusalém, após ter sido profanado pelas tropas de Antíoco IV, tendo também profanado a quase totalidade do azeite ritual que iluminava o templo. O azeite que restava apenas durava para alumiar o templo durante um dia, já que o templo tem de estar permanentemente alumiado como símbolo da Presença Eterna de Deus. Porém, o azeite durou para oito dias, o tempo necessário para a preparação de mais azeite, facto que é celebrado com a utilização de uma candeia mais em cada dia durante o Hanucá.

96. Cruz em osso trabalhado Cripta funerária do Convento de Nossa Senhora da Graça Século XVII Osso Alt. 17mm; Larg. 16mm; Esp. 3mm MMT00002754

93. Rosário

94. 95. Medalhas com motivo religioso (verónica) Século XVII Liga de cobre Igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça

MMT00003490

Larg. 17mm; Esp. 2mm Larg. 25mm; Esp. 1mm MMT00003488 MMT00003489

97. Cruz em metal

98. Cruz em osso trabalhado

Convento de Nossa Senhora da Graça

Convento de Nossa Senhora da Piedade

Séculos XIV-XVII

Séculos XVII-XVIII

Metal

Osso

Alt. 59mm; Larg. 34mm; Esp. 4mm

Alt. 59mm; Larg. 34mm; Esp. 4mm

MMT00003493

MMT00003494

Gallardo Carrillo e González Ballesteros, 2009. [SC]

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira 99. Fragmento de imagem religiosa Convento de Nossa Senhora da Piedade

O Mundo Funerário

Séculos XVI-XVIII

101. Urna tipo Cruz del Negro

Terracota

Convento de Nossa Senhora da Graça

Alt. 53mm; Larg. 54mm; Esp. 5mm

Idade do Ferro (séculos VII/VI a. C.) Cerâmica

M00000291

Alt. 220mm; Esp. 6mm; Ø base: 88mm

Fragmento de imagem religiosa em cerâmica. A superfície da peça apresentava-se esmaltada a branco. Vista de frente a cabeça está ligeiramente inclinada para a esquerda. A face, de contornos delicados, apresenta os olhos semicerrados e a boca fechada, conferindo serenidade à expressão facial. A totalidade do cabelo encontra-se ocultada pelo manto/véu, o qual dispõe-se ondulante sobre a cabeça. Apenas resta o rosto e a parte superior das vestes da imagem que, possivelmente, corresponde a uma imagem mariana ou a uma das santas veneradas pelas freiras cistercienses: Santa Umbelina (Irmã de S. Bernardo), Santa Rita, Santa Mafalda e Rainha Santa. As dimensões reduzidas do fragmento, e a ausência de atributos, impossibilitam uma atribuição segura. [SC]

MMT00002290

Urna tipo Cruz del Negro. Apresenta corpo esférico, colo cilíndrico curto, com moldura saliente na parte central e base em ônfalo. As asas arrancam do centro do colo e descansam sobre o ombro. A superfície externa apresenta-se revestida a aguada, de coloração castanha clara. A superfície não apresenta decoração, sendo visíveis marcas de fogo pós-deposicionais. Aubet Semmler, 1976-78: 267-287. Martín Ruiz, 1995. [JC]

102. Sepultura Pedras d’El-Rei 100. Fragmento de Cristo crucificado Convento de Nossa Senhora da Piedade Séculos XVI-XVIII Barro policromado parcial Alt. 67mm; Larg. 38mm; Esp. 10mm M00000309

Cerâmica M00000267

Sepultura de inumação (incompleta) estruturada por materiais de construção (tegulae), com orientação NE-SO. Apresenta planta rectangular, telhado de duas águas feito com tegulae, colocadas de lado e no sentido do comprimento, com os rebordos para dentro e inclinadas de modo a encostar-se na parte superior. A sepultura, aberta no solo natural, continha uma inumação correspondente a um indivíduo do sexo feminino, com cerca de 50 anos de idade, não tendo sido encontrado espólio associado. Esta sepultura deveria integrar uma necrópole relacionada com a cidade romana de Balsa, com uma villa ou aglomerado populacional de menor dimensão. Regra geral, em época romana os mortos eram enterrados fora das cidades, ao longo das vias e caminhos, mas nos seus limites. Esta sepultura situa-se nos limites da cidade de Balsa, e nas suas proximidades situa-se a via romana (Baesuris - Ossonoba). Ariès, 1999. Veiga, 1891. [JC]

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

104. Estela funerária 103. Estela de Step(h)anus

Doação de José Mendonça Furtado Januário – Proveniência desconhecida

Paúl Colecção de Maria Carlota Trindade Guerreiro Osswald

Período Medieval

Período Romano (século II d. C.)

Calcário

Calcário Alt. 560mm; Larg. 650mm; Esp. 60mm

Alt. 580mm; Larg. 300mm; Esp. 125mm

M00000278

MMT0002161

Estela funerária de frontão triangular moldurado e preenchido com o campo epigráfico, encontrando-se o topo truncado. Este monumento funerário pertence a um homem de 32 anos de idade, que possui um cognomen de origem grega, Step(h)anus, que será filho – ou liberto – de alguém que é denominado pelo praenomen Publius. O epitáfio inicia-se com a consagração aos Deuses Manes (Diis Manibus Sacrum) e termina, como é frequente, com a exclamação “A terra te seja leve!” (Sit Tibi Terra Levis).

Estela funerária de cabeceira discóide. Em cada um dos lados ostenta a representação de uma cruz pátea em baixo relevo. Sob um dos braços da cruz apresenta uma reentrância circular. A estela funerária era esculpida em pedra destinava-se a ser fincada no solo, na cabeceira da sepultura e num espaço próprio, o cemitério. As estelas podem apresentar diversas formas, sendo de realçar que correspondem a representações antropomórficas estilizadas, em que o disco corresponde à cabeça e o pé ao corpo. No que concerne os motivos decorativos, prevalecem os religiosos.

D(iis) M(anibus) S. (acrum) / ST. E. P(h) A. NO P(ublii) F(ilio?) (vel) L(iberto?) / ANNOR(um) XXXII / H(ic) S(itus) E(st) S(it) T(ibi) T(erra) L(evis) //

Casa Martínez e Doménech Esteban, 1993. Chambino, 2009. [JC]

«Consagrado aos Deuses Manes. A Step(h)anus, filho (?) – ou liberto (?) – de Publius, de 32 anos (de idade). Está aqui sepultado. A terra te seja leve!» Cesário e Cardim, 2002: 528. [SC]

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

Lápide funerária de formato retangular, pertencente a Álvaro Vaz e seus herdeiros, com o texto ♦ SPA ♦ | ÐALVORO | VAS ♦E♦ Ð | SEVS ER | ÐIROS

105. Lápide funerária Período Moderno Calcário Comp. 1m; Larg. 55cm Igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça MMT00003478

A lápide de Álvaro Vaz encontrava-se no lado do evangelho, perto da capela lateral, perfeitamente articulada com o antigo pavimento da Igreja, realizado em tijoleira. No interior da sepultura foram encontrados indivíduos com idade inferior a três anos, ainda que não articulados e um indivíduo adulto do sexo masculino e que apresentava uma orientação inversa à das letras da lápide sepulcral, isto é, com a face virada para o altar. Desde sempre que a morte fez parte da vivência humana. Esta convivência é exacerbada em períodos de guerra e de fome, mas também nos períodos em que a peste e outras epidemias, frequentes e cíclicas até aos inícios do século XVIII, atacam as populações. A difusão da crença no Purgatório e a ideia de que cada homem teria um julgamento próprio no final da vida, leva a que a morte passe a ser vista, não como um castigo como até aí, mas como uma passagem para o outro lado. Para não renunciar aos prazeres da vida e ao amor reconhecido aos bens temporários, as classes superiores, como a proteção dos santos já não lhes parecia capaz de lhes assegurar a salvação, decidem comprar a intermediação do clero, pagando de forma antecipada missas e rituais fúnebres. Por outro lado, os mais abastados passaram a encarar a morte na primeira pessoa (eu vou morrer), deixando de a ver como o destino dos homens (todos morremos). O reaparecimento das epígrafes funerárias é revelador deste facto, já que ao reconhecer a sua individualidade o defunto deseja ser recordado no futuro. As fórmulas relativas à propriedade familiar da sepultura, são sintomáticas das inquietudes sobre a localização e permanência da sepultura indiciando uma nova mudança das mentalidades e que surge a partir do século XVIII: receia-se verdadeiramente a separação da pessoa amada e não a morte, já que a morte é considerada pela primeira vez uma rutura. Esta nova visão explica a necessidade de conhecer o lugar exacto onde está enterrado o defunto, para o poder visitar, para poder chorar ao pé da sua sepultura.

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Candón Morales, Covaneiro e Cavaco, 2010: 213-222. [SC e SG]

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150 anos de investigação arqueológica em Tavira

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A Cidade do Museu Memória e Identidade do Centro Histórico de Tavira

Daniel Santana Historiador de Arte Célia Teixeira Arquiteta

Curiosas as palavras que Mário Lyster Franco (1902-1984), figura modelar do regionalismo algarvio, dedica a Tavira em 1932: “há qualquer coisa de melancólico no ambiente (…), qualquer coisa de saudosista nos seus curiosos aspectos, nas suas ruas pouco movimentadas, nas janelas quási sempre fechadas dos seus prédios, nas poéticas margens do rio que a corta pelo meio e em que a casaria perpetuamente se revê. Dir-se-ia que é a recordação de um passado grandioso que a faz apresentar aquele ar de renúncia, como se esse passado não fosse susceptível de voltar, como se de uma terra condenada se tratasse” 1. Se por um lado Tavira era “das terras do Algarve que mais interesse pode oferecer ao forasteiro”, por outro gozava ainda “a velha fama de ser uma terra triste”, uma sombra de um passado ilustre condenado ao desaparecimento. Entre os “curiosos aspectos” identificados pelo autor contavam-se as “numerosas igrejas”, “alguns sumptuosos detalhes de velhas moradias”, as “reixas que muitíssimas casas ainda ostentam” ou “a velha ponte romana, das mais belas em terras algarvias”.

1. Guia-Album do Algarve. Sotavento, (compilação, orientação e legendas de Mário Lyster Franco), Lisboa, S. Zambrano Gomez, 1932, p. 49.

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Daniel Santana / Célia Teixeira

A Cidade do Museu

Volvidos mais de 80 anos sobre estas palavras, é certo que Tavira continua a ser das cidades algarvias que mais interesse oferece aos visitantes. O ambiente melancólico é hoje muito menos manifesto. Nos prédios há mais janelas abertas e as ruas estão mais movimentadas com residentes e turistas. Destes, deve-se referir uma percentagem significativa que vem à descoberta do centro histórico, sobe ao castelo, entra nas igrejas de Santa Maria e da Misericórdia e nas demais que se encontrem abertas, atravessa a ponte antiga e observa o peculiar ambiente urbano e os seus marcos arquitetónicos. O aspeto das ruas pouco movimentadas inverte-se a cada ano que passa. O número de visitantes do museu foi aumentando, integrando pessoas das mais diversas origens, para além do público escolar integrado em visitas de estudo.

passado começa a ser relativamente conhecido, permitindo boas condições de divulgação.

Se a cidade foi-se tornando um conhecido destino de tu­rismo cultural deve-se em grande parte à dinâmica de pre­servação, estudo e divulgação/ musealização registada em Tavira na última década e à revelação do “passado grandioso” que lhe está associado.

O intercâmbio de distintas épocas e sensibilidades culturais marcou indelevelmente a paisagem, a morfologia urbana, a arquitetura e a arte, no fundo, o seu desenvolvimento artístico em geral. E, não obstante algumas calamidades cíclicas – terramotos, cheias, crises político-sociais –, a herança patrimonial tem conseguido sobreviver, sendo hoje um exemplo de uma cidade mediterrânica fortificada, no limite da Europa, excecional pela qualidade formal, harmonia e coerência de alguns es­paços urbanos, onde confluem modelos medievais e renascentistas, com um conjunto distinto de imóveis ilustrando várias épocas, usos, estilos artísticos e cambiantes regionais.

Mas onde reside verdadeiramente o carácter excecional do centro histórico de Tavira? Local de cruzamento de diversos povos e culturas – fenícios, turdetanos, árabes, judeus – foi após a reconquista cristã sede de um concelho com crescente influência no reino de Portugal. Terra do Rei e de importância fulcral para os sucessos da expansão portuguesa para o Norte de África nos séculos XV e XVI, viu crescer o seu prestígio político, religioso e económico, permitindo desenvolver uma notável atividade construtiva e artística, de que é exemplo a célebre escola de arquitetura renascentista de André Pilarte, e mais tarde, durante o século XVIII, a atividade do mestre Diogo Tavares de Ataíde.

De facto, como é notório, a História cumpriu bem o seu papel, assaz generoso, para com a cidade de Tavira. Legou um passado urbano assinalável, preenchido com importantes vestígios das mais distintas épocas. Quando há 10 anos foi iniciado o projeto do Museu Municipal, o centro histórico obviamente centralizou atenções, ocupando um papel incontornável no âmbito das funções museológicas, dado que nele se reflete a memória da cidade e de uma comunidade.

Vestígios arqueológicos na Calçada D. Paio Peres Correia, Tavira.

Dificilmente encontramos em Portugal, tão bem como em Tavira, os elementos históricos constitutivos de uma cidade de estuário atlântico-mediterrânica, com formas que muitas vezes foram assimiladas além-mar

Como conjunto construído, a cidade é um atrativo do ponto de vista da história e da arte, devido à sua arquitetura, homogeneidade e integração na paisagem, e cujo

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Neste local foram detetados vestígios de um solar medieval (séc. XV-XVI), estruturas habitacionais islâmicas (séc. XII-XIII), níveis turdetanos (séc. IV a.C.) e a muralha fenícia (séc. VIII a.C.)

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Daniel Santana / Célia Teixeira

A Cidade do Museu

e reproduzidas localmente. Vejamos alguns dos seus destacados elementos:

cidade romana do Sul do país, a escassos oito quilómetros de distância. Os muçulmanos retomam a povoação de Tavira em finais do século X ou inícios do XI, bem como a vocação portuária e comercial do lugar. O topo da colina é refortalecido com o castelo, destinado a proteger o vau do Gilão que permitia o trânsito entre as duas margens, supostamente, antes da construção da ponte. O perímetro muralhado atinge cerca de cinco hectares, todavia, é patente que a extensão da cerca sofre mutações ao longo da presença islâmica, sensível às circunstâncias militares e à sucessão dos poderes (almorávida, taifas, almóadas). No topo estaria a alcáçova, concentrando os edifícios políticos e religiosos - duas mesquitas, posteriormente convertidas em igrejas católicas.

a) UMA COLINA DE FENÍCIOS... O Alto de Santa Maria, ligeira colina junto ao rio Gilão, foi primeiramente povoado no século VIII a.C. por gentes relacionadas com contexto expansionista fenício a Ocidente do Estreito de Gibraltar. O local permitia a boa visibilidade do tráfego comercial fluvial e das eventuais aproximações inimigas. Há poucos anos as escavações arqueológicas dirigidas por Maria Maia e Manuel Maia no subsolo da pensão Netos revelaram parte da espessa muralha que cercava o antigo povoado. Os achados encontrados indiciam a vivência de um povo que cultivava a leitura e a escrita, e realizaria alguma produção metalúrgica em ferro e prata, eventualmente utilizada para negociar com outros povoados. Os “poços votivos” localizados onde hoje se situa o Palácio da Galeria indicam que este povo marinheiro teria aqui, muito provavelmente, um lugar reservado a práticas religiosas consagradas ao deus Baal.

Partes da muralha islâmica ainda se avistam pela cidade, na Bela Fria por exemplo, mas também no interior das casas da atual praça da República. São muros constituídos por uma fortíssima amálgama de cal, areia e pedras revestidas por pedra aparelhada. Outra herança da muralha islâmica é a torre octogonal que cai para a rua da Liberdade que, apesar de refeita, deve ser colocada em paralelo com outras torres poligonais ibéricas de época muçulmana.

Crê-se que o povoado fenício de Tavira terá sobrevivido e mantido alguma relevância económica e comercial regional entre os séculos V e IV a.C., acabando, mais tarde, por falir. A riqueza científica dos vestígios encontrados é, até agora, única em Portugal e deverá ser conjugada com o futuro núcleo museológico fenício.

Encontramos um vislumbre da cultura urbana deste período no que resta do bairro almóada descoberto no subsolo do convento da Graça, constituindo um dos melhores exemplos em território nacional do modelo de casas e ruas citadinas usado na Península Ibérica e no Magreb durante o período em apreço.

b) ...E ÁRABES.

Todo o acervo de peças recolhidas neste e noutros contextos arqueológicos islâmicos espalhados pela cidade demonstram, não só as áreas que foram habitadas, mas

Em Tavira são parcos os dados arqueológicos do período romano, indiciando que a colina de Santa Maria terá sido secundarizada face à proximidade de Balsa, a maior

Torre octogonal do castelo de Tavira

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Daniel Santana / Célia Teixeira 2. Cf. Orlando RIBEIRO, Geografia e Civilização. Temas Portugueses, 3.ª edição, s.l., Livros Horizonte, 1992, p. 94.

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também os hábitos e as posses dos seus residentes. Por vezes com alguma exuberância. Exemplo disso é o célebre Vaso de Tavira e todo um conjunto de artefactos menos conhecidos, mas igualmente admiráveis. c) UM URBANISMO MULTISSECULAR. A conquista de Tavira pela Ordem de Santiago acontece em 1242. A mudança do poder tem efeitos na feição urbana. Dentro das muralhas deixa de caber a comunidade muçulmana, desalojada, passando esta a residir do lado exterior, diante da antiga e desaparecida Porta do Postigo. Aí ficava a mouraria, da qual a memória toponímica é ainda bem patente na rua dos Mouros, ou no largo do Pocinho dos Mouros. Mais portas atravessam a muralha. A principal, junto ao rio, chamava-se Porta da Vila, acrescentando-se a esta as portas da Alfeição, do Buraco, da Vila Fria, a Porta Nova contra o Cano e a Porta dos Pelames. Todas serão definidoras das vias que estruturam a “vila-a-dentro”, caracterizada pela conjugação de uma malha regular e densa com uma área pouco construída e sem uma estruturação clara dos quarteirões. Os reis portugueses promovem beneficiações na muralha. D. Dinis faz obras no castelo e D. Fernando terá alargado a cerca. Inevitável, no entanto, é a expansão do núcleo medieval para a zona extramuros. Além da Mouraria, nascem os núcleos do alto de São Francisco, as Tercenas (ao longo da margem direita do rio) e um primeiro desenvolvimento na margem esquerda. Desenvolve-se também um eixo principal confinante com a muralha e definido pela rua do Malforo (rua Miguel Bombarda), rua Nova Grande (rua da Liberdade), praça da Ribeira (República) e a ponte, do qual depois progridem as áreas ribeirinhas nas duas margens. Orlando Ribeiro realça, justamente, Tavira como raríssimo exemplo de cidade fluvial portuguesa que contaminou indiferentemente as duas margens, sem quebra de unidade 2. Salienta o facto de, em épocas recuadas, a ponte ter sido habitada, o que conferia uma imagem de edificação contínua que superava a natural divisão oferecida pelo rio. Para tal contribuirá também o acelerado desenvolvimento urbano durante o reinado de D. Manuel I. É notável a urbanização que nasce na zona ribeirinha em finais da Idade Média, à ilharga da “vila-a-dentro”, denunciando princípios renascentistas e

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características fundamentais do urbanismo português de então. Designadamente, o cha­mado “urbanismo regulado” (baseado na regulamentação e não no desenho). Alinhando num esquema de rua-travessa, geram-se áreas que apresentam uma enorme regularidade quer no traçado das ruas, quer na sua própria base cadastral e altimétrica 3. Com uma malha regular orientada pelo rio, esta “nova” cidade articula-se habilmente com a “velha” através da praça da Ribeira, com o campo através da Corredoura e com o mundo através do Gilão. Na definição do espaço urbano saliente-se o papel dos numerosos edifícios religiosos. Igrejas, capelas e conventos marcam o perfil de ruas, largos, servindo como pólos de referência para esses espaços. Aglutinam normalmente conjuntos urbanos e os seus adros potenciam a criação de zonas amplas (largos ou praças) propícias à afluência e concentração de fiéis. d) CIDADE DAS IGREJAS É notável o conjunto de arquitetura religiosa que a cidade possui. Apesar de não ter sido escolhida para sede do Bispado do Algarve no século XVI, quando Silves se encontrava em decadência, Tavira manifesta uma enorme sensibilidade religiosa, erigindo inúmeros centros de devoção, o que é igualmente sintomático da sua importância e prosperidade ao longo dos séculos. O número impressiona, hoje em dia são vinte e uma igrejas. Com efeito, ainda mal terminara a conquista do lugar pela Ordem de Santiago e já este contava com as matrizes de Santa Maria e de Santiago, em resultado do aproveitamento e adaptação das antigas mesquitas árabes. O desenvolvimento urbano será sempre pontuado pela Igreja, seja através das matrizes, dos templos de ordens terceiras e confrarias ou através de instalações mais amplas, como os conventos. A Igreja também beneficia da próspera conjuntura socioeconómica dos séculos XV e XVI, associada ao crescimento demográfico, à expansão urbana e ao período em que o porto de Tavira era o de maior irradiação para a defesa e manutenção das praças lusas do Norte de África. A arquitetura e a produção artística para ornamento dos templos conhecem nestes séculos uma atividade considerável. Nota-se, aliás, que a origem de algumas casas religiosas reflete a estreita relação de Tavira com o projeto de expansão da coroa para o Norte de África, caso do convento

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3. C f. Pedro BARÃO et al., “Núcleo Urbano da Cidade de Tavira”, Sistema de Informação para o Património Arquitectónico do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana. Consultado a 28 de Dezembro de 2011: http://www.monumentos.pt/ Site/APP_PagesUser/SIPA. aspx?id=10025


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e) HERANÇA MILITAR

de Nossa Senhora da Piedade, fundado por D. Manuel I em ação de graças pelo levantamento de um cerco mouro a Arzila; ou do convento agostinho de Nossa Senhora da Graça, fundado em Tavira após uma tentativa frustrada de o fazer erguer em Azamor.

Como afirma Arnaldo Casimiro Anica, “Tavira não é essencialmente uma povoação castrense, mas a sua História encontra-se indissoluvelmente ligada à actividade militar” 4. A preocupação com a defesa de um território e com a segurança de uma comunidade que, como vimos, atingiu períodos de grande relevância estratégica e económica, manifesta-se na construção de diversas infra-estruturas e na fixação de corpos militares.

A diminuição da importância da cidade nos séculos posteriores não afeta, sobremaneira, o ritmo de fundação de novos edifícios religiosos, os quais são marcados com mais ou menos austeridade de acordo com as flutuações estilísticas e temporais. Os tavirenses manterão a proximidade aos centros de devoção. Exemplo disso são os anos de estabilidade de D. Pedro II e D. João V, enquadrados pela exultação barroca da Igreja contrarreformista, favorecendo um novo período de grande atividade na construção de igrejas e na ornamentação das existentes.

Já aqui foram elencados alguns monumentos castrenses que são marcos de identidade na definição do traçado e da estrutura urbana do aglomerado. A muralha fenícia fixou o local e determinou o seu desenvolvimento posterior. O castelo medieval predomina e testemunha aspetos particulares que se referem aos conturbados anos da reconquista cristã e à afirmação da soberania portuguesa sobre o território do Algarve.

Os sentimentos anticlericais que caracterizam os séculos XIX e XX traduzem-se na secularização ou desaparecimento de alguns templos, fazendo reduzir para vinte e um os cerca de vinte e cinco anteriormente existentes. O saldo histórico apresenta-se, ainda assim, extre­ma­ mente vantajoso para a cidade.

Na orla costeira, as ruínas do Forte de Santo António e a Fortaleza de São João de Cabanas são a memória de um tempo em que o perigo vinha, essencialmente, do mar. Quer o projeto de expansão além-mar, quer a dinâmica da Guerra da Restauração (1640-1668) são responsáveis pelo aparecimento de mecanismos defensivos na costa, tendo em atenção a proteção das pessoas e das pescas face aos constantes ataques de piratas mouriscos ou de corsários encorajados pelos rivais europeus.

É de realçar a riqueza artística acumulada ao longo de séculos nestas igrejas, a pluralidade de estilos, disciplinas e artistas que nelas se encontram. A qualidade dos vestígios góticos e manuelinos da matriz de Santa Maria ou do antigo convento de São Francisco, a elegân­ cia personalizada do renascimento na Misericórdia do mestre André Pilarte, a força do “estilo chão” nas igrejas de São Paulo ou da Graça ou ainda exuberância deco­ rativa dos espaços barrocos do Carmo ou São José, definem em conjunto, nestes ou noutros templos da cidade, todo um percurso sugestivo da arte portuguesa, das suas cambiantes estilísticas e interpretações locais.

Mas não só de fortificações se compõe a arquitetura militar de Tavira. A presença regular de corpos militarizados e a flexibilidade dos engenheiros militares – que amiúde se assumem como arquitetos de todo o tipo de edifícios utilizados pelas tropas – justificam a construção de interessantes equipamentos de apoio. São os casos do antigo hospital militar da rua dos Mouros

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Quartel da Atalaia

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(1761) e do imponente Quartel da Atalaia (1795); sendo ainda de destacar um dos mais distintivos símbolos de Tavira: a ponte antiga sobre o Gilão, concebida segundo modelos da arquitetura militar, fruto da reconstrução de 1657 dirigida por Mateus do Couto e Pedro de Santa Colomba, dois homens ligados ao exército. f ) ARQUITETURA CIVIL Em Tavira o espaço urbano é de raiz medieval e quinhentista mas grande parte dos seus edifícios remonta aos séculos XVII, XVIII e XIX. Apesar de alguns golpes, o casario urbano mantém em boa medida uma imagem consistente do seu passado, devendo merecer todos os cuidados na sua preservação e reabilitação. São inúmeras as qualidades destes edifícios em que a pedra calcária, a cal, a cerâmica, o ferro e a madeira se conjugam para formar volumes plenos de carácter e valor identitário. O século XVI fixa um modelo de casa que perdura sem grandes alterações até ao século XIX com várias notas dominantes e distintivas. Além dos materiais tradicionais, assinale-se a tendência para uma escala humana (2 ou 3 pisos), a composição simples mas aberta a valores eruditos e às novidades depois de alguma transformação local, e ainda uma notória preocupação pela decoração dos vãos, platibandas e chaminés – características dominantes da arquitetura regional. Uma espiral de elementos estruturais e compositivos, de detalhes e características singulares, forma grande parte do interesse e valor da cultura arquitetónica de Tavira. Lembramos as janelas e portas perfeita e ritmicamente alinhadas nas fachadas; o fino lavor de cantarias de vãos com seus ornatos elegantes de épocas distintas; os desenhos das caixilharias ou dos gradeamentos das janelas de sacada; as platibandas, algumas exuberantemente trabalhadas e coloridas… Dentre todas as marcas identitárias há duas de reconhecido destaque. Em primeiro lugar, os tradicionais “telhados de tesoura” – coberturas de quatro águas, francamente inclinadas, revestidas internamente com caniço e externamente com telha de canudo. O seu nome advém da ossatura interna de madeira geralmente chamada tesoura. Dado que, em norma, cada divisão da casa é coberta por um telhado de tesoura é comum observarem-se edifícios com telhados múltiplos, oferecendo ao céu de Tavira uma aparência muito peculiar. Casario com os tradicionais telhados de tesoura (ou tesouro) na zona ribeirinha de Tavira.

