Ministério da Cultura e Museu Paranaense apresentam:
INDEPENDÊNCIAS DO BRASIL
dossiê 200 anos
ISBN 978-65-981850-1-5
98-121
122-147
Prefácio
A Independência do Brasil sob a ótica feminina na revista paranaense
Sempre-Viva (1924-1925)
Stella Titotto Castanharo
Mayla Louise Greboge Montoia
Albano Gabriel Giurdanella
Dona Leopoldina: o papel de uma mulher na Independência do Brasil (Rio de Janeiro–1822)
Bianca Gunha Mendes
A independência do Brasil através de uma historiografia cabocla: (Id)entidades e mandingas
Renata Mocelin Penachio
Esperança, desespero e liberdade: (re)versões e reverberações de uma independência acaboclada
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
A Independência por Antônio Poteiro (1925-2010): conversas sobre o Bicentenário em uma galeria de arte
Ariane Alfonso Azambuja de Oliveira Salgado
Emily Cristiane Liebel
Bruno Ferreira de Souza
Raphaela Maidana de Mello Gonçalves
Festas reais no atual estado do Paraná: registros de solenidades no período entre a chegada da Família
Real Portuguesa ao Brasil (1808) e a coroação de D. Pedro II (1841)
Matheus Theodorovitz Prust
A influência do Seminário de Olinda no discurso revolucionário de Frei Caneca
Vagner Melo da Costa
Marlúcia Menezes de Paiva
Charles S. S. Nascimento
“Progresso ilimitado” e “passado enraizado em sedimentos podres” o passado colonial, a Revolução
Pernambucana de 1817 e a Independência nas narrativas de Francisco Muniz Tavares e Manoel Bomfim
Lucas dos Santos Silva
Anexo I: Catálogo de objetos levados pelo Museu Paranaense à Exposição Internacional do Centenário da Independência no Rio de Janeiro (1922-1923)
PREFÁCIO
A publicação que o leitor passa a ter contato agora é fruto de uma iniciativa que busca romper com visões unitárias sobre leituras relativas aos processos plurais das Independência(s) do Brasil. Tal esforço é fruto de trabalho realizado pelo Museu Paranaense (MUPA) nos últimos anos, o qual tem caminhado para uma leitura mais abrangente de história, buscando romper com regionalismos e investindo em um cenário interconectado, no qual o local e o global, o coletivo e o individual confundem-se, criando camadas de complexidade as narrativas históricas. Além de novas perspectivas, em que o processo histórico é entendido como um exercício capaz de trabalhar distintas temporalidades em conjunto, a partir de situações e sujeitos que mobilizam temas contemporâneos, o MUPA também abriu-se a parcerias externas com outras instituições e grupos de pesquisa que muito agregaram à presente produção. Para citar alguns: Aliança Francesa de Curitiba, Universidade Federal do Paraná, Fundação Joaquim Nabuco, GT Emancipações e Pós-Abolição da ANPUH-PR.
Se as ações museais voltaram-se para os temas de interesse social, fornecendo subsídios para criação e fortalecimento de uma consciência histórica, esperamos que esta publicação sirva como uma singela, mas importante colaboração capaz de conectar espaços e agentes históricos distintos, rompendo com a normalidade e aproximando Brasis em suas semelhanças e diferenças. Gestado como um livro acadêmico sobre a pluralidade dos acontecimentos, interpretações e usos da Independência do Brasil, a publicação explora narrativas descentralizadas, rompendo com a esfera exclusiva da história política. Aqui, questões ligadas à participação das mulheres, gênero, relações entre literatura e historiografia, religiosidade, festejos em espaços públicos e ações educativas conectam-se para compor um conjunto capaz
de ajustar o foco visual e vislumbrar aspectos múltiplos antes, durante e após 1822.
Seus autore(a)s são jovens pesquisadore(a)s selecionados por meio de edital público lançado pelo MUPA com apoio da Fundação Joaquim Nabuco, assim como outros convidados que foram chamados para colaborar com suas análises. Eles trazem ao leitor pesquisas individuais e coletivas, transdisciplinares e atualizadas sobre os processos e narrativas da Independência brasileira, mediando discursos e temporalidades.
A Independência do Brasil é, assim como outros eventos, um momento histórico complexo e diverso. Desde sua proclamação até 2022, ano de seu Bicentenário, a Independência foi pensada, analisada e imaginada por uma miríade de pessoas e visões que não necessariamente são coincidentes. Quando Dom Pedro I, às margens do riacho do Ipiranga – assim como conta-se na história oficial do Império –, bradou a soberania do Estado brasileiro, o Brasil (naquele momento Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves) estava imerso em conflitos nacionais e internacionais. A Independência do Brasil, assim, pode ser vista como um dos resultados possíveis da conjunção de processos que vinham ocorrendo em todo o mundo ocidental. Após a sua realização, engana-se quem acredita ou acreditou que os desacordos e inconformidades chegaram ao fim – pelo contrário: continuaram as discussões e conflagrações em volta desse evento histórico.
Quando se pensa na Independência, historiadores como João Paulo Pimenta (2009) entendem que, desde ao menos as últimas décadas do século XVIII, é possível observar a existência de influências para essa ação. Os Estados Unidos, por exemplo, foram o primeiro país do continente americano a tornar-se independente, em 1776. Já a partir de 1806, com a Revolução Haitiana, verificamos a luta da América Espanhola contra o domínio europeu. O Reino do Brasil, dessa maneira, foi cercando-se de países independentes, o que – a partir de documentos, rumores e notícias conhecidas – despertou grande interesse dos brasileiros (PIMENTA, 2022).
Além desses conflitos observados no continente americano, a Independência do Brasil foi influenciada, principalmente, pela vinda da corte portuguesa para o seu principal espaço ultramarino, em 1808. Esse fato, além de permitir a elevação do Brasil, em 1815, a Reino Unido de Portugal e Algarves, também marcou a criação de instituições burocráticas e científicas, desde o fim da
década de 1800, para o desenvolvimento da nova residência de Dom João VI e sua família. Após as invasões napoleônicas em Portugal e a transferência da corte para o Rio de Janeiro, ocorreu, em 1820, a Revolução Liberal do Porto, que exigiu, entre outras questões, a volta do rei à Europa. Todo esse contexto, juntamente às percepções das elites escravistas brasileiras, que não mais aceitavam o retorno ao regime político colonial, possibilitaram a separação do Brasil de Portugal e sua formação como um império. Para além da produção historiográfica, cabe ressaltar que a Independência do Brasil foi pensada e formulada por diversos políticos e intelectuais, de formas diferentes. Dom Pedro I, em 1823, por exemplo, discursou sobre o evento histórico, afirmando que suas motivações advinham da chegada da família real ao Rio de Janeiro, em 1808; da elevação do Brasil à condição de reino, em 1815, e das Cortes de Lisboa, que “visavam reconduzir as províncias à opressão colonial”. O monarca buscou reconstruir seus passos para a realização da Independência, enfatizando sua figura como libertador, no simbolismo de suas ações, e o Brasil como espaço unificado e coeso. A Independência, nesse sentido, foi expressa como necessária, pois seria uma reação à pressão de Lisboa e uma forma de permitir “a existência de um centro comum de poder que articulasse as províncias, assim como as relações de comércio e amizade com todas as nações” (OLIVEIRA, 2022, p. 26-28).
Após esse discurso, houve a circulação de manifestos pelas províncias brasileiras confirmando essa linha de pensamento. Em 1825, o imperador encarregou José da Silva Lisboa de perpetuar essa memória da nação a partir de documentação presente nos arquivos do país. O intelectual e conselheiro de Dom Pedro I, assim, procurou descrever a Independência como um evento realizado pelo jovem monarca, o qual, ao declarar sua liberdade, não permitiu que outras revoluções – essas sim, perigosas –ocorressem no Brasil. Em seus escritos, assim, a sociedade foi espectadora da decisão do novo imperador e, também por isso, manteve a ordem social, a continuação da nobreza portuguesa no Brasil e um caráter legalista da Independência.
Além de Silva Lisboa, outro autor importante para a permanência dessa visão acerca da Independência foi Francisco Adolfo de Varnhagen. O diplomata e historiador, em sua obra “História Geral do Brasil” (1857), descreveu a Independência como um momento de continuidade do período colonial. Isto é: o
Brasil, devido à “benevolência da mãe-pátria”, teria se civilizado. Seria a “vitória da civilização europeia sobre a barbárie autóctone” (COSTA, 2005). Portanto, Varnhagen, ao trabalhar a temática, evidenciou a vinculação com a monarquia, a autoridade do imperador e a manutenção da ordem, de maneira semelhante a Silva Lisboa. Ademais, também procurou desqualificar os opositores dessa narrativa, bem como políticos, intelectuais e movimentos sociais questionadores e dissidentes.
Contudo, apesar de essa narrativa ter permanecido majoritariamente na memória coletiva brasileira, ela não foi a única constituída no período imediato após a Independência. O trabalho de John Armitage (1836) é um exemplo. O autor criticou a herança colonial, pensou na descontinuidade entre colônia e império e apresentou a argumentação de que os brasileiros estariam tornando-se cidadãos ao se envolverem com a política. Para Armitage, havia dificuldades para a coroa centralizar o poder e reunir as províncias ao seu redor.
Indo além de obras acadêmicas produzidas no século XIX e da narrativa oficial do império, observam-se no Brasil conflagrações armadas e fora do eixo da nobreza a favor da Independência. Durante o fim do século XVIII, enquanto o Brasil ainda era colônia, lembramos de conflitos em território brasileiro que não propunham a criação de uma unidade com todas as capitanias, mas ensaiavam sentimentos nacionais e de separação para com a metrópole. A Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração Baiana (1798) são dois dos principais exemplos desse processo. Revoltas contra o controle político-econômico de Portugal, bem como a taxação de impostos, demonstravam, cerca de três décadas antes, o desejo de autonomia, ou ao menos da realização de uma Constituição.
Tais anseios, conforme podemos observar, não almejavam a construção de um país com as dimensões territoriais do Brasil, mas o pensavam regionalmente. Assim, é importante perceber que a identidade e a unificação da nação advêm das tentativas do império a partir da criação de discursos, livros e obras de arte – e não foi organicamente pensada pelo povo que vivia em território brasileiro.
A região Nordeste foi um dos locais onde mais ocorreram movimentações e questionamentos do poder imperial. Em Pernambuco, por exemplo, observou-se já na década de 1810 a Revolução Pernambucana ou Revolução de 1817. Essa conflagração
pode ser considerada como a mais bem-sucedida movimentação, com o maior número de pessoas mobilizadas. Por consequência, também apresentou o maior número de pessoas reprimidas pelo Estado. Conforme discutem historiadores especialistas nesse conflito, “o comportamento político passou em grande parte a ser marcado por essa referência: 1817. Primeiro, na constante vigilância das autoridades, no temor de novos movimentos”, como também permaneceu enquanto uma memória presente no cotidiano e nas ações políticas (BERNARDES, 2005, p. 390).
A Revolução Pernambucana estendeu-se para o Alagoas, chegando até o Ceará, e ecoou por outras regiões da monarquia portuguesa. Entre suas motivações, estavam a contrariedade à política econômica portuguesa, com altos impostos, e o interesse em ideais liberais, os quais possibilitaram a recusa ao absolutismo e o anseio da criação de uma Constituição. Participaram dessa movimentação diversos setores da sociedade – entre eles, comerciantes, senhores de escravos e membros do clero. Também foi observada a presença de uma mulher como uma das personagens mais importantes da Revolução: a comerciante Bárbara de Alencar. A partir da análise de sua luta, tem-se a possibilidade de conhecer os sujeitos excluídos da história, como chamou Michelle Perrot (2017).
Em Pernambuco, houve ainda outras formas de conflito reprimidas pelo governo, como é o caso da comunidade Paraíso Térreas, na Serra do Rodeador. Nessa região, estabeleceram-se pessoas pobres que procuravam fugir do serviço das armas e “erigir uma nova vida como camponeses”. Não era interessante, entretanto, “uma povoação independente das autoridades locais” (FRANÇA, 2015), pois não pagavam impostos e viviam exercendo outras formas de poder. Em 1823, também observou-se em Pernambuco uma série de motins que, inspirados pela Revolução Haitiana e com questões raciais ostensivas, ficou conhecida como Pedrosada, comandada por Pedro da Silva Pedroso, o qual almejava governar um império composto pela população negra. Por fim, ainda notou-se na mesma região a Confederação do Equador, em 1824, momento em que se lutou contra o autoritarismo de Dom Pedro I e a favor da constituição de uma nova república, que uniria as províncias da Bahia até o Grão-Pará. Muitos dos líderes da Revolução de 1817 estavam presentes nessa conflagração, a qual foi duramente reprimida e teve vários de seus participantes presos ou mortos.
É possível entender que a existência de um grande número de conflitos em Pernambuco deu-se devido a essa ser uma das capitanias mais prósperas durante o período colonial. Isso permitiu a constituição de uma população letrada e ilustrada. Contudo, no início do século XIX, essa capitania encontrava-se em queda econômica devido ao enfraquecimento do comércio açucareiro – isto é, constituiu-se um espaço ideal para o surgimento de conflagrações. Ainda, com a Revolução de 1817, sendo essa um dos principais conflitos ocorridos contra a coroa portuguesa, a região nordeste do Reino do Brasil teve sua vivência alterada, uma vez que ficou evidente a possibilidade de o povo pegar em armas para alcançar seus objetivos (FRANÇA, 2015, p. 38). Nesse sentido, esse evento também pode ser entendido como uma das principais motivações para novas insurgências.
Pernambuco é um ótimo exemplo para perceber como a Independência, suas batalhas e disputas sociais, militares e políticas também ocorreram fora da região sudeste do Brasil. Isto é, a emancipação brasileira de Portugal vai muito além do grito de Dom Pedro I, às margens do riacho do Ipiranga. Cabe ainda a relevância da Bahia na luta contra tropas portuguesas contrárias à Independência do Brasil e também a da Batalha de Jenipapo, no Piauí (SCHWARCZ, 2022).
Diante desses processos e eventos históricos, podemos entender a Independência não de maneira singular, mas plural, como independências. Isso porque observaram-se movimentos anteriores e posteriores à proclamação oficial, os quais acabaram por também romper com outros projetos, regiões ou agentes menores (PIMENTA, 2022). Além disso, em 7 de setembro de 1822, a separação do Reino do Brasil para com o Reino de Portugal já estaria parcialmente realizada.
Foi dada pouca importância ao Grito do Ipiranga, assim, pelo menos de maneira momentânea. Conforme indicam os estudos com jornais do período, o feito não foi noticiado de imediato na imprensa (GRINBERG; SALLES, 2009). Contudo, buscou-se criar o simbolismo do ato, principalmente para justificar não apenas o poder de Dom Pedro I, como também a monarquia em um continente de Repúblicas (SCHWARCZ, 2022). Para seu fortalecimento, houve desfiles, comemorações, produção de cultura material e, simbolicamente, sua Aclamação Imperial em outubro de 1822.
Sabe-se, assim, que a Independência foi pensada e justificada pelo Estado, de acordo com os interesses de cada momento histórico. Na famosa pintura “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, representa-se o Grito do Ipiranga de maneira festiva, com o novo imperador cercado por seus pares, todos elegantes e imponentes com suas espadas e cavalos. À esquerda, um boiadeiro observa pasmado a situação, representando a pacificidade do povo, que, pelo discurso oficial, não teria participado da Independência. Apesar de retratar uma suposta cena de 1822, o quadro foi pintado no fim do século XIX, em 1888, a pedido de Dom Pedro II, como uma homenagem a seu pai e uma ferramenta para elevar a popularidade da monarquia, que estava prestes a ser dissolvida. Nesse mesmo caminho, durante a Primeira República, houve o Centenário da Independência, quando foram realizadas comemorações, obras artísticas e diversas outras formas de constituir uma identidade para a nação que, apesar de agora ser uma república, comemorava a emancipação do Estado brasileiro, personificado na grande Exposição Internacional do Centenário da Independência, realizada no Rio de Janeiro entre 1922 e 1923. Esse evento ajudou a reforçar e construir memórias, criando diálogos entre passado e presente, de acordo com as narrativas eleitas. Foi nesse período, também, que se oficializou o Hino Nacional como é cantado hoje. Como último exemplo, também percebeu-se, na ditadura militar brasileira, o apoio à criação cinematográfica sobre a Independência do Brasil em que são exaltados Dom Pedro I e seu círculo próximo, como os militares (SCHWARCZ, 2022).
Se, internamente, a Independência brasileira movimentou negociações e conflitos, também teve suas repercussões pelo Atlântico. Logo após os eventos de 1822, um grupo de comerciantes e traficantes com base em Benguela, Angola – muitos de origem pernambucana – buscou organizar-se para garantir a continuidade dos negócios com o espaço brasileiro. Surgia assim o “Partido Brasileiro”, cujo objetivo era garantir o tráfico de escravizados e o intercâmbio comercial no Atlântico Sul, vislumbrando um horizonte colonial brasileiro nos mares do sul (GUIZELIN, 2015).
Ainda na África, cabe ressaltar que o primeiro Estado a reconhecer a soberania brasileira foi o Reino do Daomé (atual Benin, África), ainda em 1822. O mesmo Estado africano posteriormente demonstraria simpatia às movimentações políticas e
militares ocorridas na Bahia em 1823, com a expulsão das tropas portuguesas (MACEDO, 2018).
A interpretação dos acontecimentos políticos no Brasil por comerciantes, traficantes e autoridades africanas não é somente baseada em interesses corporativistas – mesmo que a manutenção do comércio fosse vital. Trata-se de observar o desenrolar de atos políticos calcados em um processo histórico de envolvimento entre as margens do Oceano Atlântico.
Laços históricos tornaram Brasil e África tão próximos quanto Portugal podia ser. Esse movimento revela maior grau de autonomia da colônia brasileira do que se podia imaginar, como já apontaram Manolo Florentino e João Fragoso (2001). De forma forçada, África e Brasil foram representados e representantes da criação de uma modernidade que imprimiu ecos na contemporaneidade (GILROY, 2012).
As reações da autonomia brasileira causaram impacto. A resolução de um possível interesse do Brasil em manter bastiões coloniais na África só foi acalmado com o reconhecimento da emancipação do Brasil por parte de Portugal, em 1825, em acordo intermediado pelos britânicos, como apontou o historiador português Valentim Alexandre (2000).
A perda do território brasileiro foi um duro golpe aos portugueses, haja vista a centralidade brasileira nos assuntos comerciais não apenas em Portugal continental, mas estruturalmente enquanto império ultramarino. Os curativos portugueses voltaram-se a imaginar a possibilidade colonial em outros espaços, como o africano, alimentando o desejo de replicar a experiência colonizadora brasileira.
Nesse sentido, os trabalhos que compõem a publicação “Independências do Brasil: Dossiê 200 Anos” expõem ao público outras formas de olhar para os acontecimentos antes, durante e após a autonomia política brasileira, rompendo com “verdades” e colocando-se à escuta de outras vozes às quais a História também pertence.
No texto “A Independência do Brasil sob a ótica feminina na revista paranaense Sempre-viva”, as pesquisadoras Stella Titotto Castanharo e Mayla Louise Greboge Montoia e o pesquisador Albano Gabriel Giurdanella abordam a escrita das mulheres, em especial a de Lygia Carneiro, que esteve à frente da revista Sempreviva, produzindo uma narrativa regional sobre a Independência do Brasil. No texto, com abordagem teórica calcada nos estudos
de gênero, evidenciam-se as possibilidades da produção da escrita por mulheres no início do século XX e suas inferências sobre direitos políticos, no contexto pós-comemoração do Centenário da Independência de 1922.
Na sequência, com aporte teórico semelhante, mas entrecruzado pela abordagem historiográfica da Nova História Política, o leitor encontrará a produção da pesquisadora Bianca Gunha Mendes, intitulada “Dona Leopoldina: o papel de uma mulher na Independência do Brasil (Rio de Janeiro, 1822)”. A contribuição reside na reflexão sobre o espaço de ação ocupado por Dona Leopoldina no cenário político oitocentista, por meio da investigação da construção social de uma mulher da nobreza e documentalmente ancorado na famosa carta escrita por ela, com destino a seu esposo, Dom Pedro I, em 2 de setembro de 1822. Em “A Independência do Brasil através de uma historiografia cabocla: (Id)entidades e mandingas”, a pesquisadora Renata Mocelin Penachio propõe, por meio do que denomina “fendas da História”, pensar a colonialidade da construção cognitiva por trás das narrativas historiográficas. Para isso, volta o olhar para a “Independência da Bahia” e as comemorações de 2 de julho de 1823. Entre verossimilhança histórica e autoficção, as vozes subalternas personificam o “caboclo”, enfrentando a tangibilidade da realidade colonial e de suas estruturas de pensamento: um exercício de memória e identidade por meio da interdisciplinaridade das humanidades, que a contrapelo expõem o cotidiano e suas raízes afro-indígenas como elemento de liberdade das narrativas oficiais. Acompanhando o raciocínio das narrativas dos sujeitos acaboclados, Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino, entre signos imagéticos e linguísticos, realiza conexões instigantes sobre o passado e o presente ao redor da ideia de liberdade e construção de uma nação. Sua reversão da Independência não é a negativa de eventos políticos, mas a revelação de contrapartes na construção de uma sociedade oscilante entre esperanças e desesperos, manifestadas na imagem e nos cânticos daqueles que ficaram fora das narrativas oficiais. Lança-se aqui um desafio à historiografia independentista.
Se até agora o leitor pôde observar a Independência do Brasil por meio da reflexão historiográfica e suas relações com o protagonismo dos sujeitos históricos, cabe um olhar sobre as formas de comunicação educacional acerca da temática. Nesse sentido, as pesquisadoras Ariane Alfonso Azambuja de Oliveira Salgado,
Emily Cristiane Liebel e Raphaela Maidana de Mello Miranda Gonçalves e o pesquisador Bruno Ferreira de Souza inserem a educação museal ao debate no texto “A independência por Antônio Poteiro (1925-2010): conversas sobre o Bicentenário em uma galeria de arte”. Calcado na experiência do evento Primavera dos Museus de 2022, organizado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que estimulou outras formas de pensar a Independência do Brasil e seus agentes, o texto aborda a produção de uma ação educativa sobre a temática, tendo como base a obra “Independência” (1984), do artista Antônio Poteiro. Em contraponto a Poteiro e sua alegoria da Independência está a representação pretensamente fidedigna de Pedro Américo, “Independência ou morte” (1888). Os(as) pesquisadore(a)s problematizam a produção de signos e a capacidade de identificar narrativas construídas por meio de um material educativo de produção própria, realizado junto à Caixa Cultural de Curitiba, no qual a obra de Poteiro figurou na exposição “Traços Modernistas: percursos e movimentos do acervo Caixa”, que itinerou pelo Brasil em 2022.
A relação entre espaço público, festejos e construção de memórias salta aos olhos no texto “Festas reais no atual Estado do Paraná: registros de solenidades no período entre a Chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil (1808) e a Coroação de D. Pedro II (1841)”, de autoria do pesquisador Matheus Theodorovitz Prust. O texto apresenta uma investigação em fontes históricas regionais do sul da Capitania de São Paulo, em especial as localidades de Curitiba, Morretes e Paranaguá, inventariando a organização, conteúdo e execução de festejos públicos relacionados à família real portuguesa a partir de sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1808, até a coroação de Dom Pedro II, em 1841.
Na sequência, os pesquisadores Vagner Melo da Costa, Charles S. S. Nascimento e a pesquisadora Marlúcia Menezes de Paiva apresentam o texto intitulado “A influência do Seminário de Olinda no discurso revolucionário de Frei Caneca”. Em suas linhas, o espaço e as ideias gestadas no Seminário de Olinda encontram pontos de aproximação com a narrativa e posturas de Frei Caneca. Não se trata de afirmar categoricamente, mas de reconhecer permeabilidades entre instituição e agente histórico e eventos como a Confederação do Equador.
Por fim, o texto “‘Progresso ilimitado’ e ‘passado enraizado em sedimentos podres’: o passado colonial, a Revolução Pernambucana de 1817 e a Independência nas narrativas de
Francisco Muniz Tavares e Manoel Bomfim”, de autoria de Lucas dos Santos Silva, expõe as complexidades do Tempo História na composição textual e suas ressignificações na Teoria da História a partir da análise da escrita histórica de Manoel Bomfim e Francisco Muniz Tavares. Em contexto e posições distintas, ambos os autores voltam-se para a Revolução Pernambucana de 1817, suas dualidades com a situação colonial e as camadas existentes entre passado e presente a constituir ações que almejavam um futuro não colonial.
Além dos textos contidos, o leitor poderá ter acesso a uma transcrição documental referente à participação do Museu Paranaense na “Exposição Internacional do Centenário da Independência”, realizada no Rio de Janeiro entre setembro de 1922 e março de 1923. Nela, podem ser consultados quais itens e participantes compuseram a exposição da Comissão do Paraná, coordenada pelo Museu Paranaense.
Em linhas gerais, a publicação “Independências do Brasil: Dossiê 200 Anos” coloca-se como mais do que um gesto comemorativo de um evento histórico fundamental, mas traz ao público uma produção atualizada, diversificada e interdisciplinar de interesse não apenas acadêmico, mas também social, ao refletir sobre temáticas que transpassam a institucionalização, atingindo o cotidiano, identidades e sentimentos.
O MUPA abre espaço para pesquisadores darem vazão a seus trabalhos, na confiança de que o contato com esse dossiê agrade ao público leitor, fomentando diversas visões da História que extrapolam a Independência do Brasil e perpassando outras monumentalidades nacionais historicamente construídas.O MUPA abre espaço para pesquisadores darem vazão a seus trabalhos, na confiança de que o contato com esse dossiê agrade ao público leitor, fomentando diversas visões da História que extrapolam a Independência do Brasil e perpassando outras monumentalidades nacionais historicamente construídas.
Felipe Vilas Bôas
Coordenador do Núcleo de História do MUPA
Barbara
Fonseca Residente do Núcleo de História do MUPA
REFERÊNCIAS
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COSTA, Wilma Peres. A Independência na historiografia brasileira. In: JANCSÓ, Istvan (org.). Independência: História e historiografia. São Paulo: FAPESP/Hucitec, 2005.
FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FRANÇA, Wanderson Édipo de. Gente do povo em Pernambuco: da Revolução de 1817 à Confederação de 1824. Clio. Revista de Pesquisa História, v. 33, n. 1, p. 23-44, 2015.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2012.
GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume 1: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
GUIZELIN, Gilberto da Silva. “Província (de) um grande partido brasileiro, e mui pequeno o europeu”: a repercussão da Independência do Brasil em Angola (1822-1825). Afro-Ásia, 51, p. 181-106, 2015.
MACEDO. José Rivair. A embaixada de Daomé em Salvador (1750): protocolos diplomáticos e afirmação política de um Estado em expansão na África Ocidental. Revista Brasileira de Estudos Africanos, Porto Alegre, v. 3, n. 6, jul/dez, p. 111-127, 2018.
OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Memória, historiografia e política: a Independência do Brasil, 200 anos depois. Estudos Avançados, v. 36, p. 23-42, 2022.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História Operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2017.
PIMENTA, João Paulo G. A Independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 2, n. 3, p. 53-82, 2009.
PIMENTA, João Paulo. Independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2022.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sequestro da Independência. Revista USP, v. 1, n. 133, p. 13-32, 2022.
INDEPENDÊNCIAS DO BRASIL
dossiê 200 anos
Stella Titotto Castanharo
Mayla Louise Greboge Montoia
Albano Gabriel Giurdanella
A Independência do Brasil sob a ótica
feminina na revista paranaense
Sempre-Viva (1924-1925)
RESUMO
A Independência do Brasil continua sendo um tema amplamente explorado pela historiografia, em que pese a passagem dos 200 anos de sua ocorrência. Apesar dos múltiplos enfoques dados ao tema, poucos são os trabalhos que evidenciam a participação ou a perspectiva das mulheres quanto a esse processo histórico. À vista disso, o presente artigo tem como objetivo apresentar uma análise sobre a Independência do Brasil em uma ótica regional, mas também feminina, através de uma série de textos publicados na revista Sempre-Viva, em Curitiba/PR, entre 1924 e 1925. Os textos políticos analisados, de Lygia Carneiro, uma das principais organizadoras e redatoras da revista, problematizam a independência do país, ao passo que outros textos do impresso também o fazem em relação aos direitos das mulheres. A análise desse material se ancora nas reflexões teóricas sobre Escrita Feminina, através de autoras como Michelle Perrot (1989) e Jane Almeida (2013), metodológicas acerca do trabalho com periódicos, conforme proposto por Tania Regina de Luca (2008), e historiográficas como José Murilo de Carvalho (1974; 1990).
Palavras-chave: Independência do Brasil; escrita de mulheres; imprensa; século XX; Curitiba.
INTRODUÇÃO
A Independência do Brasil, em setembro de 1822, foi um evento marcante na história do Estado brasileiro e continua sendo um profícuo tema para análise histórica. As abordagens relativas ao assunto iniciaram-se paralelamente à consolidação da monarquia brasileira, que carecia de elaborações memorialísticas sobre o processo político que separava o Brasil de Portugal. Uma tentativa inicial foi inaugurada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado no ano de 1838, com a “aspiração de uma entidade que refletisse a nação brasileira que, não muito antes, conquistara a sua Independência” (IHGB, s/d). Foi dentro deste instituto de pesquisa – posteriormente financiado por Dom Pedro II – que surgiram as primeiras tentativas de
análise sobre o Brasil independente, através de autores como Carl Phillipp von Martius e Francisco Adolfo de Varnhagen. Ainda que de formas diferentes, tanto Martius (1845) quanto Varnhagen (1857) adotaram uma perspectiva valorizante do elemento português em detrimento das populações locais, ameríndias e africanas, de forma a enfatizar os europeus como fundamentais para o desenvolvimento da civilização brasileira. Ao falar de 1822, ambos os autores criaram uma narrativa de centralidade e unidade territorial, na qual tensões e conflitos não figuravam em nenhuma cena do processo de Independência. Por outro lado, autores como Manuel Oliveira Lima e Francisco Muniz Tavares apresentaram um Brasil diferente em suas obras, sinalizando que a separação de metrópole e colônia não foi amigável e sem contradições. Ao destacarem movimentos regionais como a Revolução Pernambucana de 1817, Muniz Tavares (1840) e Manuel de Oliveira Lima (1922) argumentaram sobre a independência política da qual gozavam as províncias e sua consequente insatisfação com os impostos cobrados pela Corte – especialmente para custear as despesas quando da vinda da Família Real, em 1808. O relato apaixonado em relação aos acontecimentos de Pernambuco, em 1817, transparece um forte regionalismo, em contraste com a historiografia centro-sul de unidade, dando amplo destaque às possibilidades de fragmentação e obstáculos na consolidação de D. Pedro I. Para além do debate acerca da unidade ou fragmentação, no qual o Brasil é analisado em paralelo aos processos de independência na América Hispânica, a moderna historiografia brasileira aprofundou outros temas, como o significado dessa mudança política, a efervescência de posturas heterogêneas, bem como a formação de uma identidade nacional. Na esteira desses debates, destacam-se diferentes trabalhos, como os de Sérgio Buarque de Holanda (1960) e Maria Odila Leite da Silva Dias (1972), que aprofundaram questões relativas à transição do Brasil Colônia para Império, enfatizaram a heterogeneidade das províncias e consequente demora na constituição de uma nação. Nesse sentido é que trabalhou também José Murilo de Carvalho (1974), para o qual as elites políticas desempenharam um papel significativo na edificação do Estado brasileiro, sendo um elemento de coesão no processo político. Outros autores preferiram identificar 1822 como um processo revolucionário, como José Honório Rodrigues (1975), ou ainda como um processo sem classes populares maduras
e fortemente vinculado aos interesses britânicos, a exemplo de Caio Prado Junior (1933).
Grande parte desses autores pautaram os debates da historiografia, sendo constantemente retomados nas análises subsequentes relativas ao processo de independência, seja para se aproximar, contrapor ou mesmo aprofundar aspectos pouco explorados. Nesse sentido também se inscreve este texto, que tem por objetivo apresentar uma análise sobre a Independência do Brasil em uma perspectiva regional, mas também feminina, através de uma série de textos publicados na Revista paranaense Sempre-Viva (1924-1925), por Lygia Carneiro. Tendo em vista que grande parte dos atores políticos envolvidos com o processo de independência eram homens1, e que muitos estudos sobre o tema privilegiaram suas visões de mundo, compreender como as mulheres analisaram os eventos de 1822 se constitui como uma tarefa fundamental. A periodização do material, no início do século XX, chama atenção também para as dificuldades enfrentadas pela primeira geração de feministas, que não apenas encaravam os debates políticos, como aqueles referentes à emancipação da pátria, como também da estrutura social que as excluía ou secundarizava, tendo em vista que “os homens eram a norma” (PELLEGRINO, 2022, p. 316).
Em virtude dessas particularidades, o presente artigo se ancora na abordagem teórica sobre escrita de mulheres e imprensa feminina, através das reflexões de Jane Almeida (2013) e Michelle Perrot (1989), tendo em vista que a Revista apresentava muitos textos produzidos por mulheres e era orientada para este público. Além disso, a análise dos textos contidos na Sempre-Viva se pauta nas reflexões metodológicas para o trabalho com periódicos de Tania Regina de Luca (2008), para a qual tanto a materialidade do impresso quanto seu conteúdo devem ser analisados à luz do contexto no qual emergem. Desta forma, inicialmente será apresentada uma reflexão em torno dos aspectos gerais da revista Sempre-Viva, para na sequência analisar os textos políticos nela publicados e associados com o passado histórico da Independência do Brasil.
1 Ainda que hoje se analisem as participações de mulheres como Joana Angelica, Maria Quitéria de
Jesus ou Maria Felipa de Oliveira no processo de independência.
MATERIALIDADE DO IMPRESSO
A Sempre-Viva, assim como muitos periódicos brasileiros, encontra-se disponível na plataforma Hemeroteca Digital da Fundação da Biblioteca Nacional, que contempla os exemplares publicados durante o período de circulação desta, a saber, os anos de 1924 e 1925. Embora ela possa ser incluída no grupo de publicações intituladas de periódicos, sendo referida como jornal por suas autoras, do ponto de vista teórico, sua materialidade confere a ela características que permitem classificá-la como uma revista.
De acordo com Tania Regina de Luca (2008), a periodicidade do material é o que permite caracterizá-lo. Os jornais desse período tradicionalmente estavam relacionados com informações e notícias diárias, bem como com temáticas predeterminadas em seções (política, economia, sociedade). Consequentemente, sua produção implicava a utilização de material mais frágil e com qualidade inferior, pensando na agilidade de sua produção. As revistas, por outro lado, poderiam ter temáticas únicas ou variadas, com qualidade técnica e de impressão superiores, impressões coloridas e tamanhos múltiplos e, principalmente, uma periodicidade variada (semanal, quinzenal, mensal, bimestral, etc.).
No caso da Sempre-Viva, sua periodicidade era mensal, havendo publicações no dia 15 de cada mês, sendo a primeira delas realizada em maio de 1924 e a última, em dezembro de 1925, totalizando 20 edições2, razão pela qual nos referimos a ela ao longo do texto como revista. Como destaca Rossana Rossigali (2017), as publicações do impresso, que estão disponíveis em cópias físicas na Biblioteca Pública do Paraná (BPP), eram originalmente coloridas e apresentavam o tamanho 23,5 cm x 32,5 cm. Inicialmente, as edições custavam entre $400 e $500, a depender se eram avulsas ou de assinatura local3, e a partir de maio de 1925, o valor passou a girar em torno de 1$000. A título comparativo, uma edição do jornal O Dia (1925) custava $100, enquanto uma revista como a Illustração Paranaense (1927) custava cerca de 2$000 (Fonseca, 2022, p. 52). Considerando o valor das edições da Sempre-Viva, que o público dela era feminino
2 Das quais apenas a edição de número 03 não está disponível na Hemeroteca.
3 Ao que tudo indica, havia circulação internacional, contudo, o valor era maior, 20$000.
e que grande parte da população curitibana era ainda analfabeta, é possível inferir que a circulação da revista se dava em um setor da elite que tinha instrução para ler e dinheiro para acompanhar as publicações4.
Analisando os volumes da Sempre-Viva em conjunto, é possível notar algumas modificações ao longo de sua existência, com especial destaque ao número de páginas das edições. Enquanto os números iniciais não ultrapassam 8 páginas, e os finais não possuem menos de 12 páginas, a 13ª edição, especial de aniversário da Revista, conta com 50 páginas. Mudanças visuais também foram identificadas, como é possível notar a partir da sétima edição, que passa a possuir um cabeçalho desenhado com assinatura de Sylvio, mas que potencialmente pode ser atribuído à Sylvia Carneiro5. O desenho em questão traz o rosto de uma jovem acompanhado de flores sempre-vivas, que são de espécies que vivem muitos anos ou demoram para morrer, o que se aproximava do ensejo das organizadoras. O uso de flores para o contexto feminino é recorrente, segundo Pedro Maia Soares (1980), uma vez que a escolha de determinadas espécies tem relação direta com a simbologia a qual representam. Por outro lado, o contexto do qual emerge a revista Sempre-Viva é de uma multiplicidade de materiais impressos em Curitiba, cenário que corresponde a um panorama mais amplo, como destaca Tania Regina de Luca:
O novo cenário citadino do início do século XX abrigava uma infinidade de publicações periódicas: almanaques; folhetos publicitários de casas comerciais e indústrias; jornais de associações recreativas, de bairros e das destinadas a etnias específicas; folhas editadas por mutuais, ligas e sindicatos operários, até os grandes matutinos e as
4 A título de comparação, uma notícia no jornal O Estado do Paraná de 2 de setembro de 1925 anuncia que 50 quilos de sal custavam 18$000. Ou seja, em termos de consumo, um quilo de sal correspondia a $360.
5 Sylvia Carneiro, junto de suas outras duas irmãs, Lygia e Carmen, eram filhas do médico sanitarista
Petit Carneiro, também fundador do curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná, em 1912. Estava, portanto, inserida numa determinada faixa da sociedade considerada como a elite local. Foi relacionada às diferentes práticas sociais destinadas às mulheres, tais quais eventos beneficentes e ações de filantropia. ›
revistas ditas de variedades, principal produto da indústria cultural que então despontava (LUCA, 2008, pp. 120-121).
Apesar de seguirem o modelo de “variedades”, marcado pela linguagem fácil, publicação de poesias, imagens, curiosidades locais e mundiais, questões cotidianas, conselhos ou política, na tentativa de angariar apoio de diferentes leitores, a Sempre-Viva inaugurou um novo nicho no competitivo mercado editorial, orientada diretamente ao público feminino. A preocupação das autoras, como destacado na segunda edição, era de que a revista fosse tanto um instrumento de informação quanto um meio de intervenção na vida social.
Outros pontos que podemos destacar na composição técnica do periódico se dá em razão das autorias dos textos publicados, uma vez que nos cinco primeiros números os textos são assinados por pseudônimos ou anagramas dos nomes das escritoras. A partir da sexta edição já há a assinatura pública de algumas delas, com destaque especial à Lygia Carneiro, de quem falaremos mais adiante. Outro elemento que também evidencia as mudanças sofridas pelo periódico é a crescente presença de publicidades ao longo dos volumes, seja de produtos para a casa, para crianças ou para o público feminino.
Como destaca Tania Regina de Luca (2008), o aumento da publicidade também está relacionado com as modificações da vida urbana do início do século XX, sendo, em geral, a principal fonte de recursos dos periódicos. Em Curitiba, as primeiras décadas republicanas foram um período de grandes mudanças, seja pelo crescimento da população6, pela constante urbanização ou pelos desenvolvimentos tecnológicos, dentro dos quais podemos incluir a imprensa. Como destaca a pesquisadora Aline Dias Anile:
Segundo Rossana Rossigali, a atuação de Sylvia e Lygia ultrapassava as publicações da Revista Sempre-Viva, sendo as duas irmãs, ainda que bastante jovens, responsáveis pela seção feminina do jornal O Dia (ROSSIGALI, 2017, p. 134). Era a segunda filha de Petit Carneiro, com uma estimativa de nascimento em 02/07/1910; foi aluna do poeta
Dario Vellozo e do pintor Alfredo Andersen, além de ter sido professora de francês e português.
6 De acordo com Maria Ignês Manciani de Boni (1998), em 1870 Curitiba registrava aproximadamente 12.700 habitantes. Já na década de 1920 a população aumentou para 70.000 habitantes.
A imprensa está inserida nesse processo de desenvolvimento, embelezamento, limpeza e de diversas outras intervenções no quadro urbano para tornar Curitiba uma cidade moderna. Nas primeiras décadas do século XX, os jornais diários e as revistas constituíam-se como os principais meios de comunicação. Com a modernização das técnicas gráficas, das máquinas e a organização do trabalho, houve um boom no surgimento de publicações ilustradas na virada do século XIX para o século XX (ANILE, 2013, p. 5).
Em uma pesquisa sobre as revistas curitibanas do início do século XX, a historiadora Rosane Kaminski (2010) destaca que, entre os anos de 1900 e 1920, foram publicados mais de 60 títulos de revistas e almanaques. O significativo aumento das publicações periódicas corresponde também a uma ampliação de temáticas, de modelos de organização dos impressos, buscando atender a diferentes públicos. Foi nesse contexto que surgiu a Sempre-Viva, uma revista voltada para o público feminino, dotada de variados assuntos e com uma organização interna que se modifica simultaneamente a Curitiba.
No entanto, é possível traçar algumas características que perpassam as edições da revista e que refletem sua articulação com o público ao qual se destinava. Em geral, as edições se estruturavam do seguinte modo: texto introdutório com temática histórica e/ou política, biografia de uma escritora e um pequeno excerto de sua produção, outros poemas e crônicas, aspectos da vida social, trocas de correspondência entre jovens, a partir da sétima edição uma página sobre a Folha Acadêmica e a Pequena Academia de Letras e Artes⁷, e, por último, trechos de algum romance. Desde a primeira edição, há textos de autores homens, contudo, as organizadoras do periódico destacam, no texto inicial da segunda edição: “em nosso proposito, cujo quasi unico fim
7 Criada em 1924, foi pensada pelas organizadoras da revista como uma sociedade em prol de popularizar artistas brasileiras, a fim de torná-las conhecidas pelo público. A sociedade possuía diretoria própria, bem como
realizava diferentes eventos como apresentados ao longo das edições. Pela leitura do periódico, verifica-se que a relação entre a revista e a Pequena Academia se dava de maneira bastante simbiótica.
é o de propagar a literatura feminina, bem pouco conhecida, e facilitar o ensejo daquellas que desejarem ensaiar nessa tão linda sciencia e arte” (nº 2, 1924, p.1). Não surpreende, portanto, que muitos textos femininos da revista sejam de escritoras de diversas regiões do Brasil e também de fora dele – aparentemente, há uma grande atenção aos debates internacionais relativos aos direitos das mulheres.
Em relação aos assuntos abordados pelo periódico, há uma amplitude significativa a ser considerada. Há textos sobre o amor romântico, amizade, família e criação de filhos, modos de conduta e de comportamento, virtuosidades como piedade e compaixão, temáticas feministas como aquelas relativas ao sufrágio feminino no Brasil, além de assuntos políticos, tais como a Independência do Brasil.
ESCRITA DE MULHERES E IMPRENSA FEMININA
Uma das inflexões que a revista Sempre-Viva apresenta é o potencial de ser estudada compreendendo essa produção a partir da imprensa feminina e da relevância de desenvolver pesquisas que considerem a escrita de mulheres como ponto fundamental para compreender o contexto, as fontes analisadas, mas, sobretudo, reconsiderar representações hegemônicas e narrativas únicas do passado. Não nos cabe aqui fazer uma apresentação aprofundada do tema, haja vista que tem sido uma discussão muito bem desenvolvida por outros autores e autoras ao longo das últimas décadas, mas sim destacar os principais pontos que contribuem para esta análise.
Se ao longo dos séculos XVII e XVIII grande parte da produção literária feminina se dava por meio de romances e poemas, os séculos XIX e XX, com as transformações culturais, estruturais e industrialização, indicam que as mulheres, além de desempenharem um papel no âmbito privado da casa, cuidando do lar e da família, passaram a ocupar espaços públicos, desenvolveram atividades laborais e lutaram por direitos e igualdade. Isso parte do que Losandro Tedeschi (2016) considerou como não somente apresentá-las como presentes nos acontecimentos, mas como partícipes, ainda que colocadas em papéis silenciados e de discriminação.
Mas até mesmo entre as mulheres há que se considerar as diferenças de papéis, uma vez não eram todas que tinham possibilidade de se alfabetizar e escrever, de modo público ou privado. Michelle Perrot (2005) destaca que a escrita feminina estava relacionada com a alfabetização e em grande medida com uma parte da sociedade mais elitista ou pertencente à burguesia. Se mulheres com determinado poder aquisitivo aprendiam a ler e escrever, muito se relacionava com a educação dos filhos no lar e com a gestão da casa. Contudo, esse conhecimento se sobressai e já não se restringe mais ao lar. Através sobretudo da literatura, com destaque a poemas e contos, as mulheres passaram a ocupar um novo lugar que inclusive as alavancou para novos espaços na comunicação.
Se a transição dos séculos XIX e XX tem papel fundamental no âmbito político nacional, no cotidiano feminino também há transformações. Perrot (2015) novamente nos chama atenção para o avanço dos papéis exercidos, uma vez que no século XIX as mulheres ainda eram vistas como musas de homens ao frequentarem salões, passeios públicos e espaços culturais, enquanto que com o século XX as reivindicações de direitos retiraram o papel passivo e as tornaram sujeitos de sua própria existência. A memória do privado passou a vir a público por meio de escritos de mulheres para mulheres, seja através de manuais, códigos de condutas, ou revistas voltadas ao público e interesse feminino.
O início do século XX, portanto, torna-se o retrato desse trânsito realizado por mulheres, uma vez que os ideais positivistas e higienistas do século XIX ainda se mostravam vigentes na concepção das virtudes femininas de bondade, piedade e compaixão, ao passo que a teoria feminista da primeira onda demandava novas ocupações dentro da sociedade. Se simultaneamente a virtuosidade decorria dos estudos aprofundados, estes também possibilitaram a inserção ou criação de novas sociabilidades no âmbito público.
Jane de Almeida (2013) destaca que especialmente nas primeiras décadas do século XX a atividade feminina era reservada ao ensino primário e pré-primário, ou seja, educadoras da infância e responsáveis pela formação e alfabetização das crianças. A retórica de que tais atividades seriam uma vocação, ou mesmo uma missão próxima da maternidade, direcionava-as às mulheres e não aos homens. Essa atuação no campo educacional teve
crescimento significativo ao considerarmos que, com o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), afinal, coube a elas o desempenho de novas funções sociais. A autora destaca que neste âmbito não se está abordando qualquer mulher, mas sim mulheres de certa projeção social, as destinadas ao casamento e à maternidade (...). Para essas mulheres de elite, as esposas, as mães, as jovens aspirantes ao matrimônio, o pensamento ilustrado, principalmente dos médicos higienistas e eugenistas, buscou encontrar aliadas para fortalecer seus princípios e dar sustentação a uma ideia de sociedade pautada nos valores da família e na pureza da raça (ALMEIDA, 2013, p. 197).
Neste sentido, quem são as mulheres envolvidas na publicação da revista Sempre-Viva? O estado do Paraná – e especificamente a capital, Curitiba – apresentou, na primeira metade do século XX, uma significativa concepção civilizatória. Isso porque a ocupação urbana foi crescendo ao longo das décadas, seja pela imigração europeia, seja pelo fortalecimento da administração do Estado. Com a industrialização e a modernização, o crescimento de periódicos se acentuou, inclusive com a contribuição do movimento modernista e do movimento simbolista. Famílias tradicionais da economia e da política local, além de apresentarem destaques na administração pública, também se faziam presentes nos espaços artísticos e culturais.
Um ponto interessante a ser destacado é a transformação das ideias ao longo dos dois anos de publicações da Revista. Há uma pluralidade delas, mas também de mulheres e compreensões do mundo. Se nos primeiros volumes da Sempre-Viva verificamos um destaque aos grandes homens da República e do Império, a inserção de autoras coloca este tema em tensão. Assim como nos exemplares subsequentes se evidencia a ênfase nos direitos femininos, na participação ativa das mulheres na sociedade, assim como textos de mulheres importantes para o feminismo da primeira onda.
Fazendo um pequeno deslocamento do nosso tema principal, há que se lembrar que, no âmbito literário, a Academia Brasileira de Letras só passou a ter mulheres em seu quadro em 1977, quando Raquel de Queiroz passou a ter direito a uma
cadeira (ROSSIGALI, 2017, p. 111). Do mesmo modo, no Paraná essa inserção deu-se ainda mais tarde, somente em 1990, com a participação da escritora Pompília Lopes dos Santos, seguida da poeta Helena Kolody.
Ora, se até 1990 o Paraná não reconhecia publicamente suas escritoras, torna-se mais natural a compreensão e a relevância que as organizadoras e editoras da revista Sempre-Viva adquirem quando “criam” uma Pequena Academia de Letras e Artes, em 1924, como informam na primeira edição, reiterando a importância dessa sociedade na edição subsequente.
Ora, se até 1990 o Paraná não reconhecia publicamente suas escritoras, torna-se mais natural a compreensão e a relevância que as organizadoras e editoras da Revista Sempre-Viva adquirem quando “criam” uma Pequena Academia de Letras e Artes, em 1924, como informam na 1ª edição, reiterando a importância dessa sociedade na edição subsequente.
Para além do Paraná, também se percebe o diálogo entre escritoras de todo o Brasil, uma vez que na quinta edição há a informação de uma reunião da Pequena Academia que contou com a presença de ilustres senhoras e senhoritas da sociedade curitibana, assim como escritoras e artistas de outras localidades. O exemplo que talvez seja de maior interesse é o de Júlia Lopes de Almeida, escritora nascida no Rio de Janeiro, em 1862, que escreveu os mais variados formatos literários, seja poesia, romance, contos, crônicas, ensaios, sempre dando destaque à classe burguesa, mas também aos necessitados e marginalizados. Júlia de Almeida tem uma série de textos publicados ao longo das 20 edições da Sempre-Viva, especialmente por reforçar as mudanças pelas quais a sociedade passava, tanto nos aspectos políticos, econômicos, mas também sociais e dos costumes. Segundo Rossigali (2017), é possível perceber na leitura da obra e dos excertos publicados na revista Sempre-Viva que Júlia de Almeida “estava imbuída de uma missão pedagógica de melhoria das condições de ensino, do modo de vida, da mudança do papel social da mulher” (ROSSIGALI, 2017, p. 122). Outro ponto interessante é que a própria filha de Júlia, Margarida Lopes de Almeida, foi recebida com honras em uma das reuniões da Pequena Academia, conforme se verifica na 13ª edição da revista.
As ações da Pequena Academia inclusive passaram a ser reportadas na revista, a partir da 7ª edição, que passou a contar com a seção “A Folha Acadêmica”, que, além de publicar textos
clássicos, também se propunha a apresentar escritos inéditos. Tal qual a própria revista, o intuito da Pequena Academia era divulgar e fazer circular as produções de mulheres, tendo tido origem numa conversa em um pequeno grupo de moças, mas que resultou inclusive em estatuto de agremiação acadêmica. Fizeram parte da Pequena Academia as irmãs Carneiro, Lygia, Silvia e Carmen (filhas do médico Petit Carneiro); Yvonne Parigot de Souza (médica e esposa de Luiz Parigot de Souza), Elvira Rebello, Herminia Schulmann, Júlia Leite, Doris Deter, entre outras. Tendo em vista os limites deste artigo, o recorte estabelecido para análise foram os textos políticos de Lygia Carneiro relativos ao processo de Independência do Brasil, seja de maneira direta ou indireta. A autora, conforme abordado anteriormente, era a filha mais velha do médico sanitarista Petit Carneiro, tendo nascido em Curitiba, em 1905. Foi a mais atuante das três irmãs no periódico, assim como responsável pela maior parte dos textos de temáticas histórico-políticas. No decorrer dos exemplares, verifica-se que Lygia, além de escritora, também era uma das principais organizadoras do periódico, mesmo porque o endereço de correspondência publicado na capa faz referência à sua residência, na Rua Brigadeiro Franco, número 61, Curitiba. No volume comemorativo (nº 13), a autora consta inclusive como presidente da Pequena Academia de Letras e Artes do Paraná. Ao longo de sua vida foi professora de português no Liceu Rio Branco, no Colégio Estadual do Paraná e no Centro Paranaense Feminino de Cultura (CPFC)8. A importância de Lygia para a cultura paranaense pode ser evidenciada, por exemplo, quando o Centro Paranaense Feminino de Cultura lhe prestou homenagens nomeando a biblioteca como Lygia Carneiro, assim como uma escola municipal em Curitiba que recebe seu nome9. Atualmente também é patrona da cadeira 14 da Academia Feminina de Letras do Paraná (AFLP)10. Ainda
8 O Centro Paranaense Feminino de Cultura foi criado em 1933 e tinha como objetivo promover ações culturais, de modo a possibilitar a representatividade da mulher paranaense. No site da instituição há uma série de fotos que contêm Lygia, uma delas a nomeando como presidente do CPFC, com data de 1938.
