Presidente da República Jair Messias Bolsonaro
Ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio Secretária Especial de Cultura Regina Duarte
Diretora do Museu Regional de São João del-Rei Eliane Marchesini Zanatta
Sumário 01 São João del-Rei como Patrimônio Nacional
02 A História do Casarão do Comendador
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03 Museu Regional de São João del-Rei: um guardião do patrimônio cultural
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04 O patrimônio museológico de São João del-Rei
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05 O Órgão de Tubos do Museu Regional
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Equipe 2020
São João del-Rei como Patrimônio Nacional
A
paisagem do Centro de São João del-Rei permanece quase imutável desde a década de 1930. Naquela época, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a cidade ganhou o status de patrimônio nacional e passou a ser protegida por leis federais de preservação. Desde então, com exceção de algumas intervenções pontuais, o conjunto arquitetônico da cidade ainda preserva seus casarios coloniais, templos e monumentos históricos. Caminhar pelas ruas resguardadas, em muitos aspectos, é como voltar cem ou duzentos anos no tempo.
A História da Cidade Com mais de três séculos de idade, São João del-Rei passou por diversos períodos e marcou presença em muitos momentos importantes da história do país. As primeiras povoações portuguesas surgiram nesta região em 1702, no Porto Real da Passagem, às margens do Rio das Mortes. Naquele período, exploradores encontraram ouro no Córrego do Lenheiro e nos montes mais ao norte (hoje conhecidos como os bairros Alto das Mercês e Senhor
dos Montes). A descoberta do metal precioso logo trouxe ainda mais europeus para a região e as primeiras casas surgiram. Ao longo de todo o século XVIII, o povoado se expandiu ao redor da exploração aurífera. Inicialmente chamado de Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar (devido à capela ali construída, dedicada à esta santa), ainda em 1713 ganharia o nome de São João del-Rei, em homenagem ao rei D. João V. O local era a porta de entrada para as minas e entroncamento de estradas para diversas regiões do interior: caminho obrigatório para comerciantes tropeiros e bandeirantes. Se tornou sede da Comarca do Rio das Mortes, foi palco da Guerra dos Emboabas e, ainda naquele século, da Inconfidência Mineira. O ouro atraiu comerciantes e, no período oitocentista, a cidade prosperou, mesmo com o declínio da exploração mineral. Foi cogitada para ser a capital do Estado, teve a primeira biblioteca, o primeiro banco e o primeiro jornal das Minas Gerais. Substituiu a renda do metal precioso pela produção de bens industriais e, mesmo com todo o espírito progressista, adentrou ao século XX com muito de sua arquitetura colonial ainda preservada.
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A paisagem urbana atraiu a atenção dos modernistas, do Ministério da Educação e Saúde do SPHAN. Tal interesse, fez de São João del-Rei um dos principais expoentes da preservação patrimonial do Brasil. Mantendo seu histórico de pioneirismo, ela foi a primeira “cidade monumento” a ser listada no Livro do Tombo.
poeta Mário de Andrade, tiveram grande influência na idealização de um serviço nacional de proteção e promoção da cultura e história do país – e as tradições são-joanenses foram decisivas para tal. O momento era propício para a empreitada. A ditadura do Estado Novo, comandada por Getúlio Vargas, buscava consolidar
O Tombamento Em março de 1938, a cidade de São João del-Rei teve todo o seu acervo arquitetônico e paisagístico registrado na Inscrição Nº 1 do Livro do Tombo das Belas Artes do SPHAN. No entanto, o interesse pela Cidade dos Sinos surge bem antes, ainda em 1924. Naquele ano, alguns modernistas saíram em viagem para “redescobrir o Brasil”. Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e outros, chegaram a São João del-Rei durante a Semana Santa e se deslumbraram com a arquitetura e cultura do lugar. Estes paulistas, principalmente o
O termo Livro do Tombo possui origens bem mais antigas, fazendo referências à Torre do Tombo de Portugal. Localizada no Castelo de São Jorge, a torre portuguesa reunia toda a documentação oficial do governo, desde 1378. Tombo derivaria do grego “tómos”, que era usado para designar pedaços de papiro ou volumes. Com o tempo, a Torre do Tombo se tornou sinônimo de preservação documental e, posteriormente, abrangeu outras categorias. O substantivo se tornou verbo e “tombar” se tornou qualquer ato de reconhecimento do valor histórico, artístico ou cultural de um bem.