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4. Arnaldo Casimiro ANICA, Tavira e o Seu Termo. Memorando Histórico, Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 1993, p. 255.


Daniel Santana / Célia Teixeira 5. Veja-se a este respeito o conhecido estudo “Açoteias de Olhão e Telhados de Tavira (influências orientais na arquitetura urbana)” inserido no livro de Orlando RIBEIRO, Op. Cit., 1992, pp. 53-146.

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Serão um dos derradeiros vestígios da época das grandes navegações, em cujos primórdios Tavira largamente participou 5. Os aventureiros que daqui partiram a apoiar a empresa dos Descobrimentos e da expansão portuguesa descobriram paragens distantes, desde as ilhas atlânticas, passando pelas praias e minas africanas até às formidáveis novidades asiáticas. No regresso, estes emigrantes exibem avidamente a originalidade, a riqueza e a experiência de distintas realidades culturais. E assim, Tavira, porto de partida e chegada de muitas viagens, adota uma forma de cobertura vinda da Ásia das monções e que em nada o clima algarvio justifica. Em Tavira os telhados múltiplos de tesouro chegaram aos nossos dias resistindo ao tempo, às modas e às catástrofes. Fazem parte do património prestigioso da cidade, todavia, são dos mais ameaçados por ruidosas adulterações ou por desuso. Outro destacado elemento característico é o emprego de rotulados de madeira na proteção dos vãos – as tradicionais portas ou janelas de reixa. Traduzem uma preocupação pela ventilação, arejamento e defesa da intimidade da habitação, surgindo por isso, maioritariamente, nos pisos térreos. As suas formas geométricas animam as fachadas. Em Tavira parece ter havido uma maior utilização das reixas relativamente a outras localidades algarvias, razão pela qual são assumidas como marcos culturais da cidade. Apesar disso, hoje são em menor número, sob a ameaça de desuso. A preponderância de uma casa-tipo de Tavira não invalida que na cidade a arquitetura fique alheia aos diferentes contextos cronológicos e movimentos arquitetónicos. Há cambiantes específicas de várias épocas na forma dos vãos, dos gradeamentos ou na aplicação de certos materiais. É sobretudo nos séculos XIX e XX que as mudanças são mais significativas. Como no resto do país, pode referir-se a renovação das formas tradicionais durante o período do Romantismo, no século XIX, através de modelos arquitetónicos ecléticos e exteriores à tradição de habitação mais vernácula. O tema mais corrente remete para o designado chalet. Já o século XX será marcado por soluções dentro da chamada Arte Nova, da “Casa Portuguesa” e do modernismo, destacando-se dentro destas duas últimas correntes, respetivamente, as obras na cidade dos distintos arquitetos Raul Lino e Manuel Gomes da Costa. Independentemente da antiguidade/modernidade ou da erudição/singeleza dos edifícios vem sempre à tona um passado histórico e arquitetónico de qualidade e interesse, que confere à cidade uma personalidade rara no panorama urbanístico português e um excecional campo de estudos. Joga-se hoje o problema da sua autenticidade e

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integridade, sendo importante o empenho dos tavirenses para inverter certos hábitos de reconstrução que desvirtuam a sua leitura. A prática de reabilitações criteriosas e fundamentadas, dando particular atenção à recuperação de materiais e técnicas tradicionais deverá ser sempre o exemplo a seguir. Esta sumária alusão aos valores históricos e patrimoniais de Tavira ajuda a perceber como o museu é a própria cidade. De facto, tão importante como qualquer acervo integrado numa exposição são as ruas, as igrejas, as fortalezas, a estruturação e usufruto das fachadas, os volumes arquitetónicos, materiais e técnicas de construção. EXPERIÊNCIAS DE SALVAGUARDA A consciência cada vez mais clara destes valores, bem como a reação às mutações e intervenções que, quase invariavelmente, causavam estragos no tecido urbano de Tavira, torna-se notória, sobretudo, em finais da década de 60 do século XX, acompanhando a mudança de mentalidades e atitudes em Portugal relativamente a um património até então considerado “menor”. A Câmara Municipal de Tavira, então presidida por Jorge Augusto Correia, revela nesse período um apreciável reconhecimento das características urbanas e arquitetónicas de Tavira, solicitando o apoio de outros organismos públicos para “estabelecer diretrizes no que respeita à estética de prédios a construir nesta cidade”, em razão “desta ser uma das poucas terras do Algarve onde ainda se mantém um tipo de construção que é preciso defender a todo o transe” 6. Manifestou-se particularmente atenta a esta problemática a Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, através do Serviço de Defesa e Recuperação da Paisagem Urbana, criado em 1968. Pressentindo a ameaça na descoberta do Algarve como destino turístico, este serviço, liderado pelo Arquiteto Joaquim Cabeça Padrão, promove o “Estudo de Prospecção e Defesa da Paisagem Urbana do Algarve” (1970), que avança com linhas estratégicas de intervenção em vários centros urbanos algarvios, incluindo a cidade de Tavira. Inspirado nas práticas urbanas realizadas na Europa, este estudo continha já em si um método de análise e levantamento da situação dos núcleos urbanos históricos baseado em fichas individuais para os edifícios e espaços públicos urbanos. Embora não alcançando resultados práticos signi­ficativos, o trabalho terá impacto nos técnicos e na formação dos estagiários que com eles colaboraram, que se tornarão nos autores dos primeiros Planos de Salvaguarda realizados em Portugal durante a década de 80.

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6. Arquivo do Museu Municipal de Tavira, Características Urbanas e Arquitetónicas da Cidade de Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 1967-69.


Daniel Santana / Célia Teixeira 7. José Manuel Ressano Garcia LAMAS, “O Plano Integrado de Reabilitação e Revitalização do Centro Histórico de Tavira”, in III Jornadas de História de Tavira, Tavira, Clube de Tavira, 1997, p. 82. 8. Idem, ibidem.

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O primeiro planeamento profundo e orientado para a preservação do centro histórico de Tavira decorrerá das conclusões tiradas do Plano de Urbanização de inícios da década de 80, ao verificar-se a excecional qualidade daquele e os processos de destruição e desqualificação a que se encontrava sujeito. O “Plano Integrado de Reabilitação e Revitalização do Centro Histórico de Tavira”, elaborado entre 1984 e 1989 pelo atelier “Carlos Duarte, José Lamas, Estudos de Planeamento e Arquitectura, Ld.ª”, por encomenda da Direção Geral do Ordenamento do Território, constitui um dos primeiros Planos de Salvaguarda realizados em Portugal, fornecendo numerosa informação sobre a cidade, a sua arquitetura e história, os seus monumentos e edifícios. O estudo apresenta um vasto e pormenorizado inven­tário dos espaços urbanos, dos edifícios, dos pormenores e dos vários processos construtivos que formam o centro histórico de Tavira. Propõe-se fornecer os instrumentos técnicos e operativos de intervenção na área histórica, prolongando, aperfeiçoando e pormenorizando as indicações do regulamento do Plano Geral de Urbanização (P.G.U.), criando um método de trabalho que garantisse a reabilitação urbana. A equipa que realizou o plano, liderada pelo Arq.º José Lamas, apoiou a autarquia durante alguns anos, assistindo-a e dando-lhe pareceres, conselhos, promovendo também ações de sensibilização junto da população, dos responsáveis autárquicos e da administração, destacando-se a promoção de uma visita dos técnicos da UNESCO e do ICOMOS, bem como a divulgação nos meios de comunicação da importância e qualidade do centro histórico de Tavira. Quando se iniciou o plano, em meados da década de 80, a cidade estava quase intacta na sua estrutura antiga e mais de 80% dos edifícios eram anteriores ao século XX. Era, no entender de José Lamas, uma “cidade cuja qualidade patrimonial podia rivalizar com Évora ou Óbidos” 7. O balanço efetuado pelo arquiteto mais de uma década após o início do plano não era, contudo, otimista: “Verifico, com tristeza, que o centro histórico da cidade tem continuado a degradar-se e que, se não existir um processo enérgico de inversão desta destruição, dentro de uma década ou duas a cidade estará também irreconhecível” 8. As razões que impediram que o plano tivesse uma ação mais profunda eram, segundo Lamas, os limites do mesmo, que não abrangiam a totalidade da zona identificada como centro histórico por falta de vontade da Direção Geral dos Equipamentos e Reabilitação Urbana e do município; a amenização das restrições à utilização de materiais desadequados, às demolições e obrigações dos proprietários e promotores privados;

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a falta de constante interpretação, atualização e complemento do mesmo plano; a extinção do Gabinete Técnico Local criado na primeira metade da década de 90, exclusivamente destinado a tratar do centro histórico e dotado de quadros qualificados para prosseguir as propostas do plano, controlar e ajudar todas as obras particulares; a fraca captação de investimentos para equipamentos e funções regeneradoras do centro histórico (capaz de restaurar conjuntos monumentais, localizar equipamentos culturais e turísticos, e realojar famílias, evitando a perda de população residente); as fracas exigências no licenciamento de obras particulares relativamente à manutenção das características do centro histórico; a demolição de edifícios substituída por imitações caricaturais; e por fim, e mais grave, a falta de aprovação do Plano, passados 15 anos, retirando-lhe eficácia e força legal.

9. Entre outros, destacam-se os casos da igreja e convento de Nossa Senhora do Carmo, da igreja de São Pedro Gonçalves Telmo, da ermida de Nossa Senhora da Consolação, da igreja matriz da Luz de Tavira ou das casas projetadas por Raul Lino na Avenida Mateus Teixeira de Azevedo.

O período que se seguirá a este balanço será marcado por um renovado interesse dos responsáveis locais em estabelecer ações estratégicas para a defesa do centro histórico. Em finais da década de 90 é criado, novamente, o Gabinete Técnico Local, depois integrado no Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal sob a forma de Divisão de Património e Reabilitação Urbana (D.P.R.U.), com o objetivo de dar sequência à estratégia de intervenção descrita no plano de salvaguarda. Esta divisão desenvolveu uma ação na assistência técnica e controlo dos projetos e obras do centro histórico, com recurso a uma equipa interdisciplinar, assegurando a interpretação e cumprimento das regras estabelecidas no Plano Geral de Urbanização. Neste plano, os serviços municipais prestaram apoio aos particulares, consolidando-se a prática da discussão prévia e a garantia de que as propostas de construção ou reabilitação levassem em conta os pontos considerados ao nível regulamentar e administrativo. A par com a atuação da DPRU, o município desenvolverá um esforço de salvaguarda dos imóveis notáveis, quer garantindo a sua proteção legal, através da abertura e instrução de processos de classificação; quer investindo diretamente ou criando condições para a sua reabilitação, gerando uma dinâmica de revitalização patrimonial e cultural, que se estendeu aos espaços públicos. Instruíram-se neste período, por iniciativa municipal, vários processos de classificação nos termos da Lei de Bases do Património Cultural (Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro), não só no centro histórico, mas em todo o concelho 9. Para além dos condicionalismos de salvaguarda impostos aos próprios imóveis, foram estabelecidas zonas de proteção em seu torno, reforçando-se o controlo do ambiente urbano em termos de construção, distribuição de volumes e coberturas, revestimento exterior dos edifícios, etc.

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Ermida de Santa Ana, antes e depois das obras de reabilitação (2006)


Daniel Santana / Célia Teixeira 10. D entro dos trabalhos que incidiram sobre a requalificação de imóveis e espaços públicos, assinalem-se ainda como exemplos a divulgação de incentivos à realização de obras de conservação e recuperação, a eliminação das infraestruturas elétricas e telefónicas das fachadas dos edifícios da Vila-a-Dentro e a requalificação de arruamentos, incluindo a criação de parques de estacionamento periféricos. Cfr. AAVV, Tavira Vila Antiga, Cidade Renovada, Câmara Municipal de Tavira, 2005. 11. Como é evidente, este pro­cesso é longo e exige controlo e participação dos munícipes no que estiver ao seu alcance. A colocação descontrolada de toldos, pendões e outros suportes publicitários sobre as fachadas é sem dúvida um dos elementos que maior peso têm na deformação da imagem quer dos edifícios, quer do seu conjunto. Por esse motivo, a sobriedade e a normalização consagradas na regulamentação municipal e nacional devem ser respeitadas o mais possível por forma a manter a leitura dos valores arquitetónicos.

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Saliente-se o conjunto muito significativo de intervenções de reabilitação do património arquitetónico e dos espaços públicos, de que se destacam o Palácio da Galeria, a ermida de Santa Ana, o antigo convento de Nossa Senhora da Graça, a ermida de São Sebastião, o edifício Cabreira (Arquivo Municipal), o edifício Irene Rolo, o edifício André Pilarte, o antigo reservatório de água e estação elevatória ou, mais recentemente, o edifício do núcleo islâmico do Museu de Tavira, entre outros. No caso do património religioso, muitas destas intervenções ocasionaram, também, a realização de obras de conservação e restauro do património móvel e integrado 10. Ao nível da regulamentação, procurou-se ordenar aquilo que, sendo privado, se constitui em poluição visual pública sem qualquer tipo de controlo, através da publicação dos regulamentos municipais de publicidade e de ocupação do espaço público 11. Por outro lado, é de assinalar a importância que a arqueologia assume na cidade a partir de meados da década de 90, com destaque para a atividade dos arqueólogos Maria Maia e Manuel Maia, da associação Campo Arqueológico de Tavira e, posteriormente, do Serviço de Arqueologia, Conservação e Restauro, serviço municipal criado em 2001 e integrado na DPRU. A atividade das equipas de arqueologia acompanhou o crescente volume de intervenções na cidade e permitiu trazer à luz do dia estruturas e objetos tão paradigmáticos como um troço de muralha fenícia (séc. VII-VIII a.C., na calçada D. Paio Peres Correia) ou o famoso Vaso de Tavira, de época islâmica (século XI-XII), bem como aportar uma série de conhecimentos inéditos sobre a história mais remota da cidade. Foi também patente a intenção da autarquia em estabelecer relações nacionais e internacionais de cooperação no âmbito da cultura, nomeadamente, com outras cidades europeias interessadas na valorização do património e na partilha de projetos de desenvolvimento cultural comum, casos da Rede AVEC - Alliance des Villes Européennes de Culture, do movimento Cittaslow ou da Associação Portuguesa de Municípios com Centro Histórico. Hoje, as problemáticas que envolvem o centro histórico de Tavira não são muito diferentes de outras cidades portuguesas e europeias. Deparamo-nos com as questões do estado de conservação dos imóveis e espaços públicos, de algumas intervenções desqualificadoras, das condições de habitabilidade, das questões económicas, da mobilidade e acessibilidade. Os desafios são imensos e as perspetivas não são risonhas face à crise económica. Não obstante os mecanismos criados pela legislação para agilizar a

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prática da reabilitação urbana, a parca disponibilidade financeira tem limitado a implementação das intervenções no terreno. Exemplo disso são os mecanismos expressos para a delimitação das Áreas de Reabilitação Urbana (no âmbito do Decreto-Lei n.º 307/2009 de 23 de outubro), tendo o município de Tavira aprovado recentemente a Estratégia de Reabilitação Urbana, para assim dar continuidade ao trabalho desenvolvido no centro histórico nos últimos anos. Será, acima de tudo, necessário fazer compreender a todos que um centro histórico reabilitado, uma paisagem urbana de qualidade, são fatores de desenvolvimento local e um formidável atrativo turístico. Como diria José Lamas, “não se faz turismo na Reboleira ou na Amadora e, consequentemente, a destruição do património de Tavira significa a quebra de boa parte do seu atrativo turístico” 12. VISÃO Perante a riqueza patrimonial e identidade cultural acima evidenciada será de eleger como objetivos todas as ações que apontem para a seguinte visão ideal a longo prazo:

• Tavira manterá a identidade cultural e melhorará o seu excecional valor patrimonial;

• Praticará e promoverá uma gestão sustentada e a compreensão das qualidades únicas do seu património; • Será um centro de excelência para a gestão e conservação do património, baseado na fundação de parcerias e alianças com a comunidade e organismos locais, nacionais e internacionais; • Tavira conservará e protegerá os seus aspetos culturais para a presente e futuras gerações; • Tavira será acessível e aprazível para todos, uma cidade que compreenderá e celebrará os seus valores e atmosfera cultural e patrimonial; • Tavira será uma cidade próspera que usará o seu valor e estatuto patrimonial para suportar e fortalecer a comunidade local. Terminamos com nova referência às palavras de Mário Lyster Franco. Consciente ou inconscientemente, este autor foi verdadeiro quando associou um passado “não

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12. C arlos DUARTE, José LAMAS – Estudos de Planeamento e Arquitectura, Lda, Plano de Reabilitação e Salvaguarda do Centro Histórico de Tavira, Vol. I, Direcção Geral do Equipamento Regional e Urbano, 1985, p. 4. Como metodologia base a seguir José Lamas aponta, não apenas a elaboração de es­tu­­­dos e regulamentos, e o seu rigo­roso cumprimento, mas também três componentes fundamentais: 1. A melhoria da qualidade dos técnicos, dos projetos e obras a executar no centro histórico; 2. A intervenção e acom­ panhamento técnico pela autarquia de todas as obras de iniciativa particular e con­se­­quente ação de fiscalização; 3. A intervenção pública e municipal com investimentos no parque imobiliário, nos conjuntos monumentais e espaços públicos, melho­­­­rando simultaneamente a habitação, criando melhores serviços e equipamentos e constituindo exemplo didático a seguir. Cfr. Idem, ibidem, p. 4.


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susceptível de voltar” com uma “terra condenada”. É cada vez mais claro que para salvar Tavira da “condenação” terá que se manter a aposta na preservação e “regresso” (estudo, interpretação, conservação e divulgação) do seu passado, traduzido nos valores culturais e paisagísticos que este nos legou. A cidade será mais próspera se usar o seu valor e esta­tuto patrimonial para fortalecer a comunidade local. Cabe ao museu municipal um papel importante nes­sa missão: assegurar que os aspetos culturais e patri­­­moniais da cidade sejam compreendidos, protegidos e sustentados.

Urbana. Consultado a 28 de Dezembro de 2011: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/ SIPA.aspx?id=10025

A Cidade do Museu

Carlos DUARTE, José LAMAS – Estudos de Planeamento e Arquitectura, Lda, Plano de Reabilitação e Salvaguarda do Centro Histórico de Tavira, 3 vol., Direcção Geral do Equipamento Regional e Urbano, 1985-1989. CORREIA, José Eduardo Horta, “A Arquitectura do Renascimento em Tavira”, in AAVV, Actas das I Jornadas de História de Tavira, Tavira, Clube de Tavira, 1992. CORREIA, José Eduardo Horta, O Algarve em Património, s.l., Gente Singular Editora, 2010.

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RIBEIRO, Orlando, Geografia e Civilização. Temas Portugueses, 3ª edição, s.l., Livros Horizonte, 1992.

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Calvário e Santa Ana Mestra Século XV Atribuído à Oficina de Nottingham (Inglaterra) Alabastro 54cm alt. x 28cm larg. x 6cm prof. (Calvário);

Estas duas peças pertencem ao numeroso grupo de esculturas inglesas em alabastro que se encontram em Portugal – cerca de 50 peças datadas entre finais do século XIV e século XV. Os laços político-económicos desde cedo estabelecidos entre Portugal e a Inglaterra favoreceram a encomenda destas obras de arte, cujo centro de produção atribui-se normalmente à cidade de Nottingham, no centro de Inglaterra, região onde se concentravam as principais oficinas e minas de alabastro. A produção era do tipo oficinal e incluía esculturas de vulto, túmulos, placas individuais e retábulos, aproveitando as propriedades do alabastro, um mineral composto por sulfato de cálcio, normalmente branco e translúcido, de pouca dureza, o que o torna fácil de trabalhar. A larga aceitação destas esculturas motivou a sua produção em série, recorrendo a temas universais, a iconografias repetitivas e ao tratamento simples da maior parte das esculturas, pese embora não se encontrem dois alabastros perfeitamente iguais. A placa representando o Calvário encontrava-se colocada sobre o arco triunfal da ermida de Santa Margarida desde a primeira metade do século XVIII, desconhecendo-se a sua anterior localização. Foi dali retirada em 2006, por se encontrar em risco de queda, integrando hoje o museu paroquial da igreja matriz de Santa Maria.

92cm alt. x 38cm larg. x 11cm prof. (Santa Ana Mestra) Ermida de Santa Margarida, Paróquia de Santa Maria do Castelo Tavira. (Calvário)

Desconhece-se se faria parte inicialmente de um conjunto maior, um retábulo da Paixão de Cristo, que seria composto por outras placas de características similares enquadradas por uma estrutura em madeira entalhada, ou se, por outro lado, sempre foi destinada para ser colocada sobre o arco triunfal de algum templo. Numerosas notícias documentais de visitações eclesiásticas dos finais da Idade Média dão conta da colocação habitual do tema do Calvário no acesso às capelas-mores, de modo a permitir que toda a assembleia cristã tivesse a visão suprema e piedosa do sacrifício de Cristo, tal como veio a suceder com esta peça na ermida de Santa Margarida.

Museu Municipal de Faro (Santa Ana Mestra)

A iconografia deste Calvário segue uma tipologia que, com poucas variações, encontramos fixada em grande parte desde o século XIV. No presente caso, a composição em baixo e médio relevo define-se a partir de uma cruz de Tau (cruz romana do suplício), que apresenta Cristo crucificado, coroado de espinhos e aureolado, ladeado à direita pela Virgem e à esquerda por São João Evangelista, ambos coroados por auréolas lisas. São João segura um livro e uma palma, seus atributos. Três anjos recolhem os santos fluídos de Jesus em três cálices: um junto a cada um dos braços e um terceiro anjo, alado, junto aos pés de Cristo. Este conserva o calor da vida através dos

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seus fluídos: o Sangue (ligado à Eucaristia), que devidamente recolhido conduz à Salvação e à Vida Eterna, ato simbolicamente perpetrado nesta representação artística pelos anjos munidos de cálices (tema que surge no século XIV, inspirado na crença de anjos que recolhiam numa toalha imaculada a alma dos mortos).

da filha”. A circunstância traduz-se não só na existência de uma ermida medieval dedicada à Mãe de Maria, mas também na capela que se achava instituída em sua honra no extinto convento de São Francisco e ainda no número de imagens religiosas realizadas nesse período, decerto justificadas pela intensidade e difusão do culto. Assinale-se, para além desta, a imagem quatrocentista da ermida de Santa Ana de Tavira, bem como a imagem quinhentista das Santas Mães exposta na igreja de São Francisco, a qual se venerava, presumivelmente, na capela de Santa Ana da extinta igreja conventual.

A verticalidade da composição é acentuada pela sobreposição das figuras, cujos rostos recebem um tratamento convencional – próprio da escultura medieval inglesa em alabastro. A carga emocional é mais patente na gestualidade dos intervenientes: Cristo está morto, pende a cabeça para a sua direita, a Virgem parece absorta e ausente da cena, mas as mãos apertadas junto ao peito traduzem a sua inquietação interior, enquanto São João ampara a dor ao encostar a mão direita ao rosto dirigido a Cristo.

Em termos iconográficos é aqui ressaltado o tema de Santa Ana Mestra, criado no século XII-XIII, possivelmente em Inglaterra, enfatizando o papel de Ana na infância e educação de Maria.

Proveniente de Tavira, para além deste Calvário, é também a escultura de vulto de Santa Ana Mestra (século XIV), em alabastro de Inglaterra. Desconhece-se o seu percurso até ao século XIX, achando-se então no convento de Nossa Senhora do Carmo de Tavira, construção iniciada no século XVIII, tendo daí transitado para o Museu Arqueológico e Lapidar Infante D. Henrique, hoje Museu Municipal de Faro.

Não resistimos à tentação de associar estas duas peças ao conhecido protagonismo de Tavira no circuito comercial que liga o Mediterrâneo à Mancha durante a Idade Média e nos séculos subsequentes. Além dos bens de primeira necessidade, chegariam também uma série de objetos manufaturados provenientes do estrangeiro, cuja encomenda era motivada por razões menos utilitárias, neste caso, devocionais, prenunciando de alguma forma a elevadíssima dinâmica comercial ultramarina que a cidade irá conhecer nos séculos XV e XVI.

Em Tavira é reconhecida a aceitação do culto de Santa Ana durante a Idade Média, porventura inflamado pela presença na cidade dos franciscanos, grandes defensores e difusores do dogma da conceção virginal de Maria. Neste âmbito, o culto de Santa Ana, mãe de Maria, servia de argumento em favor da doutrina, ou seja, “a pureza da mãe confirmava a ausência de pecado na conceção

Note-se, ademais, que o número de igrejas tavirenses recém-construídas, e/ou em construção durante o século XV, estimulava a produção local e a importação de imagens devocionais para os seus altares. [DS]

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FONTES E BIBLIOGRAFIA: - AAVV, O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal [1300-1500], s.l., Instituto Português de Museus, 2000. - ALLER, Samantha Coleman, “Coroação da Virgem”, Casa-Museu Medeiros e Almeida. Consultado a 20 de Janeiro de 2012: http://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/ - COSTA, Paula Maria de Carvalho Pinto, “Tavira nos Séculos XII ao XV – a ocupação cristã”, in AAVV, Tavira Território e Poder, s.l., Museu Nacional de Arqueologia – Câmara Municipal de Tavira, 2003, pp. 183- 204. - “Crucificação”, Palácio Nacional da Pena, MatrizNet, Consultado a 20 de Janeiro de 2012: http://www.matriznet.imc-ip.pt/MatrizNet/ Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=1011951 - LAMEIRA, Francisco, A Talha no Algarve Durante o Antigo Regime, s.l., Câmara Municipal de Faro, 2000. - SANTANA, Daniel; e PEREIRA, Jorge Justo, “Subsídios para o estudo da escultura quatrocentista portuguesa: a imagem de Santa Ana de Tavira à luz do exame de tomografia computorizada”, in Artis – Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, n.º 9/10, 2010-2011, pp. 133-152.