9 Centro Municipal de Educação Infantil Professora Lygia Carneiro, localizado em Santa Felicidade, Curitiba/PR.
que sua atuação no ensino e no jornalismo paranaense tenha sido significativa, chama atenção para o fato de que seu pai, Petit Carneiro, impedia Lygia e suas irmãs de estudarem na universidade, alegando que não era adequado para moças.
Ainda assim, Lygia foi a responsável pelos textos de abertura da revista e análises políticas de temas como a Independência do Brasil, a Proclamação da República, a exaltação aos heróis da Pátria, entre outros, como abordaremos a seguir.
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL SOB A ÓTICA DA REVISTA SEMPRE-VIVA
Em setembro de 1822, o enthusiasmo de um principe, sem perda de sangue, libertara o Brasil do jugo portuguez... Porem, fôra uma liberdade relativa, porque a patria continuára a ser governada por homens em cujas veias corria o sangue andaluz, cujo coração não podia amar até o sacrificio este paiz gigante, porque elle não fôra o seu berço natal... Então, batalhadores do ideal patrio, tão heroicos quanto audaciosos, iniciaram uma campanha contra os extrangeiros que o governavam, iniciaram a propaganda republicana (nº 7, 1924, p. 1).
O trecho acima é um dos vários exemplos estampados nas páginas iniciais da Sempre-Viva que discutem o passado do país, ao mesmo tempo em que reafirmam posturas contemporâneas às autoras, como o republicanismo. Como veremos, muitas das pautas femininas discutidas na revista, como a participação
10 Fundada em 25 de novembro de 1970, a instituição foi pensada em razão de somente homens ocuparem as cadeiras da Academia Paranaense de Letras. A presidente da instituição feminina era Pompilia Lopes dos Santos, o que contribuiu para a sua eleição para a cadeira 39 da APL. Atualmente, tanto o CPFC quanto
a AFLP compartilham do mesmo endereço no centro de Curitiba. Hoje a Academia Paranaense de Letras possui 40 cadeiras, das quais 6 são ocupadas por mulheres, 2 estão vagas e as demais 34, ocupadas por homens. A ocupação profissional dos acadêmicos é bastante variada.
das mulheres no âmbito político, encontraram acolhimento nos projetos republicanos e posteriormente dentro da própria República, fator pelo qual parece haver uma grande valorização desse período histórico em detrimento do Império. O artigo referido, assim como grande parte dos textos políticos da revista, foi escrito por Lygia Carneiro e publicado na edição de 15 de novembro de 1924. O texto, evidentemente comemorativo, referia-se à Proclamação da República, embora fizesse alusão à Independência. Essa retórica narrativa parece ter sido amplamente usada pela autora, que em muitos textos desse tipo referia-se ao passado imperial, ora para buscar exemplos ou tecer críticas, ora para explicar o passado às “amiguinhas”11. Lygia Carneiro assina os primeiros textos das edições 04 a 12 da revista, tendo como foco alguns eventos históricos e políticos próximos às datas de publicação do periódico, de forma a rememorar e, por vezes, celebrar os acontecimentos destacados. Para além da Independência, Carneiro aborda outros assuntos históricos em seus editoriais, como a Revolução Francesa de 1789, a luta de Tiradentes, a Guerra do Paraguai, a Proclamação da República, a Descoberta da América, a Emancipação do Paraná, o Dia do “Fico” e a Primeira Constituição Republicana de 1891. Embora o foco desta análise esteja especificamente nos textos relacionados à Independência do Brasil, a leitura dos demais conteúdos é relevante, visto que contribui para elucidar a concepção da autora a respeito da história e da política.
A análise de Lygia sobre o processo de Independência do Brasil está evidenciada principalmente em três textos: “7 de Setembro” (nº 05, 1924, p. 1); “15 de Novembro (nº 06, 1924, p. 1) e “24 de Fevereiro” (nº 10, 1925, p. 1). Embora apenas o primeiro dos textos elencados tenha como objeto principal o processo de Independência, esse tema aparece com bastante destaque também nos dois últimos artigos. Nesses textos, prevalece na escrita da autora uma concepção histórica de progresso, tanto no que se refere ao desenvolvimento científico e racional, em oposição ao obscurantismo, quanto ao progresso político e social, entendido como a conquista da liberdade. Esta, encarada justamente como a oposição à tirania e ao absolutismo, é coligada a valores patri-
11 As leitoras da Sempre-Viva eram chamadas pelas redatoras de “amiguinhas”.
óticos de autonomia, independência e soberania. O progresso se manifesta no encadeamento dos eventos narrados, que aparecem como nós de uma mesma trama, de forma propositalmente descontextualizada com o fito de estabelecer um sentido à sua direção.
O texto paradigmático que evidencia essas concepções está localizado na 10ª edição da revista, intitulado “24 de Fevereiro” (nº 10, 1925, p. 1), em alusão ao dia em que, 34 anos antes, foi assinada a Primeira Constituição Republicana do Brasil. Embora esse seja o tema comemorado, Lygia realiza uma longa digressão histórica, retornando aos anos “barbaros, tyrannos, cruéis” em que o povo viveu “vencido pelo despotismo da escravidão e da violência…”, sem leis e sem Constituição. Ao apresentar a evolução política da Humanidade (com “h” maiúsculo) que saiu de um estágio bárbaro e alcançou a liberdade constitucional com a Revolução Francesa, Lygia determina o que para ela seria o Telos da história universal, “a maior aspiração humana: a liberdade!”. Assim, observa-se uma concepção histórica marcada por uma visão liberal, com algumas influências do pensamento positivista, como explicaremos adiante.
O progresso rumo à liberdade se daria por etapas. Ao feudalismo é reconhecido um avanço em relação à época dos “bárbaros guerreiros”, uma vez que é a ele que se deve “a moderna reconstituição dos estados”. A própria Independência do Brasil também era uma etapa, um “sopro de liberdade” em relação à colonização. Por outro lado, essas conquistas ainda não foram definitivas para almejar a plena liberdade, como mostra a sua caracterização da época moderna. Nesse período, o povo, “experimentando o poder dos monarchas, viu que esse não era o governo ideal, o governo liberal que idealizára”. Assim, essa nova onda por liberdade culminou na Revolução Francesa, que no entendimento de Lygia devia “chamar-se Revolução Universal, Revolução da Humanidade, porque foi a revolta por excelência, o reconhecimento de todas as liberdades facultadas ao cidadão”. Na mesma lógica, a Independência do Brasil não foi suficiente para formar um governo liberal, ao que se seguiu a penosa luta de muitos mártires, cujo sangue “banhou o solo do Brasil, pela liberdade ainda não adquirida”. O fim da marcha histórica apresentada pela autora nesse texto se dá justamente com a promulgação da Constituição Republicana de 1891,
“a mais liberal de todas as Constituições do Universo”, lida ao povo pelo “patriota de todos os tempos, pelo republicano ilustre, o Marechal Deodoro da Fonseca”.
Antiguidade, feudalismo, modernidade, Revolução, Independência, República e Constituição se imiscuem em uma narrativa do progresso humano em direção à liberdade, na qual os eventos são portadores de um sentido evidente. Do ponto de vista filosófico-político, percebe-se em seu pensamento uma forte influência do republicanismo brasileiro, ainda atual em sua época. Nele, a “pátria” assume um sentido de liberdade, entendida como a contraparte da tirania e da opressão sobre o povo. A referência à Revolução Francesa como “Revolução da Humanidade” ressalta a influência de certos elementos do positivismo de Auguste Comte, presente em algumas vertentes do republicanismo brasileiro. De acordo com José Murilo de Carvalho (1990, p. 21), Comte entendia a Revolução Francesa como uma época de progresso, embora discordasse da visão jacobina e rousseauniana de democracia direta e popular. Isso explica porque, diferentemente dos restauracionistas que se posicionaram contra a Revolução, Lygia defende os progressos liberais contra o despotismo desse período, sem endossar um projeto político regido pelas massas, ou, utilizando o vocabulário positivista, sem abrir mão da ordem, a cara-metade do progresso. A relação estabelecida pela autora entre pátria e Humanidade com “h” maiúsculo também apresenta inclinações comtianas. Carvalho explica que, para o pensador francês, a “pátria é a mediação necessária entre a família e a humanidade, é a mediação necessária para o desenvolvimento do instinto social” e, ainda, que “a pátria perfeita deveria ter como característica os dons femininos do sentimento e do amor” (CARVALHO, 1990, p. 22). Essa relação de amor com a pátria, ligada à família, perpassa a maioria dos textos políticos da autora, mas pode ser mais claramente verificado no artigo “Minha Pátria” (nº 11, 1925, p. 11). Nele, Carneiro combina um ufanismo pelo Brasil e suas belezas naturais à ideia de amor e à relação entre pátria e família. Após afirmar que o Brasil é “o paiz da Liberdade”, a autora explica que sua conexão e amor pelo país advêm do fato de que ali “viveram os meus antepassados, tirando deste riquissimo sólo que regaram com o suor de seu rosto, o pão cotidiano para matar a fome”. Oferecendo em sacrifício sua própria vida pela defesa da pátria, Lygia encerra a matéria novamente estabelecendo
a conexão entre a pátria e a família: “O’ terra de minha Mãe, ó minha terra, tu que foste um dia meu berço natal, serás tambem meu derradeiro leito”.
Em relação ao Marechal Deodoro, caracterizado como o “patriota de todos os tempos” (nº 10, 1925, p. 1), não fica claro se a autora novamente estaria endossando uma ideia de Auguste Comte, da chamada ditadura republicana, na qual “a força do poder executivo é realçada nos níveis nacional e provincial” (BOSI, 2004, p. 172). Pela leitura de outros textos da revista e do contexto em que Lygia está escrevendo, parece difícil acreditar que ela defendesse uma ditadura republicana perpétua, como apregoavam alguns republicanos positivistas ortodoxos do século XIX, como Miguel Lemos. Na realidade, o pensamento político de Carneiro entrelaça alguns elementos positivistas com outra corrente política muito influente entre os republicanos brasileiros do século XIX: o liberalismo ao estilo norte-americano, no qual o presidencialismo se combinava à democracia parlamentar, característico, por exemplo, de Rui Barbosa (BOSI, 2004, p. 173). Além disso, a defesa irrestrita da Constituição de 1891 também entra em contradição com o pensamento positivista mais ortodoxo, tendo em vista que alguns pensadores dessa corrente, como Júlio de Castilhos e Demétrio Ribeiro, protestaram pela não inclusão dos direitos trabalhistas no texto constitucional (BOSI, 2004, p. 168), e o próprio Miguel Lemos chegou a apresentar algumas “indicações urgentes” ao povo, reclamando, entre outras coisas, a aprovação da Constituição por plebiscito popular por todos os cidadãos maiores de 21 anos, incluindo os analfabetos (BOSI, 2004, p. 174). Mesmo sendo um movimento conservador, o positivismo procurou inserir os problemas sociais nas discussões políticas, algo que passa ao largo da maioria dos autores liberais, preocupados em garantir a liberdade do indivíduo frente ao Estado. No Brasil, o republicanismo de tipo liberal foi mais intenso dentro das elites cafeeiras, especialmente porque “ao definir o público como a soma dos interesses individuais, ela [a definição individualista de pacto social] lhes fornecia a justificativa para a defesa de seus interesses particulares” (CARVALHO, 1990, p. 24).
O leitor poderia se surpreender ao constatar que uma revista autointitulada feminista apresente a Constituição de 1891 – que, entre outras coisas, não permitia o sufrágio feminino – como a “mais liberal” de todas as constituições. Porém,
percebe-se pela leitura de outros artigos da Revista que essa visão está diretamente relacionada com uma noção liberal de cidadania, na qual a formação e educação das mulheres seria uma etapa da autonomia política, característica da primeira onda do feminismo. Um texto esclarecedor nesse ponto é apresentado por Rosalina Coelho Lisboa, na 13ª edição da Sempre-Viva. Nele (nº 13, 1925, p. 35), Rosalina afirma que “a mulher brasileira não está educada para o feminismo; falta-lhe caracter de colectividade, falta-lhe consciencia. Conceder-lhe o direito de voto é, neste momento, um erro, o mesmo que dar livre arbítrio a uma força céga”. O verdadeiro objetivo do feminismo seria, nessa lógica: “educar a mulher para que possa comprehender seu valor pessoal e, livremente, desenvolve-lo”. Assim como para Lygia o desenvolvimento histórico rumo à liberdade caminhava a partir de etapas, a liberdade feminina também deveria ser pensada enquanto um processo ao qual não seria conveniente adiantar sua marcha. Depreende-se desses trechos que a mulher brasileira deveria se esforçar “para mais e mais lustrar o espirito feminino, seguindo os exemplos, os esforços, os triumphos de nossos Patricios, no cultivo das artes, das letras e das sciencias”. Assim, a etapa da participação política pelo voto ainda não estaria suficientemente madura, ao menos no Brasil.
Partindo diretamente para a caracterização de Lygia sobre o processo de Independência do Brasil, convém elucidar as principais ideias contidas no artigo “7 de Setembro” (nº 05, 1924, p. 1). Nele, a autora apresenta esse momento de rompimento com Portugal como uma busca por liberdade que parte do “espírito do povo”, ainda que os acontecimentos decisivos tenham se precipitado a partir da “indignação de um príncipe”. É de se esperar que o republicanismo de Lygia se manifeste em uma crítica à família real dos Bragança e ao Império. Como já foi dito, a Independência aparece como uma etapa importante (mas não decisiva) rumo ao progresso e à liberdade, o que se reforça com o cuidado da autora em não idolatrar a figura de D. Pedro I. Sua participação é quase que um acaso da conjuntura, entendendo que mesmo sem a sua atuação, “impossivel era que o Brasil continuasse colonia de um velho paiz europeu”. A grande disputa por trás desse processo estaria entre o povo brasileiro e o português, que representavam “um a soberania, outro a dependencia”.
Essa visão é reforçada no texto “9 de Janeiro” (nº 09, 1925, p. 01), onde a autora apresenta os eventos relativos ao que
ficou conhecido como “Dia do Fico”, quando o príncipe regente D. Pedro I recusou a solicitação das cortes portuguesas de retornar ao país europeu, permanecendo em território brasileiro. Esse episódio é encarado pela autora como “um passo gigante para a próxima declaração de independencia”, uma caracterização que vem sendo refutada pela historiografia mais contemporânea (SCHWARCZ & STARLING , 2020, p. 212). É preciso recordar, entretanto, que os fatos históricos revelam, dentro da lógica da história-progresso de Lygia, um significado da marcha rumo à liberdade, sendo interpretados não a partir de seu contexto presente, mas justamente à luz do futuro. Dessa forma, a manutenção do príncipe regente deveu-se mais ao povo brasileiro que ao próprio futuro imperador. A autora explica que os brasileiros, “num assomo de patriotismo, repelliam energicamente os planos de recolonização do Brasil”, dando origem à disputa entre nacionais e portugueses. Entretanto, isso não significa que a Independência não teve homens e espíritos “em que o amor da pátria resumia tudo o que há de nobiliante e puro”, como o próprio Tiradentes, anos antes.
A figura de Tiradentes, exaltada no texto, recebeu uma atenção específica por parte da autora, que dedicou um artigo só para rememorar a importância de sua luta, também interpretada como um sinal dos tempos de liberdade que se avizinhavam ao Brasil. Em “21 de abril” (nº 12, 1925, p. 1), publicado na 12ª edição da revista, o líder da Inconfidência Mineira é retratado como “o primeiro grande batalhador pela independencia do Brasil”, e seu movimento é descrito como “a conspiração dos estudantes patriotas”, unindo novamente o patriotismo e a Independência como símbolos da liberdade. Embora seja conhecido o fato de que a emancipação política defendida pelos inconfidentes tivesse um caráter muito mais regional do que nacional, novamente a autora não está preocupada em analisar os acontecimentos à luz de seu contexto, mas em apresentar os eventos encadeados dentro um processo muito mais amplo. Nesse sentido, é interessante observar como a autora finaliza o texto, estabelecendo quase que uma conversa com Tiradentes, relembrando ao mártir que: “Trinta annos passaram para que a semente que lançáste désse fructos! Trinta annos depois de tua morte, D. Pedro, proclamava no Ypiranga, a liberdade do Brasil do jugo portuguez”.
A mitificação de Tiradentes é uma marca do movimento republicano brasileiro, construída após a Proclamação de 1889
(CARVALHO, 1990, p. 57). De acordo com Carlos Roberto Ballarotti, “Tiradentes não foi criado pela República, mas sua imagem foi apropriada pelos vencedores, uma vez que o novo regime necessitava de uma figura forte que apagasse o então herói D. Pedro I, a imagem forte da monarquia” (2009, p. 202). Essa constatação ajuda a compreender o destaque atribuído por Lygia, defensora da República, ao inconfidente mineiro, em detrimento do primeiro imperador. D. Pedro I, como já foi explicado, teve sua importância relativizada no que se refere ao processo de independência; suas ações deveriam ser compreendidas na conjuntura vivenciada a partir do retorno da família real a Portugal em 1821, sem uma consciência libertadora. Muito diferente é Tiradentes, um verdadeiro patriota e defensor também da República, a partir da máxima “Libertas quae sera tamen (Liberdade, ainda que tardia)”, estampada na bandeira branca dos inconfidentes. Novamente, vemos a associação entre República e Liberdade muito presente no texto e no imaginário político da escritora curitibana de inícios do século XX.
No artigo “15 de Novembro” (nº 07, 1924, p. 1), a marcha histórica rumo ao progresso se concretiza na defesa da pátria brasileira contra o colonizador estrangeiro, sendo a Proclamação da República a verdadeira Independência. Durante a monarquia, “a patria continuára a ser governada por homens em cujas veias corria o sangue andaluz”, o que explica o pouco destaque dado pela autora ao primeiro imperador do país. É nítida a aproximação entre a construção da pátria brasileira republicana com a defesa dos valores liberais da Revolução Francesa, que se opunha à tirania e aos privilégios da aristocracia enquanto inimigos do povo e da nação. A Independência de 1822 assume, em Lygia, o caráter de uma “liberdade relativa”, à qual se seguiu uma luta sangrenta por parte de mártires abnegados que “perderam a vida para libertar seu paiz das mãos portuguesas”. Como mártires, a autora se refere principalmente aos liberais que organizaram movimentos contrários ao primeiro reinado, como o caso da Confederação do Equador, liderada por Frei Caneca. Embora derrotados e mortos, o heroísmo desses patriotas foi importante para reacender a luta pela liberdade: “era tempo de proclamar nova independencia, de novamente gritar Independencia ou Morte como ha sessenta annos lá no Ypiranga”. É a partir daí que o republicanismo de Lygia fica bastante nítido, ao atribuir ao movimento republicano da segunda metade do século XIX o papel libertador e patriótico,
entendido como uma “cruzada bemdicta”. Após a derrubada da Monarquia, num processo encabeçado pelo “Grande Marechal” Deodoro da Fonseca, a liberdade relativa conquistada em 1822 completa sua marcha, e “uma salva de artilharia saudou a queda do poder portuguez sobre o Brasil, saudando a República…”. Chama atenção a citação dos republicanos mais valorosos para a autora12, todos de uma vertente que combinava republicanismo à luta pela abolição, algo que não era consenso dentro do movimento republicano (FERNANDES, 2006). É sabido que, no Brasil, os republicanos positivistas eram ferrenhos abolicionistas, o que talvez explique essa escolha de Lygia. Alfredo Bosi relembra que positivistas ortodoxos como Miguel Lemos e Teixeira Mendes travaram uma luta dentro do Partido Republicano Paulista contra os fazendeiros de café, por entenderem que eles bloqueariam as medidas abolicionistas no país (2004, p. 163). De toda forma, é importante frisar que a liberdade defendida por Lygia não tem como foco os escravizados ou mesmo as mulheres – ausentes, aliás, das narrativas –, sendo restrita à liberdade política, uma marca do pensamento liberal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como discutido ao longo do artigo, a Sempre-Viva teve uma curta duração, indo de maio de 1924 a dezembro de 1925. Ainda que não tenham sido encontradas evidências que permitam explicar por que o projeto feminista da revista teve fim, sua existência permite pensar os esforços conduzidos pelas autoras em criar algo novo na moderna Curitiba em meio às adversidades. Em um contexto no qual o espaço público e o debate político eram lugares reservados aos homens, mulheres como Lygia Carneiro foram fundamentais para modificar esse cenário. Os textos histórico-políticos da autora na revista podem ser considerados uma tentativa de adentrar um novo espaço, até então restrito para as mulheres, seja pela organização social ou pelas possibilidades de estudo a elas proporcionadas.
12 Os nomes citados por Lygia Carneiro são: Lopes Trovão, Saldanha Marinho, Rui Barbosa, Quintino
Bocaiúva, Rangel Pestana, Américo de Campos, Benjamin Constant e o próprio Deodoro da Fonseca.
Como visto, apesar de ser uma grande escritora, intelectual e poeta, a própria Lygia foi impedida pelo pai, Petit Carneiro, de se integrar à universidade. Dessa forma, ainda que esse contexto impusesse dificuldades às mulheres no que se refere aos estudos e participação do debate público, elas foram agentes históricas que tentaram modificar sua realidade. A revista Sempre-Viva e também a Pequena Academia de Letras se inscrevem, portanto, nessa tentativa, tanto quanto a atuação de Lygia na educação de jovens curitibanos.
No que se refere aos textos políticos publicados por ela, em especial em relação à Independência do Brasil, observa-se uma preocupação pedagógica com as leitoras e um espírito crítico bem localizado historicamente. A perspectiva da autora pode ser analisada à luz das reflexões de José Murilo de Carvalho (1990) acerca do republicanismo brasileiro. O autor destaca três vertentes deste: o positivismo, o liberalismo norte-americano e o jacobinismo francês. Do ponto de vista político, Lygia Carneiro possui elementos reconhecíveis às duas primeiras tradições, numa imbricação em que o “Progresso” e a “Pátria” aparecem conjugados à “Liberdade” como fim último da “Humanidade”, sem que isso se articule diretamente a grupos ou classes sociais específicas.
A Liberdade é entendida a partir do esclarecimento, da República descentralizada e constitucional e da igualdade jurídica entre os cidadãos, ou seja, da liberdade do indivíduo proprietário frente ao Estado. Questões de classe e gênero – como a situação dos trabalhadores e a opressão da mulher – não são entendidas como demandas a serem resolvidas pela política e pela luta, mas pela educação. É nesse ponto que prevalece, em nossa opinião, o liberalismo como a principal corrente política que influencia os textos de Carneiro, já que mesmo os positivistas, como foi explicado, acreditavam que os problemas sociais deveriam ser integrados e resolvidos pelo Estado.
Vale destacar que a autora não estava escrevendo no auge do movimento republicano, durante o século XIX, mas aproximadamente 30 anos após a instauração do novo regime político. A essa altura, muitos ardorosos republicanos do passado já tinham se desiludido com os resultados dos feitos de 1889, como o próprio Alberto Sales, um dos principais idealizadores da República no Brasil (Carvalho, 1990, p. 30). Não é o caso de Lygia Carneiro: convencida da marcha rumo ao progresso, ela apresenta as principais efemérides da história nacional de
forma a conferir-lhe um sentido positivo. É dentro dessa lógica que se insere a Independência do Brasil, em 1822, como mais uma das etapas que o povo trilhou rumo à liberdade, a partir do sentimento patriótico e antilusitano. É bem verdade que esse povo aparece como uma entidade bastante abstrata, aparentemente sem contradições, classes antagônicas, opressões de gênero ou regionalismos. Essa visão idealista do progresso se combina com o próprio projeto da revista Sempre-Viva, qual seja o esclarecimento feminino a partir da educação, da poesia e da arte de maneira geral, ao mesmo tempo em que endossa o lugar tradicional da mulher como mãe e esposa.
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Bianca Gunha Mendes
Independência do Brasil
(Rio
de Janeiro–1822)
RESUMO
O presente artigo busca realizar uma análise sobre o papel e a influência que Dona Leopoldina teve no processo de Independência do Brasil por meio de sua correspondência encaminhada ao seu esposo em 02 de setembro de 1822. Objetiva-se compreender o papel exercido pela figura feminina e o local ocupado nesse sentido na sociedade durante o início do século XIX, tendo como foco específico a atuação política de Dona Leopoldina. Discute-se, ainda, o contexto histórico em que o Brasil se torna uma nação independente e a concepção historiográfica acerca desse marco por meio dos debates trazidos pelos historiadores Jurandir Malerba, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Sonia Regina de Mendonça. Diante disso, permeou-se o conceito de Nova História Política apresentado pela Escola dos Annales e debatido por Peter Burke e René Rémond, bem como o conceito de escrita epistolar trazido por Angela de Castro Gomes e Teresa Malatian.
Palavras-chave: Brasil Império; Dona Leopoldina; Cartas.
INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a realizar uma análise acerca do desempenho político de Maria Leopoldina de HabsburgoLorena durante o processo de Independência do Brasil por meio de uma correspondência encaminhada a seu esposo, Dom Pedro I, no dia 02 de setembro de 1822. O objetivo é analisar a intervenção da primeira imperatriz do Brasil nesse cenário, visto que foi uma mulher que teve atuação política nos anos iniciais do século XIX. Assim, o questionamento feito é: qual foi o papel representado por D. Leopoldina que culminou na Proclamação da Independência do Brasil?
Dada a questão, precisamos conhecer e entender um pouco da carta em discussão, que nos servirá como fonte histórica. No ano de 2022, é celebrado o bicentenário da Independência do Brasil e, apesar de muito já ter sido escrito e estudado acerca do assunto, inclusive sobre a atuação política da primeira imperatriz
brasileira, o presente artigo visa consolidar que a descendente da família Habsburgo foi preparada para atuar na política – devido à sua criação.
A mulher, que, durante séculos, ocupou o papel doméstico e tinha como principal função a maternidade, enfrentou – e ainda enfrenta – muitos desafios para conquistar o seu espaço. No início do século XIX, por serem consideradas como inferiores, frágeis, menos inteligentes e vulneráveis, a decisão e o comando eram sempre proferidos pela figura masculina. Qualquer comportamento que fosse diferente do esperado e desobedecesse ao marido ou à Igreja era visto com maus olhos pela sociedade.
Ao longo da História, podemos perceber que a política tendia a ser destinada aos homens, mas a primeira imperatriz do Brasil teve atuação na área, bem como grande importância no ano de 1822. Leopoldina Habsburgo-Lorena, nascida em Viena, na Áustria, em 22 de janeiro de 1797, foi escolhida para ser esposa de Dom Pedro I, herdeiro do trono do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.
Leopoldina, quando ainda era menina e vivia na Áustria, recebeu uma educação burguesa. Seu avô, Leopoldo II, havia instituído um programa de educação para os príncipes da casa de Habsburgo. Para ele, o trono não era apenas algo adquirido, mas, também, um cargo. Sendo assim, era preciso estar preparado para reinar. A partir de tal ponto de vista, o programa de ensino ofertado para os descendentes de Habsburgo incluía diversas disciplinas. Para as arquiduquesas, não era diferente: elas eram preparadas com o objetivo de ser o que havia de melhor para se ter ao lado de um príncipe na hora de governar.
A imperatriz, como apresentado adiante, possuía um arcabouço científico superior ao de D. Pedro. O futuro herdeiro do trono, ao chegar ainda criança ao território brasileiro, não recebeu a formação intelectual de acordo com o que os príncipes recebiam. Posto isso, o presente artigo vai abordar o papel político de D. Leopoldina em 1822 por meio de sua própria consciência política, adquirida a partir dos anos iniciais de sua vida e aplicada desde o momento em que chegou à sua nova pátria.
Por meio da educação que recebeu na Áustria, ela compreendia quais eram os seus deveres perante o trono e os sacrifícios inerentes de ser uma princesa e futura rainha. A jovem aprendera a aceitar seu destino e suas obrigações por meio de dois exemplos em específico, o comportamento na corte de sua
madrasta, Maria Ludovica, mesmo com uma séria doença no pulmão1; e de sua irmã, Maria Luísa, que precisou se casar com Napoleão Bonaparte.
A Santa Aliança, criada em 1815 e formada pela Áustria, Prússia e Rússia, tinha como objetivo manter a conjuntura do mundo em que viviam e evitar o aparecimento de um “novo Napoleão” (REZZUTTI, 2020, p. 49). A união entre a casa de Bragança e Habsburgo, por meio do matrimônio de seus descendentes, corroborava a manutenção do Absolutismo no Novo Mundo. Dessa forma, com todo o arcabouço recebido, D. Leopoldina conseguiria servir ao Estado, seu pai e, posteriormente, ao seu marido.
A jovem austríaca era diferente, em alguns aspectos, das outras mulheres. Foi consultada por Dom Pedro I em relação à política e até mesmo atuou como princesa regente quando necessário. Assim, iniciou suas atividades administrativas sendo nomeada, pelo próprio esposo, como Chefe de Conselho de Estado e Regente Interina do Brasil Colônia em 1822. É nesse cenário que D. Leopoldina se torna uma personagem importante da Independência.
Conhecida e lembrada por suas cartas, propomo-nos a analisar, em específico, a correspondência da imperatriz datada do dia 02 de setembro de 1822. Apesar do documento original não ter sido localizado fisicamente até os dias atuais, sabe-se de sua origem devido a menções de testemunhas do Conselho de Estado e do Grito do Ipiranga e às publicações realizadas a partir da década de 1920, em que aparece citada. O texto foi preservado em um folheto raro de 1826, em que foi publicado pela primeira vez.
É de complexa abordagem tratar o tema da Independência do Brasil com originalidade, porém, sempre há a possibilidade de reinterpretações, dando uma outra visão ao objeto de estudo. A doutora em História Sonia Regina de Mendonça, em seu artigo “A Independência do Brasil em perspectiva historiográfica” (2010), explica que existem mitos referentes à Independência, como o episódio do “Grito do Ipiranga”, por exemplo, e a dissimulação
1 Uma doença mal curada e o desgaste em festas e recepções cobraram um alto preço de sua saúde. Maria Ludovica, acompanhando seu esposo,
procurava manter as aparências e cumprir suas obrigações. Faleceu em 1816, na Itália, vítima de tuberculose.
da violência presente nas guerras da Independência ocorridas entre 1822-1824.
Dessa forma, podemos perceber que, durante os 200 anos de tal fato histórico, há ainda muito a ser estudado, sob novos aspectos. A historiadora Lúcia M. Bastos P. Neves, no capítulo “Estado e política na independência”, publicado no livro “O Brasil Imperial – Volume 1: 1808-1831” (2009), reforça a inesgotabilidade em relação ao tema da historiografia da Independência:
Se o tema da independência tem sido recorrente em estudos historiográficos, não está, contudo, esgotado, pois ainda suscita opiniões diversas, demonstrando que fatos e personagens merecem estudo mais minucioso; visões cristalizadas necessitam de novo olhar; e informações a respeito das diversas partes que constituíam o território, naquela época, precisam ser coligidas para o conhecimento mais denso desse período de constituição de um país chamado Brasil. (NEVES, 2009, p. 97).
Sendo assim, recordemo-nos de como aconteceu o processo de separação entre Brasil e Portugal.
UM BRASIL INDEPENDENTE
Jurandir Malerba, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo “As independências do Brasil: ponderações teóricas em perspectiva historiográfica” (2005), aponta que o marco político da Independência do Brasil apresenta explicações distintas ao decorrer do tempo. Para ele, as respostas são dadas “a seu modo a cada momento”. Em seus escritos, destaca o papel das minorias, voltadas também à questão de gênero, durante essa movimentação. Em sua visão historiográfica, afirma que o papel das mulheres durante a História era um “tema praticamente inexistente como tópico de pesquisa antes dos anos 1970” (2005, p. 117). Segundo o historiador, ainda irão surgir outros questionamentos, dentro da Nova História Cultural e Política, como a importância das relações de gênero, no processo de Independência.
Para a formação do Império, segundo Neves (2009, p. 103), era necessária uma transformação tanto na capital, Rio de Janeiro, quanto nas “engrenagens administrativas e políticas que faziam mover o mundo luso-brasileiro”. A estadia da família real no Brasil provocou uma vulnerabilidade em Portugal. Em 1820, com a eclosão da Revolução Liberal do Porto, realizada pela própria burguesia, era requerido o retorno de D. João VI para Lisboa e a revogação de medidas que haviam sido implementadas no território brasileiro. 26 de abril de 1821 foi a data em que o monarca partiu rumo à sua terra natal, visando acalmar os ânimos tanto da nação portuguesa como da brasileira.
Os treze anos em que D. João VI permaneceu no Rio de Janeiro foram de grandes sofrimentos para o povo português, devido aos ataques franceses, que acarretaram uma dívida gigantesca em forma de indenização de guerra. D. Pedro aguardava o tempo de governar. O príncipe herdeiro, segundo o historiador pernambucano Manuel de Oliveira Lima, em sua obra “O Movimento da Independência” (2014, p. 10), tinha ardor político e estava disposto a “rebelar-se contra a autoridade paterna, com o fato de assumir uma posição de iniciativa e responsabilidade próprias”. Após a partida de seu pai, passa a deter amplos poderes:
Cabia-lhe a administração da justiça e da fazenda; a resolução de todas as consultas relativas à administração pública; o provimento dos lugares de letras, dos ofícios de justiça e fazenda, dos empregos civis e militares, e das dignidades eclesiásticas, à exceção dos bispos. [...] Assegurava-se, dessa forma, em tese, a permanência de um Brasil de uma autoridade central, com sede no Rio de Janeiro, encarregada de articular as demais províncias. (NEVES, 2009, p. 119-120).
Com a partida de D. João VI, foi levado consigo todo o dinheiro do Banco do Brasil e o tesouro real. Assim, o ar de insatisfação e insegurança assolou o território. Neves (2009, p. 120) aponta que, em termos econômicos, o início da regência de D. Pedro foi desafiador, visto que os cofres públicos estavam desfalcados. Portanto, seu governo “ficou reduzido à quase-imponência e mais dependente do Congresso de Lisboa, que ele não deixava de ver com desconfiança” (NEVES, 2009, p. 121).
A corte portuguesa desejava transferir para Lisboa as principais repartições instaladas no território brasileiro e almejava também que o príncipe retornasse a Portugal. Dessa maneira, começaram a surgir pressões de todos os lados, pois, caso o príncipe partisse, o Brasil se declararia independente; se resolvesse ficar, deveria continuar unido, porém, não aceitando receber ordens da corte, D. Pedro seguiu sem tomar alguma atitude definitiva. Vale ressaltar que seu pai, antes de partir, deixou a recomendação de que, se o Brasil se separasse, era melhor que fosse por iniciativa do próprio filho.
O declínio na economia do açúcar, a nova produção de algodão, a incerteza do ouro nas Minas Gerais e a exportação do café eram modificações na área econômica que estavam afetando o mercado interno, já que os impostos estavam exorbitantes. O príncipe, precisando agir, adotou medidas para conter as despesas, como a venda de animais dos estábulos reais e abolição do imposto do sal e da navegação de cabotagem, a fim de conter gastos. Suas decisões, porém, não estavam satisfazendo os brasileiros.
O Brasil enfrentava insurreições e a ideia de Independência já havia contagiado Minas Gerais em 1789, a Bahia em 1798 e Pernambuco em 1817. Além disso, a América Inglesa também estava praticamente independente.
Mendonça (2010, p. 5), afirma que o Império teve início quando D. Pedro escolheu ficar no Brasil, conhecido como “Dia do Fico”, em 9 de janeiro de 1822. O príncipe recebeu um requerimento assinado por mais de 8 mil políticos que pediam sua permanência em solo brasileiro, pois tinham receio de perder os avanços obtidos desde a vinda da corte.
Precisamos salientar que, nesse momento, a primeira imperatriz brasileira já teve papel relevante. Isabel Lustosa, doutora em Ciência Política, em seu livro “D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter” (2006, p. 73), referindo-se a D. Leopoldina, destaca que, em cartas destinadas ao pai desta, havia discussões de cunho político e, como ela mesma afirma, “se dedicaria intensamente a convencer D. Pedro a ficar no país”. Após tal declaração, fica, cada vez mais evidente, que as duas nações estavam separadas. Durante o processo de independência, duas pessoas tiveram grande influência na tomada de decisões do príncipe regente: Maria Leopoldina e José Bonifácio de Andrada e Silva2.
Dentro das omissões presentes nesse processo político, Neves (2009) apresenta que, nos estudos mais recentes, surgiram preocupações que não eram esmiuçadas anteriormente sobre esse aspecto, como a participação das camadas populares e a formação da identidade nacional, que enriqueceram os debates sobre a Independência do Brasil.
A historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra, no artigo “A atuação da mulher na cena pública: diversidade de atores e de manifestações políticas no Brasil imperial” (2006, p. 108), relata as discussões políticas e intelectuais que começaram a ser realizadas nas ruas com o anseio de participação na sociedade. Nesse contexto, surgem então as manifestações lideradas por mulheres:
Através da apresentação que chamo de verdadeiros manifestos políticos, escritos e exclusivamente por elas assinados -, atuando com determinação e politicamente conscientes da força de pressão que poderiam exercer na sociedade em que viviam. [...] Isso num contexto em que a norma era a sua reclusão ao lar, ou seja, quando vigorava a imposição de sua atuação apenas no espaço interno da casa e suas relações sociais eram restritas ao âmbito familiar. A ordem vigente era não permitir a mulher desempenhar atividades no espaço público, nem tão pouco estabelecer relações políticas. (LYRA, 2006, p. 108).
Em seu artigo, Neves apresenta que os panfletos impressos foram importantes recursos na época para trazer à tona identificações que tiveram participação significativa naquelas conjunturas. Foram feitos por autores desconhecidos que, muitas vezes, deixavam presentes erros de ortografia. Redigiam intensos debates políticos que eram levados para as ruas, espaços públicos que “incitavam o povo a aderir ao movimento constitucionalista de 1821” (2009, p. 12).
2 José Bonifácio de Andrada e Silva foi presidente da junta governativa de São Paulo (1821) e, posteriormente, assessor e ministro de D. Pedro, juntamente com seu irmão
Martim Francisco. Tornou-se o principal organizador da Independência do Brasil, com atuação destacada no processo constitucional.
Apesar de D. Leopoldina ter uma posição elevada na sociedade, pelo fato de ser a esposa do Imperador e pertencer a Dinastia Habsburgo, muitas vezes, na História, é lembrada pelo seu papel como esposa e mãe do futuro herdeiro do trono. A historiadora Mary Del Priore, no livro “História da gente brasileira – Império – Volume 2” (2016, p.196), descreve como eram as mulheres durante o Brasil Império. De acordo com a autora, o sexo feminino era sempre relacionado ao papel frágil. Durante o século XIX, era costume demonstrar a posição social por meio do vestuário, por isso, a aparência deveria ser sempre impecável. Na aparência física, uma mulher precisava ter os pés pequenos; possuir cabelos longos, mas sempre presos em penteados elaborados; e fazer o uso de espartilhos que acentuassem os seios e das anquinhas que aumentassem o traseiro. Como consequência, as roupas podiam causar problemas respiratórios e hemoptises3.
A figura feminina precisava transparecer a imagem de uma criatura vulnerável e romântica, a fim de que os homens pudessem então sentir-se fortes e dominadores. Tal ação vem de um culto da figura masculina, no qual eles eram o sexo dominante. O casamento, no cenário brasileiro, podia ser por interesse econômico e/ou político. Os maridos deveriam ser escolhidos pelos pais e o encontro entre os noivos era, geralmente, no dia do casamento (PRIORE, 2016, p. 244). Diferentemente do que era retratado nas representações literárias, as mulheres viviam ocupadas com os afazeres domésticos e davam pouca atenção à instrução.
Nesse cenário de como deveria ser uma mulher, a família Habsburgo desenvolveu um sistema de aquisição territorial por meio de alianças de casamento. Dessa forma, casar-se com uma “era como possuir um artigo de luxo: uma mulher com instrução suficiente para ser uma estadista”, afirma Paulo Rezzutti, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, no livro “D. Leopoldina: a história não contada – a mulher que arquitetou a Independência do Brasil” (2020, p. 23). Na visão de D. João VI, o casamento entre um português e uma austríaca representava “uma aliança com outras casas europeias” (NEVES, 2009, p. 113).
3 Sangramento proveniente das vias áreas inferiores cujas apresentações mais comuns são tosse com elimina-
ção de sangue ou saída de secreção pulmonar com sangue.
Marsilio Cassotti, em seu livro “A biografia íntima de Leopoldina: a imperatriz que conseguiu a independência do Brasil” (2021, p. 38), complementa a ideia destacada sobre o papel a ser desenvolvido por uma esposa descendente da família de Habsburgo e, consequentemente, executada pela futura imperatriz:
A arquiduquesa aceitou representar o mesmo papel que uma longa série de arquiduquesas da casa de Habsburgo vinha representando desde finais do século XIII. Ou seja, obedecer, sem oposição manifesta, à ordem de se unir em matrimônio com objetivos exclusivos de servir a sua dinastia. (CASSOTTI, 2021, p.38).
Os pais de D. Leopoldina valorizavam muito a educação e a cultura. Lustosa (2006, p. 46) aponta que o casamento entre a jovem austríaca e o jovem português, no plano da política internacional, foi considerado uma bela aliança, pois as dinastias Habsburgo e Bragança consolidavam a monarquia instalada no Novo Mundo e fortaleciam o sistema monárquico na Europa. Rezzutti (2020, p. 48) descreve como era o programa de ensino da família real austríaca, cujo grande objetivo era que essas princesas fossem o apoio para seus futuros maridos na hora de governar. Já a educação recebida por D. Pedro foi bastante distinta:
Diferente da educação concedida a Dona Leopoldina, os estudos de Dom Pedro foram interrompidos com a vinda da Família Real ao Brasil. O príncipe era indisciplinado, porém, recebeu instrução de matemática, lógica, história, geografia, economia política e também aulas de artes manuais. (REZZUTTI, 2020, p. 48).
A futura Imperatriz do Brasil teve participação política desde o início da regência de seu esposo. Em maio de 1822, é escrito um manifesto político por mulheres da Bahia intitulado “Carta das senhoras baianas à Sua Alteza Real D. Leopoldina”, em reconhecimento à atuação da princesa “pela determinação contrária ao decreto das cortes de Lisboa que exigiam o imediato retorno de D. Pedro para Portugal” (LYRA, 2006, p. 109).
Leopoldina, no entanto, só recebeu a carta-manifesto em agosto, quando exercia as funções de regente do Brasil. As baianas ainda felicitaram a princesa por sua atuação política, sendo ela a “digna do trono” (LYRA, 2006, p. 109). No dia 13 do mesmo mês, quando D. Pedro parte do Rio de Janeiro com destino a São Paulo, publica um decreto nomeando D. Leopoldina regente no seu lugar, “sendo-lhe autorizado despachar com os ministros, os secretários e o Conselho de Estado enquanto o príncipe estivesse viajando” (REZZUTTI, 2015, p. 136).
D. Leopoldina convocou e presidiu o Conselho de Estado em 2 de setembro de 1822 para discutir as notícias que chegavam de Lisboa. A princesa, juntamente com José Bonifácio, escreveu uma carta pedindo que D. Pedro proclamasse a Independência do Brasil.
Recordemos-nos de Lima (2014), destacando a participação de D. Leopoldina no processo histórico de 1822 no Brasil – apesar de sua posição, ela ainda era vista como inferior pelo fato de ser mulher. Para ele, a descendente austríaca ajudou na causa nacional “não pela ambição de ser imperatriz [...], mas por finura e alcance de espírito, percebendo a marcha inevitável para o rompimento” (2014, p. 102).
Em 07 de setembro, em terras paulistas, D. Pedro recebe as cartas de atos das cortes, de José Bonifácio e da princesa Leopoldina, e percebe então que é hora, novamente, de agir. Às quatro da tarde, montando em sua besta e com problemas intestinais, proclamou a Independência do Brasil. Segundo a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Brasil: uma biografia” (2018), D. Pedro formalizou o que já era realidade – o momento representa uma ruptura, “o evento é expressão visível de uma série de tensões e arranjos que se colavam à crise do sistema colonial e do absolutismo” (SCHWARCZ, 2018, p. 219).
A carta de Leopoldina destinada a D. Pedro pedindo a Independência do Brasil, bem como as que encaminhava para seu pai, demonstrava a inteligência política que a imperatriz tinha. Com o passar do tempo, tornaram-se fontes históricas. Assim, faz-se necessário uma análise para compreender o papel exercido por uma mulher no contexto político. É nesse cenário que D. Leopoldina se torna uma personagem importante na Independência do Brasil.
UMA MULHER NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO
Bettina Kann, historiadora e bibliotecária titular da Biblioteca Nacional da Áustria, no livro “Cartas de uma imperatriz” (2006, p. 130), apresenta que os escritos da princesa revelam o posicionamento de alguém que recebeu uma educação tradicional e conservadora na Europa:
Ela buscava facilitar os entendimentos diplomáticos e comerciais entre as monarquias e, ao mesmo tempo, evitar o avanço dos novos princípios, que representavam o maior dos perigos à sua linhagem. Com o desdobrar da dinâmica política aberta com o constitucionalismo, Leopoldina passara a aceitar a forma mais moderada de liberalismo, que seria adotada no momento da fundação do Império, não porque entendia que esta seria a única forma de atender ao mais essencial de seus deveres: a defesa da dinastia reinante e, na medida do possível, das concepções tradicionais de poder. (KANN, 2006, p.130).
Durante os séculos XIX e XX, a história política era relacionada com a noção de uma história oficial, militar ou diplomática. Dessa forma, os historiadores que escreviam sobre tal período destacavam os políticos e militares como as grandes personalidades da época.
O historiador Roderick Barman, em seu livro “Princesa Isabel do Brasil – gênero e poder no século XIX” (2002), prossegue a discussão a respeito de um eixo sexista concentrado, principalmente, em estudos políticos voltados a alguma figura masculina. Para o autor, “as mulheres sempre estiveram envolvidas no processo político, se não formalmente, ao menos por trás, nos bastidores” (BARMAN, 2002, p. 11).
Durante o processo de Independência do Brasil, três mulheres tiveram papéis relevantes, sendo elas D. Leopoldina, Maria Quitéria4 e Joana Angélica5 (BARMAN, 2002, p. 28).
Destaque para a primeira imperatriz brasileira, que apoiou e estimulou a atuação política de seu esposo – decerto sua atuação
foi mais significativa, porém, não cabia à condição feminina um papel autônomo.
Na narrativa histórica tradicional, principalmente no cenário político, a figura feminina pouco aparece. A historiadora Michelle Perrot, em seu livro “As mulheres ou os silêncios da história” (2005), apresenta que, no mundo público, sobretudo econômico e político, os registros são feitos e destinados aos homens e, dessa forma, é contado e passado para as gerações. Sendo assim, a autora destaca o desafio de resgatar a memória feminina, pois os únicos documentos em que elas puderam ser protagonistas foram em correspondências, diários e autobiografias, que estavam restritos ao seu lugar na família e na sociedade.
Posto isso, é importante recordarmos quando foi que a História passou a dar voz à figura feminina, principalmente no cenário político, e dar o reconhecimento necessário a mulheres que realizaram grandes feitos. Faustino Teatino Cavalcante Neto, doutor em História, em seu artigo “Nova História Política e considerações sobre os conceitos de cultura política e representações” (2017), apresenta que é somente a partir de 1920 que se inicia uma crítica em relação à visão “tradicional” da História Política. É na França, a partir de 1920, que os Annales, com a Revista d’Historie Économique et Soliale, na direção de Lucien Febvre e March Bloch, que aconteceu o início de uma nova produção historiográfica. Na terceira geração dos Annales, a partir dos anos 1970, ocorre um desenvolvimento de uma “nova” História, com destaque para uma característica de retorno à História Política, adquirindo uma visão mais ampla e novas preocupações.
Novas abordagens surgem para um deslocamento da História de grupos que até então eram marginalizados. Peter Burke, em seu livro “A escrita da História: novas perspectivas”, destaca que:
A nova história é a história escrita com uma relação deliberada contra o “paradigma” tradicional,
4 Considerada a heroína da Independência, a baiana fingiu ser homem para poder entrar nas Forças Armadas. Foi a primeira mulher a fazer parte do Exército Brasileiro.
5 Freira, foi fuzilada à porta de seu convento em Salvador, na Bahia, por resistir à invasão das tropas portuguesas.
aquele termo útil, embora impreciso, posto em circulação pelo historiador de ciência americano Thomas Kuhn. [...] Poderíamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da história, não para enaltecê-lo, mas para assinalar que ele tem sido com frequência – com muita frequência – considerado a maneira de se fazer história, ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis do passado. (BURKE, 1992, p. 10).
O historiador ainda discorre a respeito de novos tópicos que começaram a ganhar espaços e discussões – entre eles, a infância, a morte, o clima, o corpo e a feminilidade. “O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma “construção cultural”, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço” (BURKE, 1992, p. 11).
A história tradicional sempre ofereceu uma visão voltada a grandes realizações feitas pela figura masculina, como estadistas, generais ou até mesmo eclesiásticos. Ao restante, sempre um papel secundário. Burke (1992, p. 13) relata o desejo de novos historiadores no movimento de uma “história vista de baixo”, mas também aponta os desafios para que tal ação aconteça:
Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associados a cor, credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. [...] Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra. (BURKE, 1992, p. 15).
Nos princípios de sua criação, a Nova História envolveu historiadores de diversos lugares do mundo, ou seja, desde o início tem como um de seus princípios uma história mais abrangente. Outro conceito relevante para a renovação da História Política é o de cultura política. José Henrique Songolano Néspoli, doutor em História, no artigo “Cultura Política, História Política e Historiografia” (2015, p. 362), apresenta que o conceito de
cultura política está voltado para a obra “A cultura cívica”, de 1963, de Gabriel Almond e Sidney Verba, e foi a partir deles que se assumiu um estatuto acadêmico. A origem do conceito foi baseada nas ideias do pensador francês Alexis Tocqueville, feitas durante o século XIX.
A partir de então, entende-se que o objetivo da cultura política foi contribuir para incluir os padrões culturais no ambiente político das sociedades, visto que carregam uma atribuição significativa na análise da relação entre sociedade e Estado. Para o historiador René Rémond, no livro “Por uma
História Política” (2003), esse momento pode ser descrito como um “rejuvenescimento da história política”, pois ao tirar o Estado como destaque, perde-se então o caráter elitista e individualista, tendo as massas como seu objeto central.
A grande crítica feita pelos historiadores da terceira geração dos Annales (1968-1989) foi acerca do estudo da História Política, tendo como desafio ultrapassar a abordagem tradicional e incorporar a noção de que a História é “composta por uma pluralidade de tempos com diferentes ritmos de “duração” (NÉSPOLI, 2015, p. 364).