Vista de SJDR em 1938: A primeira cidade registrada no Livro do Tombo de Belas Artes. Autor desconhecido
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uma política de identidade nacional, como forma de unificação do país e consolidação dos ideais da Revolução de 1930. Mário de Andrade levou suas ideias ao governo, escreveu um anteprojeto que serviu de base para a entidade federal e influenciou na escolha dos primeiros bens a serem tombados. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi criado oficialmente em 1937. Já no ano seguinte, a nova entidade ligada ao então Ministério da Educação e Saúde iniciou uma série de tombamentos por todo o Brasil. Desde aquele momento, os registros são feitos em quatro diferentes Livros: Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Histórico; das Artes Aplicadas; e das Belas Artes. ligada ao então Ministério da Educação e Saúde iniciou uma série de tombamentos por todo o Brasil. Desde aquele momento, os registros são feitos em quatro diferentes Livros: Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Histórico; das Artes Aplicadas; e das Belas Artes. Em 1938, o SPHAN já havia registrado, em todo o Brasil, cerca de 300 bens a serem preservados. E, em uma iniciativa inovadora, elegeu seis conjuntos urbanos completos, em razão da integridade e uniformidade de seus conjuntos coloniais, levando ao tombamento de cidades inteiras: São João del-Rei, Serro, Tiradentes, Ouro Preto, Mariana e Diamantina. Desde então, esses locais são protegidos legalmente pela União.
Os Bens Preservados Em São João del-Rei, inicialmente, não houve demarcação da área tombada. Apenas em 1947, após o embate pela preservação e tombamento do Casarão do Comendador (que atualmente sedia o Museu Regional), o SPHAN decidiu delimitar a zona de preservação da cidade.
A área se inicia na Rua Santo Antônio, estendendo-se para nordeste até a Rua João Mourão – abrangendo todo o casario do período colonial e imperial. Há ainda o conjunto nos arredores da Estação Ferroviária e um apêndice que parte da Ponte do Rosário em direção ao Sul, até a Rua Dr. Mourão Filho. Além do conjunto urbano, alguns bens foram tombados individualmente, devido aos seus valores estéticos ou históricos. Junto ao tombamento do conjunto urbano, ainda em 1938, o SPHAN também tombou a Igreja de São Francisco de Assis, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo e a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Posteriormente, outras construções foram sendo registradas nos Livros do Tombo: o Casarão do Comendador do Largo Tamandaré (atual Museu Regional), em 1946; os Passinhos da Via Sacra das Ruas Duque de Caxias e Getúlio Vargas, em 1949; a Igreja Matriz de São Miguel Arcângelo, no distrito do Cajurú, em 1967; o trecho da Estrada de Ferro Oeste de Minas, entre Aureliano Mourão, São João del-Rei e Antônio Carlos, em 1983; o Complexo Ferroviário entre São João e Tiradentes, em 1985; e o acervo de bens móveis da Capela de Nossa Senhora da Ajuda, da Fazenda do Pombal (atualmente no Museu de Arte Sacra), em 1988.
FONTES DE CONSULTA São João del-Rei: Tensões e Conflitos entre o Passado e o Progresso (dissertação de mestrado de Raf. J. C. Flôres, 2007). Resolução do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Processo nº 361-T. 1946, Ministério da Educação e Saúde) Lista de Bens Tombados e Processos em Andamento 2018 (Portal do IPHAN. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista_bens_tombados_processos_andamento_2018)>
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A História do Casarão do Comendador
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sobrado do Museu Regional de São João del-Rei terminou de ser construído em 1859. Considerado um marco da resistência de preservação do patrimônio arquitetônico da cidade, a construção passou por momentos conturbados ao longo da história. Após servir de comércio e residência familiar, o casarão se tornou motivo de embate político, cultural e econômico. Construído a pedido do Comendador João Antônio da Silva Mourão, comerciante são-joanense, o sobrado passou pelas mãos de duas famílias, até ser vendido para uma empreiteira. Foi parcialmente demolido, desapropriado e restaurado. Das ruínas veio a se tornar museu e guardião da memória e cultura de São João del-Rei.