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Esfera armilar e Fragmentos de arco manuelino

Entre 1500 e 1530 Calcário 36cm largura x 52cm alt. x 34cm prof. (Esfera); 133cm larg. x 38,5cm alt. x 18cm prof. (fragmento I); 89cm larg. X 35cm alt. x17cm prof. (fragmento II) Tavira, Jardim de São Francisco MMT2; MMT2037; MMT2038.

O conjunto de cantarias aqui expostas são exemplos das importantes marcas que o século XVI e o estilo manuelino em particular deixaram na arquitetura de Tavira. São também um reflexo da larga sucessão de calamidades – sismos, destruições, adulterações, etc. – que ao longo dos séculos depauperaram o perfil monumental da cidade e não permitiram que mais testemunhos do século XVI chegassem íntegros e in situ até aos nossos dias. Com efeito, conforme assinala Vítor Serrão, deparamo-nos em Tavira com um contrassenso: “face à lição documental (…) que nos pinta no século XVI uma cidade progressiva, artisticamente rica, animada de arquitectura visualmente marcante (…), subsiste tão-só uma pequena parcela dos testemunhos artísticos referenciados” 1. Alguns destes testemunhos, como os que se apresentam, chegam até nós de forma fragmentária e descontextualizada, conservando-se em função da sua recolha para o espaço de reservas do museu. Indiciam a profícua atividade construtiva das primeiras décadas do século XVI, um período em que cresce a intensidade da vida urbana de Tavira em virtude do grande crescimento económico e demográfico que se verifica. A importância do porto, e consequentemente, da vila atrai população e impulsiona a construção de novas áreas urbanas. Sendo Tavira a “porta de entrada” para o Norte de África – o Algarve d’além mar –, e que importantes trabalhos arquitetónicos foram desenvolvidos nesse continente, facilmente se conclui que por aqui passaram inúmeros pedreiros trazendo com eles o vocabulário manuelino. Aliás, a importância estratégica de Tavira no reinado de D. Manuel I (1495-1521) e o apreço deste monarca pela vila, que por ele veio a ser elevada a cidade em 1520, foram razões suficientes para que a urbe fosse contemplada por uma inusitada atenção por parte da coroa, quer em matéria burocrática e administrativa, quer no mecenato régio a alguns importantes empreendimentos arquitetónicos, caso do convento de Nossa Senhora da Piedade (ou das bernardas). Em muitos destes edifícios a iniciativa régia é acusada pela assídua e simbólica presença das armas régias, mais concretamente, da esfera armilar, emblema pessoal do rei. A importância da heráldica não para de aumentar nesta época, em especial na

1. Vítor SERRÃO, “O contexto artístico de Tavira quinhentista”, in AAVV, Tavira Território e Poder, (catálogo de exposição), Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia – Câmara Municipal de Tavira, 2003, p. 222.

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arquitetura, em virtude do valor que a corte atribuía à sua eficácia retórica enquanto representação do poder e sinal distintivo da nobreza. Algo que o reinado do Venturoso acentua, tendo como pano de fundo a evolução do projeto absolutista da monarquia, a nova situação política de Portugal, face à Europa e o mundo, em função do sucesso do comércio exclusivo com o Oriente, bem como a preocupação do monarca na afirmação do seu poder após uma inesperada subida ao trono. Os edifícios cuja construção ou melhoramento obedeceu à iniciativa régia começam a receber o emblema pessoal do monarca nas suas fachadas, com a cruz de Cristo e o escudo real, oferecendo-se repetidamente ao público de uma maneira ostentadora. Tavira mantém sete destas esferas armilares quinhentistas: duas na porta de D. Manuel I, uma na igreja de São Pedro Gonçalves Telmo, duas na igreja da Misericórdia e mais outras duas que se encontravam inscritas num dos muros do jardim de São Francisco, uma das quais corresponde à que aqui se exibe. Supomos que pertenciam à antiga Casa da Câmara e cadeia velha, obra iniciada no reinado de D. Manuel I, situada na rua Nova Grande (atual rua da Liberdade) e demolida por volta de 1930. Ali funcionaram os paços do concelho até ao século XVII. Em fotos anteriores à demolição observa-se a presença na fachada do escudo-coroa ladeado pelas duas esferas armilares que cremos terem transitado depois para o referido jardim de São Francisco.

Para além dos elementos já referidos, são também expostos dois fragmentos de uma porta com arco contracurvado, intradorso decorado por óvulos e arquivolta superior decorada por composições estilizadas de motivos florais muito característicos, idênticos aos que se encontram noutras molduras manuelinas da região. Pertenceram a uma habitação nobre, já desaparecida, sendo posteriormente transportados para o jardim de São Francisco, de onde foram resgatados. Ao contrário das molduras quinhentistas que permanecem in situ em alguns edifícios do centro histórico, não é possível determinar a sua proveniência exata. No entanto, as dimensões dos fragmentos e o lavor decorativo que apresentam são o reflexo do melhor que manuelino terá deixado na arquitetura civil tavirense. São também o exemplo da importância que as portas (e as janelas) assumem neste período construtivo, por ser aí que arquitetos ou simples pedreiros podem, com maior liberdade, dar asas à sua criatividade. A maior inflamação decorativa destes elementos era diretamente proporcional à posição socioeconómica dos seus proprietários, o seu distintivo e o seu orgulho. [DS]

O modelo desta esfera repete-se amiúde nas composições escultóricas da arquitetura manuelina. Segue o exemplo das representações das esferas dos matemáticos: centrada num eixo, circunscrita por cinco anéis paralelos, três faixas verticais e uma transversal, correspondendo ao Equador, trópicos, círculos polares, meridianos e eclíptica. Note-se que o canteiro apenas deu forma a metade da esfera, deixando a outra metade da rocha em bruto, correspondendo à parte destinada a ficar oculta e embutida no plano da fachada. Esta particularidade coloca em evidência o temperamento arquitetónico deste trabalho escultórico.

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Capitel / Fragmento de Cruzeiro

Este capitel achava-se há alguns anos no Jardim de São Francisco constituindo o remate de um insólito “pelourinho” cuja base era composta por um capitel coríntio, de época romana, colocado em posição invertida, e por um fuste liso, elementos reaproveitados de distintas épocas.

Entre 1400 e 1500 Calcário 49,5 cm x 43,5 cm Jardim de São Francisco, Tavira. MMT2285

Apresenta várias figuras de santos trabalhados em baixo-relevo e enquadrados superiormente por uma sequência de arcos conopiais e polilobados, cujo recorte aponta para uma cronologia de meados do século XV. Refere Carla Varela Fernandes que “a disposição das figuras, bem como o enquadramento arquitectónico, formado por arcarias separadas por torres e pináculos, remetem para uma tradição decorativa bem assente no território nacional, especialmente relacionável com a decoração das arcas tumulares, desde meados do século XIII” 1. A prolongada exposição desta peça aos agentes atmosféricos provocou a sua erosão, que hoje dificulta a perfeita visualização dos atributos da maioria dos santos e respetiva identificação iconográfica. Realce-se, no entanto, apesar da organização simples das figuras, o dinamismo transmitido pelo rendilhado tardo-gótico da arcaria e pelas roupagens dos santos, marcadas por pregas verticais e oblíquas profundamente cavadas. É igualmente de destacar o facto, raro na região de Tavira pelos poucos exemplares remanescentes, de se romper com a tradição quase exclusivamente vegetalista dos capitéis medievais, como também com o distanciamento da iconografia bíblica e hagiográfica. A origem desta peça permanece uma incógnita, podendo estar associada ao desmantelamento de algum espaço claustral de Tavira ou, mais provavelmente, de acordo com pesquisas recentes conduzidas por Marco Sousa Santos, tratar-se-á de um fragmento de um antigo cruzeiro medieval. [DS]

1. Carla Varela Fernandes, “Capitel de Pelourinho”, in AAVV, Tavira Território e Poder, catálogo de exposição, Museu Nacional de Arqueologia – Câmara Municipal de Tavira, 2003, p. 316.

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Cofre e estante de missal namban

Século XVI-XVII (1550-1650). Japão Madeira lacada de negro, pó de ouro e prata, madrepérola, cobre (cofre); madeira lacada de negro, pó de ouro e prata, madrepérola (estante de missal). 15 alt. x 23 larg. x 13 prof. cm (cofre); 46 x 31 x 32 cm (estante de missal) Tavira. Igreja de Santa Maria do Castelo Paróquia de Santa Maria de Tavira

A conjuntura favorável em termos comerciais, mercantis e sociais que envolve Tavira entre os séculos XV e XVI não tardou em estabelecer correspondência com o processo artístico, não só imprimindo à cidade um cunho renascentista ao gosto italiano de grande modernidade – expresso nas obras arquitetónicas erigidas pelo mestre André Pilarte –, mas também proporcionando excecionais condições para o consumo e aquisição de bens materiais a uma escala global. É tanto assim que no foral datado de 1504 surgem referências a panos vindos de Inglaterra, da Flandres e de Castela, havendo igualmente menção a loiça vidrada e não vidrada e a “mármore de levante”. Se, no âmbito dos circuitos comerciais e artísticos europeus, a importação de cerâmica espanhola e italiana é confirmada através das campanhas arqueológicas, também nas igrejas é possível reconhecer a presença de algumas esculturas importadas do Norte da Europa, designadamente, as imagens da Virgem com o Menino (ou Virgem do Leite), atualmente no museu paroquial da igreja de Santa Maria, e a imagem de Nossa Senhora das Ondas, da igreja de São Pedro Gonçalves Telmo. Quer os panejamentos, como a fisionomia dos rostos destas figuras, apontam para uma origem flamenga, ou luso-flamenga, em especial relação com as tipologias das oficinas de Malines, que tanto apreço conheceram em Portugal. É ponto assente que o comércio internacional estava aberto para o Algarve, e muito particularmente para Tavira, terceira cidade costeira de Portugal, apenas antecedida por Lisboa e Porto, proporcionando ligações que foram além dos circuitos mercantis europeus, tendo ultrapassado os horizontes do Magreb e mesmo do Golfo da Guiné. A atestar essa relação com longínquos territórios ultramarinos está a própria arquitetura, nomeadamente, os tradicionais “telhados de tesoura” que ainda hoje marcam a paisagem urbana tavirense, e cuja tipologia foi fortemente influenciada pelas coberturas que os portugueses encontraram na “Ásia das Monções”. No campo artístico há necessariamente que fazer menção a objetos que chegaram, fruto dos contatos e às contaminações de culturas derivadas da expansão portuguesa para Oriente. Apesar de serem raros os espécimes que subsistem em Tavira, há indícios de sensibilidades locais que admiravam o exotismo, a tecnologia e os materiais presentes nos bens de proveniência longínqua. Da chamada arte indo-portuguesa há registos manuscritos que atestam a presença de um cofre de tartaruga com cadeinhas de prata na igreja do convento da Graça, o qual os frades agostinhos mandam concertar em finais do século XVII, calculando-se por isso a sua datação anterior.

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De mais longe ainda, do extremo limite do Estado da Índia – o Japão –, chegam-nos estas duas peças verdadeiramente sui generis incluídas na designada arte namban. São uma estante de missal e um cofre que se guardam atualmente no museu paroquial da igreja de Santa Maria do Castelo, correspondendo provavelmente a encomendas efetuadas no período de permanência dos portugueses naquele arquipélago (c. 1543-1639). O termo “namban”, ou “namban-ji”, significa “bárbaros do sul” e corresponde ao nome dado pelos japoneses aos ocidentais, identificando também os bens artísticos produzidos no Japão para o comércio com a Europa. A belíssima estante de missal, acusando algumas falhas de desgaste, é formada por pranchas cruzadas, fechando em tesoura de influência islâmica, sendo os pés definidos por recorte polilobado. A face é moldurada e preenchida com embutidos de madrepérola e elementos geométricos em pó de ouro e prata, destacando-se ao centro um sol radioso que circunda as iniciais IHS – abreviatura de IHΣOY (Jesus) – emblema da Companhia de Jesus. Além da extrema minúcia patente na confeção desta peça, realce-se a miscigenação cultural e artística que vai desde a reminiscência da estante de origem islâmica – rhal –, passando pelo referente ocidental e católico (o IHS central), até aos ecos da arte nipónica que sobressaem, sobretudo, no reverso preenchido por enrolamentos de kuzu (feijoeiro do Japão) e hastes floridas. Por sua vez, o cofre, em forma de baú, com a característica tampa abaulada e articulada, apresenta a superfície de madeira lacada a negro e o fundo decorado com incrustações de madrepérola de recorte geométrico. Assumindo maior destaque estão as decorações que ocupam os registos centrais e as ilhargas, sendo estas delimitadas por contornos ondulantes, onde se inscrevem motivos vegetalistas e florais recorrentes na ornamentação nipónica (tangerineira, cerejeira, boninas, cameleira e acer). Na tampa distingue-se a figura de um animal entre a vegetação (possivelmente uma cabra). A mesma minúcia de execução estende-se às ferragens, particularmente trabalhadas, apresentando a asa achatada e as respetivas rosetas e botões em forma de crisântemos estlilizados; e o ferrolho e espelho com recortes “em borboleta” e elementos flordelizados a que se juntam, inferiormente, cabeças de animais vistas de perfil.

FONTES E BIBLIOGRAFIA: - Arquivo Distrital de Faro, Direção de Finanças do Distrito de Faro, Livros de Registo de Receitas e Despesas de Conventos no Algarve, Nossa Senhora da Graça dos Eremitas Calçados da Ordem de Santo Agostinho de Tavira. Registo de despesas, Livro n.º 213, 1687-1696. - CURVELO, Alexandra, e PAIS, Alexandre, “Ecos do Norte e do Levante. Tavira na intercepção de rotas comerciais e artísticas nos séculos XV-XVIII”, in AAVV (Coor. Jorge Queiroz e Rita Manteigas), Tavira, Patrimónios do Mar, Câmara Municipal de Tavira, 2008, pp. 94-105. - CURVELO, Alexandra, “Cofre namban”, in AAVV (Coor. Jorge Queiroz e Rita Manteigas), Tavira, Patrimónios do Mar, Câmara Municipal de Tavira, 2008, pp. 232-234. - CURVELO, Alexandra, “Estante de missal namban”, in AAVV (Coor. Jorge Queiroz e Rita Manteigas), Tavira, Patrimónios do Mar, Câmara Municipal de Tavira, 2008, pp. 235-237. - FERNANDES, Carla Varela, “Virgem com o Menino (ou Virgem do Leite)”, in AAVV, Tavira, Território e Poder, Museu Nacional de Arqueologia – Câmara Municipal de Tavira, 2003, p. 331. - SERRÃO, Vítor, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620), Lisboa, Editorial Presença, 2001.

Não sendo evidente na decoração, é certo que esta peça esteve sempre associada a um contexto religioso, apontando-se para uma utilização enquanto cofre eucarístico, idêntica ao do referido cofre indo-português do convento da Graça. [DS]

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Epígrafe da Porta da Alfeição da Muralha de Tavira

1273 (1311 da Era Hispânica) Calcário 42 cm alt. x 53cm larg. Jardim de São Francisco, Tavira MMT2288 Era Mª CCC XI DOMINVS REX ALFOnsus/ PORTugalie et ALGarBII V’ [quintus] REX BONVS / ET FORTIS TAm In ARMIS QuaM In IVS/ TICIA MANDAVIT FACERE ISTAm / PORTAM PETRO MaRtiNI SVO CAS/TELLARIO M(agister) MaRtiNI NOTAVIT

Esta inscrição assinala a construção da antiga porta da Alfeição da muralha de Tavira em 1273 (1311 da Era Hispânica) por ordem de D. Afonso III (1248-1279). Nesta são identificados Pedro Martins, casteleiro do monarca em Tavira, que executou a decisão régia, bem como Mestre Martins, notário, que redigiu o texto da inscrição. Apesar do texto lacónico, esta epígrafe encerra um testemunho de grande interesse para a história de Tavira e de Portugal, admitindo várias perspetivas de contextualização. Destacamos, em primeiro lugar, o modo laudatório como D. Afonso III (quinto rei de Portugal) é aqui designado: “REX BONVS ET FORTIS TAm In ARMIS QuaM In IVSTICIA”, ou seja, um rei bom e forte tanto nas armas como na justiça. Trata-se de um elogio que não podia ser mais indicativo, atendendo às circunstâncias especiais em que o monarca assume a coroa. Com efeito, como filho secundogénito de Afonso II e D. Urraca a coroa não estava inicialmente destinada ao infante Afonso. O trono foi-lhe confiado na sequência de uma sangrenta guerra civil (1245-1248) que derrubou o seu irmão, D. Sancho II. A pedido de vários sectores da sociedade, Afonso, Conde de Bolonha, regressou de França e assumiu a coroa depois de ter feito o “Juramento de Paris” (1245), onde se comprometeu a acabar com o clima de anarquia e a repor a ordem e a justiça em Portugal. Pouco tempo após a sua coroação, este monarca assiste à conquista de Faro, encerrando o processo de Reconquista no território nacional. Tendo o monarca alcançado a desejada estabilização politica e militar do reino, assume maior clareza o elogio perpetrado nesta epígrafe, um rei “bom e forte, tanto em armas como em justiça”. Em segundo lugar, é interessante analisar o contexto cronológico em que esta inscrição se insere. A epígrafe data de 1273, 29 anos após a conquista de Tavira protagonizada por D. Paio Peres Correia e pelos cava-leiros da Ordem de Santiago. Em reconhecimento por este feito, D. Sancho II doa a povoação aos espatários em 1244. Mesmo depois de assinado o Tratado de Badajoz (1267), que resolveu o diferendo entre as coroas de Portugal e de Castela pela soberania do Reino do Algarve, a doação de Tavira, juntamente com outras posses algarvias, à Ordem de Santiago mantinha-se válida, facto que colidia com as pretensões de D. Afonso III e que viria a motivar um litígio jurídico só desbloqueado a partir de 1271. A mediação do pleito coube a uma comissão independente de juristas, a qual promulga a sentença, favorável ao rei português, a 4 de Janeiro de 1272. Consequentemente, a Ordem de Santiago renunciou formalmente às doações de Tavira, Cacela e Castro Marim que regressaram à posse da coroa portuguesa.

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Atendendo à data da epígrafe comemorativa da construção da Porta da Alfeição da muralha de Tavira, esta terá sido um dos primeiros atos de soberania de D. Afonso III nesta povoação depois de esta ter regressado à posse da coroa portuguesa. Se por um lado esta porta, onde avultaria esta inscrição juntamente com as pedras de armas do reino, afirmaria o domínio do monarca sobre Tavira na sequência do litígio com os espatários, também revela, numa perspetiva militar, a preocupação pela reforma do sistema defensivo da vila. A muralha de origem muçulmana seria naturalmente, já em pleno domínio cristão, objeto de algumas reformas e melhoramentos dos quais temos notícias dispersas ao longo da primeira dinastia. A porta da Alfeição marca a intervenção de D. Afonso III, que será depois secundado por D. Dinis (que manda abrir a porta da Alcáçova do castelo) e por D. Fernando (que terá alargado a cerca).

BIBLIOGRAFIA: - BARROCA, M. J., “Inscrição da Porta do Alfeição da Muralha de Tavira”, In AAVV, Tavira Território e Poder, Câmara Municipal de Tavira – Museu Nacional de Arqueologia, 2003, pp. 314 e 315.

Um último aspeto que interessa realçar, segundo Mário Jorge Barroca, diz respeito aos oficiais nomeados nesta inscrição. Mestre Martins, tabelião do rei em Tavira, não resistiu a inscrever o seu nome na lápide, sendo um dos raros autores de textos epigráficos que são mencionados nas epígrafes medievais portuguesas. Por outro lado, o casteleiro Pedro Martins, executor da ordem régia, reflete a forma de governo que D. Afonso III adotou para as estruturas militares de Tavira, “não as confiando a tenentes, oriundos da Nobreza (como então ainda acontecia com a maioria dos nossos castelos), mas confiando Tavira a um oficial de nomeação régia” (BARROCA, 2003, p. 314). Desta forma se prenuncia a extinção das tenências, efetivada por D. Dinis em 1287, e o triunfo dos alcaides, oficiais de nomeação régia. Resta dizer que a Porta da Alfeição situava-se no limite da atual rua D. Paio Peres Correia até 1854, ano em que foi demolida. Nessa altura, a lápide passou para o adjacente edifício da cadeia velha, onde se manteve embutida até à demolição daquele, cerca de 1930. A inscrição foi depois recolhida para o jardim de São Francisco, onde se manteve até 2003, ano em que figura na exposição Tavira Território e Poder no Museu Nacional de Arqueologia. Pertence hoje à coleção do Museu Municipal de Tavira. [DS]

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Escudos de Armas do Reino de Portugal

Século XIII Calcário I – 31,5 cm x 34 cm x 13 cm II – 37,5 cm, 33 cm, 20 cm Muralha de Tavira MMT2288

Como assinalou Mário Jorge Barroca, estamos diante de duas peças com um extraordinário interesse heráldico e arqueológico. Oriundos das muralhas de Tavira, estes escudos adotam já o perfil do chamado “escudo francês” (com remate em ponta na base), introduzido em Portugal durante o reinado de D. Sancho II (1223-1248), mas não apresentam ainda a bordadura de castelos que surgem nas armas do reino durante o reinado de D. Afonso III (1248-1279). Observado este arcaísmo e considerando que a conquista cristã de Tavira pela ordem de Santiago dá-se em 1242, significa que muito provavelmente estamos perante pedras de armas dos finais do reinado de D. Sancho II (entre 1242 e 1248) ou dos primeiros anos do reinado de D. Afonso III. O seu valor simbólico terá de ser factualmente articulado com o período de conturbada disputa política entre Portugal e Castela pelo Reino do Algarve, bem como com a intenção da coroa portuguesa em instituir o Ius Crenelandi – ou seja, o princípio jurídico que proclama o monopólio régio de edificar fortificações ou obras militares. Originalmente colocadas sobre as portas de entrada da muralha, estas pedras assumiam-se como símbolos de afirmação e legitimação da força que havia conquistado a vila aos muçulmanos, ao mesmo tempo que representam o empenho da coroa portuguesa na reforma ou no restauro do sistema defensivo de Tavira. Neste sentido estas peças, para além de refletirem uma das etapas fundamentais na formação das Armas do Reino de Portugal, são igualmente testemunhos dos aspetos particulares que se referem aos anos da reconquista cristã e da afirmação da soberania portuguesa sobre o território do Algarve. [DS]

BIBLIOGRAFIA: - BARROCA, M. J., “D. Dinis e a Arquitectura Militar Portuguesa”, in Separata da Revista da Faculdade de Letras – História, IIª série, vol. XV, tomo 1, Porto, 1998, pp. 801-822. - BARROCA, M. J., “Pedra com o Escudo de Armas do Reino de Portugal”, in AAVV, Tavira Território e Poder, (catálogo de exposição), s.l. Museu Municipal de Arqueologia – Câmara Municipal de Tavira, 2003, p. 313.

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A Cidade do Museu

Relógio – Maqueta da baixa de Tavira 1882 Metal, madeira e folheado, papel, areia, veludo policromado, algodão, têxtil, tintas, cartão e resina 57 cm x 46,5 cm x 26 cm Colecção José Mendonça Furtado Januário (Santo Estêvão) MMT2442

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José Mendonça Furtado Januário, mais conhecido como Zézinho de Beja, reuniu ao longo da sua vida vários bens artísticos numa Quinta que detinha em Estiramantens. Um deles, talvez dos mais peculiares da sua coleção, refere-se a um relógio que representa a cidade de Tavira em 1882. Não se conhece o autor deste trabalho mas terá sido seguramente alguém bem informado no que toca à configuração urbana da baixa ribeirinha. A Praça da Constituição, hoje Praça da República, concentra todas as atenções e assume-se como o protagonista da cenografia e da ação das figurinhas humanas que ali se posicionam. A Praça consistia efetivamente num largo de imponentes dimensões, possuidor de vista privilegiada sobre o Gilão e sobre o conjunto da margem arquitetónica da margem oposta. Ao mesmo tempo arroga o estatuto de sede da administração municipal, dos serviços militares e da vida comercial local. Seguindo agora individualmente as construções que dominam o relógio temos à direita do observador o edifício dos Paços do Concelho, que para esse sítio se deve ter mudado em meados do século XVII. É no seu interior que decorrem as reuniões camarárias, conduzidas à data do relógio por José Dionel da Franca Matos como presidente e pelos distintos senhores Sebastião Neves de Aragão, José Gomes Xavier de Matos, João Inácio Camacho, João Rodrigues Centeno, João Pires e Sebastião Fernandes Estácio na qualidade de vereadores, este último primo de Estácio da Veiga. Em oposição à casa municipal temos no lado esquerdo do observador a invocação às instalações da Guarda Principal e a sobressair pelos seus telhados um troço da Torre do Mar. A posição desta estrutura arquitectónica militar, junto a uma das entradas da antiga ponte, exprime bem a importância estratégica que deteve no sistema defensivo da cidade, valência que pouca utilidade a autarquia lhe reconhece no século XIX, decidindo nesse sentido mandar demolir primeiro em 1883 o arco que assegurava a ligação para as antigas muralhas do castelo e mais tarde, em 1886, tudo o que restava da Torre do Mar. A mesma sorte teria o edifício da Guarda Principal, obra que data dos anos sessenta do século XVIII e que dispunha no seu interior de calabouço militar, paiol de pólvora e uma capela dedicada a Santo António da Praça, dependências ao cuidado dos efectivos militares que ficavam aí alojados e que tinham de cumprir missões como a vigilância da cadeia civil, a conservação da fonte pública da Praça e o patrulhamento nocturno da cidade.

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A Cidade do Museu

Apesar de poluído e assoreado, pelo menos assim o anunciavam neste período, o rio Gilão – a crer pelo artista desta peça – continua a ser frequentado por embarcações, umas menores outras de porte mais vistoso, e a atrair até às suas margens alguns pescadores. A ponte antiga, romana segundo crença popular, dotada neste trabalho somente de um arco quando afinal se contam sete, desempenha o único meio de ligação entre as duas bandas da cidade para homens e cargas. A jusante dela eleva-se também sobre o Gilão uma estrutura que, não sendo impossível ter o autor ali adicionado gratuitamente, nos resulta até ao momento absolutamente incógnita.