Dentro do conceito de cultura, encontramos um conjunto de comportamentos e valores de uma determinada sociedade, que passou a integrar assim a cultura política, como o comportamento das massas, associações civis, a participação e a cidadania, os padrões culturais, enfim, tendo papel fundamental no cenário político. Esse movimento não foi apenas um retorno à História Política, mas sim uma renovação, justamente pelas novas atribuições presentes entre cultura e política. Para Rémond (2003), com o conceito de cultura política, a história política apresenta também uma explicação culturalista da vida em sociedade.
A CARTA COMO FONTE HISTÓRICA
Devido a corrente de ideias voltadas a uma Nova História Política, conseguimos através das cartas de Leopoldina visualizar uma consciência política adquirida ao longo de sua vida e aplicada no cenário do Brasil de 1822.
A escrita epistolar é justamente a escrita que visa um destinatário. Portanto, as cartas são um dos exemplos
que compõem o gênero autobiográfico, ganhando grande relevância a partir do século XVIII. Retratavam sentimentos, emoções e experiências. A historiadora Teresa Malatian, no capítulo “Cartas: narrador, registro e arquivo”, do livro “O historiador e suas fontes”, (2009, p. 196) aponta que o século XIX foi o século das correspondências. No início dos anos oitocentistas no Brasil, o processo de alfabetização e o hábito da leitura estavam em sua fase germinal para as mulheres, nesse sentido, a escrita das cartas não ficou voltada apenas ao sexo masculino, mas tornou-se uma prática cultivada pelo sexo feminino.
De acordo com Malatian (2009, p.199), o tipo de papel utilizado, sendo de linho, folha de caderno ou retalhos de papéis de embrulho; bem como a presença de ilustrações ou o uso de tarja negra em situações de luto, indicavam as circunstâncias em que elas foram escritas e qual a relação social entre os correspondentes.
Angela de Castro Gomes, no livro “Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo” (2004), afirma que as cartas escritas por mulheres ao longo da História foram uma forma que elas encontraram para conseguirem o seu espaço, visto que os locais de expressão pública lhes eram vetados.
As cartas sustentavam o desejo da reciprocidade, pois estabeleciam um diálogo, já que almejavam um pedido de resposta. D. Leopoldina ficou conhecida e até os dias de hoje é lembrada por suas cartas. É válido ressaltar que dependendo de quem era o destinatário, sua escrita possuía características diferentes. Nas correspondências trocadas com sua irmã, Maria Luísa, encontramos a exposição de seus sentimentos, como alegrias, angústias e preocupações, um verdadeiro desabafo; para seu pai, Francisco I, pedia conselhos sobre como agir com a Família Real e com a corte; para os demais parentes relatava sua vida como um verdadeiro paraíso (REZZUTTI, 2020). Posteriormente, nas correspondências trocadas com Maria Graham6 encontramos escritos de verdadeira confiança, já que ambas criaram sentimentos de afeto e de amizade uma pela outra.
6 Viajante e escritora, Maria Graham foi convidada a educar a princesa Maria da Glória, filha de Dom Pedro I e Maria Leopoldina.
Criou uma forte amizade com a imperatriz, com quem trocou cartas ao longo de usa vida.
“O POMO ESTÁ MADURO, COLHEI-O JÁ, SENÃO APODRECE”
A poucos dias da Proclamação da Independência do Brasil, feita por D. Pedro I às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, no dia 07 de setembro de 1822, D. Leopoldina escreve uma carta ao seu esposo no dia 02 do referido mês, aconselhando-o a realizar tal ato histórico. Apesar de não ter sido localizada fisicamente, a carta é mencionada em publicações feitas a partir de 1920.
Gomes (2004) utiliza o termo “escrita de si” para definir as cartas, pois estas retratam a reprodução de uma visão feita pelo correspondente. Nelas, são sempre contidas versões individuais ou que foram construídas coletivamente sobre determinado acontecimento vivido. Nesse caso, podemos considerar que a carta escrita pela futura imperatriz sofreu influência do Conselho de Estado, ministrado por ela mesma, visto que José Bonifácio também escreve uma carta aconselhando o príncipe regente a ficar em território brasileiro.
Podemos observar também na carta que não há elementos de tratamento formal voltado ao príncipe – D. Leopoldina chama-o apenas por “Pedro”, demonstrando intimidade. Para a historiadora Viviane Tessitore, em entrevista concedida à Revista Galileu, a escolha de D. Leopoldina em enviar uma carta ao seu esposo, depois de realizar uma sessão do Conselho do Estado, só avigora que o assunto da independência já tinha sido debatido entre marido e esposa:
Leopoldina não teria tomado uma atitude de tal dimensão sem uma margem mínima de segurança de que Dom Pedro ratificaria o seu ato. Poderia ser constrangedor e até arriscado. Mas o apoio de José Bonifácio, que integrava o Conselho e de quem tornou-se amiga, confidente e admiradora, provavelmente contribuiu para encorajá-la. (TESSITORE, 1998, p. 88).
Tal relato intensifica a afirmação feita por D. João VI antes de retornar para Portugal em 1821, no qual o rei aconselha o filho, D. Pedro I, de que é melhor que o Brasil seja separado por ele mesmo. Como já mencionado, a educação política recebida por D. Leopoldina enquanto vivia na Áustria teve influência perante
as decisões do marido. A princesa já havia feito sua escolha pelo Brasil muito antes do esposo – “o príncipe está decidido, mas não tanto quando eu desejaria”, como ela mesma afirma em carta destinada ao seu atual secretário na época, na véspera do “Dia do Fico”, em 9 de janeiro de 1822:
A documentação da época demonstra que o movimento emancipacionista usou, e muito, da influência da princesa para convencê-lo a ficar. [...] Dom Pedro respeitava as opiniões dela, talvez por reconhecer na esposa uma formação cultural e política que faltava a ele. Os dois discutiam em conjunto sobre as medidas a serem tomadas, o que era invulgar num tempo em que as mulheres não eram ouvidas para nada, muito menos nas questões governamentais. (TESSITORE, 1998, p. 90 e 91).
Precisando viver longe da família, a primeira imperatriz do Brasil manteve suas relações com a pátria de origem apenas por cartas. Sendo assim, ao longo de sua trajetória ao “Novo Mundo”, adquire paixão pela sua nova casa. Rezzutti (2020, p. 206) afirma que, ao contrário do que a própria D. Leopoldina imaginava, ela se torna uma protagonista da História do Brasil. Em correspondência à irmã, Maria Luísa, em 29 de dezembro de 1816, afirma que “não espero desempenhar um grande papel, [...], contudo, se for necessário, empenharei toda a minha força intelectual para fazer feliz as criaturas sobre as quais reinarei” (REZZUTTI, 2020, p. 206). Nessa missão que D. Leopoldina abraça, em sua carta ao marido pedindo a independência do Brasil, faz sua escolha pelo povo brasileiro, afirmando que “o Brasil vos quer para seu monarca. Com vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação”. Tessitore, porém, afirma que a imperatriz não teve uma adesão natural ao movimento:
Ela nunca foi uma rebelde. O que houve foi uma evolução do envolvimento com o Brasil. Primeiro reconhecendo a nacionalidade brasileira dos filhos; depois, defendendo a pequena propriedade agrícola e a policultura. Isso demonstra que ela já
via o Brasil como uma nação distinta de Portugal e com imenso potencial de desenvolvimento. Daí a engajar-se no movimento emancipacionista foi um passo. (TESSITORE, 1998, p. 94).
Apesar de identificar a atuação política de D. Leopoldina na Independência do Brasil, é válido destacar o alerta feito por Gomes (2004, p. 13) de que “a escrita de si assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a “sua” verdade”. Nenhum documento exprime verdadeiramente os fatos que aconteceram.
Em cartas escritas posteriormente ao pai, Francisco I, D. Leopoldina comunica sua decisão de permanecer ao lado do Brasil, fato que poderia ser desaprovado pela figura paterna. O monarca da Áustria, que em 1822 integrava a Santa Aliança, não consentia com a separação das duas nações. Mesmo assim, ela afirmava estar cumprindo seu dever como soberana, de lutar pelo seu povo.
A Independência do Brasil não foi uma decisão tomada de imediato e muito menos decidida por D. Pedro após receber a correspondência de sua esposa. Tal fato foi gerido por um processo, entre os quais, destacamos a atuação de outras figuras importantes, como os autores anônimos dos panfletos manuscritos entre 1821 e 1823, que exprimiam debates políticos entre letrados em torno de questões políticas; atuação dos escravos durante as guerras de independência, especialmente na Bahia e no Maranhão; e a atuação feminina, como destaque trazido para a figura de Leopoldina (NEVES, 2020).
Ainda para a historiadora Lucia Maria B. P. das Neves (2020, p. 34), “a independência não se resume ao 07 de setembro, mas envolve um processo iniciado com o movimento constitucional de 18207”. Assim, D. Leopoldina teve uma importante atuação política e foi aclamada pelo povo brasileiro, principalmente enquanto esteve atuando como a primeira imperatriz do Brasil.
7 Com a Revolução Liberal do Porto em 1820 e o retorno de D. João VI a Portugal no dia 9 de janeiro de 1822, D. Pedro declarou que permaneceria no país. Sendo assim, as ordens de Portugal não teriam valor imediato. Antes de entrarem em vigor, deveriam ser sancionadas pelo príncipe regente. Essas medidas fizeram com que a independência ganhasse apoio e reforçavam a liderança de D. Pedro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Maria Leopoldina Habsburgo-Lorena foi prometida em casamento a Dom Pedro I com o intuito de formar alianças entre o Velho e Novo Mundo, devido a interesses familiares. A partir de então, precisou deixar sua pátria para construir um novo lar em terras brasileiras. Atuou não somente como esposa e mãe do futuro herdeiro do trono, mas como uma figura política relevante no processo de separação entre Brasil e Portugal.
No ano em que celebramos os 200 anos da Independência do Brasil, é oportuno relembrarmos uma mulher que entrou para a História por ser a primeira imperatriz da nação, mas que nem sempre é vista como uma peça fundamental na visão política desse processo. Sendo assim, é válido recordar como foi que D. Leopoldina se fez presente nesse cenário e quais fatores a impulsionaram a atuar, mesmo que de forma indireta, na política. Dessa forma, foi utilizada como fonte primária a correspondência encaminhada por D. Leopoldina ao seu esposo, em 02 de setembro de 1822, aconselhando-o a proclamar a independência. Foi proposta uma análise da escrita epistolar, bem como ressaltado o papel das cartas ao longo da jornada da imperatriz no Brasil como a única forma de se comunicar com seus entes queridos.
Entre os objetivos traçados, estabeleceu-se identificar a atuação de uma mulher na política dos anos iniciais do século XIX, a fim de mostrar qual era o lugar ocupado por elas na sociedade e apresentar quem foi a primeira imperatriz brasileira, não a deixando restringida apenas ao papel de mãe e esposa. Também foi elucidado o cenário político em que Brasil e Portugal se encontravam no ano de 1822.
A partir da análise da fonte, permitiu-se concluir as hipóteses definidas no início do presente artigo. D. Leopoldina atuou, mesmo que sem ser identificada com essa função, como conselheira e coautora da Independência do Brasil. Na ausência de seu esposo, ela presidiu o Conselho de Estado, não hesitando em esperar D. Pedro retornar ao Rio de Janeiro. Apesar de ter sido enviado, por meio de emissários, documentos oficiais relatando as notícias que haviam chegado de Lisboa, a própria austríaca, assim como fez também José Bonifácio, enviou sua carta particular para ressaltar a urgência do assunto.
Ela foi uma personagem decisiva na História do país, visto que, conforme apresentado, discerniu a necessidade do movimento emancipacionista. Tal fato fica explícito principalmente quando ela preside o Conselho de Estado para discutir as notícias conturbadoras vindas de Lisboa, em 1822.
Apesar de percebermos claramente a consciência política adquirida por D. Leopoldina, essa conjuntura se deve a todo conhecimento intelectual que ela recebeu. Essa era uma característica marcante da Dinastia Habsburgo. Porém, o poder político de da austríaca era limitado. Apesar de ter aconselhado e solicitado a separação do Brasil a Portugal, quem declarou a Independência foi Dom Pedro I, por isso, o reconhecimento da figura masculina nesse processo histórico.
Como já citado anteriormente, a História foi escrita por homens e para homens, por isso a necessidade de ampliarmos o debate sobre mulheres que tiveram prestígio, principalmente no cenário político. Estudar sobre mulheres é aprender a ver a História sobre uma outra narrativa, que, por muitos anos, foi mantida apenas em diários, cartas e autobiografias escritas pela própria figura feminina.
A Imperatriz Leopoldina teve um papel significativo não só na separação do Brasil a Portugal como, também, durante os anos em que seu esposo esteve atuando como príncipe regente e imperador. Como já dito, o reconhecimento recebido pelas senhoras baianas por meio de um manifesto político exaltando-a pela sua atuação política, a decisão em escolher o povo brasileiro, destacado em trecho de carta destinada à sua irmã Maria Luísa, e a carta enviada ao pai após a independência reafirmam o seu sentimento de envoltura com o novo lar.
Ela e tantos outros célebres e anônimos conduziram o território brasileiro ao que culminou em um grito às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo. As notícias que chegaram da corte de Lisboa em 1822 foram apenas o ápice para tomar a decisão oficial da separação entre as duas nações. A ideia de independência já assolava o território. Apesar da atuação da jovem austríaca para o ato de 07 de setembro, o Brasil “construiu um novo Estado, sem, contudo, destruir as bases desse legado” (NEVES, 2009, p. 100).
O ato de rompimento entre a nação brasileira e a portuguesa não foi tomado por D. Leopoldina ao enviar a carta a D. Pedro, ela apenas executou seu papel de soberana, que aprendeu
por meio da educação austríaca. O objetivo principal era assegurar o reinado de seu esposo em solo brasileiro.
A jovem fez do Brasil a sua nova casa – como costume da época e apresentado ao longo do artigo, ela serviu a sua pátria e a seu esposo, pois era o que se esperava de uma princesa. Ao passar nove anos casada com D. Pedro, sacrifica seus interesses pessoais para cumprir seus deveres como imperatriz. A partir de 1822, ela desaparece como agente político e dá lugar à imagem de uma esposa que sofre com as traições do marido (REZZUTTI, 2020, p. 377).
Conhecida pela sua extrema bondade com os mais necessitados, uma tradição dos Habsburgo, criou uma proximidade com o povo. No dia de seu falecimento, em 11 de dezembro de 1826, uma grande comoção popular se instalou no território, principalmente no Rio de Janeiro. À vista disso, compreende-se que D. Leopoldina cumpriu o papel esperado de uma imperatriz que escolheu lutar pelo seu novo lar: o Brasil.
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Renata Mocelin Penachio
A independência do Brasil através de uma historiografia cabocla: (Id)entidades e mandingas
RESUMO
O sistema colonizatório – que atravessa as fronteiras entre colônia, império e república – mantém-se em operação inclusive no momento de contar um evento supostamente disruptivo, tal como a narração de independência do território nacional. Neste texto, proponho a articulação de uma historiografia cabocla, escavando entre-lugares nas fendas da história, numa abordagem que prioriza os interflúvios pluriontológicos que se espalham às margens da ficcionalização hegemônica. Elenco o 2 de Julho como marco da cultura de f(r)esta que revisita e redimensiona a confecção das (id)entidades brasileiras, de modo a discernir as mandingas mobilizadas pelo povo em gira epistemológica. Enquanto o grito de “independência ou morte” se alastra na perpetuação de violências estruturais, escolho enfatizar o clamor por “independência e vida”, aberta à fecundidade das motrizes étnicas que revolvem a sedimentação do Brasil.
Palavras-chave: Independência do Brasil; Historiografia cabocla; Dois de julho; Estudos decoloniais.
Mil nações moldaram minha cara Minha voz uso pra dizer o que se cala O meu país é meu lugar de fala (GERMANO, 2018)
A Bahia tem a personalidade de um país e o Dois de Julho é seu principal mito de origem. (REIS, 1989, p.79)
NAS FENDAS DA HISTÓRIA
Para adentrar as fendas da história do Brasil, é preciso empunhar os remos da descolonização e nos colocar à disposição de transitar não só às margens do Ipiranga, mas por toda e qualquer beira: beira de rio, beira de mar, beira das histórias que nos foram contadas a partir da perspectiva hegemônica que
rega, substancialmente, a manutenção de uma narrativa heroica, branda e romântica. Precisamos primeiro tirar a espada das mãos do príncipe e usá-la como artifício auxiliar na missão de abrir à própria sorte as ranhuras do país. Desse modo, para compreender as múltiplas narrativas da Independência do Brasil, não devemos de todo abandonar a história que nos foi passada desde a escola até os dias de hoje; essa história é a bengala, o abre-caminhos, a haste do remo que nos possibilitará alcançar alguns outros territórios. Neste texto, não pretendo trazer minúcias de toda perspectiva que se sucedia simultaneamente ao longo do processo de Independência; porém, ainda assim, navegando em deriva historiográfica o lugar das outras possíveis narrativas do período em questão, entendo como importante a breve deixa da qual aqui disponho – como um fulgor de um Brasil urgente em se apreciar com devida licença, cuidado e calma.
A história do Brasil precisa ser compreendida através do seu caráter multifacetado, permeando a “beira da beira” com predisposição à mobilidade. Ou seja, engajando-se numa perspectiva histórica que exige deslocamento ótico, atraído às margens, colocando a pessoa que observa circunstancialmente travestida de pássaro migratório que se sente “igualmente à vontade no ártico e no trópico”. É o que o historiador Eric Hobsbawm (2002 apud SALIBA, 2012) recomenda como viés metodológico: “o perfil do bom historiador não pode parecer nem com o carvalho, nem com o cedro, por mais majestosos que sejam”. O autor argumenta que, para se conceber uma análise fundamentada diante de algum fator histórico, é preciso navegar as fronteiras dos acontecimentos na busca de investigar narrativas com intenção de dilatar horizontes de um passado. Dessa forma, ao abrir asas sobre a Independência do Brasil, distendo a necessidade de desconstruções dos relatos hegemônicos, eurocêntricos, colonizatórios. Só assim é possível alcançar as fendas das narrativas e a historiografia que “compõe a sociedade brasileira e inaugura às suas margens plácidas uma organicidade criativa de ordem metamórfica, compreendendo o pensamento decolonial como representante de um povo constituído sob tangíveis bases afro-indígenas” (PENACHIO, 2022, p. 16).
Utilizo também como apoio metodológico o conceito de autoficção para que seja possível a compreensão das relações documentais de memória e arquivo que compõem as fontes da pesquisa historiográfica sobre a Independência do Brasil,
entendendo que elas acabaram por ser exclusivamente de domínio imperial, o que consequentemente se transfigura nas narrativas que carregamos até a atualidade sobre os acontecimentos daquele período. Portanto, falar de autoficção é importante quando pensamos nos limites entre ficção e historiografia. O escritor José Saramago (2000) oferece considerações que perturbam a noção de veracidade no ofício historiográfico: para ele, o historiador não é aquele que escreve a história, mas aquele que a faz (SARAMAGO, 2000, p. 12).
Sendo assim, é apenas assumindo a confecção do passado que se executa a historiografia. Não se trata de mero relato, como se o passado fosse algo pronto e impoluto, à espera de ser desvelado. Nesse sentido, uma abordagem atenta às fendas narrativas sabe que não há fatos invulnerados a se fazer emergir, pois o que emerge é sempre o movimento metamórfico em revisitação constante e redimensionada:
‘Não podendo reconstitui-lo, fica-nos a viagem pelas zonas de sombra, essas por onde o romancista avança com a sua pequena candeia, iluminando recantos, procurando caminhos que a poeira do tempo escondeu, inventando pontes que liguem fatos isolados, e, supremo atrevimento, substituindo algo do que foi por aquilo que poderia ter sido (SARAMAGO, 2000, p. 14).
A partir das perspectivas do autor, avalio que a complexidade em torno dos limites entre ficção e história é bastante promissora. O fazer historiográfico escolhe as narrativas que sustenta e, assim, elabora quais são os fatos, eventos, datas, pessoas, grupos e episódios relevantes para a memória coletiva. Essas escolhas constituem um panorama legitimado disponível a integrar o imaginário social. Minha sugestão de se levar em conta os processos de autoficção presentes na historiografia visa justamente explicitar os recursos inventivos utilizados na elaboração do que entendemos como verdade. Quando Saramago aproxima os ofícios de historiador e de romancista, ele reposiciona também as imbricações entre tempo e memória, conferindo elasticidade às narrativas, de modo a recalcular as rotas dos rumos – com os remos – da história.
Com essas considerações, observo que a grande maioria da população brasileira apreende a Independência do Brasil como uma luta nacionalista entre brasileiros e portugueses, na qual a elite de forma pacífica estabeleceu uma transição de status político nacional, tornando assim o acontecimento um feito edificante para a construção e o crescimento do país. Aqui, cabe o seguinte questionamento da historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira (2022, p. 24):
Por que essas supostas “verdades” persistem e são adotadas como referenciais para a compreensão do processo histórico brasileiro, a despeito de se pautarem por argumentos e preconceitos que conformaram a memória com a qual os protagonistas da Independência e da fundação do império deram sentido às suas próprias ações?
Deveras, seguindo as análises da historiadora, é fato que “os testemunhos do passado que chegaram até nós não são neutros, pois, produzidos como recursos e registros da luta política, se tornaram agentes vigorosos da memória projetada para a posteridade” (OLIVEIRA, 2022, p. 25). Esses registros são manipulados por estratos socialmente privilegiados, que detêm os meios de produção das narrativas.
A articulação pela Independência, de acordo com a documentação oficial, foi marcada pela transição da corte para o Rio de Janeiro em 1808, período reconhecido por confrontos coloniais cujos protagonistas eram as cortes localizadas em Lisboa e o príncipe D. Pedro. O momento de declaração da separação entre o Brasil e o Reino de Portugal é elencado como um marco que redunda em uma monarquia constitucional como a única possibilidade de preservação da ordem na sociedade brasileira e a única perspectiva para que se configurasse – e fortalecesse! – uma identidade nacional. Na documentação historiográfica, esses acontecimentos tiveram leituras diversas:
Armitage os descreveu como “uma revolução liberal”; Varnhagen os definiu como uma “transição pacífica” do estágio de colônia à nação; já Oliveira Lima preferiu a expressão “desquite amigável” para avaliar a separação entre os dois reinos.
E se José Honório Rodrigues compreendeu a Independência como uma “revolução nacionalista e popular”, Maria Odila da Silva Dias sublinhou seu caráter de “reação conservadora das elites” às premissas constitucionais da corte (OLIVEIRA, 2022, p. 26).
Ora, que a Independência é um movimento multifacetado, não há dúvidas. Porém, o importante é nos debruçarmos não apenas sobre o conjunto de acontecimentos – aqueles que acessamos através dos livros didáticos, por exemplo –, mas sobre como e por que essa é a narrativa que acompanhamos há 200 anos. Como esses acontecimentos se tornam fatos?
Seguindo os arquivos do Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil (2003, p. 15-18), de 1823, podemos encontrar a cronologia apresentada por D. Pedro para constituir a sua história sobre o processo de Independência. A partir da literatura inclinada aos apelos do príncipe, a separação de Portugal seguiu estes fatos definidos como oficiais na elaboração documental e na memória do país: primeiro, em 1808, a corte chegou ao Rio de Janeiro, elevando o território ao status de Reino – o que foi considerado um marco para o fim do período colonial; segundo, o dia do “Fico”, em 9 de janeiro de 1822, momento em que D. Pedro, “a pedido do ‘povo’ e em defesa do Império” (OLIVEIRA, 2022, p. 27), anunciou a sua permanência na cidade do Rio de Janeiro, colocando-se como oposição às decisões da corte; terceiro, em fevereiro de 1822, o príncipe declarou a expulsão das tropas lusitanas do Rio de Janeiro; quarto, a constatação pública do desejo em declarar um governo pleno em sua autonomia, enfrentando as cortes; quinto, abril de 1822, ida de D. Pedro a Minas Gerais com o intuito de derrotar o então governador do estado; sexto, agosto de 1822, o príncipe viajou até São Paulo para desfazer os partidos consolidados pela corte; sétimo, em 7 de setembro de 1822, a famosa proclamação da Independência nas “margens do Ipiranga”; por fim, a coroação como imperador, em dezembro do mesmo ano.
Esses fatos que ficaram documentados como as primeiras versões sobre a Independência do Brasil foram elaborados para a arquivologia nacional a partir de decretos do próprio príncipe, que acordava com seus escrivães a redação de Manifestos para
que esta história ganhasse vida. Assim surgiram a “Proclamação de 1º de agosto” para os “povos do Brasil” e o “Manifesto de 6 de agosto” para as “nações amigas”, ambos documentos forjados para justificar a postura de D. Pedro em estabelecer uma “guerra” contra as cortes lisboetas, contra os movimentos de “recolonização” e a favor de uma independência política. Ou, ainda, a obra nomeada “Coleção das Decisões do Governo do Brasil”, de 1825, escrita por José da Silva Lisboa, apoiador do príncipe, com o intuito de organizar em seções um documento que reunisse e difundisse a “veracidade” a fim de registrar a memória do momento de emancipação da nação.
Há uma profusão de fontes documentais produzidas durante esse período de efusão histórica, porém, o que nos interessa aqui não é listar ou quantificar essas obras – dados disponíveis na documentação do país –, mas perscrutar a narrativa que elas tecem à medida em que são manejadas pela atividade historiográfica. O príncipe, ao estabelecer todos esses sete fatores como princípios da Independência, oferece duas vertentes de um mesmo eixo de pensamento colonizatório: o apagamento das lutas populares e o protagonismo direcionado exclusivamente ao novo imperador. Essa história aniquila as atuações sociais, estabelece uma cronologia unívoca sobre os eventos políticos e cria uma forma de elegibilidade para os próprios feitos como revolucionários, pois “apaziguaram” as outras manifestações do povo, que ameaçavam a representatividade monárquica:
(...) sustenta a convicção de que a sociedade fora espectador passivo diante do brilho de certas figuras, especialmente D. Pedro. Não deixou de reconhecer a atuação de outros interlocutores nas lutas políticas, a exemplo da “cabala antibrasílica” nas cortes em Lisboa, que pretendia “recolonizar” o Brasil, e de “anarquistas” e “republicanos”, que pleiteavam a autonomia provincial, questionando a centralidade político-administrativa da corte, bem como defendendo a soberania do poder legislativo sobre a Coroa e sua capacidade de propor e vetar leis. Mas deles retirou a iniciativa e pertinência das ações, colocando-as, inicialmente, no âmbito restrito da pessoa de D. João e depois na do príncipe regente. Ao subtrair o espaço de
atuação da sociedade, dos grupos políticos e de seus porta-vozes, faz crer que a cronologia dos eventos seja ditada pela sucessão linear de medidas tomadas pelas autoridades, como se, no Brasil, a “Revolução da Independência”, como ele mesmo designou, fosse obra e graça do Estado monárquico, enraizado desde 1808, mas cujas tradições e legitimidade remontavam aos primórdios da monarquia portuguesa (OLIVEIRA, 2022, p. 29).
Assim, no que concerne ao processo de Independência, considero as fendas da história tudo aquilo que escapa às composições imperiais: são frestas percebidas apenas sob mirada decolonial. Afinal, que Independência foi essa que manteve o país sob custódia de um imperador? Que Independência foi essa que deu prosseguimento à monarquia e à escravidão? Que Independência foi essa que ignorou a luta do povo pela própria emancipação? Que Independência foi essa que se diz contra a recolonização, sendo que sua manifestação atualiza o próprio movimento colonizatório?
O BRASIL CABOCLO
Os acontecimentos históricos são processuais, não se findam em fatos estéreis. O estabelecimento de marcos temporais e eventos emblemáticos não é capaz de conter a profusão do desenrolar das condições de vida de uma sociedade. Assim, é importante observar a transferência do Império Português para o Império do Brasil como uma continuidade imperial, pensando nas questões que são bases fundamentais para as relações sociais: o povo ocupa o mesmo lugar e o poder é exercido pelas mesmas figuras. Sob essa perspectiva, a Independência do Brasil não significou uma verdadeira independência. É imprescindível reconhecer que aquilo que a historiografia hegemônica demarca como o fim do período colonial não implica no fim da colonialidade. Desse modo, podemos inclusive apurar nossos olhares para observar a abolição como um movimento que ainda se perpetua, todos os dias, no nosso país. A história é contínua e fluida. Quando regida por narrativas coloniais, ela padece. Quando dá voz aos
povos subalternos, reinaugura formas de se viver no hoje. É a via potente para a redenção de um Brasil Caboclo. As fendas são vácuos no corte do tempo; funcionam não como esconderijos, mas como aberturas. Aqui, elas revelam que a Independência não foi um processo pacífico e homogêneo, tampouco um movimento definitivo. A corte no Brasil gestou na população uma mobilização constante. Ao passo em que conduziu medidas aparentemente desenvolvimentistas, como, por exemplo, a abertura dos portos, a institucionalização de alguns serviços públicos e a consequente maior autonomia da colônia, a corte também fomentou insatisfações na população, uma vez que esses procedimentos de “progresso” colonial demandavam maiores impostos. Esses intercursos culminaram em arrebatadoras ondas de repressão popular e a tensão político-social transbordou em diversas revoltas, elencadas como as Guerras da Independência, que se estenderam desde antes da proclamação até meados de 1825.
De fato, em 1821 e 1822, antes de setembro, havia muita tensão política. As províncias podiam escolher atender os decretos das cortes de Lisboa ou os do príncipe-regente. Através de jornais e de cartas oficiais ou particulares, os integrantes de diferentes províncias procuravam convencer os moradores delas ou de outras a aderir a esse ou àquele projeto político (...). Sobre as lutas da Independência, é importante considerar o quanto foram variadas. Não apenas houve batalhas contra tropas portuguesas, mas também revoltas, lutas pelo poder local, motins e muitas intimidações por parte das forças militares (BUENO, 2022, p.2.).
A revolta mais conhecida aconteceu ainda no período colonial, em 1817, na região de Pernambuco, nomeada como “Revolução Pernambucana” – talvez a precursora da série de motins que viriam a acontecer no período de transição política durante e após a proclamação da Independência. Trata-se de um movimento federalista cujas reivindicações separatistas tomaram corpo a ponto de a capitania de Pernambuco declarar separação do Brasil, a fim de estabelecer uma república, idealizando uma forma de poder descentralizada.
Outro exemplo foi localizado no Piauí, onde, após o “Grito de Independência”, algumas cidades se colocaram contra o projeto de governo vigente e a favor de uma independência que fosse do povo e para o povo. Assim, quando as tropas lusitanas foram de encontro aos “rebeldes”, encontraram à beira do Rio Jenipapo, em 13 de março de 1823, tropas organizadas e sedentas por liberdade. Esse evento é relatado como um dos maiores confrontos entre as Guerras da Independência, nomeado como “A Batalha do Jenipapo”. Nela, portugueses recuaram e o povo dominou a província.
Para desenvolver minha argumentação neste texto, escolho como episódio em destaque o movimento da Independência da Bahia, composto por diversos enfrentamentos e disputas, cujo ápice é assinalado em 2 de julho de 1823. Após a proclamação oficial da Independência do Brasil, Salvador foi cercada pelo exército lusitano, depois de uma tentativa falha de acordo entre a Câmara da cidade e a Junta Provisória. A partir desse episódio, o Recôncavo Baiano passou a concentrar voluntários à batalha e, entre eles, com protagonismo, os inúmeros escravizados fugidos e libertos, que se reuniam com o intuito de fortalecer o movimento popular e organizar tropas armadas para intensificar a resistência do povo baiano. Assim, meses depois da proclamação, muitas batalhas – em terra, em mar – aconteciam no território nordestino. O momento máximo desses conflitos deu-se entre os meses de maio e junho de 1823, quando, finalmente, mulheres e homens da Bahia expulsaram as tropas portuguesas.
Suas propostas foram retomadas e ampliadas pelos sucessivos movimentos e rebeliões populares baianas, entre 1821 e 1937, em um tempo de Bahia Rebelde, o que terminou por configurar um programa político popular, cujos eixos principais eram a República, a democracia representativa, a autonomia regional, a igualdade racial, inclusive no acesso ao emprego público, a reforma econômica pela abertura de fronteira agrícola e a distribuição de sesmarias (ARAÚJO, 2001, p. 25).
A luta baiana reatualiza contemporaneamente a história nacional de forma ancestral-futurista, realocando a comemoração de Independência do Brasil do 7 de setembro para uma das
maiores festas populares do país: o desfile do 2 de Julho, que acontece todo ano como marco intransponível de emancipação. As ficções históricas ganham contorno toda vez que o povo se articula num esforço coletivo para fazer viver – e ficcionalizar – a memória dos eventos obliterados pela historiografia hegemônica. É confeccionando a própria história que essas pessoas aspiram ao porvir. Em Salvador, o 7 de Setembro não mobiliza expressivas solenidades, mas o Dia da Independência da Bahia é comemorado de forma grandiosa e com profunda reverência, uma vez que a população baiana considera que foi somente em 2 de Julho de 1823, graças ao empenho das camadas subalternizadas da sociedade, que o território brasileiro definitivamente se tornou soberano.
Nessas comemorações, além de celebrar personagens consagradas das revoltas na Bahia, como a mártir Joana Angélica1, a brava Maria Quitéria2 e o incauto Corneteiro Luís Lopes3, homenageia-se também a figura alçada como “verdadeiro brasileiro”, por exprimir a mescla racial: o caboclo. Em todos os desfiles do 2 de Julho, ele é ovacionado ao passar no carro alegórico de destaque, onde surge como a imagem de um forte guerreiro matando um dragão – o “Dragão da Tirania”, designando o colonizador.
Essas simbologias carregam especulações profícuas sobre identidade nacional, desviantes do tracejar historiográfico oficial, preeminente, alinhado aos interesses imperiais (portugueses ou
1 Joana Angélica, batizada como Joana Angélica de Jesus, foi uma freira concepcionista pertencente à Ordem das Reformadas de Nossa Senhora da Conceição. A religiosa foi considerada mártir da Independência da Bahia por morrer na tentativa de ajudar a população e impedir que os soldados das tropas portuguesas entrassem no convento.
2 Maria Quitéria de Jesus é conhecida pela sua bravura ao representar o país como combatente baiana da Independência. A guerrilheira fingiu ser homem para entrar nas Forças Armadas e, após ser descoberta, pela sua excelência como combatente,
foi a primeira mulher admitida no exército brasileiro.
3 Na Batalha de Pirajá, a vitória lusitana era praticamente certa. Quando as tropas brasileiras se encontraram com as tropas portuguesas – muito melhor preparadas –, o Comandante Barros Falcão ordenou o recuo dos brasileiros. Porém, em vez do toque de recuar, o Corneteiro Luís Lopes tocou o toque de avançar e, por isso, quem acabou recuando as tropas foram os portugueses, que, após a atitude do corneteiro, imaginavam que o Brasil teria recebido reforços no seu exército.
brasileiros) de manutenção da ordem estabelecida. Ou seja, o sistema colonizatório – que atravessa as fronteiras entre colônia, império e república – mantém-se em operação inclusive no momento de contar um evento supostamente disruptivo, tal como uma narração de independência. Se o discurso hegemônico traça uma história centrada nas cortes e nos homens brancos, há, concomitantemente, uma vasta população negra que historiografa o Brasil através da referência do caboclo, uma figura reputada como digna de carregar no seu coité o grito de independência do povo. Esse grito não foi bradado às margens do Ipiranga, mas extravasado pelas margens da história.
Ainda que o caboclo remeta etnicamente à mistura entre brancos e indígenas, sua escolha como símbolo do brasileiro na celebração de 2 de Julho abrange a representação de todo o povo em formação, ou seja: o caboclo é o símbolo de uma não identidade brasileira (PENACHIO, 2022, p. 46).
É a partir desse movimento político, social, cultural e étnico que me debruço sobre essas fendas históricas, o entre-lugar de interflúvios pluriontológicos4, encruzilhada filosófica que se funda e funde no encontro: encontros étnicos, encontros daquilo que resta da violência colonial, daquilo que perdura na força sociocultural das relações afro-indígenas dos Brasis desse território:
A historiografia cabocla designa uma historiografia brasileira que redige sua história a partir da margem, da encruzilhada, da beira-mar: vivências que nascem da miscigenação e escravidão e geram uma população extremamente complexa em suas questões raciais, tendo o termo “caboclo” como
4 Concebo a expressão “interflúvios pluriontológicos” (PENACHIO, 2022, p. 58), como um encontro em encruzilhada, através de um fluxo corrente e atualizado. São forças centrípetas de gestação de ontologias em variação contínua. Esse conceito
permite que a alteridade não se dobre a dinâmicas de exclusão, mas, ao contrário, constitua um entre-lugar no qual se pode ser o que é, ser o que foi e ser o que se veio a conhecer depois, simultaneamente.
aquele que popularmente define a sua identidade pelo viés de uma não identidade do ser brasileiro (PENACHIO, 2022, p. 14).
Portanto, ao inaugurar uma historiografia cabocla, não remeto necessariamente à mistura étnica, mas à hibridez identitária do país: o caboclo é aquele que possui uma identidade baseada na relação ao invés de na fixidez. Acaboclar a historiografia brasileira reposiciona as concepções de identidade nacional, suspendendo-a sobre uma “nacionalidade mestiça” (PRANDI, 2000, p. 8). Ora, como o movimento de independência da Bahia foi uma iniciativa dos povos subalternos que reiteram através da luta e do festejo suas manifestações, é na relação afro-indígena de resistência que se dá a celebração da nacionalidade. Aqui, a perspectiva relacional parte de uma noção de (não)identidade e funde uma elegibilidade que compreende nas identidades híbridas a constituição identitária brasileira. Uma historiografia cabocla se dispõe a revisar matrizes étnicas e catalisar motrizes étnicas, colocando a resistência popular na figura do caboclo, com sua flecha pronta para matar, ano após ano, os dragões coloniais.
(ID)ENTIDADES E MANDINGAS
A partir das evidências históricas apresentadas até aqui, delineio uma arguição que posiciona o povo brasileiro como protagonista frente à força do Império Português. É com a agência do povo que proponho refletir sobre as relações de nacionalismo e identidade nacional nos movimentos de independência:
O conceito de identidade nacional envolve, em algum sentido, o senso de comunidade política (GARCÍA-GARCÍA, 2015; SMITH, 1991), a adesão a uma comunidade imaginada (ANDERSON, 1991) à qual os indivíduos se sentem pertencentes (BARRETT & DAVIS, 2008; LÖDÉN, 2014) (...) As identidades nacionais entraram em evidência após a Revolução Industrial (GARCÍA-GARCÍA, 1994), que possibilitou a delimitação precisa dos territórios (SAHLINS, 1989) e a comunicação em massa
entre os indivíduos (GELLNER, 1996). Outro fator associado ao surgimento desta identidade seriam os conflitos intergrupais, pois eles podem ser considerados como um fator de coesão social, que contribui para a construção do sentimento de identidade nacional (COLLEY, 1992). Neste sentido, a identidade nacional surge num contexto de novas fronteiras geográficas (NAGLE, 2013), quando os indivíduos de uma nação entram em contato com outras nações, o que legitimaria e daria sentido à própria identidade nacional (GARCÍA-GARCÍA, 1994) (LEITE, 2018, p. 2066).
O que chamamos de nacionalismo ganha múltiplas facetas quando, embrenhando-nos nas fendas da história, pluralizamos o fenômeno da Independência em movimentos de independência. Esse deslocamento dá vazão a questionamentos sobre o que é, de fato, essa exaltação do ser brasileiro: a reiteração daquele ser forjado nas premissas coloniais que transbordam a fronteira inauguradora do Império, a fim de manter as hierarquias vigentes ou um devir brasileiro situado numa identidade em entre-lugar, onde a multiplicidade étnica ganha o espaço de definição não ao prescrever uma essência, mas ao explorar um sentimento de resistência às violências hegemônicas.
Quando se trata de nacionalismo e identidade nacional, as correntes de dominação conduzem a vertentes ufanistas que exageram romanticamente preceitos essencializantes sobre o povo – como a mestiçagem sob o desígnio da “democracia racial”, por exemplo –, ao passo em que ignoram as particularidades da diversidade, num discurso apaziguador. Porém, ainda que ufanismos possam ser encontrados tanto na independência monárquica quanto na independência do povo, existe, principalmente na segunda, o uso de linguagens que expressam a resistência, evidenciando as margens e valorizando as lutas dos povos escravizados, suas culturas e preceitos cosmológicos. O que me interessa ao apontar para as beiras da história não é reificar estereótipos, mas fomentar reflexões em torno das complexidades pluriontológicas que constituem possíveis (id)entidades5 de Brasis. Os movimentos de independência, em todas as suas revoltas e manifestações, são parte de uma conjunção de fatores
articulados para suprir a necessidade de defender uma identidade nacional que representasse o povo deste território de modo a legitimar sua autonomia. Desde o achamento (RIBEIRO, 1995, p. 35) do Brasil em 1500, emerge do encontro luso-tupi o início de uma colonização que não ocorre apenas a partir da dominação do território, dos corpos, das riquezas, mas principalmente da relação. Por isso, o teor relacional das dominações no Brasil reverbera violências colonizatórias intrínsecas ao campo simbólico, afetivo, estrutural dos povos subalternizados na sociedade brasileira, aqueles que foram escravizados: africanos e indígenas. Foi dessa mescla étnica resultante das violências relacionais da colonização que o antropólogo Darcy Ribeiro (1995) criou o conceito de “povo novo” – gestor da pluralidade identitária, uma condição regida pela contínua desterritorialização e reterritorialização das margens (DELEUZE & GUATARRI, 2004). Portanto, aqui, a travessia de uma historiografia cabocla entende que as rotas (de)coloniais se sedimentam nas beiradas. A miscigenação desse povo novo que reinaugura culturas em múltiplas motrizes é o solo de uma subalterna – independente? – identidade nacional:
Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo, num novo modelo de estruturação societária. Novo, porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existiam. Povo Novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma
5 Ao grafar a palavra (id)entidades dessa maneira, provoco a lembrança das entidades nas culturas afro-indígenas, entendendo que as lutas estruturais do Brasil também se dão
no campo subjetivo, simbólico e espiritual, onde combates são travados através de variadas manifestações do ente.
forma singular de organização socioeconômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros (RIBEIRO, 1995, p. 19).
As forças ambivalentes que impelem a elaboração de nossa identidade nacional podem ser examinadas, em uma historiografia cabocla, como ação de mandingar (PENACHIO, 2022, p. 60) as estruturas sociais. “Mandingas” ou “malinqués” são palavras que assinalavam pessoas africanas islâmicas que vestiam um colar com inscrições religiosas, denominado patuá. Esse costume se estendeu à população de origem banto e também se entremeou com práticas católicas, uma vez que os islâmicos eram visados com desconfiança por dominarem a linguagem escrita, vantajosa ferramenta social. Assim, o amuleto se popularizou, contornando interdições religiosas e abrindo espaço para inovações sincréticas. A mandinga passou a ser considerada uma forma de magia, convergindo símbolos pluriontológicos de resistência dos povos escravizados: “A bolsa de mandinga incorporava a crença europeia nos talismãs com os fetichismos (objetos mágicos) de origem africana e mesmo ameríndia” (YABETA, 2007, p. 8). Pensando nessa tecnologia de subversão afro-indígena, compreendo o conceito de mandingar como uma estratégia decolonial em comunicação com o que o filósofo Tiganá Santana Santos chama de “capoeira do pensamento”:
Capoeirar o pensamento é viver no mundo ao acordar e demorar no mundo ao dormir. A cada sono, determinada dimensão do corpo diz “Iê” – o reverente pedido para que se encerre a cena na linguagem da capoeira –, ensaiando um jogo com o que poderia ser o esquecimento da morte e a lembrança do sonho. No ressurgimento cotidiano e casual que vem com o despertar, outra dimensão do corpo vai aos pés da orquestra para continuar o jogo ritmado das experiências. São tantas cantigas com “viva” e com “camará” porque cada ente que vive fora do corpo apercebido, na regência de cada
manhã anunciada pelo curió, é conviva de câmara, é camarada a compartilhar o quarto (câmara) de existir vivendo: íntimo lugar (razão ou causa), onde adormecem e desadormecem o espanto e os fluxos (SANTOS, 2021, p. 90).
Capoeirar ou mandingar são artifícios de sobrevivência que gingam com as violências coloniais: (re)invenções permanentes sob variações contínuas. Movimentos como as Guerras da Independência e os festejos de 2 de Julho na Bahia podem ser apreciados como exercício dessas tecnologias ancestrais (PENACHIO, 2022, p. 19), em que a feitura da história é do povo que se organiza, em batalha ou celebração, para garantir a sua liberdade de existir – ou “reexistir”.
INDEPENDÊNCIA E VIDA
A “reexistência” (SOUZA, 2011) brasileira surge ao “criar para resistir e resistir para criar” (PENACHIO, 2022, p. 92). Ou seja, é na reexistência dos povos marginalizados que se encontra a substância dos saberes brasileiros, cujas estratégias acionam a criatividade como força motriz vital. Assim, o 2 de Julho, através da cultura de f(r)esta, compõe as mandingas e reexistências que atualizam os gritos de independência do povo brasileiro.
As águas percorridas no Bicentenário da Independência do Brasil desembocam neste ano emblemático de 2022, ano de eleição presidencial e Copa do Mundo. Um ano que sintetiza declarações de Brasis: a democracia e a festa. Uma eleição determinada pela vida e pela morte, uma Copa que se imiscui nas disputas pelos símbolos nacionais, gingando as cores da bandeira em representações desafiadoras às forças que prolongam resquícios cruéis, misóginos e racistas dos preceitos coloniais. Nessa mirada, registramos nos acontecimentos dispostos na circularidade do tempo histórico o quanto “o passado é uma questão fundamental do presente” (ROBIN, 2016).
No Brasil oficial, da História com H maiúsculo, com seus recursos legitimados de ficcionalização, destaca-se o português proclamando a Independência, estende-se a manutenção de uma monarquia e propulsiona-se a exaltação de um império. Essas mudanças no status político, que vão da monarquia à república,
das oligarquias ao Estado Novo, da redemocratização às ditaduras seguintes, são “rearranjos elitistas” (SIMAS, 2021, n.p.), nos quais a consumação dos privilégios é o grande interesse em jogo. Porém, o jogo que de fato mobiliza o estabelecimento da brasilidade é aquele que acontece na ginga e nas f(r)estas, revolvendo a agência para o lado do povo, nas margens, nas fendas vivificantes.
Neste Bicentenário, não podemos esquecer que a luta pela Independência, em um país que segue reciclando os ditames da colonização, é uma luta diária. Uma luta de tessituras dos saberes dos corpos que se colocam (e são colocados) na fronte dessa guerra:
(...) “precisamos de corpos libertos do projeto domesticador, normatizador e disciplinador que se inscreve no domínio colonial dos corpos adequados para o consumo e para a morte em vida”. Precisamos de outras vozes, musicadas, atravessadas. E precisamos escutar e aprender com a sabedoria dos que transgrediram o horror em artimanhas de celebrar a vida (SIMAS, 2021, n.p.).
As reexistências e mandingas das (id)entidades afro-indígenas são o fundamento da nossa liberdade. O hino que não representa o Brasil abre espaço para sambas-enredo como o “História pra ninar gente grande”, vencedor do carnaval de 2019 pelo Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que exclama em cada verso as nuances dessa “história que a história não conta”:
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
(DOMÊNICO et al., 2019, grifo meu)
É do carnaval, do futebol, da cultura popular e da micropolítica cotidiana que a liberdade emerge com narrativas que esmorecem o projeto colonial. Os estratos sociais privilegiados se empenham em mantê-las à margem para não arriscar seu próprio enfraquecimento – porém, subestimam a potência das margens, as motrizes que impulsionam outros fluxos e correntezas. Enquanto tantos hoje ainda estiram suas “imbrocháveis” espadas ao alto como uma maneira de disseminar seu gozo perverso através da ideia de “pátria amada, idolatrada, salve salve”, as esquinas da nação firmam seus pontos de terreiro, cantam seus sambas e macumbas, rezam o terço para que não sejam alvos do abatimento e do etnocídio (CLASTRES, 2004). Se o grito nas margens do Ipiranga é de “independência ou morte”, o grito nas margens da história é sempre, e tanto, de “independência e vida”.
REFERÊNCIAS
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CLASTRES, Pierre. Do etnocídio [1974]. In: ________. Arqueologia da violência: Pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 55-63.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. El Anti Edipo: Capitalismo y esquizofrenia. Paidós Ibérica, 2004.
DIÁRIO da Assembleia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Ed. Facsimilar. Brasília: Senado Federal, 2003. Tomo I.
DOMÊNICO, Deivid et al. In: MANGUEIRA, G.R.E.S. Estação Primeira de. História pra ninar gente grande. Samba-enredo. 2019. Disponível em: <https://mangueira.com. br/site/sambas-enredo/>. Acesso em: ago. 2022.
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PENACHIO, Renata Mocelin. "Do mar de mim algo pro mar do mundo": A historiografia cabocla na poética de Paulo César Pinheiro. 137 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2022.
REIS, João José. O jogo duro do 2 de Julho: O “Partido Negro” na Independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-97
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. 9ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
ROBIN, Régine. A memória saturada. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.
SALIBA, Elias Tomé. A vida e a obra de Eric J. Hobsbawm pelo historiador Elias Tomé Saliba. Estadão Cultura, 1 out. 2012. Disponível em: <https://cultura.estadao.com. br/noticias/geral,a-vida-e-a-obra-de-ericj-hobsbawm-pelo-historiador-elias-thomesaliba,938453/>. Acesso em: out. 2022.
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SIMAS, Luiz Antônio. Bem longe das margens do Ipiranga. Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa. 1 de set. 2021. Disponível em: <https://iree.org. br/bem-longe-das-margens-do-ipirangaindependencia/>. Acesso em: nov. 2022.
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramento de reexistência. Poesia, grafite, música, dança: hiphop. São Paulo: Parábola, 2011.
YABETA, Daniela. (2007). Um pouco de história: Mandinga. Territórios Negros. Rio de Janeiro, n. 30, jul./ago. p. 8.
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
de
RESUMO
Falar de independência é sempre tratar de liberdade e de libertação. Mas também de esperança e desespero. Neste ensaio, proponho que, afinando-nos com a voz e a vocação dos candomblés, revertamos alguns dos sentidos e afetos emaranhados em nossa imaginação política e em nossos estilos historiográficos para retesar a mitologia da nação como se retesa a corda de um arco ou a de um berimbau. Em outras palavras, sugiro que é possível lançar ou fazer vibrarem versões minoritárias da brasilidade compondo liberdade, esperança e desespero ao modo dos caboclos, marujos e boiadeiros, em uma espécie de apego à terra simultaneamente mais popular e mais cosmopolita do que os patriotismos oficiais. Essa (re)versão acaboclada da independência - como a que reverbera nas festividades do Dois de Julho baiano – dá protagonismo tanto a tradições afroatlânticas de lutas contracoloniais quanto a relações afro-indígenas que acenam para uma nação-quilombo ou nação-aldeia.
Palavras-chave: Independências; Candomblé de caboclo; Mitologia nacional; Brasilidade; Filosofia política.
O verde é a esperança
O amarelo é o desespero
O azul traz a liberdade
Do caboclo brasileiro (Zuela de candomblé de caboclo)
Na primeira vez que participei de um candomblé de caboclo, ainda criança, não me detive na abundância de insígnias de brasilidade dispostas na festa. Ao saudar a bandeira nacional ou ao zuelar as cantigas de santo, todos os catiços presentes (boiadeiros e marujos também tomavam parte na roda) faziam questão de ostentar, com orgulho e solenidade, seu distintivo de “brasileiros”:
100
Sou brasileiro, brasileiro
Brasileiro imperador
Mas eu nasci foi no Brasil
Eu sou brasileiro
Brasileiro, o que é que eu sou?
Foi só anos mais tarde que o repertório iconográfico e musical dos caboclos atiçou minha curiosidade etnográfica. Que espécie de fidelidade era aquela a um país cuja própria montagem e manutenção estão marcadas pela violência colonial, pelo genocídio indígena e pelo racismo antinegro? Quais os afetos e sentidos implicados na brasilidade acaboclada de terreiros que simultaneamente se reivindicam parte da “nação do Brasil” e de uma variedade de nações afroatlânticas? Quais enredos e quais ficcionalizações da independência estão versados nessa reverência extra e anti-institucional?