O Comendador João Antônio da Silva Mourão nasceu em São João del-Rei em 1806. Filho de mãe solteira, se tornou um próspero homem de negócios na cidade. Atuou como comerciante, negociando bens e serviços e emprestando dinheiro a juros. Sua fortuna também foi enriquecida com heranças conjugais e materna. No inven-
tário da mãe de Mourão, Ana Joaquiana Albino de Azevedo Lemos, estão descritos equipamentos de mineração, imóveis e escravos. É possível especular, a partir deste documento, que ela administrava os negócios da família. Além das posses que herdou da mãe, Mourão se casou três vezes, o que fortalecia sua posição social. Seu prestígio e influência na comunidade foram confirmados com duas importantes condecorações da época. Mourão recebeu a Comenda da Ordem de Cristo e a Comenda da Ordem da Rosa – insígnias concedidas durante o Império e que serviam para distinguir aqueles que propagassem a fé, o culto cristão e dedicassem fidelidade ao Imperador. Acredita-se que as comendas lhe tenham sido concedidas por seus serviços prestados à Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em São João del-Rei, da qual era membro. O prestígio de Mourão ficou ainda mais evidente após a construção do imóvel localizado em um espaço privilegiado da cidade. O sobrado com três pavimentos se destacava à beira do Córrego do Lenheiro, em um local considerado a entrada da cidade, caminho para as tropas de comerciantes
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Vista do Casarão do Comendador, anterior a 1895: um modelo da arquitetura oitocentista. Autor desconhecido
que viajavam pela Estrada Real. Não apenas pelo tamanho, mas também pelo estilo arquitetônico imponente, o imóvel era uma forma de destacar o poder financeiro. Apenas alguns anos após o término da construção, Mourão veio a falecer, em 1866, deixando o sobrado como herança para a terceira esposa e seus dez filhos.
O Casarão: um Embate entre Preservação e Progresso Após a morte do Comendador, seus herdeiros continuaram morando no sobrado do Largo Tamandaré por quase uma década. Em 1875, no entanto, seus filhos deixaram o imóvel, optando por aluga-lo. Mais de meio século depois, em 1926, os descendentes de Mourão decidiram por vender a casa, que foi transferida para a família do Coronel Gabriel Felisbino de Resende.
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É preciso lembrar que, em 1938, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), todo o conjunto urbano de São João del-Rei foi tombado e passou a ser protegido legalmente. Qualquer modificação nos edifícios deveria passar por aprovação do órgão federal. O antigo Casarão do Comendador estava no centro da zona de proteção do SPHAN e, em 1944, uma das herdeiras do Coronel Resende, Maria Resende Mafra, consultou o Serviço Federal. Sua intenção era demolir o prédio para construir um hotel. O SPHAN reprovou as intenções da proprietária, mas ofereceu apoio técnico no restauro e adaptação da casa em um empreendimento hoteleiro. Por insatisfação com a decisão do órgão e esta ter se mostrado inviável financeiramente, Maria Resende Mafra opta por ven-
der o imóvel e o Casarão do Comendador é repassado à Companhia Interestadual de Melhoras e Obras Sociedade Anônima (CIMOSA). À época, a empreiteira tinha como diretor-presidente o advogado Tancredo de Almeida Neves – que futuramente se destacaria na política nacional e chegaria ao cargo de presidente da república. A CIMOSA desconsidera a atuação do SPHAN e, em 1946, inicia a demolição do sobrado. O processo começa pelo interior da construção, destruindo todas as paredes internas dos três pisos. A empresa pretendia construir, no local do antigo sobrado, uma edificação de doze andares. O projeto previa ainda, já com o aval da prefeitura, a construção de uma nova estação rodoviária no local da Praça Severiano de Resende (o Largo Tamandaré). A partir daí, inicia-se uma disputa na cidade. De um lado, o SPHAN e seus arquitetos
se movimentam para barrar as obras e preservar o Casarão. Do outro, empresários e jornais de São João del-Rei dão vasão a uma campanha de viés progressista, incentivando o avanço da cidade e a demolição do prédio. O embate midiático, político e econômico se estende por todo o ano de 1946. Nesse meio tempo, as obras foram embargadas, mas todo o interior do prédio já havia sido demolido – além dos telhados e das paredes externas do último pavimento. O Casarão do Comendador encontrava-se em ruínas. Por fim, sobrado, que na época contava com cerca de 80 anos, foi tombado individualmente como patrimônio nacional. Por intervenção do então Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, o imóvel foi desapropriado e o processo de demolição totalmente interrompido.