Como nota final deve ainda ser acrescentado quanto à descrição desta peça que a sua base esconde um complexo mecanismo destinado a colocar em movimento determinados componentes que se distribuem pelo cenário urbano tavirense, entre eles a bandeira da monarquia constitucional hasteada na Torre do Mar e um representante da administração política local que a partir do interior dos Paços do Concelho avança até uma das suas das varandas. [ML]

A rematar esta composição artística de trato esquemático e disposta em U, mesmo encostada à tábua em madeira que suporta a caixa do relógio, o autor ainda arranja espaço para ilustrar a frente arquitectónica ribeirinha da margem esquerda, em particular um conjunto de três moradias situadas na antiga rua Borda d’Água de Aguiar, pertencentes a respeitados apelidos da sociedade local, confinantes com a rua da Alegria e a travessa de Lázaro Gonçalves. Da esquerda para a direita eram senhores dessas casas os Guarda Cabreira, os Pereira da Silva e os Pires Safio, famílias que na cidade de Tavira usufruíam de poder económico e notabilidade social, razão mais do que suficiente para os sugerir como potenciais patrocinadores desta obra. Sobre os Guarda Cabreira, habitantes do impressionante lar que arrimava à ponte dita romana hoje convertido em Arquivo Histórico Municipal, conhecem-se políticos que estiveram à frente de lugares importantes na administração municipal durante o regime constitucional, tais como Sebastião da Guarda Cabreira e Alberto António da Guarda Cabreira, nomes que chegaram a ostentar os títulos de vereador e presidente da autarquia.

FONTES MANUSCRITAS

Os Pereira da Silva, não menos reputados, estão também entre os vereadores do município durante o século XIX, nomeadamente António Fernando Pereira da Silva, Rodrigo João Pereira da Silva e João José Victor Pereira da Silva. Quanto aos Pires Safio aquilo que os torna efectivamente distintos na sociedade tavirense é o enriquecimento que adquirem à custa do negócio da pesca do atum, proporcionando inclusivamente a alguns membros desta família a presença na lista dos maiores contribuintes do concelho.

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- Arquivo Histórico Municipal de Tavira, Correspondência Geral Recebida, Pasta A 225, 2.º Semestre de 1882.

BIBLIOGRAFIA - ANICA, Arnaldo Casimiro, Tavira e o seu termo: memorando histórico, Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 1993. - Idem, Tavira e o seu termo: memorando histórico, vol. II, Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 2001. - Idem, Toponímia de Tavira, Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 2000. - CHAGAS, Ofir, Tavira: Memórias de uma cidade, s.l., edição do autor, 2004. - PATÈ, Susana; MANSINHO, Luís – Relatório do tratamento de conservação e restauro do relógio da colecção de José Mendonça Furtado Januário, (texto policopiado), Faro, Março de 2008.

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Poder, território e ciência: a instituição militar em Tavira

Patrícia de Jesus Palma Bolseira de doutoramento FCT (Centro de História da Cultura: Universidade Nova de Lisboa)

I. PODER «Hei por meu serviço que o logar onde estiverdes ou hoverdes de estar de assento, quando não fôr necessario correrdes outros, que serão todos todas as vezes que cumprir, seja a cidade de Tavira, ou de Lagos, a qual vos parecer melhor para poderdes cumprir com as cousas da obrigação do vosso cargo; e posto que para a vossa assistencia em Tavira hajão as razões de ser o principal logar no Algarve, e de estar mais perto da Africa, eu o deixo a vós como dito he.» 1 (subls. meus). Lagos e Tavira são as localidades indicadas pelo rei Filipe I a João de Mendonça Furtado, nomeado Capitão-Mor General e Governador do Reino do Algarve, para fazer delas a sua residência oficial. Desconhecemos as razões que levaram o Governador a preterir Tavira, preferida pelo rei, e a instalar-se em Lagos, mas foi nesta cidade que se estabeleceu 1. Regimento dos Governadores do Algarve, Capítulo XIII, 1624, apud LOPES (1988 [1841]: II, doc. 17).

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Patrícia Palma 2. Faro era então sede episcopal, mas não tinha o estatuto de capital político-administrativa. Esse estatuto só lhe adveio pelo decreto de 28 de Junho de 1833 e decreto de 18 de Julho de 1835, o qual, alterando o primeiro, estatuiu o Algarve como distrito administrativo, dirigido pelo Governador Civil, com residência em Faro. 3. LINK (2005 [1801]: 266).

Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

a morada oficial até ao trágico terramoto de 1755. A destruição infringida à cidade de Lagos obrigou o então Governador, D. Rodrigo António de Noronha e Menezes, a transferir-se para Tavira, transformando-a na capital do Reino do Algarve 2. A mudança reforçou a importância da cidade e oficializou o prestígio que, de há muito, lhe era atribuído como «principal logar no Algarve».

das armas portuguesas, ficando incumbido da modernização estrutural do exército. Reorganizada e conduzida sob os valores basilares da organização, da disciplina e da instrução, a instituição militar devia ser capaz de cumprir e de fazer cumprir os desígnios de uma política que visava a reforma e a modernização de todo o aparelho de Estado.

À época, o espectro de poderes era já mais restrito e o cariz de que se revestia a função de Governador e Capitão-General era notadamente militar, como testemunhou o viajante Heinrinch Friedrich Link:

O ensino militar, nomeadamente o da matemática, a artilharia, eleita a «arma científica» do Estado, e a engenharia foram áreas que tiveram notável incremento, em consequência de uma nova atitude mental que encarou a guerra como uma ciência: ciência a aprender, a praticar e a transmitir. O texto do Conde de Lippe sobre este assunto é elucidativo:

«Tavira é a capital do pequeno reino do Algarve, onde também moram o governador de todo o Algarve e um provedor. O posto de governador do Algarve é um dos mais importantes do Reino (…). Todos os restantes governadores da província estão abaixo dele e, como a maior parte das cidades tem guarnições, são ou deveriam ser praças de armas, nas quais cabe ao governador a superintendência da polícia, o Governo é bastante militarizado.» 3 Esta particularidade levou a que rapidamente surgissem na cidade novas instituições militares. Regista-se em primeiro lugar a criação do Hospital Militar do Largo do Cano (1761) e, depois, a transferência do Regimento de Infantaria de Faro para a cidade de Tavira, o que obrigou à consideração de um espaço adequado para instalar as tropas, pensado e construído de raiz: o Quartel da Atalaia (1795). Entretanto, e ainda na década de 60, iniciavam-se as obras de ampliação à residência do Governador. Corporizavam-se, assim, na malha urbana e também na social as mudanças implicadas pela transferência do Governador e Capitão-General. Mas esta mudança deve ser encarada num quadro onde sincronicamente se reconheçam as grandes reformas postas em marcha por Sebastião José de Carvalho e Melo com vista à modernização do Estado e da Sociedade portuguesa, abrangendo todo o espaço continental e ultramarino. O exército foi um dos sectores repensados e reorganizados. A sua reestruturação garantiu a execução de outras reformas, quando não de todas elas, mas foi também um dos agentes de mudança. Data de 1762 a contratação do conde de Wilhelm von Schaumburg-Lippe, mais conhecido por Conde de Lippe, para comandante-chefe

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«Superfluo será alargar-se sobre as vantagens que resultão das Leituras Militares: assás geralmente se está hoje persuadido de que a Guerra naõ he para os Officiaes hum officio; mas sim huma Sciencia, de que cada Ramo pede seu estudo, e que a mesma experiencia naõ he mais, do que uma Practica cega, que não instrue verdadeiramente o Official na sua Profissão, se elle não tem o espirito preparado para della se aproveitar.» (subls. meus) 4 Para preparar e instruir os militares, fez o Conde de Lippe traduzir e adaptar para português os Regulamentos para o exercício e disciplina dos Regimentos de Infantaria e de Cavalaria, Direcções, Ordenanças, Métodos, Instruções, Plano de Estudos, que não só foram responsáveis pela reestruturação do exército português mas também se «tornaram verdadeiros manuais de instrução para aquele tempo cuja influência perdurou quase até meados do século XX» 5. Em consonância, também os critérios para a progressão na carreira militar foram redefinidos e a hereditariedade, ou o título, cederam lugar ao mérito e à aplicação nos estudos. O exército entrou, assim, num processo de profissionalização, sustentado pelo conhecimento e prática científicas, que alterou substancialmente o perfil socioprofissional do militar, a sua relação com o poder e com a sociedade.

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4. LIPPE (1782). 5. BARATA (2004: 420).


Patrícia Palma 6. A legislação pombalina que nos aponta para uma clara vontade de reformar o território é precisamente a que se refere ao Algarve, nos anos de 1773 e 1774, visando uma nova divisão administrativa e o fomento da actividade económica, que teve como expoentes a criação da Companhia geral de pescarias reais do reino do Algarve e a edificação de Vila Real de Santo António. Conhecer, regular e racionalizar o território e os seus recursos eram os objectivos destas medidas. Contudo, a reforma global do território é levada a cabo no reinado de D. Maria I, através daquela que ficou conhecida como a Lei da reforma das comarcas de 1790 (Carta de lei de 19 de Julho de 1790). 7. Sobre a actividade cartográfica de José Sande Vasconcelos, leia-se BRABO (2004) e BRABO (2006).

Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

II. TERRITÓRIO De entre as várias reformas conduzidas por mão pombalina, conta-se o início da reforma do território, para a qual foi fundamental o contributo da classe militar 6. Se aos Governadores das Armas era pedido o reconhecimento do território e a sua defesa, a inspecção, memórias descritivas, estatísticas, planos, plantas e orçamentos, era aos engenheiros militares que cabia a execução desta massa documental, que nos revela toda a sua versatilidade, competência operacional e técnico-científica. O trabalho de gabinete, executado no recato do seu quartel, era precedido de deslocações por todo o território a que estavam afectos, realizadas frequentemente em equipa, com a utensilagem própria do trabalho de campo, tais como bandeirolas, estacas, cordéis, piques, outros mapas, quando os havia, réguas, lápis e compassos, entre muitos outros. Para um conhecimento pormenorizado da região, envolviam-se com as populações locais e com todas as estruturas da administração, saindo das suas mãos um acervo de inéditas e ricas informações que, ao longo da segunda metade de Setecentos, começou efectivamente a corporizar física e imageticamente o espaço nacional. O Algarve foi envolvido activamente neste processo de conhecimento e ordenamento do território e é um caso de particular interesse para a compreensão do que foi a política nacional de territorização nos finais do Antigo Regime. A construção de raiz de Vila Real de Santo António, uma intensa actividade legislativa, o traçado e abertura de novas vias de comunicação, levantamentos topográficos, configurações geográficas e hidrográficas, projectos para obras várias, notícias e estatísticas, memórias, mapas e relações formam um conjunto de valiosas informações que deram a conhecer à Coroa os recursos e as necessidades de uma região periférica em processo de «Restauração» política, económica e também cultural. A dirigir a maioria destes trabalhos esteve o Engenheiro Militar José de Sande Vasconcelos, nomeado para o cargo de Sargento-Mor de Infantaria com exercício de Engenheiro no Reino do Algarve no ano de 1772, onde permaneceu em intensa actividade até ao seu falecimento, assinando mais de oito dezenas de trabalhos cartográficos referentes a todo o reino do Algarve 7. A sua acção não se desenvolveu, contudo, de forma solitária e nem se restringiu ao período estritamente pombalino (1750-1777)8. Rodeava-o uma equipa de outros engenheiros e discípulos, os quais formaram no Algarve um multifacetado escol

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científico, tão capaz de produzir obras de elevado apuro técnico, para ilustração de Sua Majestade, como de as dar a ler ao director de obras que as executava no terreno, como ainda de as ensinar aos alunos que acorriam às aulas militares criadas nos diversos regimentos 9. 8. A pesar de em 1777 se promulgarem várias medidas de espírito contrário à governação de Pombal («Viradeira»), tal facto não obstou a que se mantivessem pessoas, projectos, atitudes e metodologias de trabalho já existentes. O caso do Algarve pode disso ser exemplo, visto que o investimento na região não se esgotou com a construção de Vila Real de Santo António, tendo mesmo recrudescido nas décadas de 80 e 90 de Setecentos, sendo então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, da Guerra e dos Estrangeiros Luís Pinto de Sousa Coutinho (15/12/1788-05/12/1803) (n. 27/11/1735 – f. 15/04/1804) e Governador e Capitão-General do Algarve o 6.º Conde de Val de Reis, D. Nuno José Fulgêncio Agostinho João Nepomuceno de Mendonça e Moura (21/08/1786-09/11/1795) (n. 16/05/1733 – f. 04/06/1799). É, na verdade, sob o governo do 6.º Conde de Val de Reis que se iniciam várias obras para novas infraestruturas e reparação de outras, visando não só a defesa do território mas também o bem-estar da população, cujos projectos são assinados por José de Sande Vasconcelos, como pode comprovar-se pelas várias plantas disponibilizadas pela Biblioteca Nacional de Portugal, em versão digital. O Aquartelamento do Regimento de Artilharia de Faro, por exemplo, foi iniciado antes da chegada do Conde Val de Reis, sob direcção do brigadeiro Teodósio da Silva Reboxo, que para tanto conseguiu donativos do bispo, do Cabido, do compromisso dos homens do mar e de outros particulares que desejavam a sua construção. No entanto, faltaram os recursos e a obra não teve continuidade. Em 1787, com a chegada do Conde Val de Reis, retomaram-se as diligências e no Verão de 1794, entrou-se em fase de conclusão. Em simultâneo, mandou construir um armazém para o depósito da pólvora fora da cidade e reedificar as muralhas. No ano de 1793, por exemplo, a par das obras em Faro, o Governador e Capitão-General do Algarve tinha sob sua inspecção as obras nas pontes d’ Arão (Portimão), de Odelouca e de Alcantarilha, a reedificação da Fortaleza de São João e de Santa Catarina da Barra de Portimão, da Fortaleza da Ponta da Bandeira (Lagos), o Trem da Praça de Lagos e a Praça de Sagres (PT/ AHM/3/20/1/74) e projectava a construção de raiz do Quartel de Tavira, para alojar o regimento de infantaria, para o qual aproveitava todo o material de construção excedente das demais obras, assim como o que das ruinas das muralhas do Castelo de Tavira podia utilizar, tais como a cantaria para o portal do Quartel, cunhaes, enxelharia e alvenaria (PT/AHM/3/20/1/85). O Mappa da despesa das Fortificações, e mais obras do Reyno do Algarve, as quaes se fizerão por Ordem de Sua Magestade, desde Fevereiro de 1793 até Julho de 1796, por conta de Sua Real Fazenda: E de outras feitas sem despeza della; debaixo da Inspecção do Ill.mo Ex.mo Conde de Val-de Reis Governador do dito Reyno, é ilustrativo de todo este investimento (BNP: D. 60 R.; http://purl.pt/17007). A compor este quadro, há a lembrar que, à época, era bispo do Algarve D. Francisco Gomes do Avelar (1789-1816) que levou a cabo um conjunto significativo de obras por todo o Algarve, para o qual contratou o arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri, que chegou ao Algarve em Novembro de 1790, e cujo trabalho, pouco depois, chamava a atenção da Corte, sendo chamado para arquitecto do Palácio da Ajuda. Sob a coordenação directa ou indirecta do arquitecto Fabri (depois da sua partida para Lisboa, continuou a corresponder-se com o bispo e a enviar-lhe livros de arquitectura, matemática e arte), D. Francisco Gomes do Avelar financiou e co-dirigiu os trabalhos de construção do Seminário de Faro, do Hospital da Misericórdia de Faro, a reconstrução das várias igrejas danificadas pelo terramoto (Catedral de Faro, Santa Maria de Tavira, Igreja de Albufeira da Ordem de Avis, Igreja de São Brás de Alportel, Igreja de Cacela, Igreja de Aljezur), construiu pontes e reparou por várias vezes o hospital dos banhos de Monchique (ANTT Ministério do Reino, Mç. 596, cx 697). Cremos não exagerar se dissermos que o Algarve deste período, pela grande variedade de intervenções urbanísticas civis, militares e religiosas, ter-se-á assemelhado a um grande estaleiro de obras, com necessário impacto na vida económica, mas também sociocultural da região. 9. À época, funcionavam aulas militares no Regimento de Infantaria de Lagos e de Tavira, como comprova o Aviso de 14 de Janeiro de 1794, expedido pela secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, e da Guerra, aos Lentes das aulas Militares do Reino do Algarve, e confirmado pelo de 31de Abril de 1795, expedido ao Coronel de Infantaria de Lagos (PT/AHM/DIV/3/05/05/27/04), assim como a Aula do regimento de Artilharia, em Faro. Trataremos aqui a aula de Tavira por ser aquela de que dispomos de fontes documentais acerca do seu funcionamento.

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Patrícia Palma 10. José de Sande Vasconcelos, em petição datada de 1807(?) constante do seu processo individual, escreve como local da sua formação a «Aula Real de Fortificação de Lisboa», o que terá sido um lapso, ou talvez assim continuasse ainda ser designada, visto que a «Aula Real de Fortificação: matemática, fortificação e castrametação», instituição pioneira ao nível do ensino militar superior e da engenharia, fora criada em 1647 e em 1707 deu lugar à Academia Militar da Corte, que Sande de Vasconcelos terá frequentado. Para mais dados biográficos, consulte-se BRABO (2004: 145-76). 11. PT/AHM/DIV/3/5/5/5/27/4. 12. A esta nomeação ter-se-á associado a promoção a capitão, datada de 17/12/1795.

Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

III. CIÊNCIA: A AULA MILITAR DE TAVIRA José de Sande Vasconcelos nasceu em Évora, cerca de 1730, e veio a falecer na cidade de Tavira a 7 de Novembro de 1808. Entrou como voluntário no Exército em Lisboa, fez a sua formação académica na Academia Militar da Corte 10, onde defendeu conclusões públicas em Matemática e a 23 de Novembro de 1758 tornou-se Ajudante de Infantaria com exercício de Engenheiro. Com trabalho comprovado na cidade de Lisboa, em Almeida e Mazagão, foi promovido a Sargento-Mor em 1771 e, no ano seguinte, foi colocado no Algarve, onde terminou os seus dias. O seu percurso foi um testemunho dos novos valores que norteavam a instituição militar desde a reorganização empreendida pelo Conde de Lippe. Aliou a prática a uma sólida formação teórica que difundiu, primeiro, em Lisboa, como lente substituto da Academia Militar da Corte e mestre de Matemática do 5.º Duque de Cadaval D. Nuno e, depois, no Algarve, onde alcançou a criação de um «curso de estudos militares». A sua carreira científica foi coroada com a nomeação a 19 de Outubro de 1798 para membro fundador da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica, cuja instalação ocorreu a 22 de Dezembro de 1798. No que diz respeito ao «curso de estudos militares», sabe-se que foi o Governador e Capitão-General do Algarve, 6.º Conde de Val de Reis, D. Nuno José Fulgêncio Agostinho João Nepomuceno de Mendonça e Moura (21/08/1786-09/11/1795), quem viabilizou a criação da Aula, que sob a designação Aula de Artelharia, Geometria, Fortificação e Desenho, terá funcionado desde 1787, na praça de Tavira, embora apenas tenhamos notícia da sua existência através das alusões nas nomeações dos oficiais. O fim do mandato do 6.º Conde de Val de Reis coincidiu com a oficialização da Aula militar, certamente como meio de garantir o funcionamento para além do seu governo. Por Decreto de 11 de Novembro de 1795, José de Sande Vasconcelos foi nomeado Lente proprietário da Cadeira do Regimento de Infantaria de Tavira, para a qual compôs os respectivos Estatutos, datados de 13 de Setembro de 1796 11. Para coadjuvá-lo como professor substituto, foi nomeado o Tenente Baltazar de Azevedo Coutinho 12, que, para além de o substituir em qualquer impedimento, tinha funções muito claras no método de ensino preconizado (art.º 13.º). Oito anos decorridos após o estabelecimento, a Aula transformou-se, em rigor, num «curso dos estudos militares» (art.º 2.º), sustentado no «estudo das Ciências Matemáticas» (art.º 2.º), e regido por um completo documento estatutário, onde nenhum aspecto técnico-pedagógico foi descurado: lentes; plano de estudos, incluindo

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a designação das matérias, os compêndios, o método e o modo de ensino, a avaliação e o público-alvo; horário lectivo, calendário de exames e período de férias; prémios e sanções; exame para efeitos de progressão; licenças e relatórios sobre o progresso da aula. Em nosso entender, este documento constitui um notável exemplo da contribuição do exército para a divulgação pioneira do saber técnico-científico e para o processo de escolarização nacional, designadamente da escolarização matemática com impacto pelas mais longínquas províncias de Portugal 13. Matérias e manuais Sem indicar a duração exacta do curso, José de Sande Vasconcelos especificou o seu desenvolvimento, os autores seguidos, os métodos e os modos de ensino: DISCIPLINAS

EVOLUÇÃO

MATÉRIAS

MANUAIS

- Aritmética («lições prévias e concisas») Ciências Matemáticas

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Mr. Bezout [Elementos de Arithmetica; Curso de Mathematicas]

- Geometria elementar, plana e sólida, adaptada à especificidade da Infantaria -Trigonometria plana - Geometria prática: divisão das Linhas, Geodesia, Planimetria, Altimetria, Longemetria e Hereometria

Mr. Bezout [Elementos de Trigonometria Plana] Postila do Lente

- Aritmética superior: potências numéricas, sua formação e extracção de raízes

Ciências Matemáticas

2

Fortificação de Campanhas

3

- Fortificação de campanhas: ensino de toda a espécie de obras que lhe são próprias, tais como reductos, flexas, trincheiras, incluindo o estudo de todas as suas dimensões, usos e motivos

Não indicado

Castrametação

4

- Castrametação: diferentes modos de acampar: circunstâncias necessárias, perfeições e defeitos

Regras e ordens de Sua Majestade

Defesa de Praças

5

- Ataque e defeza de praças, quer em situação de sitiante, quer em situação de sitiado

Antoni [Defesa de Praças]

Análise inferior ou Álgebra

6

- Análise Inferior ou Álgebra até às equações de 2.º grau

Não indicado

Desenho

7

- Desenho de toda a espécie de fortificações, campos, edifícios e plantas de toda a qualidade

Mr. Buchotte [Les Règles du dessin]

Matemática (facultativa)

8

- Fortificação regular: construção, dimensões máximas e motivos, diferentes sistemas antigos e modernos adoptados

Não indicado

- Mecânica, secções cónicas e artilharia Não indicado

- Esfera, Geografia e Trigonometria Esférica e Astronomia

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13. N ão sendo objecto específico deste texto, mas estando-lhe adstrito, vale a pena recordar o igual contributo da instituição militar para a difusão do ensino dos estudos cirúrgicos, habilitando profissionais quer para o exército, quer para a prática civil. No caso particular de Tavira, a aula de anatomia e cirurgia foi também criada sob os auspícios do 6.º Conde Val de Reis, paralelamente à Aula de Artelharia, Geometria, Fortificação e Desenho. Segundo informações do comandante das armas do Algarve (1814-16), John Austin, o 6.º Conde Val de Reis, quando foi nomeado para o Algarve, fez-se acompanhar pelo cirurgião José Gonçalves de Andrade, à época «professor de cirurgia, desta Corte e cidade de Lisboa», como refere o decreto de nomeação, datado de 23/01/1789, que lhe atribuiu o lugar de cirurgião-mor do hospital militar de Tavira e a obrigação de «explicar Cirurgia na Aula, que lhe destinar o Governador daquele Reino, Conde de Vale de Reis», apud GIÃO (19-- : 25).


Patrícia Palma

Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

Este plano de estudos estava, na verdade, muito próximo daquele ministrado na Academia Real da Marinha (1779) e na Academia Real de Fortificação e Desenho (1790). Os próprios estatutos expõem a influência ao tratar o assunto do horário lectivo: «na conformidade das Reaes aulas da Corte, pertencentes a Engenheiros». Se, numa primeira abordagem, este plano pode parecer demasiado ambicioso, ele torna-se perfeitamente adequado ao tratar-se de uma Aula com estatuto de ensino superior. Por Alvará de 13 de Agosto de 1790, determinou a Rainha: «Atendendo ao que se Me representou por parte dos Alumnos das Aulas Militares estabelecidas nos Regimentos das Provincias deste Reino, e do Algarve: Sou servida, que apresentando-se na Academia Real da Marinha com Certidões de frequência, e exame dos seus respectivos Lentes, sejão examinados pelos Lentes da sobredita Academia da Marinha; e ficando por eles aprovados, lhes expediráõ Certidões na forma praticada com os seus Alumnos, em virtude das quaes os hei por habilitados, para poderem entrar na Escola dos Engenheiros, e gozar das mais graças, e privilégios concedidos aos matriculados, e aprovados na mesma Academia da Marinha.» (subls. meus). A Academia Real da Marinha (criada a 5/08/1779 como substituta da Academia Militar da Corte) era uma instituição de ensino superior de Matemática que, não obstante o determinado pelo texto dos seus estatutos, não deu continuidade aos estudos de Fortificação e Desenho. Para superar a lacuna, a rainha decretou, a 2 de Janeiro de 1790, a criação de um novo instituto superior, a Academia Real de Fortificação e Desenho, cujo acesso tinha a precedência de dois anos no Curso de Matemática da Academia Militar da Corte, para os que pretendessem seguir Engenharia ou Artilharia, e de um ano para os que se destinassem a oficiais de Infantaria ou Cavalaria. O Alvará de 13 de Agosto de 1790, que acima citámos, faz, portanto, equivaler as aulas regimentais, como a de Tavira, àquelas ministradas na Academia Real da Marinha, equiparando-as a aulas de ensino superior. A selecção dos livros é muito significativa quanto à actualização dos conhecimentos aí transmitidos. Considerando o período de formação do Engenheiro, a década de 50, terá certamente estudado pelos textos fundadores da especialidade, escritos em língua portuguesa e em uso na Academia Militar da Corte: o Methodo Lusitanico de desenhar as fortificações das praças regulares & irregulares, fortes de campanha e outras obras pertencentes á architectura militar (Lisboa, 1680), de Luís Serrão Pimentel (1613-1679), e o Engenheiro Portuguez (Lisboa, 1728-1729), composto por Manuel de Azevedo Fortes

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(1660-1749). O que se verifica pelo plano de estudos é que estes textos não fazem parte do elenco bibliográfico seleccionado, assim como também não fazem parte os livros de Bellidor, determinados no plano de estudos da autoria do Conde de Lippe e que tiveram versão portuguesa nos anos de 1764-1765. Sande Vasconcelos escolheu, ao invés, textos estrangeiros de mais recente publicação, actualizados face aos avanços no conhecimento matemático, seguidos, traduzidos e acrescentados pelos professores da também recente Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra (1772), onde se exigia actualidade e clareza aos manuais em uso. Esta actualização não se deverá exclusivamente ao espírito de Sande Vasconcelos; pensamos que terá sido determinante o contributo de Baltazar de Azevedo Coutinho, mais jovem, e formado em Matemática por aquela Universidade, onde se lia por Bezout (1730-83). Igualmente francês era o autor seguido na disciplina de Desenho, Nicolas Buchotte, engenheiro do Rei de França, que editou em 1722, em Paris, Les Règles du dessin et du lavis, considerado como «un manuel pratique, extrêmement complet et pédagogique, des règles du dessin architectural et cartographique» 14. Os princípios teóricos da Arquitectura vieram de Itália num tratado muito completo de Alessandro d’Antoni, director das aulas de Artilharia e Fortificação em Turim, intitulado Architectura Militar (6 tomos), traduzido para português em 1790 por Matias José Dias Azedo (1758-1821), lente da Academia Real de Fortificação e Desenho. O uso da «postila do lente», ou seja, o uso de apontamentos próprios, não deve ser desatendido. Manuel de Azevedo Fortes, por exemplo, ao ser publicado o seu Engenheiro Portuguez, esclareceu o leitor quanto à origem do texto: «Esta obra (amigo Leitor) naõ foy feita para se dar ao publico: o primeiro fim, que me propuz, foy a minha própria instrucçaõ; e passou depois em postila para servir de Methodo aos Praticantes da Academia Militar, de que Sua Magestade foy servido encarregar-me» 15. O uso de postilas era um meio comum de aquisição e transmissão de conhecimentos, que paulatinamente foi substituído pelos manuais impressos; nesta época, elas têm ainda a mesma legitimidade científica que os impressos e são um meio de exibir a instrução e o saber individualmente alcançados. Repercussões Não existindo dúvidas quanto ao funcionamento contínuo da Aula Militar em Tavira, entre 1787 e 1808, como atestam as diversas fontes documentais, é justo concluir que ela se afirmou como um pólo periférico de formação científica em Matemática,

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14. Isabelle Warmoes, do Musée des plans-reliefs, afirma que esta obra foi a segunda a ser publicada em França, permitindo a difusão das normas estabelecidas no final do século XVII para obter uma representação uniforme dos territórios militares em diferentes escalas: «Ces codes graphiques sont précisés et diffusés dans diverses publications techniques éditées à l’attention des ingénieurs militaires au tournant des XVIIe et XVIIIe siècles (…). Parmi les plus célèbres, on trouve le traité d’Hubert Gauthier de Nîmes intitulé L’art de laver ou nouvelle manière de peindre, publié à Paris en 1687 et réédité en 1697 dans une version augmentée sous le titre de L’art de dessiner. Les règles du dessin et du lavis de Nicolas Buchotte, publiées à Paris en 1722, offrent aux ingénieurs militaires un manuel pratique, extrêmement complet et pédagogique, des règles du dessin architectural et cartographique.», in WARMOES (2008 : 58). 15. «Prologo ao leitor», in FORTES (1728).