No universo dos caboclos, tudo se passa como se, em vez da clastriana sociedade contra o estado, estivéssemos diante da nação contra o estado, a própria reversão do estado-nação, essa domesticação da vida comunitária e das relações (cosmo)políticas. Trata-se, portanto, de um apego ou de um “zelo” à terra muito contrastante com os estilos de patriotismo oficial.
Como provocou Viveiros de Castro à plateia sentada nas escadarias da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sua aula pública de abril de 2016, esse zelo transmite certo devir-índio do “cidadão”, ou seja, uma transformação do brasileiro como súdito vigilado da soberania ao brasileiro como povo apegado e pertencente a um chão. Deparamo-nos com o tema da liberdade, em suma, e de sua relação inextricável com a terra. Em outras palavras, a “resistência da cosmopolítica afrobrasileira diante da conversão da terra em propriedade” (LEWANDOWSKI e GOLTARA, 2020, p. 82). Ao se divorciar da sombra transcendente de um estado, um povo se faz comunidade política nas relações de pertença recíproca e vital com a terra (posto que servir à terra nada tem a ver com servir à pátria, mas com participar de uma relação, com fazer um parentesco1):
Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa definida, registrada, vigiada, controlada, assistida — em suma, pesada, con-
tada e medida por um Estado-nação territorial, o “Brasil”. Ser brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão, em outras palavras, súdito de um Estado soberano, isto é, transcendente. Essa condição de súdito (um dos eufemismos de súdito é “sujeito [de direitos]“) não tem absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde se faz a vida junto com seus parentes e amigos. Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um povo. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma população controlada (ao mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto. ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017, pp. 188-189)
Não à toa, os caboclos são festejados nos candomblés como os “donos da terra” e estão em primeiro plano no dia 02 de julho, tanto nas celebrações dos terreiros quanto nas comemorações da
1 Trata-se, na proposição de Lewandowski e Goltara, da “T/terra como operador de multiplicidade, que deixa aparecer a terra que possui e não é possuída. Uma terra de participações” (2020, p. 66). A noção de possessão é extraída ou extrapolada da própria teoria nativa dos candomblés: “A formulação seria então: ao se ocupar dos lugares, é-se possuído por eles. Ao se ocupar da terra, é-se possuído por ela. Se ocupa da terra de modo análogo à ocupação
do santo na pessoa, revertendo a lógica do trabalho como extensão do indivíduo nas coisas, criando separação entre o indivíduo e o agente que parecem ser da mesma ordem nos dois casos. É nesse cruzamento que nos é possível pensar uma correlação entre a “nossa terra” – a terra indígena e o santo de cada devoto como duas formas de possessão não possessiva” (LEWANDOWSKI e GOLTARA, 2020, pp. 78-79).
independência da Bahia, a notória “Festa do Caboclo” (SANTOS, 1995, p. 31). As afinidades eletivas entre versões minoritárias2 ou enterreiradas da brasilidade (o caboclo negro-indígena no candomblé afrobrasileiro) e histórias subalternas da independência (a conjuração popular contra a dominação lusobranca) parecem iluminar e dar densidade às sonoridades e aos signos evocados nos toques de santo:
Atravessei o mar a nado
Por cima de dois barril
Eu vinha ver a juremeira
E os caboclos do Brasil
Bandeira branca trago num pau forte
Trago no peito a estrela dourada
Ó Deus nos salve essa casa santa
Onde Deus fez a morada
A travessia sobre dois barris dá notícia da precarização produzida pelo evento colonial sobre os modos de vida dos povos originários e dos povos da diáspora africana. Porém, na contracorrente, chama atenção para o alumbramento do seu encontro inusitado, esse chão comum em que se planta a bandeira branca de Tempo3 (nkisse patrono das matrizes bantu do candomblé) e onde ele “faz morada”: onde se instaura uma comunidade (cosmo)política.
Na versão acaboclada da nação, a conexão efetivamente política (isto é, a convivência política, o avesso da dominação aniquiladora e da escravização desumanizadora) se estabelece entre os termos minoritários (não hegemônicos), no mesmo gesto em que a modernidade é escovada a contrapelo, destituindo a prevalência branca e o impulso imperial. Moderna é, enfim, a invenção do caboclo no cosmopolitismo da relação afro-indígena.
2 Os termos “minoritário” e “minoração” são empregados no sentido como salientam Deleuze e Guattari e a ele atribuem: “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz numa língua maior” (1977, p. 25).
3 Sobre a preeminência de Tempo ou Kitembu e de sua bandeira na cosmopolítica dos candomblés, que podem dar origem a formas de unbandeirantismo, vide Hoshino (2020).
Tais figurações caboclas, assim, não são o puro decalque histórico nem repetição mítica, mas “performances corporais, ou como preferimos chamar, as incorporações” (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 94) de uma antinomia ao modelo vigente de civilidade (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 98): uma espectralização especulativa do que é ou pode ser a nação brasileira forjada em outra aliança. Podemos pensar com os caboclos, apreciando-os também na condição de “personagens conceituais melanodérmicos” de uma filosofia e de uma historiografia afro-perspectivas, seguindo a intuição de Nogueira (2011, p. 4).
Aduz Goldman (2014) afirma que a relação afro-indígena, sem ser propriedade exclusiva de nenhuma "nação”, recoloca em questão e em movimento todas as “nações” e suas composições. Mais do que isso, esse enredo “amefricano” (GONZÁLEZ, 1988), ao minorar o elemento europeu, reabilita uma brasilidade na encruzilhada ou na transversalização de mundos africanos e ameríndios:
Isso significa, sobretudo, evitar o risco de simplesmente reproduzir, num estilo, talvez, mais sofisticado, os clássicos debates em torno do chamado sincretismo religioso e, assim, isolar traços de culturas originais puras que teriam se mesclado, formando cada manifestação sociocultural específica. Ao contrário, o ponto é a delimitação e o contraste de princípios cosmológicos ameríndios e afro-brasileiros, sem perder de vista nem sua especificidade, nem as condições históricas de seu encontro. (...) Por outro lado, essas “transformações” também devem ser pensadas no sentido deleuziano sugerido acima (o de um procedimento de minoração por extração do elemento dominante) e em um sentido guattariano, porque as conexões que se pretende estabelecer não são nem horizontais, nem verticais, mas transversais. (Goldman, 2014, pp. 217-218)
Faço coro a Goldman ao considerar que “a relação afro-indígena tem um alto potencial de desestabilização do nosso pensamento” e que dá passagem a “uma antropologia que
se concentra nas diferenças enquanto tais” (2014, p. 219). Essa também pode ser uma chave rentável para retesar, como a corda de um arco ou de um berimbau, a mitologia branca de nossa independência. O candomblé conta e contrafaz essas diferenças de muitas maneiras: o caboclo é uma delas. Ele – o caboclo e não o soberano hobbesiano – é, nessa perspectiva, o próprio corpo da nação:
Caboclo guerreiro
Tu és a nação do Brasil
Tu és a nação brasileira, caboclo
Das cores da nossa bandeira
Tomar os caboclos como os legítimos “donos da terra” e como emblemas máximos da “nação do Brasil”, estampados nas tonalidades da bandeira, é uma reversão tremenda do nomos moderno, da ordem colonial ( HOSHINO, 2020). Nos candomblés de nação angola, tal preceito exige que os caboclos sejam cultuados como ancestrais coletivos para acionar o axé e o beneplácito da terra. Diz-se, em algumas casas, que é necessário “passar pelos caboclos” para se chegar aos deuses “africanos”, do outro lado do mar. Em contrapartida, em outras linhagens, afirma-se que é o orixá que pode dar ou não passagem aos catiços.
Independentemente da direção de transmissão, é a própria conexão florestal-oceânica – dois domínios refratários à soberania, dois territórios indisponíveis à formação de um estado – e a virtualidade de seus agenciamentos que nos oferece uma modernidade alternativa para o conceito de “nação”, embrenhada nas matas indômitas e embebida nas águas fora da lei.
É assim que as “nações” (jêje, jêje-nagô, ketu, angola, angola-congo, fon, ijexá, etc.) fluem no contexto do candomblé como artefatos cujo significado extrapola os liames do estado-nação (e distende esse próprio amálgama). É dizer que as nações de candomblé operam na dissociação entre “estado” e “nação”, esgarçam sua hifenização, dentro daquilo que Matory (2005) nomeia como um “diálogo cir-cun-atlântico”. Ao longo do século XIX, enquanto o Brasil buscava constituir-se como “nação” (e, na Bahia, o candomblé ia se estruturando em “famílias-de-santo”), populações diaspóricas como as da Costa da Guiné passavam também a se imaginar como “nações”, em um vocabulário político
que cruzava o oceano não na rota América-Europa, mas em direção à África:
In the 19th and early 20th centuries, at the same time white creoles were “imagining” and reifying a nation called Brazil, Africans in Brazil and along the Lower Guinea coast were “imagining” and sustaining a nation of a sort unimagined by Benedict Anderson. And it is with no sense of irony – and with no demand for correction – that these Africans and their descendants in the Afro-Brazilian Candomblé religion still speak of their trans-Atlantic communities as nations. I respect this parlance (…) not because I regard it as the appropriate analytic category (…) but because members and neighbors of the Candomblé are fully aware that the citizens and analysts of nation-states use the same term with monopolistic pretensions. Its usage thus teaches a significant lesson to those who believe nation-states monopolized or dominates all classes’ imagination of community. This term illustrates the co-occurrence of, and overlapping among, Candomblé adherents’ citizenship in multiple imagined communities. Worldwide, peoples’ simultaneous or situational belonging in multiple, overlapping communities is – like the candomblecista’s multiple nationalities – a taken-for-granted at least as old as the nation-state. (MATORY, 2005, p. 73)
Nesse extravasamento ou sobreposição (nesse “enredo”, dir-se-ia na linguagem do axé) é que Gilroy reputa residir a especificidade da formação do Atlântico Negro e o proveito heurístico dessa lente para tematizar o “desejo de transcender tanto as estruturas do estado-nação como os limites da etnia e da particularidade nacional” (2001, p. 65). O uso afro-atlântico que o candomblé faz da nação evidencia um duplo pertencimento, ou mesmo uma multiplicidade de lealdades enredados do povo de terreiro - a um só tempo povo ‘africano’ e ‘brasileiro’ -, sem que nenhum desses afetos goze de exclusividade. Se é verdade
que algumas designações metaétnicas “não correspondiam necessariamente às autodenominações étnicas utilizadas pelos africanos em suas regiões de origem”4 (PARÉS, 2007, p. 25), também é notável como as nações de candomblé resultam de uma contra-apropriação disruptiva dos próprios regimes da colonialidade, na medida em que os revertem em alianças minoritárias. Seria essa uma das formas de “contracolonização” que nos comenta Antônio Bispo (2015), qual aquela operada pelos quilombos no âmago da nação?
Nação, destarte, funciona para os terreiros como operadora de passagens e desmantelamentos de enquadramentos e (auto)representações da relação colonial, isto é, na circulação de perspectivas. Mais do que isso, “raça ou nação é, na filosofia política afro-brasileira, concebida como o lugar de onde emanam as perspectivas, ou melhor, espíritos. Espíritos são pontos de vista que encarnam corpos” (ANJOS, 2008, p. 78). Fazer o ponto de vista afro-indígena ressoar no interior do discurso histórico, em uma independência de espírito caboclo, é similar a “fazer com que a filosofia nativa se ocupe da antropologia como um espírito se ocupa de um cavalo de santo” (ANJOS, 2008, p. 78).
A situacionalidade da nação não é nova para a diáspora. Conforme ilustra Parés (2007, p. 77), do século XVII ao XIX, um africano mahi de Dassa registrado como jêje no tráfico transatlântico podia ser prioritariamente africano, ou seja, estrangeiro aos olhos de crioulos (nascidos no Brasil); jêje perante grupos de africanos de outras regiões (angolas, nagôs, hauçás, tapas); e ainda lido como mahi quando polemizava com dagomés ou savalus, povos vizinhos e por vezes rivais, embora classificados sob a mesma designação colonial metaétnica “jêje”.
Os calundus e, posteriormente, os candomblés, foram espaços privilegiados de experimentação, aglutinação, recombinação e distinção de designações e marcadores, produzindo
4 “Ao lado de outros nomes como país ou reino, o termo “nação” era utilizado, naquele período [sec. XVII e XVIII], pelos traficantes de escravos, missionários e oficiais administrativos das feitorias europeias da Costa da Mina para designar os diversos grupos populacionais autóctones. O uso inicial do termo “nação”
pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses, no contexto da África ocidental, estava determinado pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monárquicos europeus dessa época e que se projetava em suas empresas comerciais e administrativas na Costa da Mina.” (Parés, 2007, p. 23)
as “nações” de modo movediço e mesmo estratégico. Durante o império, à medida que o comércio escravagista foi sendo coibido no Atlântico, as fronteiras étnicas e metaétnicas foram dando lugar a diferenciações entre modalidades de rito, funcionando como importante diacrítico, até hoje, para as casas de santo5. O conceito de nação, mesmo no contexto litúrgico, “implica, portanto, ainda, uma conotação de caráter político” (PARÉS, 2007, p. 103).
[À esquerda] Festa de Caboclo Boiadeiro Navizala no Ilê Axé Omi Ojuarô (Nova Iguaçu/RJ), em 02 de julho de 2022 - crédito: Babá Adailton Moreira.
[À direita] Altar de caboclo em celebração ao Dois de Julho em um terreiro de candomblé de Salvador (BA) - crédito: Ayrson Heráclito.
Como pensar a nação brasileira conforme a tônica dos caboclos, ou seja, de um lado (do lado do mar) nos fluxos de um cosmopolitismo afro-atlântico e, de outro (do lado da floresta), em um continuum rizomático de relações afro-indígenas? Que projetos de independência entoam e incorporam os espectros e entes do axé, ao resistir a serem reduzidos, seja aos limites da etnia, seja à particularidade nacional? O que é também outra maneira de perguntar sobre quem (en)canta o estado-nação, posto que “cantar é um ato plural, uma articulação da pluralidade” (BUTLER e SPIVAK, 2007, p. 59). É essa articulação da pluralidade ou essa
5 “Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia, estes sim fundados por africanos angolas, congos, jêjes, nagôs,sacerdotes iniciados de seus antigos
cultos, que souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário que se vêm transmitindo através dos tempos e a mudança nos tempos”.(Lima, 2010, p. 124-125).
feitura multitudinária de um povo que pode ser contada no rastro dos caboclos do candomblé e dos caboclos do Dois de Julho. Ao recusar o “sequestro” conservador da independência pela coroa e pelo sudeste, consubstanciado na escolha do dia 07 de setembro para sua celebração (SCHWARCZ, 2022), a insistência na Festa do Caboclo proporciona um enredo dissidente da versão das elites nacionais. Seu trajeto, seus atos e suas figuras ressoam na e são ressonância da cosmopolítica dos terreiros. Nas celebrações baianas que têm início na Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira, sede de irmandades negras desde século XVII, pode-se encontrar não só o destacado protagonismo do caboclo (feição da multidão heterogênea que formava o exército popular) como, também, a referência aos marujos, aos boiadeiros, aos exus. No cortejo do Dois de Julho, vai João das Botas, marinheiro português desertor que auxiliou os brasileiros a rechaçar a frota lusitana no recôncavo; lá estão os Encourados de Pedrão, pelotão de vaqueiros que desceu da Chapada Diamantina para se unir à causa da libertação; vê-se também Maria Quitéria, que, de combatente clandestina de Paraguaçu (trajada com as vestes do cunhado), tornou-se pombagira a baixar por todo o país. Quem é avatar de quem, quem é cavalo-de-santo de quem: as personagens históricas das entidades ou os santos dos acontecimentos pretéritos? Na longa duração, feito, mito e rito se co-respondem, enredam-se. São desconcertantes e intricadas as maneiras como a ancestralidade se atualiza e se insinua no (instante de perigo do) presente. E é justamente dessa opacidade que o povo de terreiro dá conta com a ideia de “enredo”. Em trabalhos anteriores, conceituei sucintamente “enredo” - essa categoria nativa do candomblé – como “um modo situado de produzir relações e de falar delas. Sejam elas amistosas ou hostis, reconhecem-se as configurações que emaranham nomoi, diferentes mundos normativos, como relacionais” (HOSHINO, 2020). No sotaque de santo, o caboclo do Dois de Julho tem enredo com o caboclo de terreiro; João das Botas tem enredo com os marujos; os Encourados de Pedrão têm enredo com os boiadeiros; Maria Quitéria tem enredo com pombagira - e vice-versa (pois é da natureza do enredo ser reversível): todos estes enredos caboclos da nação brasileira e (re)versões acabocladas da independência. Caboclo, marujo, boiadeiro e pombagira falam, assim, de uma miríade de anseios e modulações da liberdade em
face de formações situadas da dependência e da subordinação. Logo, uma liberdade que não pode ser tomada em seu sentido substancial como premissa ou como uma titularidade do sujeito, mas apenas experimentada em sua intensidade. Uma liberdade propulsora de um tipo de independência que não ratifica estados soberanos, como no subtexto do contratualismo moderno, mas que explicita e confronta os pactos sub-reptícios da colonialidade e da branquitude, isto é, o contrato racial (MILLS, 1997).
A medida dessa independência é dada no seu retesamento com a esperança e o desespero, com os vislumbres de futuro e o relance dos grilhões, com a promessa de justiça e a injustiça atual: na libertação pela independência, enfim, e não na sua declaração. Uma independência que não se apresenta em seu estatuto normativo, mas em sua potência constitutiva: uma aceleração do tempo, uma intensificação das lutas, uma amplificação da agência coletiva.
Ao confluir com horizontes de esperanças e com circuitos de desespero, a independência como gesto esperançoso e desesperado faz vibrar, sem maiores protocolos, regimes e paisagens de liberdade – a mata, o mar, o sertão e as ruas – que, como o santo em seu cavalo, tomam de assalto um corpo político e seus “aparelhos”: eis o devir-marujo do desertor João das Botas; eis o devir-boiadeiro dos vaqueiros adventícios; eis o devir-pombagira de Maria Quitéria, eis o devir-caboclo do povo brasileiro. Por isso, ele perfaz a própria “nação do Brasil”.
Recapitular a independência nesse enredo acaboclado não é negar a versão oficial, mas deixar que apareçam suas contrapartes e meandros. Um enredo não rechaça e substitui uma verdade por outra verdade: ele percorre os emaranhados. Em vez de estanque, harmonioso e determinista, o enredo – isso que nos permite esfregar a história a contrapelo (metáfora, aliás, bastante boiadeira) – é dinâmico, conflituoso e convidativo. Ele é sempre uma co-posição:
Enredo chama atenção para os muitos caminhos que se cruzam e se imbricam na pessoa, formando uma história. Frequentemente se ouve dizer que alguém tem um enredo complicado: nele se encontram orixás que mantêm entre si relações de inimizade (conforme descrito nos mitos), ou que disputam a primazia como donos
da cabeça. Outras vezes, a complicação do enredo está justamente na dificuldade que impõe a mãe ou pai de santo de discernir os muitos fios de que é composto – a imagem, neste caso, é de um emaranhado que apenas um olhar experiente e competente pode desvendar, ou que apenas com o tempo vai assumir uma configuração mais nítida. (…) Primeiro, o enredo, até onde entendo, é dotado de certo dinamismo: mais que uma estrutura fixa de linhas ou pontos, é uma configuração que sofre deslocamentos. (…) Segundo, o enredo não é apenas uma história que se desenrola fora do alcance e interferência das pessoas humanas e que elas podem apenas contemplar (no jogo) e/ou aceitar (…) é uma história da qual eles efetivamente participam” (RABELO, 2014, p. 93).
O que pretendo é salientar que a independência ganha outras tonalidades e sentidos arregimentada em seus enredos de santo e que os santos assumem outras qualidades e nuances quando enfocados sob o pano de fundo de temporalidades subterrâneas. Como no enredo, somos colocados diante de novas histórias com as quais podemos efetivamente nos engajar - ou não. E é essa disponibilidade para a narração e a ação políticas que permite aproximá-lo do gesto benjaminiano: o enredo é algo que tem lugar e lampeja aqui e agora.
Me expresso em termos de nuances e tonalidade porque é assim também que os caboclos versam. Liberdade, esperança e desespero, em uma bela zuela dos candomblés, estão estampadas na bandeira mesma do Brasil:
O verde é a esperança
O amarelo é o desespero
O azul traz a liberdade
Do caboclo brasileiro
Constituir uma nação e sua flâmula na tensão de esperança, desespero e liberdade pode soar uma composição improvável. Mas certamente não mais assombrosa do que a edição republicana da bandeira, que termina por acrescentar o azul à paleta monár-
quica (verde e amarelo eram cores das casas reais de Bragança e Habsburgo) e suprimir o amor do leitmotiv comtiano (“O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”). Vem aqui bem a calhar a reivindicação do GRES Beijar-Flor de Nilópolis, no Carnaval de 2023, com o bordão “O Grito dos Excluídos no Bicentenário da Independência”:
(...)
Naquele 2 de julho, o Sol do triunfar
E os filhos desse chão a guerrear
O sangue do orgulho retinto e servil
Avermelhava as terras do Brasil
Eu vim cobrar igualdade
Quero liberdade de expressão
É a rua pela vida, é a vida do irmão
Baixada em ato de rebelião
Desfila o chumbo da autocracia
A demagogia em setembro a marchar
Aos renegados, barriga vazia
Progresso agracia quem tem pra bancar
Ordem é o mito do descaso
Que desconheço desde os tempos de Cabral
A lida, um canto, o direito
Por aqui o preconceito tem conceito estrutural
Pela mátria soberana, eis povo no poder
São Marias e Joanas, os Brasis que eu quero ver
Deixa Nilópolis cantar
Pela nossa independência, por cultura popular
Na liberdade (poética) de expressão da cultura popular, é o sangue caboclo da brava gente do 2 de julho que avermelha as terras do Brasil, contra as demagogias setembrinas. São as Marias (Quitérias e Felipas6) e Joanas (Angélicas) que desbancam a ordem mítica do descaso e os usurários do progresso. Em vez da tríade positivista de amor, ordem e progresso, equivocar o verde, o amarelo e o azul no espectro da esperança, do desespero e da liberdade é torcer a nação e a independência de maneira
imaginativa e ficcional, ou seja, em uma prática de antropologia (e, quiçá, de historiografia) especulativa:
Nesse sentido, toda antropologia, social ou ficcional, talvez seja especulativa, mas não menos real por isso, pois depende do ser situar-se como se fosse outro: o sujeito como se fosse objeto, o possível como se fosse real, o inexistente como se fosse existente, criando uma terceira posição puramente virtual que consiste na equivocação (NODARI, 2015, p. 8).
Em meu trabalho de campo e experiência religiosa no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, candomblé de nação angola com raízes no sertão baiano e no Recôncavo, tive oportunidade de dialogar sobre essa cantiga com Ubaldino Bomfim (Tata Loango), pai-de-santo (ou “zelador”, como ele mesmo prefere) do terreiro. O traço especulativo, que não equaciona, mas equivoca e contamina vocabulários e ícones de mundos diferentes, transparece em suas observações.
Em nossas conversas, Pai Ubaldino se referia ao “verde” como “a natureza, que é uma esperança e também simboliza a esperança de todo o povo”. Mais especificamente, lembrou-se do inseto Orthoptera, cujo corpo se assemelha a uma folha, também popularmente conhecido como “esperança”. Assim como as folhas e os gafanhotos, a aparição da esperança depende de certa atmosfera, de um ambiente de fecundidade e de câmbio de estações. A esperança é um bem raro, que se deve cultivar e que se perde facilmente ao olhar desatento. A esperança considera e presta contas ao tempo, ela é o tamanho do futuro de um povo. Já o amarelo, comentava Pai Ubaldino, embora geralmente associado ao ouro e à fortuna (tanto no sentido material quanto como de boa sorte), pode revelar-se, inadvertidamente, o caminho
6 “Maria Felipa é outra protagonista baiana, negra e natural da Ilha de Itaparica. Tomou parte na luta pela Independência do Brasil, na Bahia, comandando cerca de 40 mulheres que foram responsáveis por queimar 42 embarcações portuguesas.
A protagonista também ficou conhecida a partir de um episódio lendário, a “surra de cansanção” (vegetal que provoca urtiga e sensação de queimadura), usada para derrotar os soldados portugueses” (SCHWARCZ, 2022, p. 29).
do desespero. É dizer “aquilo que para alguns é fortuna, para outros é desespero”, como a descoberta de minérios cobiçados em terras indígenas. Esperança e desespero, portanto, são questões perspectivas. Se a esperança é florestal, o desespero é telúrico; se a esperança é vegetal, o desespero é mineral, pois é da tomada e partição da terra que pode surgir um nomos: propriedade, estado, soberania ( SCHMITT, 2014). Fazendo ressoar essa leitura em outra chave, suporíamos que se é que a floresta (o verde) que sustenta o céu (o azul), o ouro (o amarelo) é sua queda (KOPENAWA, 2015).
Por fim, o azul é tido como uma cor “forte, de luta, de guerra: o azul é de Ogum, por isso o jeans também é dele”. Além do céu, que é inalcançável, o azul é a cor do mar, que não se submete a qualquer lei nem pode servir de domicílio fixo. O mar é pura passagem a conectar os terreiros com nações ancestrais. A liberdade é esse encontro de azuis celeste e oceânico: um horizonte. Conquanto nunca plenamente realizada, ela é impulsiva, desbravadora, insurgente. Também indomesticável e desoladora, a liberdade se realiza contingentemente, ela é da ordem da oportunidade, mas não se estabelece definitivamente, ela é movimento: energia com direção. Ela também é laboriosa e combativa, por isso a cor das roupas de trabalho pesado e das fardas de batalha (a imagem de Toussaint L’ouverture sempre de azul logo assoma no pensamento).
A menção ao mar e às bandeiras conjura de imediato outra imagem: a de navios. Eles são a metáfora política do mundo alinhavada por Ferdinand:
As leitoras e leitores identificarão uma afinidade com a figura do navio e, particularmente, com a do navio negreiro como metáfora política do mundo. (...) Tal escolha pretende dar uma sensibilidade literária ao deslocamento exigido por um pensamento a partir do porão do mundo, ao mesmo tempo que revela o reverso de uma modernidade que se ornamenta de ideias luminosas com palavras como Justiça e Esperança, mas que espalha a injustiça e o desespero. Ela permite também mostrar que o navio negreiro narra uma história do mundo e da Terra (Ferdinand, 2002, p. 43).
Liberdade, Justiça, Esperança, Independência e tantos outros foram nomes emprestados de ideais emancipatórios a navios negreiros que davam cabo precisamente de seu oposto: escravização, injustiça, desespero, subjugação. Retirar a história e a filosofia política do porão do mundo moderno é navegar a tríade liberdade, esperança e desespero pelas lutas por independência nos desvãos da floresta e nas passagens atlânticas. Na virada do século XIX, enquanto das matas chegavam rumores das resistências indígenas e da proliferação dos quilombos, às principais cidades do império também aportaram notícias estonteantes de revoluções ultramarinas. Sobre a Revolução Francesa (1789), sem dúvida, mas igualmente sobre as Revoluções Americana (1776) e Haitiana (1791-1804), com suas outras configurações da liberdade para a esperança negra e o desespero senhorial. O ambiente em que se processou a independência brasileira, portanto, era também aquele do crescente temor ao quilombismo e do medo do haitianismo (Azevedo, 1987), que derivariam no recrudescimento da legislação e no acirramento dos dispositivos de controle e repressão pelas mesmas elites que gestaram a “pátria”.
Até onde vão os registros, a própria bandeira da Bahia (que comparece nas festividades de caboclo, tanto no terreiro quanto nas ruas) tem inspiração nesses movimentos setecentistas. Concebida durante a Revolta dos Alfaiates (1798), levante liderado por artífices negros, ela incorpora as faixas brancas e vermelhas dos Estados Unidos da América, bem como o triângulo da Inconfidência Mineira (1789-1792) sobre um quadrilátero azul, que pode aludir às lutas no Caribe, notoriamente influentes nas agitações da província.
A seu turno, a atual bandeira do Haiti, na qual o azul e o vermelho se destacam, foi elaborada durante a revolução, por meio da supressão da cor branca da flâmula francesa, uma operação que se assemelha à minoração do elemento branco na cosmopolítica afro-indígena7. Não por acaso, alguns anos mais tarde, o art. 14 da Constituição Imperial do Haiti de 1805 (“Haiti” era o termo
7 “Assim, “minorar” significaria deixar que “afros”, “indígenas” ou “afroindígenas” pensem e falem sobre as mestiçagens e os sincretismos em seus próprios termos, que, como se espera, devem ser muito diversos
daqueles “majoritários” e mobilizados pelos “brancos” – acostumados a “decalcar”, ao infinito, a imagem das “árvores” cultivadas em suas cabeças” (Meira, 2017, p. 92).
indígena para designar a ilha, recuperado pelos revolucionários ao rebatizar “São Domingos” em sua independência) ousaria firmar que “os haitianos serão conhecidos daqui para frente pela denominação genérica de negros”. Em correspondência ao devir-caboclo da nação, um devir-negro da cidadania.
A centralidade das bandeiras nos candomblés de caboclo guarda em si mesmo afinidades com ênfases das cerimônias do vodu haitiano, em que elas
“(...) anunciam a chegada de um deus ou de uma deusa, a possessão dos devotos. Elas são profundamente liminares. Desfraldadas e exibidas em ritos vodu, ficam no limite entre dois mundos. (...) Essas são variações crioulas de um tema Kongo fundamental – nisuka minpa – o ritual de agitar ou desfraldar ou ‘fazer dançar’ os quadros de pano para abrir a porta para o outro mundo” (Thompson, 2011, p. 180-181).
As bandeiras performadas como portais condensam modos e alianças. Assim, se é justamente o azul que traz a liberdade do brasileiro, é porque essa liberdade vem do mar, ou melhor, inscreve-se em uma longa tradição de lutas afrodiaspóricas, como o evento haitiano, que cinde a modernidade. Quando caboclo carrega e louva a bandeira, está a ativar esse entramado de independências crioulas, populares e antiescravistas que se precipitam no Dois de Julho, mas também nas entidades dos terreiros e em seu modo de existência.
A (re)versão acaboclada da brasilidade faz vibrar, a um só tempo, camadas e camadas de temporalidades encadeadas: a independência de julho de 1823; logo, a Conjuração Baiana (como lembra Derrida, conjurar é sempre trabalhar com espectros8); e, por sua vez, a própria Revolução Haitiana, que bebe nas práticas do vodu (realmente é disparada na cerimônia de Bois Caiman), cujas matrizes também se ramificam nos candomblés brasileiros e, de novo, nos muitos dois de julho insurrecionais. No arco do caboclo, retesa-se a mitologia oficial, escorada em uma genealogia da realeza, para reverberar ancestralidades políticas ancoradas no Atlântico Negro. Com efeito, essa (re)versão é uma contramestiçagem ou talvez uma contrainvenção do Brasil como nação-aldeia ou como nação-quilombo, princípio que a conecta com a experiência haitiana:
Este quadro permite pensar como o constitucionalismo haitiano informa aquilo que poderíamos chamar de nação quilombo. O conceito parte de uma imaginação política que aproxima a teoria constitucional dos sentidos da diáspora africana nas Américas. A experiência histórica e plural das comunidades quilombolas no Brasil serviu de inspiração para uma multifacetada tradição do pensamento social, a qual faz do quilombo um princípio de reflexão crítica e intervenção política. Isto é, o quilombo opera tanto como elemento descritivo, fornecendo leituras alternativas do imaginário nacional e do processo de formação social, como normativo, articulando proposições éticas que semantizam a liberdade e a igualdade de acordo com a experiência da diáspora africana nas Américas. Assim, em um país permeado pelo imaginário da democracia racial, da mestiçagem e do apagamento da autodeterminação da população não-branca, o quilombo é ponto de inflexão histórica e política. (...) Ademais, ao estarem em consonância com outros processos sociais, a exemplo dos palenques, maroons e cimarrones, denotam o caráter transnacional das diásporas internas e das territorializações da população negra na América e no Caribe. No sentido de amefricanidade, dado por Lélia Gonzalez, o quilombo como princípio relê a
8 “In the occult society of those who have sworn together [des conjurés], certain subjects, either individual or collective, represent forces and ally themselves together in the name of common interests to combat a dreaded political adversary, that is, also to conjure it away. For to conjure means also to exorcise: to attempt both to destroy and to disavow a malignant, demonized, diabolized force, most often an evil-doing spirit,
a specter, a kind of ghost who comes back or who still risks coming back post mortem. Exorcism conjures away the evil in ways that are also irrational, using magical, mysterious, even mystifying practices. Without excluding, quite to the contrary, analytic procedure and argumentative ratiocination, exorcism consists in repeating in the mode of an incantation that the dead man is really dead” (Derrida, 2006, p. 59).
experiência continental borrando as fronteiras, linguagens e histórias hegemônicas por trás de cada comunidade imaginada nacional (Queiroz, 2022, p. 2795).
É na nação-aldeia e na nação-quilombo que rumores de esperança das matas e notícias de liberdade do mar se enredam e podem reverberar uma independência acaboclada, desvencilhar-se dos fantasmas do desespero. Para essa nação composta de “involuntários da pátria” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017), a bandeira não poderia ser outra senão a de Abdias do Nascimento:
“Okê Oxossi”, 1970, obra de Abdias do Nascimento que enreda a bandeira brasileira ao arco-e-flecha (ofá) de Oxóssi, orixá iorubá patrono também do culto aos caboclos.
Afinando-nos com a corda vocal insubmissa dos caboclos, marujos, boiadeiros e pombagiras, façamos como exu: lancemos um conto de luta hoje para tentar matar o pássaro do desespero de ontem, para reverter sentidos e afetos coloniais entranhados em nossa imaginação política e em nossos estilos historiográficos. Como o arco anarco da velha índia, da irreparável verve de Chico César, esse conto de hoje – o da independência como aquilombamento e caboclagem, o da liberdade afro-atlântica
cultivada na esperança da floresta – vale ainda o que retesa: vale o quanto desacorda (d)as mitologias brancas da nação e nos atiça a aldear outro futuro contra um Brasil duro de dar dó.
E preguiça!
O arco da velha índia
É corda vocal insubmissa
Rabeca de uma corda
Que em desacordo atiça
A aldeia contra o futuro
Duro de dar dó
E preguiça
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Ariane Alfonso Azambuja de Oliveira Salgado
Emily Cristiane Liebel
Bruno Ferreira de Souza
Raphaela Maidana de Mello Gonçalves
A Independência por Antônio Poteiro
(1925-2010): conversas sobre o Bicentenário em uma galeria de arte
RESUMO
O artigo apresenta e discute os procedimentos criativos utilizados na construção do material educativo “Tarot da Independência”, desenvolvido pela equipe do Programa Educativo CAIXA Gente Arteira de Curitiba-PR para o debate sobre o Bicentenário da Independência na exposição “Traços Modernistas: Percursos e Movimentos do Acervo CAIXA”. Formado por 17 cartas, o baralho relaciona a pintura a óleo “Independência” (1984), de Antônio Poteiro (1925-2010), com a canônica obra “Independência ou Morte” (1888), de Pedro Américo (1843-1905). Exploramos a hipótese de que esse material educativo auxilia no debate sobre o Bicentenário da Independência porque articula conhecimentos específicos da área de artes visuais com conhecimentos dos campos da história e da cultura brasileiras, mas atua de modo diferente de um recurso didático habitual, porque não abre mão da força poética da ambiguidade da linguagem. A operação criativa realizada tomou emprestados elementos que caracterizam a série cultural tarot, como a inter-relação entre texto e imagem e a leitura intuitiva de ambos, dentro de uma dinâmica orientada pelo acaso, e os utilizou para relacionar as pinturas em questão. A escrita é embasada, do ponto de vista teórico, principalmente pelos autores da semiótica da cultura Iuri Lotman, Iuri Tinianov e Amálio Pinheiro.
Palavras-chave: Educação museal; material educativo; Bicentenário da Independência; Antônio Poteiro; Pedro Américo.
INTRODUÇÃO
Promover práticas educativas que estimulem a capacidade do público de relacionar as obras de arte com a realidade externa à galeria, mas sem perder de vista as características internas da obra, é uma tarefa que demanda uma ação criadora laboriosa do educador. O semioticista russo Iuri Lotman (2000) escreveu que, nos museus, é preciso aceitar viver um jogo duplo com o ensino de história da arte: “é necessário recordá-la e esquecê-la ao mesmo tempo, como lembramos e olvidamos ao mesmo
tempo que o ator em cena cai morto e, ao fazê-lo, segue estando vivo”. De acordo com ele: “O museu é um teatro, e não pode ser percebido de outro modo. No museu temos que brincar, e não contemplar”. Para construir esse ambiente, conforme já propunha Paulo Freire (1978, p. 17), “o educador deve ser um inventor e um reinventor constante d[os] meios e d[os] caminhos com os quais facilite mais e mais a problematização do objeto a ser desvelado e finalmente apreendido pelos educandos”. Neste artigo, discutimos as possibilidades abertas por uma estratégia educativa desenvolvida a partir desses princípios, a qual abordou o tema do Bicentenário da Independência do Brasil na exposição “Traços Modernistas: Percursos e Movimentos do Acervo CAIXA”.
A galeria de arte da CAIXA Cultural Curitiba recebeu, durante o ano de 2022, a itinerância da exposição “Traços Modernistas: Percursos e Movimentos do Acervo CAIXA”, uma mostra com obras de artistas modernos e contemporâneos que compõem o acervo permanente do banco Caixa Econômica Federal. Integrando o programa de arte-educação do espaço, atuamos na exposição durante o período de 10 de agosto a 20 de novembro, recorte temporal que incluiu as comemorações do Bicentenário da Independência pelo país, tema o qual também foi escolhido pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) para ser o eixo da temporada de eventos da 16ª Primavera de Museus1
A Primavera de Museus de 2022 estimulou instituições culturais de toda a federação a debaterem que “outros sentidos e independências o Brasil e os brasileiros viveram nestes 200 anos” (IBRAM, 2022, p. 7). Intitulado “Independências e Museus: Outros 200, Outras Histórias”, o evento sugeriu que se aproveitasse “este momento do Bicentenário da Independência para renovar os olhares sobre este fato histórico, sob a ótica da diversidade cultural, da liberdade de pensamento, da inclusão, da pluralidade de experiências e de interpretações” (p. 9). Estimulados pelo tema, decidimos propor interpretações do evento histórico
1 A Primavera dos Museus é um conjunto de eventos em instituições culturais brasileiras que ocorrem dentro do período da semana inicial da primavera, sob coordenação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), desde 2007. O IBRAM mobiliza instituições de todo o
país a partir de um mesmo tema e os convida a propor programações especiais, que visam “promover, divulgar e valorizar os museus brasileiros, aumentar o público visitante das instituições e intensificar a relação dos museus com a sociedade” (IBRAM, 2021).
a partir da pintura “Independência” (1984), de Antônio Poteiro, uma das principais obras da exposição em cartaz no centro cultural.
Desde sua chegada, a pintura produziu profundo impacto sobre a equipe de educadores e continuou se mostrando de grande efeito nos visitantes. O tamanho da tela, sua paleta de cores, a riqueza de elementos e a localização em destaque na sala expositiva faziam com que espontaneamente muitas pessoas se interessassem por ela. Por essas razões e pelos desdobramentos interpretativos internos acerca do Brasil que a obra potencializa, escolhemos promover ações educativas de aprofundamento na leitura da pintura.
Para tanto, trabalhamos na criação de um material didático que batizamos de “Tarot da Independência”2. Formado por 17 cartas, o baralho relaciona a citada obra de Antônio Poteiro com a canônica pintura “Independência ou Morte”, do artista paraibano Pedro Américo (1843-1905). A hipótese que exploraremos neste artigo é de que esse material educativo auxilia no debate sobre o Bicentenário da Independência porque articula conhecimentos específicos da área de artes visuais com conhecimentos dos campos da história e da cultura brasileiras, mas atua de modo diferente de um recurso didático habitual, porque não abre mão da força poética da ambiguidade da linguagem – o que consideramos fundamental nas conversas dentro de uma galeria de arte. Para desenvolver tais princípios, nos amparamos nos autores da semiótica da cultura Iuri Lotman (2000), Iuri Tinianov (1978) e Amálio Pinheiro (2016), atuando principalmente a partir do conceito de série cultural. A operação criativa realizada tomou emprestados elementos que caracterizam o objeto cultural tarot, como a inter-relação entre texto e imagem e a leitura intuitiva de ambos, dentro de uma dinâmica orientada pelo acaso (conceito trabalhado a partir de Salles, 1998), e os utilizou para relacionar as pinturas em questão.
O artigo está dividido, na sequência, em quatro seções: a primeira apresenta o artista Antônio Poteiro e nos insere nas dinâmicas de seu pensamento criativo, comentando também a
2 Os educadores envolvidos na criação do material didático são os autores deste artigo, além de Elio Avelino Bezerra Junior, Gabriel
dos Santos Lima, Luana da Silva Melo e Manoela Neves Gomes, sob coordenação de Cristiane Senn.
intertextualidade de seu quadro com a obra de Pedro Américo; a segunda contextualiza a história da série cultural “tarot” e a teoria semiótica utilizada para o procedimento criativo desenvolvido na criação do material didático; a terceira esmiúça o “Tarot da Independência” a partir de quatro cartas do jogo: O Ingênuo, A Festa, A Citação e O Ponto de Vista; e a última reúne nossas conclusões após a utilização do material com diferentes públicos.
ANTÔNIO POTEIRO: UM ARTISTA POR ACASO
Antônio Batista de Souza (Portugal, 1925-2010), conhecido como Antônio Poteiro, é um dos grandes nomes no Brasil da chamada arte naïf, termo em francês que significa “ingênuo” ou “primitivo”. Trata-se de uma abordagem na pintura que impactou artistas europeus modernos como Paul Gauguin (França, 1848-1903) e Pablo Picasso (Espanha, 1881-1973), os quais estavam em busca do que consideravam “modos expressivos autênticos” (ITAÚ CULTURAL, 2022) na arte. A pintura naïf valoriza uma abordagem autodidata e sem uso de técnicas tradicionais como a perspectiva e o estudo cromático, utilizando, em lugar disso, “cores brilhantes e alegres – fora dos padrões usuais –, a simplificação dos elementos decorativos, o gosto pela descrição minuciosa, a visão idealizada da natureza e a presença de elementos do universo onírico” (ITAÚ CULTURAL, 2022). O funcionário aduaneiro e pintor autodidata Henri Rousseau (França, 1844-1910), ao participar do Salão dos Independentes em Paris, em 1886, tornou-se o mais conhecido dos pintores naïfs (ITAÚ CULTURAL, 2022; GOMBRICH, 2015).
Antônio Poteiro nasceu no município de Braga, em Portugal, e mudou-se para o Brasil ainda na primeira infância, aos dois anos de idade, quando seus pais se radicaram em Goiás. Como artista, foi pintor, escultor e ceramista. Durante grande parte da sua vida produziu potes de cerâmica – o que, mais tarde, lhe daria o sobrenome artístico Poteiro –, seguindo o caminho de seu avô e de seu pai. Apesar de admitir nunca ter gostado da profissão de ceramista, foi a partir dela que começou a produzir máscaras e bonecos de barro, iniciando sua carreira como escultor. Nos anos 1970, já sendo reconhecido por suas esculturas, passou a pintar, incentivado por Siron Franco (Goiás,
1947) e Cléber Gouvêa (Uberlândia, 1942-2000). Nesse período passou a integrar uma rede de artistas e, por isso, não demorou a ter seus trabalhos expostos no Brasil e no exterior. Logo se tornou um notável artista brasileiro: lecionou cerâmica na Alemanha, recebeu um prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), na categoria escultura, e, em 1997, foi homenageado com a Comenda da Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura do Brasil (ITAÚ CULTURAL, 2022). Apesar dessa notável trajetória, Poteiro repetia frequentemente que havia se tornado pintor por acaso:
Eu conheci um pintor, o Siron Franco, e ele que me levou para a galeria. Eu fazia feira hippie [...] e ele via minha cerâmica e falava “esse é um grande artista”. E já me deu umas telas e eu fui pintar. Então eu sou um pintor por acaso (Antônio Poteiro como citado em Telaimaginaria, 2016).
A arte de Poteiro tem como temas centrais a regionalidade e a religiosidade. O artista explora histórias bíblicas e folclores regionais, misturando-os com elementos do cotidiano e do fantástico, que foram notados, experienciados ou imaginados por ele. Em relato para a artista e pesquisadora Ilka Canabrava (1982), em “As Imagens do Povo e o Espaço Vazio da Arte/ Educação: um estudo sobre Antônio Poteiro”, o artista discorreu sobre sua vida pessoal e profissional. Narrando as adversidades que passou na infância e na juventude, contou que perdeu sua mãe aos 8 anos de idade, aos 16 saiu de casa – por não se dar bem com sua madrasta –, foi preso e teve problemas com bebidas e apostas. Apesar disso, manteve-se sempre trabalhando com cerâmica. Morou em São Paulo, Minas Gerais e Goiás, onde se estabeleceu nos anos 1950. Em Goiânia, conheceu o professor Antonio de Melo, que o estimulou a criar máscaras e bonecas de barro. Após alguns anos vendendo bonecos de barro em feiras, conheceu a folclorista e artista Regina Lacerda (Goiás, 1919-1992). Poteiro adotou esse sobrenome por sugestão de Lacerda, que também o aconselhou a assinar suas obras e o apoiou durante anos comprando e revendendo seus trabalhos, inclusive para galerias e museus.
Quando passou a frequentar a Galeria LBP, em Goiânia, conheceu Siron Franco e Cléber Gouvêia, que o incentivaram
a pintar. O artista relata que, ao produzir suas primeiras telas, não se preocupou em estudar para fazê-las: pintou diretamente na tela o que ia saindo. Ao ter uma boa resposta de seus colegas quanto às suas criações, não parou mais de pintar. A partir de então, Poteiro estabeleceu uma relação de apoio com Siron Franco, Cléber Gouvêia e Jota de Oliveira. Contudo, apesar de esses três artistas terem estudo, Poteiro optou por não buscar conhecimentos técnicos sobre arte. O artista acreditava que, caso o fizesse, acabaria com “o Poteiro”:
A pintura deles tem estudo. Agora a minha, não. A minha já não tem. O primitivo é livre, faz o que ele quer. O primitivo não tem desse negócio, espaço aqui, não, ele é livre, trabalha do jeito que ele quer. [...] Que no dia em que eu querer entrar na jogada deles, eu não sou nada, aí acaba o Poteiro, porque a pessoa tem que ser o que é. Não adianta a pessoa querer ser, como se diz, ser capinador e ser doutor. Então eu sou primitivo. Tem que ser primitivo, que é a mensagem que eu tenho que dar é essa (Antônio Poteiro, como citado em Canabrava, 1982, p. 43).
Antônio Poteiro defendeu o autodidatismo e o que chamava de “primitivismo” também para a trajetória de seu filho, que veio a se tornar artista visual. Poteiro relata que o incentivou a seguir seu próprio caminho, sem copiar outros artistas ou tendências; entretanto, acreditava que por ele frequentar a escola já estaria “corrompido”. Para o artista, primitivos eram aqueles que não teriam nem mesmo ido à escola, pois o simples estudo da geometria já alterava os cursos primitivos aos quais a arte poderia levar. Ele afirmava que não era contra a escola, mas que esta deveria dar mais liberdade aos estudantes. Desde sua persistência em continuar primitivo – ainda que estando rodeado de artistas “estudados” – até sua defesa de uma arte livre, fica claro que a criatividade, a livre imaginação e a não adequação à normatividade eram fatores essenciais para ele.
O interesse pelo fantástico é um forte constituinte no processo criativo de Poteiro. Por ter trabalhado desde pequeno e ter perdido parte de sua infância, ele dizia se sentir uma criança e gostava de traduzir esse sentimento introduzindo figuras extraordinárias em suas pinturas:
Eu sou primitivo, tal, ponho pavão, ponho... Agora eu fiz uma cavalhada, né? Eu pus foi lá agora nesse concurso. Então, eu pus um pavão, o índio montado no pavão e brigando com um peixe espada. Então, não tem cabimento isso, né? Quer dizer que o mundo para mim é fantástico. É a mensagem que eu quero dar. Eu faço a ciranda, tudo no céu, não tem cabimento, né? Tudo no céu, tudo voando. Então, eu ponho o que eu não fui em criança, que eu nunca brinquei, né? Então, sou criança até hoje (Antônio Poteiro, como citado em “Canabrava”, 1982, p. 45).
A observação das obras revela como Poteiro costumava criar universos particulares, unindo suas concepções e crenças com eventos e referências reais. O caso das Cavalhadas é interessante para ilustrar tal fato. As Cavalhadas são celebrações tradicionais de origem portuguesa que fazem parte da Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis, Goiás. Foram introduzidas na festa em 1826, pelo padre português Manoel Amâncio da Luz, através de uma peça teatral intitulada “O Batalhão de Carlos Magno”. Nela, durante três dias, encenam-se batalhas medievais entre cristãos e mouros. O espetáculo recebeu grande atenção de Poteiro, sendo retratado em diversas obras, direta e indiretamente: “As Cavalhadas” (1978), “Cavalhada em Luta” (1980), “Peruada” (1980), “Tartarugada” (1980), “Pavãozada” (1980) e “Cavaleiros no Céu” (1981). Poteiro introduzia o fantástico na representação das Cavalhadas pela substituição de cavalos por outros animais, como lagartixas, tartarugas e pavões, e pela presença de figuras no céu, unindo o mundo imaginário ao mundo real. É esse tratamento ao tema que está presente na obra “Independência” (1984), integrante do acervo da Caixa Econômica (Figura 1, imagem inferior). Ali, entretanto, as Cavalhadas também são acionadas como um elemento fantástico em si, com o qual o artista reconstrói de forma alegórica a cena histórica do Grito do Ipiranga.
A obra “Independência” (1984) está vinculada ao processo de encomenda de obras para bilhetes de loteria que deu origem ao acervo artístico da CAIXA. Conforme relata Bueno (2002), em 1967, a artista Djanira da Mota e Silva (São Paulo, 1914-1979) teve problemas de saúde e recorreu à CAIXA para solicitar ajuda
Fig. 1 – Recortes de imagens utilizados no “Tarot da Independência”. Obras: Superior: “Independência ou Morte”, 1888, de Pedro Américo. Óleo sobre tela, dimensões: 415 cm × 760 cm. Acervo do Museu do Ipiranga – USP. Inferior: “Independência”, 1984, de Antônio Poteiro. Óleo sobre tela, dimensões: 120 cm x 140 cm. Acervo da Caixa Econômica Federal.
Fonte: Google Arts & Culture e Acervo Caixa Econômica Federal.
financeira. Esta, em contrapartida, encomendou da pintora quatro obras temáticas para ilustrar bilhetes da Loteria Federal de 1968. Os temas das pinturas giraram em torno de eventos brasileiros e festivos: Inconfidência Mineira, São João, Natal e Independência. Com o sucesso dos bilhetes, mais 82 obras vieram a ser encomendadas de outros 29 artistas, como Alberto da Veiga Guignard (Rio de Janeiro, 1896-1962), Clóvis Graciano (São Paulo, 1907-1988), Di Cavalcanti (Rio de Janeiro, 1897-1967), Glauco Rodrigues (Rio Grande do Sul, 1929-2004) e Antônio Poteiro. Além de “Independência”, Poteiro também pintou “Inconfidência” (1984), “São João” (1984), “Avenida” (1984) e “Sem título” (1984), esta última retratando o nascimento de Jesus. A circulação das reproduções das obras nos bilhetes de loteria criou o que Cézar Prestes, curador da exposição “Sorte da Arte: Coleção Loterias CAIXA”3, chamou de uma “mostra simultânea e móvel país afora” (CAIXA CULTURAL, 2013, p. 4).