As Particularidades do Casarão Construído no Período Imperial, o Casarão do Comendador possui características que se destacaram ante o olhar dos arquitetos do SPHAN. Para o órgão, o prédio era um exemplar característico da arquitetura imperial, com ornamentos em estilo rococó e elementos arquitetônicos de influência francesa – o que o classifica como um exemplar raro daquele período, principalmente fora das regiões cafeeiras de Minas Gerais. O artista e historiador José Wasth Rodrigues diz ainda que as particularidades das ornamentações da fachada podem ter servido de modelo para outras construções de São João del-Rei. Segundo ele, prédio seria comparado em importância à Casa dos Contos de Ouro Preto ou somente a mais um ou dois prédios do Brasil. O sobrado parcialmente demolido em 1946. Autor desconhecido. Arquivo do MRSJDR
Após a desapropriação do imóvel, o SPHAN
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deu início a uma grande obra de restauro, que se estenderia por cerca de uma década e envolveria grandes nomes da arquitetura nacional. Apesar de destruído internamente, a maioria das características externas do edifício foi preservada e o antigo Casarão do Comendador – que fora sede comercial e residencial de grandes famílias da cidade – se tornaria, mais tarde, o Museu Regional de São João del-Rei.
FONTES DE CONSULTA São João del-Rei: Tensões e Conflitos entre o Passado e o Progresso (dissertação de mestrado de Raf. J. C. Flôres, 2007). A Casa do Comendador João Antonio da Silva Mourão atual Museu Regional de São João del-Rei. ( (Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil de Til Pestana, 1990). Documento I.MG-523.018. S/d. (Prómemória) Documentário Arquitetônico Relativo à Antiga Construção Civil no Brasil. (José Wasth Rodrigues)
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Museu Regional de São João del-Rei: um guardião do patrimônio cultural
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Museu Regional de São João del-Rei foi oficialmente aberto ao público em 1963, mas sua história começa mais de uma década antes. O Casarão do Comendador Mourão, construído em 1859 e tombado como patrimônio arquitetônico em 1946, possui uma história de embates políticos e econômicos que marcaram a cidade. Após ter sido parcialmente demolido na década de 1940, o sobrado foi finalmente desapropriado e ficou sob responsabilidade da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (a DPHAN, atual IPHAN). A partir daí, o órgão federal daria início a um grande processo de reforma e restauração do prédio, que se seguiria ao longo dos anos de 1950. Paralelamente ao momento de embate sobre a preservação deste casarão, outra discussão tomava conta das páginas dos jornais são-joanenses: a possível criação do primeiro museu da cidade e qual seria a sua localização.
A formação do museu Ralf Flôres, que dedicou seu doutorado à história do Museu Regional, situação a
idealização do museu ainda na década de 1940. Segundo ele, ainda em 1946, enquanto o Casarão do Comendador era aos poucos demolido, políticos mineiros da União Democrática Nacional (UDN) encaminharam um requerimento à Assembleia Nacional Constituinte. O documento solicitava que o Ministério da Educação e Saúde Pública fundasse um museu histórico em São João del-Rei, sob responsabilidade da DPHAN. Esse foi o primeiro passo para formação de uma instituição museológica na cidade, mas o modo como foi idealizado não agradou a oposição – pelo menos é o que dizia a imprensa. Flôres cita o jornal ‘O Correio’, de junho daquele ano, que dizia que “a população inteira recebeu desapontada a iniciativa dos deputados udenistas [...] sugerindo a criação de um museu regional, no local onde outrora existiu um velho casarão, hoje reduzido a escombros”. A campanha pela demolição da casa continuava e a possibilidade de transformá-la em um museu acirrou ainda mais os ânimos dos interessados no prédio. Em setembro de 1946, o diretor geral da DPHAN, o advogado Rodrigo Melo Franco de Andrade, ao solicitar autorização de restauro do prédio ao Ministro da Educação e
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Saúde Pública, também comunicou a decisão de que o imóvel seria adaptado para a instalação de um museu “semelhante aos que foram organizados em Ouro Preto e Sabará”. Nas palavras do diretor, com a criação de uma “instituição cultural de manifesta utilidade pública”, a população de São João del-Rei talvez passasse a considerar “com mais simpatia e melhor compreensão a ação desta Diretoria em prol da preservação do patrimônio histórico e artístico daquela gloriosa cidade”. Por fim, prevaleceu a vontade da DPHAN e, depois de desapropriado, a restauração que se seguiu já previa ali o funcionamento de um museu.