Patrícia Palma 16. AHM/DIV/3/7/551. 17. AHM/DIV/3/7/551. A aula militar aqui tratada, objecto desta representação de 1822, não deve ser confundida com uma outra iniciativa do exército ao nível da alfabetização, criada por portaria de 10/10/1815, e em funcionamento pleno entre 1817 e 1823 em todos os corpos do exército, que visava resolver o problema da formação básica dos quadros militares. Teve forte impacto na população civil, na medida em que se destinava também aos filhos dos militares e às crianças das localidades onde estavam aquartelados os regimentos.

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aplicada à prática militar, com influência muito para além do círculo restrito do exército, na medida em que o conjunto destes professores e discípulos formavam realmente uma nova elite local, que viria a desempenhar funções de relevo tanto na esfera militar, como na civil.

FONTES ARQUIVÍSTICAS:

BIBLIOGRAFIA:

Arquivo Histórico Militar

José de Sande Vasconcelos, já no final da sua vida, dirigindo uma petição que visava a atribuição de uma comissão de residência, afirmou:

Processos individuais: AHM/DIV/3/7/551; AHM/ DIV/3/7/38; AHM/DIV/3/7/530

ANICA, Arnaldo Casimiro (1993), «Vida militar», in Tavira e o seu Termo: memorando histórico, Tavira, Câmara Municipal, pp. 253-270.

«(…) tendo ensinado com tanto desvelo, que os seos discípulos saõ os melhores desenhadores de Portugal, tendo desempenhado a obrigação dos seos postos em Rosilhom, sahindo da sua Aula officiaes beneméritos p.ª todos os Corpos do Exercito, e athé p.ª Capitaes Generaes como Ant.º Joze da Franca (…)» (subls. meus)16. Se a acção do professor foi de tal ordem de grandeza, não o podemos asseverar; mas, podemos garantir que a sua aula estimulou nas gentes locais uma visão da prática militar como prática científica e o reconhecimento da instrução como alicerce do desenvolvimento individual e colectivo, como o prova a petição dos oficiais do regimento de Infantaria n.º 14, datado de 7 de Junho de 1822: «Dizem os Officiaes do Regimento de Infanteria N.º 14, abaixo assignados, por si, e seus camaradas, que havendo no mesmo Côrpo huma Aula de Mathematica, e Fortificação, athe à invazão dos Francezes em 1808, ella se fexou pelo Regimento se dissolver naquela Época, e entrar depois de reunido em Campanha; e como agora, pela felix Regeneraçao os supplicantes tem offerecido seus filhos para o serviço da Nação, bem certos, que elles serão addiantados, nos Postos Militares, segundo os seus mericimentos, e applicação, a qual não podem ter no Colegio dos Nobres, ou em outras Aulas da Capital, pela Longetude, e despezas que se fazem sempre pezadas a Officiaes, sem património; por isso

ARAÚJO, Renata Malcher de (1989), «Engenharia militar e urbanismo», in MOREIRA, Rafael (dir.), Portugal no Mundo: História das Fortificações Portuguesas no Mundo, Lisboa, Alfa, pp. 255-72.

Estatutos da Aula militar de Tavira: PT/AHM/ DIV/3/05/05/27 Mapa de alunos: PT/AHM/DIV/3/05/05/27/06 Ofícios e plantas: PT/AHM/DIV/3/20/01/45; PT/AHM/ DIV/3/20/01/76; PT/AHM/DIV/3/20/01/72; PT/AHM/ DIV/3/20/01/74; PT/AHM/DIV/3/20/01/85; PT/AHM/ DIV/3/20/01/92

ANTONI, Alessandro d’, Architectura Militar, 6 ts., Lisboa, Typographia Regia Silviana, 1790-1796. BARATA, Manuel Themudo e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir.) (2004), Nova História Militar, vol. 3, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 412-438.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

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Pedem os supplicantes a Vossa Magestade, seija servido mandar, que se estabelessa, novamente no Regimento, a Aula de que tratão, na qual hum bom Lente, e substituto, dezempenhando os seus deveres; mostrem que appresentão à Nação Discipulos dignos dos Postos Militares, que sem estes Estudos, já mais podem ser perfeitos Officiaes.» (subls. meus)17.

CORREIA, José Eduardo Horta (1997), Vila Real de Santo António: Urbanismo e Poder na Política Pombalina, Porto, FAUP Publicações.

Estávamos, então, na primeira fase do Liberalismo, mas fora sob a cobertura do Antigo Regime que o berço cedera o lugar ao mérito.

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Patrícia Palma

FORTES, Manoel de Azevedo (1728-1729), O engenheiro portuguez: dividido em dous tratados…, Lisboa Occidental, na Officina de Manoel Fernandes da Costa, Impressor do Santo Officio.

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Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

Poder

1. RÊGO, Romão José do, 17-Planta do acrescem / tamento que se fés, ás Cazas de Rezidençia dos Sr.es Generais deste Reino do Algarve. – Tavira, 7, Agosto, 1769. – 1 planta: ms., color.; 21,5 x 34 cm. Arquivo Histórico Militar, cota PT/AHM/DIV/3/20/01/45.

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2. VASCONCELOS, José de Sande, 1730?-1808 Projecto para o hospital militar de Tavira / por ordem do Il.mo e Ex.mo S.r Conde de Val de Reys, G.or e Cap.am G.al do R.no D.º Alg.e e &c &c &c. – [S.l.] : 1795. – 1 planta: ms., color. ; 95 x 60 cm. Biblioteca Nacional de Portugal, cota d-53-r.

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3. CONDE DE LIPPE. – 1 pintura : óleo sobre tela, color. ; 91 x 78,5 cm. Regimento de Infantaria 1, Tavira.

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4. Decreto, e relação, que / Sua Magestade / mandou baixar / ao / Conselho de Guerra / sobre a reducção das tropas do seu / Exercito, e Marinha, em 10 de Maio de 1763. In Collecçaõ / das leys, decretos, / e alvarás, / que comprehende o feliz reinado / delrey fidelissimo / D. José o I. / Nosso Senhor, / desde o anno de 1760 até o de 1765. / Tomo II. - Lisboa : Of. Miguel Rodrigues, 1766. – 49 x 33 cm.

5. Plano, / que Sua Magestade manda seguir, e / observar no establecimento, estudos, e exercicios das aulas dos Regimentos de Artilharia. In Novo methodo / para dispor um Corpo / de Infantaria, / de sorte que possa combater com a Cavallaria / em Campanha raza…. - Lisboa : Secretaria de Estado, 1767. – 19 x 17 cm. Biblioteca do Exército, cota 35.015.

Biblioteca digital da Universidade de Coimbra

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Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

Território

6. LIPPE, Conde de (1724-1777 )

7. Engenheiros militares em trabalho de campo.

[Colecção de documentos regulamentares]. [Lisboa] : imp. na Secretaria de Estado; il., fls. desdobr. ; 17 x 11 cm.

Aguarela, color. ; 32 x 27 cm. Arquivo Histórico Militar, cota PT/AHM/DIV/3/26-18684-5-261.

Regimento de Infantaria n.º 1, Quartel da Atalaia, Tavira.

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Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

9. VAL DE REIS, 6.º Conde de, 1733-1799 ; VASCONCELOS; José de Sande, 1730?-1808

8. VASCONCELOS, José de Sande, 1730?-1808 Planta da cidade de Tavira / copiada de huma planta feita e desenhada pelo brigadeiro Jozé de Sande Vasconcelos no Real, e Geral Depozito das Cartas Marítimas. - Escala [ca. 1:2 000], 400 palmos = [4,8 cm]. - [S.l.] : Real e Geral Depozito das Cartas Marítimas, 1800. - 1 planta : manuscrito, color. ; 54 x 63 cm.

Mappa Geral / de / differentes objectos e noticias do reyno / do / Algarve / feito no tempo do Conde de Val de Reys, Governador / e Capitão General do dito reyno. / 1788. Manuscrito. - 15, [1] f. : 2 mapas ; 50 x 34 cm.

Instituto Geográfico Português, cota CA396.

Biblioteca Nacional de Portugal, cota COD. 922.

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Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira

Ciência 10. VASCONCELOS, José de Sande, 1730?-1808

11. VASCONCELOS, José de Sande, 1730?-1808

Plano dos Estatutos, que o Illustrissimo e Excellentissimo / Senhor Monteiro Mór do Reyno, Governador, e Capitão General / do Reyno d’Algarve, manda observar n’Aula Militar do Regim. to / de Tavira. / [Manuscrito]. – 4fls. ; 34 x 22 cm.

Por Ordem D’IL.mo, E EX.mo S.r Inspector General / Mappa dos allumnos da Aula militar do regim.to de Tavira / de que hé Lente o Brigadr.º Jozé de Sande Vas.cos / [Manuscrito]. – 1 fl. ; 32 x 21 cm. Mapa D’Alumnos aprovados na Aula Real do Regimento / [Manuscrito]. – 1 fl. ; 36 x 23 cm.

Arquivo Histórico Militar, cota PT/ AHM/DIV/3/05/05/05/27/04.

Arquivo Histórico Militar, cota PT/AHM/DIV/3/05/05/ 05/27/06

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Poder, Território e Ciência: A Instituição Militar em Tavira 12. Alvará de 13 de Agosto de 1790

13. BÉZOUT, Étienne, 1730-1783

16. D’ANTONI, Alessandro, 1714-1786

[Habilitações dos alunos das Aulas Militares]. – 1fl. ; 35 x 49 cm.

Elementos / de Arithmetica / por / M. Bezout/ da Academia Real / das Sciencias de Paris &c. &c. / traduzidos do francez. – Coimbra : Real Imprensa da Universidade, 1805. - 1 t. ; 16 x 11 cm.

Architectura / militar / de Antoni… - Lisboa : Typographia Regia Silviana, 1790-1796. – 6 ts. : il. ; 16 x 11 cm.

Biblioteca digital da Universidade de Coimbra

Biblioteca do Exército, cotas 4233-4237

Biblioteca do Exército, cota 2723.

14. BÉZOUT, Étienne, 1730-1783 ; VILLAS-BOAS, Custodio Gomes de, 1742-1808, trad.

15. BUCHOTE, Nicholas, 1673–1757 Les regles / du dessin / et / du lavis, / pour les plans particuliers des ouvrages & bâtiments, & pour leurs coupes, pro-/fils, elévations &façades, tant de l’Architecture militaire que civile. – Paris : Didot fils, Jombert jeune, Libraires, 1754. – 1 t. : il. ; 20 x 12,2cm.

Curso / de / Mathematicas / para uso / do Corpo Real d’Artilheria / e da Marinha / por / Monsieur Bezout / Da Academia Real das Sciencias de Paris, e da da [sic] / Marinha, &c. &c.. / III. Parte, que contém a Mechanica… - Lisboa : Regia Officina Typografica, 1786. - 2 tomos : il. ; 17 x 11 cm.

Biblioteca do Exército, cota 131/0AA.

Biblioteca do Exército, cota 375.

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Memória, Património e Criatividade:

Luísa Ricardo Antropóloga, Câmara Municipal de Tavira

Da Hibridez Etnográfica

Sr. Manuel Vicente (albardeiro em Cachopo), esposa e amigo a visionar filmagens. Cachopo, Tavira. © CMT 2003

A ideia inicial para este texto começou por ser uma reflexão sobre o trabalho etnográfico no Museu Municipal de Tavira. Um olhar retrospetivo e prospetivo – o que se fez e possíveis caminhos a percorrer. Numa segunda instância percebemos que, para o fazer, teríamos que nos aproximar dos discursos sobre o território, as pessoas e os saberes, de várias épocas e de vários campos científicos e institucionais, que se inscrevem criativamente nas representações e práticas identitárias atuais dos vários agentes. Por outro lado, sublinha-se que este manancial discursivo e de práticas, sendo continuamente recriado, no atual paradigma patrimonial, requer uma construção partilhada, coletiva, um exercício consciente de cidadania sobre aquilo que se quer e se deseja para o futuro.

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Luísa Ricardo 1. À semelhança de João Vasconcelos, no seu trabalho sobre objetificação da cultura popular e usos do passado na serra de Arga (1997).

Memória, Património e Criatividade: Da Hibridez Etnográfica

Paralelamente, esta reflexão serve também como texto de apoio ao espaço etnográfico da exposição “Memória e Futuro”, onde a coleção e os seus objetos não foram o fim em si mas encarados como um fio condutor da memória, aberto, pronto a ser usado e expandido pelos visitantes.

temporal, não obstante a consciência da distância e da diferença de contexto histórico. Afinal de contas, será esta a matéria do sentimento de identidade: a pertença, a ligação afetiva, jogada num binómio de proximidade e distância.

Pera rechear se escolhem os figos nas esteiras primeiro que outros alguns, e estes se abrem por junto do pé e lhe metem as amêndoas dentro. Há mulheres que neste tempo não vivem de outra cousa. Também se fazem queijos destes figos, lavrados com amêndoas e festejados com mil lavores por cima e outras mil invenções de figuras, que estas mulheres cada dia enventam e lhe mandam fazer pera apresentar e fazer serviços (São José 1983:113)

ETNOGRAFIAS São registos sobre as pessoas, as suas práticas e os lugares. Em Tavira, vamos encontrar descrições que nos falam dos tempos de trabalho e dos tempos de festa; do ócio e do negócio; dos movimentos pendulares, sazonais, entre a serra e o litoral; das sonoridades, dos dizeres, dos sabores e das gestualidades do mar, da terra e da cidade. Registos que ainda hoje alimentam, independentemente do cariz mais ou menos científico, mais ou menos ficcionado, discursos identitários - o que fazemos (práticas) e/ou como nos pensamos (representações). Desde a antiguidade que vamos encontrar descrições sobre Tavira e o território envolvente. Textos produzidos por viajantes, curiosos, poetas, escritores, cuja tónica assenta na descrição da alteridade, de teor impressionista, escritos numa época em que não se falava de etnografia, antropologia ou quaisquer outras ciências sociais afins. No entanto, são relatos- uns mais distantes, outros mais vividos- que se aproximam do registo etnográfico, entendendo aqui “etnografia” como qualquer tentame que, inadvertida ou propositadamente, tenha contribuído para produzir uma representação da cultura, neste caso, centrada em Tavira 1. Como primeiro exemplo temos a “Corografia do Reino do Algarve”, mais precisamente o livro IV, “Das particularidades do Reino do Algarve d’ Aquem Mar”, escrito, no século XVI, por Frei João de São José, prior no Convento de Nossa Senhora da Graça, em Tavira. Fazendo jus ao estilo corográfico, surge como uma descrição próxima e atenta de paisagens, saberes e viveres. A diferença entre a serra e o litoral, os movimentos de pessoas no território, as lides do quotidiano, tudo é mote para a sua escrita. Uma escrita alimentada pelo espírito renascentista que se assume no seu fascínio pela alteridade: “Há neste reino do Algarve muitas cousas notáveis e maravilhosas e tão particulares dele só, que não se acham em outro algum, assi na própria natureza da terra, como também nos costumes de que usam os moradores dela” (São José 1983:109). Uma escrita igualmente fascinante para nós, no presente, pelo facto de nos reconhecermos nas descrições, pela sensação de continuidade

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Apanha do figo lampo. Conceição de Tavira, Tavira. © CMT 2003

Num tempo e contexto diferentes, surge-nos Sebastião Estácio da Veiga. Muito conhecido no campo disciplinar da arqueologia, abalançou-se também na literatura oral, com a publicação do “Romanceiro do Algarve” em 1870. Segundo J. J. Dias Marques (2005), trata-se de uma obra pioneira pela data, no entanto carece de um olhar menos definitivo, cabal, e mais apurado ao nível dos critérios que deveriam orientar um obra dedicada à recolha da oralidade- tratou-se de uma obra muito retocada, pouco fidedigna. Teófilo Braga, contemporâneo de Estácio da Veiga, critica a falta de respeito pela diversidade da literatura oral. Em vez de publicar as variantes de uma mesma história, Estácio da Veiga dá à estampa textos factícios, formados com excertos das várias versões, tentando reconstituir um arquétipo perdido. Questões de método à parte, estaríamos a lidar com motivações que seriam muito generalizadas à época – o amor à pátria, neste caso, como refere Dias Marques, à “pequena pátria”, o Algarve.

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Luísa Ricardo 2. P ode-se fazer uma leitura a dois tempos deste processo: por um lado a cultura popular, mais precisamente o seu agente, o povo, surge como categoria edificante da ima-­­­­­ gem do país, em diferentes alturas históricas; por outro, a génese e origem da área de estudos antropológicos esteve intimamente ligada a este mo­vimento de “invenção” da cultura popular e de certa forma subsidiando-o (Bourdieu 1987; Burke 1978; Certeau 1993; Leal 2000, 2007, 2009; Löfgren 1989 ; Silva 1995, 1997).

Memória, Património e Criatividade: Da Hibridez Etnográfica

Estácio da Veiga, algarvio, nascido em Tavira, indicia o seu “amor à terra” na apresentação do romance “A Moira Encantada” que relata a crença relacionada com o aparecimento de uma moira no castelo de Tavira, em noite de São João: Eu penso que este romance é allusivo a uma muito antiga e arreigada crença, de que na cidadella mourisca da cidade de Tavira, redificada em 1331 por elrei D. Diniz, da meia noite de véspera para a madrugada do dia de S. João, apparece sobre o terrado da muralha uma formosa e gentil moira, requerendo de amores um cavaleiro que possa quebrar o seu encantamento; e esta posso dizer que é uma das tradições algarvias, que mais de perto conheço, poisque della ouvi sempre falar desde os meus primeiros anos até o de 1845, em que muito saudosamente me ausentei da minha formosa provincia. Muitos e mui diversos cantares usa o povo para festejar o seu querido santo, e tão jovial, tão galhofeiro, e até mesmo tão licencioso se torna com os seus improvisos, ora dançando em torno do mastro de murta florida, enfeitado de madre-silva e capela-de-S. João, ora junto da fogueira de alecrim[…] (Veiga 2005: 33) O “Romanceiro do Algarve” é o reflexo de uma época. Há toda uma atmosfera, decorrente da conjuntura histórico-social, que passa por uma vontade de educar, regenerar e, por conseguinte, conhecer o povo e as manifestações. Este movimento de “atração pelo Povo” teve as suas origens na Europa, nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, com a queda do Antigo Regime, motivado por uma série de razões, nomeadamente políticas, estéticas e intelectuais 2. A exaltação do que é popular adquire uma especial importância na reafirmação de um caracter cívico e patriótico, estando ligado à emergência de um espírito de Nação. A frequente associação ao historicismo e o recuo aos tempos áureos da Nação servem para comprovar o carácter antigo da mesma, resultando em registos que veiculam a ideia: a alma do país incarnou no povo da Idade Média e desde então se tem mantido inalterada. Concomitantemente ocorre uma melhoria das condições de vida. Um grande desenvolvimento urbano e o aumento das redes de comunicação e viárias contribuem para que ocorram migrações da periferia para as grandes cidades. O número de proprietários rurais absentistas aumenta e simultaneamente o progresso invade a periferia. A visão romântica nasce associada à emoção decorrente da distância- e aqui ganham eco as palavras de Estácio da Veiga…

“em que muito saudosamente me ausentei da minha formosa provincia”. Os intelectuais consciencializam-se da perda destes mundos e para a importância do registo dos mesmos- como disse Michel de Certeau, é um movimento marcado pelo fascínio pela “beleza do morto” (1993).

“Teatralização da Moura Encantada” pela associação “Armação do Artista” Castelo de Tavira. © CMT 2013

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Luísa Ricardo 3. O “amor à terra”. Convém especificar que, muito embora, estes trabalhos tenham já um cariz científico, fornecido pelos modelos disciplinares acima referidos (sendo o histórico o mais importante), prevalece ainda o carácter de apologia localista, influeciado pelas perspetivas românticas. Estes estudos são secundados, não só por motivações de ordem científica mas, também, por outras, de ordem moral. O es­­tudioso, que normalmente era um indivíduo de grande importância na terra (padre, funcionário, advogado, etc.), e que pela sua erudição, demonstrava já o contacto com a metrópole, assume a empresa estudar a sua comunidade, singularizan-do-a, atribuindo-lhe uma identidade coletiva. Esta manifestava-se através de um corpo histórico comum, de uma tradição coletiva, que seria um primeiro estágio para, a nível macroterritorial, constituir o amor à Pátria. Neste retrato enquadra-se Ataíde de Oliveira (1842-1915). Licenciado em Teologia e Direito, nado e criado no Algarve, viveu grande parte da sua vida em Loulé, e rea­lizou muitos estudos de arqueologia, demografia e folclore nesta região - no que diz respeito a Tavira, ressalve-se a “Monografia da Luz de Tavira” (1991).

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As histórias de aparecimentos de Moiras são relativamente comuns por todo o território nacional e especialmente na região algarvia. Ainda hoje andam na boca do povo ou são pontos de partida para iniciativas diversas de cariz institucional: concursos literários, exposições, livros, intervenções performativas, entre outras. Muito embora o “Romanceiro do Algarve” possa não servir para realizar estudos de carácter etnoliterário, de acordo com a opinião de José J. Dias Marques (2005), e independentemente do carácter mais ou menos ficcionado, mais ou menos científico (à época e atualmente), o que nos interessa, no presente, e a nível etnográfico, é que serve para contar histórias sobre nós (comunidade) e para nos reinventarmos, neste caso, perante uma herança cultural árabe. Ainda na senda do Romantismo, onde o pensamento de uma elite intelectual e política se orienta segundo uma fórmula que equaciona o distante, o antigo e o popular, integrado num contexto científico, vamos encontrar José Leite de Vasconcelos (1858-1941). Nos finais do século XIX, sob o seu estímulo, são fundados museus, revistas, sociedades de estudo, permitindo uma maior coesão científica e difusão de ideias- Estácio da Veiga foi um dos seus condiscípulos (Santos 1997). É nesta altura, e ainda sob a liderança de Leite de Vasconcelos, que se vai formando uma comunidade erudita, de âmbito nacional, interessada na pesquisa etnográfica, arqueológica e filológica do país. Esta comunidade, descendendo de uma primeira geração de estudiosos locais que ostentavam o seu amor pela terra, escrevendo laboriosas monografias de acentuado pendor apologético, dispõe agora de um forte suporte orgânico 3. O próprio Leite de Vasconcelos marca o panorama etnográfico com a monumental obra Etnografia Portuguesa 4. À semelhança do “Museu Etnográfico Português”, criado em 1893, cuja orientação cedo se revelou ser de cariz arqueológico, a Etnografia Portuguesa tem um pendor historicizante e de âmbito nacional. Citam-se costumes e tradições de todo o território (incluindo Tavira) para constituir o retrato da civilização portuguesa. No século XX, em tempos mais recentes, temos ainda as obras produzidas por estudiosos locais sobre a história de algumas freguesias de Tavira- Arnaldo Casimiro Anica, Maria José Campos, Maria do Rosário Afonso, Ofir Chagas, entre outros 5. Estas obras apresentam-se num estilo monográfico cuja organização temática se inspira largamente nas sistematizações promovidas pelos pioneiros do conhecimento científico oitocentista, sustentadas pelas disciplinas de História Antiga, Etnografia,

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Arqueologia, Linguística, entre outras, e, em alguns casos, fazendo-se notar o laborioso trabalho de pesquisa arquivística e de resgate de memórias (normalmente, as do/a próprio/a autor(a)). Não se pretende aqui enumerar todas as etnografias que têm vindo a alimentar a paisagem cultural e ideológica de Tavira mas sim sublinhar que se trata de registos que têm um amplo circuito de produção, circulação e consumo/apropriação (história local, arte, turismo, folclore, artesanato, entre outros) e que, de uma forma fragmentada, descontextualizada, legitimam visões e práticas identitárias atuais. Esta premissa constitui um eixo de investigação em curso.