Sabemos, portanto, que a obra “Independência” teve grande circulação pelo país durante o ano de 1984, ao estampar o bilhete de loteria da Extração 2099, de 12 de setembro de 1984 (CAIXA CULTURAL, 2015). A Figura 2 mostra o bilhete vendido naquele ano com a reprodução da pintura.
3 Em cartaz na CAIXA Cultural de Brasília, entre 12 de dezembro de 2012 e 3 de março de 2013. A exposição reuniu 28 das 82.
Fig. 2 – Bilhete de Loteria com a reprodução da obra “Independência” (1984), de Antônio Poteiro.
Fonte: Acervo Caixa.
Mais tarde, entre 1998 e 2000, Poteiro pintou 22 telas para a série “Brasil 500 Anos”, em comemoração aos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil. As obras foram expostas em Brasília, no Teatro Nacional Cláudio Santoro, em 2000, e apresentam grandes acontecimentos e símbolos brasileiros, como o frevo de Pernambuco, o Carnaval, a Inconfidência Mineira, a festa Bumba meu Boi, a Proclamação da República, entre outros (PEIXOTO, 2020).
Analisar os trabalhos de Antônio Poteiro, conforme demonstramos nesta seção, implica relacionar elementos de cultura regional e religiosidade popular a fatos do cotidiano e personagens fantásticos. No caso específico da obra “Independência” (1984), identifica-se também uma intertextualidade com a pintura histórica de autoria de Pedro Américo chamada “Independência ou Morte” (1888).
Pedro Américo estudou na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) em 1955, onde se destacou e foi percebido pelo então imperador Dom Pedro II, o qual se encarregou pessoalmente de financiar sua transferência para a Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris. Lá, Américo estudou com artistas renomados, como Horace Vernet (1789-1863), e se aprofundou nos estudos de física, arquitetura, teologia, literatura e filosofia. Ao retornar para o Brasil, tornou-se professor da Academia Imperial de Belas Artes, ministrando aulas de estética, história da arte e arqueologia. Durante essa época, pintou muitos retratos e quadros com cenas mitológicas e históricas. Retratou os imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II, além de batalhas históricas, como a Batalha de Campo Grande (em “Batalha de Campo Grande”, 1871) e a Batalha do Avaí (em “Batalha do Avaí”, 1877). Assim, Pedro Américo tornou-se artista protegido de Dom Pedro II e da província de São Paulo.
De acordo com as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling (2015), durante um momento de crise no país, Dom Pedro II buscou recuperar a imagem heroica de seu pai e do Império e, por isso, em 1885 encomendou de Américo uma obra que engrandecesse o ato da Independência. A pintura seria exposta no então Monumento do Ipiranga (atual Museu do Ipiranga), em São Paulo, a fim de “valorizar o solo paulista como o lugar de fundação nacional” (Cecília Helena de Salles Oliveira, como citado em “Albergaria”, 2022). Américo foi à Florença para a produção da obra, onde permaneceu até 1888, quando entregou a encomenda.
O artista pesquisou e estudou muito para a feitura da obra. Em seu ateliê, foram encontrados vários estudos de forma, inclusive esboços para a pintura em questão. Ele também teve acesso a uniformes militares e roupas cerimoniais reais, além de contar com relatos de membros da Corte que desejavam estar na obra. É importante ressaltar que Américo seguiu as expectativas e a perspectiva de quem encomendou a obra – políticos conservadores que defendiam os princípios mais gerais da pintura histórica. Dessa forma, foi inevitável que ele se baseasse nos modelos europeus de pintura acadêmica – considerando, ainda, que ele almejava ingressar no meio artístico europeu. Diante disso, na tentativa de enobrecer o ato da Independência, o resultado da pintura ficou distante da realidade (ALBERGARIA, 2022), embora realista em termos pictóricos, o que nos faz vê-la quase como uma fotografia.
Américo afirmava que a realidade inspira, mas não escraviza o pintor. Assim, não retratou uma realidade fidedigna do evento. A elevação da colina; a quantidade de pessoas na comitiva; as roupas pomposas; os cavalos de raça e o riacho do Ipiranga são elementos que foram atribuídos à obra nesta proposta de enaltecimento da Independência. As inspirações de Américo para a pintura vieram de artistas europeus, de modo que as representações dos personagens e do ambiente remontam muito mais a um cenário francês ou italiano do que brasileiro. Como assinalam Schwarcz e Starling (2015, p. 679), “[...] em nome da Pátria, Américo assassinou a geografia”. Nas seções seguintes, exploraremos as relações entre a construção imagética de Américo e a de Poteiro apresentando o material didático “Tarot da Independência”.
A SÉRIE CULTURAL TAROT
O tarot é um baralho composto por 78 cartas, distribuídas entre as Cartas da Corte, os Arcanos Menores (que são separados dentro de quatro naipes e numerados de 1 a 10, além de conter, em cada naipe, as quatro Cartas da Corte: Rei, Rainha, Príncipe e Princesa) e os Arcanos Maiores, que são numerados de 0 a 21 e que, segundo Claro (2022, p. 17), “são cartas [...] que possuem seu significado explícito, sendo cada um deles uma história contada e terminada”, sendo cada carta composta por uma figura simbólica e um título próprio. O conjunto de cartas propõe que um leitor iniciado encontre a resposta de uma pergunta específica por meio da interpretação de três ou mais cartas, relacionadas ao acaso, através da análise da relação entre imagens e palavras-chave, que dão nome às cartas.
A história do tarot é cercada de mistérios e inúmeras narrativas sobre sua origem e disseminação. A princípio criado para ser um jogo de entretenimento, não se sabe ao certo em que ponto ele deixa de ser usado apenas como jogo, passa a ser tratado como instrumento divinatório e ganha status de oráculo. Segundo Dummett (1980), a primeira evidência do tarot remonta à Itália do século XV, onde as cartas eram chamadas pelo termo “trunfo”. Existem registros também na França do mesmo período, em que foram identificadas cartas como o Valete de Espadas, o Tolo, entre outros Arcanos Maiores, em um baralho pintado à mão. De acordo com Dummett (1980), existem cerca de 20 baralhos confeccionados que sugerem indícios sobre a origem do tarot antes do período citado, em meados dos anos 1400. Destes, três jogos encontram-se mais completos e sua autoria foi atribuída, de forma unânime pelos pesquisadores, ao pintor Bonifacio Bembo (Itália, 1420-1480), que os ilustrou à mão. O fato de as cartas serem confeccionadas por artistas da época e realizadas através de encomendas demonstra o caráter elitista do acesso ao baralho e ao uso do tarot, que era restrito para os membros da nobreza. Estes o empregavam em jogos de entretenimento, considerando pontuações a partir da numeração dos Arcanos e reinventando diferentes jogos através do uso do baralho completo ou apenas entre os Arcanos Maiores ou Menores. Conforme se nota, o tarot é objeto de modificações criativas em seu uso desde seu surgimento.
Para Helen Farley (2009), no estudo “A Cultural Story of Tarot”, foi a partir da invenção e da popularização da prensa de Gutenberg (em 1440) que o tarot caiu no gosto da população e deixou de ser um item exclusivo da nobreza. Ainda mantido como um jogo de baralhos para entretenimento, ele teve seu uso ressignificado como oráculo em meados do século XVIII. Considerando o caráter sedutor e simbólico das imagens das cartas, atraiu a identificação das pessoas com suas próprias questões pessoais e de crenças.
A relação entre as figuras e cores dos baralhos e a indumentária dos personagens das Cavalhadas; a origem do tarot ligada à pintura a óleo; a iconografia conectada ao imaginário medieval; e as apropriações criativas de que o tarot foi objeto ao longo dos séculos são alguns dos aspectos desse objeto cultural que nos levaram a escolhê-lo como meio para a intensificação da aproximação dos visitantes com a obra de Antônio Poteiro. Mas, além disso, nos interessou a capacidade de relacionar imagens e de produzir interpretações ambíguas que o tarot possui. O tarot é um campo aberto para a inferência de ideias, animadas pelas relações entre texto mais imagem, imagem mais imagem e texto mais texto.
Como referencial teórico para a criação do jogo, tomamos como norte a proposta teórica de Iuri Tinianov (1978), que está na base dos estudos a respeito das interações entre linguagens. O autor concebia a literatura como uma série ou sistema e a obra literária como outro sistema, o qual possui elementos que cumprem determinadas funções construtivas. Os elementos de uma obra são aspectos como tema, estilo, ritmo, sintaxe na prosa e ritmo e semântica na poesia etc. Cada um desses elementos desempenha papéis diferentes em cada sistema do qual faz parte e se encontram, no interior de cada obra, em correlação mútua e em interação. Essa capacidade de conexão é a chamada função construtiva, uma noção complexa que significa que “o elemento entra simultaneamente em relação com a série de elementos semelhantes que pertencem a outras obras-sistema, inclusive em outras séries e, ademais, com os outros elementos do mesmo sistema” (p. 91), constituindo a função autônoma e a função sinônima dos elementos. A função sinônima diz respeito à interação de um elemento dentro de seu próprio sistema e a função autônoma indica a correlação de um elemento com outro análogo em uma série vizinha. Particularmente, Tinianov
propunha o estudo da evolução literária a partir dessas infiltrações de uma série na outra. E aqui chegamos ao ponto de interesse. Tinianov (1978) tratava do estudo da literatura em correlação com a vida social, que era sistematizada por meio das inúmeras séries vizinhas à escrita literária, que são as diversas linguagens da arte e as manifestações da cultura, como a música, a arquitetura, o cinema, a culinária, a dança, a jardinagem etc. Cada uma dessas séries é um sistema em si e possui seus próprios elementos, que podem entrar em interação com os elementos de outras séries, provocando alterações e transformações no interior desses sistemas. Seu interesse estava nas relações da literatura com o que estava fora dela, mas sem deixar de preservar o que estava dentro. Seu interesse pelo fora em aliança com o dentro faz seu pensamento, de acordo com Pinheiro (2016), muito aproximado ao modo de pensar de sociedades como a latino-americana, que interage sob princípios de tradução. Em nosso continente,
A fala dos trânsitos comunicativos de todos os dias, incrustada de indigenismos, africanismos, neologismos, aliterações e iconicidades, não se opõe (a não ser nos níveis das retóricas oficiais e normativas) à linguagem poética. Trata-se de uma forma de conhecimento que não se explica pelos sucessivos confrontos e trocas de posições entre tradição e ruptura. (PINHEIRO, 2016, p. 23)
A grande virtude dessa análise formal é ela nos permitir notar que outros elementos particulares das obras e outras séries podem entrar em relação, conforme os objetivos da prática educativa. A aproximação entre as obras como método dificulta ou pelo menos tira do primeiro plano a abordagem do educador nos moldes de uma aula expositiva, monológica; além disso, as obras, uma ao lado da outra, comentam-se mutuamente, realçando suas qualidades (no sentido que nos apresenta C. S. Peirce) e iluminando uma à outra. Arriscamos dizer que isso talvez seja o que se chama comumente de fruição: uma certa capacidade de conectar uma obra a outra e a outra e a outra. E não seria essa a melhor tarefa a ser cumprida por uma exposição de arte?
Nesse sentido, tomamos a série cultural tarot como uma plataforma para produzir relações de nível autônomo da obra
“Independência”, de Antônio Poteiro, com a obra “Independência ou Morte”, de Pedro Américo.
“TAROT
DA INDEPENDÊNCIA”:
A
LEITURA DE CARTAS PARA ANTÔNIO POTEIRO E PEDRO AMÉRICO
O “Tarot da Independência” é formado por 17 cartas, divididas em dois grupos: oito que se referem à obra de Pedro Américo e nove, à pintura de Antônio Poteiro. A parte superior da Figura 1 mostra os recortes da obra que foram feitos para compor o primeiro grupo, de acordo com a seguinte numeração: O Ponto de Vista (1), A Elevação (2), O Naturalismo (3), A Concordância (4), O Pormenor (5), O Primeiro Plano (6), A Citação (7) e O Estudo (8). O segundo grupo foi composto por nove cartas: O Ingênuo (1), Alla Prima (2), O Tempo (3), A Perspectiva (4), O Perfilador (5), O Detalhista (6), O Ângulo (7), A Festa (8) e O Medievalista (9). As cartas 7 e 8 (primeiro grupo) e 8 e 9 (segundo grupo) foram montadas com imagens exteriores aos quadros, trazendo referências visuais para a contextualização das obras. Sobre a necessária conexão das obras com o mundo externo, para sua interpretação, Iuri Lotman (2000) afirmou:
A questão é que a obra de arte nunca existe como um objeto tomado separadamente, tirado do contexto: ela constitui uma parte da vida cotidiana, das ideias religiosas, da simples vida extra-artística e, em resumidas contas, de todo o complexo das diversas paixões e aspirações da realidade contemporânea dela. (p. 46)
Trabalhamos na criação gráfica das cartas procurando preservar nelas características de materialidade dos tarots clássicos: usamos um papel com gramatura alta, para manter o peso; aplicamos uma estampa no verso da carta, extraída da obra de Poteiro; fizemos um recorte arredondado nos cantos; e escolhemos as palavras buscando propor pelo menos duas camadas de interpretação: uma metafórica e uma literal, ambas relacionadas com as pinturas. As imagens abaixo (Figuras 3, 4, 5 e 6) são exemplos do resultado visual final do baralho:
Fig. 3, 4, 5 e 6 – Cartas do “Tarot da Independência”.
Fonte: Arquivo dos autores.
Comentaremos agora as cartas individualmente.
A carta O Ingênuo (Figura 3) remete, no sentido literal da palavra, ao artista Antônio Poteiro, o qual, como já comentamos, é considerado naïf – em tradução ao português, ingênuo. A palavra aponta, portanto, para a discussão sobre o modo como a obra foi construída: nas mesmas bases do que explicamos anteriormente serem típicas desse tipo de pintura. Ao mesmo tempo, durante as conversas com o público, buscamos debater o significado da palavra “ingênuo” no âmbito da Independência. Algumas perguntas que utilizamos: seria ingênuo também o nosso olhar sobre esse fato histórico? O que sabemos sobre ele que nos tire no campo da ingenuidade?
A carta A Festa também comenta aspectos da obra de Antônio Poteiro. O artista presenciou as Cavalhadas de Pirenópolis, como mencionado anteriormente, e as trouxe para suas pinturas, na intenção de levar a regionalidade goiana para o mundo:
Tudo que eu faço é Brasil. Brasil é um país alegre, para todo lado que olha se vê um céu bonito, um verde bonito. O artista tem que falar do Brasil. Que nem a cerâmica minha: é a cor da terra goiana. Então eu faço muito Goiás, entendeu? Eu acho que o artista está aqui e tem que promover o estado de
Goiás. Porque quando você vai para o estrangeiro, para qualquer parte do mundo, é Rio, é São Paulo e Bahia. Falou Goiás, ninguém conhece. Uma coisa que lá em Goiás se faz todo ano é as Cavalhadas. Aí então eu estou promovendo Goiás, que cada vez está melhorando. (Antônio Poteiro, como citado em Telaimaginaria, 2016.)
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) mostra que nas Cavalhadas os cavaleiros são os protagonistas. Eles são divididos em dois grupos: cristãos e mouros. Em cada grupo, há 12 participantes: um rei, um embaixador e dez soldados. O preparo das vestimentas para o ritual é feito minuciosamente por costureiras, bordadeiras e armeiros. Os cavaleiros que representam os cristãos têm as cores azul e prateada predominantes nas vestimentas e vestem uma capa repleta de símbolos cristãos bordados (cálices, ostensórios, cruzes, divinos e coroas). Já para os mouros prevalecem as cores vermelha e dourada e a capa com símbolos como brasões, águias, cartas de baralho, lua e dragão. Usam também peças de armadura e elmo ou chapéu, dependendo da patente do cavaleiro. As montarias também recebem atenção, com enfeites de metal, veludo, pedrarias, flores de pano e fitas coloridas, além de uma manta de veludo bordada vermelha ou azul, para os mouros e cristãos respectivamente, que cobre o dorso do cavalo (IPHAN, 2010).
Nesta obra, podemos notar que Poteiro trouxe referências das Cavalhadas para recriar a cena da Independência: as cores vermelha e azul para representar os cavaleiros; a posição de combate com os cavaleiros perfilados; e o lugar de espectador do público. A carta A Festa, portanto, aponta a conexão entre os cavaleiros que são personagens da festa, as figuras do baralho e os cavaleiros da pintura de Poteiro, que representam, neste caso, os soldados que estariam acompanhando Dom Pedro. Também se nota a partir da fotografia escolhida a relação entre as cores da festa e as cores da obra, pois os matizes são saturados em ambos. A carta A Citação apresenta o recorte de uma imagem que estava no cânone da época e que ajudou a construir a narrativa da Independência do Brasil produzida por Pedro Américo. Trata-se da pintura de Horace Vernet (França, 1789-1863), chamada “Louis Philippe et ses fils à cheval en quittant le château à Versailles” (1846). No contexto em que Américo se
educou, a formação de um artista passava obrigatoriamente por estudar os cânones e citá-los. Ao contrário do que poderíamos, contemporaneamente, chamar de plágio, na época, remeter a outro quadro era considerado uma citação. De acordo com Albergaria (2022):
As citações aparecem geralmente nos gestos de personagens, em detalhes ou na disposição dos elementos de uma cena que se assemelham aos das obras inspiradoras. Costumavam ser esperadas e até mesmo valorizadas, por evidenciarem a capacidade de um artista em adaptar um elemento prévio a um novo contexto. (p. 59)
Outras obras também citadas por Américo são: “1807, Friedland” (1861-1875), de Jean-Louis Ernest Meissonier; “Le roi Louis-Philippe entouré de ses cinq fils sortant par la grille d’honneur du château de Versailles après avoir passé une revue militaíre dans les cours” (1837), de Horace Vernet; “Bataille de Rivoli” (1844), de Henri Philippoteaux; “La Battaglia di Pastrengo” (1855), de Vincenzo Giacomelli; “Un episodio della Battaglia di San Martin” (1868), de Giovanni Fattori; “La Guerra d’Italia nel 1860-1861”, de Victor Jean Vicent Adam e Carlo Perrin (ALBERGARIA, 2022).
A carta O Ponto de Vista foi criada para o debate sobre a inclusão e a exclusão do povo no processo de independência. A história do Grito do Ipiranga como a conhecemos surgiu a partir de documentos oficiais. Conforme mostra Schwarcz (2022), os documentos apontam que na tarde de 7 de setembro de 1822, Dom Pedro I estava na colina mais próxima do Riacho do Ipiranga, em São Paulo, quando os mensageiros de José Bonifácio o alcançaram e o informaram que a Independência já havia sido oficializada por sua mulher, Maria Leopoldina. Assim, Dom Pedro se desfez da fita azul clara e branca (as cores de Portugal) de seu chapéu, ergueu sua espada e gritou: “É tempo! [...] Independência ou morte! [...] Estamos separados de Portugal [...]”. E, assim, foi dada a Independência do Brasil.
Ainda segundo Schwarcz (2022), há outras possíveis narrativas acerca do Grito do Ipiranga que são deixadas à margem, favorecendo a história dos documentos oficiais. A teatralidade atribuída a este marco histórico somada a outros fatores que
contradizem a versão oficial da história nos diz que o Grito do Ipiranga foi um evento forjado. Seja qual for a narrativa mais próxima da realidade, a mais repetida até hoje foi construída com o estabelecimento de um papel protagonista e heroico à figura de Dom Pedro I e ao apagamento de figuras mais populares –narrativa que, mais tarde, seria reafirmada com a obra de Pedro Américo.
Para a construção da “lenda da Independência”, como Schwarcz (2022) denota, fatores subversivos ao evento foram esquecidos propositalmente: os Estados da Bahia, Maranhão e Piauí só reconheceram a Independência nos anos que se seguiram; Pernambuco desde o início foi contra a direção que o movimento da Independência seguia, uma vez que estaria “muito centrada nos interesses cariocas” (SCHWARCZ, 2022, p. 28). Além disso, não apenas a criação da lenda da Independência, mas o próprio processo de emancipação em si se desenvolveu principalmente pelo ponto de vista de São Paulo e Rio de Janeiro, desconsiderando experiências que outros Estados estavam vivenciando. Tais ausências e escolhas de pontos de vista são reiteradas na obra “Independência ou Morte” (1988), de Pedro Américo.
A imagem do Grito da Independência cristalizada por Pedro Américo exclui as outras independências que ocorreram, os conflitos que precederam o movimento de emancipação e toda a negociação política pós-independência. Segundo Schwarcz:
[...] Não se destaca a real Independência, que se deu no Rio com a aclamação. Também não aparece a pressão civil e popular; esta última apenas representada por um tropeiro, que de certa maneira representa o “espírito bandeirante” dos paulistas. Isso sem esquecer da centralidade conferida ao então príncipe Dom Pedro. (SCHWARCZ, 2022, p. 30)
Nesse sentido, o tropeiro recortado na imagem da carta é a única representação do povo na obra de Pedro Américo. Enquanto os vários cavaleiros que exaltam Dom Pedro têm posição privilegiada na pintura, o tropeiro com seus bois ocupam apenas um canto, enfatizando o lugar passivo de espectador que a população teve na Independência – ao menos pela perspectiva adotada por Pedro Américo. É importante observar a proporção
que o personagem tem diante da obra inteira (lembrando que a tela possui 415 cm x 760 cm), mas também que o tropeiro é o personagem que está mais próximo do espectador da obra, compartilhando conosco um ponto de vista parecido da cena. Schwarcz revela, também, que Pedro Américo pintou uma primeira versão da famosa obra, a qual foi vetada por Dom Pedro II por ter a representação do povo na frente de Dom Pedro (RESENDE, 2022). Nos encontros com o público, buscamos enfatizar uma reflexão sobre o quanto essa presença do povo por meio desse único personagem diz respeito, também, à nossa precária compreensão sobre o tema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao desenvolver o “Tarot da Independência”, tínhamos como objetivo conduzir conversas na galeria de arte da CAIXA Cultural Curitiba que somassem a análise histórica temática dos quadros ao estudo detalhado da fatura de cada um dos pintores. Nossa intenção era encaminhar os visitantes ao entendimento de que os efeitos interpretativos provocados pelas obras sobre o tema da Independência foram construídos por meio da abordagem técnica de cada artista à pintura a óleo e das referências contextuais incorporadas pelos autores na narrativa das telas. Nesse sentido, não estávamos em busca de apresentar “a verdade” sobre o processo histórico da Independência, mas ampliar o repertório visual do público e fundamentá-lo na discussão sobre a arte como representação.
Assim, um dos passos mais importantes do processo de criação do material foi a escolha das palavras combinadas de maneira assertiva com os recortes das imagens. No decorrer do uso do Tarot com diferentes públicos (aplicamos a atividade com visitantes espontâneos adultos, crianças estudantes escolares e educadores de outros centros culturais da cidade), notamos que algumas cartas tendiam a repetir temas já trazidos à tona na leitura de outras imagens e, por isso, passamos a retirar algumas delas do jogo antes da conversa. Isso aconteceu, por exemplo, na relação entre as cartas O Ponto de Vista e O Ângulo, pois ambas tratavam da posição do povo diante da cena. Apesar de cada uma conter o recorte de uma pintura diferente (a primeira, a de
Américo; a segunda, a de Poteiro), quando debatíamos o tema em uma delas, automaticamente já produzíamos comparações que traziam a outra obra para a conversa; e, por isso, a segunda foi excluída. Algo parecido aconteceu entre as cartas A Festa e O Medievalista, porque ambas remetiam ao contexto das Cavalhadas.
Outro ponto importante de relatar é o modo como montamos o espaço para o Tarot ser lido. O jogo possui especificidades na maneira de ser usado que incluem a abertura do baralho sobre uma mesa e a escolha de cartas aleatoriamente. Nós buscamos manter esses aspectos de teatralidade, os quais ativam a ambiguidade própria dos oráculos. Além disso, não abríamos (virávamos) todo o baralho: o visitante ou o grupo de visitantes selecionava entre três e seis cartas, uma de cada vez, e as demais eram mantidas escondidas, preservando o mistério que também é característico do jogo de Tarot. Aos educadores, cabia relacionar as cartas entre si durante a conversa, não importando qual a combinação ocorrida naquele dia. Entendemos que colocar a escolha dos temas em debate na “mão do acaso” retira um pouco do controle do educador sobre a conversa, produzindo um espaço maior para o diálogo.
A obra de Pedro Américo, devido a seu uso em livros escolares e outros materiais de alta tiragem, é bastante disseminada. De acordo com Lilia Schwarcz (2022):
[...] com o tempo, se procedeu a uma seleção quase exclusiva da tela de Pedro Américo, transformada em cartazes, selos, moedas, de maneira a “naturalizar” o papel de São Paulo na Independência de 1822. Chama a atenção ainda o uso que os militares fizeram e têm feito da pintura de Pedro Américo. Em 1972, em plena ditadura militar, e quando se celebravam os 150 anos do 7 de setembro, a imagem de D. Pedro foi relida como se ele fosse um militar, e não um príncipe de origem portuguesa e ligado à história do antigo regime. (p. 31)
Com a proposta educativa que criamos, quisemos mostrar ao público como essa pintura não é a única representação artística a respeito da cena do Grito da Independência a circular pelo Brasil.
Sobretudo, o caráter não realista da pintura de Poteiro, colocado em diálogo com o realismo quase fotográfico de Américo, traz ao primeiro plano do debate a capacidade imaginativa e alegórica de ambos os artistas; e, diante de um público educado para observar o caráter representativo desses signos, os discursos retóricos oficiais perdem sua força e abrem espaço para outras leituras.
REFERÊNCIAS
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Matheus Theodorovitz Prust
Festas
reais no atual
estado do Paraná: registros de solenidades no período entre a chegada da Família
Real Portuguesa ao Brasil (1808) e a coroação de D. Pedro II (1841)
RESUMO
A longa tradição de celebração de Festas Régias, consolidada ao longo dos primeiros 150 anos de colonização portuguesa no atual estado do Paraná, perpetuou-se ao longo do século XIX. No presente texto, apresentamos um mapeamento das festas reais celebradas nas cidades de Curitiba, Paranaguá e Morretes no período entre a chegada da Família Real e a coroação de D. Pedro II. Por meio do calendário aqui organizado, observa-se o avanço das solenidades do tempo de D. João VI até a renúncia de D. Pedro I, seguidos de um paulatino declínio até a coroação de D. Pedro II. A adesão do Senado, Militares, Igreja e população evidencia a adequação das vilas do Sul ao cerimonial prescrito pela corte do Brasil imperial. O abandono (ou adaptação) dessa tradição propagandística é notado no momento de afirmação da estrutura política local, em busca de sua emancipação, junto com a valorização dos símbolos identitários dos novos imigrantes, chegados no século XIX.
Palavras-chave: Festas Reais; Brasil Imperial; História do Paraná.
INTRODUÇÃO
A estreita relação entre as vilas do atual território do Paraná e as tradições ibéricas se fez notar, entre diversos aspectos, na realização das “Festas Régias”, registradas desde o século XVII até o declínio do Império. O calendário festivo, organizado e regulamentado pelos Senados das Câmaras e pelas Matrizes (junto de suas Ordens Leigas), reunia nos centros urbanos a insipiente população mineradora e rural. A realização das festividades era prescrita por ordenações do Reino, Cartas Régias e pela devoção da própria população. A participação da Igreja – mandatória –representava a união entre o governo e a religião. Nessas ocasiões, alguns cidadãos poderiam promover festas privadas, reservadas aos seus círculos particulares, ou abertas à comunidade (como no caso de representações teatrais, operísticas, fandangos ou de touradas e cavalhadas). Ensejavam festas os acontecimentos políticos (como a aclamação e coroação de um monarca, acordos
políticos, etc.) e os acontecimentos particulares da família real (nascimentos, falecimentos ou matrimônios).
A partir da mudança da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, seguindo-se até o período da instalação da Província do Paraná (1853), desmembrada de São Paulo, um extenso calendário festivo foi notado nas vilas de Curitiba, Paranaguá e, posteriormente, em Morretes. As solenidades, realizadas com devoção, fortaleciam a imagem da família real no sul do país, cuja população vivenciava o avanço de suas regiões, como decorrência dos projetos político-econômicos implementados ao longo do século XIX. Ainda, as festividades aproximavam essas vilas aos centros urbanos de referência cultural do Brasil Imperial (como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo), ao buscar um alinhamento com suas estruturas cerimoniais.
Partindo do texto seminal de Cecília Whestphalen (1983), Festas e Lazeres de Outrora, que focaliza a temática do divertimento no Paraná, propomos a composição de um calendário de festividades régias, tendo como recorte temporal a chegada da família real portuguesa até a coroação de D. Pedro II. Nosso enfoque é centrado na observação da confluência entre a tradição local e a portuguesa, materializada pelo cerimonial prescrito pela corte no Brasil. O primeiro marco temporal tem a sua relevância evidenciada pelo avanço nas festividades em todo o território nacional, que passou a ter uma relação mais próxima com os acontecimentos celebrados. O segundo ponto coincide com o da criação de uma nova identidade do atual estado do Paraná, que valorizava os signos culturais dos novos imigrantes em detrimento da tradição portuguesa e espanhola setecentista, assim como buscava o fortalecimento da imagem política regional. A partir da abdicação do trono por D. Pedro I, percebe-se um contínuo declínio das festividades reais, que, à exceção das solenidades de coração de D. Pedro II, perdem a opulência de outros tempos. As fontes aqui utilizadas para o levantamento de dados foram as Atas do Senado da Câmara de Curitiba, transcritas por Francisco Negrão e os títulos “Memória Histórica de Paranaguá” (1850) e “Memória Histórica de Morretes” (1851), de Antonio Vieira dos Santos. Negrão transcreve, ipsis litteris, os documentos do Senado de Curitiba, que guardam caráter informativo – e não descritivo. Os textos do memorialista Vieira dos Santos, apesar de também reportarem documentos das respectivas câmaras, contêm relatos descritivos de festividades, sobretudo
daquelas em que o autor teve uma participação mais proeminente, consistindo em uma fonte essencial para o estudo da estrutura cultural e social do seu tempo. Não foram consideradas, em nosso caso, as festas religiosas prescritas por força de lei, que, apesar de se enquadrarem como festas reais, não estavam ligadas a acontecimentos contemporâneos.
O levantamento apresentado não pretende ser exaustivo, dado que os documentos de referência não reportam a completude das festividades realizadas. Constitui-se, portanto, um calendário “de” festas reais – e não da sua completude.
ORGANIZAÇÃO DAS FESTAS REAIS NO MUNDO LUSITANO
A organização das festas régias observadas em Portugal e no Brasil Colonial e Imperial não foi estanque, apesar de guardar similaridades ao longo do tempo. Como reporta Alves (2014), que analisa as solenidades reais realizadas na cidade do Porto entre os reinados de D. José I e D. João VI (1750-1816), buscava-se a estruturação de elementos postos a serviço de uma "publicidade organizada", reforçando o poder do Estado, calcando-se na adesão popular, reunindo inventividade, artifício e culto aos símbolos religiosos e monárquicos. O sentimento de pertencimento, alcançado por meio do envolvimento da população em rituais tradicionais, sublinhava a ideia de “experenciar a corte”. Desse modo, a exteriorização de afeto pelos acontecimentos da família real, manifestado ora em forma de regozijo, ora em forma de luto, foi um importante componente da sociedade portuguesa e de seus domínios, que se estendeu para a jovem monarquia brasileira.
A realização dos festejos era, primeiramente, determinada pelas governanças políticas, que indicavam as fontes dos recursos (públicos ou privados) e sugeriam uma estrutura prévia para sua organização (quantidade de dias, realização ou não de procissão, representações teatrais, fogos de artifício, etc.). Os editais eram lidos e afixados publicamente, com grande pompa (Fig. 1). A preparação da festa poderia se estender por um médio período, dadas as circunstâncias de comunicação com as periferias das vilas, assim como por sua complexidade e importância. O quantitativo de músicos, arquitetos, alfaiates, ferreiros, marceneiros,
escultores, pintores e toda a casta de profissionais empregados seria determinante para a celeridade das preparações.
O tríduo determinava que as comemorações régias tivessem ao menos três dias de iluminação nas casas e nas vilas, missas e procissões, ressaltando o caráter solene e festivo. As luminárias utilizadas eram pequenos pratos ou tigelas de barro, com cera ou azeite e algodão, postos nas janelas das residências e prédios, dando aspecto festivo às vilas. Em Curitiba e Paranaguá, a Câmara demandava que os moradores e comerciantes branqueassem as frentes das casas com cal e capinassem a vegetação. A programação, dependente dos recursos financeiros disponíveis, era, habitualmente, elaborada por homens cultos e membros de classes dominantes, que também detinham o poder de registrar as festividades, legando, assim, uma “narrativa oficial”, chancelada pelo governo.
A participação da Igreja era mandatória, sendo ela responsável pelos ofícios religiosos obrigatórios (Te Deum, missas e procissões). O número de párocos, a quantidade de velas e a participação de músicos exteriorizava a relevância do acontecimento. Determinadas pelos Senados das Câmaras no Brasil desde o século XVII, um número de festividades religiosas era, também, realizado anualmente a título de festas régias, não guardando, necessariamente, relação com os acontecimentos extraordinários da realeza.
Fig. 1 – Uma Proclamação Municipal Gravura de Jean-Baptiste Debret (1839). Cerimonial oficial nas vilas e cidades do Império, tal como registrado no Paraná. Fonte: Biblioteca Nacional Digital.
Entre os divertimentos habitualmente programados, destacavam-se as touradas, representações teatrais e programas
musicais. As touradas eram espetáculos precedidos por desfiles alegóricos, música, dança e fogos de artifício. As simulações de batalhas e lutas, em forma de teatro de rua, tinham grande apelo. Não havendo arena na vila, construía-se uma provisória. O mesmo se dava com a casa de teatro, que poderia ser erigida para uma ocasião específica, junto com ornamentos para as casas e prédios públicos, constituindo o atrativo conhecido como “arquitetura/ teatro efêmero”. Em centros mais avançados, a programação de óperas e teatro poderia contar com companhias convidadas; nas regiões mais carentes, a própria população ensaiava números que eram repetidos, com frequência, em festividades subsequentes. Para esses divertimentos, a participação dos artífices e artistas era uma condição sine qua non
Fig. 2 – Tourada em Arena, Curitiba (1895)
As touradas foram um dos divertimentos das festas reais no tempo do Império, estendendo-se até o início da República. Cavalhadas em arenas foram representadas em Morretes, na Coroação de D. Pedro II (1841).
Fonte: Fundação Cultural de Curitiba, Casa da Memória.
FESTIVIDADES EM CURITIBA, PARANAGUÁ E MORRETES
Os registros de festas reais acompanham a história do atual estado do Paraná desde o século XVII. Em 1656, ano da fundação da Capitania de Paranaguá, a Câmara dessa vila solenizou com grandes exéquias o luto pela morte de D. João IV, falecido em Lisboa (Santos, 1850, p. 40). Por meio de seus célebres Provimentos, o Ouvidor Pardinho (1721) determinou a realização de cinco festas religiosas anuais (portanto, régias) em Paranaguá e Curitiba. As exéquias de D. João V foram solenizadas em Curitiba, em 1751, ornadas com procissão e fogos de artifício (apud NEGRÃO, vol. 22, p. 32). Em 1767, o governador da Capitania de São Paulo exigia que o nascimento
do infante João Maria de Bragança fosse festejado “com todas as demonstrações de aplauzo, e contentam.to, que são de costume em ocasiões similhantes” (NEGRÃO, 1926, vol. 33, p. 54). Poucos anos depois, em 1786, as celebrações de seu matrimônio com Carlota Joaquina foram realizadas com rara pompa em Curitiba (apud NEGRÃO, vol. 13, p. 15):
[os governantes da vila], asin juntos e uniformes e emcorporados forão asestir na Igr.a Matriz desta v.a a festividad.e regia em aplauzo dos desposorios feitos dos principes catholicos em que natal Igr.a Parochia houve missa cantada Senhor esposto e Tedeum Laudamos.
A longa tradição de festejos coloniais, consolidada ao longo de 150 anos da presença de portugueses nas vilas do Paraná, por eles fundadas, perpetuou-se na primeira metade do século XIX. A seguir, transcrevemos alguns dos acontecimentos datados do nosso período de enfoque que ilustram a expressividade dessa tradição na sociedade daquele tempo.
ACONTECIMENTOS POLÍTICOS
Chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil (1808)
O desembarque da Família Real em Salvador, em 22 de janeiro de 1808, ensejou a realização de festas em diversas cidades do Brasil. A chegada de D. João VI (1767-1826) ao Rio de Janeiro, em 7 de março, foi efusivamente celebrada em uma cerimônia com salvas de canhões, tiros de fuzis, badaladas dos sinos das igrejas e procissão (Meirelles, 2015, p. 10).
Curitiba, cuja Câmara dispunha de parcos recursos, reservou o direito de realizar apenas os ofícios religiosos obrigatórios e a iluminação da vila. Despendeu-se uma arroba de cera para velas e o pagamento de 6$400 réis para sermão do vigário. A iluminação das igrejas foi paga com recursos próprios. Por meio de ofício do corregedor da comarca, determinou-se "senão faserem festas reais senão as da Igreja" (apud NEGRÃO, vol. 38, p. 22).
Em Paranaguá, então sede da 5ª Comarca de São Paulo, as festividades foram revestidas de grande fausto. A Câmara determinou 9 dias de luminárias e emitiu um edital informando a realização de amplas comemorações. O programa deveria ser organizado da seguinte maneira: 19 de abril, festa solene; 17, 18 e 19 de abril, luminárias; 24 de abril a 1 de maio, os "brinquedos" (i.e., divertimentos) que se quisessem fazer; desfiles alegóricos, no 8 de maio pelos alfaiates, no 15 de maio, pelos carpinteiros, no 22 de maio, pelos sapateiros; nos dias subseqüentes, ópera e entremezes. Nomeou-se o Sargento Mor Manoel Antonio da Costa como diretor da função. A programação religiosa deveria constar de Festa de Espírito Santo, Missa Cantada, Sermão e Te deum e três dias de festa solene. O objetivo era, como descrito em ofício da Câmara enviado ao General da Província, “imitar as [festas] que se fizerão em S.m Paulo.” (SANTOS, 1950, p. 209).
Antonio Vieira dos Santos participou ativamente da programação prescrita, ocupando, entre outras funções, a de diretor teatral. Em sua “Memória histórica da cidade de Paranaguá”, ajunta um dos poucos relatos descritivos de festas reais no Paraná no período, que contaram com teatro efêmero, cavalhadas e pantomimas:
DESCRIPÇÃO DAS FESTAS REAES QUE SE FIZERÃO
Em 11 do mez de Junho houve missa cantada na Igreja Matriz, Sermão, Senhor exposto e Te Deum a que asistio, A Camara, e toda nobreza; e Offeçiaes de Miliçia e Ordenanças com seus fardamentos de grande gala. Em 13 de Junho se reprezentou a Comedia Ezio em Roma; mas não se finalizou por cauza da chuva pelo Theatro ser feito na rua. Em o dia 16 de Junho houve hum bando de todos os Offeçiaes inferiores uniformados de branco com suas alabardas. Em 17 houverão no Campo Cavalhadas, e escaramuças com muito asseio. Em 18 de reprezentou a Comedia Zenobia, Entremezes e pantomimas – estas e as cavalhadas foram dadas pelos Offeçiaes do regim.to de Miliçias; bem com a função da Igreja e a primeira Comedia foi feita p.la Camara – em 19 de Junho
se representou a Comedia Porfiar Errando – e pantomimas dos alfaiates, e dos ladrões função feita a custa dos Offeçiaes inferiores do regimento e que o author dessas Memorias foi o diretor, além de muitas mascarados e outros públicos regozijos com que os Paranaguenses festejarão o seu primeiro Monarcha.
Fig. 3 – Desembarque de D. João VI no Rio de Janeiro (1808). Gravura de Constantino de Fontes (1821). Fonte: Biblioteca Nacional Digital.
Restauração de Portugal (1809)
A Restauração de Portugal, frente à Revolta Nacional no Porto (1808-1809), foi celebrada em Curitiba no dia 4 de abril de 1809. Em ofício, o corregedor da comarca "determina que se festegem o restauramento de Portugal, e Algarve com aquelas demonstracoins do costume" (apud NEGRÃO, vol 38, p. 45). Um edital público foi lançado em 25 de março, convocando a participação popular e a iluminação da vila – e a cera de velas para a missa cantada foi patrocinada pela Câmara.
Elevação do Brasil a “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” (1815)
Em Paranaguá, como de costume, houve três dias de luminárias (17, 18 e 19 de março) e, no último dia, houve a Missa Cantada, Senhor Exposto e Te Deum em Ação de Graças (SANTOS, 1850, p. 232). A Câmara de Curitiba, apesar de não ter registrado em suas atas qual foi a programação, enviou uma carta à corte do Rio de Janeiro informando as festas realizadas (apud NEGRÃO, vol. 39, p. 76).
Levantamento do Preito (1817)
Vieira dos Santos (1850, p. 233) reporta uma Portaria de 13 de Janeiro de 1817, do Conde de Palma à Câmara de Paranaguá, na qual consta que:
El Rei foi servido marcar o dia 6 de Abril do corrente anno, para celebrar-se o Acto solemne de levantamento e Juramento do Preito e Homenagem, conforme as formalidades dod antigos uzos, e costume; ordenando que, no dia da função da Igreja, fizessem apromptar o maior numero de tropa, que for possivel; e acabada a festividade, mandar se dar as tres descargas do costume; e embandeirar-se as Fortalezas, e Embarcaçõens surtas no porto desta Villa.
O Termo de Vereança de 22 de fevereiro de 1817 convoca todos a “concorrerem ao festejo de tão plauzivel çeremonia”. (SANTOS, 1850, p. 233).
Instauração de Governo Provisório em Pernambuco (1817)
A Revolução Pernambucana de 1817, que buscava a implementação de um governo republicano, com caráter separatista, provocou o adiamento da Aclamação de D. João VI. O episódio da instauração de um Governo Provisório pelo Império ensejou
comemorações em Paranaguá. A Câmara mandou iluminar a vila por três dias e cantar o Te Deum em Ação de Graças (SANTOS, 1850, p. 233).
Aclamação de D. João VI (1818)
A Aclamação de D. João VI, apesar de ter sido adiada para 1818, foi celebrada em Curitiba e Paranaguá no mês de fevereiro de 1817. Os oficiais da Câmara de Curitiba notam, em Termo de Vereança de 15 de fevereiro de 1817, que "se Recebeo huma carta de oficio da Real Junta desta Capitania partecipando a felicidad.e que temos da Aclamação do Nosso Novo Monarqua para se darem as providencias nececarias para o festejo da coroação do mesmo Senhor.” Algumas autoridades locais se dispuseram a patrocinar um dia de “festa de Igreja, com Missa cantada e o q' se oferecer” (apud NEGRÃO, vol. 39, p. 86-87). De Morretes, Santos (1851, p. 104) nota: “Coroação e Acciamação dei Rei Dom João 6º em 6 de Fevereiro de 1818, de cuja festividade houveram luminárias.”
Aclamação de D. Pedro I (1822)
Fig. 4 – Cerimônia de Aclamação de D. João VI, no Rio de Janeiro (1818). Gravura de JeanBaptiste Debret (1839).
Fonte: Biblioteca Nacional Digital.
Na Freguezia de Morretes, que havia sido recém-criada, estando em processo de estruturação governamental, os habitantes “desejosos de quererem mostrar a sua adesão ao primeiro Imperante do Brasil” responsabilizaram-se pelas solenidades. Consta nas “Memórias da Freguesia de Morretes” que Vieira dos Santos foi o articulador dos festejos, que seguiram o plano apresentado ao Comandante da Freguezia (SANTOS, 1851, p. 129-130):
Plano que apprezentou o Alferes Antonio Vieira dos Santos, ao Capitão Francisco Jozé de Freitas, da Freguezia de nossa Senhora do Porto de Morretes, para se fazer nella a Acclamação do Senhor D. Pedro primeiro, Imperador Constitucional do Brazil.
Dezejando os Cidadãos da Freguezia de Nossa Senhora do Porto de Morretes, solemnizar o faustissimo dia, doze de Outubro do corrente anno, não só por ser natalício de Sua Alteza Real o Príncipe Regente Constitucional, e Deffensor Perpetuo do Brazil, como inda mesmo por ser assignalado pela vontade geral dos povos para a sua exaltação, e Acciamação ao throno Imperial dó mesmo Império, concordarão celebrar espontaneamente, o grande Acto de sua Acciamação, nas ruas desta Freguezia por nella não haver corporação municipal que o fizesse, em nome destes povos, que também querião ter a dita e a gloria de o Acclamarem e assim determinarão.
– Primeiro – que este dia e os seguintes fossem o de maior gala, para os mesmos Cidadãos, pois entre os maiores júbilos e transportes se gloriavão de que seu Deffensor Perpetuo fosse exaltado a Imperador Constitucional deste vasto continente.
– Segundo – que na manhã do dia doze de Outubro a hora certa reunidos todos os cidadãos com os offeçiaes de maior patente, que houverem na Freguezia, vestidos no maior açeio possível hirão, acompanhar o Bando para ouvirem o Real Decreto de Dezoito de Setembro e o Edital do Senado da Cámara do Rio de Janeiro, de vinte e hum do mesmo mez, em o qual se ordena aos povos das Províncias, coiligadas, Acclamem ao mesmo Augusto Príncipe Regente.
– Terceiro – que todos os Cidadãos mais condecorados hirão adiante, do Bando, e os povos atras
delle, e no fim de cada vês, que este for publicado o Offeçial de maior patente que tiver a Freguezia fará ao povo em alta voz a falia seguinte:
– Cidadãos, o grande Deos da natureza fés a América para ser independente e livre. O Deos da natureza, conservou no Brazil o Príncipe Regente para ser aquelle que firmase a independência deste vasto continente. Que tardamos? a epôcha he esta, Portugal nos insulta [ilegível] América nos convida. A Europa nos contempla... o Príncipe nos deffende... Cidadãos soltai o grito festivo... Viva o Imperador Constitucional do Brazil o Senhor D. Pedro primeiro – estes vivas serão repetidos três vezes, aos quaes o povo responderá com os maiores transportes de alegria, acenando com lenços, e a guarda que for acompanhar o mesmo Bando dará fogo rolante, no fim de cada vês que este Acto se fizer.
– Quarto – que o Bando e Acciamação se deverá fazer em todos os ângulos desta Freguezia pela mesma ordem e maneira já indicada soltando se de vês em quando por toda a parte o festivo grito da Acciamação – Viva o Imperador do Brazil.
Estes são os sinceros e ardentes votos dos Cidadãos desta Freguezia, que em todo o tempo sempre mostrarão obediência ao Soberano, submissão a Lei e apego firme a Santa Religião.
Freguezia de Morretes 11 de Outubro de 1822.
ANTONIO VIEIRA DOS SANTOS
As Atas da Câmara de Curitiba registram solenidades semelhantes, com a participação das governanças, militares, religiosos e da população. É um dos poucos exemplos de relato descritivo de festas pela municipalidade. Nota-se que (apud NEGRÃO, vol. 41, p. 12):
...só com a noticia de que sua Aletesa Real hia ser aclamado o Imperador do Brasil logo na mesma noite iluminarão suas cazaz, e derão muitas salvas em demonstrassão de seu jubilo e foi tanto o intusiasmo respeito e amor que todos uninaminemente plublicarão a sua saptisfassão e asin o Povo, tropa e mais Nobreza derão a devida aclamassão acompanhando de grandes vivas ao Augusto imperador, [...] vertendo lagrimas de saptisfação.
Foi celebrada Missa Solene na Igreja Matriz, acompanhada de discurso e de Te Deum. Na praça defronte à igreja, seguiram-se três descargas de mosquetes pela Tropa da Cavalaria.
A Câmara de Paranaguá enviou uma carta ao imperador, assinada por 49 cidadãos, do Senado, clero e nobreza, demonstrando o respeito e serventia. Em cerimônia pública, foram proferidos discursos e juramentos, realizados festejos, missa e Te Deum. Assinaram a ata da festividade 76 pessoas (SANTOS, 1850, p. 243-244).
Em 1823, foi determinado por lei que os aniversários da Independência e da Aclamação do imperador fossem festejados anualmente em Curitiba.
Fig. 5 – Teatro da representação do coroamento de D. Pedro I. Rio de Janeiro (1822) Gravura de JeanBaptiste Debret (1839).
Fonte: Biblioteca Nacional Digital.
Promulgação da Constituição Imperial (1824)
A Promulgação da Constituição do Império ensejou solenidades da municipalidade de Curitiba. Foram determinados dois dias de luminárias e, no dia 11 de março, houve festejos ornados por discursos, tropa de militares e música. Após os juramentos dos governantes comprometendo-se a honrar a legislação, a população
se dirigiu à Igreja Matriz para a celebração de Missa Solene, com discurso do pároco lendo artigos da nova constituição. Em procissão, houve a presença (apud NEGRÃO, vol. 41, p. 53-64):
...do Senado, Clero, Nobresa, Tropa e inumeravel concurso de Povo que cheios de entuziasmo em altas voses correspondião os mesmos vivas acompanhando a cada hum delles descarga da Trompa e Muzica precedendo a illuminação voluntária nas noites antecedentes e seguintes.
Em Paranaguá, as solenidades incluíram o Te Deum e três descargas de tiros pela tropa militar, além de discursos e juramentos (SANTOS, 1850, p. 246). A promulgação do Ato Adicional da Constituição do Império, em 1834, foi solenizada em Curitiba e Paranaguá com o cerimonial habitual.
de D. Pedro I à Comarca (1826)
D. Pedro I partiu do Rio de Janeiro em direção ao Rio do Grande do Sul a fim de tratar de assuntos relativos à fronteira com a Argentina. Em seu trajeto, retornando por Santa Catarina, passaria por Paranaguá. O vigário de Curitiba foi enviado a Paranaguá para que cumprimentasse o imperador por parte da Câmara e do povo. Com a notícia da visita, por Termo de Vereança, a Câmara de Paranaguá determinou que “se deverião tomar alguas providencias mandando alimpar a mesma Villa, caiar as cazas; e iluminar-se as mesmas em Consequençia do que, derão ordem ao Procurador que a illuminação da Casa da Camara fosse do melhor modo possível” (SANTOS, 1850, p. 249). Em sinal público de festejo da chegada de D. Pedro I na Comarca, a Câmara de Curitiba determinou três dias de luminárias na vila (3, 4 e 5 de dezembro de 1826). Com o falecimento da imperatriz e o consequente cancelamento dos compromissos reais, a Câmara de Paranaguá ordenou a suspensão das providências para os festejos e melhorias da vila.
Coroação de D. Pedro II (1841)
Em Curitiba, que carecia de músicos e artífices, a programação foi reduzida. A iluminação das casas por três dias, ao invés de obrigatória, foi eletiva. A música nos ofícios religiosos foi realizada por um único músico, como se nota: “era necessário convidar a Ant.o Vicente da Cruz e outra pessoa p.a cantar canto xam na Missa solene do dia 18 do corr.e mes visto não haverem Musico actualm.e”(apud NEGRÃO, vol. 53, p. 51).