A influência de Lúcio Costa O processo de restauração do Casarão do Comendador Mourão passou pelas mãos de vários arquitetos da DPHAN. Entre eles, estava Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa, que, alguns anos depois, seria o principal responsável pelo projeto urbano da cidade de Brasília. Lúcio Costa foi pesquisador da arquitetura nacional e especialista em construções coloniais. Ele via São João del-Rei como “uma cidade depositária de elementos da arquitetura tradicional brasileira”. Dentro deste olhar purista do arquiteto, a cidade era algo muito maior e importante do que ela mesma. Nas palavras de Ralf Flôres, Lúcio Costa considerava que o conjunto urbano são-joanense estava inserido na “imensa constelação da formação da arquitetura moderna brasileira”. Ao assumir os trabalhos no sobrado do Largo Tamandaré, Lúcio Costa planejava reconstruir o interior da casa seguindo sua planta original, com divisões de quartos, alcovas, salas e corredores. Sua visão de “museu casa” visava recriar cenários da
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época em que o sobrado fora construído. O projeto, no entanto, mostrou-se inviável e o arquiteto optou por outro formato de museu. No lugar dos diversos cômodos, a proposta trazia salões amplos, quase contínuos: uma visão “moderna” inserida em uma construção quase centenária. A nova divisão espacial daria outra identidade ao futuro museu, com espaços expositivos mais próximos da “neutralidade moderna” do que da “cenografia”. No entanto, o exterior do imóvel manteve ao máximo suas características originais, valorizando aquilo que Lúcio Costa considerava um exemplar da tradicional arquitetura brasileira, com suas sequências de portas e ornamentos de fachada. Alguns dos ornamentos, infelizmente, se perderam durante a demolição, principalmente no último pavimento, que possuía relevos sobre as janelas centrais. O gradil das sacadas também teve de ser todo refeito. As grades originais já haviam sido vendidas antes da desapropriação do prédio e não puderam ser recuperadas. Ainda hoje, as grades originais podem ser vistas ornamentando outras casas da cidade.
O acervo O acervo começou a ser adquirido antes mesmo do fim da restauração do prédio, ainda em 1952. Lúcio Costa sugeria que as peças tivessem ligação com o período em que o sobrado fora construído ou que tivessem o estilo daquela época. A pesar da proposta se basear em um recorte bem definido de tempo e estilo, o processo de aquisição mostrou-se conturbado e a coleção ganhou características variadas, abrangendo obras não apenas do período imperial, mas também do colonial.
A primeira montagem da exposição, idealizada pela museológica Lígia Martins Costa na década de 1960. Autor desconhecido. Arquivo MRSJDR
Peças de arte sacra, elementos arquitetônicos, móveis, utensílios domésticos, instrumentos de trabalho e outros objetos compõem o acervo original, que continua sendo acrescido de outras peças. A restauração foi concluída em 1958, mas o Museu Regional de São João del-Rei só foi oficialmente aberto ao público em 1963, sob a direção do Monsenhor José Maria Fernandes.
FONTES DE CONSULTA Ofício 1.310, de 4 de setembro de 1946. Processo 80.308/46 (DPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade). São João del-Rei: Tensões e Conflitos entre o Passado e o Progresso (dissertação de mestrado de Raf. J. C. Flôres, 2007). A Casa do Comendador João Antonio da Silva Mourão atual Museu Regional de São João del-Rei (Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil de Til Pestana, 1990).
Somado ao conjunto arquitetônico da cidade, tombado em 1938, o Museu Regional de São João del-Rei com seu significativo acervo constituído de bens simbólicos do patrimônio da cultura nacional, vem cumprindo a sua missão de preservar, pesquisar, documentar e comunicar a memória de São João del-Rei em diálogo com a memória regional e nacional.
