A oficina de Latoaria de Jorge Reis Mais tarde, com o abandono gradual do campo, o ofício passou a sobreviver de outros trabalhos, nomeadamente da produção de comedouros para frangos de aviário:
Até meados do século XX, o comércio ainda era pujante no Centro Histórico de Palmela. Ferreiros, ferradores, correeiros, marceneiros, carpinteiros, construtores de carroças, albardeiros, entre inúmeros outros ofícios que habitavam estas ruas. De entre este conjunto existiam duas oficinas de latoaria: a Latoaria Confiança de Armando «funileiro» e a de Jorge Reis. Era comum, até ao século passado, que os ofícios se fixassem geograficamente por núcleos. A toponímia das cidades é disso reveladora: rua dos Correeiros, Sapateiros, Prata, Fanqueiros. Em Palmela, encontramos a rua do Brochado e a rua da Saboaria. Este tipo de distribuição facilitava a organização do espaço. Relativamente às duas oficinas de latoaria que coexistiam, não só estavam situadas na mesma rua, como praticamente em frente uma à outra. Armando «funileiro» (à esq.) e João Popas (crianças não identificadas) à porta da Latoaria Confiança, rua Hermenegildo Capelo, Palmela, meados do séc. XX (coleção particular)
Jorge Reis, de 78 anos, nasceu em Águeda, distrito de Viseu. Veio morar para Setúbal ainda muito novo, com os pais. Com 10 anos de idade foi aprender o ofício de latoeiro, para a casa de um tio. «Aprendi quase sozinho porque comecei com 10 anos em casa, na oficina de um tio meu. Só que, como era de família, fui prejudicado. Em lugar de estar a aprender o ofício andava a tratar de animais de uma quintazita que ele tinha e se eu não saísse de lá com 18 anos não sabia fazer nada.» (entrevista a Jorge Reis Jorge, 2009)
Por intermédio de um amigo veio para Palmela trabalhar na Latoaria Confiança, de Armando funileiro, onde se manteve por uma década. Aos 28 anos optou por abrir a sua própria oficina, numa antiga cocheira. Mantém-na até hoje; já lá vão cinco décadas.
«Há trinta anos ou trinta e tal, eu fazia milhares de comedouros. Frangos, pintos, galinhas. Tudo para isso. Entretanto, pronto, isso foi acabando mas há sempre outro género de trabalhos. (…)» (ent. Jorge Reis Jorge, 2009)
Ficaram a cargo de Jorge Reis os trabalhos de latoaria das obras de recuperação do Convento de Santiago no castelo de Palmela (atual Pousada), na década de 70. A boa execução valeu-lhe o convite, por parte da empresa, para as inúmeras empreitadas de obras que ia contratualizando, pelo que existem trabalhos seus espalhados por diversos museus e igrejas: «… eu andei ali na Igreja da Estrela, andei na Sé, andei no Santo António, lá para o Bairro Alto (…) andei numa ali ao pé de Santos, uma série delas…» Tratando-se Palmela de uma vila que vivia da exploração dos campos agrícolas ao seu redor e da pecuária, necessitava de muita utensilagem. Referimo-nos a baldes para encher os sulfatadores, bilhas para a ordenha do leite, talhas para o azeite, um conjunto significativo de objetos de adega, entre muitos outros utilizados não só no contexto agrícola, como doméstico. «Peças, por exemplo, para a agricultura, bilhas para leite, talhas para azeite, canecos para vinho para adegas, escudelas, ferrados, baldes. Quer dizer, uma série de objetos que era tudo, uns diretamente para a agricultura, para os campos, e outros depois, por arrasto, para adegas.» (ent. Jorge Reis Jorge, 2009)
Recorda-se de ter a oficina cheia, no tempo das azeitonas, com centenas de talhas de várias medidas espalhadas pelo chão, pelas prateleiras e suspensas no teto. Muitas das ferramentas utilizadas no processo de produção destas peças foram concebidas por si. Imprescindível era também a produção de moldes de todos estes recipientes. Falamos, pois, de uma arte de precisão e de capacidade criativa para responder aos vários desafios. «Fazia-se trabalhos de precisão. Desenhos complicados. E a minha instrução é a quarta classe. (…) E pronto, fiz aí trabalhos importantes para empresas grandes que havia para aí.» (ent. Jorge Reis Jorge, 2009)
Interior da oficina de Jorge Reis, 2017
Nunca existiu, perto de Palmela, uma fábrica de produção de folha de Flandres, matéria prima indispensável neste ofício. A oficina abastecia-se através do fornecedor que passava semanalmente para entregar a encomenda e receber a lista de necessidades para a semana seguinte.
(ent. Jorge Reis Jorge, 2009)
Os saber fazer Os ofícios tradicionais exerceram, durante séculos, uma função primordial numa sociedade que encontrava na natureza os recursos necessários e o seu campo de atuação. Os conhecimentos eram passados de geração em geração, através de uma aprendizagem informal que se iniciava com a observação de cada um dos atos necessários à produção da peça e, mais tarde, dependendo do estímulo e capacidade reconhecida pelo mestre ao aprendiz, pela execução de pequenos trabalhos até atingir as competências necessárias para poder ser apelidado, também ele, de mestre. Era um processo de aprendizagem que levava anos. Esta transmissão de saberes foi interrompida e, no limite e de uma maneira geral, a humanidade pode vir a tornar-se absolutamente inoperante neste tipo de conhecimento. É, pois, determinante associarmos ao acervo material representativo destes «saber fazer» a voz dos que possuem o seu conhecimento. Não obstante estas práticas e conhecimentos terem deixado de ser essenciais do ponto de vista da sua utilidade inicial, hoje adquirem um novo estatuto patrimonial, tornando-se argumento determinante do passado e das identidades, sobretudo nas culturas locais. Porém, a apropriação deste património por parte de um museu não o ativa: não se recupera o ofício; apenas a sua memória. Apenas um processo integrado onde participem outras entidades, entre as quais a própria comunidade local, pode, de facto, promover a sua reintrodução no contexto social e económico atual. Espaço Cidadão