As festas de Morretes, sediadas em Paranaguá, foram as mais suntuosas registradas na região. Ela contou com aparatos de grande porte, incluindo arquitetura efêmera, teatros, cavalhadas e diversos outros divertimentos. Apenas para a iluminação foram utilizadas cerca de 1.400 lâmpadas. Esse evento, sem precedentes na história do Paraná, coincide com o da última coroação de imperador no Brasil. Por sua relevância, cabe transcrever a descrição de Antonio Viera dos Santos, um de seus organizadores e importante defensor das causas da família real:
Festevidade da Coroação
A Coroação e Ságração de Sua Magestade Imperial o Sor. Dom Pedro 2.°, foi hua das maiores solemnidades que se fizerão em todo o Império do Brazil e principalmente na Cidade de Paranaguá onde aos Cidadões Morreteenses lhes coube a primazia, e a gloria de fazerem a mor parte das mesmas festividades. Logo que lhes chegou a noticia que Sua Magestade o Imperador, tinha marcado o dia 18 de Julho para a sua Ságração e Coroação, se inflamou nos Coraçõens de todos os Brazileiros o mais heróico enthusiasmo de festejarem ao seu jovem Monarcha, de todas as maneiras que os povos mais cultos da Europa costumavão praticar em taes actos. – Jovens Cidadãos Morreteenses [...]¹ em numero de 16 pessoas deliberarão ensaiar o divertimento de
1 Entre eles, figuravam Antonio Vieira dos Santos e seu irmão, José Vieira dos Santos.
corridas de cavalhadas, para cujo fim se uniformarão em dois esquadrões sendo oito uniformados com fardetas de tafetá Carmezim agaloadas com bordaduras de galão amarello, e os outros oito com fardetas de Seda azul Celeste, bordadas de galão branco, e botoens da mesma cor, sendo os primeiros amarellos, e todos com ricos Xaires que acobertavão os seus Cávallos, os peitoraes e as Cabeçadas dos mesmos enfeitados com volantes fitas, guizos e plumas e outros adornos, bem como na cauda, arreios e estribeiras de prata. Os dois mantenedores António Vieira dos Santos Júnior e Manoel António Bitancourt, com chapéos armados agaloados d’oiro, e plumas amarellas, e todos os mais cavalleiros com seus bonnés agaloados e armados de Escudos e lanças não,farião desta sorte muita differença daquelles mais ricos cavalleiros que nas cortes se aprezentão em taes festejos, estes jovens fizerão os seus ensaios no Campo fronteiro desta Villa por espaço de dois ou três mezes antecedente ao da grande Solemnidade da Coroação e quizerão ter parte na que os Cidadãos Paranaguénses se prepara vão a dedicar, e assim nos dias 15 e 16 do mez de Julho sahirão todos estes Jovens Cavalleiros, pela Estrada terrestre te a Cidade de Paranaguá, acompanhados dos competentes pagens também a cavallo e outros diversos Cidadãos, que forão unidos com a mesma comitiva, de maneira que, entre todos formava num Esquadrão, para mais de Oitenta Cavalleiros, sahindo desta Villa cheios de enthusiasmo e alegria, tocando instrumentos de sopro, e atirando muitos foguetes e dando vivas a Sua Magestade o Imperador.
No dia 17 de Julho a tarde entrou este luzido Esquadrão de Morreteenses triunfantes na Cidade de Paranaguá; onde forão recebidos com o mais exaltado enthusiasmo pêlos briozos Paranaguense entre mil vivas, de immenso povo que se apinhou em todas as ruas da Cidade, e de
immensos fogos do ar, repiques de Sinos, e tiros de peças de artelharia das Embarcações surtas no porto daquella Cidade, a grande alegria publica confundida com mil vivas e abraços dos amigos parecia como aquelles triunfos que se fazião em Roma nas victorias dos Romanos; e ao mesmo tempo foi aumentada a alegria dos Paranaguenses a entrada da primeira tropa de animaes carregados com géneros de Serra Acima que da Freguézia de Sm. Joze dos Pinhaes conduzio e foi a primeira que trilhou a nova Estrada o Cidadão Manoel de Bastos Coimbra. Os Solemnissimos festejos que os Paranaguenses fizerão naquella Cidade em o dia 18 dedicado a Coroação, e Sagração de Sua Magestade. o Imperador, nunca já mais se fará outra igual, os Arcos e Carros Triunfantes, os Amphiteatros e brilhantes illuminações, os hymnos de alegria, as Solemnidades religiozas as Peças Dragmaticas do Theatro, os fogos luminárias, e o povo immenso que veio de toda a parte assistir a tão brilhante função, nessecitava muitas linhas a descreve-las.
Nos dias 20 e 21 de Julho depois de se ter feito o competente circo no Campo Grande daquella Cidade e se fazer o festival divertimento da Corrida dos Torneios marcharão de seus aquartelamentos os dois Esquadrões de Cavalleiros com seus uniformes, e entrando no circo destinado ás Corridas derão principio ao divertimento em evoluções de differentes escaramússas com toda a galhardia qual o cavalleiro que montava no mais soberbo cavallo, qual o mais destro, e o que estribava segundo as regras da picaria. immenso povo que circumdava o circo, e todos os Cidadãos principaes da Cidade com suas famílias, em camarotes que para isso forão feitos, ficarão admirados da bizzárria de todos os jovens Morreteenses a quem davão mil louvores e os aplaudião na derestreza e dezembaraço com que manejavão suas armas na occazião da peleja que
huns com outros tiverão nos encontros das lanças em seus Escudos; nas reparaçõens dos golpes de suas Espadas e no desvio dos tiros de suas pistolas, e mui principalmente no final divertimento no ligeirissimo ponto d’enfiar a argolínha na ponta de suas lanças e terem a satisfação de offereçerem esta dadiva de gratidão, a Dama mais querida e a mais intima de seus affectos, que as reçebião cheias de gratidão retribuindo em recompensa, prendas que para isso trnucerão destinadas. Assim se passarão as tardes destes dias, cheias de gostos e de alegrias glorias que forão devidas ao Morreteenses, não sendo nelles novo este fogo patriótico que dedicão ao seu Monarcha, e adhesão sincera ás suas pessoas de que derão já provas na mesma Cidade no dia 17 de Junho do anno de 1808, em que houve outro igual divertimento de cavalhadas feitas pellos mesmos Cidadãos Morreteenses e das quaes foram mantenedores os Sargentos mores António Ricardo dos Santos, e Jozé Joaquim Pinto do Valle, nas funções de festas Reaes que na mesma Cidade foram feitas pela Cámara e Offeçialidade do Regimento de Milícias na boa vinda ao Brazil de Sua Magestade o Senhor Dom João 6.° Rei de Portugal, Brazil e Algarves, e de sua Real Família. Alem das referidas Cavalhadas forão mui apreciáveis pêlos Paranaguense os jocôzos Bandos e mascaras que lhes precederão festas de tanto applauzo descriptas nos Jornaes públicos daquelle tempo, pelo Doutor Francisco Joze Corrêa que então servia de Inspector d’Alfandega daquella Cidade, e que deu os maiores elogios aos Cidadãos Morreteenses.
Acontecimentos familiares
Em 1810, no Rio de Janeiro, realizou-se o matrimônio de Maria Teresa de Bragança, Princesa da Beira, e D. Pedro Carlos, Infante da Espanha e Portugal. O General da Província apresentou uma
portaria ordenando demonstrações públicas de alegria, por meio de festejos, três dias de luminárias e Te Deum. Tanto as vilas de Curitiba quanto as de Paranaguá acataram as determinações impostas. Em Paranaguá (SANTOS, 1850, p. 217):
...a Camara mandou affixar Editaes para que, os moradores nos dias 6, 7 e 8 de Setembro, botassem luminarias e no ultimo dia convidava a toda nobreza a asistiro o Te-Dem em Acção de graças pelo feliz despozorio da Serenissima Princesa Dona Maria Thereza com o Serenissimo Infante D. Carlos.
O falecimento de D. Maria I no Rio de Janeiro, em 1816, foi notado nos registros da Câmara de Morretes (SANTOS, 1851, p. 104) e, em Paranaguá, “a Camara mandou publicar o Bando do costume; e se lhe fizerão exequias a sua memoria.” (SANTOS, 1850, p. 376). Em Curitiba, que recentemente havia sido elevada à sede da Comarca de Paranaguá e Curitiba pela Coroa Portuguesa, mas cujo Conselho Municipal não dispunha de recursos para fazer face às solenidades de exéquias, os quatro dias de funeral foram patrocinados pelas autoridades eclesiásticas, militares e as governanças locais, por determinação e em comum acordo com Governador e Capitão Geral da Capitania, Conde de Palma (apud NEGRÃO, vol. 39, p. 77-78).
O matrimônio de D. Pedro de Alcântara e Dona Maria Leopoldina, em 1817, foi apenas anunciado no plenário da Câmara de Curitiba, não sendo lançado edital para festividades – fato inédito nos registros da vila (apud NEGRÃO, vol. 39, p. 93). Em Paranaguá, foi publicado o decreto real, mas não constam relatos descritivos das solenidades (SANTOS, 1850, p. 233).
Os nascimentos e falecimentos foram celebrados de maneira intermitente. Por exemplo, o de D. Maria II (1819) foi solenizado em Curitiba, Paranaguá e Morretes. O de D. Miguel (1820) não teve cerimônias em nenhuma das vilas. O nascimento de D. João Carlos (1821) foi solenizado em Curitiba e Paranaguá (e o seu falecimento, um ano depois, apenas em Curitiba). Os aniversários de D. Leopoldina e de D. Pedro I eram comemorados anualmente em Curitiba (assim como a Independência do Brasil e a Aclamação de D. Pedro I). O falecimento de D. Leopoldina (1826) foi notado nos registros da Câmara de Morretes e, pela morte de D. Pedro I (1834), não houve exéquias no Paraná.
Calendário de Festas Reais no Paraná (1808-1841)
Tendo como referência as “Atas da Câmara de Curitiba” (Negrão, vols. 38-53), “Memória Histórica de Paranaguá” (Vieira dos Santos, 1850) e “Memória Histórica de Morretes” (Vieira dos Santos, 1851), observamos registros de 38 festas reais no período abordado, como se segue:
1808 22/01 Chegada da Família Real ao Brasil
Curitiba, Paranaguá e Morretes
1809 Restauração de Portugal Curitiba 1810 30/05
1815 16/12
1816 20/03
1817 13/05
1817
Matrimônio de Maria Teresa de Bragança e D. Carlos
Elevação do Brasil a “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”
Falecimento de D. Maria I
Matrimônio de D. Pedro de Alcântara e Dona Maria Leopoldina
Curitiba e Paranaguá
Curitiba, Paranaguá e Morretes
Curitiba e Morretes
Curitiba e Paranaguá
Levantamento do Preito Paranaguá
1817 Instauração de Governo Provisório em Pernambuco Paranaguá
1818 06/02
1819 04/04
1821 13/05
Aclamação de D. João VI
Nascimento de D. Maria II
Curitiba, Paranaguá e Morretes
Curitiba, Paranaguá e Morretes
Aniversário de D. João VI Curitiba
1821 Nascimento de D. João Carlos Curitiba e Paranaguá
1822 04/02
1822 12/10
1823 22/01
1823
Falecimento de D. João Carlos Curitiba
Aclamação de D. Pedro I
Curitiba, Paranaguá e Morretes
Aniversário de Dona Leopoldina Curitiba
17/02 Nascimento de D. Paula Mariana Curitiba
1823 12/10
Aclamação de D. Pedro I (1822) Curitiba
DATA
1824 22/01
1824 25/03
ACONTECIMENTO
Aniversário de Dona Leopoldina Paranaguá
Promulgação da Constituição Imperial Curitiba e Paranaguá 1824 12/10
Aniversário de D. Pedro I Paranaguá
1825 22/01 Aniversário de Dona Leopoldina Paranaguá
1825 12/10
1825 02/12
1826 10/03
Aclamação de D. Pedro I (1822) Curitiba
Nascimento de D. Pedro II Curitiba e Paranaguá
Falecimento de D. João VI Paranaguá
1826 02/12 Visita de D. Pedro I à Comarca Curitiba
1826 11/12
1829 16/10
1831 12/10
1834 14/04
1834 24/09
1834 12/08
Falecimento de Dona Leopoldina Curitiba, Paranaguá e Morretes
Chegada de Dona Maria Amélia ao Rio de Janeiro Curitiba
Aclamação de D. Pedro I (1822) Curitiba
Eleição do Regente de D. Pedro II Curitiba
Falecimento de D. Pedro I Paranaguá
Ato Adicional da Constituição do Império Curitiba e Paranaguá 1835 07/09
Independência do Brasil (1822) Curitiba
1835 12/10 Posse do Regente Diogo Feijó Curitiba
1835 30/10
Titulação de Januária de Bragança como Imperatriz do Brasil Curitiba
1837 07/09 Independência do Brasil (1822) Curitiba e Paranaguá
1838 07/09
1839 07/09
1841 18/07
Independência do Brasil (1822) Curitiba
Independência do Brasil (1822) Curitiba
Coroação de D. Pedro II Curitiba, Paranaguá e Morretes
170 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A comunidade paranaense, então majoritariamente portuguesa, valorizava os signos da coroa em seu cotidiano, realizando entre uma e duas festas régias anualmente. A preocupação com o fortalecimento da instituição imperial fica evidente quando observamos as descrições dos eventos públicos e o surgimento de sociedades civis pró-império, após 1822. Essa situação, contudo, modificou-se gradualmente. Com a Constituição de 1824, que criava o parlamento brasileiro a nível nacional, os senadores sensíveis às causas da Comarca de Curitiba e Paranaguá puderam auxiliar para a sua emancipação político-administrativa. Em 1842, Curitiba foi elevada à condição de cidade; em 1853, criou-se a Província do Paraná. O calendário de festejos públicos passou a focalizar conquistas políticas a nível regional. Cabia ressaltar a identidade local, em detrimento daquela do império.
O falecimento de D. Pedro I (1834) não foi solenizado, mas, no mesmo ano, em Curitiba e Paranaguá, houve cerimônias e festejos pela Eleição dos Deputados. Os festejos pela Aclamação de D. Pedro I (1831), que deveriam ser anuais, já haviam deixado de ser celebrados após 1831. O matrimônio do imperador e de dona Maria Amélia (1828) também não foi solenizado. Na festa da Independência de 1839, a Câmara de Curitiba proibiu festejos além do serviço religioso. A singeleza dos festejos da coroação de D. Pedro II (1841) em Curitiba ilustra o declínio de uma tradição.
A manutenção e a proeminência de alguns festejos, tais como os de Morretes em 1841, estavam ligadas a pessoas de liderança civil e política com laços estreitos com a tradição portuguesa. Antonio Vieria dos Santos, portusense vindo ao Brasil no final do século XVIII, foi um dos últimos promotores das festividades. Suas narrativas, encomendadas pelo governo imperial, por meio dos Senados das Câmaras, buscavam enaltecer a imagem da corte brasileira utilizando a propaganda.
REFERÊNCIAS
Atas da Câmara de Curitiba. In: Negrão (19021931, vols. 1-53).
ALVES, J. J. A Festa Barroca no Porto ao Serviço da Família Real na Segunda Metade do Século XVIII. Subsídios para o seu estudo Revista da Faculdade de Letras. Porto, 2012.
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Vagner Melo da Costa
Marlúcia Menezes de Paiva
Charles S. S. Nascimento
A influência do Seminário de Olinda no discurso
revolucionário de Frei Caneca
RESUMO
O objetivo deste estudo foi investigar a influência do Seminário de Olinda no discurso revolucionário de frei Caneca. O Seminário de Olinda, estabelecido em 1798, tinha como objetivo formar cidadãos e possuía uma inclinação liberal. Frei Caneca foi um dos alunos da primeira turma do curso de Filosofia da instituição. Ele foi preso sob suspeita de participação na Revolução Pernambucana (1817), recebeu perdão real em 1821 e, posteriormente, tornou-se um dos líderes da Confederação do Equador (1824). Por meio de seus escritos, publicados no jornal que fundou, denunciou os atos repreensíveis do governo imperial e divulgou os princípios que sustentariam a Confederação do Equador. Para atingir o objetivo deste estudo, foi necessário analisar os textos publicados por frei Caneca que resultaram em sua prisão, em 1824, e estabelecer uma conexão com os conteúdos estudados por ele no Seminário de Olinda. Concluiu-se que os escritos de frei Caneca foram influenciados, ainda que indiretamente, pelo Seminário de Olinda, visto que faziam referência a autores presentes no currículo da instituição, utilizando-os como fundamentos argumentativos, além de estarem alinhados com os objetivos do colégio-seminário.
Palavras-chave: Frei Caneca; Seminário de Olinda; Revolução Pernambucana; Confederação do Equador; Educação.
INTRODUÇÃO
O período colonial do Brasil, entre 1500 e 1822, foi marcado pela condição de colônia de Portugal. Inicialmente, a educação não era uma prioridade para os portugueses devido à natureza agrícola do Brasil, que não exigia formação especializada. A chegada dos jesuítas ao Brasil, em 1550, marcou o início da educação regular no país, com a criação do Colégio dos Meninos de Jesus na Bahia. Eles estabeleceram diversos colégios, seminários e escolas em várias regiões do Brasil, focando no ensino dos indígenas e filhos dos colonizadores.
A educação colonial brasileira teve forte influência da Igreja Católica, que via nas escolas uma forma de difundir a
cultura portuguesa e converter os indígenas ao catolicismo. O padre Manoel da Nóbrega desenvolveu um plano de ensino adaptado ao Brasil, que incluía o ensino da língua portuguesa e da doutrina cristã. Os jesuítas desempenharam um papel significativo na educação religiosa, ministrando diariamente aulas de religião cristã e, posteriormente, ensinando a ler e escrever (PAIVA, 2015).
A escola de ler e escrever correspondia ao ensino primário, seguido por duas opções no curso médio: aprendizagem profissional e agrícola; ou aulas de Gramática Latina. Após a morte do padre Nóbrega, o Ensino Médio passou a ter como principal finalidade a preparação para o curso superior, visando à formação de padres jesuítas. Embora os colégios tivessem como objetivo formar padres, muitos estudantes da elite frequentavam-nos por serem as únicas opções disponíveis.
Em 1759, os jesuítas foram expulsos de Portugal e de suas colônias, encerrando o sistema educacional que haviam estabelecido no Brasil. No momento da expulsão, funcionavam 20 colégios e 12 seminários no Brasil, conforme relato de Ferreira (1966). Além dessas instituições, havia um colégio feminino e duas casas de recolhimento feminino.
Romanelli (2012) destaca que a expulsão dos jesuítas resultou no desmantelamento do sistema educacional do Brasil e apenas 13 anos depois é que foram tomadas medidas para substituir o sistema até então vigente. Tobias (1972) afirma que a reforma de Pombal não apenas buscou mudar a filosofia da educação brasileira, mas também quebrou a unidade pedagógica e cultural. O interesse em resolver o problema da quebra da unidade pedagógica foi limitado devido ao receio de ideias de emancipação despertadas pelas correntes iluministas que alcançaram a Europa (PAIVA, 2003). Nesse contexto, a educação foi utilizada como instrumento de dominação sobre os indígenas e os habitantes da colônia. A solução adotada foi a criação das aulas régias, aulas avulsas e desarticuladas ministradas por professores remunerados pelo governo (SAVIANI, 2013). Esse sistema marcou o início da instrução pública no país. As aulas régias foram estabelecidas no Brasil em 1772, com disciplinas como gramática latina e grega, financiadas pelo subsídio literário. No total, foram criadas 44 aulas régias no país.
As reformas educacionais ocorridas em Portugal, como a reforma da Universidade de Coimbra e a criação do Colégio Real dos Nobres, em Lisboa, refletiram-se no Brasil com a
criação do Seminário de Olinda, em 1798, e do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória (TOBIAS, 1972). Essas instituições, inspiradas nas ideias burguesas, buscaram promover um modelo educacional avançado. O currículo do Seminário de Olinda abrangia disciplinas diversificadas, além das sagradas, despertando interesse em estudantes que não tinham intenção de seguir a vida eclesiástica.A vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, impulsionou o avanço da educação, já que passou a se demandar de uma infraestrutura educacional para os novos habitantes da colônia. Diversas escolas e cursos foram criados para atender a essa demanda, abrangendo os níveis primário, secundário e superior. D. João VI emitiu decretos para organizar a educação brasileira, criando instituições como a Escola de Cirurgia, a Real Academia de Guardas-Marinha e a Academia Real Militar (SAVIANI, 2013; TOBIAS, 1972).
A estrutura governamental estabelecida no Rio de Janeiro gerou custos que provocaram revoltas em várias províncias, incluindo Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco. Em Pernambuco, revoluções anteriores, como a de 1710, já haviam demonstrado a resistência local contra a opressão do governo português. A Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador de 1824 surgiram como consequência dessa insatisfação, motivadas pela extorsão da metrópole, rivalidade entre portugueses e brasileiros e pelos excessivos gastos da Coroa (TAVARES, 1969; QUINTAS, 1985).
As denúncias de conspiração contra o governo português levaram à prisão de líderes pernambucanos, resultando em confrontos violentos e na fuga do governador. A confusão na cidade aumentou e resultou na libertação dos presos, que se uniram ao movimento, transformando-o em uma revolução. Destaca-se a participação fundamental dos oficiais brasileiros e dos líderes religiosos, como o padre João Ribeiro da Pessoa, para o sucesso do movimento (TAVARES, 1969).
Segundo Quintas (1985), as ideias democráticas da Revolução Francesa e a independência da América inglesa impulsionaram o desejo de independência em Pernambuco. A Revolução de 1817 contou com a participação tanto da elite intelectual quanto da camada popular da sociedade. Cavalcanti (1994) destaca que o movimento ficou conhecido como Revolução dos Padres devido à influência dos religiosos, especialmente do Seminário de Olinda. O envolvimento do seminário no
movimento e a Proclamação da República em Pernambuco, em 6 de março de 1817, foram marcos importantes nessa busca pela independência (QUINTAS, 1985; CARVALHO, 1980).
O Seminário de Olinda foi um importante centro intelectual no Brasil do início do século XIX, onde circulavam ideias liberais e subversivas, mesmo diante da censura (CARVALHO, 1980).
Durante a Revolução Pernambucana de 1817, a Igreja teve adesão oficial ao movimento, evidenciada pela participação do padre João Ribeiro e outros padres na Proclamação da República, em Pernambuco (LEITE, 1988). A vitória da revolução durou apenas 75 dias e resultou na morte de vários líderes e na prisão de outros, como frei Caneca.
A Confederação do Equador, em 1824, pode ser considerada uma continuação da Revolução Pernambucana de 1817 em diversos aspectos, apesar da Independência do Brasil, em 1822. A soltura dos presos políticos da Revolução Pernambucana reacendeu o desejo de independência, devido ao descontentamento com as políticas do Imperador Pedro I em relação a Pernambuco (CAVALCANTI, 1994). O movimento tinha três vertentes: liberal, federalista e nacionalista, que se baseavam nas influências do Iluminismo, nas demandas de autonomia regional e no rompimento dos laços com o domínio português (LIMA SOBRINHO, 1979). A Confederação foi então decretada pelo presidente Manuel de Carvalho Pais de Andrade, tendo frei Caneca, ex-aluno do Seminário de Olinda, importante papel, utilizando o jornal Typhis Pernambucano, criado por ele, para disseminar ideias de liberdade e mobilizar a sociedade (CAVALCANTI, 1994).
A Confederação do Equador, que durou 72 dias em Pernambuco, foi derrubada por tropas imperiais, resultando no sacrifício de líderes como o padre Mororó e frei Caneca, este último sendo fuzilado após degradação eclesiástica (LIMA SOBRINHO, 1979).
Tanto a Revolução Pernambucana quanto a Confederação do Equador tinham um caráter nativista, buscando a libertação da pátria em relação aos portugueses e a consolidação da Independência com um regime constitucional (CARVALHO, 1980).
Devido ao envolvimento de professores e estudantes do Seminário de Olinda nos dois movimentos supracitados,
buscou-se entender até que ponto as ideias avançadas e iluministas permeavam o cotidiano da escola-seminário, especialmente na relação entre professores e alunos, e se isso poderia ter levado a uma adesão aos movimentos liberais de 1817 e 1824 em Pernambuco. Frei Caneca, foco deste estudo, foi aluno do Seminário e participou ativamente desses movimentos. Para isso, foram analisados documentos do Seminário de Olinda e textos escritos por frei Caneca, utilizando-se de acervos digitais e publicações. A pesquisa se concentrou na análise documental para compreender a relação entre ideias e política. A busca pelas ideias presentes no Seminário de Olinda é crucial para compreender seu funcionamento e o acesso dos estudantes a informações, a fim de compreender a potencial influência que a instituição poderia ter na participação ativa de um de seus alunos mais destacados, frei Caneca, nos movimentos políticos que, posteriormente, resultaram em sua morte.
O SEMINÁRIO DE OLINDA
A Igreja Católica determinou, por intermédio do Concílio Universal de Trento, em 1546, a criação de colégios com o propósito de educar religiosamente meninos. Esses colégios tinham como objetivo principal atender às responsabilidades pastorais, como pregação, liturgia e práticas sacramentais (NOGUEIRA, 1985).
Em março de 1549, os seis primeiros jesuítas chegaram à Bahia, sob a orientação do padre Manuel da Nóbrega. Seu objetivo oficial era converter os nativos das terras brasileiras, utilizando os colégios para esse fim. Posteriormente, em julho de 1551, os primeiros jesuítas chegaram a Pernambuco, onde receberam a capela, ainda em construção, e os terrenos circundantes do donatário Duarte Coelho. Neste espaço se estabeleceria uma residência para os jesuítas e um colégio (BARATTA, 1972; BELLO, 1978; NOGUEIRA, 1985, SAVIANI, 2013).
Em 1568, um grupo de religiosos iniciou o primeiro colégio de Pernambuco, que se tornou o único da região por quase dois séculos. Além dos cursos de latim, leitura, escrita e aritmética, que sempre fizeram parte do colégio, foram criados cursos de teologia moral e filosofia. O colégio teve seu período
áureo até 1630, quando foi invadido e utilizado como quartel general durante as Invasões Holandesas. Após a destruição parcial causada pelos holandeses, as aulas foram suspensas, mas foram retomadas após a reconstrução do colégio, em 1654. A partir de 1671, foram oferecidos cursos de filosofia, humanidades e artes. Em 1687, por ordem do Rei D. Pedro II, o curso de filosofia do colégio foi reconhecido como equivalente ao realizado em Coimbra, conferindo ao colégio o título de Real Colégio de Olinda (BARATTA, 1972; FERREIRA, 1966).
No entanto, em 1759, os jesuítas foram expulsos e todos os colégios foram fechados, interrompendo temporariamente os cursos. O colégio de Olinda ficou abandonado até 1800, quando o Seminário de Olinda foi fundado no mesmo local, por Azeredo Coutinho, seguindo as reformas pombalinas e os princípios iluministas, representando, dessa forma, uma nova fase educacional (SAVIANI, 2013).
A criação do Seminário de Olinda, do qual Coutinho foi bispo, tinha motivações econômicas, visando explorar os recursos naturais do Brasil em benefício de Portugal. Coutinho recebeu a doação do Colégio de Olinda da Rainha D. Maria I, em 1796, e estabeleceu os estatutos do colégio-seminário em 1798. Em 1800, o Seminário de Olinda foi inaugurado com 133 alunos matriculados e adotou um modelo educacional que formava padres como sacerdotes e filósofos da natureza, mas também estudantes não vocacionados à vida religiosa (ALVES, 2001).
Na inauguração, padre Miguelinho – um dos professores do colégio – fez a oração acadêmica. Ele não poupou esforços em demonstrar a necessidade do conhecimento para o crescimento do homem, além de introduzir na sua oração-discurso um viés liberal, como se pode verificar nos trechos assinalados a seguir:
Sim, senhores, é hoje que consumados em parte os grandes trabalhos do Sr. Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, nosso muito digno pontífice, se levantam das ruínas de um antigo edifício um novo templo para as ciências, um novo panteão para as musas e um eterno monumento para a sua glória. Sem se poupar às fadigas e cuidados, roubando aos contínuos trabalhos a que o conduz o Governo Civil desta vasta Capitania, tão dignamente confiada a sua
atividade e política, suas horas de aplicação para promover os conhecimentos literários dos seus súditos, que fazem a mais delicada porção do seu ministério pastoral, oferecem hoje ao seu bispado uma porta franca e comum para entrarem no luminoso pretório das Ciências e das Artes. Mecenas ao pé de Augusto no século ditoso da literatura romana, Colbert ao pé de Luís XIV na época feliz do restabelecimento das letras na França não fizeram mais do que ele junto ao grande Príncipe, que nos governa, a fim de estabelecer, afirmar, em Pernambuco, a proveitosa cultura das Ciências. [...]
Eu vou, portanto, mostrar a utilidade das Ciências e das Artes ao cidadão e ao cristão; vou fazer ver que elas conduzem para o bem da sociedade e da Religião, e quanto, por consequência, são indispensáveis para a felicidade comum dos povos, dos soberanos, dos cidadãos, e dos monarcas, do rei, e dos vassalos. [...]
Para nós persuadirmos vivamente, senhores, que são as Ciências e as Artes as que consolidam os fundamentos da sociedade, estreitam os dourados laços do direito social, basta atendermos um pouco com reflexão sobre o que a nossa mesma razão nos dita e o que uma continuada experiência nos demonstra. A razão convincente nos faz ver a indispensável necessidade das Ciências para o estabelecimento firme dos Estados, e a experiência depositada nos grandes fatos da História venerável nos vem dar a última confirmação desta verdade. Sim, respeitáveis ouvintes, são as Ciências as que fazem dissiparem e fazem desaparecer diante de seu luminoso clarão às escuras, densíssimas trevas da ignorância e do erro. Seus raios fulgentes e puros formam a brilhante aurora, que anuncia a um povo o formoso dia da sua glória, da sua grandeza, da sua felicidade. Elas são as que corrigem a aspereza desse natural grosseiro e agreste caráter de independência, que nasce com o homem, e
as que nos fazem gostar os doces vínculos da dependência mútua e da sociedade civil.
[...]
Só às Ciências e Belas Artes é que pertencem ensinar aos homens o que eles devem ser; elas os unem, elas lhes fazem conhecer os prazeres, e declinar da paz, levam luz a todas as ordens, prescrevem a cada um os seus direitos, e os seus deveres, riscam-lhes a esfera impreterível em que se devem conter, e formam de uma nação uma assembleia de filósofos, que têm aprendido como deixar as suas paixões, e a viverem felizes em uma comum unidade doce e pacífica, onde não são admitidos, nem lícitos senão inocentes combates de uma emulação louvável, onde a vitória só aqueles se concede, que têm com maiores fadigas e mais ativo zelo trabalhado para a felicidade pública dos seus amados concidadãos. Esta, unicamente a causa para que pela mudança do gosto nas Ciências, e nas Artes, senhores, podem-se muito bem assegurar a evolução dos povos, nos costumes, e no governo, e igualmente pelas mudanças de governo e dos costumes se podem prever os funestos golpes que vêm ameaçar às ciências. Debaixo dos maiores príncipes (diz Voltaire) é que as Artes têm sempre florescido, e a sua decadência é muitas vezes a época da decadência de um Estado.
[...]
Li que quer ver instruído o seu clero o Sr. Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Para este fim é que ele patenteia hoje e abre francamente as portas deste Seminário, destinado a formar homens dignos da Igreja e do Estado, cidadãos e católicos.
[...]
O Sr. Dom José Joaquim quer erigir em Pernambuco este novo Seminário, eterno monumento do seu zelo e do seu cuidado pastoral. Que fervor, Senhores, que liberalidade. “Filii Israel voluntaria dedicaverunt”. Almas generosas, abrasadas no vivo ardor do patriotismo mais puro, ajudam com pias
e largas contribuições os seus intentos; a obra é principiada, promovida, completa.
[...]
Memória lisonjeira, que nos recordará eternamente o nome imortal do Sr. Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, o benfeitor, o pai da pátria, o justo, o pio, o sábio, o benigno, o amador da sabedoria, o protetor dos sábios, o restaurador das letras (CASTRO, 2020, p. 223-243).
Padre Miguelinho, em sua oração acadêmica no Seminário de Olinda, destacou o papel das Ciências e das Artes na consolidação da sociedade, enfatizando a importância da razão e convidando a sociedade a abandonar a ignorância. Ele exaltou o patriotismo de Azeredo Coutinho, fundador do seminário, e mencionou a independência inerente ao homem, fazendo referência a Voltaire. Essa postura liberal de Miguelinho como professor do seminário corrobora a ideia de que a instituição formaria pensadores comprometidos com um papel destacado na sociedade.
A escola-seminário oferecia uma proposta educacional avançada, com professores brasileiros e portugueses que se dedicavam exclusivamente às aulas, como o Frei Miguel Joaquim Pegado, responsável pelo ensino de matemática. Além disso, o currículo incluía disciplinas como Teologia Dogmática, História Eclesiástica, Teologia Moral, Filosofia Universal, Retórica e Poética, Língua Grega, Gramática Latina, Cantochão e Desenho. A escola foi reconhecida como uma das melhores do Brasil, seguindo os princípios do despotismo esclarecido (ALVES, 2001; SAVIANI, 2013).
Por seu viés iluminista, o Seminário de Olinda teve um impacto significativo na Revolução Pernambucana de 1817, inspirando o ideal de construir um país democrático baseado na liberdade, fraternidade, amor à pátria e respeito humano (TOBIAS, 1972).Entender sobre a estrutura e funcionamento do Seminário de Olinda é de suma importância para elucidar em que ambientes os estudantes – e sobretudo Frei Caneca, que foi aluno do colégio-seminário – estavam inseridos.
Para que isso ocorra, recorremos aos Estatutos do Seminário de Olinda, denominados Estatutos do Seminário
Episcopal de Nossa Senhora da Graça da Cidade de Olinda de Pernambuco, que são divididos em três partes. A primeira trata de questões econômicas, da hierarquia e das atribuições das diversas funções. A segunda trata da questão moral. E a terceira trata da observância literária, incluindo a estrutura curricular.
A primeira parte dos Estatutos do Seminário de Olinda, composta por sete capítulos, aborda a economia, a hierarquia e as funções no Seminário de Olinda. O primeiro e segundo capítulos tratam sobre a seleção de seminaristas pobres, destacando que a maioria dos seminaristas era proveniente de famílias ricas que financiavam seus estudos e a forma de divulgação. Os critérios para candidatura incluem: idade mínima de 12 anos, origem no Bispado, condição de pobreza e órfão ou pais pobres incapazes de sustentar os estudos, além de ser moralmente adequado. Os capítulos também estabelecem que cada freguesia do Bispado deveria indicar um menino para o Seminário, priorizando as freguesias que ainda não tivessem sido atendidas. As freguesias mais populosas, Recife e Santo Antônio, poderiam indicar duas crianças cada.
O terceiro capítulo estabelece normas sobre as vestimentas, com diferentes trajes para uso noturno, nas aulas e em público. O capítulo também menciona que os calçados e meias devem ser proporcionais à pobreza de cada aluno. As roupas deveriam ser marcadas e os estudantes deveriam levar um baú para organizá-las. Expõe ainda que o colégio deve arcar com a renovação das roupas a cada três anos, além de custear serviços de barbeiro, cirurgião e médico, caso necessário.
O quarto capítulo aborda os colegiais extranumerários, que representam dois terços dos estudantes e são aqueles financiados pelos pais, incluindo a alimentação. Esses alunos estão isentos de cumprir os demais critérios para candidatura.
No quinto capítulo, são estabelecidos os horários das refeições, que correspondem ao café da manhã, almoço, jantar e ceia, além de uma merenda. Após a ceia, os alunos teriam um período de descanso e deveriam se recolher aos quartos, não podendo manter a luz acesa, exceto com autorização.
O sexto capítulo trata dos estudantes enfermos, com procedimentos para notificação, consulta médica e cuidados, incluindo a nomeação de estudantes como enfermeiros. A escola deveria adquirir a medicação necessária, exceto para alunos extranumerários com recursos próprios.
Do sétimo ao décimo primeiro capítulo há o detalhamento sobre as funções do reitor, vice-reitor e outros profissionais da escola, como administrar o colégio, fiscalizar o cumprimento das regras, autorizar visitas aos pais, guardar arquivos e realizar compras.
A segunda parte dos Estatutos do Seminário de Olinda, composta por três capítulos, aborda a moral e as obrigações religiosas dos estudantes. No primeiro capítulo, destaca-se a obrigação dos estudantes em relação a Deus, enfatizando a importância da salvação e do culto religioso por meio de rituais diários e mensais.
O segundo capítulo aborda a obrigação dos estudantes consigo mesmos, incentivando a busca pela paz interior e a valorização do trabalho e das virtudes.
Por sua vez, o terceiro capítulo discute a obrigação dos estudantes em relação aos outros, destacando a importância da união e da convivência harmoniosa, estabelecendo regras de conduta e comportamento.
A terceira parte dos Estatutos do Seminário de Olinda abrange a estrutura acadêmica da instituição, com 25 capítulos. Essa seção aborda a distribuição das funções acadêmicas, as disciplinas do currículo e a orientação para os professores. O calendário letivo se iniciaria em 3 de fevereiro e se encerraria em 7 de dezembro, com aulas em tempo integral.
No Seminário de Olinda, as disciplinas matriculadas pelos estudantes dividiam-se entre formação religiosa e acadêmica.
Algumas disciplinas possuíam natureza híbrida, abrangendo tanto aspectos acadêmicos quanto religiosos, enquanto outras eram exclusivamente acadêmicas ou exclusivamente religiosas.
Aos 12 anos de idade, os alunos iniciavam com a disciplina de Gramática. No entanto, caso apresentassem dificuldades em leitura, escrita e cálculos, deveriam cursar Primeiras Letras, embora essa disciplina não fizesse parte da estrutura curricular. Essa disciplina abrangia conhecimento fonético e pronúncia, escrita e significado das palavras, além de incluir aulas de Aritmética e Religião. O professor era responsável por ensinar os alunos a pronunciar corretamente os sons das palavras, a escrever, incluindo a técnica correta para segurar a pena, bem como ensinar conceitos básicos de matemática e Doutrina Cristã. O professor de Primeiras Letras desempenhava um papel fundamental, sendo esperado que sua conduta fosse exemplar, já que as crianças tendem a imitar o que ouvem.
Outra disciplina de caráter híbrido era o Canto, que não era obrigatória e era cursada por alunos com aptidão musical. A disciplina englobava teoria e prática do canto harmônico, destinado à adoração a Deus. As aulas ocorriam duas vezes por semana, com uma hora de duração, e o professor também era responsável pelo Coro das cerimônias de Missa.
Já as disciplinas de Gramática,Retórica,Filosofia,Geometria e Teologia faziam parte da estrutura curricular e tinham carga horária e tempo de duração diferenciados, conforme tabela a seguir.
Quadro 1 - Carga horária e duração das disciplinas do Seminário de Olinda.
Fonte: Elaborada pelos autores, a partir de dados dos Estatutos do Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça da Cidade de Olinda de Pernambuco (1798).
À exceção de Teologia, todas as demais disciplinas não possuíam caráter religioso, podendo ser cursadas por estudantes que tinham interesse em ter uma formação escolar adequada e de qualidade.
A disciplina de Gramática Latina tinha três classes, abrangendo três anos, com aumento progressivo de dificuldade. Na primeira classe, os alunos aprendiam noções da Língua Portuguesa e faziam traduções para o Latim. Na segunda classe, traduziam obras de autores latinos e estudavam minuciosamente cada sílaba. Na terceira classe, traduziam textos de Salústio, Tito Lívio e Terêncio, além de textos de poetas, após demonstrarem maturidade. Os cadernos dos alunos eram entregues ao reitor para preservação devido à natureza dos textos.
Após a conclusão das classes de Gramática, os alunos passavam para a disciplina de Retórica, que englobava História Universal e Geografia. As aulas de Retórica envolviam a análise de orações de Cícero e Quintiliano, exercícios práticos de púlpito, composição de discursos e debates sobre diversos assuntos. Os alunos também estudavam poesia de Orácio e conheciam
outros poetas, como Camões. Além disso, havia aulas de História Universal e Geografia.
A disciplina de Filosofia tinha duração de dois anos e abrangia Filosofia Racional, Moral e Natural. Nas aulas de Filosofia Racional, estudavam Lógica e Metafísica; nas de Filosofia Moral, abordavam a ética e os métodos de ensino e convencimento; e nas de Filosofia Natural, estudavam Física Experimental, História Natural e Química, incluindo a natureza brasileira.
A disciplina de Geometria tinha duração de um ano e envolvia o estudo da Aritmética, Geometria Elementar, Trigonometria Plana e Álgebra Elementar. Após a conclusão da disciplina de Geometria, os alunos poderiam optar pelo curso de Teologia, que durava três anos e se dividia em Teologia Especulativa e Teologia Prática. A Teologia Especulativa tratava dos dogmas e da fé, enquanto a Teologia Prática focava nas ações e costumes do cristão. Os alunos estudavam a História da Igreja antes de iniciar os estudos teológicos, e a Teologia Prática abordava a Ética Evangélica, as Leis, os ofícios eclesiásticos, a vida nos monastérios e a liturgia.
Os estatutos do Seminário de Olinda destacam a importância da escolha dos materiais utilizados pelos professores em diversas disciplinas. Esses materiais, chamados de compêndios, deveriam ser selecionados pela Congregação Literária, seguindo critérios como concisão, sistematização e qualidade de escrita. Caso os livros aprovados fossem insuficientes, o professor pode incluir outros materiais, desde que aprovados pela Congregação. Os estatutos também enfatizam o método de ensino, no qual os professores deveriam explicar definições e analisar proposições, relacionando-as com outros conceitos.
Os professores não estavam restritos aos compêndios e eram encorajados a fazer conexões entre os temas, demonstrando que o conhecimento é interconectado. Após cada aula, os professores deveriam revisar o conteúdo anterior, esclarecendo dúvidas dos alunos. Caso alguma dúvida fosse complexa, ela poderia ser discutida na aula seguinte. Além disso, os professores deveriam fornecer uma breve visão geral do conteúdo da próxima aula, permitindo que os alunos se preparassem com antecedência.
Os alunos tinham atividades adicionais, como a escrita de dissertações com base nos temas propostos pelos professores. Também participavam de exercícios orais aos sábados, nos quais
eram selecionados para debater e argumentar sobre os temas estudados.
Era nesse contexto esclarecido que professores e alunos do Seminário de Olinda estavam inseridos. E foi nesse contexto que se formou frei Caneca, partícipe da Revolução Pernambucana e um dos líderes da Confederação do Equador.
FREI CANECA E SEU DISCURSO REVOLUCIONÁRIO
Frei Caneca, nascido em 20 de agosto de 1779, na cidade de Recife, era filho de Domingos da Silva Rabello e Francisca Maria Alexandrina de Siqueira. Criado em uma família humilde na zona norte do Recife, ele recebeu o apelido “Caneca” devido ao trabalho de seu pai como fabricante de canecas (RIOS, 1983; MOREL, 2000). Sua ascendência incluía antepassados negros, indígenas e europeus vindos do Porto, em Portugal (TITO, 2017; MELLO, 2001; MOREL, 2000).
No Recife, as ordens religiosas eram uma oportunidade de ascensão social e ofereciam educação às crianças. Frei Caneca foi educado no Convento do Carmo do Recife, graças ao parentesco de sua mãe com um carmelita (MELLO, 2001). Aos 17 anos, ele ingressou na ordem carmelita, adotando o nome “Caneca” quando recebeu as ordens sacerdotais aos 22 anos (RIOS, 1983; MELLO, 2001; TITO, 2017).
Caneca obteve licença para aprimorar seus estudos no Seminário de Olinda, ficando, dessa maneira, em contato com o que “existia de melhor da literatura liberal dos teóricos europeus e norte-americanos” (TITO, 2017, p. 28).
Apesar de pesquisas, como a de Tito (2017), apontarem a possibilidade de frei Caneca ter estudado no Seminário de Olinda, nenhuma delas conseguia comprovar tal fato e muito menos precisar a data em que ele teria sido aluno. Porém, a nossa pesquisa conseguiu identificar, por meio de documentos, a lista de alunos matriculados no Seminário de Olinda, conforme demonstrado na Figura 1 a seguir.
Na lista acima, frei Caneca consta na relação de aluno “de fora” do curso de Filosofia. Conforme já verificamos nos Estatutos do Seminário de Olinda, havia no colégio estudantes numerários e extranumerários. Os primeiros eram os que moravam no Seminário e os últimos eram os que apenas estudavam na instituição. Na lista, essa divisão é posta como “seminaristas” e “de fora”. No caso de frei Caneca, ele era de fora não por ter posses e financiar seus estudos, mas por já fazer parte de uma ordem religiosa. Em resumo, frei Caneca cursou a disciplina de Filosofia no ano de 1800, ou seja, ele frequentou o Seminário
de Olinda quando da sua fundação, sendo o aluno da primeira turma de Filosofia.
O Seminário de Olinda foi um importante pilar nas mutações da sociedade, tendo sido, nas palavras de Morel (2000, p. 26), “um dos principais centros propagadores dessa mutação política e cultural da Igreja no Brasil”. Foi nesse importante centro que frei Caneca se tornou parte integrante dessas mutações, alterando o papel da Igreja da esfera literária para a esfera pública (MOREL, 2000).
No Seminário de Olinda, Frei Caneca “teve acesso pleno à biblioteca, onde pôde ler as principais obras de Voltaire, Rousseau, Montesquieu – principalmente os dois últimos, muito citados em seus escritos” (TITO, 2017, p. 10). Nessa biblioteca ele conseguiu completar suas leituras de clássicos na área do Direito, tal como Cícero e o pensador suíço Barão de Pufendorf (TITO, 2017).
Terminado o curso de Filosofia, em 1803 foi nomeado professor de Geometria e de Retórica, mas também ocupou outros cargos, como o de secretário do Frei Carlos de São José – que no futuro seria o bispo do Maranhão –, no convento carmelita recifense, em 1809 (MOREL, 2000).
Frei Caneca participou da Revolução Pernambucana de 1817, o que resultou em sua prisão e envio à Cadeia da Relação, na Bahia. Segundo Mello (2001), não há registros de sua participação nos eventos iniciais da revolta e sua presença só foi notada nas últimas semanas do movimento. Em sua defesa, alegou inocência e afirmou que as acusações foram baseadas em boatos disseminados por indivíduos imorais e vingativos. Durante o período de prisão, Frei Caneca transformou o cárcere em uma espécie de escola, ensinando diversas disciplinas aos demais presos, além de escrever poemas e compêndios de gramática. Após quatro anos de prisão, ele foi anistiado e retornou a Recife, onde passou a escrever e publicar regularmente.
Além de sua luta pela liberdade, também defendia a igualdade, opondo-se à aristocracia e ao preconceito racial, como evidenciado em suas “Cartas de Pítia a Damão”. Nesses escritos, publicados em jornais sob pseudônimos, ele ironicamente narrava os acontecimentos e criticava o governo brasileiro. No jornal Typhis Pernambucano, fundado por ele, Frei Caneca transmitiu sua mensagem de liberdade em um período de censura e restrições à imprensa. Ao longo de 28 números, sua escrita tornou-se cada vez mais agressiva devido à percepção do cerceamento da
liberdade do povo, instigando a formação de um governo próprio nas províncias.
A bravura do Frei e sua escrita com um tom forte pode ser verificada, por exemplo, no trecho, a seguir, do quarto número do Typhis Pernambucano, de 15 de janeiro de 1824. Nele Frei Caneca critica os portugueses que faziam parte do Império no Rio de Janeiro, expondo a relação de oposição entre os portugueses e os brasileiros. O número se inicia da seguinte forma:
Tão grande foi o vulcão que fez a sua exploração nesta capital do Brasil, que quanto mais se reflete sobre ele, tanto mais nos horroriza e faz tremer os corações mais intrépidos; e Deus queira que nós, na análise de sua natureza e consequências, não tenhamos a mesma sorte que Plínio no exame do Vesúvio; porém, que se segue daqui? Um novo ato do despotismo que a facção portuguesa contra os brasilienses se esforça em estabelecer no Brasil para melhor poder conseguir seus fins perversos; e quanto a nós, acabaremos gloriosos no nosso ofício de mostrarmos aos nossos compatriotas os perigos que bruxuleamos, a fim de que se possam prevenir e acautelar (CANECA, 2001, p. 326).
Neste discurso de Frei Caneca podemos atentar para dois pontos: os objetivos das publicações, que seguem uma estratégia de informar e fazer com que a população pense a respeito; e o conhecimento do Frei sobre a biografia do escritor latino Plínio, ao qual teve acesso no período em que esteve no Seminário de Olinda. Com isso, percebemos que a sua escrita é repleta de informação, ironia e conhecimento de diversas áreas, fruto da sua formação acadêmica.
Na edição número 6 do periódico, de 29 de janeiro de 1824, Frei Caneca traz notícias do Rio de Janeiro e de Pernambuco. Sobre o Rio de Janeiro, ele volta a atacar os ministros do Imperador D. Pedro, ao dizer que:
Quem não vos conhece, facção portuguesa absoluta, que vos compre!
Se não tivéssemos em vista a máxima lembrada e posta em prática por Montesquieu1 de “se não
esgotar de tal maneira um assunto, que se não deixa nada a fazer aos leitores”, nós faríamos ver que o novo fim a que s. m. se propõe na proclamação de 16 de novembro, de “ambicionar glória cada vez mais para si e para o Brasil”, é uma outra prova de que se pretende estabelecer no Brasil, não um império constitucional, sim uma monarquia absoluta [...] (CANECA, 2001, p. 343).
A crítica de Caneca vai no sentido de que se não existe uma Assembleia para debater uma Constituição e promulgá-la, então não se pode falar em império constitucional, pois não é guiado por uma Constituição, sendo assim, voltaríamos ao regime anteriormente vivenciado pelo Brasil. Além disso, Caneca traz para seu discurso Montesquieu, filósofo de vertente iluminista que fazia parte das leituras do Seminário de Olinda. Sobre a questão do absolutismo, ele fala mais abertamente ao expor os problemas e consequências da dissolução da Assembleia ao dizer que:
Podemos desfrutar os doces frutos da liberdade, que já temos principiado a gozar, sem termos representação nacional, sem Assembléia [sic] soberana que nos constitua de um modo digno do gênio livre dos brasileiros, do seu caráter brioso e da riqueza do nosso solo? Quanto vos enganais, infames aduladores, que seduzis o melhor dos príncipes! Retrocedei na estrada que principiastes bater. O Brasil há de ser livre da escravidão externa e interna; nem há de sujeitar-se mais ao orgulho e predomínio português, nem às arbitrariedades do sistema absoluto com que lisonjeias ao imperador para vossos interesses particulares. Sem representação nacional, sem cortes soberanas que elas mesmas formem a nossa Constituição, não há império.
1 Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu. Ele
foi um filósofo, escritor e político francês do século XVIII.
[...] conseqüência [sic] da dissolução da Assembléia [sic], se ela não for perda de tempo reunida, é a evaporação da liberdade política que proclamamos e por que nos temos sacrificado. A liberdade política é, como diz Montesquieu, De l’Esp. Des Lois, lib. 2, cap. 6, aquela tranqüilidade [sic] de espírito, que goza o cidadão, nascida da opinião que tem cada um da sua segurança. Para que esta exista, é necessário que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão, e jamais esta se pode encontrar e gozar naqueles estados em que se acham depositados nas mesmas mãos dois poderes, Legislativo e Executivo, pois pode-se temer que o mesmo soberano não faça leis tirânicas para ele as executar tiranicamente. E não se reunindo outra vez imediatamente a Assembléia [sic] dissolvida, ou convocando-se uma que não seja mais um mero conselho, que trabalhe sobre um corpo de leis imposto a uma Assembléia [sic] que, por si mesma, em conseqüência [sic] da soberania da nação que representa, não escolher as matérias que devem formar o objeto do pacto social, não ficam reunidos nas mesmas mãos os poderes Legislativo e Executivo? E não se hão de seguir todas as conseqüências [sic] do absolutismo? Que barreira haverá contra os ataques que o Executivo fizer aos direitos da nação? (CANECA, 2001, p. 345)
Caneca é firme em argumentar que sem uma Assembleia ou com uma Assembleia meramente consultiva, o Brasil estaria totalmente alheio às vontades do poder Executivo. E que isso reforça a ideia de que não haveria liberdade política. Observa-se também que para reforçar seus argumentos, mais uma vez, ele utiliza o iluminista Montesquieu.
Na edição do Typhis Pernambucano nº 7, de 12 de fevereiro de 1824, além das informações trazidas a respeito do Rio de Janeiro e de Pernambuco, Caneca também trouxe fatos relacionados à Bahia. Quanto ao Rio de Janeiro, Frei Caneca volta a criticar os conselheiros do imperador ao dizer que:
Talvez não tenha havido um príncipe em tão difíceis circunstâncias de acertar como o imortal Pedro I, rodeado de tantos egoístas que, procurando unicamente os seus interesses, a sua grandeza e elevação, tudo isto revestem dos interesses do príncipe e do bem do Estado. Não há intriga de que não hajam lançado mão para proibir que a verdade chegue à sua presença; pois estão certos que s. m. conhecendo-a, há de segui-la, e eles passarão pela dor de serem enganados em suas opiniões, feitos o desprezo e a fábula do povo (CANECA, 2001, p. 351)
O ataque aos ministros do imperador, que observamos fazer parte do discurso de Frei Caneca, na verdade, é um ataque indireto ao próprio imperador, pois ele possivelmente acreditava que um enfrentamento mais direto poderia trazer problemas na publicação de seu periódico.