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O patrimônio museológico de São João del-Rei
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patrimônio cultural de São João del-Rei e região não se resume à arquitetura dos períodos colonial e imperial, mas também é composto por objetos de arte e história. A cidade possui onze museus e memoriais que salvaguardam diversas memórias, seja do cotidiano social, econômico, musical, religioso, político ou militar. Entre essas instituições estão o Museu Regional de São João del-Rei, o Museu de Arte Sacra, o Museu da Força Expedicionária Brasileira (FEB), o Museu Municipal Tomé Portes Del Rei, o Museu Ferroviário, o Memorial Dom Lucas, o Memorial Tancredo Neves, o Museu dos Sinos, o Museu da Música (CEREM), a Fundação Koellreutter e o Museu do Barro. O passado que formou a cultura e o modo de vida dos cidadãos de hoje pode ser conhecido ou relembrado em cada um desses locais. Aberto ao público em 1963, o Museu Regional foi a primeira dessas instituições a ser instalado na cidade. Com um acervo variado, adquirido e reunido ao longo da década de 1950, o museu expõe ao público muitos dos objetos que compõem a identidade do povo mineiro.
O acervo do Museu Regional Sediado no antigo Casarão do Comendador Mourão, de frente à Praça Severiano de Resende (Largo Tamandaré), o Museu Regional possui uma vasta coleção, dividida entre acervo museológico, arquivístico e bibliográfico. Organizado, em sua maioria, ao longo da década de 1950, as peças e documentos remetem à vida cotidiana e doméstica, urbana ou rural. Já a biblioteca é especializada em museologia, história de Minas Gers e da cidade. O acervo museológico é composto por quase 500 obras. São peças datadas entre o final do século XVIII e início do século XX, em sua maioria originárias do estado de Minas Gerais. A maior parte da coleção é formada por obras de arte sacra, utensílios e mobiliários domésticos, meios de transporte e equipamentos de trabalho. Com intenção de ilustrar o modo de viver, trabalhar e se relacionar da população mineira dos períodos setecentistas e oitocentistas, o acervo é constituído principalmente de objetos antes utilizados no ambiente doméstico. As coleções de arte sacra são composta por imagens e oratórios oriundos de casas e de fazendas da região. O mesmo pode ser dito do mobiliário, formado por
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Vista do acervo museológico em 2012. Foto de Íris Marinelli
camas, cadeiras, mesas, cômodas e armários. Os instrumentos de trabalho relembram os ofícios praticados no período do Brasil colonial, com ferramentas de entalhe da madeira que remetem, muitas vezes, às próprias obras expostas no museu, como as imagens sacras e o mobiliário. A coleção foi ampliada ao longo dos anos. Peças do primeiro banco privado de Minas Gerais, inaugurado em São João del-Rei em 1860, passaram a fazer parte do acervo museológico. Máquinas de escrever e calculadoras mecânicas, além de objetos de escritório datados do início do século XX remontam ao cotidiano econômico da região do Campo das Vertentes. Diferente do acervo museológico, o arquivístico possui uma temática bem mais vasta que o ambiente doméstico e profissio-
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nal. Quando foi criado, o Museu Regional possuía mais de 100 mil documentos da Comarca do Rio das Mortes, entre outras coleções familiares e particulares. Em 2007, quase toda a documentação da Comarca, composta por inventários, testamentos, certidões, autos judiciais, entre outros, foi transferida para o escritório técnico do IPHAN na idade, restando muito pouco desta coleção. Ainda assim, o arquivo da instituição conta atualmente com mais de mil documentos. São fotografias do conjunto urbano de São João del-Rei, registros genealógicos, fotos particulares de famílias da região, bilhetes postais, mapas, registros comerciais e bancários, fotografias dos século XIX, álbuns impressos, catálogos e uma variedade de outros papeis, impressos ou manuscritos.
Por fim, o acervo bibliográfico conta com mais de 1500 volumes. São livros, catálogos e revistas com temáticas artísticas, históricas e noticiosas. Uma grande variedade de livros registram a história de São João del-Rei e cidades próximas, de autoria de pesquisadores locais e regionais. Há também publicações oriundas de museus de todo o país e volumes dedicados a arquitetura
portante para que as futuras gerações possam entender e conhecer o modo de vida de grupos sociais no passado, e compreenderem como eles influenciam o cotidiano do presente.
FONTES DE CONSULTA Arquivos do Museu Regional de São João del-Rei São João del-Rei: Tensões e Conflitos entre o Passado e o Progresso (dissertação de mestrado de Raf. J. C. Flôres, 2007).