A PARTIR DO MUSEU O acervo etnográfico do Museu Municipal de Tavira é heterogéneo. A sua composição decorre do próprio processo histórico de constituição do Museu, multidirecional, que integrou vários paradigmas museológicos, visões, equipas de trabalho e demandas institucionais. Neste sentido, a partir de uma primeira análise de documentos e de relatos de colegas que intervieram nos processos, podemos distinguir três momentos na história do Museu Municipal de Tavira 6: • um primeiro, que vai de 1940 a 1980, e que corresponde à criação e manutenção do museu municipal; não há registo de incorporações na coleção etnográfica, não obstante o espírito da época que prenunciava a exaltação de uma visão da cultura popular ligada a uma matriz rural e arcaica; • um segundo momento, que tem início no final da década de 90 e vai até meados de da primeira década de 2000, e que se traduz na implementação e regulamentação de uma rede museológica polinucleada, impulsionada, num primeiro instante, pelo pensamento ligado à Nova Museologia; distingue-se ainda o projeto do Museu da Terra pelo reflexo que teve na coleção etnográfica do museu, quer pelo número de artefactos, quer pela documentação associada; • um terceiro momento, a partir de meados da primeira década de 2000, que decorre de alterações orgânicas no município onde se reorganiza a equipa do Museu e o trabalho de cariz etnográfico.

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4 . Leite de Vasconcelos inicia a publicação da Etnologia Portuguesa após a aposentação. Dos dez volumes vê, publicados em vida, três. Segue-se, na organização da obra, o seu discípulo Orlando Ribeiro, o qual convida Manuel Viegas Guerreiro e, posteriormente, Paulo e Alda Soromenho (Guerreiro 1989). 5. Consulte-se Anica 1981, 1983, 1993, 1994, 1998, 1999, 2000, 2001, 2005, 2008; Afonso 2009a; 2009b; Campos 2005; Vasconcelos 1999, 2009. 6. Consulte-se também os trabalhos de Marco Lopes e Joana Esteves Cartaxo sobre o Museu Municipal de Tavira (Cartaxo 2005; Esteves 2008; Lopes 2006); Jorge Freitas Branco e Luisa Tiago de Oliveira sobre as metodologias de análise da coleção reunida por Michel Giacometti no âmbito do Plano de Trabalho e Cultura (1994) e ainda Jorge Freitas Branco sobre museus e coleções etnográficas em Portugal (2008).


Luísa Ricardo 7. O trabalho do Estado Novo é operado de acordo com o que Löfgren (1989) apelida de “kit nacionalista faça-você-mesmo”, de difusão internacional, que passa por uma nacionalização da cultura. A “invenção de tradições” foi uma tónica constante neste período. Há uma seleção de certos elementos de uma cultura vivida (praxis) para uma reificação dos mesmos, ao nível ideológico. Estes elementos que provêm da cultura popular, maioritariamente de matriz rural, são transformados em símbolos nacionais. Como produto temos toda uma imagética do povo que sugere uma entidade imutável, situada à margem do progresso, ou seja, não corrompida pelo mesmo, depositária de uma herança constituída pela tradição e ocupando um lugar de maior proximidade com a Natureza: “A correct, authorized and timeless version of folk life is produced through the process of selection, categorization, relocation and “freezing” (Löfgren 1989:12). A política é, em parte, delegada no S.P.N.Serviço de Propaganda Nacional, criado em 1933 (mais tarde, em 1944, substituído pelo S.N.I. – Secretariado da Informação, Cultura Popular e Turismo). A “gestão” da imagem nacional, para além do teatro, cinema, e outros domínios da arte,

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a) Criação do museu municipal

b) O museu de território

O Museu abre, em 1940, na antiga Casa do Despacho (igreja da Misericórdia), integrando coleções de numismática, brasões, pedras tumulares – bens que faziam referência às personalidades notáveis da terra. Teve um historial de funcionamento inconstante, tendo fechado definitivamente no início da década de 80. A criação do Museu integraria o ímpeto celebratório generalizado da identidade nacional, de apelo patriótico, ligado às comemorações centenárias da independência e da restauração nacionais (Lopes 2006). No entanto, consideramos que este objetivo terá sido gorado, dado que esta política comemorativa, de âmbito nacional, cumpria-se assumindo configurações regionais diferentes, destacando e assimilando as identidades locais 7. Muito embora, Damião de Vasconcelos, investigador local, defenda, à época, a ligação das coleções com a terra, consideramos que o programa de encontro ao Povo do Estado Novo não terá tido uma concretização cabal em Tavira, na componente museológica, atendendo-se à coleção reunida neste período. Contudo não será descabido questionar se aquele programa não terá sido mais eficaz em Tavira ao nível da ação cultural, através da criação e apoio aos ranchos, às casas do povo, entre outras coletividades sócio recreativas. Vislumbra-se mais um eixo de pesquisa a percorrer.

O museu volta a estar na agenda do dia na autarquia tavirense no final da década de noventa. Estabelece-se um programa museológico onde se sublinha a vocação de museu de território, consignada no Regulamento do Museu Municipal da seguinte forma: montar uma rede municipal polinucleada de museus, cujas linhas centrais se baseiam na delimitação do território em zonas temáticas (cidade, mar e serra) com núcleos museológicos, a intervenção directa da comunidade no discurso museológico local, na valorização do património através de roteiros e dos espólios, na revitalização de espaços museológicos. (Câmara Municipal de Tavira 2002: 80)

Moldes para estampagem de sacos Ramiro Cabrita & Irmão Lda. – indústria de exportação de frutos secos, trituração de alfarroba e Lagar de Azeite (São Bartolomeu de Messines-Silves); Museu Municipal de Tavira, data de recolha: 29/06/2004 © CMT 2013

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De sublinhar que o Regulamento do Museu Municipal de Tavira, datado de 2002, é anterior à Lei-Quadro dos Museus, que surge em 2004 (Lei n.º 47/2004, de 19 de Agosto), no entanto é já patente a preocupação com a investigação, interpretação e comunicação com o público/comunidade, fruto de uma influência da corrente da Nova Museologia, onde estes processos são centrais na definição do que é um museu. Anterior à publicação do Regulamento ocorre a abertura, em Julho de 2000, do Núcleo Museológico de Cachopo, resultado da cooperação entre o Centro Paroquial de Cachopo e a Câmara Municipal de Tavira, mais precisamente o GTL (Gabinete Técnico Local), onde estaria instalado um gabinete de Museologia, de âmbito interdisciplinar, coordenado por Luísa Rogado. O trabalho de campo, realizado pela antropóloga Cristiana Bastos, terá tido início em 1998, e contou com a colaboração de agentes e instituições locais, nomeadamente na recolha de objetos. Recordemos que Cristiana Bastos havia já trabalhado nesta região, do qual resultou, para além de vários artigos específicos, a obra “Os montes do Nordeste Algarvio” (1993). Mais tarde, em 1999, junta-se à equipa Marco Lopes, na investigação histórica, e Leonor Esteban, na conservação dos objetos recolhidos. O núcleo aborda a vertente serrana do território concelhio desde tempos pré-históricos, registando saberes tradicionais, essencialmente ligados aos ciclos agrícolas (Câmara Municipal de Tavira 2008). No final da década de noventa, em paralelo ao processo de criação da rede museológica municipal, decorre o projeto do Museu da Terra. Este resulta do trabalho conjunto

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passa em larga medida, por um projeto etnográfico e de folclorização. A partir do órgão central, S.P.N., foi sustentada uma rede de indivíduos cujo objetivo seria fomentar o desenvolvimento de práticas etnográficas. A estes indivíduos, pertencendo à elite da terra, caberia, pois, o importante papel de servirem como intermediários entre o poder local e o central, numa política que se queria menos cognitiva e mais esteticizante (Alves 1997; Cadavez 2013; Vasconcelos 1997, 2001). Os empreendimentos etnográficos privilegiados tinham o cunho da espetacularidade, facilmente consumíveis e orquestravam no sentido de movimentar todo um conjunto de população no sentido da sensibilização para uma imagem de Povo (veja-se Joaquim Pais de Brito (1982), sobre a organização do concurso “A Aldeia mais Portuguesa de Portugal”). Esta ideologia deveria ter a sua correspondente ao nível da cultura material reunida nos museus no entanto, como se referiu, não se vislumbram peças de cariz etnográfico deste período na coleção do museu municipal de Tavira.


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8 . O “Índice dos trabalhos realizados para o projecto Museu da Terra”, elaborado pela antropóloga Joana Cartaxo (datado de 25 de julho de 2008), permite-nos apreender o trabalho de pesquisa e documentação, recolha de imagens e testemunhos e incorporações de objetos na coleção do Museu, desenvolvido entre 2003 e 2007. É manifesta a preocupação de deixar documentados os usos, os saberes e as histórias de vida, associadas a algumas das peças; circuitos de distribuição (feiras e mercados) e a história do Posto Agrário do Sotavento do Algarve. O documento “Levantamento das peças recolhidas entre 2003 e 2006 para o acervo do Museu da Terra”, elaborado por Joana Cartaxo, dá-nos a indicação de que foram

entre a Câmara Municipal de Tavira e a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, ao qual, mais tarde, em 2003, se juntaria o Instituto Superior de Agronomia e o Museu Nacional de Etnologia, sendo estas duas últimas instituições responsáveis pela coordenação científica do projeto. O Museu da Terra teria como missão a investigação e comunicação da atividade agrícola algarvia, nas vertentes histórica, económica, cultural e científica. Ficaria sediado no Posto Agrário de Tavira e previa-se também a sua relação com o núcleo museológico de Cachopo. Ambas as estruturas abordariam a “terra”, uma das três unidades temáticas do território, definidas no Regulamento do Museu Municipal de Tavira. Falamos no condicional (futuro do pretérito) dado que o Museu da Terra foi um projeto inacabado. O acervo é oriundo de vários concelhos do Algarve - Tavira, Loulé, Olhão e Silves - e compreende vários aspetos da atividade agrícola, nomeadamente a produção, transformação e distribuição de produtos, incluindo a relação com a investigação científica realizada no Posto Agrário 8. Pode-se distinguir vários conjuntos de peças que reportam a: espaço doméstico; transformação de uma agricultura artesanal e a coexistência com a mecanizada; processos semi-industrializados de transformação e distribuição de produtos agrícolas- é o caso dos espólios de Teófilo Fontainhas Neto S.A. e de Ramiro Cabrita & Irmão Lda. (São Bartolomeu de Messines, Silves) com equipamentos ligados ao processo de transformação, distribuição e comércio de alfarroba e outros frutos secos.

Categorias como a autenticidade e a singularidade, aliadas ao imutável e ao isolamento cultural, são centrais nos processos que originam e justificam a preservação de coleções etnográficas. É interessante constatar que a coleção do Museu da Terra se desvia deste espírito, sendo constituída sob a égide de um presente etnográfico onde há transformação, incerteza e a coexistência e articulação entre universos culturais. E não a olhar para um passado imutável, a pedir um urgente processo de recolha. É também curioso entrar na reserva desta coleção, até há bem pouco tempo depositada na íntegra num dos edifícios do Posto Agrário. Primeiramente, despertam-se os sentidos a partir das texturas e cores dos diversos materiais: lã, madeira, cortiça, ferro, borracha, lata,…. Se, por um lado, nos reconhecemos imediatamente em alguns objetos do universo doméstico, noutros há necessidade de consultar o inventário para se perceber a complexidade das funções para quais eram usados. E, no fim, permanece a sensação de que se podia agarrar em alguns deles, levá-los para fora do edifício e usá-los; a envolvente assim nos sugere- há sempre um som de um trator ou de um motor de rega a trabalhar, pássaros, ou o vento a assobiar nas janelas. Estamos no campo… Saindo do campo (na cidade)... e indo em direção de Santa Catarina da Fonte do Bispo, freguesia do concelho de Tavira, vamos encontrar o Núcleo Expositivo da Cooperativa Agrícola de Santa Catarina da Fonte do Bispo, dedicado à história do azeite naquela região, constituído a partir de um antigo lagar industrial. Este núcleo, aberto ao público em 2006, nasce a partir de um desejo de preservar a memória do passado da atividade olivícola manifestado pela direção da Cooperativa, ao qual a Câmara Municipal se associou na coordenação científica e de projeto. Retomando a ideia consubstanciada no regulamento, sobre os temas a abordar no museu em função de uma divisão territorial - serra, mar e cidade; e pensando que a coleção etnográfica se centra nos modos de produção e de trabalho, verifica-se que existe um peso substancial da atividade agrícola, em detrimento da marítima ou até mesmo na cidade. Esta diferença deve-se ao extenso trabalho realizado no âmbito do projeto do Museu da Terra. No entanto, não podemos deixar de referir a pesquisa feita pelo historiador Marco Lopes, sobre o arquivo da Companhia de Pescarias do Algarve, objetos e outra documentação histórica, que permitiu constituir o núcleo expositivo da pesca do atum, no antigo Arraial Ferreira Neto. Em consonância com o regulamento, temos na coleção etnográfica conjuntos de peças associados a várias

Apanha da alfarroba. Santo Estêvão, Tavira. © CMT 2003

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recolhidas 1893 peças. Ao nível de imagem, o Museu da Terra associou 68 registos vídeo e 942 diapositivos (números ainda a cotejar com o inventário do museu). Algumas das imagens foram incorporadas em três vídeos publicados pelo Município de Tavira, realizados por Joana Cartaxo: “A colheita do figo lampo”, “O pão de Montinho do Cravo” e “Diário de um moleiro”. De acordo com o relatório suprarreferido e para efeitos de registo histórico do Museu Municipal, aluda-se também à equipa que terá estado envolvida, no projeto do Museu da Terra: era constituída por Joana Cartaxo (antropóloga), Marco Lopes (historiador) e Leonor Esteban (técnica de conservação e restauro); foram ainda acolhidos estagiários para colaborarem neste trabalho - Rui Monteiro (Antropologia /ISCTE) (2003/04), Cláudia Diogo (História/ISCTE) (2004/05) e Susana Almeida (Antropologia/UTAD) (2006/07).


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profissões e estabelecimentos comerciais que documentam a efervescência da cidade-barbearias, alfaiatarias, mercearias, sapatarias. Exemplo disto, são as coleções da oficina de Manuel Francisco Júnior (sapateiro) e da loja e oficina de latoaria de Aníbal da Silva Bandeira.

• trabalho com as comunidades em prol da divulgação e sensibilização para os patrimónios, com todo um programa correspondente de ação cultural (ou de serviço educativo, se se preferir) 9. A construção de mais núcleos museológicos etnográficos, tal como havia sido pensado anteriormente, deixa de fazer sentido. O plano museológico a implementar a partir de uma divisão territorial já havia começado, pouco a pouco, a perder terreno, em função de um pensamento estratégico de gestão cultural – em primeiro lugar, não seria sustentável em termos financeiros para o município a construção bem como a sua posterior manutenção; em segundo lugar, mas tão ou mais importante, surge a questão- será que o plano corresponderia ao desejo atual das afirmações identitárias das comunidades envolvidas? O trabalho de divulgação dos saberes-fazeres relacionados com as paisagens revelouse fundamental por um lado, para a criação de uma comunidade de pessoas mais sensíveis e atentas a questões patrimoniais; por outro lado, permitiu indiciar alguns dos tópicos que são essenciais na definição de aspirações identitárias da comunidade. Neste sentido, distinguimos o ciclo “Passeios Património da Terra” que consistiu em seis percursos guiados “para interpretação e descodificação das paisagens culturais no território extra-urbano” 10. Este trabalho de interpretação e divulgação dos saberes-fazeres antecedeu e integrou a exposição “Cidade e Mundos Rurais - Tavira e as Sociedades Agrárias”, inaugurada em 2009, tendo sido assegurada a continuidade destas atividades durante a exposição, com a orientação da arquiteta Marta Santos e a colaboração de elementos da equipa do serviço educativo do museu.

Pormenor de sebenta da escola do arraial Ferreira Neto “Aldeia” desativada de pescadores da faina do atum © CMT 2013

c) O museu e a comunidade Em 2009, ocorre uma alteração na orgânica municipal que corresponde a uma reorientação do trabalho e da equipa, tendo tido reflexo no trabalho de cariz etnográfico. A atenção passa a centrar-se em: • produção de conhecimento que visa a constituição do museu da cidade e da relação com o restante território, integrando visões e discursos de especialistas académicos e da comunidade em geral;

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Mais recentemente, com a candidatura portuguesa para inclusão da “Dieta Mediterrânica” na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, cuja comunidade representativa é Tavira, e com alterações no regime jurídico do património cultural, o trabalho de investigação e salvaguarda partilhado com as populações veio receber mais um impulso. A ideia de uma comunidade participativa, empenhada em conhecer e salvaguardar o seu património, como veremos, é essencial no atual paradigma de patrimonialização.

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9. Exemplo disto são as metodologias de curadoria usadas nas exposições “Tavira, Patrimónios do Mar” (25/10/2008 a 27/09/2009), “Cidade e Mundos Rurais- Tavira e as Sociedades Agrárias” (29/05/2010 a 18/06/2011), “A 1ª República em Tavira: transformações e continuidades” (04/10/2010 a 31/12/2010) e “Fotografar. A família Andrade, olhares sobre Tavira” (09/06/2011 a 30/06/2012).

10. Do folheto de divulgação “Passeios Património da Terra – Março a Dezembro 2009” podemos ainda retirar a seguinte informação: o programa dirigia-se ao público em geral e às escolas; os percursos dinamizados foram “Do coberto vegetal, à tecelagem e aos artefactos” (março); “Do calcário,à cal viva e às argamassas” (abril); “Das barreiras, ao barro e às peças para construção” (maio); “Do cereal, ao engenho e ao pão” (junho); “Do olival, aos engenhos e ao azeite” (setembro) e “Tecnologias de moagem: moinhos de água do concelho de Tavira” (dezembro).


Luísa Ricardo 11. Veja-se o esboço cronológico dos principais marcos relativos à salvaguarda do Património Cultural Imaterial, a nível internacional e nacional, apresentado pela Direção Geral do Património: http://www.matrizpci.dgpc. pt/matrizpci.web/Recursos/ RecursosCronologiaInternacional.aspx; http://www.matrizpci.dgpc. pt/matrizpci.web/Recursos/ RecursosCronologiaPortugal.aspx .

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NOTAS SOBRE TRABALHO ETNOGRÁFICO NO MUSEU: DE OLHOS POSTOS NO FUTURO Heritage is not simply about the past; it is vitally about the present and future. […] We must continually recognise that objects and places are not, in themselves, what is important about cultural heritage. They are important because of the meanings and uses that people attach to them, and the values they represent. Such meanings, uses and values must be understood as part of the wider context of the cultural ecologies of our communities. (Palmer, 2009: 8) Ao longo do século XX e, especialmente, depois da segunda guerra mundial, assistiu-se a mudanças de paradigma na ordem social e cultural. Até então esta era fundamentada na ideia de progresso unilinear, uma marcha contínua, evolutiva, na qual o Ocidente e todos os seus afins simbólicos – o Homem, a Razão, a Cultura (por oposição a Mulher, Emoção, Natureza) – assumiam o papel de maquinista. A Humanidade viu-se destituída da sua humanidade e teve que reinventar-se, tendo em vista a construção de plataformas de comunicação e de respeito pela diferença. Ao nível das ciências sociais, especialmente no seio da antropologia, e das instituições culturais (inclua-se aqui os museus), inicia-se o debate sobre a autoridade científica e política de representação do Outro ou, numa lógica à la Foucault, questiona-se o poder de falar sobre e pelo Outro. Ao nível institucional, assinale-se, no âmbito da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) uma série de convenções que descentram o olhar ocidental dos aspetos materiais para os intangíveis, sublinham a proteção dos direitos de propriedade intelectual, das culturas tradicionais e populares e o papel das comunidades na salvaguarda dos patrimónios. Distinga-se ainda o recente desenvolvimento, em 2003, com a adoção da “Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial” pela UNESCO e, em 2008, por Portugal 11. Como comentário marginal aos historiais institucionais relativos a património imaterial refira-se que vamos encontrar na sua génese, os trabalhos sobre cultura popular, tradicional, folk, ou nas palavras de João Leal: “património imaterial é tão-só a nova expressão – politicamente correcta – para designar algumas das múltiplas formas daquilo a que costumamos chamar cultura popular” (2009: 476). Entenda-se neste contexto, património como conjunto de recursos (materiais e imateriais) que se herdam e se transmitem, sublinhando-se o sentido de ligação entre

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gerações. À luz do atual paradigma, a definição do que é património, a patrimonialização, é um jogo permanente entre a memória e o esquecimento, de acordo com os valores e interesses de vários grupos sociais, em diferentes situações históricas. Entenda-se ainda “patrimonialização” como uma construção social onde se atende à sua vertente imaterial, à sua componente de representação simbólica e, acima de tudo, como um processo mais participativo não sendo ditada apenas por especialistas mas sim conjuntamente com as comunidades onde se insere ou pelos cidadãos em geral. Fazendo uma leitura livre do atual regime jurídico de salvaguarda de Património Cultural Imaterial (PCI) em vigor em Portugal 12: a patrimonialização requer, para além da necessária documentação científica, histórica e etnográfica, o diálogo com as populações, no sentido delas próprias [se] identificarem [com] os aspetos a patrimonializar e [com] estratégias de salvaguarda. A salvaguarda não é apenas um trabalho sobre o passado e as memórias mas também sobre o futuro - sobre desejos, quereres e utopias das comunidades. Reitera-se: há uma implicação política. Neste sentido, centremo-nos no museu como um dos terrenos onde os processos de patrimonialização têm a sua expressão e concretização. O museu como espaço de memória, comunicação, mediação e apropriação, ao invés de simplesmente contemplação. Num primeiro olhar, o trabalho de inventário sobre PCI decorrerá da investigação, do trabalho de campo (numa imagem clássica: o etnógrafo de máquina fotográfica e gravador em punho, sozinho no campo com o(s) informador(es)- uma, duas pessoas, ou um pequeno grupo). No entanto, se o processo de patrimonialização é dialógico, interativo, há também que destacar os momentos e as ações em que a comunicação, neste caso, no museu, ocorre no superlativo e no imediato- visitas a exposições, oficinas, passeios de interpretação no território, demonstrações culinárias, etc. As atividades de mediação museal (ou, numa outra versão, as atividades de serviço educativo) são espaços de diálogo, onde as pessoas falam das suas experiências, das questões com as quais se identificam (ou não), com as suas lembranças e aspirações. Espaços onde as comunidades têm oportunidade de se construir e representar, de se reinventar. São também espaços onde o etnógrafo, no seu trabalho de registo de memórias, experiências e desejos, deverá estar. Não se trata de dissolver o conceito de trabalho de campo, mas de ter uma conceção mais ampla e aberta da investigação etnográfica.

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12 Consignado no D.L. 139/2009, de 15 de Junho; o procedimento de inventariação é instituído pela Portaria n.º 196/2010, de 9 de Abril, onde são igualmente definidas as condições a observar em matéria do processo de identificação, estudo e documentação do PCI, entre as quais o âmbito dos métodos e técnicas de pesquisa a aplicar, bem como as qualificações académicas que devem ser dotados os profissionais responsáveis por esse processo.


Luísa Ricardo

Memória, Património e Criatividade: Da Hibridez Etnográfica

A este propósito deixamos um registo impressionista de uma atividade de mediação museal - uma visita à exposição “Dieta Mediterrânica - Património Cultural Milenar”, realizada com crianças do 1º ciclo do ensino básico de Tavira. Fizemos várias sessões durante o presente ano e não foram poucas as vezes que “trocámos de lugar” com os participantes, tendo sido estes a guiar a visita aos adultos.

Abril). Por outro lado, constituem elas próprias atividades de salvaguarda do património e deverão fazer parte do processo de inventariação (veja-se o anexo 2, da suprarreferida portaria). Fazer etnografia no museu é ligar as pessoas, as práticas e os lugares. O que fazem e o que dizem que fazem. As histórias que querem contar aos outros e as que os outros contam sobre si. A história oficial e as outras histórias.

“- Olhe, é assim que se faz…” (disse-me uma criança, enquanto pegava num maço usado para britar azeitonas, exemplificando). Gerou-se a confusão. Todas queriam falar. Umas diziam que britavam com uma pedra. Outra mostrava-me a mão, porque, em vez da azeitona, tinha martelado o dedo. Havia uma que anunciava que gostava mais de azeitonas retalhadas. Outra enumerava os produtos que a mãe usava para temperar as azeitonas... Peguei no maço, com o meu ar mais solene, bati na ponta do expositor, e apregoei: “Ordem!”. Gargalhada geral. A pouco e pouco, os ânimos foram serenando e as histórias fazendo-se ouvir, cada uma na sua vez.”

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O que é isto tem a ver com o atual regime jurídico de PCI?

“Azeitonas e olival” – passeio orientado por Manuel Marcelino, Manuel Martins e Luísa Ricardo, integrado no ciclo de “Passeios e Comeres da Dieta Mediterrânica”.

Considera-se que estas atividades permitem-nos, em conjunto com as populações, sejam elas de adultos, jovens, crianças ou idosos, obter mais informação sobre as manifestações - sobre o que é que as pessoas consideram relevante, a sua integração no quotidiano, mais precisamente sobre os modos de transmissão intergeracional e sobre os contextos sociais e culturais da produção e representatividade espacial, tópicos que devem ser abrangidos no âmbito da investigação de manifestações culturais (veja-se a portaria n.º 196/2010, de 9 de

©CMT 2013

“Si uno tiene memoria, pero no hace un ejercicio de creatividad, la memoria nos prende al pasado, a otro tiempo. Es necesario que haya una articulación entre memoria y creatividad” Mario Chagas, antropólogo, Museu da República do Rio de Janeiro (Brasil), 2013

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Um Museu para Tavira Génese de uma ideia e a sua Concretização

Jorge Queiroz Diretor do Museu Municipal de Tavira

O SURGIMENTO DE MUSEUS NACIONAIS E REGIONAIS No continente europeu, as “luzes” e a industrialização, foram acompanha­ das pela vitalidade de novas perspectivas de ciências emergentes como a Arqueologia, a Antropologia, a Etnologia, a Biologia, a Sociologia e também pela estruturação de uma renovada História também esta influenciada pelas teorias evolucionistas e pelo positivismo. No século XVIII proliferaram “gabinetes ” com coleções naturalistas, de medalhística e “antiguidades” os quais em contexto privado apresenta­ vam raridades e “curiosidades”. Os relatos de viagens e explorações de territórios, metropolitanos e ultramarinos, estimulavam o interesse pelas ciências naturais e deram origem a museus de história natural, como em Coimbra e na Ajuda, espaços dedicados à zoologia e botânica associando laboratórios, salas de desenho e áreas de depósito. Estas ciências procuraram explicar a adaptação do Homem às condições naturais e ao mesmo tempo verificavam a complexidade de valores e aspirações que determinam os comportamentos em sociedade e a necessidade de regulação. Estabeleceu-se um crescente interesse pelo estudo da cultura material, também sobre a evolução das interrelações sociais e tecnológicas.