Em seguida, ele começa a criticar o novo projeto de Constituição que teria sido organizado pelo império em menos de um mês.
Esta pressa nos indica ou que há de ter muitas falhas e imperfeições, o que já estava alinhavado de antemão. Por maior que seja a doutrina dos colaboradores do projeto, eles não estão na esteira dos Locks² , dos Hamiltons³ , nem em circunstâncias mais vantajosas que a dos redatores do desprezado; e ao mesmo tempo todos os senhores decênviros encarregados de muitos negócios do primeiro porte do império, e em tempos de tantas perturbações, perigos e estorvos, “celeritas improvida et caeca est” (CANECA, 2001, p. 351).
2 Possível referência a John Locke, filósofo inglês e um dos teóricos do Contrato Social.
3 Possível referência a Alexander Hamilton, primeiro-secretário do Tesouro dos Estados Unidos da América no século XVIII e delegado da convenção que ratificou a Constituição estadunidense.
Nesse trecho Frei Caneca reforça a sua teoria de que a dissolução da Assembleia foi algo arquitetado pelo império, como ele já havia demonstrado nos números anteriores.
Observa-se também que a citação em latim a que Caneca faz referência tem como tradução “a pressa é imprevidente e cega” e foi extraída de um texto de Tito Lívio – um dos autores que fazia parte do currículo e, consequentemente, da biblioteca do Seminário de Olinda.
Continuando sua exposição dos fatos decorrentes do novo projeto de Constituição, Frei Caneca argumenta que ele foi apresentado ao Senado, que em três dias publicou edital informando que nenhuma mudança seria realizada no projeto porque esta seria a Constituição mais liberal existente e que nem mesmo uma nova Assembleia Legislativa o faria melhor. Quanto à Bahia, há um relato da chegada da informação da dissolução da Assembleia Legislativa no dia 12 de dezembro de 1823, revoltando a população, que por sua vez dividiu-se em bandos em busca de vingança, atacando, assim, aos inimigos – obviamente os portugueses – durante três dias. Relata-se também a constituição de um conselho para tratar da segurança da província que resultou em um documento de 20 artigos que seriam encaminhados ao imperador, expondo a discordância da província na dissolução da Assembleia que deveria, de acordo com o documento produzido, ser revertida o mais breve possível. No que tange a Pernambuco, Frei Caneca retoma a questão da junta que foi eleita em substituição ao governo provisório abordado no número 4 do seu periódico. Naquele número, Frei Caneca expõe que o próprio governo que era presidido por Francisco Paes Barreto admitiu a incompetência para gerência da província. No entanto, no número 7 há o relato de que Francisco Paes Barreto retornou à província oficiando ao presidente eleito, Manuel de Carvalho Paes de Andrade, e Câmaras do Recife e de Olinda a requisição para posse como presidente político. Frei Caneca relembra ainda a experiência vivenciada pela província durante o governo de Francisco Paes de Andrade, ao dizer que:
A dura experiência de 15 meses de seu governo não admite objeção; pois que as monstruosidades, arbitrariedades, patronato aos nossos inimigos, o nepotismo a bem de seus parentes, atentados
contra os mais sagrados direitos dos cidadãos, o ostracismo de muitas pessoas probas desta praça, estorvado felizmente por um dos triúnviros, a honrosa sessão de 26 de novembro do ano passado [...] (CANECA, 2001, p. 358).
Em seguida, Caneca menospreza a nomeação de Andrade para presidente, ao dizer que:
Sendo esta inaptidão para o governo natural e inseparável do morgado, pode ser aniquilada e substituída por talentos de ciência, de valor, de discrição, indispensáveis para se bem governarem os povos, só porque s. m. o nomeou presidente? Parece-nos que não (CANECA, 2001, p. 359).
Apesar do discurso de Frei Caneca aparentar que ele estimula a desobediência de uma ordem imperial, logo em seguida, no mesmo número, há a clara demonstração de que não é disso que se trata seu conjunto de argumentos ao dizer que:
Como, finalmente, os caminhos de s. m. não são os do capricho, sim os da verdade, da justiça, da honra; e os fins a que ele se propõe, a paz dos povos, a felicidade dos seus súditos e a glória do império [...] Deve-se sobrestar na execução da carta imperial, até que s. m., melhor informado, nos dê um presidente digno do lugar, digno da nossa confiança (CANECA, 2001, p. 359).
Então, a fala de Frei Caneca vai no sentido de informar ao imperador sobre tudo o que aconteceu na província e que, até que ele seja devidamente oficiado, nenhuma atividade de posse deveria ser tomada em Pernambuco.
Já quanto ao projeto de Constituição oferecido por D. Pedro I, Frei Caneca apresentou seu voto em reunião da Assembleia do dia 6 de junho de 1824. O voto, na verdade, foi apenas uma orientação dada por Caneca frente ao convite de opinar, como membro do corpo literário da cidade, sobre o tema, ou seja, de caráter apenas consultivo.
Ele inicia o seu voto explicando o que é Constituição e fazendo uma diferenciação entre ela e um projeto de Constituição. Nas palavras dele:
Uma Constituição não é outra coisa que a ata do pacto social, que fazem entre si os homens quando se ajuntam e se associam para viver em reunião ou sociedade. Esta ata, portanto, deve conter a matéria sobre o que se pactuou, apresentando as relações em que ficam os que governam e os governados, pois que sem governo não pode existir sociedade. Estas relações a que se dão o nome de deveres e direitos, devem ser tais que defendam e sustentem a vida dos cidadãos, a sua liberdade, a sua propriedade, e dirijam todos os negócios sociais à conservação, bem-estar e vida cômoda dos sócios, segundo as circunstâncias de seu caráter, seus costumes, usos e qualidade do seu território etc. Projeto de Constituição é o rascunho desta ata, que ainda vai se passar a limpo, ou apontamentos das matérias que hão de ser ventiladas no pacto, ou, usando de uma metáfora, é o esboço de uma pintura, isto é, a primeira delineação, nem perfilada, nem acabada. Portanto, o projeto oferecido por s. m. nada mais é do que o apontamento de matérias, sobre o que s. m. vai contratar conosco (CANECA, 2001, p. 560).
Após essa aula sobre Constituição e projeto de Constituição, Frei Caneca começa a analisar o projeto enviado pelo imperador. Inicialmente, ele expõe três motivos que levariam à não aceitação do projeto por contrariar a emancipação e Independência do Brasil de Portugal, dizendo que:
[...] 1º) no projeto, não se determina positiva e exclusivamente o território do império, como é de razão e o têm feito sabiamente as Constituições mais bem formadas da Europa e América, e com isso se deixa uma fisga, para se aspirar à união com Portugal, o que não só trabalham por conseguir
os déspotas da Santa Aliança e o rei de Portugal, como o manifestam os periódicos mais apreciáveis da mesma Europa e as negociações do ministério português com o Rio de Janeiro e correspondência daquele rei com o nosso imperador, com o que s. m. tem dado fortes indícios de estar de acordo [...], 2º) porquanto ainda no primeiro artigo se diga que a nação brasileira não admite com outra qualquer laço algum de união ou federação que se oponha à sua independência, contudo, esta expressão é para iludir-nos; pois que o Executivo, pela sua oitava atribuição (art. 102), pode ceder ou trocar o território do império ou de possessões a que o império tenha direito, e isto independentemente da Assembléia [sic] Geral; 3º) porque, jurando o imperador a integridade e indivisibilidade do império, não jura a sua independência (CANECA, 2001, p. 560-561).
Na sequência, Frei Caneca faz críticas a vários artigos do projeto de Constituição, culminando na sua maior crítica que, em uma fala enfática, argumenta sobre o poder que ele daria ao imperador, ao dizer que:
Os conselhos das províncias são uns meros fantasmas para iludir os povos; porque, devendo levar suas decisões à Assembléia [sic] Geral e ao Executivo conjuntamente, isto bem nenhum pode produzir às províncias; pois que o arranjo, atribuições e manejo da Assembléia [sic] Geral faz tudo em último resultado depender da vontade e arbítrio do imperador, que arteiramente evoca tudo a si, e de tudo dispõe a seu contento e pode oprimir a nação do modo mais prejudicial, debaixo das formas da lei. Depois, tira-se aos conselhos o poder de projetar sobre a execução das leis, atribuição esta que parece de suma necessidade ao conselho, pois que este, mais do que nenhum outro, deve de estar ao fato das circunstâncias do tempo, lugar etc., da sua província, conhecimentos
indispensáveis para a cômoda e frutuosa aplicação das leis (CANECA, 2001, p. 563).
Ao final desta fala, enfim, o Frei revela a sua opinião sobre a aceitação ou não do projeto de Constituição do Imperador D. Pedro I – que já estava bem explícita ao longo do seu voto – ao dizer que:
Estas são as coisas maiores que minha fraqueza pode descobrir no projeto em questão, e que julgo de sumo perigo para a independência do império, sua integridade, sustentação da liberdade dos povos e conservação sagrada da sua propriedade, e estas mesmas coisas as expus sumariamente, ou levemente tocadas, por não admitir a presente conferência discursos extensos. Talvez eu nestas me engane, e não tenha idéias [sic] exatas, e nem saiba combiná-las e conhecer-lhes a necessária relação que há entre si, por cujo motivo me pareça mau, opressor e contraditório o projeto; mas no entanto é o que por hora entendo e, sendo chamado para dar o meu voto, hei de votar, não pelas idéias [sic] que os outros têm, sim pelas minhas; portanto digo que pelo que é em si esta peça política, este rascunho de Constituição não se deve admitir (CANECA, 2001, p. 563).
Frei Caneca foi muito cauteloso no seu discurso, retomando a ideia lançada inicialmente que o projeto seria um rascunho da Constituição e que, portanto, passível de críticas e inclusive da sua não aceitação por parte das Câmaras tal como estava. Então, ele chega a sua opinião de que tal projeto não se devia ser admitido.
Para deixar mais clara a situação que o país vivia, ele continua seu argumento, sendo mais enfático ainda e criticando mais uma vez a dissolução da Assembleia Constituinte que deveria ser a responsável pela discussão de um projeto de Constituição, ao dizer que:
É princípio conhecido pelas luzes do presente século, e até confessado por s. m., que a soberania,
isto é, aquele poder sobre o qual não há outro, reside na nação essencialmente; e deste princípio nasce como primária conseqüência [sic] que a mesma nação é quem se constitui, isto é, quem escolhe a forma de governo, quem distribui esta suma autoridade nas partes que bem lhe parece, e com as relações que julga mais adequadas ao seu argumento, segurança da sua liberdade política e sua felicidade; logo é sem questão que a mesma nação, ou pessoa de sua comissão, é quem deve esboçar a sua Constituição, purificá-la das imperfeições e afinal estatuí-la; portanto como s. m. i. não é nação, não tem soberania, nem comissão da nação brasileira para arranjar esboços de Constituição e apresentá-los, não vem esse projeto de fonte legítima, e por isso se deve rejeitar por exceção de incompetência. Muito principalmente quando vemos que estava a representação nacional usando da sua soberania em constituir a nação, e s. m., pelo mais extraordinário despotismo e de uma maneira mais hostil, dissolveu a soberana Assembléia [sic] e se arrogou o direito de projetar Constituições (CANECA, 2001, p. 563-564).
Já no início deste trecho, Caneca expõe o princípio das luzes, demonstrando sua veia iluminista. Em um discurso que nos remete ao discurso do Padre Miguelinho na inauguração do Seminário de Olinda.
Para finalizar, Frei Caneca reitera seu voto ao dizer que:
[...] eu sou de voto que se não adote e muito menos jure o projeto de que se trata, por ser inteiramente mau, pois não garante a Independência do Brasil, ameaça a sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da nação, e nos arrasta ao maior dos crimes contra a divindade, qual o perjúrio, e nos é apresentado da maneira mais coativa e tirânica (CANECA, 2001, p. 566).
Com isso, Frei Caneca finaliza o voto de maneira direta e com uma crítica contundente ao imperador, insinuando que
ele é um tirano e que age com coação para que o seu projeto de Constituição seja posto como a Constituição brasileira. Essa coação já havia sido levantada pelo frei anteriormente quando argumentou que o imperador só estava tendo audiências com quem jurasse a Constituição.
Dias após o voto de Frei Caneca, foi publicado o número 24 do Typhis Pernambucano. A publicação saiu no dia anterior à eclosão da Confederação do Equador, dia 1º de julho de 1824. Nela, Frei Caneca se detém apenas a Pernambuco. No número, Frei Caneca relata o ataque promovido por Francisco Paes Barreto – aquele que foi nomeado por D. Pedro I para ser o presidente de Pernambuco – e seus companheiros ao governo de Manuel de Carvalho. Há informações de que do ataque ficaram três mortos e 12 feriados do lado de Manuel de Carvalho e 43 mortos do lado de Francisco Paes Barreto. Ele relata também que a população se viu revoltada com o ataque, ao dizer que:
O povo se achava gravemente ofendido com as perfídias de alguns portugueses, daqueles mesmos em que mais confiava; o povo se via ameaçado indignamente por alguns que esperavam um momento de segurança para desabafarem seus ódios aos brasileiros; o povo via estrangeiros ao soldo do Brasil, feitos os instrumentos do despotismo; o povo ouvia dizer-se que em Portugal se achavam tropas francesas prontas a invadir o Brasil, e que no Rio de Janeiro uma esquadra francesa estava à disposição do imperador, que é olhado como o primeiro e maior inimigo dos brasileiros. Era isto mais que bastante para noutra qualquer nação, em uma tal conjuntura, haver horrorosas desgraças; mas o caráter de doçura dos pernambucanos, a par da presença e falas do presidente e comandante de armas, suspendeu os efeitos e estragos da vingança (CANECA, 2001, p. 493).
Na continuidade do número, Frei Caneca posta um comunicado. Este é parte das “Bases para a Formação do Pacto Social”, que, segundo consta, foram “redigidas por uma sociedade
de homens de letras”. No número foram descritos os 19 primeiros artigos do documento, conforme a seguir:
Sendo o fim de toda a reunião dos homens em sociedade a conservação dos direitos naturais, civis e políticos, estes direitos devem ser a base do pacto social; e o seu reconhecimento e declaração devem preceder à Constituição, a qual lhes serve de fiador.
Art. 1º) Os direitos naturais, civis e políticos do homem são a liberdade, a igualdade, a segurança, a prosperidade e a resistência à opressão.
2º) A liberdade consiste em poder fazer tudo, contanto que não seja contrário aos direitos do outro. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem limite naquilo que assegura aos outros membros o gozo destes mesmos direitos.
3º) A conservação da liberdade depende da submissão à lei, que é a expressão da vontade geral. Tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordena.
4º) A todo homem é livre manifestar os seus sentimentos e sua opinião sobre qualquer objeto.
5º) A liberdade da imprensa, ou qualquer outro meio de publicar estes sentimentos, não pode ser proibido, suspenso ou limitado.
6º) A igualdade consiste em que cada um possa gozar dos mesmos direitos.
7º) A lei deve ser igual para todos, recompensando ou punindo, protegendo ou reprimindo.
8º) Todos os cidadãos são admissíveis a todos os lugares, empregos e funções públicas. Os povos livres não conhecem outros motivos de preferência, senão os talentos e virtudes.
9º) A segurança consiste na proteção concedida pela sociedade a cada cidadão para conservação da sua pessoa, dos seus bens e dos seus direitos.
10º) Nenhuma pessoa deve ser chamada a juízo, acusada, presa nem detida, senão nos casos determinados pela lei, e segundo as formas que ela tem prescrito. Outro qualquer ato, exercitado contra
um cidadão, é arbitrário, e por conseqüência [sic] tirânico.
11º) Aqueles que solicitarem, expedirem, assinarem ou fizerem executar atos arbitrários são réus de culpa e devem ser punidos.
12º) Os cidadãos contra quem se intentar executar iguais atos têm o direito de repelir a força pela força; mas todo cidadão chamado ou embargado pela autoridade da lei, e nas formas prescritas por ela, deve instantaneamente obedecer e tornar-se-á criminoso se resistir.
13º) Deve ser severamente reprimido pela lei todo o rigor que se obrar contra um homem que ainda se não verificou ser culpado, posto que se possa assegurar da sua pessoa para conhecimento do crime que se lhe imputa.
14º) Ninguém deve ser punido, senão em virtude de uma lei estabelecida, promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada.
15º) A lei que punir os delitos cometidos antes de ela existir será um ato arbitrário. O efeito retroativo dado à lei é um crime.
16º) A lei não deve decretar senão penas restritivas e evidentemente necessárias à segurança geral. Elas devem ser proporcionadas aos delitos e úteis à sociedade.
17º) O direito de propriedade consiste nisto, em que todo homem seja senhor de dispor à sua vontade de seus bens, dos seus capitais, dos seus rendimentos e indústria.
18º) Nenhum gênero de trabalho, de comércio e de cultura pode ser proibido a cidadão algum. Ele pode fabricar, vender e transportar toda a espécie de produção.
19º) Todo homem pode entrar no serviço de outro pelo tempo que quiser, porém, não pode vender-se nem ser vendido. A sua pessoa não é uma propriedade alienável (CANECA, 2001, p. 494-495).
Ao final do décimo nono artigo há a informação de que continuará em outro número. Possivelmente isto ocorreu para que a publicação não ficasse muito extensa, já que, além deste trecho, havia diversas outras informações, conforme já mencionado. Vale ressaltar que os artigos apontados são as bases da Confederação do Equador. O movimento iria eclodir no dia seguinte e, possivelmente, Frei Caneca já sabendo disso – já que era um dos líderes do movimento – escolheu este dia para fazer a publicação.
No número 26 do Typhis Pernambucano, de 15 de julho de 1824, Caneca traz a continuação das “Bases para a Formação do Pacto Social”. São mais 13 artigos, que somados ao número anterior que apresentou as bases – número 24 – contabilizam 32 artigos, conforme a seguir:
20º) Nenhuma pessoa pode ser privada da menor porção da sua propriedade sem seu consentimento, só no caso de haver necessidade pública, e esta legalmente contestada, que o exija evidentemente e debaixo de uma justa e prévia indenização.
21º) Nenhuma contribuição poderá ser estabelecida, senão para utilidade geral, e para socorrer as necessidades públicas. Todos os cidadãos têm o direito, pessoalmente ou por seus representantes, de concorrer para o estabelecimento das contribuições.
22º) A instrução elementar é necessária a todos, e a sociedade a deve prestar igualmente a todos os seus membros.
23º) Os socorros públicos são uma dívida sagrada da sociedade, e pertence à lei determinar a sua extensão e aplicação.
24º) A segurança destes direitos repousa na soberania nacional.
25º) Esta soberania é uma, indivisível, imprescritível e inalienável.
26º) Ela reside essencialmente no povo inteiro e cada um cidadão tem o direito de concorrer para o seu exercício.
27º) Nenhuma reunião parcial dos cidadãos, nenhum indivíduo pode atribuir-se a soberania,
nem exercer autoridade alguma, nem preencher qualquer função, sem uma delegação formal da lei. 28º) Não pode existir segurança onde os limites das funções públicas não são claramente determinados pela lei e onde a responsabilidade de todos os funcionários públicos não é segura.
29º) Todos os cidadãos são obrigados a concorrer para esta segurança e a dar força à lei, quando são chamados em seu nome.
30º) Os homens reunidos em sociedade devem ter um meio legal de resistir à opressão.
31º) Há opressão quando uma lei viola os direitos naturais, civis e políticos que ela deve afiançar. Há opressão quando uma lei é violada pelos funcionários públicos na sua aplicação aos fatos individuais. Há opressão quando os atos arbitrários violam os direitos dos cidadãos contra expressão da lei. Em todo governo livre, o modo de resistência a estes diferentes atos de opressão deve ser regulado da lei.
32º) Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e mudar a sua Constituição. Uma geração não tem o direito de sujeitar às suas leis as gerações futuras, e toda a herança nas funções é absurda e tirânica (CANECA, 2001, p. 508-509).
Frei Caneca dividiu a publicação dos artigos das “Bases para a Formação do Pacto Social” em dois números – 24 e 26. No entanto, como pode ser constatado, os números não foram sequenciais. Isto ocorreu, possivelmente, porque Frei Caneca precisou atacar mais incisivamente o imperador no número anterior, já que aquele número foi publicado dias após a eclosão da Confederação do Equador. Com isso, os demais artigos foram publicados apenas neste número. Em outro momento, no número 26, Caneca faz uma referência ao Seminário de Olinda ao argumentar sobre o bravo espírito do povo de Olinda. Ele diz:
Em uma cidade em que há um Seminário, o primeiro e o maior de todo o Brasil, pelas cadeiras de língua francesa, latina e grega, retórica, história universal e geografia, filosofia racional e moral,
história natural, história eclesiástica, teologia e prática, geometria, música, desenho e primeiras letras, e pelos hábeis professores destas ciências e artes (CANECA, 2001, p. 510).
Fica evidente a importância do Seminário de Olinda para Frei Caneca, uma vez que, passados 24 anos da sua entrada como aluno, ele o traz para dentro do seu texto em meio a uma revolução da qual fazia parte.
Por causa da sua escrita, Frei Caneca foi associado à Confederação do Equador, perseguido e preso. Quando da sua prisão, ele estava na companhia de uma tropa do movimento que fugiu de Recife após o fracasso dessa nova revolução pernambucana. As tropas passaram por Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará.
Ao realizar este caminho, Caneca escreveu todo o seu itinerário, que se iniciou em 16 de setembro de 1824. Em alguns momentos do itinerário, Caneca descreve os lugares por onde a tropa passa, incluindo detalhes da vegetação, como no seguinte trecho:
[...] No alto da serra da Taquaritinga vimos pela primeira vez uma carnaubeira, que é uma espécie de palmeira de muito uso no sertão. Dela fazem cumeeiras, frechais, caibros e ripas. Das palhas tecem-se [sic] esteiras e cordas para diversos usos. Das raízes, além de serem uma espécie de salva antivenérea, se sustentam os porcos e outros animais. Das folhas se tira cera e das bruscas onde se acham os frutos, usam para aquecer fornos [...] (CANECA, 2001, p. 583).
A riqueza de detalhes que descreve a vegetação se coaduna com a formação de Frei Caneca no Seminário de Olinda, pois as aulas que cursou tinham como objetivo preparar os estudantes para serem “Filósofos da Natureza”, como constam em seus estatutos.
O itinerário da tropa rebelde chegou ao fim dois meses após o seu início, quando se dirigiam para o Crato. Durante o trajeto, ocorreu um confronto com as tropas da Coroa, resultando na proposta de perdão para aqueles que se rendessem. Como
resultado, muitos oficiais e soldados renderam-se. No entanto, todos os oficiais de destaque, membros da tropa rebelde, e os eclesiásticos presentes foram presos pelas tropas da Coroa e levados de volta a Pernambuco.
Ao chegar a Recife, em 17 de dezembro, os presos foram enviados para várias prisões. Frei Caneca, padre Mercês, Rangel, Carneirinho, major José Maria Ildefonso, Agostinho e padre Inácio Bento foram enviados a um calabouço no Forte do Brum, usado para guardar as cabeças dos enforcados. No dia seguinte, 18 de dezembro, Vieira e Veras, que haviam fugido, foram capturados e presos. Nesse mesmo dia, foi instalada uma comissão para julgar os presos, mas devido ao fato de ser um domingo, o julgamento só ocorreu em 20 de dezembro.
O julgamento de Frei Caneca, Agostinho Bezerra Cavalcanti e Francisco de Souza Rangel foi conduzido pela Comissão Militar em Pernambuco, presidida pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva. Os outros membros da comissão foram nomeados pelo presidente e incluíam o coronel Salvador José Maciel, coronel Escragnolle, coronel Manuel Antônio Leitão Bandeira, tenente-coronel Francisco Vicente de Souto Maior e o desembargador Tomás Xavier Garcia. O coronel Escragnolle foi responsável por interrogar os réus, enquanto o desembargador Tomás Xavier Garcia atuou como juiz relator.
O processo de julgamento incluiu documentos oficiais do Império que formalizaram a constituição da Comissão Militar. Além disso, o interrogatório de Frei Caneca feito pelo coronel Escragnolle também faz parte do processo. As perguntas abordaram informações pessoais do réu, os motivos de sua prisão, seus escritos publicados, suas ações em apoio ao movimento da Confederação do Equador e sua fuga com a tropa rebelde. O processo também incluiu o interrogatório de oito testemunhas e a defesa escrita de Frei Caneca.
Durante o interrogatório, Frei Caneca foi questionado sobre sua identidade, naturalidade e idade. Ele também foi perguntado sobre o motivo de sua prisão, ao qual respondeu que foi preso por estar na divisão de tropas que se dirigiram ao interior da província quando o Exército Imperial entrou em ação. Outra pergunta foi feita sobre a publicação de seus escritos. Frei Caneca admitiu ser o redator do periódico Typhis e afirmou que suas ideias eram as mesmas encontradas em outros jornais, inclusive da corte. Ele também mencionou que sempre agiu
dentro dos limites estabelecidos pela lei da liberdade de imprensa, direcionando suas críticas aos abusos públicos ao ministério.
Da data em que chegou à cadeia, 17 de dezembro, até o dia da sua sentença, 23 de dezembro de 1824, passaram-se apenas sete dias. Sendo assim, é perceptível que a condenação de Frei Caneca já estava sacramentada, pois em apenas sete dias foram arroladas testemunhas, identificadas “provas”, realizados os interrogatórios, analisada a defesa escrita e chegaram a um veredicto. Eficiência maior não poderia existir.
A sentença que Frei Caneca recebeu, de acordo com a legislação supracitada, foi a pena de morte na forca. O cumprimento da pena foi executado no dia 13 de janeiro de 1825, mas não conforme consta na sentença, pois os seus carrascos desobedeceram a ordem de enforcá-lo, tendo, então, sido morto por fuzilamento pela tropa ali presente.
CONCLUSÃO
A Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador de 1824 foram dois movimentos revolucionários ocorridos no Nordeste brasileiro com viés emancipacionista e que contou com a participação de religiosos católicos, alguns deles advindos do Seminário de Olinda.
O Seminário de Olinda refletia as mudanças da Europa e contava com professores influenciados pelo Iluminismo, como Padre Miguelinho. Entre seus estudantes, estava Frei Caneca, partícipe da Revolução Pernambucana e um dos líderes da Confederação do Equador. Ele cursou Filosofia por dois anos, com aulas diárias, abrangendo Filosofia Racional, em que estudava Lógica e Metafísica; Filosofia Moral, estudando Ética; e Filosofia Natural, estudando Física Experimental, História Natural e Química.
Em seu julgamento, em 1818, Frei Caneca negou participação no movimento de 1817, embora tenha sido condenado à prisão na Bahia. Libertado em 1821, após receber perdão da coroa portuguesa, ele retornou a Recife. Não há provas sólidas de sua participação na Revolução de 1817, mas sabe-se que seus escritos começaram a surgir nesse período.
Frei Caneca desempenhou um papel importante no movimento de 1824 – que é considerado uma continuação
dos anseios de liberdade de 1817 –, utilizando o jornal Typhis Pernambucano para divulgar os atos autoritários do Imperador D. Pedro I e incitar a sociedade à indignação. Por causa de seus escritos, ele foi preso e submetido a um julgamento sumário. Os escritos de Frei Caneca refletem elementos presentes no cotidiano do Seminário de Olinda, como a formação cidadã, a busca pela liberdade e a valorização da razão e da filosofia. A liberdade, inclusive, se faz presente na oração acadêmica da inauguração do Seminário de Olinda feita pelo professor Padre Miguelinho – que foi um dos líderes da Revolução Pernambucana. Contudo, não se pode afirmar categoricamente que o Seminário de Olinda influenciou diretamente o discurso revolucionário de Frei Caneca, mas há como inferir que os ensinamentos ali apreendidos, tanto como estudante quanto como pesquisador dessa escola-seminário, foram importantes na sua formação intelectual que culminaram em seus textos. Por fim, ainda que a afirmação categórica quanto à influência do Seminário de Olinda no discurso de Frei Caneca – e consequentemente na Confederação do Equador – não possa ser feita, o que não nos resta dúvida é de que existem elementos nos seus textos que remetem indiretamente ao colégio, como os autores citados nos seus escritos, o discurso alinhado com a oração acadêmica de padre Miguelinho e a busca pela verdade, configurando em uma influência indireta no seu discurso.
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“Progresso ilimitado”e “passado enraizado em sedimentos podres”: o passado colonial, a Revolução Pernambucana de 1817 e a Independência nas narrativas de Francisco Muniz Tavares e Manoel Bomfim
RESUMO
O objetivo deste trabalho é traçar um diálogo entre as leituras de Manoel Bomfim e Francisco Muniz Tavares acerca da Revolução Pernambucana de 1817 e da Independência de 1822. Mais precisamente, o que se pretende é compreender de que forma ambos os autores, em que pese seus contextos discursivos distintos, inscrevem esses dois acontecimentos na narrativa mais ampla da história brasileira. Colocando em interlocução suas propostas interpretativas, que atribuem grande centralidade ao movimento pernambucano para a história nacional, será possível apreender aspectos comuns que informam uma perspectiva historiográfica mais crítica e menos harmônica da história nacional. Nessa perspectiva, assume centralidade a identificação de passados ainda presentes que constrangem o progresso nacional, mesmo após a emancipação política de 1822.
Palavras-chave: Revolução Pernambucana; Francisco Muniz Tavares; Tempo Histórico; Manoel José Bomfim.
INTRODUÇÃO
Neste texto, pretendo estabelecer um diálogo entre as formas como Manoel Bomfim e Francisco Muniz Tavares dão sentido à Revolução Pernambucana de 1817 e à Independência de 1822, inscrevendo esses dois acontecimentos no âmbito mais amplo da história e do tempo histórico nacional. Para tanto, buscarei compreender como Bomfim se apropria do livro História da Revolução de Pernambuco em 1817, escrito pelo pernambucano Muniz Tavares e publicado em 1840. Tal obra recebe grande foco na narrativa de Bomfim sobre o movimento de 1817. Colocando em diálogo os dois autores, que consideraram a Revolução de Pernambuco como um evento fundamental para a história nacional, creio ser possível reconhecer, para além das especificidades de seus respectivos contextos e propostas interpretativas, traços comuns que constituem uma perspectiva historiográfica mais crítica e menos harmônica da história brasileira.
Nesse sentido, a leitura que proponho dará maior destaque ao livro O Brasil na história: deturpação das tradições e degradação
política, publicado pela primeira vez por Bomfim em 1930. A escolha de enfatizar esse livro decorre, primeiramente, do fato de que é nele que o intelectual sergipano desenvolve de modo mais aprofundado sua crítica à escrita da história nacional. Para além disso, ela também se justifica por ser esta a obra em que Bomfim interpreta de forma mais detida os eventos de 1817, dialogando com os escritos de Francisco Muniz Tavares. Conforme buscarei apontar ao longo do trabalho, o entendimento das formas de dar sentido ao movimento de 1817 é um caminho profícuo para a compreensão dos modos pelos quais cada um dos autores interpreta o próprio processo de Independência. Isso porque, no que tange ao acontecimento de 1822, Bonfim e Muniz Tavares assumirão perspectivas profundamente distintas.
Partindo desse objetivo, o texto está organizado em dois momentos: primeiramente, discutiremos de modo muito breve as trajetórias intelectuais de Muniz Tavares e Bomfim. Então, passaremos a refletir sobre as concepções de história e de tempo histórico presentes em cada um desses autores, destacando especialmente de que modo eles compreendem o passado colonial na sua relação com a temporalidade da nação brasileira. Em um segundo momento, a ênfase da análise recairá sobre o modo como Bomfim e Muniz Tavares dão sentido à Revolução de Pernambuco de 1817 e ao processo de Independência de 1822, articulando esses eventos entre si e com a história nacional.
Para tanto, explorarei como Bomfim caracteriza a produção de Muniz Tavares, buscando entender de que forma o intelectual sergipano afirma o caráter moderno e a atualidade das formulações do letrado de Pernambuco. Ao longo do texto, proponho-me a identificar como ambos compartilham de alguns pressupostos bastante decisivos acerca da história brasileira, o que nos levará a refletir sobre o modo pelo qual as suas narrativas enfatizam a presença de passados indesejados que afligem e retardam o progresso nacional.
* Francisco Muniz Tavares (1793 – 1876) morreu cerca de oito anos após o nascimento de Manoel José Bomfim (1868 – 1932). O letrado pernambucano foi um membro do clero que integrou a geração que participou do processo de Independência e da construção do Estado imperial brasileiro, ocupando cargos eclesiásticos, diplomáticos e políticos. Esteve envolvido na Revolução de 1817,
nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte de 1823. Além disso, foi Deputado geral nos anos 1840 e um dos opositores do avanço do chamado “Regresso conservador”, acusando tal movimento de nutrir pretensões absolutistas e recolonizadoras. No âmbito da atividade letrada, Muniz Tavares foi bastante ativo na imprensa durante as décadas de 1830 e 1840, período em que se dá a abertura do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, e que se intensifica a apropriação do Romantismo no Brasil (RICUPERO, 1998). Foi nesse contexto, marcado pela instabilidade política e por diversos movimentos de insurgência, em que ele escreveu sua história do movimento pernambucano de 1817, publicada em 1840 1 . Em um primeiro momento, o livro de Muniz Tavares não logrou grande repercussão no IHGB, ainda que tenha sido doado à instituição por sócios importantes. Contudo, fora do Instituto, a obra foi bastante discutida, sendo utilizada como referência para outros livros que se propunham a narrar a história nacional, tais como a História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen e o Compêndio da História do Brasil, de José Ignácio de Abreu e Lima. Além disso, nas décadas finais do século XIX e no início do século XX, o escrito de Muniz Tavares receberia novas edições, sendo apropriado de modo muito positivo por diversos autores brasileiros, particularmente de origem nordestina. Exemplar a esse respeito é a avaliação feita por Manuel de Oliveira Lima na reedição do livro de Muniz Tavares publicada no contexto das comemorações do centenário da Revolução de Pernambuco, em 1917: “Foi imparcial sobretudo porque foi verdadeiro, o título aliás que mais reclamava para a sua narração. Esta não tem hoje que ser emendada nem alterada” (LIMA, 1917, p. v). Segundo Oliveira Lima, portanto, a “verdade” contida no livro de Muniz Tavares era de tal modo incontestável que não dependia de alterações nem de reparos. Já a trajetória política de Manoel Bomfim está atrelada à queda do Império e, sobretudo, às primeiras décadas da República.
1 Para uma análise do livro História da Revolução de Pernambuco em 1817, enfatizando particularmente as formas de figuração do tempo histórico nacional nele presentes, ver o trabalho: “Uma revolução em
tempo inoportuno: figurações do tempo histórico nacional na História da Revolução de Pernambuco em 1817, de Francisco Muniz Tavares” (SILVA, 2022).
Médico, escritor, jornalista, deputado e uma figura importante para a educação pública brasileira, Bomfim tem uma produção bem mais extensa do que a de Muniz Tavares, a qual perpassou diversos campos do conhecimento. Apesar da permanência de marcas da “tradição imperial”, como sugere Angela Alonso, o contexto intelectual do letrado sergipano foi, de um lado, uma grande diversidade de ideias europeias em circulação no Brasil, sobretudo o positivismo, o cientificismo e as novas vertentes do pensamento liberal; e, de outro, os debates travados pela “geração de 1870”, que produziu apropriações dos novos movimentos intelectuais europeus a partir do diálogo com o contexto discursivo brasileiro e com projetos reformistas de diversos matizes (ALONSO, 2002).
Apesar dessas importantes distinções contextuais que os separam, as concepções de história de Bomfim e Muniz Tavares possuem pressupostos comuns, alguns dos quais, inclusive, explicitados pelo intelectual sergipano. Tais afinidades se exprimem quando os letrados expõem suas visões acerca do sentido, das épocas e dos ritmos do tempo histórico. Em ambos os casos, há a concepção de que a história está imbuída de um sentido que lhe é intrínseco e que se realiza através do tempo. Há, portanto, a adesão a aspectos constitutivos das formas de temporalização que emergem na modernidade ocidental europeia e que circulam por espaços colonizados (KOSELLECK, 2014; KOSELLECK, 2006; KOSELLECK, 2020).
Nesse sentido, gostaria de fazer referência a um trecho do livro O Brasil na História, de Bomfim. Comentando uma passagem de Muniz Tavares, o sergipano diz: “Mais de uma vez, o seu pensamento subiu às grandes verdades: “O espírito humano no progresso do melhoramento é ilimitado: fraco para tudo que executar, é ao menos forte na sua concepção” (BOMFIM, 1930, p. 374). O trecho citado por Bomfim está presente no primeiro capítulo da obra de Muniz Tavares. Nele, por meio de conceitos e metáforas, o pernambucano enquadra a história brasileira em uma concepção progressista de tempo histórico:
É de se observar que a posse de um bem gera o desejo de outros; o espírito humano no progresso do melhoramento é ilimitado: fraco para tudo executar é ao menos forte na sua concepção. As vantagens apontadas eram como uma gota d’água
lançada no imenso Oceano. Elas descobriam os tesouros, que o país poderia recolher entregue a si mesmo, ou debaixo do influxo de melhor sistema. Além disso, sentiam todos o dissabor de ver roubada grande porção do fruto dessas mesmas vantagens pelas novas, e pesadas contribuições, a que a indústria em geral veio a ser sujeita para saciar a fome de uma corte mendicante (TAVARES, 1840, p. 8 – 9).
Partindo da afirmação de que “a posse de um bem gera o desejo de outros” e da metáfora de uma “gota d’água lançada no imenso oceano”, o padre pernambucano sugere uma concepção acumulativa, processual e autônoma da temporalidade. Definindo o “progresso do melhoramento” como “ilimitado”, ele rompe com uma visão fechada do tempo marcada pela repetição de formas estáveis e finitas. Bomfim corrobora essa perspectiva não só ao dizer que se trata de uma “grande verdade”, mas também em uma nota que comenta aquela passagem:
Compreendemos a elevação desse pensamento quando refletirmos que Augusto Comte, considerado um dos filósofos em que a ideia de progresso mais nitidamente se formulou, vinte anos depois de Tavares, ainda considera o progresso qualquer coisa de limitado, tal se depreenda sua lei dos três estados: no positivo se fecharia o progresso... (BOMFIM, 1930, p. 374).
Não se pretende aqui debater o modo como Bomfim se apropria dos escritos de August Comte e produz uma crítica às ideias positivistas. Gostaria de lembrar apenas, como pontua Rebeca Gontijo, que a influência do Positivismo no Brasil é citada por Bomfim como uma das causas das distorções da historiografia brasileira, já que teria produzido uma compreensão excessivamente rígida e generalizante dos fenômenos sociais, desatenta, portanto, às especificidades do contexto histórico brasileiro (GONTIJO, 2003). O que me parece mais importante destacar do excerto é que Bomfim sugere que a perspectiva de Muniz Tavares, que postula o progresso na história como algo “ilimitado”, seria mais “elevada” que a de Comte, sobretudo quando o autor sergipano emprega o termo “ainda” em relação
ao que defende o intelectual francês. Com tal advérbio de tempo, Bomfim parece insinuar que, embora seja vinte anos mais recente, a perspectiva de Comte seria menos atual e acertada do que a de Muniz Tavares.
Ao identificar essa aproximação entre Bomfim e Muniz Tavares, não pretendo desconsiderar que a concepção de história do intelectual sergipano está permeada também por ideias provenientes das ciências naturais, como o ideário evolucionista (NICOLAZZI, 2015). No entanto, a partir desse paralelo, parece-me possível reconhecer a força de uma concepção historicista nos escritos de Manoel Bomfim acerca da história brasileira, a qual se exprime sobretudo em seu entendimento de que compreender algo, como, por exemplo, a nação, supõe enxergá-lo tanto como uma unidade quanto em seu deslocamento progressivo através do tempo histórico, ele próprio um agente autônomo².
Em diversos momentos de seus livros, esse enquadramento progressista da história seria reafirmado por Bomfim, que define o progresso e a liberdade como pressupostos da história brasileira. No entanto, e esta observação me parece fundamental, o sergipano não conceberia o movimento do tempo histórico de modo estritamente otimista. Sua concepção de história marcada pelo progresso comporta fissuras, tensionamentos e ambiguidades, algumas das quais também presentes em Muniz Tavares. No trecho do padre de Pernambuco citado por Bomfim que discutimos anteriormente, certa hesitação em face de uma visão do tempo histórico inteiramente marcada por um progresso “ilimitado” se exprime. Isso porque Muniz Tavares aponta a “fraqueza” do espírito humano para “executar” o “progresso do melhoramento” por ele concebido. Creio que, ao explorarem os processos de ruptura político-social e suas repercussões no
2 Essa acepção de historicismo, isto é, como a ideia de que, para entender algo, é necessário concebê-lo tanto como uma unidade quanto em seu desenvolvimento histórico, foi extraída das reflexões do historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2000). A seguinte passagem de Bomfim me parece reveladora desse modo de compreensão histórica: “A primeira
necessidade, pois, está em dar lógica às derivações de efeitos históricos ao longo do nosso passado, e, para isso, reconhecer as causas de turbação no critério histórico, assinalar as mesmas deturpações e acentuar a realidade do caráter brasileiro, como resultado efetivo e necessário dos antecedentes, isto é, da nossa formação histórica” (BOMFIM, 1930, p. 84). Grifo meu.
âmbito da temporalidade histórica, os escritos de ambos os autores estão atravessados por uma importante questão: pode a agência humana acelerar o movimento da história em direção ao futuro de progresso e liberdade? Segundo o trecho citado, há certa relutância em responder afirmativamente a essa indagação. Retomarei o modo como esses autores lidam com essa questão ao abordar suas interpretações da Revolução de Pernambuco e da Independência brasileira. Por ora, interessa reter o diagnóstico da fraqueza humana em concretizar, ou antecipar, o futuro de progresso a partir de suas ações.
Outro aspecto compartilhado entre Muniz Tavares e Bomfim que produz atritos no interior de suas concepções progressistas da realidade histórica é o reconhecimento da “degeneração”, “degradação” e “decadência” presente em algumas histórias nacionais. Ambos os autores, ao narrarem a história de Portugal, definem a “degeneração”, e não o progresso, como o pressuposto meta-histórico estruturante da temporalidade portuguesa. Tanto em Bomfim quanto em Muniz Tavares descreve-se um período de apogeu, seguido de um profundo declínio de Portugal, o qual coincide com o início da colonização3. Em Bomfim, tal elaboração é desenvolvida de modo mais aprofundado, com base inclusive em analogias biológicas. Desde os seus primeiros escritos históricos, como o livro América Latina, Males de Origem, de 1905, o sergipano já defendeu a tese de que o “parasitismo”, tanto em relação aos “organismos biológicos” quanto no que tange aos “organismos sociais”, é causa central para a degeneração dos seres, que se tornam parasitas como forma de sobrevivência. Para ele, portanto, a atrofia do corpo político português decorreria de sua crescente dependência dos recursos advindos do Brasil, tal como ocorre com os seres vivos que, em seu processo evolutivo, especializam-se em parasitar outros organismos4. Logo, sob certas condições, como ao fazer do progresso de outro corpo político a sua “ubres”, uma nação tende ao declínio e à degradação. Diante desse diagnóstico da
3 A esse respeito, segundo o letrado de Pernambuco: “A monarquia Portuguesa havia degenerado da sua primitiva forma” (TAVARES, 1840, p. 3).
4 O Portugal bragantino, empenhado em manter a colônia, para ubre em que alimenta a sua incapacidade, torna-se o implacável inimigo da tradição – de um Brasil unido” (BOMFIM, 1930, p. 152 – 153).
decadência portuguesa, evidencia-se que, para ambos os autores, embora possa ser “ilimitado”, o progresso do “espírito humano” não chega a ser “necessário”, tampouco “irreversível”.
Um outro aspecto identificável tanto nos escritos de Muniz Tavares quanto em Bomfim e que expressa tensionamentos na crença do progresso como o sentido da história é o fato de que, para esses autores, uma nação que explora e declina pode limitar e retardar o desenvolvimento do corpo político explorado. Tanto a História da Revolução de Pernambuco em 1817 quanto os livros de Bomfim dedicados à história brasileira estão estruturados não só a partir de uma visão negativa da colonização portuguesa como, também, com base na ideia de que o processo colonial, ao menos tal como empreendido por Portugal, produziu manchas, atrasos, ou mesmo desvios, na trajetória histórica da nação brasileira em direção ao progresso e à liberdade. Assim, a narrativa do período colonial nesses autores passa não apenas pelo declínio português, mas, sobretudo, pela descrição do “crescimento” do Brasil e das investidas de Portugal no sentido de impedir, ou retardar, que o território colonizado se realizasse enquanto uma nação verdadeiramente livre.
Há, especialmente em Manoel Bomfim, uma tentativa de periodização da colonização portuguesa e das suas relações com o Brasil. Bomfim descreve o início do processo colonial como um momento de relativa liberdade. Então, Portugal ainda não estaria plenamente degenerado, sendo inclusive capaz de legar as virtudes de sua tradição à nação brasileira em formação. Contudo, há dois momentos de inflexão que, de um lado, expressam e aprofundam a degradação de Portugal e, de outro, acentuam a dependência e a exploração lusitana em relação às riquezas da colônia. O primeiro evento que marca essa mudança foi a ascensão bragantina, dinastia que teria promovido o aprofundamento da espoliação da colônia americana e da degeneração do corpo político português. O segundo seria a Insurreição do Brasil, particularmente de Pernambuco, frente às invasões holandesas. Ao resistir aos holandeses, dirá Bomfim, a nacionalidade brasileira tomaria forma e se converteria em anseio pela liberdade e soberania não fossem os esforços de Portugal em inviabilizar o crescimento do Brasil. Analisando a conjuntura após a expulsão dos holandeses do Brasil no século XVII, Bomfim diz:
Mas, agora, mudou completamente a situação da metrópole para com a colônia, esta, que se apresenta com as suas energias crescentes bem demonstradas – na incapacidade de defesa e na produção de riqueza, ao passo que Portugal, decaído, essencialmente degenerado, só é mantido em soberania pelo eufemismo da aliança inglesa. Nessas condições, a questão se resolveu pela nova política adotada para com o Brasil, e que consistiu em destruir tudo que pudesse concorrer para a afirmação da nova nacionalidade, já manifesta, mas que devia morrer. De fato, se o não contrariassem e abatessem tão sistematicamente, como o fizeram, o Brasil teria chegado à completa expressão nacional, rompendo para a soberania: ora, a nação que vivia exclusivamente de ser metrópole não podia aceitar a situação de suicídio, e teve de dedicar todos os seus esforços a lutar pela vida na forma da sua incapacidade (BOMFIM, 1930, p. 115).
O trecho acima me parece importante, pois sistematiza o argumento de Bomfim segundo o qual a colonização empreendida por Portugal se afirma também pela inviabilização do crescimento do Brasil enquanto nação. Interessante notar que, embora Muniz Tavares não remonte à emergência da nacionalidade brasileira já ao contexto das invasões holandesas, ele também desenvolve a ideia de que o progresso do Brasil e a tomada de consciência de sua condição de explorado estimularam os esforços da metrópole em subjugá-lo de modo cada vez mais acentuado5. As tentativas de independência realizadas pelos brasileiros, por essa perspectiva, seriam reações a essa assincronia, a essa não simultaneidade entre um Brasil marcado pelo “crescimento”, pelo “progresso” e pela tomada de consciência nacional e um Portugal decadente, degenerado e cada vez mais dependente das riquezas de sua colônia americana.
5 Crescia o Brasil, e maior rivalidade desenvolvia contra os Portugueses: estes, naturalmente orgulhosos, escudados com a força material,
reputavam-se únicos Senhores do País, que os acolhia, e elevava; nascer Brasileiro era um sinal de inferioridade” (TAVARES, 1840, p. 11).
O tema do atraso provocado pela condição colonial na evolução histórica do Brasil me parece muito importante tanto na produção de Bomfim quanto em Muniz Tavares, inclusive por distinguir suas formulações de narrativas que identificam na colonização um processo de irradiação da civilização e do progresso. Essa temática é também uma entrada profícua para pensarmos o modo como ambos os autores compreendem o sentido da Revolução de Pernambuco para a história nacional e, sobretudo, o significado de seu fracasso em produzir a liberdade no Brasil. Tanto nos escritos de Bomfim quanto na história escrita por Muniz Tavares, o movimento de 1817 é representado como um evento fundamental da história brasileira, a ser narrado, valorizado e celebrado. Tal acontecimento é considerado legítimo diante da condição de exploração a que o Brasil estava submetido e os indivíduos que nele se envolveram são caracterizados como heróis e mártires. A esse respeito, o letrado pernambucano afirma: “A Revolução de Pernambuco em 1817, bem que mui pouco durasse, fará sempre época nos anais do Brasil: tempo virá talvez, em que o dia seis de março, no qual ela foi efetuada, será para todos os Brasileiros um dia de festa nacional” (TAVARES, 1840, p. II).
Já Bomfim, dirá:
Marco iluminado do nacionalismo brasileiro, dissemos da revolução de dezessete. Sim, porque em vão procuramos na nossa história motivo de maior glória. Mesmo perdendo, os homens que se levantaram em Pernambuco definem-se como apóstolos e heróis (BOMFIM, 1930, p. 363).
Os dois autores explicitam uma pretensão de reabilitar o movimento pernambucano na história nacional, defendendo-o tanto das narrativas críticas que o associam à desordem e à anarquia quanto das tentativas de apagá-lo da história brasileira. Bomfim, porém, vai além de Muniz Tavares nesse aspecto, uma vez que – tomando a análise de 1817 como ponto de partida –produz uma extensa crítica da escrita da história no Brasil. Para o intelectual sergipano, a historiografia brasileira no geral não tem servido aos interesses nacionais, mas antes aos daqueles que desejam perpetuar a “infecção” da “tradição bragantina” no país.
Na sua avaliação, muitos historiadores brasileiros produziram uma “historiografia bragantina”, cujo objetivo era desvirtuar e recalcar a legítima e verdadeira tradição da nacionalidade brasileira, da qual 1817 seria a expressão mais vívida6. Nessa direção, não é fortuito que Bomfim defina a Independência de 1822 como uma “farsa”, já que, em sua interpretação, o projeto de emancipação política verdadeiramente legítimo sucumbiu com a repressão dos “heróis” de 1817. Com isso, afirma o intelectual sergipano, o que esses historiadores bragantinos pretendiam era não apenas desvirtuar as narrativas históricas sobre o Brasil como, também, afetar a própria “evolução” histórica da nação, mantendo-a em uma condição de atraso e de desconhecimento de sua tradição legítima.
Contrasta com a sua apreciação negativa de grande parte das narrativas dedicadas a 1817 o modo como Bomfim se apropria do livro de Muniz Tavares sobre esse evento. Acerca das virtudes do letrado pernambucano, Bomfim diz se tratar de alguém sóbrio, ponderado e de um observador profundo, além de um autor imbuído de um “legítimo patriotismo” cujas palavras expressavam o “tom da verdade”.
Em O Brasil na História, obra na qual Bomfim desenvolve de modo mais aprofundado sua crítica da escrita da história brasileira, o letrado pernambucano é tomado como o seu principal interlocutor – e aliado – no debate sobre o significado dos eventos de 1817 para a história nacional. Nesse diálogo, Bomfim afirmaria a atualidade da obra de Muniz Tavares, cuja difusão é considerada indispensável para a superação da ignorância dos brasileiros em relação ao processo revolucionário de Pernambuco:
O seu livro, num país que fosse realmente uma pátria livre e consciente, já teria tido o número bastante de edições populares – para edificar a educação das sucessivas gerações. Na sobriedade sincera da verdade, a sua história nos mostra o mundo ignóbil que, pela força da ignorância, venceu os revolucionários – mais humanos e magnânimos de que há notícia. Ainda hoje,
6 (...) “aquele espírito de “dezessete” deve subsistir, apesar de tudo, pois
que ele é a própria alma do Brasil” (BOMFIM, 1930, p. 365).
quando já temos a mente refeita em conceitos de filosofia livre e reivindicadora, o pensamento de Monsenhor Tavares se nos impõe, e ele nos aparece como um espírito moderno”. (BOMFIM, 1930, p. 373).