Trecho de documentação de sesmarias. Pertencente ao acervo aquivístico do MRSJDR
A biblioteca conta ainda com a coleção de Revistas do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, publicadas pelo IPHAN desde sua fundação na década de 1930. Todo o acervo do Museu Regional, somado ao dos demais museus de São João del-Rei, compõem um vasto patrimônio cultural, histórico e artístico que enriquece ainda mais a cultura nacional. A memória permanece viva através dos objetos e das histórias que eles contam. Dessa forma, a preservação das obras museológicas é um passo im-
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O Órgão de Tubos do Museu Regional
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om cerca de 200 anos de idade, o órgão de tubos do Museu Regional foi construído quando São João del-Rei era ainda uma vila. Após um longo período de silêncio, foi totalmente restaurado e, desde 2010, encontra-se em pleno funcionamento. Hoje, a música do Século XVIII encontra-se viva e ressonante no museu, através de um instrumento possivelmente produzido no Brasil e pertencente à região do Campo das Vertentes. Preservado como acervo museológico e usado durante recitais, o órgão de tubos faz parte da herança cultural do município, como parte do patrimônio musical da cidade. Apresentações musicais realizadas pelo museu revivem diversas melodias do período colonial e imperial e trazem para o público as músicas escritas por compositores locais, como o Pe. José Maria Xavier.
O órgão chegou ao Museu Regional na década de 1960, advindo da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Naquela época, o instrumento se encontrava em mal estado de conservação, faltavam-lhe muitas flautas e seu mecanismo interno já não funcionava mais. Sua história, no entanto, é bem mais antiga.
As origens do órgão Não se sabe com exatidão a data da construção, ou quem foi o organeiro responsável pela confecção do órgão, mas algumas informações, reunidas ao longo de anos de pesquisa, conseguem situar uma idade aproximada e uma origem para a obra. O registro mais antigo do instrumento é datado de 1824. Em seu testamento, um padre de São João del-Rei deixava o órgão de tubos para a Ordem do Carmo. Pelo mesmo documento, é possível saber que o Padre Jerônimo Pereira de Carvalho morava na Fazenda da Bela Vista, na região onde hoje situa-se o Distrito de São Miguel do Cajuru. Apesar do primeiro registro documental ser do início do século XIX, durante o restauro chegou-se à conclusão de que o instrumento foi construído em um período anterior. Com os documentos encontrados nos dutos de ar não foi possível determinar a idade e a autoria da peça. No entanto, o diagnóstico da empresa restauradora concluiu que o modelo do teclado e as técnicas dos tubos, além dos detalhes decorativos, são características utilizadas durante o século XVIII. Já os estudos da organista e pesquisadora
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não havia quem soubesse “tanger o órgão”. O instrumento, então, permanece em silêncio e vai se danificando com o tempo. No início da década de 1960, o Capelão da Ordem Terceira do Carmo, Monsenhor José Maria Fernandes, se envolve na organização do Museu Regional de São João del-Rei, que seria fundado oficialmente em 1963. O religioso, que se tornou o primeiro diretor da instituição, doou diversos bens artísticos da igreja para o museu – entre eles o órgão de tubos da Fazenda da Bela Vista.
Preservação e restauro
O órgão antes da restauração: Em silêncio por quase um século
Elisa Freixo concluem que o instrumento foi construído por um organista brasileiro ou português. Seu tamanho sugere que tenha tido finalidades domésticas, para ambientes pequenos – o que corrobora com o testamento de Pe. Jerônimo, que cita o acervo da capela de sua fazenda. A partir de 1824, com a morte de Pe. Jerônimo, o órgão foi instalado na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Centro de São João del-Rei. Ali, passou a fazer parte das celebrações e festas religiosas, sendo tocado por organistas contratados pela igreja, junto à Orquestra Lira Sanjoanense. O instrumento só parou de ser usado cerca de cem anos depois. Em 1925, a Ordem Terceira do Carmo rompe o contrato com a Lira e, no grupo musical que assume o serviço na igreja,
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O antigo instrumento de Pe. Jerônimo permaneceu exposto no Museu Regional, sem funcionamento, por cerca de 46 anos. Quando chegou, estava coberto com uma pintura escura, em tons marrons, faltavam-lhe a maior parte de seus tubos e, apesar do mecanismo aparentemente completo em seu interior, já não mais funcionava. Por volta de 2005, foi idealizada a possibilidade de restauração do órgão de tubos. Naquele ano, a empresária Zélia Mendon
O órgão de tubos restaurado: Os sons do séc. XVIII agora podem ser ouvidos novamente. Acervo MRSJDR
técnicas pintura marmorizada. O mecanismo musical, com seus foles, teclas, flautas e demais elementos ficaram sob responsabilidade de empresa de restauração espanhola, sediada em Barcelona. Dois organeiros alemães foram enviados à São João del-Rei e trabalharam a recuperação do instrumento dentro da instituição.