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Jorge Queiroz

Um Museu Para Tavira

Das transformações sociopolíticas e económicas nove­ centistas surgiram modelos industriais intensivos, a urbanização e a concentração do operariado na periferia das cidades, ao mesmo tempo que se verificou o declínio da aristocracia rural, substituída por uma burguesia urbana fortalecida pela atividade industrial e comercial, endinheirada e interessada no desenvolvimento tecno­lógico mas também no comércio e fruição das artes. Do apoio destas classes burguesas surgiram as condições materiais de apoio a movimentos artísticos dos finais do séc. XIX que já não se reconheciam no academis­mo conservador e dogmatizado das “Belas Artes” e dos “Salons”. As grandes exposições universais da segunda metade do século XIX, realizadas em Londres e Paris atraíram muitos milhões de visitantes, fascinados com os avanços tecnológicos e científicos.

Resultante das transformações ideológicas, políticosociais, económicas e tecnológicas, registou-se na Europa, durante século XIX, um interesse crescente pela adap­ta­­ção de edifícios devolutos, sobretudo conventos e palácios, para instalação de unidades museológicas. Em Portugal a busca de destino para os espólios sobrantes dos saques napoleónicos e das guerras civis da primeira metade do século XIX, muitos deles provenientes da extinção das ordens religiosas, registou incúrias e apro­priações que reforçaram na intelectualidade influente, a ideia de urgência na protecção do património nacional 1, originando a criação de um Museu Nacional, que veio a surgir em Lisboa em 1884 num palácio da Rua das Janelas Verdes. Com base na evolução ideológica vários museus temáticos surgem na transição dos séculos XIX e XX como o Museu Militar (1895), Museu Colonial da Sociedade de Geografia de Lisboa (1897), Museu de Arte Sacra S. Roque (1905) e o Museu dos Coches (1905).

Nesse período a ideologia nacionalista em gestação viu nos museus espaços adequados para a pedagogia e afir­ mação dos Estados. Estes constituíram-se com base nas concepções de modernidade reformadora, formatadas por símbolos da unidade nacional, fronteiras geográficas e étnicas, a par do desenvolvimento da capacidade militar e no caso de potências colonizadoras, uma maior atenção aos territórios e potencialidades económicas de além-mar.

No Algarve é inaugurado em 1894 o Museu Arqueológico e Lapidar Infante D. Henrique, ligado a actividade pio­ neira dos primeiros arqueólogos nacionais. Entre estes encontra-se uma importante figura da cultura científica portuguesa do sec.XIX, Sebastião Estácio da Veiga. Dedica-se à Literatura Popular e à História, à Botânica 2 e à Zoologia, mas é a Arqueologia que o tornará conhecido e reconhecido nos meios científicos. Em 1866 publicou “Povos Balsenses”, onde registou a localização provável da cidade romana de Balsa junto ao litoral no concelho de Tavira. Realizou também a primeira carta arqueológica em Portugal, a do Algarve.

No decorrer séc. XIX várias regiões europeias se agre­ga­ ram em novas nações. Paradigmático foi o caso da Itália, unificada em 1870 a partir de um território historicamente disseminado por pequenas repúblicas, onde a esmagadora maioria da população falava dialectos locais e apenas 3% da população se expressava em italiano.

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Imagem 1 - Carta Archeologica do Algarve, Estácio da Veiga.

Numa proposta de 1880 Estácio da Veiga avançou com um “Programa para a insti­tui­ção dos estudos archeolo­gicos em Portugal” na qual desenvolvia a ideia de estru­tu­­ração orgânica nacional e por regiões, a introdução da arqueologia no Curso Superior de Letras, a realização de cartas arqueológicas regionais e a colocação dos espólios em museus locais. “ A centralisação archeologica em Lisboa…aniquila nas provín­cias um dos mais atrahentes incentivos ao estudo de diversos ramos de conhecimentos humanos… privar as províncias desse poderoso meio de progresso intelectual… e a querer que não houvesse no Reino mais do que duas ou três cidades dignas de atenção”

1. N os últimos anos do séc XIX é constituída uma Comissão Nacional para os Monumentos Portugueses e elaborada uma listagem dos principais monumentos a preservar.

Estácio da Veiga pugnou pela descentralização cultural e administrativa do País e foi pioneiro nestas formulações que continuam a manter toda a atualidade. Encontrou influentes adversários que impediram a almejada descentralização, o usufruto dos espólios e a valorização das regiões.

2. Estácio da Veiga publica em 1869 “Plantas da serra de Monchique” com o naturalista alemão Hermann Laubach

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Um Museu Para Tavira

A IDEIA DE UM MUSEU PARA TAVIRA Tavira, antiga e bela cidade-estuário, com origem pro­ vável num assentamento fenício (Séc. VIII a V a.C.) na colina sobranceira ao rio, recolhida para o interior da desembocadura fluvial, foi permanente sentinela das ameaças vindas do mar situado a nascente. Bons observadores, os árabes chamaram-lhe “a escondida”… A investigação pluridisciplinar, vai descobrindo per­ cursos dos homens, as “pegadas” que as civilizações foram deixando e que hoje questionam relatos e apropriações. Como todas as urbes com importância histórica, Tavira registou momentos de esplendor e decadência, luzes e sombras, períodos de romanização, islamização e cris­ tianização, que nos deixaram concepções filosóficas e modelos relacionais, estruturas físicas, heranças insti­ tucionais na organização territorial e social.

A decisão de instalar um Museu Municipal em Tavira data de 1937, formulada em pleno período de afirmação ideológica do Estado Novo e acompanhando o am­­bi­en­­te de preparação das comemorações dos “Centenários” em 1940, celebração simultânea do 8º Centenário da Fundação de Portugal (1140) e 3º Centenário da Restauração (1640) 1. Os mentores da proposta pretendiam instalar espólios num edifício bem situado que desse a possibilidade de acesso, a tavirenses e visitantes, aos bens patrimoniais da cidade que se conservaram no domínio público ao conflituoso sec. XIX e à turbulência política da transição entre Monarquia e República.

Na reunião da Câmara Municipal de Tavira de 13 de Maio de 1937 sob a presidência de Isidoro Manuel Pires é deliberado por unanimidade: “…d) Que sendo intuito desta Câmara fazer instalar o Museu Municipal numas dependências anexas à Igreja da Misericórdia desta cidade, que são propriedade da respectiva direcção, resolve esta Comissão administrativa arren­dar tais dependências, fazendo nelas as pequenas reparações de que carecem…. 2

Com efeito ficara no domínio municipal alguma arte sacra, numismática e tumularia.

Entretanto a 20 de Maio de 1944 a Câmara Municipal de Tavira aceitou uma doação para biblioteca, arquivo histórico e museu, um edifício do Dr. António Cabreira, Conde de Lagos. O proprietário realiza a doação “em memória da Dupla Celebração do sétimo Centenário da tomada de Tavira aos mouros pelo seu 15º avô D. Paio Peres Correia, Mestre da referida Ordem Militar e das suas Bodas de Oiro Científicas e ainda como solene gratidão à cidade e às vereações de 1888,1910,1917,1918 e 1920 e especialmente à actual… 3

Em 27 de Abril de 1930 o jornal tavirense “Povo Algarvio” faz título, “Um museu – uma ideia a aproveitar”. Vale a pena conhecer este pequeno extracto elucidativo:

A um museu de cidade ou região compete dinamizar a investigação, recolher e tratar espólios, partilhar a informação e devolvê-la à comunidade, atualizar conhe­ cimentos sobre a contemporaneidade, estimular a visita e participação dos cidadãos.

…“Nasça ele, acariciem-no com tudo o que estiver ao seu alcance, para que a nossa terra à semelhança das demais, possa ter alguma coisa que nos mostre o que fomos em todas as épocas, recebendo o povo ao mesmo tempo as lições colhidas nos fragmentos do passado que podem ser bem proveitosos.

A ideia de criar um museu em Tavira é indissociável destes desígnios mencionados também das ideias que percorreram o continente europeu na segunda metade do séc. XIX, da ascensão de nacionalismos e instauração de regimes que na primeira metade do Séc. XX provocaram duas guerras mundiais.

Criado o Museu com tudo o que possa fornecer o vosso concelho, poder-se-ia pensar em continuar a criar obras desta natureza. E então pensar-se-ia numa biblioteca e assim a nossa cidade, embora lentamente se iria impondo”.

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O museu municipal foi instalado em 1940 nas casas anexas à Igreja da Misericórdia conjuntamente com uma pequena biblioteca. Contudo o edifício apresentava proble­­mas estruturais, nomeadamente ao nível da conservação dos telhados, o que obrigou obras de iniciativa camarária e da DGEMN. O museu fechou logo após a sua inauguração e só reabriu seis anos depois. Encerrará definitivamente em 1978 registando escassos visitantes sendo o espólio recolhido e guardado em instalações da Câmara Municipal.

As dúvidas sobre a função museológica permaneceram durante décadas, surgindo esporádicas iniciativas de reflexão e declaradas aspirações de resolução, nunca fisica­ mente concretizadas, nomeadamente a utilização de instalações municipais disponíveis como a Casa Cabreira ou o Jardim de São Francisco. A hipótese de utilização do Palácio da Galeria, propriedade municipal desde 1863, para instalação do Museu foi também por várias vezes equacionada, mas este encontrava-se ocupado com fun­ções educativas, judiciais, entre outras. Com a queda da ditadura em Abril de 1974 e implantação do regime democrático, verificaram-se transformações profundas nas estruturas do Estado e na capacidade de

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3. As Comemorações Nacionais de 1940, tinham como objectivo realizar a “síntese da civilização portuguesa”, dividida em três épocas históricas: Medieval, Imperial e Brigantina. A inau­­guração solene com um Te Deum na Sé Catedral de Lisboa, no dia 2 de Junho de 1940. O encerramento das festas nacionais ocorreu a 2 de Dezembro desse mesmo ano. 4. Acta nº 17 da Sessão Ordinária da Comissão Administrativa da Câmara municipal de Tavira em 13 de Maio de 1937 5. Documento anexo à carta de 25 de Setembro de 1942 do Dr. Ramos Passos, Presidente da Câmara, Arquivo Histórico Municipal de Tavira


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Um Museu Para Tavira

intervenção das autarquias locais, que passaram em 1976 a possuir órgãos eleitos directamente pelos cidadãos, novas competências municipais, autonomia administrativa e financeira e reforço dos recursos com a entrada em vigor da Lei nº 1/79 ou das Finanças Locais. Uma nova dinâ­mica surgiu sobretudo a partir de 1986 com a entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia.

abertura a uma nova museologia dinâmica com en­ foque democrático e plural, centrada na investigação e nos contributos das diversas ciências ou disciplinas, no estudo e interpretação participada dos espólios, também estrategicamente ligada ao turismo cultural porque Tavira se transforma nas últimas décadas do século XX numa das mais atractivas cidades turísticas do sul de Portugal.

O Museu Municipal concebido durante o Estado Novo, apresentava-se ideológica e programaticamente fragili­ zado face aos objectivos e necessidades de actualização,

NA TRANSIÇÃO DO MILÉNIO: TAVIRA, CIDADE CULTURAL Durante quase todo o sec. XX a constituição de coleções públicas em Tavira foi afectada pela inexistência de uma unidade especializada, um museu com recursos hu­ma­ nos formados e actualizados, direccionado para recolha e investigação, conservação e restauro, exposição e educação. Como se viu ao longo dos séculos XIX e XX a escassa consciência do património e reduzida escolarização, tornaram débeis ou insuficientes as acções para proteger, investigar, preservar e dar uma utilização pública ao património histórico da cidade. Foi sobretudo na úl­ tima década do século passado e nos primeiros anos deste milénio que se começaram a definir perspectivas de desenvolvimento museológico e de valorização patri­ monial, dando uma particular atenção ao valiosíssimo Centro Histórico de Tavira

Imagem 2 - Passeios orientados de interpretação do património, atividade regular do MMT .

Tavira está ligada aos primórdios da investigação ar­ queológica em Portugal, pelo facto de Sebastião Estácio da Veiga, tavirense e pioneiro desta ciência ainda em formação, ter começado por volta de 1865 a investigar o litoral nas vizinhanças da cidade, detectando estruturas e exumando espólios diversos da cidade romana de Balsa, situada na freguesia de Nossa Senhora da Luz. Subja­ centes à sua actividade estavam também as intenções de musealizar e valorizar o património histórico algarvio. Estácio da Veiga possuía perspectivas e metodologias científicas que o levaram da análise dos povos balsenses

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Imagem 3 - Espólio funerário proveniente da necrópole romana da Torre d’Ares (Tavira) integrado no Museu Regional do Algarve.

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ao projecto da “Carta Arqueológica do Algarve”, pugnando também pela criação de um Museu Regional do Algarve. O sonho não se concretizou, a maioria do espólio da cidade e da região resultante das escavações novecentistas foi transferido e encontra-se há mais de um século nas reservas do Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa.

à inscrição na UNESCO da Dieta Mediterrânica como Património Cultural Imaterial da Humanidade. “Tavira, vive cultura” é frase emblemática que o Município adotou na primeira década do sec. XXI o qual reflete o reconhecimento do perfil cultural da cidade e território envolvente.

Nas últimas décadas do século XX o conceito de museu evoluiu, surgiram edifícios simbólicos com intuitos de projecção das cidades e lugares, concebidos por ar­qui­ tectos de renome, espaços que acolhem valiosas e multi­ facetadas colecções e onde circulam atrativas e media­ tizadas exposições. Estes projectos cumprem funções ligadas a es­tratégias político-culturais de ci­dade e região, mas também educativas e comerciais. Verifica-se con­ comitantemente o aparecimento de uma grande diver­ sidade de museus regionais, de cidade ou locais, os quais desenvolvem temáticas ligadas à realidade socioeco­ nómica, ao património artístico, natural e paisagístico, aos acon­tecimentos históricos e a personalidades mar­ cantes, à ciência e tecnologia.

Nos últimos anos, acrescido por uma conjuntura eco­ nómica desfavorável, foi necessá­rio estabelecer um mo­ delo de desenvolvimento cultural evolutivo, equilibrado e sustentável para Tavira, nomeadamente no campo das infraestruturas, que permita evitar erros do passado e incluir as perspectivas das gerações subsequentes. Neste processo foi reequacionado todo sistema museo­ lógico e as suas principais componentes.

O PALÁCIO DA GALERIA E O SISTEMA MUSEOLÓGICO CONCELHIO A opção pela recuperação e refuncionalização de edifícios históricos em Tavira operada nos últimos anos do século XX valorizou a cidade, evitou a degradação e perda irre­ versível de património, possibilitou um maior dinamismo nos domínios da economia, da cultura e do turismo.

As opções e reptos colocados ao Museu Municipal de Tavira estão em sintonia com as rá­pi­das mutações ur­­ba­nas, mobilidades internacionais e nacionais, multi­ culturalidades, novos comportamentos e práticas sociais, acrescidas pelo facto de Tavira ser cres­centemente con­ siderada como exemplo de preservação patrimonial, atractiva do ponto de vista cultural e turístico, sendo em 2011 seleccionada pelo Governo para comunidade re­ presentativa de Portugal na Candidatura Transnacional

As questões referidas estiveram presentes na concepção desenvolvida pelo arquitecto José Lamas para o Palácio da Galeria, a ideia de um “Centro Cultural” o qual conteria um espaço museológico e áreas para actividades com ele

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Um Museu Para Tavira

relacionado, sala de exposições temporárias e centro de documentação. Propunha igualmente numa 2ª fase a construção de um auditório para 250/300 pessoas, oficinas para artes diversas e bar/restaurante. Este Centro Cultural, em perspectiva desde 1987, apre­sentava problemas de adaptação à sensibilidade arqueo­lógica do espaço e à importância de preservar a envolvente histórica, aos quais se somou a opção da autarquia pela aquisição e reabilitação do Cine-Teatro António Pinheiro para Fórum Cultural com instalação de um auditório. Significava a duplicação de equipamentos do mesmo tipo, problemas de sustentabilidade e de programação simultânea. O desenvolvimento do desenho programático da rede museológica pressuponha arti­culação com importantes dimensões culturais da cidade e museológicas. Neste contexto impunha-se uma melhor e mais fundamentada reflexão sobre as opções de reprogramação. Um documento interno propôs uma primeira linha de orientação, o museu destinava-se a “um território, a um património e uma comunidade participativa”. A partir deste raciocínio era concebido um projecto polinucleado com três áreas temáticas: a cidade, o mar e a terra. Deste exercício resultaria “um pólo central e dezoito núcleos temáticos”. No Palácio da Galeria propunha-se a instalação de um pólo central e um “Núcleo Moderno II”, que abordaria a história do Palácio e da Tavira Quinhentista. Esta perspectiva esquemática e expansiva, não explicitava o modelo de gestão e a sua sustentabi­lidade. As capacidades locais e nacionais vieram natural­mente a delimitar ambições, contudo resultou uma base para redefinição atualizada de sistema polinucleado man­tendo a matriz de estudo valorização do território e da história regional.

Imagem 4 - (página anterior) Oficinas de expressão artística, uma das atividades do Serviço Educativo.

No dia 5 de Outubro de 2001 foi inaugurada a 1ª fase da reabilitação do Palácio da Galeria para Centro Cultural de Tavira. O Palácio da Galeria a partir de 2002 assumiu um papel de espaço museológico de investigação, formativo e infor­mativo, centrando-se não apenas na história da cidade

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e da região, mas também proporcionando abertura às expressões artísticas da contemporaneidade

propunha a compatibilização. Devido à situação finan­ ceira do País e às suas consequências locais, a sua concretização ficou suspensa.

Esta perspectiva de 2001, aberta e atualizada, demonstrou-se correcta e recebeu um importante impulso na Lei nº 47/2004 de 19 de Agosto, ou Lei-Quadro dos Museus Portugueses.

O DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA MUSEOLÓGICO (2000 -2012)

Com o novo milénio surge uma nova etapa na vida do Palácio da Galeria, nasce o Museu Municipal com impor­ tantes funções culturais, gerido e dinamizado desde 2001 pelo Departamento Sócio-Cultural entretanto criado na sequência de uma reorganização de serviços municipais

Do ponto de vista programático, organizativo e da ges­tão, a instalação do Museu Municipal de Tavira en­quanto unidade especializada não respondeu de início a alguns requisitos essenciais, nomeadamente à coordenação das funções enunciadas pela Lei-Quadro dos Museus Portugueses, que foram internamente subdivididas por duas estruturas departamentais camarárias.

O Palácio da Galeria irá beneficiar ainda de uma maior centralidade museológica, em virtude das escavações arqueológicas desenvolvidas em vários pontos da cidade e também no interior e no parque anexo ao Palácio, terem tornado visíveis estruturas fenícias, turdetanas e islâmicas.

A solução enquadradora acabou sendo assumida na reestruturação orgânica municipal de 26 de Abril de 2010 com o surgimento do Departamento de Cultura, Património e Turismo que unificou a organização e gestão de valências patrimoniais e museológicas e também as do Museu Municipal, o que permitiu definir melhor os serviços e respectivas áreas de investigação histórica e patrimonial, exposição, conservação e restauro, reservas, serviço educativo, centro de documentação. O serviço de arqueologia assegura funções museológicas mas também promove ações preventivas e acompanha obras, públicas e privadas, sobretudo no Centro Histórico.

No início da última década foi perspectivado concentrar no Palácio da Galeria uma síntese da história da urbe, sendo a arte moderna e contemporânea direccionada para uma estrutura autónoma mas ligada ao Museu, o Centro de Arte Contemporânea. Este projecto seria portador de elevado potencial de actualização e inovação, multidisciplinar permitindo explorações transversais e diálogo entre património antigo, com museali­zação das estruturas arqueológicas em diálogo com as formas actuais da arte.

A colecção do Museu Municipal de Tavira, em permanente processo de inventariação e atualização, é constituída por um núcleo inicial de numismática, tumularia e arte

Chegou a avançar concurso para este projecto a instalar no terreno anexo no interior da cerca do Palácio, que

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sacra, a que se juntaram cerâmica e artefactos, ins­ trumentos da actividade agrícola, materiais exumados nas escavações arqueológicas promovidas pela autarquia na reabilitação de edifícios sobretudo no Centro Histórico, nomeadamente espólios de origem fenícia, islâmica e medieval cristã e moderna, fotografia e escultura. A estes espólios foram acrescentadas por doação algumas obras de arte contemporânea portuguesa.

As igrejas de Tavira, vinte e uma nos 66 hectares do Centro Histórico, constituem um valioso património artístico do Sul de Portugal. A mais antiga, datada do seculo XIII, a Igreja de Santa Maria do Castelo, terá sido construída sobre a mesquita existente no período muçulmano. Foram reabilitados diversos templos de tutela municipal com o objectivo de os preservar e abrir ao público, casos da Ermida de Santa Ana (Séc. XIV) de origem medieval, que foi capela do Palácio do Governador do Algarve. Nesta se mantém exposição de arte sacra e sobre a história do templo. A Ermida de São Sebastião também de origem medieval possui representações pictóricas setecen­ tistas sobre a vida de São Sebastião da autoria de Diogo de Mangino.

Em articulação com o programa museológico geral e para o Palácio da Galeria foram abertos ao público na cidade, na periferia e no interior serrano diversos núcleos museológicos, alguns deles protocolados com entidades privadas, caso do núcleo museológico de Cachopo insta­ lado antiga Casa dos Cantoneiros, que contou com apoio do Centro Paroquial, entidade que colaborou na recolha de informações sobre a história local.

A Igreja de São Pedro Gonçalves Telmo ou das Ondas (Séc. XV-XVI), protector de mareantes e pescadores, encontra-se neste momento em obras de reabilitação geral, com restauro de pinturas e tetos.

Foram também protocolados os núcleos da pesca do atum no antigo Arraial Ferreira Neto, atual Hotel Vila Galé Albacora e o núcleo do bairro almóada situado no interior da Pousada do Convento de Nossa Senhora da Graça. O núcleo expositivo sobre a produção de azeite em Santa Catarina da Fonte do Bispo resultou de um acordo entre a autarquia e a cooperativa de produtores locais.

Em 2010 o Museu Municipal editou “Tavira, Cidade das Igrejas” que contempla a análise-síntese das 21 Igrejas situadas nos 66 hectares do Centro Histórico. Em 2012 saiu a publicação “Diogo Tavares de Ataíde – Entalhador de Pedra (1711- 1765), dedicada a uma figura incontornável da arquitectura barroca no Algarve, autor de importantes obras em Faro e em Tavira.

Em 2009 abriu um Centro Interpretativo do Abasteci­me­nto de Água junto ao rio, no sopé da colina de Santa Maria, local onde historicamente se realizava a “aguada” dos navios e onde nas primeiras décadas do Séc. XX foram construídas instalações do sistema de abasteci-­­ mento de água.

ESTRATÉGIA EXPOSITIVA DO MUSEU MUNICIPAL

expositiva, núcleos histórico - temáticos como o Núcleo Islâmico, Ermida de Santa Ana e Ermida de São Sebastião, sobre Pesca do Atum no antigo Arraial Ferreira Neto, Núcleo Museológico de Cachopo na aldeia serrana e instalado na antiga Casa dos Cantoneiros, o qual aborda do ponto de vista antropológico e etnográfico a vida na serra.

Entre 2002 e 2012, no Palácio da Galeria e núcleos de­ senvolveu-se um programa de actividades, inserido na necessidade de reconhecimento e afirmação do elevado potencial histórico e artístico, sobretudo centrado na investigação sobre o território e o património, na divulga­ ção da arte contemporânea portuguesa e internacional, numa oferta educativa diversificada e inclusiva.

O Núcleo Fenício em fase de concepção no arqueossítio designado por “Corte Reais” em pleno Centro Histórico permitirá, a partir da consolidação de estruturas e de montagem de sistema de circulação interna, a visita à fonologia da cidade antiga, do medieval cristão à muralha fenícia situada no subsolo de um edifício.

Neste período foram programadas no Palácio da Galeria mais de 50 exposições sobre história e património antigo num enquadramento pluridisciplinar, arte moderna e contemporânea, que registaram mais de 200 mil visitantes e demonstraram o interesse dos públicos pela diversidade temática e pela actualidade da criação artística portuguesa, proporcionando um novo um rico e multifacetado acervo bibliográfico com mais de meia centena de catálogos disponíveis.

O Palácio da Galeria assegura a coordenação das funções museológicas previstas, a partir de uma direcção que garante o planeamento e orientação dos vários projectos, a gestão de recursos, a sistematização de uma programação expositiva coerente com os objectivos de desenvolvimento da cidade.

O número de visitantes do Palácio da Galeria e núcleos tem vindo a crescer de ano para ano, atingindo um máximo de 30 mil entradas em 2010.

Tavira apresentou candidatura e aderiu em 2001 à Rede Portuguesa de Museus, estrutura de iniciativa governamental e com a qual o Museu Municipal de Tavira desde sempre colaborou e recebeu apoios pontuais para formação, equipamentos e edições.

As exposições, “Tavira: Território e Poder” (2003) no Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa e “Espírito e Poder: Tavira nos Tempos da Modernidade” (2006) no Palácio da Galeria, actualizaram conhecimentos sobre a história regional e nacional, proporcionando a apresentação pública de objectos arqueológicos e artísticos pertencentes às colecções da cidade.

O Museu Municipal de Tavira integrou nesta primeira fase o Palácio da Galeria como edifício-ancora com funções administrativas, de gestão do sistema e programação

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Com cerca de dois anos de gestação abriu em Outubro de 2008 no Palácio da Galeria uma exposição sobre a história da cidade na sua relação com o litoral, “Tavira - patrimónios do mar”, cujo catálogo foi premiado. A exposição centrou a análise na relação milenar da cidade com o território litoral, as economias do mar, o urbanismo ribeirinho, as viagens planetárias e o porto de Tavira, religiosidades e devoções, as novas funções do mar e o turismo.

“Fotografar – a família Andrade, olhares sobre Tavira” (2011) investigou e museografou uma importante coleção privada construída por quatro gerações de fotógrafos perten­centes a uma família estabelecida em Tavira em 1912, os Andrades. O discurso expositivo centrou-se na sobreposição didática da história da fotografia, da cidade e da própria família, com apresentação de diverso espólio fotográfico e milhares de fotografias. Em 2013 foi inaugurada a exposição “Dieta Mediterrânica – Património Cultual Milenar” no âmbito da candidatura à inscrição da Dieta Mediterrânica como Património Cultural Imaterial da Humanidade na UNESCO na qual Tavira é comunidade representativa de Portugal.

