Antes e depois - Paul Gauguin (L&PM Editores)

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Quando leio esta passagem: “O desenho de Gauguin lembra um pouco o de Van Gogh”, sorrio. Nos últimos tempos de minha estada, Vincent tornou-se excessivamente brusco e barulhento, depois taciturno. Algumas noites o surpreendi, de pé, perto da minha cama. A que atribuir o meu despertar nesse momento? O fato é que, quando isso ocorria, bastava dizer-lhe em tom bem grave: “O que é que você tem, Vincent?”, para que, sem uma palavra, ele voltasse para a cama e caísse num sono profundo. Tive a ideia de fazer seu retrato pintando a natureza morta que ele tanto amava, a dos girassóis. Quando terminei, ele me disse: “Sou eu mesmo, mas eu enlouquecido”. Na mesma noite fomos ao café. Ele tomou um absinto leve. De repente, ele me jogou na cara o copo e o seu conteúdo. Aparei o golpe e, pegando-o forte pelo braço, saí do café, atravessei a praça Victor-Hugo e, alguns minutos depois, Vincent achava-se em sua cama, onde em alguns segundos dormiu para se levantar somente na manhã seguinte. Ao despertar, muito calmo, ele me disse: “Meu caro Gauguin, tenho uma vaga lembrança de que ontem à noite o ofendi”. – Eu o perdoo de bom grado e de todo coração, mas a cena de ontem poderia se repetir, e se eu fosse atacado poderia perder as estribeiras e estrangulá-lo. Permita-me então escrever ao seu irmão para anunciar-lhe meu regresso. Que dia, meu Deus! Chegando a noite, acabara meu jantar e sentia a necessidade de ir sozinho respirar o ar perfumado dos loureiros em flor. Já atravessara quase inteiramente a praça Victor-Hugo, quando ouvi atrás de mim um pequeno passo bem conhecido, rápido e irregular. Virei-me no exato momento em que Vincent se precipitava sobre mim com uma navalha aberta na mão. Meu olhar nesse momento deve ter sido muito poderoso, pois ele parou e, baixando a cabeça, retomou correndo o caminho de casa. 21


Será que fui covarde nesse momento e não deveria tê-lo desarmado e procurado acalmá-lo? Várias vezes interroguei minha consciência e não me censurei em nada. Quem quiser que me jogue a primeira pedra. Em seguida, fui a um bom hotel de Arles, onde, depois de perguntar a hora, reservei um quarto e me deitei. Muito agitado, pude dormir somente às três horas da manhã e acordei bastante tarde, em torno de sete e meia. Chegando à praça, vi reunida uma grande multidão. Perto de nossa casa, gendarmes e um senhor baixo, de chapéu coco, que era o comissário de polícia. Eis o que se passara. Van Gogh voltou para casa e imediatamente cortou sua orelha, exatamente na base da cabeça. Deve ter levado um certo tempo para estancar a força da hemorragia, pois no dia seguinte numerosas toalhas molhadas estavam estendidas nas lajes dos dois cômodos de baixo. O sangue sujara os dois cômodos e a escadinha que subia para nosso quarto de dormir. Quando teve condições de sair, a cabeça envolvida por um gorro basco completamente enfiado, foi direto para uma casa onde, na falta de um compatriota, encontra-se alguém conhecido, e deu ao sentinela sua orelha bem limpa e fechada num envelope. “Tome”, disse ele, “como lembrança minha”, depois fugiu e voltou para casa, onde se deitou e adormeceu. No entanto teve o cuidado de fechar as vene­zianas e de colocar numa mesa perto da janela uma lamparina acesa. Dez minutos depois toda a rua entregue às “mariposas” estava em movimento e todo o mundo comentava indiscretamente o acontecimento. Estava longe de imaginar tudo isso quando apareci na soleira da porta de nossa casa, e o senhor de chapéu melão me disse bruscamente, com um tom mais do que severo. – O que o senhor fez com o seu amigo? – Não sei... – Sim... o senhor sabe... Ele está morto. 22


Não desejo que ninguém passe por um momento desses e precisei de alguns longos minutos para raciocinar e sentir o meu coração batendo. A ira, a indignação, a dor também e a vergonha de todos esses olhares que me devassavam por inteiro me sufocavam, e foi balbuciando que disse: – Está bem, senhor, vamos subir e falar lá em cima. Na cama Vincent jazia, completamente envolto pelos lençóis, todo encolhido com os joelhos junto ao corpo: parecia inanimado. Suavemente, bem suavemente, apalpei seu corpo cujo calor era com certeza sinal de vida. Senti como se toda a minha inteligência e a minha energia estivessem voltando. Quase em voz baixa, eu disse ao comissário de polícia: – Acorde-o com muito cuidado, e se ele perguntar por mim diga-lhe que parti para Paris. Minha presença poderia lhe ser fatal. Devo confessar que, a partir desse momento, esse comissário foi tão razoável quanto possível e, inteligentemente, mandou buscar um médico e um carro. Quando acordou, Vincent, depois de perguntar por seu camarada, seu cachimbo e seu tabaco, pensou em pedir a caixa que estava em baixo e onde ficava o nosso dinheiro. Essa suspeita me veio logo à cabeça, mas eu já estava preparado para qualquer sofrimento! Vincent foi levado ao hospital e, logo que chegou, seu cérebro recomeçou a divagar. Do resto, as pessoas que poderiam se interessar por estes tristes acontecimentos já sabem e seria inútil falar, não fosse esse enorme sofrimento de um homem tratado numa casa de loucos que, por intervalos mensais, se viu retomando a razão o bastante para compreender o seu estado e pintar com raiva os quadros admiráveis que conhecemos. A última carta que recebi estava datada de Auvers, perto de Pontoise. Ele me dizia que esperava ficar curado o suficiente para vir me ver na Bretanha, mas que naquele momento não via a perspectiva de uma cura. 23


“Caro mestre (a única vez em que pronunciou essa palavra), depois de tê-lo conhecido e de o deixar aflito, é mais digno morrer em bom estado de espírito do que em um estado degradante.” Deu um tiro de pistola em sua barriga e foi somente algumas horas depois, deitado no seu leito e fumando seu cachimbo, que ele morreu, guardando toda a sua lucidez de espírito, com amor por sua arte e sem ódio aos outros. Nos Monstros, Jean Dolent8 escreve: “Quando Gauguin diz: ‘Vincent’, sua voz é doce”. Não sabendo disso, mas tendo adivinhado, Jean Dolent tem razão. Sabemos por quê.

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8. Literato francês (1835-1909), conhecido por seus retratos de artistas.

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