Trecho de documentação de sesmarias. Pertencente ao acervo aquivístico do MRSJDR
ça, ao saber dos planos da instituição, fez uma doação que deu origem ao projeto de captação de recursos. Dessa forma, deu-se início aos esforços para restauração do instrumento setecentista. A musicista Elisa Freixo realizou um concerto de cravo beneficente, em prol da restauração do órgão e, mais tarde, participou como consultora nos trabalhos de recuperação do instrumento. A Associação de Amigos do Museu Regional de São João del-Rei (Amarei) – criada no início dos anos 2000 – assumiu o processo e se responsabilizou por todo o projeto. Os membros da Amarei – Angela M. B. Lopes, Antônio M. Pedroso Júnior, Artur C. C. Moreira, Célia M. T. Vitral, Flávio J. G. Frigo, José P. Teixeira Neto, Maria de Fátima N. Braga, Patrícia T. de Almeida, Ricardo J. Bassi, Silvério Parada, Wanderley M. Guilherme – deram início à captação de recursos. O projeto foi financiado pela Petrobrás e pelo Itaú Cultural. Durante a restauração, iniciada em 2009, descobriu-se que a tinta escura se sobrepunha à pintura original. O marrom foi removido e as cores claras reapareceram após décadas escondidas. Sobre as almofadas das portas, descobriram temas florais e
Desde 2010, o órgão passou a funcionar de forma completa, trazendo de volta os sons e a musicalidade dos séculos XVIII e XIX. Frequentemente, o Museu Regional realiza recitais do instrumento, com entrada gratuita. O mecanismo musical, com seus foles, teclas, flautas e demais elementos ficaram sob responsabilidade de empresa de restauração espanhola, sediada em Barcelona. Dois organeiros alemães foram enviados à São João del-Rei e trabalharam a recuperação do instrumento dentro da instituição. Desde 2010, o órgão passou a funcionar de forma completa, trazendo de volta os sons e a musicalidade dos séculos XVIII e XIX. Frequentemente, o Museu Regional realiza recitais do instrumento, com entrada gratuita.
FONTES DE CONSULTA Ficha Catalográfica do Órgão de Tubos (Acervo do Museu Regional de São João del-Rei). O Órgão de Tubos da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo de São João del-Rei (Aluízio José Viegas). Relatório Final dos trabalhos de conservação e restauração realizados na Caixa do Órgão pertencente ao Museu Regional de São João del-Rei/MG (Anima – Conservação Restauração e Artes Ltda). Memoria Final de la restauración del órgano processional del Museo Regional de São João del-Rei (Minas Gerais, Brasil) (Andreas Fuchs – Gerhard Grenzing, S.A Construcció d’Orgues).
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Equipe Direção
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Adauri da Páscoa Rios Alexandro Geraldo B. dos Santos Aline Maria Rodrigues Aline Nazarethe de Abreu Clebson Marcio da Cunha Djalma dos Santos Souza Edílson Reinaldo Isabela Cristina Martins de Castro Jaqueline da Cruz Campos Jéssica Mariana Souza Oliveira João Victor Vilas Boas Militani Magno de Souza Gomes Marlon de Oliveira Gouvêa Mark Lane Rios de Carvalho Roberto Carlos Tavares Rosane de Freitas Vieira Rosimeire Conceição Silva Santos Samuel Cláudio do Nascimento Silvano Ribeiro dos Santos Victor César Silva Walquimedes de Alcântara Moreira Estagiários Augusto Lemos da Silva Brenda Guerra Ribeiro Heloísa Cristina Gonçalves Dalpiaz Jéssica de Cássia Bento Monalisa de Aguiar Bento Polyana de Almeida Firmino
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Textos ISABELA CRISTINA MARTINS DE CASTRO JOÃO VICTOR VILAS BOAS MILITANI Diagramação BRENDA GUERRA RIBEIRO Revisão ELIANE MARCHESINI ZANATTA MARLON DE OLIVEIRA GOUVÊA
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