No ano seguinte “Cidade e Mundos Rurais – Tavira e as sociedades agrárias” analisou as interrelações históricas e sociais da urbe com o barrocal e a serra, do período islâmico ao final do século XX, subdivida por vários nú­cleos temáticos. Esta integrou também a pioneira exposição coletiva da RMA - Rede de Museus do Algarve intitulada “Algarve - Do Reino à Região” sobre a história da região, uma dezena de exposições geograficamente distribuídas pelos municípios aderentes e complemen­ tares nas suas temáticas.

A arte contemporânea presente na programação do Palácio e tornou-o uma referência na divulgação das artes actuais no sul do País. Exposições realizadas no Palácio da Galeria divulgaram obras de destacadas personali­dades e universos artísticos, como Antoni Tàpies (2002), Bartolomeu dos Santos (2002), José Manuel Rodrigues (2002), Costa Pinheiro (2003), Gunter Grass (2003), Alberto Carneiro (2003), Ângelo de Sousa (2004), Vieira da Silva (2005), René Bertholo (2005) 1, Júlio Pomar (2006), Paula Rego (2005), Sofia Areal (2005), Xana (2005), Gerard Castello Lopes (2007), Joana Vasconcelos (2007), Ivo (2007), Cabrita Reis (2008), Leonel Moura (2009), Rui Sanches (2010) Luis Gordillo (2011) 2, entre outros e foi dada também visibilidade a trabalhos de valores artísticos da região e do País através de mostras individuais de Eduardo Gageiro, José Mouga, Cabral Santo, Manuel Caeiro, Luis Afonso, Heitor Figueiredo, Teresa Pavão, Manuel Baptista, Valter Vinagre, Karsti Stiege, Noé Sendas, Luis Ramos, Rico Sequeira, Margarida Palma, Francis Tondeur, Paulo Serra, Rinoceronte, Fernando Pinheiro, Carlos Barroco, Araci Tanan, Claudio Sousa, António Alonso, Hector Garrido,

Em 2010 “A 1ª República em Tavira” assinalou os 100 anos da Revolução Republicana, iniciando-se esta exposição com imagens e objectos da visita do Rei Dom Carlos I a Tavira concluindo com a revolta e tomada da Câmara Municipal a 4 de Fevereiro de 1927 por um grupo de republicanos que acabaram presos.

Foram apresentadas várias exposições coletivas e também coleções de arte portuguesa e internacional, casos da colecção Berardo (2003) na sua componente dedicada ao surrealismo, do Centro Português de Fotografia (2004), Casa da Cerca de Almada (2004), Museu da Presidência da República (2005), da EDP com os “Prémios EDP Novos

Imagem 5 - “Cidade e mundos rurais - Tavira e as sociedades agrárias” - Exposição de investigação produzida pelo Museu Municipal de Tavira (2010- 2011)

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6. “O Sol e a lua” de René Bertholo no Palácio da Galeria foi a ultima exposição do artista em vida. Faleceu em Junho de 2005, o catálogo editado insere uma entrevista de testemunho retrospectivo. 7. “Pintura interrogada” de Luis Gordillo, Prémio Velasquez 2008, no Palácio da Galeria foi a sua primeira exposição individual em Portugal.


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Valores 2000-2004”, Fundação Caixa Geral de Depósitos (2011) e desenvolvidas exposições temáticas como os “50 anos de Gravura em Portugal” (2006), Fundação Calouste Gulbenkian (2007), Portugal Telecom (2012). A diversidade do património nacional surgiu também na programação do MMT, nomeadamente com as expo­ sições “Arquitecto Paisagista, conceito e obra” (2007) e “Habitar Portugal 2003-2005”, sobre os valores ecológicos “Tuberaria Major”, de Roberto Santandreu e Carlos Mota de Oliveira, sobre ciência e multimédia “Artelogia – Ciência da Arte/Arte da Ciência” de Nuno Maya e Carolle Purnell. Esta abertura programática do Palácio da Galeria à contemporaneidade, com preocupações educativas e didácticas, permitiu à população e às escolas acesso ao conhecimento da arte do século XX e inclusão de públicos muito diversificados, quanto à origem geográfica, etária e social. A experiência confirmou o interesse de públicos heterogéneos, com elevada incidência de visitantes estran­g eiros, por uma programação investigativa, diversificada e atualizada. O Serviço Educativo assegura hoje funções de interpre­ tação e exploração expositiva, actividades lúdicas e cria­ tivas para públicos infanto-juvenis e adultos no edifício e no território. Prepara e realiza igualmente visitas temá­ti­cas guiadas, sobre ao património da cidade e das áreas rurais, promove cursos e oficinas no domínio das artes visuais.

Imagem 6 - “O surrealismo na coleção Berardo” - exposição de arte internacional no Palácio da Galeria ( 2003)

Merecem referência, pelo seu interesse artístico e caracter inovador, os projectos “Arquitectura e Dança”, oficina

Na foto aspecto da montagem do quadro “Femme sur fauteil” de Pablo Picasso.

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Um Museu Para Tavira MUSEU MUNICIPAL DE TAVIRA 01 – Palácio da Galeria 02 – Núcleo Islâmico 03 – Centro Interpretativo do abastecimento de água a Tavira

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04 – Ermida de Santa Ana 05 – Ermida de São Sebastião 06 – Arqueosítio Fenicio (visita condicionada) 08 – Núcleo Museológico de Cachopo

NÚCLEOS EXPOSITIVOS EM ESPAÇOS PRIVADOS COM PROTOCOLO

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07 – Núcleo Arqueológico Islamico do Bairro Almoada/ Convento da Graça 09 – Núcleo Expositivo da Antiga Armação daPesca do Atum / Antigo Arrail Ferreira Neto / Hotel Albacora 10 – Núcleo Museológico do azeite / cooperativa Agrícola de Santa Catarina da Fonte do Bispo

FUTUROS NÚCLEOS MUSEOLÓGICOS 10

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coreográfica sobre a arquitectura do Palácio da Galeria, “Uma tarde com os nossos vizinhos”, que proporcionou a visita e convívio/magusto com os cidadãos da vizinhança, o “Jazz no Palácio” nas noites de Verão, para além de diversos concertos musicais, oficinas de criatividade, cursos de desenho e pintura, entre outras actividades. Os grupos de teatro colaboraram na exploração de diversas exposições e o programa “Ciência na Cidade de Tavira” com o apoio da Agencia Nacional da Ciência Viva permitiu a concretização de interessantes parcerias entre o Museu, o Centro de Ciência Viva de Tavira, com realização de colóquios sobre robótica, medicina, geologia, matemática, geografia, …. UM MUSEU PARA AS ATUAIS E PRÓXIMAS GERAÇÕES Num contexto económico e social particularmente difícil e após uma década de trabalho na (re) construção do Museu Municipal de Tavira, este texto reflete a história recente da cidade, testemunha um percurso coletivo e as perspectivas surgidas, lança para análise e reflexão uma proposta de museu multifacetado para a atual e próximas gerações. Do nosso ponto de vista, o Museu é uma construção coletiva, de várias gerações, um projecto sempre ina­­­cabado e problematizador que, recebendo contributos de diversas origens disciplinares, exige a permanente participação da comunidade. Tavira é hoje inequivocamente, pelo seu perfil histó­rico-monumental, pelos equipamentos culturais insta­lados e pela programação atualizada que desenvolve, uma cidade de cultura. Neste âmbito o seu Museu Municipal representa uma componente fundamental como espaço de investigação e preservação da memória coletiva, fator de desenvolvimento educativo, de inovação e ciência, problematizador e produtor de novos conhecimentos.

11 – Dieta Mediterrânica 12 – Núcleo Museológico Fenicio

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Leonor Esteban Conservadora e Restauradora do Município de Tavira

CONSERVAÇÃO E RESTAURO EM PORTUGAL: ANTECEDENTES A conservação e restauro sempre fez parte da história da humanidade e houve sempre tentativas em preservar os objetos quer por motivos funcionais, estéticos, religioso ou políticos. Desde a Antiguidade que os restauros eram feitos nas oficinas dos artesãos e artistas. No Renascimento, o restauro fazia parte da atividade normal de qualquer escultor. Nesta época discutia-se já o conceito de restauro. No século XVIII deu-se início na procura de procedimentos científicos que irá progredir ao longo do século XIX, surgindo as primeiras reflexões das quais descendem as atuais orientações de conservação. Neste século a conservação surge como disciplina autónoma. Com o rápido crescimento do aparato tecnológico ao longo do século XX, os cientistas especializados tornam-se mais prevalecentes. Werner desenvolve a conservação etnográfica, Robert Organ especializa-se no tratamento e armazenamento de metais e madeira, Garry Thomson na climatização dos museus, W. Oddy no estudo de metais e pedra, entre outros. 1

1. VELOSA, Gonçalo. História da Conservação e Restauro e Arqueologia. Disponível em: http://www.5cidade.files.wordpress.com/2008/.../historia-da-conservacao-e-restauro...

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Fotomontagem a partir de imagem cedida pela Família Andrade.

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Leonor Esteban 2. Maria Isabel Seruya, José Maria Amador, Nazaré Escobar, “O papel do Instituto José de Figueiredo”, in Museos y Museología en Portugal, Revísta de Museología, Madrid, 2000, pp. 55-58

Conservação de Bens Culturais em Tavira

Em Portugal, não se pode falar de conservação e restauro sem fazer referência ao Instituto José de Figueiredo (IJF). As origens do IJF remontam a 1911. José de Figueiredo, na altura diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), promoveu a criação da mais antiga Oficina de Restauro de Pintura, dependente do Ministério de Instrução Pública, e que foi dirigida até 1934 por Luciano Freire. Em 1936 com João Couto, conservador do MNAA, foi instalado junto daquela Oficina um laboratório de exames radiográficos de pinturas nacionais e estrangeiras dando início ao estudo científico das obras de arte. Em 1940, já como diretor do Museu, João Couto promove a instalação do laboratório num edifício construído de raiz. O IJF foi oficializado em 1965 e passou a fazer parte da Direção-Geral do Ensino Superior e de Belas Artes do Ministério da Educação. A formação dos restauradores no Instituto era feita com base no conhecimento empírico transmitido pelos mestres. Esta situação foi progressivamente alterada com uma nova geração formada na Escola Superior de Belas Artes nas áreas de pintura e escultura e que realizavam estágios em institutos ou organismos de conservação e restauro no estrangeiro. Nos finais de 1970 foi criada a Secretaria do Estado da Cultura onde foi incorporada a área da conservação e restauro do património cultural. Em 1980 é criado o Instituto Português do Património Cultural (IPPC) e a reestruturação do IJF levou a que ficasse dependente deste instituto. A definição da carreira de técnico de conservação e restauro foi decretada posteriormente. Ao IJF foi atribuída as competências de conservação e restauro, seu ensino, sua difusão e formação de pessoal nesta área. Em 1981, o IJF promoveu, com apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional, o primeiro curso de conservação e restauro que se realizou no País. A maior parte dos técnicos formados neste curso passaram a integrar os quadros do IJF. Nos finais de 1980 procurou-se disciplinar o ensino da conservação e restauro em Portugal através do ensino técnico profissional e do ensino superior politécnico. Em 1989 é criada, no âmbito da Secretaria do Estado da Cultura, a Escola Superior de Conservação e Restauro (ESCR) integrada no ensino superior politécnico conferindo o grau de bacharelato. O IJF deu apoio a seminários e estágios dos alunos da ESCR. O reconhecimento da Conservação como uma disciplina científica, autónoma e interdisciplinar levou à integração do curso na Universidade Nova de Lisboa (UNL).2 Atualmente, os cursos de conservação e restauro com reconhecimento nacional e internacional são ministrados na Universidade Nova de Lisboa, no Instituto Politécnico de Tomar e na Universidade Católica Portuguesa.

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O técnico de conservação e restauro deve obedecer às diretrizes profissionais do código de ética desenvolvida pela European Confederation of Conservator-Restorers Organisations (E.C.C.O.). A definição da carreira do técnico de conservação e restauro na administração pública está regulada pelo Decreto-Lei N.º 47/2004 (19 de Agosto) no artigo 31.º, n.º 1, refere o seguinte: “Conservação e restauro de bens culturais incorporados ou depositados no museu só podem ser realizados por técnicos de qualificação legalmente reconhecida, quer integrem o pessoal do museu, quer sejam especialmente contratados para o efeito”.

uma site de conservação “AL-Gharbe Conservação” (a conservação do Património no Algarve) com fins de divulgação de toda a informação e artigos relacionados com esta área. A ARP, Associação Profissional de Conservadores Restauradores de Portugal, foi fundada em 1995 e tem como principais objetivos a defesa e promoção da classe profissíonal dos conservadores-restauradores no nosso país e na Europa, através da sua representação na European Confederation of Conservator-Restorers’ Organizations (ECCO), e na divulgação e salvaguarda do Património Cultural. Também possui um site de divulgação.

Deste modo, o trabalho de conservação e restauro é feito em laboratório pelo técnico especializado na área e o seu trabalho consiste essencialmente em analisar o estado de conservação dos bens culturais e extrair toda a sua informação possível, intervir apenas quando necessário para estabilizar os materiais, ou seja aplicação de tratamentos químicos para retardar a deterioração, acondicionamento correto dos objetos, documentação de todo o trabalho efetuado, incluindo por vezes a fotografia e os raios X e assegurar um meio ambiente correto para a sua preservação.

TAVIRA: TRABALHOS DESENVOLVIDOS NO ÂMBITO DA CONSERVAÇÃO E RESTAURO O Município de Tavira tem um riquíssimo património arqueológico, etnográfico e artístico. Para além de ser um contributo para o enriquecimento da cidade, a sua preservação torna-se essencial para passar o testemunho às futuras gerações. Assim, o Museu Municipal de Tavira tem um papel social e científico importante na inventariação, na preservação e na divulgação dos bens culturais. Enquanto função e equipamento cultural, integra-se no panorama museológico nacional com os seus diversos serviços e tem vindo a constituir um contributo para o aumento do conhecimento da cultura regional e nacional. À sua função de base que é a salvaguarda patrimonial estão associadas funções educativas e sociais. Funciona como uma entidade comunicadora, interventiva, apostando na divulgação. Na cultura local, a comunidade é mobilizada para decifrar o significado das próprias peças, ensinar o funcionamento de alguns objetos

A evolução museológica nas últimas décadas deve-se à colocação de pessoal qualificado em conservação e restauro. Também de competências em museologia e história de arte, entre outras áreas de conhecimento, produziram efeitos na modernização dos museus portugueses. No Algarve, os Municípios de Portimão, Silves, Tavira, Alcoutim e Faro possuem laboratórios de conservação e restauro havendo ainda relações de troca de informações entre os técnicos. Na Rede de Museus do Algarve criou-se o grupo de conservação e restauro para promover as suas diversas atividades. Foi ainda criado

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etnográficos transmitindo o seu modo de funcionamento ou explicar as fases dos ofícios em vias de extinção. O objeto é assim explorado no contexto geográfico, social, cultural e económico. Deste modo, tornou-se importante a aproximação e participação das comunidades no estudo e valorização do património 3 que passa também pela conservação e restauro. Por exem­­plo, um objeto cerâmico arqueológico, tem que ser restaurado para ser entendido ou uma moeda terá que ser tratada para ser possível visualizar a cunhagem.

Atualmente, o laboratório de conservação e restauro en­ contra-se integrado na Divisão de Cultura, Património e Museus.

Figuras 1 e 2 – Estátua de Dom Marcelino Franco, antes e depois do tratamento (Museu Municipal de Tavira)

O Museu Municipal de Tavira detém coleções muito díspares e são maioritariamente de proveniência local. A conservação e restauro das coleções arqueológicas e etnográficas municipais estão a cargo da técnica do município, sendo os bens artísticos e o património das igrejas ficam a cargo de empresas especializadas ou através do protocole com o Museu Municipal de Faro. Foram realizadas intervenções pelo serviço de conservação e restauro na estatuária pública da cidade.

O museu garante as condições adequadas e promove medidas preventivas necessárias à conservação dos bens culturais incorporados. A conservação preventiva é considerada fundamental para a salvaguarda do património cultural e deve ser considerada, entre outras, uma das prioridades do museu. A conservação é cada vez mais uma prática de prevenção e controlo ambiental das principais causas de deterioração e deverá articular-se transversalmente com outras disciplinas.

Os trabalhos de conservação e restauro abrangeram ainda o património industrial. Devido à sua importância histórica, a preservação e abertura do Centro Interpretativo de Abastecimento da Água a Tavira tornou-se um elemento informativo dentro da cidade. Dentro de um edifício, junto ao rio Séqua, encontram-se estruturas em ferro, uma bomba de água, que serviram conjuntamente com o depósito de água para fornecer a água às habitações a partir da década de 1930.

A preocupação do Município em conservar o seu património arqueológico remonta a 1998, na sequência das intervenções arqueológicas do antigo Banco Nacional Ultramarino e de Netos – Hotelaria e Turismo, Lda. Durante os primeiros anos adquiriam-se equipamentos necessários para o funcionamento do laboratório, produtos químicos para o tratamento das peças, e materiais de acondicionamento. Os trabalhos de conservação de materiais etnográficos iniciaram-se com o Núcleo Museológico de Cachopo, inaugurado em 2000.

Com fins educativos, de formação e de sensibilização dos mais jovens, vários estagiários da Escola Bento Jesus Caraça de Mértola e jovens dos projetos de Ocupação Tempos Livres e Férias Ativas participaram no tratamento de materiais arqueológicos e etnográficos.

PATRIMÓNIO ARQUEOLÓGICO Os materiais que foram tratados pelo laboratório de conservação são provenientes de diversas escavações arqueológicas realizadas sobretudo no Centro Histórico da cidade.

3. Joana Seixas Cartaxo, Marco Lopes, “O Museu Municipal de Tavira: retrato de um território”, In Tavira. Vila Antiga, Cidade Renovada, Câmara Municipal de Tavira, 2005, 100-109

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Os materiais provenientes das escavações arqueo­­ló­gicas da cidade são cerâmicas, ligas de cobre, chumbos, Ferros, vidros, azeviches, materiais osteológicos e tipos de faunas. O cabedal, a madeira e os tecidos são materiais mais raros e foram encontrados apenas pequenos fragmentos. Os nossos solos, devido às suas características químicas, não permitiram a preservação destes materiais, que se preservam, sobretudo, ou em solos encharcados, incluindo zonas geladas, típicas do centro, Norte da Europa e Norte da América ou áreas desérticas como o Norte de África. Por este motivo alguma informação arqueológica que não chega até nós.

PATRIMÓNIO ETNOGRÁFICO

exporem o metal subjacente, destruindo completamente a sua superfície original.

Além da existência de um rico património arqueológico, o Museu Municipal de Tavira possui também um diversificado património etnográfico. Este património reparte-se em três coleções: espólios recolhidos provenientes tanto do Município de Tavira como doado por particulares e relacionado com a agricultura e os ofícios de latoeiro, sapateiro e aferidor de pesos e medidas; Objetos etnográficos que faziam parte da colecção do Sr. José Mendonça Furtado Januário; e objetos relacionados com a vida rural, doados por particulares, em que parte deles se encontram expostos no Núcleo Museológico de Cachopo.

Quando se iniciou o uso da lupa binocular ou dos raios X tornou-se visível que estes tratamentos não só não tinham consideração pela forma original dos objetos, os detalhes superficiais e os materiais associados, como alteravam a sua natureza original do próprio material. Assim com os anos, desenvolveram-se técnicas mais delicadas para reter a máxima informação possível de um dado bem arqueológico. A conservação no local da escavação arqueológica é talvez o processo mais crucial, porque os materiais enterrados durante séculos mantiveram-se em equilíbrio com o meio ambiente. O acto da escavação vai introduziu desequilíbrios inevitáveis que podem conduzir à degradação. Por este efeito, a conservação inicia-se no local da escavação através do acondicionamento adequado dos materiais.

CONSERVAÇÃO DE BENS ARQUEOLÓGICOS Em Portugal, a conservação de bens arqueológicos iniciou-se com o Laboratório de Conservação e Restauro e Oficina de Restauro de Mosaicos do Museu Monográfico de Conimbriga, fundado em 1962 na sequência dos tra­ balhos arqueológicos na cidade romana de Conimbriga.

No laboratório, começa o exame pormenorizado dos artefactos. Muitos objectos são limpos à lupa binocular e este processo é entendido como investigação, ou seja, o seu principal objectivo é retirar toda a informação de um objeto, que ficará registada, como as características, tecnologias empregues na produção, funções, etc. Sempre que possível deverá incluir-se fotografias, desenhos e raios X.4 Existem diferentes graus de interferência nos objetos, da limpeza completa e restauros, à extração de informações com intervenção de radiografias, amostragem (para análises) e limpezas seletiva, até à conservação de emergência conduzida no local da escavação arqueológica, ou restringir-se apenas ao acondicionamento e controlo ambiental. A conservação preventiva deve estar continuamente presente. 5

O Campo Arqueológico de Mértola, criado em 1978, possui também um dos laboratórios de conservação arqueológica mais antigos. Atualmente, existem vários laboratórios de conservação e restauro espalhados no País. Os métodos aplicados na conservação dos materiais arqueológicos tem vindo a desenvolverem-se. Processos tanto químicos como mecânicos usados no passado estão atualmente postos de lado por serem agressivos. A limpeza era entendida apenas como remoção do material alterado depositado nas superfícies do objetos para se parecerem como nas suas formas originais. Assim, os produtos de corrosão de um ferro eram removidos até

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O Concelho de Tavira tem ainda patrimónios relacionados com pescas, arraiais da pesca do atum, fábricas de conservas como a Tavipesca e a Balsense, capturas do polvo, pescas artesanais e salinicultura. Etnografia de salvaguarda é uma prática importante da antropologia e que se aplica à salvaguarda de registos de uma cultura em extinção. A salvaguarda etnográfica tem como finalidade a abordagem dos objetos como conhecimento das línguas e dos dialetos, dos folclores, dos rituais simbólicos, da vida social e profissional, dos parentescos, da economia e cultura, e foi desenvolvida em Portugal por José Leite de Vasconcelos. Um objeto etnográfico está associado à sua imaterialidade e é a partir desta que se pode compreender a sua qualidade como herança cultural. A etnografia realiza a união entre suportes materiais e os conteúdos e contextos imateriais. O património imaterial testemunha uma herança geracional. Sem estes gestos, não haveria património etnográfico. A imaterialidade é património cultural. 6 7

Figura 3 – Azulejo do séc. XVI proveniente da escavação arqueológica do Convento das Bernardas (Museu Municipal de Tavira)

4. J. M. Cronyn, The Elements of Archaeological Conservation, Routledge, London and New York, 1990, pp. 1-13 5. Conservation Guidelines Number 1, Excavated Artefacts and Conservation, Archaeology Section, UKIC, 1998 6. José Duarte Centeno Jorge, “A Matéria do Património”,

Memória e Identidades. Antropológica Avulsa N.º 2. Publicações do DEP. ANT – ISCTE, 2003, pp. 11-16 7. João Leal, “O Património Imaterial e a Antropologia Portuguesa”, Museus e Património Imaterial Agentes/Fronteiras/ Identidades, Instituto dos Museus da Conservação, 2009, pp. 289-295

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Os objetos etnográficos são produzidos a partir de materiais orgânicos, de plantas e animais, e de inorgânicos, como metais, vidros, pigmentos, cerâmicas, etc, e podem incluir materiais modernos como plásticos. Nestes objetos, os materiais orgânicos e inorgânicos estão muitas vezes combinados entre si, denominando-se por materiais compósitos.

CONSERVAÇÃO DE BENS ETNOGRÁFICOS Na conservação de materiais etnográficos, é sempre importante compreender a tecnologia que levou à produção desses objetos. O objetivo essencial é preservar a sua história permitindo compreender e interpretar o seu contexto cultural. A sua intervenção de conservação deve ser minimizada. Dado que muitos destes objetos são compósitos, ou seja constituídos por dois ou mais materiais diferentes, colocam-se problemas de conservação, sobretudo na conservação preventiva: os materiais requerem valores de humidades relativas diferentes, daí que a conservação do património etnográfico torna-se por vezes um processo mais complexo que a do património arqueológico.

CONSERVAÇÃO PREVENTIVA A conservação preventiva tem como finalidade prevenir e controlar as principais causas de deterioração dos bens, sendo as principais causas a luz, a temperatura, a humidade relativa, os poluentes atmosféricos e os ataques biológicos. Para tal existem equipamentos e métodos que permitem controlar o meio ambiente no museu. Temperaturas, humidades relativas e iluminação incorrectas e a presença de poluentes atmosféricos podem colocar o acervo museológico em risco. O controlo ambiental pode utilizar humidificadores desumidificadores, sílica‑gel, ar condicionado e colocação de filmes que absorvem tanto a luz ultravioleta como a luz visível. No Museu Municipal de Tavira, a humidade relativa e a temperatura são registadas por meio de termohigrógrafos e dataloggers e a iluminação é medida por meio de um luxímetro. O Núcleo Islâmico possui um sistema de sensores em vitrinas que mediante um recetor e um repetidor enviam a informação para um programa que permite visualizar e guardar continuamente os dados fornecidos sobre humidade relativa e temperatura. Estes métodos são simples e não requerem trabalho de laboratório, respeitando a ética da mínima intervenção. Uma prática continuada e correta do plano de conservação preventiva assegurará a estabilidade dos bens tornando-se possível o seu estudo e exposição. Tanto as vitrinas como os armários/estantes das reservas devem ser de materiais inertes, evitando o uso da madeira e determinados adesivos que podem libertar vapores prejudiciais e afectar os bens expostos ou acondicionados. As estantes das reservas do Museu Municipal de Tavira são resistentes e em metal com proteções contra sismos. As iluminações devem ser preferencialmente em fibra óptica ou LEDS, uma vez que são lâmpadas frias sem emissão de radiação ultravioleta. Tanto no Núcleo Islâmico como nas exposições patentes no Palácio da Galeria as iluminações utilizadas são as LEDS. O processo de degradação e envelhecimento dos bens é inevitável, mas poderá ser retardado se a conservação preventiva for realizada de forma correta e continuada. É muito importante que a conservação preventiva seja uma das prioridades dos museus.

Figura 4 – Armário com balanças pertencentes ao aferidor de pesos e medidas (Museu Municipal de Tavira)

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Leonor Esteban

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