Chama atenção, a esse respeito, que o sergipano reitere a “contemporaneidade” das reflexões de Muniz Tavares afirmando, nos debates sobre um tema sensível como a escravidão, que as suas palavras poderiam ter sido ditas pelo “mais moderno dos sociólogos atuais”: “Da escravidão, ele diz o que diria o mais moderno dos sociólogos atuais: “... é o mais terrível dos flagelos que martiriza o Brasil, retarda a sua civilização, corrompe os costumes e o empobrece...”” (BOMFIM, 1930, p. 374). Anteriormente, vimos como Bomfim chega a sugerir que as ideias de Muniz Tavares acerca do progresso na história eram mais “atuais” que as de Comte. Aqui, ele ratifica essa proposição, exaltando o “espírito moderno” do letrado de Pernambuco.
Nesse sentido, cabe perguntar: quais afinidades levam Bomfim, um participante bastante crítico do debate intelectual que lhe era contemporâneo, a enfatizar a atualidade de um letrado brasileiro cujos escritos precediam os seus em quase um século? Creio que a resposta mais imediata para essa indagação seja o fato de que, como o próprio Bomfim, Muniz Tavares tenha vislumbrado nos eventos de 1817 uma espécie de “futuro no passado”, isto é, uma tentativa precursora e necessária de produzir a Independência política brasileira. Dito de outro modo, o ponto de aproximação mais evidente entre os dois autores seria então o fato de ambos considerarem a Revolução Pernambucana uma iniciativa legítima de emancipação política, na medida em que reagia ao aprofundamento da exploração praticada pelos portugueses.
Contudo, ainda que isso não seja explicitado por Bomfim, uma análise da História da Revolução de Pernambuco em 1817 evidencia que há pontos importantes de divergência entre a interpretação dos eventos de 1817 proposta pelo intelectual sergipano e a narrativa apresentada por Muniz Tavares. E, para além disso, ao refletirmos sobre o modo como ambos narram o processo de Independência de 1822, novamente ficam evidentes divergências significativas, que tornam mais intrincados os paralelos entre eles. Isso sugere que as razões para uma recepção tão
positiva do texto do padre pernambucano por Bomfim talvez sejam mais complexas.
Analisando as divergências entre os dois autores, um primeiro aspecto que chama atenção diz respeito aos contornos republicanos do projeto revolucionário de 1817. A princípio, a distinção entre as suas perspectivas não é evidente, na medida em que, como Bomfim, Muniz Tavares também se refere a 1817 como um movimento republicano. Além disso, o pernambucano igualmente considera a república como um regime político mais “virtuoso” que a monarquia, ainda que seja reticente em afirmar isso de modo explícito e reiterado.
Apesar dessa convergência inicial, as discordâncias começam a se expressar quando comparamos o que dizem os autores ao abordarem a viabilidade do regime republicano no Brasil, dada a sua formação histórica singular na América. Se, para Bomfim, a evolução “natural” do Brasil culminaria na República, já que esta seria a expressão da tradição nacional, para Muniz Tavares, haveria circunstâncias históricas especificamente brasileiras que inviabilizam tal regime político no país. A esse respeito, Bomfim aponta:
Nesta instância, o intuito é somente mostrar que a tradição do Brasil sempre foi pela república. Era fatal que assim se faria a Independência, pois que, nunca, ninguém poderia contar que a ingenuidade, a estupidez, a ambição, a filaucia e a traição chegassem a unir-se para uma longa atividade, contra o Brasil, como aconteceu em o nosso 22 (BOMFIM, 1930, p. 236).
Já na perspectiva de Muniz Tavares, embora dotado de um “falso brilho”, a monarquia era inevitável, sobretudo, pois, no Brasil, já havia sido instituído um rei e um trono desde 1808. Diante desse cenário, apesar das virtudes desse regime, a opção pela república teria sido um equívoco dos revolucionários de 1817, expressando a sua inexperiência política:
Atraída pelos incentivos democráticos sem o ouropel da monarquia, a parte da América emancipada havia adoptado na sua organização social o governo republicano. A gloriosa fortuna,
que gozavam em particular os Estados-Unidos, a sua segurança, e ordem legal, indicavam aos Brasileiros a preferência daquele governo: os Pernambucanos, que anelavam o melhoramento da Pátria, o admitiam unânimes. Ainda não bem versados nos estudos da política, eles imaginavam que qualquer instituição caracterizada útil era aplicável a todos os povos, sem se lembrarem que com facilidade pode-se transplantar a lei, mas não o espírito da Nação; não pensavam que no Brasil existia um trono, e ocupado por um Rei naturalmente bom, circunstância, que muito diversificava a posição respectiva (TAVARES, 1840, p. 14 – 15)
Como aponta o trecho acima, a avaliação de Muniz Tavares é que, inspirando-se na experiência dos Estados-Unidos, os revolucionários de 1817 optaram unanimemente pela república. O problema é que tal regime era incompatível com o “espírito da nação” brasileira, de modo que não adiantaria simplesmente transplantá-lo pela lei, ignorando as singularidades históricas do país. Portanto, para fazermos alusão à tópica originada no século XIX que seria amplamente rediscutida em interpretações posteriores do Brasil, a República seria uma ideia que, embora mais virtuosa, estaria “fora do lugar”. Ao menos a princípio, parece marcante a divergência entre Bomfim e Muniz Tavares nesse tema. Isso porque, na perspectiva do sergipano, a adoção da república em um processo revolucionário que expressava a “alma brasileira”, longe de ser uma “ideia fora do lugar”, era precisamente a manifestação da tendência natural da evolução histórica da nação. Na sua perspectiva, foi a Independência de 1822, ao instituir um governo monárquico liderado por um Bragança, que desvirtuou o Brasil de sua trajetória histórica. Outra dissonância importante entre Bomfim e Muniz Tavares é, portanto, que o escritor de O Brasil na História não enxergue na Independência de 1822 o advento da liberdade política, como faz o letrado pernambucano. O autor da História da Revolução de Pernambuco em 1817 dá sentido ao processo revolucionário de Pernambuco com base em uma interessante metáfora, que relaciona esse acontecimento ao processo de
independência que se realiza em 1822. Nessa direção, o trecho a seguir é fundamental:
Estes [os amigos da liberdade] não poderão esquecer jamais que foi essa província, quem primeiro deu o sinal ao Brasil de ter chegado o momento tanto suspirado de entrar no gozo dos bens imensos, que a cobiça portuguesa por espaço de três séculos extorquia; foi ela, quem apresentou-lhe a grande Carta da emancipação civil, e política, e mostrou com o exemplo a maneira de possuí-la. Desgraçadamente não foi seguida, sucumbiu; mas não pereceu o germe plantado, e regado com o sangue de seus mártires: em tempo oportuno frutificou e não deixará de crescer com vigor (TAVARES, 1840, p. 2 – 3).
Em sua leitura, portanto, o movimento de Pernambuco viria a ser concebido como um “germe da emancipação” que, regado com o sangue dos revolucionários, deu frutos tempos depois, na Independência de 1822. Com essa imagem, o letrado pernambucano vincula 1817 e 1822, tomando aquele evento como um precursor necessário deste. Afinal, tratava-se de um mesmo germe, cujo crescimento se deu alguns anos depois, em um “tempo oportuno”. Por meio de tal metáfora, foi possível, a um só tempo, atribuir um lugar de destaque ao movimento pernambucano na história nacional, tornando-o um evento indispensável para a viabilidade da Independência, e sugerir as causas para o fracasso do processo revolucionário, afirmando que ele ocorrera em um tempo “não oportuno”, posto que a liberdade não estaria ainda suficientemente madura no Brasil em 1817.
Já em Bomfim, se também era um evento precursor do futuro, 1817 não antecipava 1822, mas, antes, uma independência que ainda estava por ser feita no Brasil. Ou, dito de outro modo, o movimento de Pernambuco prefigurava um futuro nacional ainda não realizado. Na leitura de Bomfim, a eclosão da Revolução Pernambucana teria revelado aos portugueses que a independência brasileira se tornou inevitável. A esse respeito, afirma:
“Desastre para esta pátria, ainda assim, o movimento de Dezessete manteve a significação de
impor ao próprio Bragança a realidade da nação brasileira: na mesma vitória do Conde dos Arcos, compreendeu o trono que não poderia mais guardar ostensivamente o Brasil para serviço de Portugal...” (BOMFIM, 1930, p. 233).
A tensão expressa no trecho acima é interessante. Por um lado, o fracasso da Revolução Pernambucana exprime a incapacidade de, em 1817, tornar presente o “legítimo” e “verdadeiro” futuro nacional. Por outro, porém, a eclosão do processo revolucionário pernambucano enuncia a impossibilidade da permanência do jugo colonial. Segundo a argumentação do intelectual sergipano, diante dessa inevitabilidade, isto é, a emancipação política brasileira, restara às elites bragantinas realizarem uma independência farsesca que, desvirtuando a natural evolução histórica do Brasil, preservasse as tradições do passado, os interesses de Portugal e uma monarquia ocupada pela dinastia bragantina7. O trecho a seguir é fundamental nesse sentido:
Assaltada, tomada, ocupada a independência pelo lusitanismo, não houve lugar, nem possibilidade, por mais nada: nem tradição brasileira, nem democracia, nem legítima soberania nacional, nem dignidade de política e eficácia de administração. O esforço, no espremedor do bragantismo, para eliminar, na organização do estado brasileiro, tudo que fosse legítima tradição nacional, nas suas puras aspirações de democracia e liberdade. E chegaram a este monstruoso resultado: toda a portuguesada ficou, para ser o Brasil autônomo, e saíram todos os puros brasileiros (...) Por si mesmos, os homens da independência não valem as linhas que já lhes foram consagradas.
7 Em O Brasil Nação, Bomfim reforçaria de modo sintético essa tese, demarcando que 1822 representou a permanência renitente de indesejáveis “tradições do passado”: “(...) a permanência de Pedro I no Brasil só teve a
significação de conservar o possível das tradições do passado. Ora, esse passado é – Portugal, a sua soberania, e os seus interesses”. (BOMFIM, 2013, p. 85)
Dado, porém, que a separação obtida em 1822 não foi o natural desenvolvimento da nossa evolução nacional, senão um atentado contra essa mesma evolução, temos de caracterizar a independência nos homens que a fizeram. (BOMFIM, 1930, p. 450 – 451).
Por essa perspectiva, 1822 seria precisamente o triunfo de um projeto de desvirtuar o Brasil, afastando-o de sua evolução histórica natural. Logo, não poderia coincidir com as aspirações de “liberdade”, “república”, “democracia” e “governo livre” que estavam no cerne dos projetos de 1817. Chama atenção nos escritos de Bomfim a recorrência com que ele utiliza termos como “desvio” e “farsa” em alusão aos eventos de 1822. Isso porque, por meio desses vocábulos, ele vai além de afirmar que a independência foi somente insuficiente, incompleta ou acompanhada pela persistência de certos passados. Em sua avaliação, ela foi, fundamentalmente, um desencontro estrutural do Brasil consigo mesmo e com o telos de sua própria história, como que um entrecruzamento de caminhos diante do qual a civilização brasileira rumou em direção a um futuro imerso no passado. Assim, se, por um lado, o sergipano demonstra grande esforço em compreender historicamente o processo de constituição da tradição brasileira, analisando-a por meio do tempo histórico, por outro, ele já imbui tal tradição de um sentido apriorístico que lhe é imanente: república e liberdade, democracia e nacionalismo. É válido reafirmar, a esse respeito, que a coexistência entre uma tentativa de compreensão histórica da realidade e uma visão teleológica, também presente em Muniz Tavares, apenas em Bomfim culmina em uma recusa radical em conceber a Independência de 1822 como a presentificação do futuro legítimo da história nacional, já anteriormente prefigurado pelos revolucionários de 1817.
Mas, se há divergências tão substanciais no que tange à leitura de Muniz Tavares e Bomfim, apenas o reconhecimento de que 1817 estava imbuído de um projeto de independência política seria suficiente para que o autor de O Brasil na História aderisse tão substancialmente à narrativa de Muniz Tavares, citando-o de forma sistemática? Creio que haja um aspecto mais profundo que os aproxima e que talvez explique essa interlocução e afinidade anunciada tantas vezes por Bomfim: a percepção de que é a
permanência do passado colonial o que inviabilizou a Revolução de Pernambuco e que ainda impede o Brasil independente de seguir o seu caminho em direção ao progresso. Portanto, trata-se da partilha de um diagnóstico não só do passado, brasileiro, mas, também, e talvez sobretudo, de seu presente. É pertinente notar, a esse respeito, que o momento em que Bomfim afirma que as palavras de Muniz Tavares poderiam ter sido ditas pelo “mais moderno dos sociólogos atuais” é justamente quando o pernambucano trata da escravidão como uma espécie de passado-presente, como uma “nódoa” que “retarda” a civilização do Brasil. Tal elogio nesse contexto, não me parece fortuito8
Há outra citação de Bomfim a Muniz Tavares que indica essa afinidade, talvez menos evidente, entre os dois autores. Há pouco, mencionamos a passagem na qual o letrado de Pernambuco afirmava a impossibilidade de o governo revolucionário, naquele contexto da história brasileira, instituir uma República, apesar das virtudes daquele regime. Chama atenção que Bomfim, para quem o regime republicano expressava a verdadeira tradição brasileira, cite justamente este trecho em que Muniz Tavares condena a adoção de um governo republicano pelos revolucionários:
“Então, [Muniz Tavares] quando procura a causa efetiva do desastre, chega a este conceito, quanto aos companheiros, mais responsáveis que ele mesmo: “Não se lembraram que com facilidade pode-se transplantar a lei, mas não o espírito da nação... Coragem não lhes faltou, o espírito de sabedoria...”. (BOMFIM, 1930, p. 374).
8 Na passagem brevemente citada por Bomfim, Muniz Tavares diz: ““Em boa-fé quem poderá negar que a escravatura é o mais terrível dos flagelos, que martirizam o Brasil, retardam a sua civilização, corrompe os costumes, o degrada, e empobrece?” (TAVARES, 1840, p. 246). Logo a seguir, o letrado pernambucano se refere à escravidão como uma “nódoa” na história brasileira herdada dos “desumanos” colonizadores portugueses: “A escra-
vidão é um monstro, que entorpece, e perverte os corações mais puros.
Aos Representantes da Nação Brasileira toca agora decidir, se é chegado, o suspirado momento, que aqueles Governadores Provisórios em sua sabedoria previram, e com a legalidade por esses recomendada e apaguem a nodoa, que nos deixaram os primeiros desumanos colonos do nosso solo”. (TAVARES, 1840, p. 247 – 248).
Mais do que isso, o sergipano reconhece ser esta uma “causa efetiva do desastre” que marca o fim da revolução. Ao endossar esse argumento do letrado de Pernambuco, estaria Bomfim reafirmando a impossibilidade da República naquele contexto histórico de 1817, a despeito de defender ser esse o regime político mais “natural” ao Brasil? Mais uma vez, a resposta a essa indagação supõe que reconheçamos como, no texto de Bomfim, uma leitura positiva e otimista acerca da evolução histórica do Brasil é continuamente fraturada e adensada pelo reconhecimento de certos passados indesejados que não passam e que impedem que a nação realize o seu futuro.
Como vimos anteriormente, o sergipano retoma frequentemente o argumento de que a decadência de Portugal teria contaminado e desvirtuado a história brasileira de seu sentido natural. Em Muniz Tavares, o diagnóstico do atraso herdado da condição colonial é, em grande medida, a chave interpretativa pela qual o fracasso do movimento de 1817 é explicado. A falta de ilustração do povo brasileiro, intencionalmente alijado da educação por Portugal, a força de hábitos aristocráticos e de privilégios, a preservação da escravidão e o desconhecimento dos frutos que a liberdade poderia trazer são algumas marcas do atraso promovido por Portugal na colônia e que fizeram com que grande parte do Brasil permanecesse inerte diante do “grito de liberdade” que emergiu em Pernambuco. Essa “inércia” das demais partes da nação em face de uma tentativa de antecipação do futuro, na avaliação do letrado de Pernambuco, foi a principal causa para o fracasso do movimento e evidenciava os limites das tentativas de aceleração do tempo histórico por meio das rupturas revolucionárias.
Também em Bomfim, o peso de passados-presentes herdados da condição colonial é central na interpretação de 1817. Por um lado, como vimos anteriormente, tal evento é compreendido como uma expressão natural do sentido imanente à história brasileira. Por outro, porém, tal asserção é matizada por uma interpretação menos resoluta acerca da viabilidade de um processo revolucionário naquele contexto da história nacional, em que o Brasil era dominado e “infectado” pelo governo bragantino aqui instalado. Na abertura do capítulo que sucede a narrativa dos eventos de 1817, intitulado “Sobre sangue generoso, lama bragantina”, Bomfim diz:
Os homens de Dezessete não tiveram, certamente, o gênio político, qual consiste em triunfar apesar de tudo. Perderam, mas, no que fizeram, foram dignos da terra que amavam e da reputação de que gozavam. Nem fora humano que, nos processos de que usavam, lutando com as armas da sua virtude, apenas, pudessem eles vencer o regime de bragantismo, que aqui se implantara em cheio: violência de cancro, a mais desenvolver-se, quanto mais apodrece. Lembremo-nos de que as colônias espanholas, revoltadas, tiveram de lutar por mais de dez anos, quando tinham contra si uma metrópole que, por algum tempo, foi, até, inexistente, e nunca teve meios de transportar para este continente os pobres recursos de que dispunha. Enquanto isto, os pernambucanos de 1817 revoltaram-se contra todo o poder da metrópole aqui estabelecida. Foi a rebelião de uma parte, apenas, do Brasil, contra todos os recursos de Portugal, inclusive a sua aliança com a Inglaterra. Terem a coragem da revolução já foi indício de extremo valor (BOMFIM, 1930, p. 375).
Tal trecho me parece fundamental. Comparado a um cancro, que mais se desenvolve conforme apodrece, o “regime de bragantismo” é apresentado como invencível para os pernambucanos de 1817, munidos apenas das “armas da virtude”. Assim, embora fosse a tendência natural do Brasil, além de um movimento “justo” e de “extremo valor”, também para Bomfim o processo revolucionário de Pernambuco estava bem longe de ser inevitável ou irrefreável. Como Muniz Tavares9, o sergipano
9 Descrevendo as dificuldades enfrentadas pelos revolucionários de 1817 em difundirem o movimento para todo o Brasil, Muniz Tavares diz: “Além disto, dependendo os Brasileiros de uma Nação sujeita ao Governo absoluto, e tratados ainda mais duramente que os seus
pais, pela reputada inferioridade de colonos, a consecução da liberdade demandava grande trabalho, e tempo. Não causará, portanto, maravilha a facilidade, com que aquelas mesmas povoações mudavam de sentimento”. (TAVARES, 1840, p. 285).
se vê impelido a reconhecer a força de tradições do passado e mesmo a sua prevalência naquele presente. Além disso, tal como o letrado pernambucano, Bomfim também constata a letargia de grande parte do Brasil diante da tentativa revolucionária de Pernambuco, que, sozinho, teve de enfrentar todo o poder da metrópole, a qual dispunha ainda do apoio inglês. Nessa direção, a própria imagem da “lama bragantina” que aflui sobre o “sangue generoso” dos pernambucanos presente no título do capítulo parece sugerir que o fracasso de 1817 se deve ao fato de o Brasil estar impregnado de um passado que impedia o advento do futuro, sobrepujando-o.
Pertinente observar que, em certo sentido, a interpretação de Bomfim parece ainda menos harmônica e otimista do que a de Muniz Tavares. Isso porque, como constatado anteriormente, a Independência de 1822, uma “farsa”, estava longe de representar a superação, mesmo que parcial, do trágico desfecho de 1817. A esse respeito, Bomfim é categórico: “Assaltada, tomada, ocupada a Independência pelo lusitanismo, não houve lugar, nem possibilidade para mais nada: nem tradição brasileira, nem democracia, nem legítima soberania nacional, nem dignidade política e eficácia de administração” (BOMFIM, 1930, p. 450). Daí que o sergipano conceba a Revolução de Pernambuco como um “trauma” ainda não superado pelo Brasil, uma “ferida” aberta:
O sacrifício de todos aqueles grandes brasileiros foi, certamente, o golpe mais forte e mais doloroso, para a nação que devia nascer ali mesmo. E, nessas perdas, ela se diminuiu tanto que, ainda hoje, o sentimos. Como quando a vemos trôpega, no caminho da liberdade e da justiça, infiel aos ideais de democracia, infiel aos próprios motivos patrióticos. Ainda não o é justamente porque, até hoje, o Brasil não sarou das feridas, com que prostraram o Pernambuco de Arruda e do padre Pessoa. (BOMFIM, 1930, p. 363 – 364).
Mesmo a Proclamação da República, vaticina o autor sergipano, não teria representado a superação da tragédia de 1817, pois ela também não fora capaz de romper com as heranças de “um passado enraizado nos sedimentos podres de quase dois séculos de bragantismo”10.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encerro o texto com esta imagem de um “passado enraizado em sedimentos podres” que sobrevive à passagem do tempo e que continua a condicionar o presente da nação, pois ela me parece muito reveladora da proposta interpretativa de Bomfim para as relações entre 1817 e a história nacional. Tal metáfora sugere que, além do “progresso ilimitado”, a narrativa da história brasileira também tinha como pressuposto metanarrativo fundamental a renitência de um passado de atraso não superado. Nesse sentido, como busquei argumentar, a afinidade que Bomfim manifesta com os escritos de Muniz Tavares vai além do fato de compartilharem uma visão positiva da Revolução Pernambucana de 1817. Mais importante que isso, creio que a aproximação ensejada por Bomfim se justifique, principalmente, pela hesitação de ambos em se limitarem a ratificar uma perspectiva estritamente otimista acerca do sentido da história brasileira.
É bastante sintomático que Bomfim cite justamente as passagens em que Muniz Tavares deixa evidente sua desconfiança frente à possibilidade de superação imediata da herança colonial, como ao narrar o fracasso da Revolução, as dificuldades do espírito humano de executar o progresso almejado e as “nódoas” do escravismo que persistiram no Brasil politicamente independente. Nas suas histórias, mais do que um contraponto entre progresso e atraso, identifica-se uma coexistência entre esses dois elementos na temporalidade histórica brasileira. Seja como “nódoa” ou como “desvio”, em ambos os autores, há o entendimento de que
10 “Naquele momento do mundo, com as condições de formação nacional, os povos americanos tinham que organizar-se em forma democrática livremente, sem restrições dinásticas, pois que em nenhum deles havia a necessidade histórica de que resultaram as monarquias constitucionais, pois que todos precisavam das possibilidades de iniciativa, como só as puras democracias podem ter. Mas, como a longa perversão, não só perverte a história como as mesma fontes em que ela se cria, o Brasil que recebemos trouxe um passado enraizado
nos sedimentos podres de quase dois séculos de bragantismo. Com a tradição do respectivo estado português, superposta à legítima tradição nacional, tivemos que fazer, mesmo depois de três revoluções, uma política tal que, em regime republicano, é esse monstruoso e infame oligarquismo como se organizou definitivamente a República brasileira — oligarquias de coelomas aparentados, com toda a podridão de ventres fartos, em organismos que só vivem para o ventre”. (BOMFIM, 1930, p. 84). (Grifos meus).
o passado colonial continuou presente no Brasil politicamente independente, não tendo sido plenamente ultrapassado. O movimento de 1817, por essa perspectiva, embora fosse legítimo, virtuoso e exemplar, tornava evidente os revezes das tentativas de aceleração e antecipação do futuro em uma nação marcada pela condição colonial.
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Anexo I
Catálogo de objetos levados pelo Museu Paranaense à Exposição Internacional do Centenário da Independência no Rio de Janeiro (1922-1923)
Visando exaltar o progresso nacional em seus 100 anos da independência, a “Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil”, realizada entre 1922 e 1923, no Rio de Janeiro, foi organizada pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, tendo como foco a produção de uma narrativa de progresso nacional. O documento que segue transcrito, parte do acervo do MUPA, traz uma listagem de participantes, seus objetos expostos e de premiações indicadas e recebidas, dentre os quais se destaca o Museu Paranaense, um dos organizadores da Comissão representativa do Estado do Paraná.
E.U. DO BRASIL
Ministério da Justiça e Negocios Interiores
Exposição Internacional do Centenário da Independência
RIO DE JANEIRO
1922 – 1923
Relação Official dos premios conferídos pelo Jury de Recompensas
Brasil PARANÁ
MINISTERIO DA JUSTIÇA E NEGOCIOS INTERIORES. EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DO CENTENARIO DA INDEPENDÊNCIA.
JURY INTERNACIONAL DE RECOMPENSAS.
Relação official dos prêmios approvada em sessão do Jury Superior de 22 de Junho de 1923.
BRASIL – Estado do Paraná
FÓRA DE CONCURSO, COM DIREITO A DIPLOMA COMMEMORATIVO ACOMPANHADO DE PLACA DE PRATA.
Classes 45 e 46.
1. Municipio de Palmeira – Cedro
Classe 51.
2. Municipio de Ypiranga – Polvilho de tapioca e farinha de mandioca
Classe 58.
3. Municipio de Lapa – Argillas
4. Municipio de Campo Largo – Argilla e kaolim
Classe 76.
5. Municipio de Guarakessaba – Betas para navios
FÓRA DE CONCURSO – TITULAR DE PREMIO EM EXPOSIÇÃO UNIVERSAL (Art. 42 do Regulamento)
Classe 54.
1. David Carneiro & Cia. (Curityba) – Matte
GRANDE PREMIO.
Classe 10.
1. Drs. J. Moreira Garcez e Francisco Beltrão – Mappa do Estado do Paraná na escala de 1:500.000
Classes 13 e 14.
2. F. Essenfelder & Cia. (Curityba) – Pianos de armário e de cauda
Classe 31.
3. Muller e Irmãos (Curityba) – Machina para lavoura Classes 35 e 36.
4. Museu Paranaense – Collecção de cereaes Classes 45 e 46.
5. Museu Paranaense – (Curityba) – Collecção de madeiras
Classe 51.
6. S.A. Industrias Reunidas F. Matarazzo – Moinho e Trapiche Matarazzo (Antonina) – Farinha de trigo
Classe 54.
7. B. R. de Azevedo & Cia. (Curityba) – Herva Matte
8. Cervejaria Atlântica, S. A. (Curityba) – Extracto de matte, café de cevada torrado
9. Da Veiga & Cia. (Curityba) – Herva matte
10. Guimarães & Cia. (Curityba) – Herva matte
11. Leão Junior & Cia. (Curityba) – Herva matte
12. Nicolao Mader & Cia (Curityba) – Herva matte
13. Viúva Manoel Macedo (Curityba) – Herva matte
Classe 67.
14. Guilherme Weiss (Curityba) – Telhas, tijolos refractarios e manilhas
15. Zacharias de Paula Xavier (Curityba) – Objectos de louça, pó de pedra
Classe 83.
16. Companhia Industrias Brasileiras de Papel (Jaguariahyva) – Papel para embrulhos e papelão prensado para tecto
Classe 84.
17. Kosap & Wolf (Curityba) – Solas, vaquetas, couros, e pellegos
Classe 86.
18. Azambuja & Cia. (Curityba) – Phosphoros e material destinado à fabricação das caixas
19. Companhia Fabril Paranaense (Curityba) – Phosphoros
20. S.A.Fabrica Hurlimann (Curityba) – Phosphoros e material destinado à fabriacação das caixas
21. Wenceslau Glaser (Curityba) – Phosphoros
DIPLOMA DE HONRA.
Classe 8.
1. Léo Lindameyer & Rezler (Curityba) – Photographias
Classe 54.
2. Xavier de Miranda & Cia. (Curityba) – Herva Matte
Classe 56.
3. Ernesto Bengusson & Cia. (Curityba) – Licores
Classe 67.
4. Francisco Klemtz (Curityba) – Telhas e tijolos
5. Taborda & Irmão (Curityba) – Telhas
Classe 78.
6. Moraes & Cia. (Curityba) – Fibras de sêda
Classe 84.
7. Nedro & Xavier (Curityba) – Couros e pelle de jacaré
Classe 93.
8. Alberto Potte (Curityba) – Pinceis, escovas para dentes, escovas para roupas
Classes 106 e 107.
9. Viúva João Macedo & Filhos (Curityba) –Agua mineral “Ouro Fino”
MEDALHA DE OURO.
Classe 8.
1. Antonio Necker Galliano (Prudentopolis) – Photographias
2. Augusto Weiss (Curityba) – Photographias
Classe 17.
3. Manoel Lafitte Busquete (Curityba) – Ventilador hydraulico
4. Rodolpho Haltrich (Curityba) – Correias para transmissão e escalas métricas
Classe 27.
5. Zanello & Irmão (Curityba) – Pertences para arreios em metal branco
Classe 31
6. Raul Carneiro (Dr.) (Curityba) – Immunisador para cereaes “Helios”
Classes 35 e 36.
7. Alcides Sprenger Vianna (S. José dos Pinhaes) – Cereaes e sementes de linhaça
8. Antonio Setim (S. José dos Pinhaes) – Trigo
9. Antonio Greboge (S. José dos Pinhaes) – Trigo
10. Alexandre Bobwoski (S. José dos Pinhaes) – Trigo, centeio, aveia e milho
11. Arnaldo Villar de Lucena (Curityba) – Aveia
12. Amur Ferreira do Amaral (Dr.) (Curityba) – Aveia
13. Antonio Scaranti (Deodoro) – Trigo
14. Alberto Mikos (S. José dos Pinhaes) – Aveia de inverno
15. Appolinario Gapski (S. José dos Pinhaes) – Aveia
16. Antonio Persegona (S. José dos Pinhaes) – Feijão e aveia
17. Antonio Malleta (S. José dos Pinhaes) – Arroz
18. Achilles Gorba (S. José dos Pinhaes) – Feijão e aveia
19. Antonio Salak (S. José dos Pinhaes) – Centeio
20. Angelo Cataplan (S. José dos Pinhaes) – Feijão de cor
21. Benjamin C. Ferreira (S. José dos Pinhaes) – Trigo
22. Benedicto Subtil de Oliveira (Campo Largo) – Feijão
23. Companhia Cervejaria Adriatica (Pônta Grossa) – Cevada
24. Daniel Dasi (Palmeira) – Trigo
25. Felippe Sckrippe (S. José dos Pinhaes) – Aveia, ervilha e feijão
26. Felippe Frankin (S. Pedro de Mallet) – Trigo
27. Florindo Ficci (Palmeira) – Trigo
28. Francisco Crorikla (S. José dos Pinhaes) – Trigo e aveia
29. Freitas & Filho (Palmeira) – Trigo
30. Gregorio Gumiela (S. José dos Pinhaes) – Trigo, centeio e aveia
31. Ivahy Martins (Dr ) (Curityba) – Aveia, trigo e feijão
32. Isaias Alberti (Curityba) – Arroz e milho
33. Izidório Ottmann (S. José dos Pinhaes) – Feijão
34. Ignes Jez (S. José dos Pinhaes) – Feijão
35. José Innocencio dos Santos (Thomazina) – Cereaes e algodão
36. João Laxata (S. José dos Pinhaes) – Trigo
37. José Nogozeke (S. José dos Pinhaes) – Centeio, ervilha e feijão
38. José Zygmmt (S. José dos Pinhaes) – Centeio e trigo
39. João José Massaneiro (S. José dos Pinhaes) – Aveia
40. João Satvisky (S. José dos Pinhaes) – Aveia
41. Joaquim de O. Franco (S. José dos Pinhaes) – Trigo
42. João Bank (S. José dos Pinhaes) – Trigo e aveia
43. José Zaniolo (S. José dos Pinhaes) – Milho
44. João Czapiewaki (S. José dos Pinhaes) – Feijão
45. João Segismundo (S. José dos Pinhaes) – Aveia
46. José Grabios (S. José dos Pinhaes) – Aveia
47. João de Lima (Conchas) – Feijão branco
48. João Wantroba (Palmeira) – Aveia
49. Luiz Parcicoti (S. José dos Pinhaes) – Milho e trigo
50. Ladislau Lulonka (S. José dos Pinhaes) – Trigo
51. Ladislau Fawoski (S. José dos Pinhaes) – Trigo e centeio
52. Leônidas Alves Cordeiro (Deodoro) – Feijão
53. Manoel Custodio de Mello (Thomazina) – Café
54. Martinho Pianoski (S. João do Triumpho) – Centeio e aveia
55. Martina Wantroba (Palmeira) – Trigo
56. Miguel F. Filho (Lapa) – Centeio, aveia, cevada, milho, feijão e amendoim
57. Manoel Leocadio da Costa (Guaratuba) – Arroz
58. Miguel Stavisky (S. José dos Pinhaes) – Aveia
59. Matheus Carekta (S. José dos Pinhaes) – Aveia preta
60. Paulo Kruposak (S. José dos Pinhaes) – Trigo
61. Pedro Chioratto (S. José dos Pinhaes) – Ervilha, aveia e sementes de linho
62. Pedro Joakin (S. José dos Pinhaes) – Trigo sarraceno
63. R. Carneiro & Cia. (Antoni a) – Cereaes
64. Raphael Rodrigues (Palmeira) – Trigo
65. R. Corrêa & Cia. (Antonina) – Sorgho
66. Raul Senna (Curityba) – Fibra de linho
67. Sadi Romangueira (Dr.) (Guarapuava) – Trigo
68. Stephano Wienynski (S. José dos Pinhaes) – Feijão
69. Stanislau Kulonha (S. José dos Pinhaes) – Aveia
70. Theodoro Scheneider (Curityba) – Cereaes e óleos
71. Thomaz Nogozeke (S. José dos Pinhaes) – Aveia
Classe 43.
72. Escola Agronômica (Curityba) – Collecção de sementes de plantas horticolas
Classes 45 e 46.
73. Junqueira Melle & Cia. (Curityba) – Madeiras serradas
Classe 48.
74. Nedro & Xavier (Curityba) – Animaes empalhados
Classe 51.
75. Todeschim & Irmãos (Curityba) – Massas alimenticias
Classe 52.
76. Paulo Groetzner (Curityba) – Biscoitos, bolachas
Classe 53.
77. Christiano Justus Jor. (Ponta Grossa) – Banha "Odila" e carne salgada
Classe 54.
78. Arthur Rigolino (Curityba) – Vinagre
79. Ballão & Cia. (Curityba) – Café moído e torrado
80. J. Ballão & Cia. (Curityba) – Chá de matte marca “Tupy”
81. Luiz Basgal (Curityba) – Chocolate, Confeitos, café moido e café torrado
82. Paulo Groetzner (Curityba) – Café moido e café torrado, caramelos e confeitos
83. Zeferino Bôamorte (Castro) – Chá da India
Classe 55.
84. Octavio Ferreira do Amaral e Silva (Curityba) – Vinho
85. Paulo Groetzner (Curityba) – Vinhos
86. Quinta Poplade (Curityba) – Vinho
Classe 56.
87. Arthur Rigolino (Curityba) – Licores
Classe 57.
88. Companhia Cervejaria Brasileira – Cervejas e aguas gazozas
89. Companhia Cervejaria Adriatica (Ponta Grossa) –Cereja, refrescos de matte e aguas gazozas
90. Luiz Leitner (Curityba) – Cervejas
91. Sociedade Anonyma Cervejaria Atlântica (Curityba) –Cervejas, aguas gazozas e refresco de malte
Classe 58.
92. Joaquim Pereira de Macedo e Zacarias Paula Xavier (Curityba) – Carvão
Classe 60.
93. Ewaldo & Cia. (Ponta Grossa) – Pregos, dobradiças, fechaduras e breques
94. Santiago & Cia. (Curityba) – Pregos
Classe 66.
95. Frederico Angelo (Morretes) – Quadros a oleo
Classe 67.
96. A. Ribas & Cia. Ltd. (Ponta Grossa) – Telhas e tijolos
97. Arthur Hauer & Cia. (Curityba) – Telhas de barro
98. Carlos & Frederico Muller (Curityba) – Telhas
99. Hortolani & Cia. – Jarras, estatuetas e coroas de barro
100. João H. Wozniak (Araucaria) – Telhas e tijolos
101. Sylvio Colle (Curityba) – Telhas, tijolos e ladrilhos
Classe 68.
102. Solheid & Cia. (Curityba) – Objectos de vidro
Classe 76.
103. Theodoro Schneider (Curityba) – Fio de linho
Classe 81.
104. Alexandre Alteria (Curityba) – Calçados
105. R. Hatschbach & Irmão (Curityba) – Calçados
Classe 86.
106. R. Carneiro & Cia. (Antonina) – Fumo em folha
Classe 87.
107. Emilio Heins (Curityba) – Tinta de escrever “Tucano”
108. Livraria Economica (Curityba) – Livros impressos para usos comerciaes
Classe 93.
109. Valentim Bannach (Castro) – Escovas para todos os usos
Classes 117 e 118.
110. Alcides Munhoz (Curityba) – Estudos econômicos
MEDALHA DE PRATA.
Classes 1 a 6.
1. Salvador Maida (Curityba) – Carteira escolar
Classes 13 e 14.
2. Hertel & Irmão (Curityba) – Harmonicas
3. José Sartori & Irmão (Curityba) – Harmonicas
Classe 24.
4. Alfredo Pedro Ribas (Ponta Grossa) – Cal
Classe 37.
5. F. Ferracini (Dr.) – Casulos de bicho da seda
6. Francisco da Motta Sobrinho – Casulos de bicho da seda
Classes 45 e 46.
7. A. Miranda & Cia. (Fernandes Pinheiro, Teixeira Soares) – Madeiras
8. Freitas & Filhos (Palmeira) – Madeiras
Classe 50.
9. Isais Alberti (Curityba) – Moinho para café
Classe 51.
10. Luiz Slompo (Campo Largo) – Farinhas e fubá
Classe 53.
11. Fabrica de Refinação de Banha (Ponta Grossa) – “Banha especial Paulista”
Classe 55.
12. Arthur Rogolino (Curityba) – Vinhos
13. Antonio Brustolin (Campo Largo) – Vinhos
14. Domingos Cavalli (Campo Largo) – Vinho de uva
15. Florindo Fieci (Palmeira) – Vinho
16. José Craparo (Palmeira) – Vinho
17. José Cantere (Ypiranga) – Vinhos
18. Julio Bazani & Irmão (Curityba) – Vinho
19. João Vanin (Campo Largo) – Vinho de uva
Classe 56.
20. Brambilla & Cia. (Morretes) – Aguardente
Classe 58.
21. José Miguel Barbosa (Colônia Mineira) – Schisto carbonífero
22. Vicente Benedicto (Fernandes Pinheiro) – Carvão
Classe 60.
23. Domingos Filizola (Curityba) – Artefactos de folha de flandres
Classe 64.
24. Augusto Bochardt Junior (Curityba) – Assento de madeira para cadeiras
25. Humberto Carnasciale (Curityba) – Cadeiras communs
26. Ladislau Shrone (Curityba) – Mesa para centro
27. Wolowski W. Duscrak (Curityba) – Moveis
Classe 67.
28. Alberto Klementz (Portão) – Telhas, tijolos e barro em bruto
29. Evaristo Baggio (Curityba) – Vasos, filtros, prato e moringue de barro
30. Hermenegildo Trevisani (Curityba) – Pratos, chicaras e canecas
31. Ignácio de Paula França (Mercês) – Telhas
32. Oliveira Junior & Cia. (Araucaria) – Pratos, chicaras e pires
Classe 69.
33. Manoel Laffitte Busquette (Curityba) – Fogareiros de carvão
Classe 81.
34. Muggiati & Cia. (Curityba) – Calçados
Classe 82.
35. Alfredo Ernesto Bichels (Curityba) – Alcatrão leve. Alcatrão vegetal. Sabão medicinal de oleo de alcatrão. Creosoto phenico. Oleo de alcatrão.
36. Sabatela e Corrêa Netto (Curityba) – Empolas de Rey-Rum
37. Fabrica de Adubos Chimicos Rogge e Weigang (Curityba) – Diversos adubos
38. Irmãos Pizzatto & Wolski (Araucaria) – Alcatrão de nó de pinho e vinagre de nó de pinho
39. Napoleão Dias Aires (Ponta Grossa) – Pasta de encerar soalho
Classe 84.
40. João Holzmann (Ponta Grossa) – Couros, vaquetas e solas
41. Schlenker Irmãos (Curityba) – Pellicas e solas
Classe 88.
42. José Jacob Buhrer (Ponta Grossa) – Cutelaria
Classes 106 e 107.
43. Penitenciaria de Curityba – Trabalhos feitos pelos sentenciados
MEDALHA DE BRONZE.
Classe 17.
1. Hugo Neumann (Rio Negro) – Martello a vapor
Classe 18..
2. Isaias Alberti (Curityba) – Eixo para machina de trabalhar madeiras
Classe 27.
3. M.P. Aguiar (Curityba) – Cabeçadas
Classes 45 e 46.
4. Silvino Ramos (Ponta Grossa) – Barricas para matte
Classe 51.
5. Isaias Alberti (Curityba) – Farinha de beiju, semolina de milho
6. R. Carneiro & Cia (Antonina) – Farinha de arroz, fubá
Classe 54.
7. João Senegaglia (S. José dos Pinhaes) – Vinhos
Classe 55.
8. João Senegaglia (S. José dos Pinhaes) – Vinhos
Classe 56.
9. João Senegaglia (S. José dos Pinhaes) – Graspa
Classe 57.
10. Guilherme Metzenthin Junior & Irmão (Ponta Grossa) Cervejas e aguas gazozas
Classe 58.
11. Bube & Woeschner (Ponta Grossa) – Talco
12. Domingos Pupo de Menezes (Ponta Grossa) – Talco
13. Luiz Guedes Cordeiro (Tamandaré) – Manganez, talco e graphito
14. Manoel Leocadio da Costa (Guaratuba) – Kaolim e areia aurifera
Classe 67.
15. Humberto Scholle – Lustre de madeira
Classe 81.
16. Augusto Kloth (Dr.) (Ponta Grossa) – Cabos de chicote
Classe 82 .
17. Fidelis de Paula Xavier – Acetati e sulphaot de cal. Pixe, agua raz, terebinthina e alcatrão
18. N. D. Ayres (Ponta Grossa) – Revestimento Nacional Estrella applicado em todos os apparelhos para fundições a cêra evaporada
19. Pedro Violani (Curityba) – Pílulas purgativas de Taurina
Classe 85.
20. Edgar Stellfeld (Curityba) – Pasta dentifricia
Classe 93.
21. Marchioro & Cia. (Curityba) – Vassouras de palha, espanadores
Classes 106 e 107.
22. Manoel Lafitte Busquette (Curityba) – Assucareiro hygienico
MENÇÃO HONROSA.
Classe 12.
1. Leopoldo Teuber (Curityba) – Artigos orthopedicos e bandagens
Classe 17.
2. Alfredo Peter (Curityba) – Balanças
3. Augusto Kluth (Ponta Grossa) – Polias
4. Frederico Rauch (Curityba) – Balanças
Classes 45 e 46.
5. Augusto Saback (Curityba) – Vassouras
6. Targino Silva (Arauc aria) – Palhões para garrafas
Classe 51.
7. Cesare Nardi (Curityba) – Farinhas
8. Egydio Mendes (Guarakessaba) – Farinha de mandioca
9. Florindo Ficci (Palmeira) – Farinha de mandioca
10. Julio Severino (Guarakessaba) – Farinha de mandioca
11. José Caprano (Palmeira) – Farinha de mandioca
12. Jorge Avetoleto (Lapa) – Farinha de mandioca
13. João Baccio Netto (Lapa) – Farinha de mandioca
14. Leonidas Alves Cordeiro (Deodoro) – Farinha de mandioca
15. Manoel Leocadio Costa (Guaratuba) – Farinha de mandioca
16. Moysés dos S. Lima (Lapa) – Farinhas de mandioca e de tapioca
Classe 54.
17. Todeschini & Irmão (Curityba) – Café moido
Classe 58.
18. Daniel Farago (Teixeira Soares) – Carvão de pedra
19. Ernesto M. Carneiro (Cel) (Pirahy) – Terra aurifera
20. Ditzel & Cia. (Ponta Grossa) – Sabão
21. Edgar Stellfeld (Curityba) – Lombricida. Naphcoyleina. Seiva de ferro
22. José Pedro Nascimento – Fermento em pó
23. João Alves de Araújo (Curityba) – Xarope de Sena
24. Julio Bombeiro – Bromoformil, callicida Classe 93.
25. Rodolpho Haltrich (Curityba) – Obras de entalhe
Rio de Janeiro, 30 de Junho de 1923
INDEPENDÊNCIAS DO BRASIL
dossiê 200 anos
Secretaria de Estado da Cultura - Paraná
Governador do Estad do Paraná
Governor of the State of Paraná
Carlos Massa Ratinho Junior
Secretária de Estado da Cultura
State Secretary of Culture
Luciana Casagrande Pereira
Diretora-Geral da SEEC
General Director of SEEC
Elietti de Souza Vilela
Diretor de Memória e Patrimônio
Director of Memory nd Heritage
Vinicio Costa Bruni
Coordenador do Sistema
Estadual de Museus
Coordinator of the Museums
State System
Marcos Coga da Silva
Assessoria de Comunicação
Communication Consulting
Fernanda Maldonado
Assessoria de Design
Design Consulting
Rita Solieri Brandt
Sociedade de Amigos do Museu Paranaense
conselho deliberativo
Presidente
President
Guilherme M. Rodrigues
Secretária
Secretary
Barbara Fonseca
Membros
Members
Cristine Elisa Pieske
Amélia Siegel Corrêa
Juliana F. de Oliveira
diretoria
Presidente
President
Manoela Guiss
Vice-presidente
Vice President
Felipe Vilas Bôas
Secretária
Secretary
Francielle de Souza
2o Secretário
2nd Secretary
Richard Romanini
Tesoureira
Treasurer
Josiéli Spenassatto
2a Tesoureira
2nd Treasurer
Mariana Souza Bernal
conselho fiscal
Presidente
President
Gabriela Bettega
Membros
Members
Christianne L. Salomon
Gabriela Martello
Museu Paranaense
Diretora
Director
Gabriela Bettega
Diretor Artístico
Artistic Director
Richard Romanini
Gestão de Conteúdo e Comunicação Content Management and Communication
Beatriz Castro
Heloisa Nichele
Núcleo de Arquitetura e Design
Architecture and Design Division
Gabriela Martello
Juliana F. de Oliveira
Estagiários (Interns)
Davi Eduardo Barz Molinari
Isabella Barbosa de Melo
Núcleo de Antropologia
Anthropology Division
Coordenadora (Coordinator)
Josiéli Spenassatto
Estagiária (Intern)
Maria Eduarda Rodrigues
Núcleo de Arqueologia
Archaeology Division
Coordenadora (Coordinator)
Claudia Inês Parellada
Estagiários (Interns)
Jeniffer Dambroski Braz
Vitor Emanuel Weissheimer
Núcleo de História History Division
Coordenador (Coordinator)
Felipe Vilas Bôas
Estagiários (Interns)
Daiana Marsal Damiani
Gabriella Perazza
Felipe C. de Biagi Silos
Núcleo Educativo
Educational Division
Milena Aparecida Chaves
Roberta Horvath
Marília Alvez Abreu
Estagiários (Interns)
Lucas Plaza da Rosa
Renata S. Oliveira
Thiago Zeferino Silvestre
Gestão de Acervo
Collection Management
Denise Haas
Laboratório de Conservação
Conservation Laboratory
Esmerina Costa Luis
Janete S. Gomes
Biblioteca Romário Martins (Museu Paranaense)
Romário Martins Library
Diego Roggenbach
Segurança
Security
José Carlos dos Santos
Supervisor de Infraestrutura
Infrastructure Supervisor
Rogério Rosário
Independências do Brasil: dossiê 200 anos
Concepção
Concept
Museu Paranaense
Coordenação editorial e gestão de conteúdo
Editorial and content
management
Felipe Vilas Bôas
Beatriz Castro
Heloisa Nichele
Revisão
Proofreading
Mônica Ludvich
Transcrição (Anexo I)
Transcript (Annexe 1)
Amanda C. N. V. da Silva
Design editorial
Editorial Design
Thalita A. Machado
Juliana F. de Oliveira
Richard Romanini
Impressão
Printing
Alpha Editora
Créditos dos textos
7-19
Prefácio
Foreword
Felipe Vilas Bôas
Barbara Fonseca
22-49
A Independência do Brasil sob a ótica feminina na revista paranaense Sempre-Viva (19241925)
Stella Titotto Castanharo
Mayla L. Greboge Montoia
Albano Gabriel Giurdanella
50-75
Dona Leopoldina: o papel de uma mulher na Independência do Brasil (Rio de Janeiro–1822)
Bianca Gunha Mendes
76-97
A independência do Brasil através de uma historiografia cabocla: (Id) entidades e mandingas
Renata Mocelin Penachio
98-121
Esperança, desespero e liberdade: (re)versões e reverberações de uma independência acaboclada
Thiago de Azevedo P. Hoshino
122-147
A Independência por Antônio Poteiro (1925-2010): conversas sobre o Bicentenário em uma galeria de arte
Ariane A. A. de Oliveira Salgado
Emily Cristiane Liebel
Bruno Ferreira de Souza
Raphaela M. de Mello Gonçalves
148-171
Festas reais no atual estado do Paraná: registros de solenidades no período entre a chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil (1808)
e a coroação de D. Pedro II (1841)
Matheus Theodorovitz Prust
172-211
A influência do Seminário de Olinda no discurso revolucionário de Frei Caneca Vagner Melo da Costa
Marlúcia Menezes de Paiva
Charles S. S. Nascimento
212-237
“Progresso ilimitado” e“passado enraizado em sedimentos podres”: o passado colonial, a Revolução
Pernambucana de 1817 e a Independência nas narrativas de Francisco Muniz Tavares e Manoel Bomfim
Lucas dos Santos Silva
239-254
Anexo I:
Catálogo de objetos levados pelo Museu Paranaense à Exposição Internacional do Centenário da Independência no Rio de Janeiro (1922-1923)
Acervo Museu Paranaense
Agradecimentos
O Museu Paranaense agradece aos diversos profissionais e parceiros que fizeram parte deste trabalho e se dedicaram à realização do projeto editorial Independências do Brasil: dossiê 200 anos. Em especial, agradece à Fundação Joaquim Nabuco pela parceria em sua elaboração. Às equipes da Secretaria de Estado da Cultura, da qual fazemos parte: ao seu corpo administrativo, bem como aos técnicos, estagiários e voluntários. Por fim, o MUPA agradece aos patrocinadores, sem os quais este projeto, previsto no Pronac 222082, Mostra Comemorativa - 20 Anos da Sociedade de Amigos do Museu Paranaense, não aconteceria.
PATROCÍNIO
REALIZAÇÃO
MUSEU PARANENSE
Rua Kellers, 289, São Francisco Curitiba, Paraná, Brasil – 80410-100
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Museu Paranaense
Independências do Brasil: dossiê 200 anos / textos de Felipe Vilas Bôas, Barbara Fonseca, Stella Titotto Castanharo … [et al.]. - Curitiba, PR : Museu Paranaense, 2024. 264 p. ; 23,5 x 13,5 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-981850-1-5
1. Museu Paranaense - Artigos. 2. BrasilHistória - Independência, 1822. 3. História - Brasil - Artigos. I. Vilas Bôas, Felipe. II. Fonseca, Barbara. III. Castanharo, Stella Titotto. IV. Título.
CDD ( 22a ed.) 981
Tipografia
Adobe Caslon Pro e Plus Jakarta Sans
Papel
Pólen bold 90g
Tiragem
200 unidades